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Dona Lola

Maria José Dupré

São Paulo

Saraiva, 1968

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Capítulo 1

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MINHA amiga D. Genu apareceu um dia muito cedo, o rosto
afogueado por causa do calor. Estávamos em fins de dezembro, o sol
abrasava; foi me encontrar no tanque, lavando roupinhas das crianças.
Levantei a cabeça e enxuguei o suor da testa ao ouvir a voz tão
conhecida: - Passei pelo jardim e não vi ninguém. Como vai, Isabel? E
as crianças? Todos estão com saúde?

Abraçamo-nos. Nem bem respondi, vi que o rosto da minha amiga


se sombreava e, com a mão no meu ombro, baixou a voz: - Sabe
quem está muito doente? Desta vez ela não escapa por causa da
idade. Prudencinha.

- D. Prudencinha? Estava tão forte a última vez que a visitamos…


Ora esta.

- E a idade? Desta vez a coisa é séria. Como a senhora disse que


queria ir comigo, passei por aqui.

Ela saboreava a notícia. Meu pensamento voltou-se para a pensão


de Irmãs, onde eu havia residido e os anos pareciam não correr para
aquelas que lá moravam e rezavam na capela todas as manhãs. A
multidão de velhas deixava os quartos e vagarosamente se
encaminhava para o refeitório onde tomava café. D. Tututa, quinze
anos mais moça que D. Prudencinha, que estava naquele tempo com
oitenta e cinco primaveras, colocava cuidadosamente o guardanapo
branco à volta do pescoço da irmã mais velha e dava um laço atrás. D.
Prudencinha, cansada de tanta idade c tanta vida, tinha a cabeça um
pouco fora do bar e derramava leite no vestido todos os dias; os
braços reumáticos perdiam as forças e a irmã encostava-lhe a xícara à
bôca e ela sorvia o leite fazendo ruído, como criança. Sua boca
murcha, de lábios finos, chupava avidamente, depois mastigava
torradas com manteiga mostrando as gengivas rosadas e rijas.

Há três anos as duas irmãs viviam na pensão, a mais moça sempre


vigiando a mais velha. Depois do café, as velhas empurravam as
cadeiras para trás e, em grupos de quatro e cinco, dirigiam-se à capela
e assistiam à Santa Missa. D. Prudencinha espantava moscas e olhava
o padre com indiferença. Quando seu olhar encontrava outro, sorria

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sacudindo a cabeça, os olhos pequeninos e espertos. Depois da missa,
as velhas fechavam-se nos quartos até a hora do almoço; arrumavam
gavetas, costuravam, olhavam retratos. Algumas tinham
correspondência e respondiam cartas, outras com o rosário nas mãos,
continuavam a rezar para ganhar o céu e a cochilar nas cadeiras de
balanço que rangiam suavemente.

A paz era profunda como a do Senhor. Somente no jardim


pássaros chilreavam e saltitavam no chão, na relva, nas árvores e na
gruta tosca, sobre os ombros de Bernadette que, de joelhos, adorava a
Virgem de fita azul na cintura. Quando a sineta tilintava para o
almoço, as portas dos quartos se abriam e a multidão de velhas
inundava os corredores, a escada, em busca do refeitório. Umas
rescendiam a água-de-colônia, outras a brilhantina rançosa, outras a
remédios ou a azedo. D. Tututa escoltava D. Prudencinha que andava
o mais depressa que podia, pensando na comida. Tinha um apetite
insaciável, repetia os pratos, reclamava quando a irmã negava-lhe
qualquer coisa, batia os pés no chão, fazia cara de choro, os olhos
lacrimejando. A boca não cessava de mastigar e quando via os pratos
vazios à sua frente, parava um pouquinho, recostava-se na cadeira,
largava o corpo e suspirava pensando na sobremesa e no café. Então
D. Tututa limpava-lhe a boca com cuidado e ela tornava a sorrir e
arrotava alto, seguindo com olhos de gula a goiabada e o queijo que a
empregada depositava na mesa. Terminando o almoço, as velhas
seguiam pelo corredor afora na direção dos quartos; algumas
conversavam na salinha falando mal da pensão, outras faziam tricô,
outras saíam a passeio, outras ainda rezavam e cochilavam, o rosário
entre os dedos frágeis. Lá fora os dias eram bonitos ou feios, havia
guerras ou não havia; para as velhas, eram sempre iguais. Docemente
esperavam a Morte.

E todas as tardes, uma andorinha descansava sobre a cabeça de


Bernadette e, enquanto alisava as penas, soltava queixumes trêmulos.

Troquei de sapatos e vesti meu costume preto e surrado para


acompanhar minha amiga. Fomos depressa. D. Prudencinha, que
apesar da idade era a mais forte das velhas, agora estava com
pneumonia. D. Genu arquejava de calor e dos quarteirões que
tínhamos de vencer antes de chegar à pensão.

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- Velha com pneumonia é a morte, explicava minha amiga. Ontem
telefonei para saber, estava com quarenta de febre. Desta vez não
escapa.

Eu duvidava. Falava na saúde de D. Prudencinha, lembrava que no


último Natal todas as velhas haviam tido indigestão e D-. Prudencinha
que comera, no almoço, metade de um pato recheado e meia travessa
de castanhas, nada tivera.

- Se não fosse o reumatismo nos braços…

- Mas agora é pneumonia, teimou minha amiga, esbaforida e


suarenta. Acha que uma pessoa com a idade dela pode escapar dessa
doença? A senhora vai ver, o caso é gravíssimo.

E andava mais depressa, com medo que a doente escapasse. Olhei


o rosto gordo e suado de D. Genu. Irradiava contentamento. Lembrei-
me de que anos atrás, quando c ramos vizinhas, eu descobrira com
surpresa que ela gostava dos mortos. Farejava de longe quando
alguém da vizinhança, fosse quem fosse, estava para morrer.
Apresentava-se, sorrateira, na casa do doente e com palavras ternas
de consolo, voz compungida, preparava-se para passar as noites. Já
levava de prevenção, na grande bolsa de couro, pente, escova, às
vezes uma blusa para trocar. Prestava serviços inestimáveis, quase
alegre; quando o doente morria, com que presteza ela lidava com o
cadáver, com que facilidade e habilidade cia o lavava e o vestia, e
punha-lhe flores no peito, penteava-lhe os cabelos com carinho,
lembrava detalhes que os parentes tinham esquecido, tomava conta da
cozinha, preparava xícaras de café em bandejas que descobria na
despensa, ordenava canja para os que passavam a noite. Solícita,
maternal, incansável.

Se o morto era moça, passava-lhe levemente baton nos lábios,


arrumava com cuidado os cabelos, enfeitava-os. De quando em
quando espevitava as velas, tirava o espermacete, acariciava a cabeça
do defunto. Tornava a arrumar as flores, e no seu passo cadenciado,
ia para os fundos da casa, cochichava com um, falava com outro,
voltava, dona de tudo. Continuamos a andar, a pensão estava perto.
D. Genu deu uma palmadinha na bolsa: - Trago aqui as coisas para
passar a noite. Creio que ela não amanhece, sou muito prevenida.

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Entramos. O silêncio era maior na pensão; quando nossos passos
ressoaram no corredor, as cabeças das velhas surgiram nos vãos de
todas as portas, assustadas e atormentadas A morte rondava. D. Genu
empurrou com decisão a porta, pôs a cabeça dentro do quarto,
espiou, escutou. Um bafo quente de bolor e de urina espalhou-se no
corredor, onde duas ou três velhas haviam nos seguido e esperavam
rentes à parede, cheias de curiosidade. Uma Irmã de touca branca e
rosto ainda mais branco apareceu e nos olhou calmamente,
respondendo ao olhar interrogativo de minha amiga.

- Está melhor. A febre baixou esta madrugada.

O rosto de D. Genu escureceu de sombras:

- Será possível? Eu telefonei ontem à noite, disseram que ela


estava com quarenta graus de febre, mais de quarenta, estava
desenganada…

D. Tututa convidou-nos para entrar e ver O doente D. Genu foi a


primeira; dirigiu-se ao leito, colocou a mão aberta na testa de D.
Prudencinha. Voltou-se, desapontada - Então ela melhorou? Que
coisa!

Em cochichos, D. Tututa explicou-nos que sim, O médico havia


saído há meia hora, a pneumonia estava cedendo, O organismo da
enferma era resistente, ela reagia. Havia esperança. Desanimada,
minha amiga depositou com impaciência a bolsa na mesinha coberta
de remédios, sentou-se numa cadeira ao lado da cama e esperou.

- Ora esta. Ainda no caminho vim dizendo para D. Lola que desta
vez seria difícil Prudencinha escapar Com a idade que tem…

- Ela foi sempre muito forte, sussurrou D. Tututa.

- Mas com a idade que tem… Ela não está com quase noventa? É
incrível, nunca vi isso. Qualquer outra esticava..

Lembrando que suas palavras não eram muito consoladoras,


corrigiu:

- Graças a Deus…

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No íntimo disfarçava a revolta, fora frustada desta vez.
Conversamos em voz baixa no meio do quarto; quando a doente fazia
um movimento ou gemia D. Genu se debruçava com solucitude,
observava, escutava, passava a mão na sua testa, pegava-lhe O pulso,
admirada de haver-se enganado. Uma hora depois, D. Prudencinha
mexeu-se, abriu os olhos, pediu um prato de canja. D. Tututa deixou
O quarto para encomendar a canja. D. Genu voltou-se para mim,
indignada: - Já viu que coisa? Pensei que não passasse de hoje; ainda
vai sarar imagine, está pedindo comida. Velha danada.

Quando saímos, as velhas espreitavam nos vãos das portas,


pediam notícias satisfeitas quando souberam da melhora.

- Prudencinha ainda vai enterrar estas corriqueiras sussurrou-me a


amiga. Velha dura como O diabo. Para mim, a morte esqueceu-se
dela…

Uma semana mais tarde, O filho menor de Isabel caiu doente.


Isabel dava-lhe colherinhas de leite, mas ele recusava; apertava os
lábios e empurrava a colher com as mãozinhas indecisas, quase sem
forças. Ela se desesperava inclinava a cabeça despenteada, suplicava
com voz chorosa: “Tome um pouquinho, meu filho, um pouquinho
só”. Era quase noite, a lâmpada da cozinha era pequena, e a luz tão
fraca que mal se distinguiam os objetos; O fogo alegre e brincalhão
dava estalinhos secos.

Ouvi passos cautelosos na calçadinha que circundava a casa, ele


vinha sempre assim, silencioso, como quem quer surpreender,
descobrir coisas erradas. Isabel estava na cozinha com Zezinho no
colo, os filhos mais velhos no quarto. Os passos cessaram na porta da
cozinha e antes de tirar O chapéu ou dizer boa noite, perguntou: -
Está melhor?

Ela sacudiu a cabeça, hesitante:

- Parece que tinha melhorado, agora não quer nada e O leite que
lhe ponho na boca volta. Tem muita febre Felício aproximou-se e
colocou a palma da mão direita na testa da criança; ficaram os dois
atentos perscrutando O rosto do filho.

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- O médico vai voltar às oito horas. Somente O rumor do vento
em volta da casa, como que assobiando. Dirigiram-se para O quarto,
ela carregando O menino. Falei em voz baixa que a sopa estava
pronta não seria melhor jantar? Tomar a sopa, ao menos? Não
responderam. As três crianças que estavam no quarto vieram em
silêncio, sentaram-se à mesa da cozinha; cortei O pão era pedaços
pequenos. Ninguém falava. Fui ver se precisavam de mim. O quarto
de .Isabel e Felício dava para a sala de jantar empurrei a porta;
Zezinho estava agora no colo do pai, virando a cabecinha de um lado
para outro, dando gemidos suaves. Isabel ia e vinha guardando roupas
esparsas, enfileirando vidrinhos de remédio na cômoda Do canto
sobre a mesinha da cabeceira, vinha uma luz mortiça, azulada Ela
esticou a colcha, pôs os travesseiros no lugar depois de sacudi-los,
ajuntou xícaras e pratos usados, levou-os para a sala.

- Vão tomar um pouco de sopa, eu fico aqui com O menino.

Ela voltou, dobrou a toalha de banho, depois ficou de pé na frente


do marido, olhando a criança. Insisti que ela precisava alimentar-se,
comer um pouco, ainda mais no estado em que estava. Ela continuou
de pé, sem responder. A cabeça de Zezinho era como uma bola,
virava para a direita, voltava para a esquerda, como à procura de
alguma coisa. Pensei no arlequim. Da sua boca pequena saíam
queixumes suaves, as faces vermelhas de febre.

- Não quero jantar, não quero nada,

A voz de Isabel era dura, revoltada. Voltei para a cozinha onde os


meninos estavam lavando os pratos e Sílvia enxugando. Ela me
perguntou fixando-me os grandes olhos castanhos:

Ele está melhor, vovó?

- Parece que agora está melhor, creio que vai sarar. As crianças
foram dormir, sentei-me ao lado do fogão e esperei esperei alguma
coisa e ouvi O assobio do vento A noite foi longa e incerta De duas
em duas horas, Felicio ou Isabel vinham aquecer-se perto do fogo e
tomar um pouco de café. Eu perguntava do menino, eles sacudiam os
ombros, parecia melhor, não sabiam. Ninguém sabia se nosso Zezinho
ia sarar ou morrer. Já madrugada, quando a luz do dia entrava

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frouxamente pela vidraça e minha cabeça pendia para O peito num
cansaço imenso, Felício apareceu novamente e disse que O menino
estava melhor O

médico tinha esperança. Fui ver. Zezinho dormia um sono agitado


sobre O braço de Isabel que cochilava, esgotada de fadiga.

- Então nosso Zezinho está melhor? Esta reagindo? Com muito


cuidado, ela foi retirando O braço e disse que tomaria uma xícara de
café tinha os pés tão frios. O

médico veio mais duas vezes esse dia.

Foi numa tarde de inverno fria e escura, a chuva caía fininha,


fininha, e as folhas das árvores, dobradas parado chão pareciam
chorar. Os olhos dele foram se fechando devagarinho e a cabeça que
parecia uma bola, cessou de rolar. Isabel me olhou atemorizada deu
um grito: - Mamãe, êle morreu.

A mão que eu guardava foi esfriando, esfriando Como um


passarinho. A casa ficou vazia. Sílvia, Carlos e Eduardo os irmãos
mais velhos, pensavam que no mundo só havia brinquedos, pular com
uma perna só, bonecas, brincar de esconde-esconde; ficaram de
repente sérios, olhos fundos faces alongadas, bocas trêmulas, olhando
O caixãozinho azul que ia indo pela rua a fora. A vida ensinou-os num
instante que além de tudo O que eles conheciam, havia dor também,
uma dor funda que aperta os corações, que esmaga. Os vestígios de
Zezinho ficaram, pedaços dele em todos os recantos da casa: um bico
de mamadeira, uma pagina de revista arrancada com força, peças de
roupa, O babador no qual Isabel havia bordado com linha vermelha
José Felicio”, e por fim, encontrei, numa gaveta, uma receita de
sopinha de legumes Isabel parecia uma estátua, não chorava e não
talava. Sentada na cadeira da sala, ficava horas inteiras olhando O
chão, parada e muda. Eu passava a mão na sua cabeça, procurava
conversar, falava dos outros filhos.

- Sílvia vive falando que quer estudar piano, não sei onde essa
menina viu piano, só fala nisso. “Ih, vovó, se eu tivesse um piano.”
Tem músico na família, olhe O tio Damião como toca bem, até
escreve música; ela tem por quem puxar, agora só fala nisso. Mania.

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Um dia, ela apenas me perguntou com voz seca, olhar duro.

- Lembra quando êle batia palminha?

Eu ainda via Isabel dançando diante dele com O prato de mingau


nas mãos dizendo: “Bata palminha pra mamãe. Onde está O filhinho
da mamãe?” E O riso de gengivas vermelhas escancarando a boca, O
agitar enérgico de braços exigindo a sopa, os gritos, as mãos
rechonchudas, como não havia de lembrar? Isabel não chorava; os
olhos secos, as mãos cruzadas sobre O ventre, fixava O chão numa
obstinação doentia. Dias passaram depois da morte do menino e ela
com olhos parados, não falava, não chorava.

Os mais velhos olhavam aquela mãe tão estranha, Felício ia para O


quintal, sentava-se com a cabeça entre as mãos. E Isabel? Continuava
imóvel, recusava os alimentos e só aceitava água que tomava aos
copos como se nunca pudesse extinguir aquela sede que a devorava.

Carlos veio do quintal uma tarde, com um boneco quebrado entre


as mãos, era O boneco que Zezinho abraçava todas as noites ao
dormir. Colocou O brinquedo sobre a mesa; pôs-se a examiná-lo.
Nesse instante Isabel levantou a cabeça e olhou O boneco. Fitou-o
intensamente durante alguns minutos, depois fêz um gesto como se
quisesse pegá-lo; de repente, as lágrimas correram-lhe pelas faces e
ela começou aos gritos: “Meu filhinho, meu querido filhinho.”

Era um boneco à-toa, um arlequim desengonçado, de pernas


tortas, mas cresceu, dominou, encheu a casa e foi colocado no quarto
do casal, sobre a cômoda, como se fosse a imagem do Menino Jesus.
Foi por isso que deixei a pensão de Irmãs onde morei durante anos,
por causa do Zezinho. A casa parecia vazia sem êle, mas Isabel
esperava outro filho.

Felício passou dias e dias de cara enfarruscada, de mal com O


mundo Não saiu do quarto, nem falou com ninguém. Quando eu
chamava de manso, com cuidado: - Felício, venha jantar.

- Não quero.

A voz vinha do fundo do quarto, zangada. Um dos filhos


perguntava com medo: - Papai não vem almoçar?

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- Não.

- O café está tia mesa, Felício.

- Não quero café.

- Quer chá?

- Não.

- Quer beber alguma coisa? Não.

Era um não seco, áspero, atirado longe como uma pedra para
acertar. Êle parecia um menino brincando sem vontade, perguntando
e respondendo zangado: - Onde está O fogo?

- Água apagou.

- Onde está a água?

- Boi bebeu.

- Onde está O boi?

- Amassando trigo.

Êle queria Zezinho, mas Zezinho fora embora num caixão azul
enfeitado de ouro, amôres-perfeitos amontoados no peito, margaridas
nas mãos, rosinhas nos pés. Tão bonito.

Como um anjo a quem só faltassem asas; com certeza arranjou-as


no caminho para alcançar mais depressa O reino dos Céus. Anjinho.

As últimas dores já não me marcavam, eram como água deslizando


sobre pedra. Não penetravam.

Eu mè lembro de Isabel quando era solteira e ia dou bailes de


vestido branco, fita nos cabelos. Nesse tempo era linda e leve, leve de
corpo, leve de dores Durante todos esses anos de casada, quando
vieram os filhos e os trabalhos, esperei que de seus lábios viesse um
queixume ou um pedido de conselho, ou uma palavra de
arrependimento Nada. E mesmo quando sofreu sua mais funda dor,
seus lábios continuaram mudos.

Ela passava e tornava a passar na porta do meu quarto, pesada e


silenciosa; ia à cozinha buscar alguma coisa. As crianças brincavam no

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quintal sem barulho quando O pai estava em casa a ordem era -
silêncio. Ela arrastava os pés inchados, despenteada, O rosto
manchado de amarelo; tornava a passar, a testa cheia de rugas.

- Quer que eu faça café, Isabel? A água está fervendo. Ela ficava
por ali suspirando, apoiando-se à mesa da cozinha, olhando através da
vidraça os filhos sob a ameixeira. As crianças preparavam-se para a
escola. Eduardo era O mais velho, filho da primeira mulher de Felício.

Tristonho e retraído, visitava a mãe uma vez por semana, aos


sábados. Voltava comum pacote de doces e com os olhos vermelhos.
Não sei O que Felício fêz para tirá-lo da companhia da mãe; Isabel
apenas me anunciou um dia:

- O filho de Felício vem morar aqui.

Veio um menino magro, de olhar medroso, rosto cheio de sardas,


feio. Saía aos sábados e voltava tarde, devagar, delongando O
momento de entrar. Trocava de roupa e sem dizer palavra, procurava
os irmãos no quintal. Tinha doze anos Carlos e Sílvia eram os de
Isabel, alguns anos mais moços. Os três pareciam quietos e retraídos,
só perdiam a timidez quando O pai se ausentava.

Haviam residido no bairro do Cambuci, numa rua perdida no


emaranhado de outras ruas, depois mudaram-se para outra casa no
mesmo bairro, quase no descampado, numa rua tortuosa, cheia de
capim, onde eu viera também residir.

Eu costurava e ouvia O silêncio durante as horas em que os


meninos estavam na escola Isabel e eu nos alternávamos nos serviços
da casa, raramente saíamos; Felício trazia todas as noites pacotes de
mantimentos que esparramava na mesa da cozinha, silencioso
Jantávamos nessa mesma mesa e muitas vezes somente O ruído dos
pratos e talheres era ouvido na casa.

Estávamos em agosto, fazia um mês que Zezinho se fôra. Felício


passou dias sem falar, sombrio, esbravejando por qualquer coisa,
batendo portas, carrancudo. Um dia ouvi Isabel perguntar se já avisara
D. Venuta; respondeu de mau humor, virou as costas, a porta estalou
com O baque Uma semana depois, Felício veio ao meu quarto pedir
para eu ficar com Isabel enquanto ia buscar a parteira. Estava

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chovendo e fazia frio. Isabel começou a gemer e a perguntar as horas,
como se assim O tempo passasse mais depressa E êle pôs-se a correr
de um lado para O outro, agitado; sempre auxiliava os partos da
mulher, dizia que estudara medicina durante dois anos e não havia
necessidade de médico.

O fogo de lenha crepitava no fogão fui ficando aflita, tudo podia


acontecer naquele ermo, sem telefone, sem comunicação. A água
estava fervendo quando êle voltou com D. Venuta. Era uma mulher
alta e forte, de braços robustos, seios grandes. Foi entrando e dizendo
que tomaria vinho, com aquele frio que penetrava até os ossos.

Felício trouxe a garrafa e dois copos; beberam depressa enquanto


Isabel gemia no quarto, apertando a boca no travesseiro. D. Venuta
tirou O casaco, arregaçou as mangas, resoluta; estalou a língua O
vinho reconfortava e por que Isabel inventara de ter criança numa
noite daquelas? Sua voz era forte e grossa. A que horas rompera a
bolsa de águas? As roupas estão passadas? A água fervendo? Por que
não dão água com açúcar para aquela chorona?

Parecia mais alta, os braços nus musculosos, andando de um lado


para outro, fazendo perguntas seguidas. Era um vozeirão grosso, de
gigante. Forte como um homem, ossuda, peituda, O lábio superior
coberto de pêlos escuros. Falou alto para Isabel ouvir: - Quem precisa
hoje da Benevenuta? Quem vai pôr criança no mundo nesta noite
gelada? Ria com estrondo e socava O peito: - Benevenuta.
Benevenuta.

