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HISTÓRIA TRÁGICO-MARÍTIMA
Naufrágio de Sepúlveda
(1552)
Vou contar-vos a história dos que embarcaram no Galeão1 Grande «São João» quando
saiu da Índia em princípios de fevereiro de 1552.
Nos portos de Coulão e de Cochim2 recebeu o navio a pimenta com que devia de
regressar a Portugal. Não se pode dizer que fosse muita: não passava, com efeito, de uma
dúzia de milhares de quintais3; mas a carga ficou ainda demasiada, pelas outras mercadorias
que se embarcaram. Foi este excesso nos carregamentos uma das grandes causas de tantos
naufrágios. Junte-se o descuido na construção das naus, e, no caso do «São João», o péssimo
estado em que se achavam as velas.
Manuel de Sousa Sepúlveda capitaneava a nau, e trazia a bordo sua mulher e três
filhinhos. Embarcou também Pantaleão de Sá, cunhado de Manuel de Sousa.
Partiram pois a 3 de fevereiro e atravessaram o oceano Índico a leste da ilha de
Madagáscar, que se chamava então de S. Lourenço. A cinco semanas da partida — a 11 de
março — encontravam-se a vinte e cinco léguas, mais ou menos, do famoso Cabo da Boa
Esperança. Saltou-lhes o vento na direção da proa, muitíssimo rijo, acompanhado de
numerosos fuzis4. Ao cair da noite, o capitão chamou o mestre5 e o piloto, e perguntou-lhes
que decisão tomar. Meterem de capa6 com os papafigos7 (responderam eles) e aguardarem
tempo menos ruim.
Assim se fez. E, vindo arribando desta forma, já a uma centena de léguas do Cabo virou-
se-lhes o vento para leste-nordeste, mais forte ainda, obrigando-os a correr outra vez para
Sudoeste. O mar, feito do Poente até então, era batido agora do Levante: e tornou-se tão
grosso e desencontrado que, a cada balanço que o galeão tomava parecia que as vagas o
meteriam no fundo. Desta maneira se passaram três dias. Ao cabo deles, o vento acalmou; o
mar porém ficou tão revolto, e tanto e tanto trabalhou a nau, que três machos do leme8 se
perderam então. O carpinteiro, quando deu pela perda, comunicou o facto em segredo ao
mestre. Este, com bom oficial e bom homem que era, recomendou que não o dissesse ao
capitão da nau nem a nenhuma das pessoas que vinham a bordo, para evitar o alvoroço e o
terror.
4
fuzis: relâmpagos.
5 mestre: responsável pela navegação de uma embarcação; era, habitualmente, alguém que dominava muito bem a sua atividade
profissional.
6 meter de capa: imobilizar a embarcação através do desfraldar das velas.
8 machos do leme: peças de ferro, pregadas no bordo vertical interior do leme, e que giram dentro de fêmeas pregadas na roda da
popa.
9
ló: o bordo do navio onde vão as velas amuradas, e, portanto, o que recebe o vento (o lado do barlavento).
10
traquete: a mais baixa e maior vela redonda do mastro da proa. É um dos papafigos.
11 enxárcias: o conjunto dos cabos fixos que, para um e outro bordo, aguentam os mastros reais, descendo até às mesas.
12 viradores: cabos grossos, em geral destinados a gornir ao cabrestante para esforços grandes.
13 brandais: cabo que desce do calcês de um mastaréu até à mesa da enxárcia. Serve para segurar o mastaréu para os lados do
navio.
14 tamboretes: pranchões com que se fortificam as aberturas que no convés e nas cobertas dão passagem aos mastros.
15 manchua: navio de carga à vela e remos, com um único mastro e vela redonda, muito usado na costa do Malabar.
16 braça: medida de oito palmos. A linha com que se sonda é dividida em braças.