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Caderno de Psicologia da UNIABC.

Comentários ao documentário
“Nós que aqui estamos por vós esperamos”
de Marcelo Mazagão

Francisco Rogerio de Oliveira Bonatto

Italo Calvino, no seu livro póstumo “Seis propostas para o próximo milênio” 1,
apresenta a visibilidade como uma das propostas a serem desenvolvidas pela literatura na
entrada do século XXI. Entre outras reflexões sobre a visibilidade, afirma o autor italiano
que o século XX gerou uma inflação de imagens. O século que finda foi pródigo não só na
criação de imagens como na invenção de meios novos meios de produção destas. Essa
profusão gera uma inflação de cenas que são todas veiculadas mas nenhuma permanece ou
chega a comunicar e produzir sentido. Diante disso, Calvino nos convida a usar a
imaginação para dar sentido às imagens, para que se possa atribuir significação a elas.
É nessa linha de compreensão que se pode interpretar a obra de Marcelo Mazagão.
Da inflação de imagens produzidas no século XX, usando a imaginação, o diretor procurou
dar um sentido às cenas por ele recolhidas em sua pesquisa. Colocando-se no presente,
tecendo uma teia de imagens, procura perscrutar, a partir do que foi sendo construído, as
perspectivas de futuro para o novo século.

Entre tantas possibilidades de interpretação desse texto construído por Mazagão,


gostaria de privilegiar a tensão apontada a todo momento no filme entre morte e vida, entre
cultura de morte e cultura de vida. Nesse sentido, é possível divisar a relação entre o
sujeito-indivíduo do século XX – herdeiro do sonho iluminista de plena realização
individual a partir da razão – que se defronta com os vários sistemas que estão interligados
e que, se lhe abrem possibilidades de expressão, desenvolvimento e superação, ao mesmo
tempo o engolem: o sistema-economia, o sistema-política, o sistema-cultura e o sistema-
sociedade. Tal relação, parece-me, é apontada já no início do filme quando apresenta sobre
o que versará: “grandes histórias – pequenos personagens” e “pequenas histórias – grandes
personagens”. Esta relação de tensão entre indivíduo X sistema é expressa de maneira
perspicaz por Boaventura de Sousa Santos, ao elaborar a crítica do sistema econômico-
social capitalista na atualidade: afirma Santos que este sistema “busca localizar soluções ao
mesmo tempo em que transnacionaliza os problemas. E não só localiza como privatiza os
problemas e soluções.”2
Assim, no sistema-economia, o discurso no contexto nacional é marcado pela
exaltação do neoliberalismo. Qualquer que seja o sentido que se atribua a esse termo,
geralmente tem sido usado por seus propagadores como compreensão de nova forma de
organização e presença do Estado em relação ao mercado, regulador onipotente das