No quarto baixou O tom de voz:

- Vamos ver esta menina, vamos ver como vai isto. Fecharam-se.
Fui para a cozinha, comecei a tremer.

Ouvia a voz de D. Venuta ordenando que gritasse, agarrasse a


grade da cama, fizesse força. Força. Isso mesmo.

Sílvia apareceu estremunhada na cozinha, ouvira gritos. Vá dormir,


volte para O quarto, durma. Crianças precisam dormir. Eu
destampava a chaleira, andava, espiava a água, atiçava O fogo, mais
lenha no fogão. Lavava as pontas dos dedos, enxugava-os, crianças

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precisam dormir. Ouvira gritos, mentira Por que vinha com aquele
rosto pálido, tremendo de frio, espiar a cozinha?

Segure a grade da cama, faça força, assim, grite, grite. Eu girava,


via as panelas dependuradas, arrumava uma, passava a mão na outra,
destampava a chaleira outra vez. A água palpitava, pulava. Gotas
caíam na chapa, chiavam. Onde estavam as roupas passadas a ferro?
Mostraria com a mão, ali. Zezinho morrera, outro Zezinho ia nascer.
A tampa da chaleira saltava; espiei outra vez, enchi outrí panela de
água, coloquei-a sobre O fogão. Gemidos.

Sozinha, esperei O dia amanhecer, um dia chuvoso, O vento a


sacudir as folhas das árvores. Eu perguntava se precisavam de mim,
dos meus serviços, das minhas mãos que tanto já haviam trabalhado,
não, não, a voz de D. Venuta era um trovão. E minhas mãos inúteis e
os gemidos de Isabel a me torturarem e eu me lembrava de quando ela
era mocinha, fita nos cabelos e vestido branco, longe de toda aquela
miséria, toda aquela dor, a dançar, a girar, a rir. Fiquei olhando as
minhas mãos inúteis e falando em voz

alta como se alguém .estivesse ali e me ouvisse; falava para as


panelas dependuradas para a água fervendo, para O dia que vinha
surgindo.

Por que tanto sofrimento? Que mocinha feliz ela fora, dançando
como uma flor! Agora estava estendida naquele leito. Ruptura da bolsa
, faça força, grite, segure a grade da cama, tome água com açúcar,
isso mesmo. E com aquele marido… Eu batia no parapeito da janela e
repetia as palavras esperando a manhã.

Isabel gritava de dor, O vento urrava lá fora, eu escutava atrás da


porta e mordia minhas mãos inúteis Passaram as horas da manhã de
agosto eu a dizer que Zezinho viera ao mundo com sofrimento, depois
morrera e antes morrer do que viver naquela casa onde quase não
havia alegria. Ninguém podia ser alegre e viver sob O mesmo teto que
Felício; tinha um gênio tão incompreensível, tão sombrio. Batia nos
filhos, sacudia as portas com tanta força que a casa parecia
estremecer.

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Nesse tumulto de pensamentos, vi Felício sair do quarto e ir fumar
um charuto no terraço voltou dizendo que estava ventando, eu disse
que lá ventava sempre, como ela ia passando, não seria melhor
chamar um médico? Na mesma. Não, não para que médico? Essas
coisas são assim mesmo. Sentou-se na cadeira que ocupava sempre
para ler jornais e fumou serenamente O charuto, presente de D.
Augusta. Por que a dor não cessava? Não acabava de uma vez? Na
mesma. Tapei os ouvidos, grite, grite Percebi vaivém, movimento,
passos apressados, batidas de portas, a voz de D. Venuta como um
trovão a rolar. Onde estão as roupas? Corri, os gemidos cessaram,
foram se encolhendo, amortecendo. Choro de criancinha. A parteira
passou nos seus passos de gigante, voltou, quebrou ampolas, injeções,
a menina é uma beleza. Menina?

O fio de linha para O umbigo onde está As roupas? A placenta

saiu. As roupas estão aqui. Pode entrar, minha mãe. Êle está
radiante, me chamou de minha mãe. Lembrei de uma antiga vizinha
que dizia - muito radiante. D. Venuta lidava com Isabel, parecia um
açougueiro gordo. A criancinha chorava, toda vermelha. Comecei a
rir, a princípio baixinho, devagarinho, disfaçando; depois O riso foi
aumentando, foi sacudindo meus ombros, todo meu corpo. A
criancinha berrava que era um gosto, senti alívio, toda a aflição se
desvaneceu, só queria rir, até dar gargalhadas. Isabel tinha um ar
cansado, sorriu de leve:

- Mamãe viu a menina?

Fui preparar a mesa do café, O corpo todo tomado de riso, de


felicidade. A chuva caía mansinha, gelada, batia na vidraça com
cuidado, não queria fazer barulho. D.

Venuta começou a contar casos, falando alto, a boca cheia de pão


e queijo, Isabel fora feliz, a criança era formidável. Dias antes assistira
a um parto, aquilo que fora parto, O de Isabel não fora nada,
brincadeira. A tal mulher berrava noite e dia que nem bicho, nada se
resolvia; no fim - cesariana.

- Mais um pouco de café, faça O favor. Sim senhora, cesariana ali


no duro.

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Boca cheia, pão e queijo, mastigou forte, O marido da tal quase
morrera de susto. Começou a rir, seu peito tremia com as risadas. Ah,
ah, ah. Me deu com O cotovelo: - Está louca de alegria com a netinha
e está disfarçando, não é? Pensa que me engana?

Ri e fiquei engasgada, ela me socou as costas

- Olha a avó como está orgulhosa, até teve engasgos. Sua risada
ressoava pela casa, rimos juntas enquanto ela esmurrava minhas
costas. Meus olhos pareciam querer saltar das órbitas. Que mulher!

As crianças apareceram assustadas, olhos grandes de medo. O pai


disse: - Nasceu mais uma irmãzinha, agora está dormindo, depois
vocês vão ver.

Ficaram olhando O pai; Carlos perguntou O nome, O pai disse


que eles iam escolher, fossem pensando. Olharam-se e sorriram. D.
Venuta preparou-se para sair, tudo correra às mil maravilhas, voltaria
mais tarde. Deu piparotes nas cabeças das crianças, fêz
recomendações, adeus foi embora. Parecia dar socos onde passava,
bigoduda, mulherão. Fui espiar a criancinha ao lado de Isabel tinha O
rosto sereno e dormia. Isabel também parecia dormir, uma expressão
desolada de grande desânimo. Onde estava aquela morinha de fita nos
cabelos e vestido branco que girava na sala e fazia caretas para os
irmãos?

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Capítulo II

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Com a guerra e O racionamento, a vida foi ficando difícil; era
como um círculo que nos fosse apertando, até nos sufocar. Eu saía às
seis horas da manhã para ir à fila de carne e de pão, depois comecei a
sair às cinco, depois às quatro da madrugada. Muitas vezes Felício me
acompanhava às duas horas, noite fechada, até à porta do açougue,
onde eu esperava minha vez. E quantos dias voltava sem trazer nada
porque O açougueiro anunciava da porta, sob a luz mortiça, O avental
manchado de sangue: “Não há mais carne.” Ou então era O padeiro
que dispersava as filas: “Acabou-se O pão.”

As crianças tomavam café com polenta de manhã; O leite era cada


vez mais difícil, dávamos leite condensado, quando havia. Mas quando
pensávamos que, na Europa, os povos sofriam fome e bombardeios,
sentíamos certo alívio pensando que no Brasil não havia uma coisa
nem outra; é verdade que tudo era difícil e nem sempre havia O que
comer; mas havia substitutos, mandioca ou polenta em vez de pão.

A menina ficou se chamando Maria Helena, mas nós dizíamos


apenas Lena. Os padrinhos que haviam batizado Sílvia, batizaram
Lena num sábado à tarde. As crianças vestiram as melhores roupas, a
casa foi encerada, a madrinha mandou um vestido de renda e Lena
ficou muito bonitinha, rostinho redondo e corado. Fiquei preparando
a mesa do lanche para quando voltassem; Felício estava muito
satisfeito porque quando perguntei se podia servir, respondeu
gentilmente: - Quando quiser, minha mãe.

Mais tarde, lembrou a Isabel, solícito:

- Não está na hora de dar de mamar, meu bem?

Os padrinhos sorriam: as crianças, que haviam se reunido aos


filhos dos padrinhos, brincavam à volta da casa. Na mesa da sala, os
adultos tomavam cerveja, faziam brindes com vinho do Porto Isabel
veio do quarto com a criança; debruçaram-se sobre O rosto de Lena e
discutiram a côr dos olhos. Felício lembrou O batizado de Sílvia, fora
no mesmo mês, num dia assim, há muitos anos Riram com a
recordação, Sílvia havia chorado tanto. Falaram sobre O batizado de

18
outras crianças, comentaram outros fatos; falaram do tempo, das
chuvas que estavam atrasadas, da guerra.

Depois da partida dos padrinhos, Isabel avisou que não havia mais
açúcar em casa, a cota dava mal e, com O lanche do batizado, se
acabara Felício impacientou-se, por que não avisou antes? Agora que
acabou é que vem me avisar, eu poderia ter arranjado um pouco com
D. Augusta Que posso fazer agora? Ficou furioso de repente: - Faz
doces, bolos, balas, depois vem me avisar:. - Acabou O açúcar.

Afinava a voz para imitar a de Isabel:

- Acabou O açúcar.

E depois de uma pausa: - Bolas!

Ela procurou explicar… Êle pôs O chapéu na cabeça e saiu


batendo a porta; ela parou no meio da frase. Carregou Lena e foi
para O quarto.

Os meninos me auxiliaram a tirar a mesa e a pôr ordem na sala.

As crianças torciam O nariz diante das xícaras:

- Café com rapadura? Deus me livre,

- É só enquanto não temos açúcar…

Ninguém queria tomar café. Dias depois Felício apareceu com um


saco misterioso numa carrocinha, falou cochichando: - Arranjei com
um amigo.

Era açúcar do mais branco e fino. Foi escondido no guarda-roupa


de Isabel, coberto com roupas brancas, como se fosse ouro. Ela tirava
todos os dias um pouco, com parcimônia. O saco foi murchando; as
crianças pediam um pouco de doce, só um pouquinho, vovó. Eram
crianças, coitadas, queriam adoçar a boca. Chegou O dia de café com
rapadura outra vez, fizeram caretas, Isabel teve dor de cabeça.
Comprei açúcar preto, os meninos cuspiam, servíamos leite
condensado quando podíamos, ficava caro.

Um domingo, os padrinhos vieram para uma visita, trouxeram dois


quilos preciosos; sentaram-se na sala, entregaram O pacote com
cuidado.

19
- Desta vez vou esconder, disse Isabel.

As visitas acharam Lena crescida, discutiram política com Felício.


O padrinho e Felício acabaram tirando os paletós, experimentando
forças, os braços nus sobre a mesa da sala. Isabel e a madrinha
sorriam polidamente, sem assunto. As crianças ficavam excitadas
depois de ver a luta dos pais brincavam com brutalidade, um atirava O
outro no chão; queriam também medir forças. Felício vencia quase
sempre; ficava suando, todo sorrisos, amável para com todos. Depois
acompanhou as visitas até O ônibus, convidou-as a voltarem, amável.

Às vezes, ficava fechado no quarto lendo revistas, ou então ia


passear no campo longe de casa, e os padrinhos ficavam esperando
até êle voltar da cidade. Isabel inventava mentiras. Êle aparecia depois
da partida das visitas, quando a casa estava novamente em silêncio. A
madrinha me perguntava às vezes, delicada, um ar caridoso: - Teve
notícias de seu filho que está na guerra? As crianças conversavam
muitas vezes: - Quando tio Alfredo voltar…

Eu me lembrava dele na última visita, a sala impregnada de fumo


do cachimbo, dizendo que ia para longe, muito longe. China Índia?
Para O fim do mundo? Sentia seus braços rodearem meus ombros e
seu sorriso: “Então D. Lola?”

Êle vai voltar e vai pôr as mãos sobre meus ombros novamente.

A sós no quarto, perto da janela, eu abria a ultima carta que


recebera de Alfredo, alisava-a, e depois de colocar os óculos e me
sentar comodamente, lia outra vez: Mamãe:

“Estou no Pacífico Sul desde 5 deste mês (Onde será O Pacífico


Sul eu pensava) Se algum dia eu disse que a vida era dura para mim,
menti, porque foi um mar de rosas.

Rosas como as do nosso jardinzinho…” (eu achava graça e ria).

Mais adiante: “Estamos nas Ilhas Salomão…” Depois: “Tomamos


O aeródromo de Cucun na ilha de Guadakanal e vamos avançar agora
na base nipônica de Tulagi.” Depois contava que tinha tomado Gavatu
e Macambo em dois dias e eu pensava: “Dois dias só, que maravilha!”
Terminava a carta assim: “depois desta guerra O mundo vai mudar,

20
sempre para melhor. Muita coisa cairá mas nossa idéia ficará de pé.
Felicidades a todos.”

Alfredo.

Pensando bem, eu achava O mundo cada vez pior onde estava O


“sempre para melhor?” Vida cara, racionamento dificuldades
inúmeras. Quem sabe não melhorou ainda porque a guerra não
acabou, vamos ver quando estiver terminada, pensei.

Logo depois de recebida esta carta, comprei um mapa do Pacífico


Sul. Entrei numa loja e perguntei se vendiam mapas da guerra; O
moço respondeu que havia muitos mapas e me mostrou alguns,, eu
falei que queria um do Pacífico Sul e êle trouxe um onde estava escrito
em letras enormes Oceania. “Mas eu quero um do Pacífico Sul,
teimei. Um que tenha a Austrália também.” “Está aqui a Austrália”
disse O moço mostrando com a ponta da unha uma mancha no
papel. “Mas eu queria um mapa grande só da Austrália, queria saber
onde estão as Ilhas Salomão.”

O moço começou a procurar e eu auxiliei-o; encontramos as ilhas.


E eu disse que queria saber onde estava a de Guadakanal. Essa foi
difícil de ser encontrada, era tão pequenina, eu mal enxergava. Fiquei
contentíssima. “E onde será Tulagi?” perguntei. “O que é isso? É
ilha?” “Não, é uma base nipônica. De Tulagi.” “Mas pode ser que seja
numa ilha,” êle disse. “Ah, isso pode.” Procuramos e não
encontramos. “E Gavatu e Macambo?” O moço me olhou muito
admirado e perguntou se eram ilhas também. “Não sei, respondi, só
sei que são lugares da Austrália.” Êle procurou novamente, cheio de
paciência, não encontrou. Comprei assim mesmo O mapa, só porque
estavam lá as Ilhas Salomão. Os netos pregaram-no na parede do meu
quarto, com tachinhas, e tenho-o aqui diante de mim.

Começo então a imaginar que Alfredo já voltou e vive conosco;


senta-se na mesa para as refeições, brinca com os sobrinhos, auxilia-
os a fazer problemas. Ouço seu riso alegre, vejo seu rosto bonito,
sinto O cheiro do fumo do cachimbo. Leva as crianças para Santos
aos domingos, pergunta “Quem quer ver O mar?” “Tio Alfredo vai
nos levar a Santos vamos brincar na praia.” Voltam cansados, vêm me

21
contar que tio Alfredo ensinou-os a nadar. “Vovó, êle nada como um
peixe.” “Êle foi marinheiro.”

O sol aparece por trás da serra, sol de dezembro, a terra queima,


as crianças brincam de pegador. Os balões de S. João sobem para O
céu nas noites de junho os de S. Pedro desaparecem na noite. D.
Genu vem cheia de alvoroço, perguntar por Alfredo: “Como foi de
guerra? Não sofreu nada?” “Nada extraordinário, um dia um tiro
passou rente da cabeça, mas não O atingiu por causa do capacete de
aço, bons capacetes, não acha? Outra vez machucou a perna e
mancou uns dias, nada grave.” “Nem com os bombardeios não
sofreu?” ela tornava a perguntar. “Nada absolutamente.” D. Genu
suspirava e dizia: “Louvado seja Deus, que felicidade.

E falaram tanta coisa da guerra, que aconteceu isto e aquilo e seu


filho voltou perfeito. Deus é grande.”

E enquanto conversávamos na sala, os meninos me perguntavam


“Vovó não viu tio Alfredo? Queremos que êle venha nos ajudar a
empinar O papagaio.” O papagaio é lindo, colorido, tem um rabo que
não acaba de tão comprido. E eu apenas estendo O braço: “Está no
quintal passou agora mesmo por aqui.” “Tio Alfredo. Tio Alfredo.”
Ah!

se tudo isso fosse verdade e êle estivesse realmente aqui

Aos domingos trabalhavam na horta e no jardim cada criança tinha


canteiros para cuidar; quando não estavam estudando, estavam
tratando das plantas. Por isso O caixão de Zezinho foi coberto de
flores, nem parecia caixão, parecia cesta de flores em dia de Natal;
rosas, amôres-perfeitos, margaridão, begoninhas gerânios, tudo
plantado pelos irmãos.

Felício pintava móveis, pregava prateleiras, endireitava a roda do


carrinho, consertava torneiras, curava pintos. Passava de avental sujo
de tinta, a lata na mão esquerda, O pincel na direita, pintando tudo
que encontrava. Caladão, magro, olhos pretos e nariz rubicundo,
parecia viver para êle. Os cabelos lisos penteados para trás, os olhos
pequeninos e separados, desses olhinhos vivos que dão uma passada
rápida e vêem tudo, O mínimo pormenor. Às vezes estava contente,

22
então brincava com os filhos pequenos, dizia - meu bem - para Isabel.
Gostava dos filhos quando eram pequenos como bonecas; fazia O que
queria com eles, jogava-os para cirna, aparava-os, embalava-os para
dormir,

brincava, achava graça em tudo que faziam, chamava-os de


bichinhos. Os bichinhos cresciam, não obedeciam prontamente,
revoltavam-se por isto ou aquilo, pronto, Felício punha-os de lado,
enjoava do brinquedo. Irritava-se, tratava-os como se fossem grandes,
exigia, ordenava aos berros, batia-lhes, puxava-lhes as orelhas nos
momentos de raiva, não eram mais òs bonecos que tanto quisera.
Incerto como O vento que vem do norte, outra vez do sul, deste lado
ou daquele, nunca era igual nas atitudes; O que o fazia rir hoje, fazia-o
zangar-se amanhã. Ficava então mau, esbravejava e batia nos filhos;
fazia-os tremerem de medo e eles fugiam quando podiam. Isabel ficava
rija, impassível.

Êle tinha uma força física extraordinária. Era muito considerado


onde quer que fosse como excelente chefe de família; trabalhava
incansavelmente para que nada faltasse aos seus, tinha aparência
calma, bondosa, sempre sério, um caráter firme. Ria pouco
aparentava ter muito bom senso, e por mais que se procurasse negar-
lhe qualidades, a evidência estava ali, viva, palpitante. Ninguém,
porém, d conhecia.

Sofria às vezes de insônia e quando era envolvido nas suas garras,


falava com Isabel até duas, três horas da manhã e por mais cansada
que ela estivesse, tinha de ouvi-lo e dar lhe atenção. Muitas vezes eu
também não dormia ao ouvir O martelar monótono, lento, arrastado
de sua voz; fazia perguntas exigia respostas. “Não ouviu O que
perguntei?” A voz dela parecia pastosa, sonolenta: “Ouvi, como não?”
“Por que não responde?” Ela precisava responder, prestar atenção
ouvir tudo direitinho, dar respostas exatas. Aquilo me enervava, era
como um pingo d’água a cair a noite inteira sobre uma lata ôca.
Ressoava, tirava-me O sono fustigava-me O rosto, as mãos; eu então
me levantava, arrastava cadeiras, quase acordava Sílvia que dormia no
meu quarto, pigarreava. “Estou aqui, por que não a deixa dormir?
Tirar O sono de uma criatura que trabalha, que amamenta, ora vá
para O diabo. Se não pode dormir, deixe os outros que durmam. O

23
pingo d’agua ressoava, batia na lata pin! pin! enchia-me a noite,
continuava a cair; eu ia para a cozinha acendia a luz, mexia nos paus
do fogão, vou fazer ena. Vinha O grande silêncio sobre a casa.

E quando eu voltava para O quarto, cobria Sílvia, apagava a luz,


deitava-me, puxava a colcha até O queixo, fechava os olhos, ouvia
novamente a voz do desgraçado a tirar O sono da minha pobre filha,
a perturbar-lhe O descanso, falando, perguntando Lembra-se daquele
nosso vizinho, O Tancredo Filho?” A voz pastosa respondia fazendo-
se forte: “Lembro sim” Vinha então uma história comprida sobre O
Tancredo Filho e toda sua geração. Desgraçado. Às duas da
madrugada cessava finalmente e dormíamos todos.

Isabel levantava-se de mau humor, cansada servia-lhe O almoço


mais cedo. Êle vinha abotoando os suspensórios satisfeito,
descansado; almoçava com calma, vestia O

paletó, beijava Lena, despedia-se com um gesto suave:

- Até logo, meu bem.

Bem penteado, bem vestido, cheirando a água-de-colônia ou a


charutos que D. Augusta presenteava: “Adeusinho.” Ia para O ponto
do ônibus, leve, despreocupado, até logo meu bem. Adeusinho. Ela ia
para O tanque lavar roupa, ou passar a ferro, consertar camisas,
costurar. Nem a mais leve distração, um passeio de bonde, uma visita;
somente O trabalho pesado, ingrato, exigente. Suspirava de fadiga.

Eu então procurava a frase no meu caderno de receitas, a frase


que me consolara anos atrás quando Carlos, de pé,’ encostado no
batente da porta da cozinha, Leu para mim.’ Lembro-me ainda das
palavras do meu filho, do seu sorriso de comiseração ao me ver
trabalhar tanto, todos os dias a mesma coisa. “A continuidade dos
pequenos deveres bem desempenhados não pede menos esforços do
que as ações heróicas. E os primeiros aproveitam mais à honra e à
felicidade.” Eu lia alto para Isabel e as crianças nos momentos de
fadiga e de desânimo.

- Este J. J. Rousseau dizia coisas muito sensatas; nunca se esqueça


desta frase, Isabel. Conforta e encoraja.

24
Ensaboando a roupa, ela mal ouvia e sacudia os ombros, incrédula;
e eu ficava acreditando que uma distância enorme nos separava. As
crianças diziam por brincadeira: - Olhe aquele Rousseau que vovó
falou.

- Pois vocês deviam decorar a frase de Rousseau, se soubessem


quanto me confortou anos atrás. Eles davam risadinhas, depois um
deles vinha repetir alto na porta da cozinha: “A continuidade dos
pequenos deveres bem desempenhados…” Interrompia para se
queixar: - Vovó, olhe Carlos me beliscando porque estou decorando a
frase do Rousseau…

Entre beliscões e brincadeiras, todos repetiam alto para me


provocar. “Aproveitam mais à honra e à felicidade.” Eu fingia que não
ouvia.

Dependuradas na porta da cozinha, havia várias gaiolas de


passarinhos que os dois meninos tinham por obrigação limpar e tratar
várias vezes por semana.’ Quando Felício assobiava, os pássaros
batiam asas, pulavam, torciam as cabeças para ouvi-lo. Um dia Carlos
esqueceu-se de pôr comida na gaiola dos pintassilgos e Felício viu os
passarinhos arrepiados, com fome. Chamou Carlos aos berros deu-lhe
pancadas nos ombros, na cabeça, puxou-lhe as orelhas.

- O quê? Deixar morrer esses coitadinhos? Aves inocentes de


Deus? É assim que você trata deles?

Isabel foi socorrer O menino:

- Eles não morreram, Felício, e depois é a primeira vez que êle se


esquece…

Felício empurrou-a e quando procurei acalmá-lo,- encontrei-lhe O


olhar carregado de ódio: - Não se intrometa quando estou educando
meus filhos.

Carlos ficou pálido, parecia prestes a desmaiar, O pai a dizer que


era para êle aprender a não se esquecer dos pintassilgos inocentes,
pobrezinhos, avezinhas de Deus.

Nas tardes de domingo, Felício chamava os filhos e embrenhavam-


se nos campos que continuavam depois da nossa casa; iam caçar.

25
Ouviam-se tiros espaçados; voltavam à noitinha, famintos, a sacola
ensangüentada de passarinhos. Isabel enrugava a testa: - Coitados.

Êle dava uma risada, abria a sacola, mostrava-lhe O conteúdo,


tirava um sabiá morto e encostava no rosto de Isabel, deixe de ser
maricas. Ela sentia arrepios, deixava a cozinha, enojada. Êle ficava
rindo, escolhendo panela, punha água a ferver, vamos depená-los. Os
filhos auxiliavam-no, contentes por verem O pai de bom humor,
pronto a brincar. Penas voavam, caíam ao chão, colavam-se à mesa;
limpavam e fritavam rolinhas e sabiás, ouvia-se um triturar de ossos
entre risadinhas, delicioso.

Homem incompreensível.

E aos sábados, quando Eduardo chegava com olhos vermelhos e ia


para O quarto trocar de roupa, O pai ameaçava-o, que não chorasse,
que não chorasse, aquela mulher não valia uma lágrima. O pobre
menino ficava magoado, dolorido, queria bem àquela mãe que era
como se não existisse, ninguém pronunciava-lhe O nome, ninguém
lembrava, não havia um retrato, um traço naquela casa era para ser
esquecida, riscada da memória, banida, morta, mas quem pode tirar a
imagem materna do coração de um filho afetuoso? Soluçando,
tremendo de. medo do pai e este a dizer que todo sábado era isso, que
O menino passava bem toda a semana e chegava sábado era aquela
cena, que aquela mulher enchia a cabeça do menino, por isso êle
voltava daquele jeito, todo tremeliques, e não queria brincar, nem
jantar e ia dormir cedo. Não era como nos outros dias, por quê? Por
causa daquela mulher, e isso não podia continuar, tinha que acabar, O
que a mãe falara dele? Segurava Eduardo pelo braço, O menino
careteava de dor:

- O que sua mãe falou de mim

- Nada, papai, nada.

E êle dizia que sim, que falara, se não tivesse falado O menino
voltaria contente para casa, não faria cara de mártir só para
enternecer, provocar compaixão. “Coitado de Eduardo, a mãe tão
carinhosa, tão boa e êle em casa do pai uma fera.” É isso que falavam
dele, bem sabia mas aquela miserável nada conseguiria, era

26
desprezível, desprezível atormentar O menino desse jeito. Isso tinha
que acabar daria um fim àquelas visitas, acabaria com aqueles sábados
choramingas, haviam de ver. “Chega os aborrecimentos que tenho no
meu trabalho, ainda tenho que aguentar outros em casa!” Batia com
O punho forte na mesa, esbravejava, ameaçava “Ainda hei de
suportar O choro deste

menino?”

O vento rondando a casa, acendi a luz no quarto dos meninos;


Eduardo estava acordado, os olhos pareciam enormes no rosto
magro.

Tome um pouco de leite, você não jantou.

- Obrigado vovó Lola, não tenho fome.

Eu insistia para que tomasse, arrumava-lhe as cobertas,

passava-lhe a mão sobre a cabeça, dava a entender que estava do


lado dele, que O compreendia, pudesse contar comigo. Juntos
ouvíamos O farfalhar das folhas nas arvores do

quintal. .

- Amanhã seu pai não se lembrará do que disse hoje,

durma sossegado.

Apoiado ao cotovelo, êle me perguntava: “Por que será que papai


tem tanto ódio da mamãe?” Os passarinhos soltavam pios tristes na
cozinha como se fossem perturbados em seu sono, eu dizia que êle
era assim mesmo, forte de gênio, mas esquecia logo O que falava.
Havia pessoas muito violentas no falar, mas era só um instante depois
passada, esqueciam O que haviam dito. Era por ciúmes, queria-lhe

tanto, eram ciúmes, tinha medo de que êle quisesse mais bem à
mãe. Continuaria a visitar a mãe todos os sábados ficasse tranqüilo,
não havia lei que impedisse um filho de ver sua mãe. Conversávamos
Quando eu deixava O quarto, falava: - Se quiser alguma coisa, dê uma
batidinha na minha porta, acordo à toa.

Eu não podia dormir pensando no mundo tão desajustado. No


quarto ao lado está esse menino que precisa sufocar soluços, fingir

27
alegria, pisar sentimentos, esquecer, e como se pode esquecer O que
se não quer? Como uma erva pobrezinha que por compaixão se deixa
crescer num jardim, cresce êle nesta casa solitária. Pouco amado.

Entre uma família que não é a sua, um pai difícil de ser


compreendido, e a mãe que êle ama e que O acarinha e O entende
tão longe, tendo outro lar, outros filhos, e que êle vê apenas uma vez
por semana e tão rapidamente ah, tão rapidamente. É um mundo
estranho este que tem O vento que passa assobiando e O sol que
aquece e a chuva que faz germinar e tem tanta coisa bonita como as
flores, os frutos, os pássaros, O céu, a luminosidade de um dia de
verão, O ar transparente quando se respira na primavera, e O mar, e
a música que enternece, as cores que brilham, as asas que refletem a
luz, a melodia da beleza e O consolo e a alegria e a bondade. E nesse
quarto escuro, sob O mesmo teto do pai, esse menino solitário, longe
da mãe, a única que êle ama e que gostaria que estivesse ali, bem
pertinho de sua mão magra e sardenta; para êle não há consolo, nem
melodia de beleza. Por quê Por quê?

O dia seguinte era domingo, Felício foi à feira; trouxe sacolas


cheias, pediu aos filhos que O auxiliassem a descarregá-las; olhe O
queijo fresquinho, as frutas”

as verduras O peixe.

- Eduardo, meu filho, venha me ajudar.

- Quanta coisa gostosa, papai, disse Sílvia. Olhando-os


carinhosamente, respondeu - Para vocês, meus queridos.

28
Capítulo III

29
Um velho parente de Felício que chamavam de tio Damião, vinha
visitar-nos aos sábados. Teria uns sessenta e poucos anos, forte, baixo,
possuía uma casinha na Mooca e vivia da aposentadoria e do aluguel
de outra casinha. Quando aparecia, trazia tomates da horta, hoje
umas ervilhas tortas, outro dia carambolas. Cultivava rosas.

A mão seca distribuía dinheiro para as crianças, sentava-se falava


nas flores.

Tio Damião era querido por todos, fazia versos e compunha


música. Quando moço, escrevera um livro de contos e depois um
romance que nunca chegou a publicar. Baixinho, magro, barrigudo,
usava um relógio enorme no bolso do colete e orgulhava-se do relógio
porque pertencera ao pai e batia as horas num tom agudo e fino.
Quando tio Damião falava depressa, a dentadura dançava-lhe na bôca.
Tio Cosme, O irmão gêmeo, morrera aos cinqüenta anos; ficara êle,
rijo e sacudido. Fabricava violinos nas horas vagas; arranjava uma lata
de óleo para automóvel Gargoyle Mobilou, que transformava no corpo
do instrumento, as outras partes eram de madeira que êle preparava,
talhava; punha de cavalo no arco, torneava as cravelhas, esmerava-se,
fazia as cordas de tripas. A varinha de crinas roçava as tripas e êle
tocava as próprias composições; O som às vêzes era estridente e
rangia, mas um amigo dissera-lhe uma vez que suas músicas eram
como as de Bach, de perguntinhas e respostas: Tra-la-la-la? Tri-li-li-li.

E êle ficava ufano. As crianças ficavam de pé vendo-o tocar e


começavam a ler O que estava escrito na lata enquanto ouviam:
“Cuidado com as falsificações.” “Lubrificação científica.” Guie-se pela
Tabela do Gargoyle Mobilou” E debruçavam-se para ler onde O arco
esfregava as cordas: “Semidenso Especial.” Ou “Procure saber se está
usando O grau justo de óleo indicado na Tabela.” “Não acredite em
quem afirmar que outro óleo é semelhante ou mesmo igual ao
Gargoyle Mobilou, nem se deixe enganar pelas imitações.” “Conserva
toda a potência do motor.” “Reduz O gasto do combustível.” “Melhora
a compressão.”

30
O arco continuava subindo e descendo nas músicas de Bach.
Quando alguém cobiçava-lhe O violino, vendia por trinta cruzeiros e
fabricava outro. Tinha um amigo que tocava viola e quando os dois se
juntavam, faziam orquestra. Discutiam música, literatura, rosas e
repolhos.

Quando chegava à nossa casa, tirava O paletó e O colête,


encaminhava-se para O quintal, podão entre os dedos; cortava
galhinhos secos arrancava folhas amarelas, podava plantas, matava
formigas, explicava porque isto, porque aquilo. Orgulhava-se de ter
duas coleções completas de livros: de Anatole France e de Camilo
Castelo Branco. Fazia questão de dizer Anatólio, sabia trechos dos
livros de cor, queixava-se porque Felício não gostava de literatura.
Como não? reclamava Felício, sempre gostei muito.

- Então onde está O Anatólio? Onde O Camilo? . Qual, você gosta


de coisas sem valor. .

- Mas não são só esses, tio Damião, tenho outros, veja. Êle sacudia
a cabeça penalizado, olhando a prateleira da sala com livros
desconhecidos. Fazia muxoxos.

- Você não tem os luminares, aí é que está. Alguém já escreveu


isto?

Vinha um trecho de Camilo, O dedo seco para cima ou apontado


para Felício.

E olhe, quando Anatólio morreu, a França inteira chorou-o. Sabe


O que êle dizia? Que suas idéias eram velhas como p pensamento e
que a criação aparece na forma, não na substância. Êle era filósofo
grande filósofo.

Ficava com a boca seca, pedia água, tomava um golinho. Um dia


apareceu com O livro de contos para eu ver; abriu-o e folheou as
páginas perto do meu rosto.

- É O meu modesto livrinho que quero ofertar-lhe. Está aqui: À


Exma. Sra. D. Lola. .

Leu a dedicatória, depois apontou O nome na capa do livro


Damião Vasconcelos Souto.

31
- Eu sou dos Soutos mais antigos do Estado do Rio, meu ramo vem
de Portugal, do alvorecer do século XVIII.

Tinha a voz suave e O olhar sereno, alegre como uma criança;


apenas um fato O aborrecia e tornava-lhe O olhar sombrio: lembrar
que seu irmão Cosme fabricara dados viciados. Em meio ao
aborrecimento, não podia deixar de admirar a habilidade do irmão.
Além de consertar todos os relógios da vizinhança, fabricava dados
com tal perícia que iludia os mais espertos. Tio Damião juntava dois
dedos, mostrava a pontinha de mercúrio que Cosme empurrava para
dentro do dado, com tal habilidade, oh, tal habilidade que seria capaz
de descobrir? Quem? Cobria depois aquele buraquinho quase
inexistente com O próprio marfim, colava, igualava, fechava, pronto.

Vendia os dados para os que roubavam no jogo, a voz de tio


Damião tornava-se áspera, engrossava, censurava; seu rosto se
contraía. Terminava: - Não devia fazer isso, há muitas maneiras
honestas de trabalhar e ganhar dinheiro, sem ofender O bom Deus.
Mas que O Cosme era hábil e capaz, era. Nunca vi nada tão perfeito,
tão admirável

Esquecia imediatamente O mau pensamento, voltava a falar na


música, no Camilo e no Anatólio. Quando Lena completou um ano,
veio tio Damião, O violino debaixo do braço, sorridente:

- Antes de mais nada, quero tocar na rabeca minha nova


composição para esta menininha.

Ouvíamos em silêncio. A varinha de crinas subia e descia,


esfregava as tripas, dava uns guinchos, rangia, mas a composição era
bonita, como se O próprio Bach a tivesse escrito. E tio Damião ria, a
dentadura tremia-lhe, nós aplaudíamos e pedíamos que tocasse outra,
também de Bach, de perguntinhas e respostas apressadas: Tra-la-la-la?
Tri-li-li-li. Êle se empertigava, ficava sério, tocava de olhos fechados; O
arco esfregava as cordas com energia e vigor, feria com sentimento.
Aplaudíamos de novo e êle perguntava dirigindo-se a mim: - Gostou,
excelentíssima?

Anunciava aos outros:

- Agora uma valsinha dedicada à excelentíssima D. Lola…

32
A rabeca realizava milagres nos Braços de tio Damião êle ria-se
com nossos aplausos e quando Lena batia as duas mãozinhas, êle
apertava-lhe O queixo: - Gostou, meninazinha? Quando você tiver a
idade de Janina, irá apreciar melhor.

Janina era a filha de tio Damião, só de imaginação.

A casa de tio Damião era pequenina, com duas janelas dando para
a rua, a porta de um lado; contava êle que de manhã trabalhava na
horta e no jardim, e seu maior prazer durante a tarde era ficar na
janela, olhando O movimento da rua, os cotovelos apoiados no
peitoril. Era querido e respeitado por toda a vizinhança que O
considerava e O consultava em todos os assuntos. Era O mediador e
O conselheiro um pouco médico, um pouco dentista, um pouco
calista. Extraía com muito jeito os dentinhos de leite de todas as
crianças do bairro punha a criança sentadínha, mostrava-lhe uma
carambola ou um caramelo prometia, ria, disfarçava pegava um fio
forte, brincava com êle, tudo isso com muita habilidade e gentileza,
conversando e contando histórias, zás, a criança saía aliviada. Indicava
remédios para os homens, certos chás para as mulheres, mas sua
maior habilidade era tirar calos. Conhecia todos os pés das imediações
e já havia extirpado todos os calos incômodos. Nas manhãs tratava da
horta e do jardim; nos aniversários das senhoras, aparecia sempre
com uma rosa especial e dizia O nome, como entendedor: -
Excelentíssima, uma “Condessa de Sastago” para festejá-la.

- Oh, Sr. Damião, muitíssimo obrigada, é maravilhosa.

- Damião Vasconcelos Souto, um seu criado.

Para outra vizinha, mulher do dono do empório, vinha solene e


circunspecto: - Excelentíssima, uma “Duquesa de Peneranda” para
enfeitar sua mesa.

E se inclinava:

- Damião Vasconcelos Souto, seu criado.

Para as mocinhas, oferecia um cacho de “climbing Radiance” ou


“Ofélia”; para as crianças, invariavelmente levava caramelos ou
carambolas do quintal. Era convidado para todos os casamentos,
batizados e reuniões do bairro; mas fôsse O que fosse, abandonava a

33
festa um pouco antes das vinte horas, desculpando-se, dizendo que era
metódico, não reparassem. Ia correndo para casa, tirava O paletó,
acendia a luz pegava a rabeca. Sentava-se diante da mesinha da sala
de jantar coberta com uma toalha bordada e onde havia um vaso com
flores um caramujo enorme que colocava todos os dias no ouvido
direito para ouvir O “grande mar”, um castiçal com vela e fósforo
para O caso de faltar luz e um livro de orações. Ficava esperando; às
vinte horas e vinte e cinco minutos levantava-se, colocava a rabeca
sob O quei xo, olhando sempre O relógio que estava ao lado do
castiçal, às vinte e trinta começava a tocar. Tudo isso é por método,
explicava, tudo tem sua hora. Durante trinta minutos tocava suas
composições, depois as músicas que tocava de ouvido e por fim a
valsa de Janina. Às vinte e uma horas, guardava cuidadosamente a
rabeca, colocava O caramujo no ouvido direito para ouvir O grande
mar e ia para O quarto, O livro de orações na mão.

Nunca verificava se a casa estava fechada; conversava com a filha


sobre os acontecimentos do dia, dizia: “Durma com os anjos minha
filha”, ia para O quarto. Deitava-se mas antes de apagar a lâmpada de
cabeceira coberta com papel de seda côr-de-rosa, rezava duas páginas
do livro, para agradar O bom Deus. Às vinte e uma horas e trinta
minutos, tio Damião estava dormindo.

O irmão Cosme era como se ainda vivesse; tio Damião falava nele
com carinho todas as vezes que nos visitava. Cosme dizia isto, contava
aquilo, ria-se das piadas do irmão. Êle gostava de pilheriar, ora se
gostava. Contava que êle, Damião, era mais velho quatro minutos e
meio; já estava nascendo, vivo, vermelho, aos berros, quando a avó
que ajudava O parto deu um grito assustado: Temos outro! A parteira
largou-o nas mãos da avó, voltou-se para acudir, qual, O Cosme vinha
vindo sozinho, esperto, um olho aberto outro fechado, nem precisou
de auxílio. A parteira ficou espantada Este já nasceu engatinhando.

Por isso O Cosme sempre mais esperto que êle, mais ladino,
ganhou rios de dinheiro, pena aquela mania de fabricar dados
viciados. Sua voz engrossava, franzia a testa.

Sorria:

34
- Mas que êle era hábil, ah, isso era. Ha-bi-lís-si-mo. Pois nasceu
engatinhando.

Durante um tempo em que Felício andou muito nervoso, batendo


nas crianças por qualquer motivo, gritando com Isabel, impertinente e
irritado, queixei-me ao tio Damião.

Êle estava no nosso quintal plantando couves num sábado de


outubro, fui me chegando e falando; contei que era difícil
compreender Felício, parecia tão nervoso, tão inconstante, amável
com os estranhos, bruto com os de casa, as crianças tremiam de medo
do pai, Isabel sofria. Como era possível viver assim? Tio Damião
escutou apoiado na enxada, passou O lenço na testa suada, esperou,
falou: - Pois meu pai era assim mesmo. Bravo, violento de gênio, os
filhos tinham um medão… Em casa falava sempre aos gritos,
esbravejava por nada, exigia, dava socos na mesa; e apesar disso era
um homem às direitas, correto e sério, nunca faltou nada em casa.
Na-da.

Engrossou a voz:

- Falta alguma coisa aqui? Fiquei olhando-o:

- Aqui em casa? Não, não falta nada.

- Pois então? Deixe correr O marfim, todos os Vasconcelos Souto


foram assim e são assim, violentos, capazes até de matar se fôr
preciso, querem tudo ali a hora e a tempo, mas são homens bons,
cumpridores de seu dever. Essa família vem de Portugal, do alvorecer
do século XVIII, mas boa gente, ninguém pode dizer que não é boa.

Nunca houve um que matasse, roubasse, violentasse, nada. Só O


Cosme tinha aquela mania, mas nunca prejudicou ninguém…

- Mas tio Damião, O senhor é tão bom de gênio, tão manso, por
que Felício que é seu sobrinho não é como O senhor?

- Ah! Eu não sou capaz de matar uma mosca. Sou calmo. Mas
assim como os dedos da mão são diferentes, nem todos os irmãos e
sobrinhos são iguais. Assim mesmo minha mulher se queixava, dizia
que eu não era biscoito. Debaixo das cinzas há sempre brasa, ela
falava.

35
Casquinou uma risadinha ao lembrar a esposa:

- Brava era ela. Onça pintada, mas eu fazia as coisas de tal jeito,
tapeava aqui, endireitava ali que a vida inteira quem mandou fui eu e
ela tinha orgulho de dizer que mandava em mim. Farofada. Sabe que
nos domingos eu viro O retrato dela para a parede? Ela me azucrinava
tanto nesses dias, me perseguia, me mandava fazer isto e aquilo que
eu sempre lembro dela com raiva nos domingos, então por vingança,
viro O retrato dela de cara para a parede. Só de raiva; na segunda-
feira de manhã O retrato está de frente outra vez. Coitada Que O bom
Deus lhe dê um bom descanso, é O que eu desejo.

Cuspiu nas mãos, esfregou-as, preparou-se para trabalhar de novo.

- Se O senhor falasse um pouco com Felício êle atende tanto O


que O senhor diz… Quem sabe se O aconselhasse…

Deu uma enxadada no canteiro das couves:

- Não se mexe em vespeiras, excelentíssima. Deixe os Vasconcelos


Souto assim como são. Nasceram assim, morrerão assim. E depois
criança precisa ser castigada às vezes mulher também. Assim como
está me vendo, apanhei de meu pai como boi ladrão.

Em outra ocasião em que O Felício não parava em casa, voltava


tarde e só falava em D. Augusta, esposa do seu colega Honório, dei a
entender a tio Damião que as coisas não iam bem em casa, Isabel
andava tristonha e discutia com Felício. Êle me piscou um olho
malicioso: - Não se incomode, excelentíssima, tudo voltará novamente
a dar certo, mais cedo ou mais tarde. E depois uma aventurazinha
galante faz bem ao coração; Felício voltara mais carinhoso, mais
alegre. Tudo correrá melhor, vai ver. Brava como era a Bastiana, onça
pintada, preguei-lhe cada peçazinha, nem queira saber. Diante dos
olhos dela, na frente mesmo, eu dizia que ia tratar dos calos dos
vizinhos, coitados, com os pés escangalhados, mas eu ia era visitar a
Justininha, uma pequena que era um brinco, redonda, viva como
azougue. Os calos estavam cada vez pior, com infecção, qual, mentira,
a Justininha suspirava nos meus braços. Pensa que a onça pintada
descobriu algum dia? E que mal fêz? Nenhum. Eu voltava contente
para casa, contando O diabo dos pés dos vizinhos. A excelentíssima

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desculpe se falo essas coisas, mas muitas Justinas passaram por
aqui…

Mostrava os braços sorrindo, coçava O queixo. Lembrava-se de


mim

- Não se incomode, tudo há de passar. O principal é sua filha não


ter certeza, desconfiar mas não saber. Por que aquele idiota fala tanto
na tal Augusta? Minha mulher me ameaçava: Olhe Dami, se algum dia
eu descobrir alguma coisa, faço um escândalo tão grande que você
não levantará mais essa cabeça para ninguém. Eu respondia: Que
horror meu bem, você fala assim, nem sei O que parece, que pensa
que eu sou? Algum sem-vergonha? Então não tenho
responsabilidades? Assim foi a vida inteira e ela acreditando que eu
era um santo. Morreu feliz…

Coçava O queixo.