1
2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 142p.
2
SANTOS, B. de S. Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1995.
350p. apud BONATTO, F.R. de O. O Próximo-Distante. Análise do Projeto Pequenos Trabalhadores.
Um estudo na favela do Parque Santa Madalena – São Paulo – SP. São Paulo, 1998. Tese (Doutorado) –
Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. p. 24.
relações econômicas. Concretamente, o que se observa é que o Estado, enquanto aumenta e
sofistica formas de controle sobre os destinos individuais, vai reduzindo sua presença e
participação nas suas responsabilidades sociais, notadamente no setor da saúde, educação e
da política de trabalho. Pari passu a essa gradativa ausência do Estado, novas instituições –
novos Estados? – vão ocupando o espaço público e a estrutura de poder: os grupos
econômicos transnacionais, por um lado e, por outro, os grupos delinqüentes organizados.
A ausência de uma política de trabalho é agravada pelas contínuas “reengenharias” a que
são submetidas as empresas e pelo avanço da tecnologia, com as conseqüentes demissões
que acarretam. Que perspectiva se abre ao indivíduo que luta para se manter minimamente
na condição de sujeito produtivo? A carta escondida na manga do sistema-economia é a
empregabilidade, ou seja, a possibilidade de se manter empregado está quase que
unicamente na capacidade do indivíduo de ser empregável pela educação contínua que,
geralmente, está sob sua responsabilidade.
O sistema-política, além de se livrar das responsabilidades sociais, ao longo do
século que termina, gerou estruturas políticas que esmagam os sujeitos. Exemplares são as
ditaduras militares do hemisfério sul, o Stalinismo e o Nazismo/Fascismo, que não são
unicamente expressões das décadas de 20, 30 ou 40 mas ainda hoje se fazem ouvir na
Europa e entre nós. A guerra como exercício de força para impor dominação político-
econômica foi também se sofisticando: a Guerra do Golfo tornou-se o exemplo clássico da
guerra aceptica na qual as imagens computadorizadas encobrem os sofrimentos dos que
recebem os bombardeios.
O sistema-sociedade, entre nós, mostra sua fragilidade, entre outros aspectos, na
questão da segurança e violência. Mais uma vez, as soluções equacionadas tanto pelas
forças políticas majoritárias quanto pelos meios de comunicação são apresentadas como
questões individuais. A prática de atos violentos é de responsabilidade unicamente
individual. Portanto a solução mais adequada é a construção de mais presídios para o
confinamento dos sujeitos criminosos. A defesa contra a violência também é de alçada
individual e depende da disponibilidade de meios financeiros dos indivíduos para cercar-se
cada vez mais de meios de defesa e alarmes.
O sistema-cultura, colhendo esses movimentos elaborados pelos outros sistemas,
reflete e, ao mesmo tempo, engendra-os. Manifestações desse sistema-cultura são a
“sociedade do espetáculo”, denunciada por G. Debord e a “cultura do narcisismo”,
analisada por C. Lasch.3. A base da compreensão e construção dessa sociedade é a
exaltação do indivíduo que tem seu desejo aprisionado, orientado, guiado pelas estratégias
de imposição do consumo. Este é imposto pelo sistema-economia junto ao sistema-cultura.
Nessa linha, as religiões mesmo, para além de qualquer compromisso teológico, se
oferecem como um supermercado de produtos de fé, que quer atender a todos os gostos,
principalmente os que permitam um refúgio não consciente das questões humanas mais
candentes. Nesse caldeirão, a ciência dá sua contribuição enquanto tende a desautorizar as
intervenções que partem da análise da condição do sujeito no seu contexto e oferece as
soluções mais curtas, farmacológicas ou neurolingüísticas, que apresentam um bem-estar
imediato, que se despreocupa com as contingências que geram as depressões ou as
incapacidades de assumir a própria vida.
Esta breve exposição da tensão sujeito-indivíduo X sistema-mundo pode parecer por
demais negativa. Ela procura contrastar, entretanto, com o forçado entusiasmo que vem
3
Cf. DEBORD, G. La societé du spectacle. Paris, Gallimard, 1994. e LASCH, C. The culture of
narcissism. Nova York, Warner Basic Books, 1979.
rondando a percepção desse final de século. A passagem para o ano 2000 foi caracterizada
como uma quase obrigação de euforia individual e coletiva que colocava entre parênteses
as mazelas produzidas pelo século XX, como se o simples início do novo ano impusesse a
superação destas. Já Freud, em 1930 denunciava este mal-estar na cultura ocidental
contemporânea4, caracterizado pelo estabelecimento do narcisismo ilimitado, que não
encontra os limites do princípio da realidade e, por isso, é incapaz de suportar as diferenças
do outro. Eric Hobsbawn, a essa condição chama de individualismo associal, que ele atribui
como característica marcante da cultura do século XX.5.

Às portas do novo milênio e dos outros 500 anos que se descortinam para a história
do Brasil, poderíamos perguntar que horizontes se abrem para a Psicologia que se pretende
crítica e criadora? O que poderia esperar dela a civilização brasileira?
Uma primeira perspectiva que se abre seria a do compromisso de denunciar a
dinâmica pseudo-psicológica que privilegia e reforça o individualismo associal puro e
simples como a saída para os impasses de nossa cultura.
Outra perspectiva é a proposta feita por Immanuel Wallerstein 6 de que os setores
anti-sistêmicos da sociedade promovam a emergência de um novo sujeito: os grupos.
Nestes, poderiam os sujeitos-indivíduos se reconhecerem e reencontrar novas
possibilidades de realização, alternativas à perspectiva da pura e simples competição entre
si. Este novo sujeito-grupo, entretanto, para poder representar uma nova possibilidade de
humanização, deve amadurecer o compromisso de, enquanto grupo, aceitar e respeitar as
diferenças dos outros grupos. Isso para se constituir como um novo sujeito, o sujeito-grupo,
responsável, produtivo, amadurecido. E não um sujeito-grupo neurótico que só consegue
sobreviver se tiver quem hostilizar, contra quem lutar ou de quem fugir. Abre-se para a
Psicologia o desafio de compreender as possibilidades de realização dessa proposta e de
compreender as dificuldades que encontra e os caminhos para superá-las.
Essa perspectiva abre também novos horizontes para a compreensão da condição
social da construção das subjetividades individuais. Joel Birman7 indica como uma dessas
condições fundamentais a consciência do desamparo, isto é, perceber-se não-onipotente,
mas frágil, sujeito à morte. Esta consciência da condição de desamparo se opõe à condição
eufórica da falocracia, característica da sociedade do espetáculo, narcisística, prepotente. A
consciência da condição de desamparo permitiria ao sujeito-indivíduo perceber-se como
sujeito de pulsões, que tem como possibilidade construir sua existência no reconhecimento
do outro como objeto de desejos. Este outro, porém, nunca é demais lembrar, é também
sujeito de desejos.

4
Cf. FREUD, S. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997.116p.
5
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX: 1914 - 1991. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998. p. 24.
6
Cf. TASSARA, E.T. de O. e DAMERGIAN, S. Para um novo humanismo: contribuições da Psicologia
Social. In: Estudos Avançados 10 (28), 1996, 291-316.
7
Cf. BIRMAN, J. Mal estar na atualidade. A psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p. 36-50.

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