- Tudo passará, excelentíssima, e êle voltará mais manso, mais


terno, mais domado. Não há nada como isso para acalmar os gênios
fortes. Não sabe que a virtude é seca, irritadiça e impaciente?

Trabalhava no quintal cantando a meia voz:

Os teu olhos, bem-amada

são duas noites cerradas, : ‘

raias os lábios são de luz

lá se cantam alvoradas.

As crianças pediam que cantasse outra quadrinha. Êle perguntava


qual, aquela que fala em camisa, respondia Carlos. Êle então sorria,
cuspia nas mãos antes de retomar a enxada, pigarreava, soltava a voz:

Queria ter uma camisa dum tecido bem fiado,

Feita de todos os ais que O teu peito já tem dado.

- São seus esses versos tão bonitos?

* Infelizmente não, excelentíssima. São dos livros, que por estas


mãos muitos livros já têm passado. Tanto quanto as ondas do mar.

As crianças ficavam escutando aquele tio que sabia

37
Tanta coisa e falava de cor páginas inteiras; pediam para êle

O trecho do livro de Camilo. Fingia-se esquecido,

qual qual? Aquele que começa assim: “Oh! mulheres!”,

lembrava Sílvia.

Ah aquele não sei se é de Camilo, talvez seja do

a O Eça tinha muita coisa boa, era bom escritor. Minha

cabeça está fraca, esqueci a quem pertence aquela jóia

. As crianças insistiam. Êle parava de capinar, colocava

a mão direita sobre O coração e ali no meio da horta, em

mangas de camisa, a cinta de couro apertando as calças embaixo


da barriga, as mãos sujas de terra: “Oh! mulheres!

vós todas que tendes dentro do peito O mal que nada cura,

nem os simples, nem os bálsamos, nem os orvalhos, nem as

rezas, nem O pranto, nem O sol, nem a morte, vinde ouvir

história florida!” e quando ninguém pedia que êle repetisse os


trechos os, perguntava: Querem ouvir aquele outro trechozinho que
sei de cor. Queremos, diziam em coro as crianças,

Novamente a mão no coração, a voz comovida: “Ó

amigos, ó minha bem-amada, os ramos estendiam-se

para os mil e mil pontos do infinito, como para mostrar às

cantigas às iras, e às orações, todos os caminhos do céu.”

Isso também não sei mais de quem é. Minha cabeça está

fraca.

Enquanto trabalhávamos na casa, ouvíamos a voz de tio Damião


cantando entre as couves: “Os teus olhos, bem Além de possuir a
casinha onde morava, possuía outra vizinhanças que alugava por
trezentos e cinqüenta cruzeiros. Uma vez por mês ia rondar a casa que

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alugava para ver se tudo estava em ordem; se havia uma falha
qualquer, uma sujeirinha na janela, um respingo na porta, êle pedia

delicadamente que tivessem cuidado, era O único bem que


possuía, era sua jóia. Os inquilinos perdoavam-lhe a impertinência,
convidavam-no a entrar; com seus olhinhos miúdos percorria tudo
cuidadosamente, examinava os trincos, passava as mãos pelas
paredes, espiava os cantos, ia até O quintal inspecionando, inquirindo,
observando.

Mas era tão delicado, tão cuidadoso no falar, sua voz era tão doce
que gostavam dele e faziam-lhe as vontades. Ao despedir-se, curvava-
se diante da inquilina: - Me perdoe, sim? É minha única jóia, pode
compreender, não é verdade? É meu tesouro, não me leve a.

mal.

E quando a inquilina protestava que sim, ora esta, compreendia


perfeitamente, êle não a incomodava em nada, inclinava-se, solene:
Damião Vasconcelos Souto, seu criado. Afastava-se no passinho
ligeiro, firme.

Na véspera de Natal, surgiu em nossa casa, um ramo entre as


mãos, a rabeca sob O braço; encontrou-me na cozinha:

Excelentíssima D. Lola, ofereço-lhe minhas modestas Crimson


Glory.

- Tio Damião, quanto eu agradeço… Enxuguei as mãos, recebi O


ramo.

São perfumadíssimas estas rosas, não sei se conhece. Tão


perfumadas, perdão! Não tão perfumadas quanto a bondade da
excelentíssima.

Somente nesse dia do ano, saía fora dos hábitos e ficava até mais
tarde conversando e tocando. Compôs um fado para esse dia e tocou-
o à hora de ceia. Recostado na cadeira predileta, Felício fumava um
charuto. Tio Damião interperlou-o: - Falar em fado, sabe a história do
fado?

Tio Damião já havia contado várias vezes, mas Felício respondeu


que não sabia. Êle coçava O queixo lembrava: - Não sei se isto é do

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Camilo ou do Eça. Diz assim: Roma fêz O Direito, Atenas criou a
escultura, Paris inventou a revolução, a Alemanha criou O misticismo,
Lisboa fêz O fado. Esta é muito boa, ah, ah, ah. Isabel perguntava: - E
O Anatole?

- Anatole, em português é Anatólio, eu falo português. Esse foi um


colosso, um monumento. Na guerra de 1914, tinha setenta anos e
ofereceu-se como voluntário, amava a pátria acima de tudo. Sabe O
que êle dizia para os seus soldados? “O que estais defendendo é O
nosso imortal patriotismo, nossos costumes, nossos usos, nossas leis,
nossa fé, nossa tradição; O trabalho dos nossos artistas, as canções
dos nossos músicos, a língua materna que há oito séculos flui dos
lábios dos nossos poetas, escritores, historiadores, filósofos. O que
estais defendendo é O gênio francês que tanta luz deu ao mundo e
trouxe liberdade às nações”. Falava assim.

Bebia um gole de água.

- Dizia que suas idéias eram tão velhas como O pensamento e


pertenciam a todos. Amou a França e ocupou nas letras O posto
supremo. Foi um sábio. Desde Victor Hugo, a França não havia
chorado tanto a morte de um filho como a de Anatólio. Se êle fosse
vivo, não acontecia O que está acontecendo. Tenho um
pressentimento, talvez me engane.

Mudava de assunto:

- Leram hoje as notícias? Não são nada boas. Guerra, guerra e


mais guerra. Vamos esquecer essa calamidade.

Tocava mais um pouco, comia algumas castanhas, guardava a


rabeca, despedia-se: - A noite está escura como breu. Assim mesmo
antes este breu que O frio da Europa. Coitados dos que estão lutando.
Boa noite minha gente. Felicidade a todos.

Às vezes fazia versos, quadrinhas que declamava com modéstia.


Quando ventava, dizia: - Como é que os poetas e romancistas
poderiam viver sem O vento, a chuva as estrelas, a lua? Escutem,
(levantava O dedo indicador) este vento é capaz de inspirar O menos
inspirado. E a chuva então? Outro dia eu estava em casa e a chuva
pin-pin-pin batendo no vidro da janela; na mesma hora fiz esta

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quadrinha, não reparem, passatempo de velho. E lá veio mais um
versinho.

Batíamos palmas, êle sorria, modesto.

- Ué, gostaram? Às vezes faço quadrinhas para me distrair; no


bonde, no ônibus na janela lá de casa. Passa uma menina num passo
ligeiro, tá, lá vai um verso para ela. Teu sorriso encantador é feito de
mel e rosa. Teus olhos são dois sóis, teu olhar a minha aurora Passa
aquele bando de crianças para a escola, eu já comparo com revoada
de pássaros, andorinhas de verão, sai logo verso. E O vento como
inspira, santo Deus. O escritor que ouvisse esta ventania pegava logo
O assunto: “A ronda do vento fazia estremecer a casa do
descampado…” Aí por diante. Ou então: “O vento ronda
sinistramente e as folhas das árvores farfalham de medo.” Farfalham
fica bonito. Eu nasci errado, devia ter nascido poeta ou escritor. Agora
quem tinha jeito mesmo era O Cosme. Ih, quando Cosme pegava
num pedaço de papel e num lápis eu dizia: Vai sair coisa grossa. Saía,
foi pena que nada tivesse publicado, também com aquela mania dos
dados…

Seu rosto sombreava, sua voz engrossava.

- Para que, meu Deus do céu? Para que fazer dados para ladrões?
Preparava O marfim, O mercúrio, eu nem gostava de olhar e sabem
de uma coisa? Não gosto nem de lembrar.

Vamos falar de outra coisa, vamos falar dos poetas, Como eles têm
cantado a lua, lua cheia, minguante, crescente, nem sei que mais. Eu
falando essas coisas bonitas, nem me lembrava que amanhã tenho que
cortar os calos da vizinha, uma velhinha de oitenta anos. Imaginem,
ainda tem calos. D. Inacinha, muito boa, coitada, para me pagar os
calos, me manda de presente docinhos, baba-de-moça feito por ela.
Não digo nada, a velha vai para a cozinha e faz tudo na perfeição; só
que outro dia esqueceu de pôr açúcar no bolo. Saiu intragável.
Coitada, decerto com a mania de racionamento, esqueceu O açúcar.
A vida é cheia de surpresas.

Olhava as horas, levantava-se.

- Que é isso, tio Damião? É muito cedo.

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- Não é, quer ver? Com essas conduções difíceis de agora, vou
chegar na minha casa às dezenove horas ou mais. Na hora de
saborear meu parco jantar, café com leite e bolachas. Depois Janina
está me esperando. Tenho minha aula de música, minhas páginas de
leitura, depois sono. Amanhã temos orquestra em casa, é O dia do
Juvêncio levar a viola.

- Jante aqui hoje, dizia Isabel. Temos uma sopa de macarrão, fique.

- Sou O homem dos métodos; quem quiser ter hora para tudo
precisa aprender comigo. Até sábado.

Puxava O chapéu para os olhos, ia embora mandando queixumes


ao vento, inspiração dos poetas. No ônibus, iria fazendo quadrinhas
que guardaria de memória para nos repetir na próxima semana.
Chegaria em casa, acenderia a luz da sala, da cozinha, saborearia O
parco jantar em companhia da filha. Ficaria na frente da mesinha,
rabeca no colo, olho no relógio. Vinte horas e vinte e três minutos,
rabeca debaixo do queixo, posição, sentido. Vinte horas e trinta,
composições parecidas com as de Bach, depois valsas e polcas de
ouvido, e a valsa de Janina, a filha de imaginação. Vinte e uma horas,
guardaria O violino na caixa com tanto carinho como se guardasse
uma criança num berço, levaria O caramujo ao ouvido para ouvir O
grande mar, sorriria, depois tomaria O livro de orações e O levaria
para O quarto.

Diria boa noite Janina, durma com os anjos. Deitar-se-ia. Ficaria


acesa apenas a lâmpada da cabeceira envolvida em papel côr-de-rosa
e êle, grave e sério, conversaria com Deus. “O Excelentíssimo Mestre
que fêz a lua, O sol, as estrelas, O grande mar, O vento que ronda, O
farfalhar das folhas das árvores, por que fêz as guerras Para tormento
dos homens? Isso é que não compreendo, bom Deus e Excelentíssimo
Mestre.”

Ficaria mergulhado em perplexidade diante dessa idéia, depois


fecharia O livro com respeito como havia fechado a caixa da rabeca,
feliz por ter cumprido seu dever.

Apagaria a lâmpada côr-de-rosa com seus dedos mirrados e


dormiria O sono dos simples. Vinte e uma horas e trinta minutos,

42
senhor Damião Vasconcelos Souto. Souto de Portugal, do alvorecer
do século XVIII.

43
capítulo IV

44
O tempo passando. Vinham cartas de Itapetininga contando
notícias; Clotilde queixava-se de reumatismo. “O que me faz mal é
trabalhar no calor do forno, depois tomar friagem.” Para ganhar a
vida continuava no calor e na friagem. “Glorinha ficou noiva, O
casamento é em fevereiro, contamos com você para madrinha.”

A cidade me recebeu num dia de sol cidade da minha infância:


cabra-cega, boneca de louça, boneca de pano, ciranda-cirandinha,
vamos brincar de pegador? Um, dois, três, quatro… você é O
pegador. Enquanto eu não gritar - hora - você não vem, ouviu?

Fui lobrigando devagar O arvoredo espesso dos quintais,


espreitando nos pomares os limoeiros copados e alguns limões doces,
graúdos e amarelos, laranjeiras com uma ou outra laranja atrasada,
abacaxis de aspecto hostil, onde já se podia adivinhar a polpa muito
branca e sumarenta, com O caldo a inundar os pratos, a escorrer
pelos garfos. Flores sobre os portões, entre as grades dos terraços e
acompanhando as cercas meio quebradas emaranhavam-se
madressilvas. Casas pequenas rentes à rua onde brincavam’ crianças;
pássaros voando sobre a ramaria. Largos ajardinados onde a banda de
música vinha tocar aos domingos; sons de valsas e polcas perdiam-se
no ar, O bumbo era esmurrado com fôrça. Abraçados aos
instrumentos, os músicos bufavam, assopravam, repinicavam, firmes
nos passos de marcha um, dois, um, dois, seguidos por meia dúzia de
moleques sôfregos que também marchavam atrás um, dois, um, dois,
dobrando esquinas, virando ruas contornando praças: Ta rata-tchim,
tchim tchim.

Muros velhos de chuva e de sol onde ratos dormiam espichados,


muros caiados de branco; telhdos escuros de onde subia a fumaça
hospitaleira que se perdia vagante no céu Toda a cidade quieta e
sonolenta pacata adormecida nesse entardecer de verão.

A casa de Olga e Zeca ficava num largo, tinha uma entrada de


lado, um terraço, uma roseira de rosas amarelas entrelaçadas nas
grades de ferro. A farmácia de Zeca ficava na esquina; vinte vêzes por
dia êle arranjava um pretexto para vir a casa; dava uma capiada,

45
tomava um copo de agua, uma voltinha, ia embora Olga
impacientava-se: um ir e vir O dia todo Ouvi vozes de criança.

Vieram todos. Houve cerimônia a princípio; Clotilde apareceu de


chinelos, apressada, estava mexendo O tacho de cobre, doce de
marmelo. Abraçamo-nos no terraço enquanto os meninos seguravam
minha mala. Os cabelos grisalhos Clotilde estava parecida com
mamãe.

Meus Deus Lola, há quanto tempo.

Envelhecida entre os sobrinhos, pelos sobrinhos, tinha um ar


cansado de quem trabalhava muito. Mãos calosas, meio corcunda de
tanto debruçar-se sobre os tachos, mansa na fala e nos gestos.

Olga fez uma exclamação veio lá de dentro, gorda, pesadona;


fisionomia carrancuda cansada de tanto filho, tanto trabalho. Enérgica
com o marido, filhos, netos.

A gordura excessiva achatara-lhe O nariz; rosto avermelhado,


congestionado; tinha fala forte, mandona, tudo tinha defeito precisava
corrigir. Autoritária. Quando moça tivera cuidado para não engordar;
apertava os quadril extintas especiais, espremia os seios, falava na
mesa, cautelosa: preciso comer pouco, tenho propensão…

Com a idade relaxara; deixara a gordura à vontade, e ela expandia-


se entre as dobras da cinta velha; os seios vi viam quase em completa
liberdade, fartos, oscilantes.

Na mesa, tinha ternuras pelos pratos bons; saboreava gordas


coxas de frango sobre fatias de pão encharcadas de molho esquecia as
horas diante de uma travessa de massa de pastel torradinha e morena,
sua mão gorda ia e vinha, levava à boca os pedaços tenros que
Clotilde caprichava na cozinha e fazia em forma de coração, âncora,
letras bordadas. Inventava pratos, sonhava com receitas esquecidas
que procurava ansiosamente no fundo das gavetas e tratava logo de
fazer. Suspirava: “Há quanto tempo não provo lombo de porco do
jeito que mamãe fazia.”

Conversava e comia esquecida dos regimes e dos apertos.


Mandara tudo às favas num dia de grande cansaço, ao ver que a idade
chegava e ela naquela eterna vida de sacrifícios, apertos e cuidados.

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Até a autoridade parecia arrefecida, abafada pela gordura; já sua voz
não tinha aquele tom enérgico de mando. Esfriara. Uma vez ou outra
voltava ao tom antigo, assim como uma vez ou outra procurava
conter-se na mesa; tinha então desmaios na voz: “Não posso repetir
isso, preciso cuidado.”

Mas as palavras tinham uma leveza tão grande que O vento levava.
Parou ao me ver, um ar reprovador: - Ora viva, até que enfim.
Precisou Glorinha resolver casar para você vir nos visitar. Cinco anos
já que não aparece. Glorinha!

Zeca entrou correndo; magro, nariz proeminente no rosto


chupado, nem alto nem baixo, cheirava a desinfetante. Abraçou-me,
desajeitado.

- Como vai, Lola? Por que não avisou, iríamos à estação.

Depois Glorinha, Inês, a nova geração. Glorinha estava com vinte


anos, O noivo trabalhava num cartório; como Olga, era também
professora no Grupo Escolar. Levaram-me para O quarto de Clotilde;
minhas irmãs faziam perguntas, falavam, mostravam os mais moços;
olhe os meninos como estão grandes. As meninas foram buscar café,
biscoitos.

“Aqueles que fiz ontem, da lata verde.” Zeca voltou apressado para
a farmácia Todos falavam ao mesmo tempo; abri malas, distribuí
presentes, os meninos saíram aos pulos, radiantes. A tarde caía
devagar sobre a cidade e através da janela, eu olhava O largo amigo e
silencioso.

Essa mesma noite, tive visitas de velhos conhecidos; D. Carola


entrou estendendo a mão seca: Como vai esta velha amiga Há quanto
tempo a gente não se via? E os filhos?

Abraçava apertando, eu sentia-lhe O hálito azedo; fazia perguntas;


fizemos círculo para D. Carola. Ela foi soltando as novidades.

- Lembra do Juquinha da Sebastiana? Morreu O ano passado.

Continuamos a lembrar os que tinham morrido, casado, sumido.


Reminiscências.

- Lembra a Maria do Carmo, do Serafim?

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- Morreu?

- Essa não morreu, comprou a chácara do Teodorico, mora lá.


Soube que O Teodorico ficou viúvo?

- O Teodorico da Nhàzinha? Ora, coitado… Ela cortou a frase com


a mão: - Já está casado com uma mocinha de vinte e dois. Antes que
eu terminasse a frase, Teodorico estava casado outra vez. Ela ficou
conversando, esmiuçando, espremendo.

As tardes foram passando rapidamente, as rosas amarelas a se


balançarem no terraço cheias de garridice. O noivo vinha ver
Glorinha; os dois ficavam de mãos dadas, alheios, falando baixinho de
coisas que ninguém entendia. A filha mais velha de Olga era casada e
tinha duas filhas pequenas, orgulho do avô; vinham todos os dias para
a casa do largo. As horas eram cheias de trabalhos: doces as Últimas
peças do enxoval, visitas, telefone, O sapato de cetim está apertado
experimentar vestido.

E O véu? Discussões. Olga queria que a cerimônia do casamento


fosse na igreja do largo, Glorinha queria que fosse numa igreja longe
para ir de automóvel. Zeca dizia: Vocês resolvam. Clotilde estava de
acordo com Olga, tradição é tradição. Glorinha pediu meu auxílio: -
Temos que ir a pé porque é muito perto e eu não queria atravessar O
largo vestida de noiva. Não acha ridículo, tia Lola? E se chover?

- Abre O guarda-chuva, dizia Olga, carrancuda. Olhava firme para


a filha.

Glorinha fazia um muxoxo, Olga teimava:

- Quero que seja lá por tradição. O desejo de seu pai é esse


também, tenho certeza. Todas as mulheres da família dele casaram-se
nesta igreja, por que você há de ser diferente? Há de ser lá.

Acabou vencendo; a noiva ficou mal-humorada e foi se queixar no


quarto.

- Sempre foi assim, O que a velha quer tem de ser feito.

Procurei a velha com O pensamento, era Olga, nossa

irmã mais moça.

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Fim de quaresma. Fazíamos jejum, rezávamos, conversávamos
sobre O passado. Ficávamos recordando como se folheássemos velho
álbum. O passado voltava inteiro, vivo, palpitante, quente.
Retalhávamos tudo, depois rezávamos a ladainha, contritas; Clotilde
puxava O terço com devoção, voz mansa. Olga pedia: - Vamos rezar
O Bendito?

No meio da ladainha, Olga fazia um gesto para Ciotilde esperar.

- Desculpe interromper, mas você lembra Lola, da Maria da


Conceição Tomásio?

Eu ficava indecisa, Clotilde socorria:

- A filha de nhá Belarmina, a que morava no Rio Pardo…

- Ah, sei.

- Sabe que ela fugiu há um ano atrás com um homem casado?

Arrepios.

- Largou marido, filho de cinco anos, tudo. Pegou fogo e saiu


inflamada pelo mundo, não houve O que apagasse.

- Que coisa horrível.

- Eu sempre achei-a meio sem-vergonha, safadinha.

- Refugium Peccatorum… Ora pro nobis.

- Regina Confessorum… Ora pro nobis.

Depois vinham as rezas para os mortos a voz de Ciotilde se


arrastava, fanhosa: - Agora um padre-nosso e três ave-marias para tio
Bento.

- Agora um padre-nosso para a alma de nhô Quim que morreu na


semana passada.

- Que nhô Quim?

- O vizinho do tio Batista, do Saracura.

Morreu? Coitado.

- Rezávamos. “Uma ave-maria para a alma de D. Merência.

49
Nas horas vagas costurávamos; ajudei a bordar peças do enxoval;
Glorinha e Inês bordavam. As crianças chega vam depois do jantar,
balbuciantes Zeca ficava de quatro no chão para as meninas subirem-
lhe nas costas. Olga sacudia a cabeça: - Olhem para que deu O avô.

Chegou O dia do casamento. Glorinha havia feito promessa para


não chover, amanheceu chovendo. A água escorria pelas vidraças,
formava poças no chão engrossava enxurradas.

Saiu do quarto, encostou O nariz na vidraça da sala, suspirou:

- Ih, meu Deus, que chuva.

Inês debruçada na xícara de café, resmungou: - Só quero ver você


vestida de noiva atravessando O largo debaixo de chuva. Que azar!

Vítor e José Luís, irreverentes, riam alto, sacudindo os ombros,


derrubando pelotes de manteiga na toalha; Clotilde na ponta da mesa
dava os últimos retoques na blusa que Glorinha iria usar na viagem.
Cortava a linha com os dentes inclinada para a frente, óculos quase na
ponta do nariz. Absorvida no trabalho, censurava os meninos:

- Olhem a toalha…

Zeca na porta do quarto perguntava onde estava a camisa branca,


Olga atravessava a sala com uma bandeja de quindins amarelinhos,
procurasse na terceira gaveta da cômoda. Inês chamava O pai que
viesse ver Vítor; ouvia-se bater de portas, vozes estranhas na cozinha,
passos apressados, ordens, chamados, gritos, apelos. Glorinha saiu do
banheiro, José Luís provocou:

- Chove pra burro… Vai chover O dia inteiro. Vítor socou O irmão
por cima da mesa; Clotilde, alfinêtes no canto da boca, a voz
engasgada: - Tenham modos, meninos. Inês tornou a chamar:

- Papai, venha ver O Vítor.

Eram oito horas, a cerimônia seria às nove e meia na igreja. Todos


tinham pressa, falavam depressa. Inês surgiu na sala com seus quinze
anos vaidosos num vestido côr-de-rosa feito por Clotilde; sua
cinturinha fina parecia que ia quebrar; alisou a saia com as duas mãos,
revirou-se de um lado e de outro, apalpou os cabelos.

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Zeca disse que Inês parecia máscara, por que tanta pintura?

Clotilde correu em socorro, disse que passara creme de pepinos


para disfarçar as sardas, chamou a menina, fingiu que tirou O creme
com a ponta da toalha. Os meninos gritavam no quarto, parecia briga.
Olga gritou, Inês fosse ver O que era aquilo, a voz aguda de Inês: -
Mamãe, estão nus da cintura para cima, se socando.

- Seja tudo pelo amor de Deus, respondeu Olga.

Um automóvel parou no portão, passos rápidos no terraço, às


meninas apareceram de azul, saias compridas, flores nas mãos. Houve
exclamações, esqueceram a briga, Zeca ficou de cócoras para abraçar
as duas juntas.

A noiva estava pronta. Muito séria, Glorinha surgiu na porta.


Todos ficaram parados, olhando-a. Estava encantadora, os cabelos
anelados presos sob O véu. Inês trouxe O ramo de flores, pôs nas
mãos da noiva; ela ficou um pouco indecisa, preocupada com a saia
comprida, as flores, O véu. O pai disse que estava na hora. Abriram-
se guarda-chuvas, houve grande confusão. Todos saíram ao mesmo
tempo para O terraço perscrutando O céu. Formou-se O cortejo a pé,
era só atravessar O largo, pertinho A chuva havia diminuído; O
padrinho ia ao lado da noiva que dera O braço ao pai; na frente iam
as irmãs pequenas.

Clotilde estava comovida. Em todas as portas e janelas havia


pessoas que queriam ver a noiva. Mal começamos a andar com passos
vagarosos, a chuva caiu fortemente, respingando água por todos os
lados, gotas graúdas como moedas. A água saltava no vestido de
Glorinha enlameando a brancura; cada pingo valia um suspiro de
Clotilde.

Que se havia de fazer? Tradição é tradição. Quando O cortejo


parou na entrada da igreja e O harmonio começou a tocar as notas
graves da Marcha Nupcial, Olga abriu a bolsa e procurou depressa O
lencinho. Havia muita gente; quem não conhecia a professora que se
ia casar? A Glorinha, filha do Zeca da farmácia?

Zeca. dava passos curtos, de braço com a filha. Antes

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de começarem a andar, as pequenas sacudiram as saias
respingadas de chuva, como cachorrinhos molhados. Fêz-se silêncio
na igreja. A noiva de olhos baixos e O pai como vido; êle não queria
olhar para O povo que se aglomerava nos bancos e quando olhava,
sorria e cumprimentava de leve.

Ao lado do altar, onde esperávamos a noiva, eu via as cabeças


voltadas acompanhando O cortejo. Lá se encontrava Sinhá, de cabeça
embranquecida e cansada, minha companheira de infância.
Sentávamos lado a lado no Grupo Escolar; quando a aula era de
matemática, ela me ensinava, quando era de história, eu a auxiliava.
Crescemos juntas e quando tivemos O primeiro namorado, brigamos
por causa dele. Durante anos não nos falamos e quando alguém
perguntava: “Vocês não se falam?” Eu respondia: “Estamos de mal.”
E continuamos de mal pela vida a fora. O antigo namorado casara na
cidade vizinha. Quando Sinhá encontrou-se comigo um dia antes do
seu casamento e perguntou “Você não vem ao meu casamento?”
“Como não hei de ir?” respondi. E nosso abraço foi longo, como para
compensar os anos em que estivemos de mal.

Vi tia Candoca bem vestida; fizera vestido novo de tafetá azul para
a cerimônia; enfeitara-se com jóias, broche de pérolas, pulseira de
ouro e camafeu, brincos pendentes.

Estava erecta, bem penteada, acompanhando a noiva com seu


sorriso frio. A filha, Mocinha, nunca tivera muito gôsto para se vestir;
estava ao lado de tia Gandoca, num vestido de seda verde-periquito, O
rosto pintado de rouge, laço de veludo no alto da cabeça. Os filhos já
crescidos, sentados no banco da frente, espichavam os pescoços para
ver melhor.

Dois bancos atrás, viam-se Cora e Heitor, muito sérios, muito


duros. Cora fugira de casa para se casar com Heitor; há muitos anos
era noiva de Raimundinho e nunca marcava O casamento. Adiava
sempre. Recebia O noivo, saíam juntos de mãos dadas, faziam visitas.
“Quando é O casamento?” Êle respondia que Cora é que ia marcar,
ela dizia que não sabia. De noite, quando O noivo se despedia e todos
em casa dormiam, ela encontrava-se com Heitor no jardim. Depois
começou a recebê-lo no quarto e quando O dia avermelhava do lado

52
do nascente, êle pulava a janela e fugia. A mãe olhava Cora e dizia:
“Como você está engordando, seus vestidos já não servem.”

Cora corava e não respondia. Um dia, quando não pôde mais


esconder a gravidez, deixou um bilhete aos pais e também pulou a
janela atrás de Heitor. Os pais desolados, deixaram a cidade e foram
viver no sítio que possuíam nos arredores, nunca mais saíram de lá.
Raimundinho sentiu no peito O desejo de vingança, quis matar Cora e
morrer, procurou-a por tôda parte, mas ela estava bem oculta numa
fazenda longínqua onde se casou com Heitor e teve O primeiro filho.
Outros cinco vieram, homens e viveram felizes; Raimundinho sumiu
no mundo, levou a dor e O desejo insatisfeito.

E Sabininha? Lá estava com sua cabeça inclinada para O lado, mal


vestida, sem uma jóia. Ela que tivera tantas e tanto as amara. Possuíra
brilhantes e pérolas, rubis quadrados como raios de fogo e safiras
redondas, azuis profundas. Foi a mulher mais rica da cidade, mas a
vida, assim como tudo lhe deu, tudo lhe tirou. Primeiro roubou-lhe a
fortuna; Sabininha teve de se desfazer das grandes fazendas do pai
para pagar as dívidas do marido, depois do filho mais velho. Assim foi
entregando tudo: bens, jóias… Cada vez que O destino exigia, ela se
revoltava e resistia, depois fazia a dádiva e chorava. Quando, por
último, perdeu O filho, sua cabeça pendeu para O lado e não
endireitou mais; uma doença qualquer deixou-a com O pescoço
torcido e a cabeça inclinada. Com um vestido escuro e velho,
relaxada, os cabelos em desalinho, olhava com indiferença O cortejo
que se aproximava.

E lá no fundo da igreja, avistei Adélia, de azul-marinho. Contavam


que Adélia seduzira O marido da irmã; esse foi O mais feio crime da
cidade, quem poderia saber a verdade? Na capital, onde viviam, Adélia
ia a toda a parte com a irmã e O cunhado. Um dia os parentes e
amigos foram surpreendidos com a notícia de que O casal havia se
separado por causa de Adélia. Ninguém acreditou. Menos de um ano
depois, ela e O cunhado foram se casar no Uruguai e toda gente
começou a acreditar. A filha do casal era mocinha

e bonita, estava ao lado da mãe. E agora O marido, por quem ela


pecara tão feiamente, vivia em outras cidades, com outras mulheres.

53
Mais ao lado, vi Angélica e a filha. A menina de Angélica nascera
aleijada. Contavam que em uma tarde de tempestade, Angélica, já em
véspera de dar à luz, fora segurar uma criança que escorregara,
falseara O pé e rolara uma escada de vinte degraus A filha nascera
nessa noite; uma menina bonita e forte, porém com defeito na
espinha.

Não houve meios de curar e ela cresceu aleijada; tinha um ombro


mais alto que O outro, O pescoço enterrado, capenga. Tornou-se
moça desajeitada e quando andava, jogava os braços para a frente e
para trás em movimentos desiguais. Era alegre e gostava de namorar,
os rapazes apelidaram-na “Aviãozinho”, comparando-a aos aviões
pequenos de treinamento. Pobre Angélica. Muito serena ao lado da
filha que sorria para os conhecidos e cujo vestido caro não lhe
ocultava O defeito; todas as vezes que a moça se movia, os braços
agitavam-se como asas quebradas.

A meu lado, erecta no vestido novo apertado, Olga olhava a filha


com olhar crítico de observador severo. Glorinha já estava perto,
sempre de olhos baixos. De repente O rosto de Olga suavizou-se e
sorriu francamente para as netas. Clotilde que agora só usava óculos,
ocultava a emoção. O harmonio tocou mais fortemente, e O noivo
deu um passo à frente e ficou ao lado de Glorinha, Zeca suspirou e
entregou a filha.

Começou O sermão Toda a gente se abanava com leques ou


lenços, as crianças foram se tornando impacientes e pediam para sair.
A mãe perguntava: “Querem alguma coisa?”

Elas faziam não com a cabeça. “Então fiquem quietas e esperem.”


O padre falava. As pequenas puxaram O vestido de Olga,
choramingaram.

Quando os noivos deixaram a igreja, um pálido sol brilhava no


largo e Glorinha cumprimentava para os lados, acenava aos
conhecidos que se acotovelavam nas calçadas, dependuravam-se nas
janelas. Na casa cheia, recebiam cumprimentos, abraços. Zeca
passava O lenço na testa, suado e comovido Os amigos davam-lhe
palmadas nas costas, chamavam-no sogro pela segunda vez. Olga
recebia apertos de mão, dava ordens, trouxessem as bandejas, fazia

54
sinais para as negras da cozinha: “Onde estão as bandejas de
salgados?” Angélica e a filha entraram; a moça agitava as asas
quebradas, abraçava outras moças.

Havia gente no terraço, na cozinha, nos quartos; bebiam e


comiam. As pequenas corriam tropeçando nas saias compridas,
preocupando todos dando gritinhos de susto.

Muitas famílias haviam levado crianças; estas perderam a


cerimônia, tiravam doces das bandejas que passavam, falavam alto, as
mãos lambuzadas, as bocas sempre mastigando.

As pequenas protestavam que estavam pisando em suas saias; uma


delas, com O vestido rasgado no ombro, reclamava esbaforida. Em
vão os pais chamavam, prometiam, pediam elas escapuliam
novamente e saíam correndo dando encontrões. Clotilde fazia
exclamações alegres: - Mariquinhas, que saudade. Só mesmo em dia
de casamento você aparece.

Senti um apertão nas costas e um braço pesar no meu pescoço:

- Como vai esta simpatia? Me dá um abraço, Lola. Era Cora,


depois Heitor que também me abraçava de longe. Depois Sinhá que
me apresentava O filho moço e explicava:

Sabe que êle está estudando engenharia? Gosta de matemática


como eu gostava.

O rapaz cumprimentava. E Sinhá entre risadinhas, perguntava se


eu me lembrava do nosso tempo. Rimos juntas. Como não? Como
não? Ela suspirava, saudosa: - Mas hoje está tudo tão diferente, você
não acha? Olga me chamava com veemência para um lado, queria
saber se eu me lembrava do Epaminondas. O Nondas, Lola. Lembrava
sim. Quando éramos crianças, nós e Nondas roubávamos jabuticabas
da chácara do Antônio Matias. Glotilde exclamava da porta:

- Nossa Senhora, mas ela está moça e bonita… Vítor e José Luís,
dentes grandes e ares provocadores, escondiam-se por trás dos
grandes e faziam caretas aos outros meninos.

Na sala de visitas grupos de pessoas conversavam pelos , cantos.


Homens graves discutiam política no terraço.

55
- A lei de estabilidade veio transformar O bom empregado em
mau. Não há mais estímulo. Protege O vagabundo.

- Isso não. Então um bom empregado que trabalhou dez anos’


para uma casa pode ser despedido de uma hora para outra?

- Mas qual é O patrão que tendo um bom empregado quer privar-


se dele Não há de querer perdê-lo.

- Pode-se demitir O mau empregado mediante processo…

- Qual O quê. Isso dá mais dor de cabeça e no fim a justiça acha


que não houve causa e que se deve pagar todo tempo que O
vagabundo esteve descansando…

Outro grupo discutia guerra. Clotilde oferecia empadinhas


amavelmente, perguntava se queriam cerveja, com este calor… Seu
Raposo continuava: - Que adiantou a linha Maginot? Gastaram
milhões, não se prepararam porque tinham a linha Maginot na
fronteira e no entanto.. nada adiantou.

- Porque desta vez a Bélgica não lutou; se ela tivesse escorado uma
semana, a França não cairia.

- Desta vez não adiantava a Bélgica escorar nem que fosse um


mês, a França não estava preparada, não foi como na outra guerra.

Seu Raposo confirmou gravemente, a França estava carcomida


pela política, não se preparara, não possuía aviação eficiente, não
possuía armas, por isso perderá logo no princípio. O exército francês
tão valoroso em outras guerras, encontrava-se agora em farrapos,
perdido. A França estava contaminada) dividida em partidos, separada
pelas idéias pelo pensamento, pelos políticos, por isso a queda rápida.
As crianças vinham da sala, passavam pelo terraço, brincando de
esconder. Outro tinha a impressão de que a Inglaterra salvara-se da
invasão por ser ilha, se não fosse isso… estaria também perdida. Não
tinha aviação suficiente, e como era possível lutar hoje sem a primeira
arma de guerra?

- O que não posso compreender, dizia um terceiro, é como esses


países que estavam vendo O perigo se aproximar há tanto tempo,

56
ouvindo a ameaça dos totalitários, não se prepararam. Até nós
sabíamos que a guerra era inevitável.

Outro respondia, eram países democráticos, as democracias são


lentas, não são como as ditaduras, levam tempo para preparar O
espírito do povo. Roosevelt preparou O povo americano para a
guerra.

Alguém lembrava:

- Imagine a luta entre a Alemanha e a Rússia, as duas ideologias -


comunismo versus nazismo, os maiores inimigos do capitalismo.

O Dr. Estêvão explicava que os comunistas e os outros extremistas


eram os inimigos do capitalismo porque acre ditavam que êle era O
único culpado pelos milhões de desempregados que havia antes da
guerra e pela miséria que havia no mundo. Eram antagonistas Falava
com voz sonora: - Li um artigo que explica: O comunismo ataca O
capitalismo pela frente, O fascismo ou nazismo pelo lados, esquecem
que O capitalismo em si é bom, não prejudica ninguém. Há dois
capitalismos, um prejudica outro não. O bom capitalismo se resume
em ter coisas, possuir bens; é natural que O homem que produza mais
que O outro, possa acumular O fruto de seu trabalho. É O capitalismo
benéfico e humano. O outro é maléfico, é O capitalismo dos
imperialismos, da subordinação das indústrias à finança, é O que tem
a moeda e manipula alterando-a em suas verdadeiras finalidades. Esse
capitalismo prejudicial, é que os extremismos querem eliminar, mas O
artigo diz que eliminando O mau capitalismo, eliminam também O
bom, daí a desorganização completa, O fracasso. Não resolvem coisa
alguma porque eles atacam os efeitos, não a causa. A causa fica.

- E qual é ela? perguntaram.

- Diz O artigo que é a moeda regressiva.. Se de três em três meses


O governo declarasse que O dinheiro em circulação já não tinha valor,
ninguém podia acumular, teria que empregar esse dinheiro em bens,
comprar coisas, girar com êle, não acumular. As fortunas acumuladas
é que formam O mau capitalismo e causam essa inquietação, essa
miséria que sempre houve, mesmo nos países mais ricos e industriais.

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- Será possível? O dinheiro perder O valor de três em três meses?
E quanto custa ao governo fazer dinheiro assim? Viver fazendo
dinheiro?

O Dr Estêvão ficou de mostrar O artigo. Houve protestos.


Senhoras e moças elogiavam O vestido de Glorinha, cumprimentavam
a noiva pelo bom gosto. Glorinha sorria, a cauda do vestido dobrada
no braço esquerdo, agrade cia e conversava. Distribuía botões de
laranjeira. Os que discutiam política e desancavam O governo,
calavam-se diante dos noivos que passavam vagarosamente.
Elogiavam então as famílias, boa gente, de tradição. Acompanhavam
Glorinha com O olhar, gabavam-lhe a beleza. O mais entendido dizia
que Inês, a filha mais moça do Zeca ia ficar mais bonita que a irmã,
estava ficando um primor. Voltavam a falar da política, esqueciam a
beleza.

- Eu digo sempre que O que falta no Brasil são estradas, meios de


comunicação. Já houve um governante que disse essa verdade e
outras, por isso foi parar no exílio.

Êle falava que governar é abrir estradas, essa é uma grande


verdade.

Alguém reclamava, esse não era O primeiro problema, havia


outros importantíssimos: acabar com os analfabetos, ensinar a ler, a
escrever; esse O primeiro, O magno problema, O Brasil não sabia ler.

O que falara primeiro engolia cerveja, voltava:

- Confirma O que eu disse. O Brasil tendo estradas, terá escolas


por toda parte, terá O ensino difundido por todo O interior, terá
professores mesmo nas mais longínquas paragens, mesmo nos
sertões. Os governantes deviam pensar seriamente nisso, ligar por
meio de boas estradas cidades e Estados unir O Norte, O Centro, O
Sul: Quando eu falo estrada, falo estrada pavimentada como nos
Estados Unidos, na Europa, estradas tanto nas chuvas como nas
secas, estradas de verdade.

Outro dizia que isso custava uma fortuna, milhões e milhões de


cruzeiros.

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- Para fazer política há dinheiro, para outras coisas há dinheiro,
por que não para abrir estradas Por que não cobram taxa de pedágio,
tanto por carro? Num instante O governo receberá O que gastou e O
Brasil ficará mais forte, mais rico. Vocês já pensaram no que as
estradas significariam para O transporte de coisas? O que O

Norte podia mandar para O Sul e O Sul para O Norte e O Centro


também? As riquezas em madeira, coco, cacau, café, borracha que há
no Brasil, estacionadas por falta de transporte? E tantas outras coisas?
Sabem que no Paraná há uma quantidade incalculável de madeira
apodrecendo há anos nas estações, por falta de vagões e sabem
quanto custa uma tábua de pinho vagabundo em São Paulo? Poucos
brasileiros conhecem O Norte, por quê? E se tivéssemos estradas?
Viajaríamos por todo O País, conheceríamos nossa própria terra e
muita gente havia de preferir isso a ir ao estrangeiro. Seria um
intercâmbio formidável de idéias e de gêneros.

Alguns confirmaram, seu Lúcio falou com voz arrastada, mole sim,
era isso mesmo. . As boas estradas haviam de ajudar muito, tinha a
filha e oito netos morando em S. Paulo; ela comprava leite, manteiga,
verduras, tudo por

preço alto e nem sempre bom produto, e a sitioca que êle possuía
nos arredores da cidade dava bom leite, ovos, frangos, verduras,
manteiga Pois bem. Êle podia mandar tudo isso para a filha, mas de
que jeito? Se a estrada de rodagem Itapetininga-S. Paulo fosse mesmo
das boas, em quanto tempo um caminhão cobria essa distância?

Fizeram O cálculo, cada um deu opinião, entraram em acordo.


Pois é, de três em três dias a filha teria em S. Paulo todos esses
produtos, faria economia e ainda venderia as sobras para os vizinhos.
Pela estrada de ferro não era negócio. Isso mesmo, seu Lúcio, e como
O senhor tantos outros, nem tem conta.

O outro voltou ao assunto das escolas; não, O Brasil precisava era


de mandar ensinar a ler, e também ensinar a todos os caboclos como
criar um filho, não ser tão ignorante, ensinar a comer, a comer, minha
gente! O Brasil não sabe comer.

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Riram, comer O quê? A questão é que não havia O que comer. Êle
exaltou-se: - Porque não sabem plantar; O caipira come feijão, farinha
e carne seca quando tem, O que é isso para uma criatura?
Enfraquece, a raça não desenvolve. Vocês que viajam por aí, me
digam uma coisa, O que é que O caboclo planta à volta da casa? Nada
minha gente, nada. Nem um pé de xuxu, nem couve, por quê? Por
ignorância. Se êle soubesse ler, saberia que xuxu é bom para a saúde.
Já vi na minha fazenda a mãe dar à criancinha pedaços de rapadura
porque a criança tinha fome. Quando eu disse que aquilo fazia mal,
respondeu que criara os outros assim. Mas os outros O que eram? Uns
molambos de gente. Vivem numa miséria horrenda e nunca
receberam tanto dinheiro como agora, mas não têm nada. Você entra
numa casa daquelas, vê só pobreza; minha filha foi dar injeção numa
criança, não tinha mesa para ferver a agulha teve que ferver no chão.
E no entanto eles têm terra para plantar, plantam pouco e só milho,
feijão, quando poderiam plantar incuto mais. Também, penso às vezes
para quem comprar?

O das estradas voltou, triunfante:

- Se houvesse boas estradas, venderia O produto da terra nas


cidades próximas.

Isso é verdade, confirmaram os outros. O fazendeiro continuou:

- O maior defeito deles é que não criam raízes, são verdadeiros


nômades. Hoje estão trabalhando na minha fazenda, amanhã vão
para outra, e assim vão vivendo. Não a criam raízes.

Seu Lúcio sentenciou:

- Pedra que rola não cria limo.

. - E são doentes, maleitosos, têm tracoma, vermes, O diabo. Era


preciso que O governo criasse uma Brigada da Saúde e mandasse
percorrer O interior e ensinar nossa gente a comer, plantar e criar
filhos.

Teimava O apologista das estradas:

- O território de Mato Grosso é maior que a Holanda, centenas de


léguas de matas e campos sem estrada de ferro, sem ligação alguma;

60
O avião não resolve, não pode trazer carga, fica caríssimo, era preciso
estradas pavimentadas cortando esses sertões, unindo tudo. Aí O
Brasil ficaria grande, não só em território.

- Ficaria caro do mesmo jeito, a não ser que tivéssemos gasolina.

- Temos gasolina, como não? O próprio Mato Grosso tem


petróleo, a questão é explorar. .

- Se tivermos gasolina, talvez teremos de pagar cinco cruzeiros O


litro, O governo lançaria tantas taxas que atrapalharia tudo. Quanto
custa uma garrafinha de água Caxambu? E vem de Minas, pertinho. O
ferro nacional era mais caro que O estrangeiro, agora está mais barato
porque O estrangeiro, dizem, está com impostos fortíssimos.

Assim a gasolina, - de qualquer jeito pagaremos mais caro a nossa


e a que vem dos Estados Unidos, que vem de longe, sairia cara por
causa dos impostos, de qualquer maneira não é negócio…

Seu Lúcio deu uma risadinha:

- Falam em abrir estradas, pois se nem as ruas de S. Paulo estão


abertas para O trânsito.

Outro falou:

-. Outro dia ouvi uma enfermeira falar no rádio em S. Paulo; disse


que graças ao governo a vida havia melhorado muito para a classe
dela, nunca havia ganho tanto, nem tido tantas garantias como agora.
Esqueceu-se de que um par de sapatos que ela comprava por
cinqüenta cruzeiros custa agora quatro vezes mais, que a comida
subiu, que O vestuário subiu, a moradia subiu e ela continua tão pobre
como antes. O povo não enxerga isso, só enxerga que recebe mais
nota no fim do mês e fica iludido, agradecido. Jamais ganhou tanto,
mas também jamais gastou tanto. Pura ignorância.

Na roda que discutia a guerra, O Dr. Estêvão falava:

- Desde a era feudal, O mundo vem se transformando


rapidamente. Na Idade Média, havia os barões feudais e O poviléu.
Depois isso desapareceu, ficou a aristocracia e a plebe que a revolução
francesa derrubou. Veio a era da burguesia; hoje quem domina é O

61
burguês. Na Rússia não, é O proletariado derrubaram também O
burguês.

Vejam por que transformações O mundo tem passado; tem


passado por uma peneira. Que veremos mais?

- Nós talvez não, mas nossos filhos e netos O que hão de ver
ainda?

O das estradas conseguia convencer os do outro grupo:

- Com estradas haveria facilmente escolas, haveria professores,


haveria civilização, jornais. Estradas pavimentadas salvariam O Brasil.

- É um país novo. Tenho a impressão que está como que


fermentando. É um fermento que está crescendo aos poucos.
Teremos estradas e tudo mais. O brasileiro é inteligente.

Nisso é que está O mal. O Brasil tem fama de rico, é O que se


aprende nas escolas: ouro, ferro, pedras preciosas, madeiras de
primeira qualidade, tem tudo. O brasileiro é inteligente, pronto. Ficou
com a fama e dormiu. Alguns riram.

- Todos os países novos são assim, muita bravata, muita prosa,


muita esperança, muito desperdício no começo, depois virá outra fase,
a fase dos empreendimentos, então teremos um grande país, não só
em terras.

- Se Deus quiser, alguém falou.

Clotilde auxiliava Glorinha a trocar de vestido; abo toou a blusa


errada trocando os botões, teve que desabotoar para fazer tudo de
novo. As amigas de Glorinha, foram entrando sem cerimônia,
examinavam os presentes sobre a cama. Crianças espreitavam pelo
vão da porta e corriam. As amigas contavam casos, liam os cartões
dos presentes, examinavam O vestido de noiva sobre a cadeira,
comentavam.

Passavam pessoas com as mãos cheias de arroz; Vítor dizia a José


Luís: - Jogue bem na cabeça deles, bem na cabeça.

Os homens esqueceram novamente a política e a guerra. O casal


passou depressa procurando esconder os rostos entre os braços

62
levantados, numa saraivada de arroz e gritos, Olga estava com os
olhos úmidos, Zeca sorria. Partiram. Os convidados despediram-se e
deixaram a casa, apressados. Olhamos as salas vazias, papéis de bala
pelo chão, pedaços de doces pelos cantos, copos esquecidos sobre os
móveis. Zeca olhou tudo meio desanimado, coçou a cabeça, passou O
braço pelo pescoço de Olga que chorava baixinho;

- A debandada continua, minha velha. Há de chegar O dia em que


O ninho ficará vazio.

Inês juntava cálices e copos numa bandeja; passava dançando e


equilibrando, sua cinturinha volteando no ar. Vitor chutou um pedaço
de empada. De repente vozes se elevaram na cozinha, ruído de tapas,
imprecações. Que seria? Vítor passou correndo perseguido por Inês.

- Será possível, meu Deus? falou Zeca com voz de choro. Clotilde
veio atrás, acalmou-o: - Não é nada, Vítor chamou-a de “rainha
morta”, ela ficou furiosa.

Ouvimos Vitor dizer várias vezes: “Olha a Inês de Castro, a rainha


morta… ” E os gritos de Inês.

Trabalhamos para pôr a casa em ordem; bateram treze horas no


relógio da sala. As rosas amarelas a se balançarem no terraço, alguém
perguntou: - Onde estão as pequenas?

Foram encontrar uma delas deitada no sofá, dormindo com um


dedo na boca, O vestido amassado e sujo de geléia. A chuva
recomeçara a cair.

Silêncio na casa do largo. Sentadas no terraço Clotilde e eu


conversamos serenamente. Esquecida por momentos do trabalho, as
mãos vermelhas, grossas, Clotilde começou a se queixar de Olga, dos
sobrinhos. Olga era culpada, única culpada, não sabia educar aquelas
crianças; era mole, elas faziam O que queriam. Zeca, coitado, tinha a
farmácia, a vida dele era apertada, mas Olga? Deveria ser mais
enérgica, ora esta. Olhava as rosas.

Tinha a escola, era verdade, mas só três horas de aula por dia, O
resto do tempo em casa, mas qual, era mole por natureza. Com os
mais velhos fora autoritária, danada para os mais moços era aquilo
que se via.

63
Ela procurava não ser pesada, ganhava dinheiro com as tachadas
de doces, ou marmelo, ou goiaba, bananada, figada; Deus a livrasse
de ser pesada, enquanto tivesse forças, seus braços haviam de
trabalhar. Mostrou as mãos calosas; olhe os calos. Fêz uma pausa,
depois continuou dizendo que os meninos não a respeitavam,
imitavam-lhe O modo de rezar, de falar; Olga em vez de zangar-se, ria,
imagine. Uma vez estava descascando goiaba, e quando viu, Vítor
estava atrás imitando-a. Ficou indignada, Olga também riu e na hora
do almoço contara a Zeca, contara mesmo, desaforo Clotilde movia as
mãos, abria e fechava os óculos a ponto de os quebrar, nervosa. Os
meninos eram insuportáveis, não obedeciam nem O pai, eu não havia
reparado?

Endiabrados.

Houve um silêncio, baixou a voz para perguntar:

- E Alfredo? Não teve mais notícias?

- Não.

- Que coisa. Houve tempo que êle escrevia, cartões com poucas
linhas, mas dava notícias.

- Veio a guerra. Ficou papuda de raiva:

- Por isso é que tenho ódio de guerra. Maldita. Por que há de


haver guerras? Mortes, doenças, vida difícil, fome, tudo por causa
dela, tenho ódio.

Fungou, fêz cara de nojo:

- Mas Alfredo há de voltar, qualquer coisa impede-o de escrever,


mas êle volta. Não pensa assim?

As rosas amarelas balançavam-se na grade de ferro; falavam de


Alfredo cochichando, como se êle tivesse morrido. Ninguém
perguntava em voz alta, cara a cara, com firmeza, com franqueza:
“Como vai Alfredo? Tem tido notícias? Quando volta?”

Clotilde estava ocupada na cozinha; Olga ao meu lado conversava.


Comentou a beleza do dia, falou da festa do casamento, da chuva.
Ouvimos a voz de Clotilde chamando Inês na cozinha, Olga pegou O

64
assunto; perguntou se eu havia reparado na predileção que Clotilde
tinha por Inês. Antes que eu respondesse, falou que toda a gente
notava e achava as duas parecidas, eu também achava? Abri a boca
para responder, ela continuou, Clotilde era boa, ajudava-a a criar os
filhos, mas também tinha seus defeitos, quem não os tinha? Com toda
aquela bondade, ela perturbava a educação que ela gostaria de dar aos
meninos. A princípio Zeca se aborrecera, depois não se importara
mais. Clotilde fazia todas as vontades dos sobrinhos. Inês, então, era a
predileta. O vestido côr-de-rosa de seda cara?

Presente da tia. Aquele outro de pintinhas? Presente da tia. Tudo,


tudo. O lucro dos doces ia em presentes para os sobrinhos,
acostumava mal as crianças, isso não se faz. Vítor quis uma bola
grande, a tia deu. Zé Luís quis um sapato para jogar futebol, a tia
comprou. Agora estava ajuntando dinheiro para dar uma bicicleta aos
dois. As bicicletas estão caríssimas, mas ela compra.

- Imagine, até bicicleta.

A mão de Olga, gorda e pálida, volteou no ar.

Clotilde fazia mal, mimava-os muito. Já lhe chamara a atenção


tantas vezes e nada adiantara. Olga fez uma pausa e disse um não
enérgico ao homem que oferecia frangos no portão.

- Uns frangos magros, pelados, doentes. Pedem um dinheirão.

As tias Clotildes queriam auxiliar e atrapalhavam, por isso os filhos


dela eram assim mal-educados, que havia de fazer? Clotilde era
culpada; todo castigo que Zeca ou ela gostariam de infligir aos filhos, a
tia vinha logo intervir que não, eles não fariam mais, prometiam. Uma
pena ela não se ter casado.

Olhou as rosas, fêz uma pausa, queixou-se da gordura, tinha que


fazer um regime qualquer, tirar uns quilos, estava muito gorda; depois,
confidencial: - E Alfredo? Não teve mais notícias?

- Nunca mais.

- Que pena. Sabe que dos seus filhos sempre achei Alfredo O
melhor? Mais simpático, mais carinhoso para todos. Olhe Julinho:
nunca mais nos procurou nunca mais nos visitou. Ficou rico,

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importante, esqueceu-se de nós. Nem nos participou O nascimento
dos últimos filhos Alfredo nunca se esqueceria, era delicado, bom.
Para você foi um ótimo filho, eu me lembro; deu algumas dores de
cabeça, mas era bom menino.

Elogiavam Alfredo com insistência, como se êle tivesse morrido, só


se elogiam assim os mortos; quando êle estava em casr ninguém se
lembrava dessas coisas.

Ouvimos gritos no quintal; Olga sobressaltou-se e escutou melhor.


Não se mexeu. Que será?

Vieram correndo, acompanhando Vítor que chorava e mostrava O


braço. O corpanzil de Olga movimentou-se, que foi meu filho? Vítor
caíra do muro. Clotilde estava branca, segurando O braço do menino.
Zeca chegou correndo da farmácia, fraturou? Vamos para a farmácia.
O braço estava inflamando, Clotilde perdeu a hora da reza, não houve
fratura, Vítor chorava e punha a cabeça no colo da tia.

- Mais compressa quente, titia.

A tia punha compressa, acarinhava, falava, isso passa, isso passa.


Dava-lhe sopa às colheradas se queria mais, se queria O doce de
goiaba que estava fazendo, coçava-lhe a orelha. Clotilde estava feliz,
alguém precisava dela, dos serviços, das horas, do tempo dela.
Alguém exigia sua presença, não a deixava dormir, nem descansar,
que bom.

Na véspera da minha partida, disse a Olga que gostaria de levar


Clotilde para S. Paulo, descansar. Queixava-se sempre do reumatismo.
Olga olhou-me interrogando.

Se eu queria levar Clotilde?

- Meu Deus, Lola, ela é meu braço direito, é tudo nesta casa, não
viu como foi dedicada quando Vítor se machucou? É sempre assim, as
crianças não podem passar sem ela.

Ficou me olhando, admirada por eu não ter percebido a eficiência


de nossa irmã. E rematou: - Convide e leve-a, se ela quiser.

Clotilde não quis. Iria mais tarde, Vítor ainda não estava
completamente bom, a ausência de Glorinha entristecia a casa, Inês

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precisava de vestidos, José Luís precisava de camisas, mais tarde, mais
tarde.

As rosas amarelas balançavam-se ao vento da tarde. ficaram


minhas irmãs na vidinha de interior fazendo doces, ensinando
amostras, recebendo visitas de D. Carola, ralhando com as crianças,
Clotilde com um chalinho preto na cabeça, correndo para não perder
a missa, Zeca de quatro no chão para as netas sentarem nas suas
costas, correndo da casa para a farmácia, remédios, desinfetantes.

Seria sempre assim até a morte chegar para cada um. Glorinha,
Inês, a filha casada, Vítor, José Luís seguiriam a mesma rotina. As
pequenas também. Envelhecendo sentados nas cadeiras do terraço
nas tardes amenas, olhando as rosas. Clotilde visitando os pobres e
doentes, levando consolo aos que precisavam, ensinando orações aos
que não sabiam. Fazendo novenas. Pedindo hortênsias a todas as
crianças da cidade para enfeitar O altar da Capela do Santíssimo,
ajoelhando-se contrita e cantando a ladainha acompanhada por toda a
Irmandade: “Mater Prudentíssima - Ora pro nobis.” Zeca recebendo
os amigos na farmácia para dois dedos de prosa: discutindo política,
contando novidades, falando mal do governo, comentando a guerra,
mostrando os erros, corrigindo, consertando. Sentados nos bancos da
farmácia ou de pé, encostados à porta, êle e os amigos corrigiam a
humanidade e salvavam O mundo todas as tardes.

A noite caindo lentamente no largo amigo, todas as noites seriam


iguais.

, Voltei, enfim. Distribuí pacotes de doces, muita coisa por fazer;


Rousseau em todas as bocas desde manhã as roupas das crianças
precisando de reforma, Lena crescidinha.

Sílvia estava estudando piano, haviam alugado um piano, e tinham


professora uma vez por semana. Já tocava escalas e quando a
professora dizia 1 oqué um lá, ela tocava um dó. Toque um fá, ela
tocava um ré. Tio Damião fizera um novo verso.

Perguntei se não havia cartas para mim. Carta? Espera alguma?


Não, perguntei à toa, por perguntar. Sílvia abria e fechava os dedos
para alcançar as oitavas, dizia que O exercício é bom, os pintassilgos

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cantavam quando ouviam as escalas. Dó-ré-mi-fá-sol-lá-si. Perguntei
por perguntar.

Que bobagem , não posso perguntar?

No sábado tiu Damião veio com Anatólio, distribuiu rosas, cantou


Camilo; trouxe também O lado bom do Cosme. O mau ficou
esquecido esta vez. Lembrou, acarinhou, O lado bom. Excelentíssima.
Excelentíssima. Falou muito em Janina, a filha da sua imaginação.

Durante muitos anos, êle e a mulher esperaram a vinda de Janina,


discutiram-lhe a côr dos olhos, desejaram, ânsiaram. Foram
envelhecendo. Um dia, depois da morte da esposa, êle declarou que
se não fosse a filha, sua velhice seria muito triste, mas tinha Janina
que O acompanhava sempre e sem a qual não poderia viver. Felício
atreveu-se a perguntar a idade de Janina, êle pensou um pouco e
disse que estava com vinte e dois anos. Isso mesmo, vinte e dois. Anos
depois, a moça estava ainda com vinte e dois, às vezes vinte e cinco.
Falava nela, moça sensata, ajuizada, não é como essas cabeças de
vento por aí, nunca me deu um desgosto, um aborrecimento.

Sempre em casa bordando, não quer saber de namoros,


leviandades. Sua pele é como um cetim, e é corada, sabem esses
pêssegos que principiam a amadurar do lado do sol? Tem pele assim,
e os olhos? Os olhos da minha Janina são como as noites sem lua,
têm O brilho das estrelas que surgem na noite escura. Dedicava versos
e músicas à filha, falava nela durante horas. Lia alto para ela ouvir,
iam juntos à igreja todos os domingos, de braço. Janina manda
lembranças. Por que não a trouxe, tio Damião? Uma amiguinha foi
passar O dia com ela. E êle raramente aceitava almoço ou jantar, não
podia deixar a filha sozinha. Cultivavam juntos os canteiros, Janina
era alegre e gostava de cantar. Chamava-o paizinho e êle dizia - minha
filhinha. Era enternecedor ouvi-lo falar na filha. Às vezes dizia: “Quem
me ouve pensa que sou louco.” Ria-se com a idéia e continuava a falar
na filha, felicíssimo. Uma vez por ano, em maio, tio Damião
anunciava uma semana antes: - Não se esqueçam, terça-feira próxima
é aniversário de Janina, espero-os para O chá.

Os dias de aniversário variavam, mas era sempre em maio e nunca


era sábado, nem domingo. Isabel, eu e as crianças íamos para casa da

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Mooca, êle nos esperava no portão, sorridente. A casa cheia de flores
nesse dia, a mesa arrumada com toalha bordada, havia um bolo
encomendado na confeitaria, havia sanduíches e chá. O principal
eram os “sonhos” que tio Damião fazia na hora de servir e vinham
ainda quentes, macios, acompanhados de calda grossa e espêssa.
“Como estão fofos, deliciosos, tio Damião.”

Êle esfregava as mãos: “Feitos por Janina, tudo O que ela faz é
perfeito.” Tornava a esfregar: “Perfeito.”

Dando para a copa, próximo ao quarto de tio Damião, havia um


quartinho que podia servir de despensa, era O quarto da filha. Tinha
um pequeno sofá, uma mesinha ao lado coberta com toalha bordada,
um vaso com flores, livros e no fundo, encostada à janela, uma
sapateira coberta com toalha igual à da mesinha. Se se levantasse a
ponta da toalha, não se via sapato, era a sapateira de Janina. Depois
do chá, íamos para lá conversar, ver O quarto. Numa prateleira na
parede, estavam enfileirados os livros preferidos da filha; êle nos
mostrava um por um, explicava: - Quando ela era menina, adorava os
livros de Mme. de Ségur. Ih, os de Júlio Verne, também, agora gosta
de outros Com a idade a gente vai mudando.

Lá estavam eles, manuseados, Janina devia ler muito, ah, ela


gostava de ler, desde meninazinha. Contava que à noite conversavam
juntos, ali no quartinho, ela no sofá, êle najcadeirinha baixa perto da
janela. De vez em quando, ela ria alto, contente, êle até se assustava,
tudo era tão silencioso na casa. “Janina, venha tomar O leite antes de
dormir.”

Isabel a princípio teve suspeitas:

- Impossível, Felício, essa Janina deve existir em qualquer lugar. Êle


fala tanto nela.

Mas passaram-se os anos e Janina só existia na imaginação de tio


Damião. Era como um sonho bom, enternecedor e vivo; Janina era
sempre moça, bela e pura, tinha sempre vinte e poucos anos, nunca
dera um desgosto, filha adorável com pele de pêssegos e olhos
negros.

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Êle mandava bordar toalhas por bordadeiras peritas e nos
mostrava, olhe que beleza, bordado de Janina; sobre as cadeiras, em
todas as mesinhas, na sapateira, havia toalhas bordadas pela filha. E
quando êle passava as tardes perto da janela olhando a rua, Janina ao
lado bordava, bordava, fazia coisas lindas; que mãos primorosas
Quando êle pegava a rabeca, dizia que fizera aquela valsa para O
aniversário da filha; ficava de pé muito sério, preparava a rabeca sob
O queixo, segurava O arco, olhos fixos no espaço, levantava a ponta
do pé direito para marcar compasso. Começava, uma pancadinha no
chão e duas no ar, uma para a direita, outra para a esquerda - um,
dois, três. Um, dois, três. Quando tocava polca havia quatro
compassos, dois no chão, dois no ar.

O jantar era sóbrio. Êle dizia: “Fique aí, Janina, eu mesmo vou
preparar.” Estendia a mesinha, aquecia O leite, O café, cortava O pão
e O queijo em fatias finas, passava manteiga, abria a lata de bolachas.
“Pronto filhinha”. Comia fazendo comentários sobre O tempo, os
vizinhos, raramente sobre a guerra, para que lembrar aquele horror?

Êle tornava a se levantar, já mostrei O último bordado feito por


Janina? Estendia-nos a toalha, examinávamos, elogiávamos, uma
beleza. Ela borda muito bem sempre gostou de bordar. Perfeição. À
saída, depois de festejarmos os aniversários, recebíamos rosas,
enviávamos beijos a Janina, íamos esperar O bonde.

Eu então ouvia tio Damião chamar a filha e iam juntos tirar a


mesa, lavar a louça, guardar, e êle a dizer: - “Mais um aniversário,
hein filhinha? Sabe - Janina?

Você não envelhece, filhinha, você é sempre a mesma sempre


moça”.

70
Os olhos da minha Janina

são como as noites sem lua

têm O brilho das estrelas…

Enxugando a louça e cantando, tio Damião era feliz,

feliz.

“Quem me ouve, pensa que sou louco.” Ria, felicíssimo. …_.

Ainda de madrugada, eu ouvia ruídos na cozinha, juntamente com


O chilrear dos pássaros; perguntava com os olhos fechados: - “É você,
Alfredo?”

Êle enfiava a cabeça na porta: - “Bom dia, mamãe, que tal um


cafezinho quente?” “Bom dia. Está acostumando mal sua mãe…” -
“Por causa do café quente?” - “Por causa de tudo, nem parece que
você veio da guerra.”

Êle assobiava e acendia O fogo, eu continuava de olhos cerrados,


escutando. Ouvia-o assoprar, a lenha estava úmida, custava um pouco.
Ponha um pouco de álcool, Alfredo, só um pouquinho. Ouvia-o
destampar a garrafa, entornar O álcool, riscar O fósforo. A chama
subia, crescia, percorria a madeira, O fogo estava feito. Alfredo
assobiava, enchia a chaleira de água, colocava-a sobre O fogão; abria
a porta da cozinha, espiava O céu, a madrugada surgia avermelhando
O horizonte. De mãos nos bolsos, êle percorria O quintal, assobiando,
não parecia ter vindo da guerra, tão alegre sempre. Menino alegre. Eu
sorria, as cobertas aconchegadas no meu peito, imaginando O frio
àquela hora, sem coragem, sem coragem. Alfredo colocava as gaiolas
na parede de fora, falava com os pintassilgos, dava-lhes comida.
Entrava e fechava a porta, ia espiar a água, quase fervendo. Preparava
as xícaras sobre a bandeja, procurava as colherinhas, estão na gaveta
da mesa, isso, na gavetinha, nunca aprende.

Enchia O açucareiro, cuidado, economia no açúcar. Tolice, a


guerra acabou, não acabou? Não há mais racionamento. Tinha-me
esquecido, é verdade. Sempre assobiando, Alfredo coava O café, eu
sentia O cheiro do café fresco caindo nas xícaras. Você escaldou as
xícaras? Naturalmente, naturalmente. Uma leve pancada na porta do

71
quarto, pronto D. Lola, O café está servido. Ouvindo-lhe O riso, eu
também ria; sentava-me então na cama e me espreguiçava, estou
ficando como tio Damião, estou ficando como tio Damião. Inclinava a
cabeça para ouvir a voz de Alfredo, em vão procurava ver-lhe O rosto
na porta, não ouvia O assobio, nada. Tio Damião, tio Damião. A
cozinha fria e deserta, no fogão só havia cinzas e através do vidro da
janela, O quintal imerso ainda em sombras, somente os galhos das
árvores a se balançarem, a se moverem tristemente.

Alfredo, eu vou para a fila da carne, vá descansar, vá se deitar,


você veio da guerra. Eu vou, estou acostumada a me acordar cedo,
ora esta, sempre fui assim, fique dormindo, descansando. Eu gosto,
sempre gostei, já disse que estou habituada. Cansada? De quê? Não
sabe que sou velha forte? Sou como essas árvores que resistem a tudo
no meio do caminho, às tempestades, às chuvas de pedra, aos raios,
aos lenhadores que de quando em quando cortam os melhores galhos,
ao tempo. Sempre fortes, altaneiras, com novos galhos, seiva nova,
brotando em todas as primaveras, protegendo os ninhos, espichando
folhas para todos os lados, muito verdes, protetoras, hospitaleiras.
Não ria com minhas comparações, mas sou a árvore forte que há na
beira dei todas as estradas.

i Acha graça? Fique descansando, depois do cafezinho quente é


bom dormir mais um pouco, imaginando que lá fora está fazendo frio
e você está no quente, no calorzinho da cama. Você até se esquece
que veio da guerra, oh guerra danada, matou tanta gente, mutilou,
aleijou, você está aí forte e alegre, Deus protegeu, teve dó. Sim, tudo
terminou, estamos tranqüilos de agora em diante. Vida nova. Você
agora vai ficar conosco, trabalhar, casar… Por que você não quer
casar? Case-se com uma moça distinta, constitua seu lar, você que foi
sempre meio boêmio, meio aventureiro. É isso mesmo, aventureiro.

Não dá para a vida caseira? Nem diga isso, dá sim, tenho a


certeza, O tempo das aventuras já passou, agora vem a idade madura,
a idade do juízo, vamos ter um Alfredo diferente, calmo em casa, com
sua mulher, seus filhos. Quero que você compreenda que nada no
mundo vale tanto como uma afeição sincera. Um grande homem que
não me lembro agora O nome, já escreveu isso: “Nem a glória, nem
O dinheiro, nem O sucesso na vida valem tanto como uma verdadeira

72
afeição. A amizade de um filho, ou de uma mulher ou de um amigo ou
de um irmão, uma amizade que você possa contar com ela, ter certeza
que pode contar com ela a qualquer hora, que possa chegar e dizer:
“Estou em aflição e quero que me ajude.” Isso é que vale. Olhe, O
dinheiro nem sempre traz felicidade, já tenho visto famílias se
desmoronarem por causa do dinheiro, tenho visto irmãos se odiarem,
tenho visto discórdias, separações, suicídios, mortes por causa de
dinheiro. Glória? É tão passageira, tão efêmera., Você mesmo que
esteve na guerra, que combateu para libertar os povos escravizados,
que lutou em nome da Liberdade é considerado hoje um herói. Mas
amanhã quem se lembrará disso?

Ficará esquecido, será somente O soldado que veio da guerra, que


lutou, ou nem isso, todos esquecerão O que você fêz. O tempo passa
e as gentes esquecem depressa.

E uma boa amizade? Quanto não vale? Por isso eu quero que você
case, forme seu lar, sua casa. Os idealistas como você são os que mais
precisam de lar, não sabia?

E quero que tenha filhos, não vê como ajudo Isabel a criar os dela?
Ajudarei a criar os seus também, gosto tanto de crianças, e depois são
meus netos, dormirão no meu quarto, não darão quase trabalho, vai
ver. Seremos felizes, viveremos todos juntos e quando eu fizer setenta
e cinco anos ou setenta e seis, daí por diante, quem sabe viverei até
oitenta Julinho virá do Rio com a tribo como êle diz, e festejaremos
todos juntos, a família aumentada, numerosa unida. Todos juntos,
Alfredo, como no tempo da Avenida Angélica, juntos de novo, unidos.
Os mortos terão os lugares ao nosso lado como se fossem vivos. Virá
um bolo grande na mesa, um bolo de aniversário com uma porção de
velinhas, todo enfeitado de branco e vocês dirão: “Vamos ver se
mamãe é capaz de apagar todas, todas de uma só vez.” Estarei muito
trêmula, é verdade, toda trêmula e cansada, como a árvore do
caminho que já viveu muito e deu muita sombra, mas apagarei as
velas, oh, sim, terei forças para assopra-las duas, três vezes até que
todas tenham se apagado e vocês à minha volta baterão palmas e
dirão Viva mamãe.

73
Sílvia tocará uma música em minha homenagem e os netos dirão
batendo palmas Viva vovó. Hei de sorrir, achar tanta graça, você sabe
que nunca me fizeram uni bolo de aniversário? Eu já fiz muitos mas
não para mim, para vocês quando eram crianças, agora para os netos.
Também hei de bater palmas com minhas mãos secas, mirradinhas
como folhas amarelas, mas hei de rir vendo vocês todos juntos e
reunidos, a festejarem minha velhice, minhas rugas, meus cabelos de
algodão Viva mamãe.

Fique dormindo, descanse, você veio da guerra, quem vem de uma


guerra precisa dormir, descansar. Estou habituada a levantar cedo,
gosto das madrugadas, sempre gostei.

“Como tio Damião, como tio Damião.” O que estou falando?


Nada, brincadeiras; de um lado O céu está côrde-rosa, do outro lado
está azul. Se está bonito? Lindo, um céu lindo. Sinto um friozinho, vá
descansar meu filho. - Oh meu filho, onde estás?

Sílvia aprendeu a primeira música; seus dedinhos andavam,


voltavam, ficavam indecisos, firmavam, corriam, paravam. Os irmãos
chegavam perto do piano, ficavam olhando.

Como é O nome da música? Pour Élise. Os dedinhos corriam. A


professora dizia que queria a posição bonita, os dedos curvos, assim.
Recomendava antes de sair: - Não se esqueça, técnica todas as
manhãs. Exercícios e escalas pelo menos duas horas por dia.

Isabel ouvia com atenção, a professora havia falado em ouvido


absoluto. Que seria? Se ela tivesse ouvido absoluto? Ficava olhando as
orelhas da filha, querendo descobrir.

Outro dia a professora falava em liberdade de ritmo; Isabel franzia


a testa e enquanto dava de mamar, pensava na liberdade de ritmo.
Que seria? Impacientou-se, pergunte para a professora O que quer
dizer; imagine, está aprendendo música e não conhece esses termos.

- Sílvia, toque Pour Élise.

Eu mexia a panela, Pour Élise deslizava, corria, saía pelas janelas,


entrava pela porta da cozinha, subia ao teto, sentava-se na mesa, dava
um passeio no jardim.

74
Pulava sem ritmo, depois ficava séria e andava bem direitinha
marcando passo: um dois, um, dois. Travessa, alegre, não parava,
enchia a casa com seus sons, suas peraltagens. Às vêzes subia pela
fumaça do fogão, menina levada, tornava a descer dando uma risada
das travessuras que fazia, a risada parecia uma escala parava um
pouco e marchava feito soldado: um, dois, um, dois. Eu tinha vontade
de perguntar: Não está cansada, sua levadinha? Fazia piruetas em
cima do fogão, olhe que você se queima. De repente sentava-se na
mesa da sala e fazia Lena mostrar O primeiro dentinho numa risada,
depois saltava como se estivesse pulando corda, depois safe outra vez
e dava corridinhas loucas pelo jardim, espiava pelas frestas das portas,
olhava os meninos, olhava Isabel, saía correndo e rindo, de repente
parava cansada e ficava quieta, silenciosa como se fosse uma santinha.
Santinha, hein?

Os dedinhos de Sílvia foram ficando mais ágeis e firmes, Pour Élise


se desenvolvia. Às vezes ainda hesitava Toque um dó, ela tocava mi.
Por que não toca dó? Vinha uma lá.

Tocou no aniversário do pai, êle se entusiasmou: Formidável.

- Beethoven não é aquele músico alemão que ficou surdo? Que


todo pianista célebre toca em concertos? E Sílvia já toca música de
Beethoven? Mas há quanto tempo ela está estudando?

Êle e Isabel fizeram as contas nos dedos. Tio Damião esfregou as


mãos, a sobrinha ia ser pianista, estava se vendo, tinha, como êle, O
mesmo pendor pela música.

Em três meses tocava Beethoven, haviam de tocar juntos muitas


vezes.

Levantando a cabeça e coçando O queixo, começou:“Há no


caminho da vida, muitas paragens alegres, se O caminheiro as sabe
ver com os olhos já cansados de perseguir as fugitivas ilusões…”

Voltando das alturas, olhou-nos com ar piedoso:

- Isto é Camilo puro.

Felício disse que os filhos dão grande satisfação, contou aos


colegas do Departamento que a filha estava estudando música de

75
Beethoven, um colega chamado Emílio disse que ia um domingo a
nossa casa para ouvir Sílvia tocar.

Diante dos amigos O pai elogiava a filha, que ia ser i pianista, era
uma boa menina, ajudava todos em casa e ainda arranjava tempo para
estudar piano. Os compadres vinham almoçar aos domingos, Sílvia
ficava ruborizada com os elogios, procurava agradar O pai, ia buscar
cigarros, cerveja, ia depressa.

Depois do almoço, ainda na mesa, Felício e O amigo lutavam; os


cotovelos apoiados na tábua lisa os nós dos dedos brancos pelo
esforço, os meninos de lado admirando O pai forte. Quando perdia,
Felício ficava exasperado, não se conformava, provocava Quer luta
livre Isabel pedia, não, mais tarde, poderiam se machucar.

Tiravam as camisas, nus da cintura para cima, fincavam os dedos


nas carnes das costas, feito tenazes. A princípio pareciam leves, ágeis,
depois começavam a arquejar; O suor escorria-lhes pelo corpo;
arfavam, gemiam, estrebuchavam, sapateavam no mesmo lugar.
Quando um ia perdendo as forças, adquiria-as de novo, mais vivas,
retesava os músculos, as veias cresciam no pescoço, saltava nos pés,
desviava. Apertavam-se as carnes comprimidas espirravam por entre
os dedos brancos de esforço; depois mudavam de lugar aos poucos,
iam virando, torneando O corpo, inclinando O busto para a frente,
para O lado. Arquejavam. Parecia um arco, O arco endireitava de
novo, firmava, enrijecia; O outro fraquejava por segundos, firmava
novamente cada vez mais certo de vencer. O suor pingava-lhes pelos
rostos, cegava-os, os cabelos grudavam-lhes nas cabeças, viravam
pasta Davam impressão de invencíveis, como bois lutando num
campo, animalescos, brutais. Parecia luta de morte. Felício, por favor.
Era a voz de Isabel sem convicção, enfraquecida. Felício, pare com
isso. Surdos e cegos, caíam, levantavam, grunhiam como bichos. As
duas mulheres cada vez mais aflitas: Almoçaram tanto, pode fazer
mal… Felício acabava vencendo, O amigo caía extenuado na grama.

- Toque Mi bemol. Não, esse é Si bemol falei Mi. Por que tocou
Dó? Este é Fá. Toque Ré bemol. Agora Si. E O Fá sustenido onde
está? Por que não tocou certo? Toque Lá, vinha um Dó.

Quando a professora saiu, Felício chamou Sílvia:

76
- É assim que você estuda Assim que corresponde aos meus
esforços? Faço serviço extra de noite para esta menina poder estudar
piano olhem que lição ela deu hoje. Péssima, ouvi tudo.

Os olhos de Sílvia bilharam de medo, os lábios embranqueceram,


começou a tremer, Isabel veio lá do quarto.

- Papai, eu estudo, eu estudo duas horas por dia. Pergunte para


vovó.

Uma tapa na cabeça. Soluços. A voz de Isabel implorando, não


batesse na menina, não fizesse isso, Sílvia estudava todos os dias.
Aproximei-me. Fui falando depressa, ,fi dando tempo ao tempo.

- Ela estuda duas, três horas por dia. Às vezes acontece que a lição
não está boa, é por causa da escola, dos outros estudos, lá puxam
muito por ela. Está em véspera de exames…

Mais tapas, mãos fortíssimas, de ferro, de bronze.

Felício, por favor. A voz de Isabel nunca foi ouvida; Sílvia dava
gritos finos, agudos de medo, tremia, conhecia a força daquelas mãos.

- Eu estudo papai, juro que estudo. Eu juro…. Cobria a cabeça, O


rosto com os braços, coitadinha, suplicava, implorava, por favor,
lágrimas, bebia lágrimas. Felício, Felício… Sílvia cambaleava.

- É assim que corresponde, hein? Trabalho noite e dia, é assim?

Isabel deixou Lena no chão, avançou para O marido. Por favor,


não faça isso. Levou um empurrão; segurei-o pelo braço, era como se
segurasse ferro, finquei os dedos, puxei, chamei, não bata em Sílvia,
não bata. Papai, eu juro, papai… Êle continuava a bater, Isabel e eu
avançamos, lutamos os três. Eu tinha ímpetos de derrubá-lo, puxar-lhe
as pernas, fazêlo cair. Fui tomando gosto na luta, adquirindo forças
vontade de morder, bater. Lembrava da luta de domingo, queria imitar.
Força. Força.

Êle roncava para mim:

- Não se atreva, não se atreva.

Não me atrever? Então pensava que podia bater na minha neta? E


eu ficar assistindo? Puxava-lhe O braço, desviava a tapa, segurava-lhe

77
a mão, empregava força, suava.

Não pôde bater mais devido à nossa intervenção, largou Sílvia com
um soco nas costas. Voltou-se furioso para nós, os olhos fuzilantes de
ódio, ganiu para meu lado: - Da outra vez, procure não se intrometer
na educação que quero dar aos meus filhos.

Entrou no quarto, bateu a porta. Muito bem. Muito bem.

No domingo seguinte, os compadres vieram almoçar de novo. Êle


elogiou Sílvia, menina trabalhadeira, tocava cada vez melhor,
estudiosa. Boa menina. Os compadres felicitavam, davam parabéns,
ela sorria, ruborizava-se e corria para trazer cerveja, cigarros para O
pai, depressa, depressa. De noite, na cama, esticava os dedos durante
muito tempo para fazêlos crescer, alcançar as oitavas.

- Eduardo, você precisa estudar.

- Estou estudando, vovó Lola.

Isabel fêz pão de macarrão, a comadre havia ensinado, ninguém


comeu, duro como pedra. Quando O marido chegou, ela procurou
esconder os pedaços. Felício perguntou: - Isso é pão?

Tomou um pedaço entre os dedos, apertou; não disse nada. No


dia seguinte trouxe do Departamento um embrulho em papel de seda
amarrado com fitinha Isto é que é pão, querem ver?

Desembrulhou, cortou um pedaço com as mãos e disse para Isabel


disfarçando desprezo: - Você precisa aprender a fazer pão com D.
Augusta; veja que pão gostoso e é feito de macarrão.

Saboreou um pedaço; Isabel corou, examinou O pão, cabeça


baixa. D. Augusta era perita na cozinha, sabia fazer tudo. Se êle
chegava atrasado explicava: - Passei em casa do Honório, comi um
doce feito por D. Augusta, você precisava ver que doce.

D. Augusta outra vez. Noutro dia falava enquanto tomava café

- Tomei um café hoje em casa do Honório, que café bom.


Perguntei quem tinha feito, foi D. Augusta. Delicioso.

Até O café era melhor. D. Augusta sabe fazer. D. Augusta fêz um


doce esplêndido. D. Augusta faz umas broinhãs de fubá… Nunca comi

78
nada tão bom. Isabel odiava e sorria.

- Estude, Eduardo.

- Já estudei, vovó Lola.

Na época dos exames, Isabel debruçava-se sobre os cadernos dos


filhos, Lena no colo. Chuva lá fora. Saíam para a escola, os livros sob
os braços. Beijavam a mãe, abotoavam os casacos, colocavam
papelão dentro dos sapatos, pediam que eu fizesse broa de fubá para
O lanche, até logo vovó, saíam na chuva. Eu os via partir sob rajadas
de água e vento.

À tarde entravam sacudindo as roupas molhadas, tirando os


sapatos encharcados, pedindo café com broa. Em princípios de
dezembro soubemos que Eduardo fora reprovado em latim, tinha que
fazer segunda época, entrou chorando em casa. Parecia mais magro,
mais feio, as grandes sardas salientes no rosto. Que Natal triste. Isabel
ralhou, êle soluçou debruçado na mesa da cozinha, tremendo de medo
do pai. Falei antes da chegada de Felício: - Não contem nada ainda,
deixem que eu mesma conto. Eduardo, enxugue os olhos e vá sentar-
se na sala como sempre.

O pai entrou pela porta da cozinha, mais cauteloso do que as


outras vezes, mal se lhe ouviam os passos. Trazia alguns brinquedos,
pediu-me para esconder na despensa.

Viu os três filhos sentados ao redor da mesa, conversando.

- Como foram de exames? Mentiram, tinham ido bem, hesitaram


titubearam, sorriram ao ver O rosto calmo do pai. Isabel entrou com
Lena, êle foi dizendo que trouxera uma esplêndida receita de pudim
de laranjas, receita de D. Augusta.

- Fazer pudim com este racionamento? Respondeu que arranjara


açúcar com Honório traria no dia seguinte, podiam fazer O pudim. Na
manhã seguinte, fui fazer compras e preparei O jantar. Ouvi a
exclamação de Felício ao ver O prato predileto na mesa: - O quê?
Hoje é dia de festa? Ou algum aniversário que me esqueci?

Eu encontrara língua defumada comprara, um precinho bom, sabia


que êle gostava. Vira as laranjas, comprara também, fizera O pudim.

79
Para O Natal faria outro, naturalmente.

Um pensamento chama outro, vira as laranjas, pensara na receita


de D. Augusta. Engraçado. Felício jantou com enorme prazer; repetiu
a língua, tomou cerveja, quis que todos tomassem, fêz trocadilhos,
conversou com os filhos E O pudim? Mulher danada D. Augusta, tinha
livros de receitas, cozinhava à perfeição, com delicadeza e bom gosto.

Falava com olhos brilhantes, a colher de pudim no ar, olhando os


filhos, provando devagarinho. Delicioso. Sente-se O gosto da laranja,
não se perdem as vitaminas.

Ela arranja açúcar no câmbio negro, descobre pão de macarrão,


até farinha de trigo ela encontra, tem guardada em casa, quilos e
quilos. Mulher danada. E sem mistura, sem mistura.

A colher no ar, repetiu O pudim. Tomou cerveja, estalou a língua,


esplêndido.

- Agora um café fresco bem quentinho hein D. Lola? Satisfeita, fui


fazer café. As crianças me olhavam, Eduardo seguia meus movimentos
com ansiedade. Depois auxiliaram a tirar a mesa, enxugar os pratos.
Felício elogiou O café, só D. Augusta sabia fazer assim. Foi para O
pequeno terraço fumar; Isabel sentou-se ao lado. Fui me chegando
também, conversamos.

- Calorzinho, hein?

Contei O que os meninos esperavam no Natal, só falavam em


Papai Noel; Felício falou sobre O sacrifício em comprar aqueles
brinquedos modestos, mas os filhos receberiam alguma coisa, tudo
estava caro, caríssimo. A bonequinha para Lena custara dinheiro,
sacrifício enorme, que fazer? Êle sempre fora assim, generoso.
Chamei a atenção sobre O brilho das estrelas; depois da chuva ficam
afogueadas. Também chovera tanto aqueles dias, um dilúvio. O céu
agora está limpo, azul, descarregou. Percebi um vulto na sala,
escutando.

- Felício, não quero que você fique zangado com Eduardo, mas…
coitado, não bata nele, não faça nada, creio que foi reprovado em
latim. Não foi em latim, Isabel?

80
Ou matemática?

Êle tirou O cigarro da boca e me fitou na meia escuridão do


terraço.

- Reprovado?

- Não se zangue, para tudo há remédio, vai fazer segunda época


em fevereiro, há de passar. Não é um caso perdido, faz segunda
época e passa. É inteligente. Também latim é tão complicado, eu
nunca poderia estudar essa língua, as declinações todas: Hora-Horae-
Horam-Hora. Ou então aquela outra frase sobre Cartago, você se
lembra, Isabel? Êle estudava alto andando no quintal: Quem destruiu
Cartago? Scipião. “Quis Carthaginem delevit? Scipio.” Vejam como é
diferente, que embrulhada. Êle pigarreou grosso:

- Quando souberam disso? Por que não falaram antes?

- Soubemos hoje, Felício. Somente hoje quando chegou veio


desesperado, chorando na rua. Coitado.

- Mas isso não pode ficar assim, preciso fazer alguma coisa Tinha
tanta esperança nesse menino, êle era estudioso, agora é que está
vagabundo. Meus sacrifícios de nada valem? Isabel, chame Eduardo.

O vulto da sala sumiu. Queria botar energia, mas falava mole, com
preguiça O jantar fora puxado, repetira os pratos, comera três vezes
O pudim de D. Augusta. Não era a voz dos outros dias, enérgica,
apressada, retumbante; Eduardo.

Não era aos gritos, era mansa, tom delicado. Voz cansada. Isabel
que nada dissera, aconselhou, pacata: - Já ralhamos tanto com êle… .
Mamãe e eu falamos tudo que tínhamos de falar. A choradeira foi
grande, deixe para amanhã, você precisa descansar…

O amolecimento foi geral; comecei a falar outra vez do calor, da


côr do céu, das estrelas, do pudim. Falava rápidamente, mudava de
assunto, pulava, voltava, olha O vento, será que vai recomeçar a
chover? Também é tempo de chuva, que chova, que chova. É bom
para as plantas, estavam ressequidas. Escutem, O vento está
começando, vou me deitar, boa noite. Fui deixando O terraço e

81
falando: “Quis Carthaginem delevit? Scipio.” “Lex-Legis-Legibus. Qui-
Quae-Quod.” Língua atrapalhada.

Na manhã seguinte, Felício quis bater no menino, não queria


meninos vadios em casa, por que fora reprovado? Não dizia sempre
que estudasse? Então Deu um puxão na orelha de Eduardo.

Vim da cozinha com a panela, mostrei-a a Felício, gostaria que


misturasse a sobra da língua no feijão ficava muito bom; perguntei se
lembrava, já fizera outra vez dá um gosto especial, quer que misture?

Interrompia de propósito, onde se viu? Pensava que na vida era só


levantar O braço forte, bater, bater? Aproveitava a força para bater.
Bruto. Por que não batia na minha filha? Em mim também? Queria
ver. Os olhos pretos fuzilavam quando perguntei de perto quase
encostando a panela no nariz dele: - Quer que misture, quer?

- Pode misturar.

Eduardo saiu cambaleando por causa do puxão de orelha. Ainda


bem, se não fosse encostar-lhe a panela na cara, batia, mostrava a
força, músculos fortes, braços de aço, mãos de ferro, brutalidade.
Almoçou mais cedo, saiu apressado, respiramos. Eduardo me
agradeceu não foi nada.

O pai vingou-se, passou mais de quinze dias sem falar com O


menino, passava por êle sem ver. Passou O Natal, tudo na mesma.
Nos primeiros dias de janeiro Eduardo fêz anos; O pai não deu
presente, nem respondeu quando êle perguntou: - Papai viu as coisas
que ganhei?

Fiz um pequeno pudim que êle comeu sozinho na cozinha, nem os


irmãos fizeram companhia, fingiram que estavam com sono, medo do
pai. E a primeira vez que Felício falou foi para chamá-lo “Cavaleiro da
Triste Figura”. Eduardo estava no quintal trabalhando, as calças
arregaçadas, as pernas muito magras, compridas, com pêlos raros e
algumas sardas.

- Que está fazendo ali O Cavaleiro da Triste Figura? Ó D. Quixote


da la Mancha, vem cá. Ah, ah, ah.

82
Mais tarde tornou a perguntar onde estava O Sancho e quantos
moinhos de vento êle havia derrubado. Muito desanimado, Eduardo
chorou à noite no quarto, sem saber porque O pai O chamava
daquele jeito.

- Vamos perguntar ao tio Damião, cochichou Sílvia. Sábado à


tarde quando tio Damião chegou com as flores, os tomates, as ervilhas
tortas, as crianças chamaram-no para um lado, fizeram perguntinhas.
Tio Damião escutou, prestou atenção, sorriu, coçou O queixo, depois
levantou os braços e romantizou O Cavaleiro da Triste Figura.

- Quem foi? Um herói, um valente. Combatia os mouros, ninguém


podia com êle, corajoso como êle só. Vestia uma armadura de fepro,
inteirinha de ferro, naquele tempo os guerreiros andavam cobertos de
armaduras aqui, ali, nos braços, na cabeça, nas pernas. Na cabeça
tinha uma espécie de capacete e quando êle queria, abria uma
janelinha, então aparecia a boca Do contrário nada, tudo fechado.
Esse D. Quixote de la Mancha foi um homem extraordinário saía do
castelo dele acompanhado pelo fiel Sancho a matar mouros. Matava
todos que encontrava, matou mais de quinhentos.

As crianças abriam a boca, Eduardo sorria, queria saber porque” O


pai O chamava assim.

- Porque êle era muito magro e alto, parecido coni Eduardo, por
isso. Um valente, homem extraordinário para aqueles tempos. Eu
gostaria de ser um D. Quixote, palavra.

Queriam saber mais, porque diziam Cavaleiro da T riste Figura,


isso Eduardo não compreendia. Por quê?

- Ah isso por brincadeira, respondeu tio Damião. Por brincadeira,


desses apelidos que pegam em criança, vocês sabem. Apelido que
ficou, mas tinham medo dele, todo O mundo O respeitava, um
valentão daqueles.

Eduardo não se importava mais quando O pai O chamava de D.


Quixote, ficava até orgulhoso.

83
Felício tinha serviço para fazer à noite em casa, batia horas na
máquina de escrever, era preciso ganhar mais, vida cara. Logo no
princípio do ano, tornou-se apreensivo cochichava com Isabel; ela
andava tristonha, suspirando pelos cantos A máquina de escrever
continuava a trabalhar àrduamente, apressadamente todas as noites.
Êle ficava com os olhos vermelhos, dedos duros. As crianças estavam
em férias, Sílvia começou a estudar a “Moda da Carranquinha O pai
ficou entusiasmado. Minha filha está tocando mu-f sica de Villa Lobos.

Será que vou ter uma neta pianista? Celebre? Uma neta que aos
dez anos toca Beethoven, Villa Lobos, ficará célebre. Os irmãos
pediam: Toque, Silvinha, a “Moda da Carranquinha.

Quando a tarde caía e as sombras da noite faziam manchas no


jardim, O silêncio também vinha pesado, fingido. As crianças
recolhiam-se O rádio emudecia, Isabel ia para O quarto, os
passarinhos ocultavam as cabecinhas, ninguém mais falava, silêncio.
Êle vinha nos seus passos cautelosos, mal se ouvia O andar manso na
calçadinha que rodeava a casa, quieto, quieto, para surpreender,
zangar-se, expandir a força, irradiar.

Certa manhã veio um homem e falou com Felício no

portão; falava alto, áspero e a voz de Felício se desculpava, se


encolhia. O homem tornou a voltar, a reclamar; Isabel passava por
mim, boca fechada, guardava tudo bem guardado, para eu não
perceber. O homem falava com pouco caso, cigarro na boca, mão no
bolso. Reclamava O aluguel da casa. Por que não me contou, Isabel?
Eu não estou aqui para trabalhar, chorar junto, sofrer e rir junto?

Dei O dinheiro das minhas economias; não, não, a senhora já dá


tanto, paga pensão, dá seu trabalho.

- Para quem hei de dar então? Se a filha não aceita quem vai
aceitar?

Desde então Felício entrou em casa embriagado. Nessa

noite bateu em Carlos jogou um prato no chão porque Lena estava


chorando, gritou que não havia sossego naquela casa, toda a gente
fazia barulho para atormentá-lo, onde poderia ter paz? Os meninos
correram para O quarto, Isabel desapareceu com Lena, recolhi os

84
cacos, comecei a pôr ordem na cozinha. Quando a voz dele serenava,
eu ouvia O vento a sacudir as portas. Sentei-me e olhei O fogo
pensando em tio Damião. Tudo poderia transformar-se em cinzas,
mesmo O fogo destruidor.

Não senti O silêncio, nem O vento, nem a voz de Felício, lembrei


de Alfredo; sua última carta viera do Pacífico, mas era tão grande O
Pacífico, em que pontinho êle estaria? Combatendo? Prisioneiro?
Vivendo? Por que não dava mais notícias? Esquecera a velha mãe?
Pensamento de romance, “velha mãe”. O endereço que mandei foi O

da pensão de Irmãs; pedi à Irmã Maria confidencialmente: Se vier


alguma carta do estrangeiro, mande logo um portador levar, é de meu
filho Alfredo O que está na guerra, a senhora sabe.

Outro dia vi um menino que se aproximava procurando uma casa,


um número, quase gritei: “É aqui. Traz a carta? Que silêncio tão
profundo, e a chamazinha? Apenas um montinho de cinzas. Dizem
que os bosques apodrecem e se extinguem, a nuvem se desfaz em
chuva, O homem lavra a terra e jaz sob ela, O fogo se transforma em
cinza fria.

Todas as manhãs, a voz de Felício mostrava irritação e mau


humor:

- Mais de uma vez já tenho reparado nas blusas com que vão à
escola, nem sempre estão limpas. Você precisava ver os filhos de D.
Augusta.

O ódio era um punhado de coisas no peito de Isabel; surdo,


impotente, disfarçado.

- E é D. Augusta que lava e passa; é uma mulher digna de ser


imitada.

- Este pão está horrível, por que não procura fazer melhor? Com
mais capricho?

O ódio crescia, se avolumava.

- É aquela receita que D. Augusta mandou?

- É

85
Ela sorria. Odiava e sorria. Na porta do quintal, êle gritava:

- Onde está O Cavaleiro da Triste Figura? Vem cá, D. Quixote.

86
capítulo VI

87
O frio era forte na madrugada; Isabel veio com um xale nos
ombros:

- Mamãe, não vá, O frio está fortíssimo, Felício

disse que a senhora não deve sair, pode tomar um resfriado.

- Vou bem agasalhada. E como as crianças podem ficar sem


carne? Lena está fraquinha depois da gripe, precisa de caldo de carne.

Ela fechou a porta atrás de mim. O vento frio que soprava parecia
gelar os ossos; eu caminhava depressa para alcançar a primeira rua
que tivesse luz, aquela escuridão assustava. Com a cabeça baixa
andava rapidamente, pensando nas crianças que precisavam de carne;
enquanto pudesse faria por eles O que havia feito”por meus filhos.

Não queria pensar no frio que me envolvia nem sabia onde punha
os pés na rua escura; gostaria de assoprar as mãos que estavam
esfriando enroladas no xale, mas se as tirasse dali, poderiam esfriar
ainda mais. As crianças, pobrezinhas, não eram alegres como as
outras, não podiam expandir-se, O olhar do pai era severo, estava
sempre censurando e exigindo.

Tinham que trabalhar, os gritos incomodam, cinema era proibido,


cinema para quê? Aprender coisas? Amigos por quê? Não viviam bem
assim? Só tinham a escola, ou então ficar sentados como gente
grande, a conversar; ou estudar seriamente, muito seriamente.
Enquanto eram pequenos pertenciam ao pai, eram coisas dele,
aceitavam; cresciam um pouco, havia a revolta que O pai procurava
abafar com gritos, com a força bruta, com as mãos de ferro.

O vento fustigava meu rosto; quando vi a luz mortiça na porta do


açougue, suspirei Havia uma fila de trinta pessoas, fiquei atrás de uma
mulher que lamentava a guerra O frio, as dificuldades; dava uma
pancadinha no peito e dizia: - Com esta idade, nunca precisei levantar
de madrugada por causa de um quilo de carne. Sempre tivemos tudo;
agora falta isto, falta aquilo, como se pode viver? Isso tudo desanima
O mais forte. A senhora e eu temos idade para estar aqui a esta hora
e com este frio que penetra a alma?

88
Esfregava as mãos. O tempo não passava e enquanto se estava
parada, O frio aumentava. Eu ouvia a voz da mulher cheia de queixas,
batia os pés no chão para aquecer.

O vizinho da frente falava na geada que estava caindo, nunca


sentira frio como esse ano, nada aquecia. Assoprava as mãos; a
mulher batia no peito e tornava a falar: - Nunca vi isso em minha vida.
Por que O governo não toma providências? Por que deixa O povo
sofrer assim?

89
Outro respondia

- Governo não vê nada, só política, não tem pena do

povo…

- Não é isso, dizia um senhor que chegara depois de mim, um xale


azul enrolado no pescoço. Eu penso que O

que está faltando para nós, vai para ajudar os povos aliados. Estão
mandando arroz, carne congelada, café, feijão. Para os nossos
soldados também, tenho um neto na guerra… Ao ouvir isso, todos se
voltaram para ver O homem que tinha um neto combatendo na Itália;
houve um silêncio de simpatia, um mocinho que estava mais na
frente, perguntou

- Na Itália?

- Na Itália.

- Foi no primeiro vapor?

- No segundo, disse p velho suspirando.

Outras pessoas que estavam na frente da fila e não haviam ouvido


bem, perguntaram de lá: - Seu filho está combatendo na Itália?

- Meu neto. Está, sim senhor.

- Foi no primeiro vapor?

- No segundo. No segundo. A mulher deu outra pancadinha no


peito e repetiu para a pessoa que chegara por último: - Esse senhor
tem um neto na guerra…

Na Itália?

- Na Itália.

- Foi no primeiro vapor?

- Não, foi no segundo…

Eu podia contar que também tinha um filho combatendo no


Pacífico. Imagine, no Pacífico! Que coisa linda. Tão longe. Num mar
desconhecido, junto ao exército americano.

90
Chama-se Alfredo, está combatendo os japoneses, os japoneses do
Pacífico. Êle me escreveu uma vez que a Austrália podia ficar
sossegada, eles expulsariam os japs de lá escreveu japs sim senhor.
Estão combatendo como demônios e estão vencendo. Isso mesmo,
vencendo; quando começou a guerra, foi com os americanos para O
Pacífico.

Êle estava na marinha americana, era marinheiro, sim senhora. Êle


me escreveu do Pacífico uma carta muito bonita, está combatendo
para um mundo melhor. O mundo vai melhorar depois desta guerra
como não? Voluntário, sim senhor. Apresentou-se como voluntário.
Que maravilha.

O melhor era não falar porque, eles poderiam perguntar: Quando


recebeu a última carta? A última? Três anos. O quê? Três? Falou três?
A velha está louca, há três anos recebeu a última carta do filho e conta
como se O filho tivesse escrito ontem. Velha louca. O melhor era ficar
quieta, quietinha. Olhei para os lados, bati os pés, cala a boca, velha
louca. Imagine três anos sem notícias e ela a dizer que O filho
escreveu isto e aquilo, Austrália, japs, mundo melhor. Quando isso?
Três anos. Está louca? Quem sabe os japoneses nem estão mais na
Austrália? Preciso perguntar isto antes de falar, preciso indagar,
alguém deve saber.

No princípio e no fim da fila estavam falando sobre O neto que


estava na Itália. Foi no primeiro vapor? Não, no segundo. Foi para a
Itália? Sim, para a Itália O açougueiro abriu a porta, apenas uma
portinha estreita e lá. dentro uma luzinha meio morta, piscando
Minhas mãos estavam duras e meu pensamento entorpecido a fila
começou a andar, a andar devagarinho. Estava muito escuro, galos
cantavam nos quintais, deve estar amanhecendo. Toda a gente estava
calada, pensando no quilo de carne, a fila ia indo devagar. O homem
que tinha O neto na guerra dava gemidos e assoprava os dedos. Eu
tinha um filho combatendo no Pacífico. Sabe onde é O Pacífico?

Lá para os lados da Austrália, êle está expulsando os japoneses e


combatendo para melhorar O mundo. Foi O que me escreveu. Galos
cantavam, estava amanhecendo. Vi a mulher enxugando as lágrimas
diante do açougueiro que mostrava as mãos vazias. Fechei também

91
minhas mãos sob O xale e apertei-as sentindo-as geladas. Não tem
mais?

Gritei. Ninguém respondeu. O homem que tinha O neto na Itália


deixou a fila e foi embora quase correndo; O açougueiro dava
explicações, a carne era pouca, não havia mais. Só toucinho, quem
queria toucinho? Eu apertava minhas mãos e esticava O xale como se
O quisesse rasgar, mais um dia sem carne. A velha foi embora se
lamentando, tropeçando no escuro; voltei para casa, O caminho de
volta foi mais longo e mais frio. Isabel estava na cozinha preparando
café; com um gesto mostrou-me as camisinhas de Lena que haviam
ficado lá fora no varal e estavam duras de geada. Perguntou
penalizada: - Não trouxe carne? A senhora está pálida. Continuei a
olhar as camisinhas que O vento sacudia e que pareciam rir de mim,
agitando os braçinhos duros.

Genu continuava me visitando. Largos gestos, pesada de corpo,


fronte serena, alegria calma. Aparentava, na velhice, a submissão e a
serenidade que lhe faltaram na idade madura; nos seus olhos
tranqüilos transparecia paz absoluta. Suas palavras já não eram
amargas, nem traduziam ódio ou inveja; sua impassibilidade diante da
vida significava estabilidade e segurança. Falava de Deus com amor e
simpatia - Deus é grande.

A filha mais moça que no tempo da Avenida Angélica era ainda


uma criança, casara-se bem, residia numa casa confortável e convidara
a mãe para morar com eles. D.

Genu tinha um bom quarto, boa mesa, uma pensão que a filha lhe
dava todos os meses e paz de espírito. Amou Deus, freqüentou
missas, tornou-se piedosa, bondosa, fêz caridade e censurou aqueles
que eram indiferentes à igreja. Como se pode viver sem Deus? Deus é
um só.

Censurou também acerbamente os que continuaram pobres Não


compreendia como é que Fulano ou Sicrana depois de tantos anos de
economias e trabalhos, continuavam pobres.

Isso é falta de juízo, não é? A pobreza irritava-a, considerava


pecado os que pediam, que precisavam do auxílio do próximo, que se

92
queixavam. Conseguia perdoar a pobreza resignada, que baixava a
cabeça e não ostentava, mas os necessitados que faziam alarde, que
gritavam e pediam, não suportava. “Que diabo, como é que eu me
arranjei?” perguntava. “Gastaram em ninharias O que ganharam,
agora toca a pedir, toca a importunar os outros.”

Seu rosto plácido e gordo se enternecia quando lembrava os meus


filhos, conhecera-os pequenos, vira-os crescer. Interessava-se por
Julinho: “Esse está rico hein?”

Queria saber como era a casa dele, por que não ia mais vezes ao
Rio. Contava O casamento das netas, casos de família, censurava
Joca, a filha mais velha e O genro - aqueles pobretões sem cabeça.
Mas falava sem amarguras, sem desejos; sua voz que fora arrogante e
ríspida, tinha agora inflexões suaves de água corrente Deus acima de
tudo. Estava rica. O genro já falava em comprar automóvel, só
esperava terminar a guerra; Naná guiaria O carro e ela, D. Genu só
me visitaria de automóvel. Seu rosto cheio sorria ao falar. A casa onde
moravam era deles, casa própria.

Esticava as pernas sob a mesa da cozinha, dava um leve suspiro,


os cotovelos apoiados à volta da xícara, tomava café muito calma,
muito tranqüila. Não era mais aquela mulher invejosa, irritada, tinha
agora a vida segura em casa de Naná e do genro, O que está
vencendo na vida. Sentia O terreno firme sob os pés e pisava terra
sólida; no meio dessa ilha de segurança, espiava com desdém os que
lutavam em baixo, sorria e censurava. Que diabo, como é que eu me
arranjei?

O sossego que lhe faltara antes, sobrava-lhe agora, por isso a


ausência de inveja, O ar de bondade que lhe proporcionava a vida sem
tropeços. Não desejava mal a ninguém, nem rogava pragas, apenas
censurava os que não haviam conseguido O que ela conseguira. A
idade e a estabilidade financeira deram-lhe a calma necessária para ser
boa e amar Deus com ardor. Deus acima de tudo.

Queixava-se às vezes do genro mais velho, falava mal,

irritava-se, de repente colocava a mão direita sobre a boca:

Cala-te boca. “Por tuas palavras serás justificado e

93
por tuas palavras serás condenado. Não se deve falar de

ninguém, cada um sabe O que faz, não acha?

Serviu-se de mais uma xícara, pouco açúcar, mexeu a colherinha,


provou um gole, depois outro, olhando pela janela a tarde radiante.

- Uma coisa que eu não faço é falar mal dos outros, a vida alheia
para mim é sagrada. Jesus disse: “Por tuas palavras serás condenado.”
E eu respeito as palavras de

94
Deus

Tomou um gole, elogiou meus netos, exaltou a bondade

de Felício e a felicidade de Isabel.

- Quando se cumpre O dever como nós cumprimos, podemos


morrer tranqüilas. A senhora assistiu à minha luta, quanto eu trabalhei
para educar minhas filhas, tiveram boa educação e foram honestas; O
resultado está aí, casaram-se bem. Naná está rica, sempre digo: Deus
é grande. Todas…

Tio Damião entrou com passinhos corteses, trazendo umas Gloire


de Dijon. Inclinou-se: - Damião Vasconcelos Souto, seu criado.

D. Genu, que ainda não O conhecia, interessou-se, voltou-se para


sussurrar-me: Que homem galante, hoje em dia não se vê mais esses
espécimes. Perguntou-lhe: - O seu Souto será parente do meu Tive
uns primos Soutos no Norte, perdidos por aquelas bandas…

Solícito, êle esclareceu:

- Não posso ter certeza, excelentíssima, apenas tenho certeza de


que os meus são de origem portuguesa, vêm de Portugal, do alvorecer
do século XVIII.

Espalmou a mão para mostrar O século. Minha amiga mexeu-se


na cadeira: - Pois não, seu Souto. E é parente aqui da casa? Tio
Damião explicou O parentesco, contou casos, serviu-a de mais uma
xícara de café; falou que fazia versos e compunha música, simples
músicas para rabeca.

- Não sei se a excelentíssima lê Anatólio… Não esperou resposta:

- Anatólio e Camilo são meus prediletos. Sei de cor até hoje a


história de Gonçalo Malafaia e do bigorrilhas de Mirandela. “Poeta é
O amante da noite, da solidão, da lua, das estrelas, do mar, da fonte,
da viração, do rouxinol, dos mil ruídos do silêncio noturno, das mil
notas que salmeiam cantares a Deus”

Houve um silêncio na cozinha: tio Damião continuava Com O


dedo indicador para O alto apontando O céu. Explicou: - Camilo!

95
D. Genu deu uma risadinha:

- Coitada de mim; de leituras não conheço nada. Quando era


mocinha e tinha tempo, li “A Moreninha”, “O Moço Loiro”, gostava
muito do Moço Loiro. Li um outro que tinha um índio bonito
chamado Peri, lembro tão bem… Fiquei louca para ter um namorado
índio. A gente é burra quando moça. Depois casei, tive filhos,
trabalhei que nem besta de carga, esqueci os Moços Loiros, os Peris,
só tinha tempo de ler - Falecimentos - no “Estado”. Isso eu gostava de
ler, quem morreu. Más ler livros?

Cadê tempo? como diz O caipira.

Novo silêncio. Tio Damião não parecia ter ouvido; esticou os


pescoço, abriu os braços: - “Morrendo por um nada, que desejado
aflige, e havido enfada.” - Não é bonito, excelentíssima? E escute esta:
“Os dedos rosados da Aurora afastavam a cortina da noite.” Não é
divino? E a história de Januário Pires de Miranda, natural de
Mirandela? O tal da batalha do Bussaco? E isto aqui: “Nos campos
que circuitavam O outeiro, em que O século XIV vira surgir O solar
dos Camelos, pastavam algumas vacas com os novilhos, e uma égua
farejava e lambia a cria que se espolinhava na relva. Ouvia-se a
preguiçosa toada de uma cantiga pastoril. Tem uma suave tristeza este
cantar dos campos…”

Parou um pouco. Estava de pé em frente à janela, olhando O


quintal e com os braços estendidos e mãos abertas, mostrava-nos O
campo com as vacas, os novilhos, a égua, a cria, e chegava-se a sentir
a tristeza do “cantar dos campos…”

De repente chamou Sílvia e mandou-a tocar “A Moda da


Carranquinha”; repetiu: “Morrendo por um nada, que desejado aflige
e havido enfada.” Marcou compasso, solene.

O rosto da minha amiga exprimia admiração por aquêle homem


raro.

No momento de ir embora, baixou a voz, confidencial. Nenhuma


notícia de Alfredo?

- Nenhuma.

96
Pôs a mão no meu ombro, aconselhou calma, confiança. Pedisse à
Mãe do Céu, pedisse.

- Olha, Nossa Senhora está sentada no trono de Salomão, rodeada


por quatro leões. Na sua testa tem sete pombinhas que representam
os sete dons do Espírito Santo: Da Crença, da Piedade, da Ciência, da
Força, da Clarividência, da Inteligência, da Sabedoria. O que a Mãe do
Céu não há de poder com todas essas coisas na testa?

Peça para Nossa Senhora, peça…

Juntava os dedos da mão direita: Sete pombinhas.

- Como é que Deus vai permitir tamanha injustiça? Deus é um só


D. Lola…

Conhecia-a há tanto tempo e ela ainda me surpreendia.

Conviver com uma pessoa não quer dizer conhecê-la. Muitas vezes
os pais não conhecem os filhos que geraram, os cônjuges não se
conhecem entre si. A natureza humana é tão misteriosa e variada que
sempre nos surpreende, assim como O tempo num país tropical,
sempre incerto. E só depois que alcançamos a velhice,
compreendemos a resposta para muitas perguntas. A idade nos
ensina a tudo esperar, a tudo aceitar, a tudo crer.

Julinho e Maria Laura me escreveram, eu não iria ao Rio? Estavam


esperando, Júlio César ia fazer doze anos. Vou sim. De dois em dois
anos eu os visito, passo vinte ou vinte e cinco dias com eles. É um
mundo tão diferente O de Julinho, tão cheio de etiquetas que eu não
compreendo muito bem. Compreendo, mas não assimilo. Moram
numa bonita casa em Ipanema, têm duas filhas e O menino. As filhas
estão mocinhas, são muito modernas, vão à praia de maio e quando
faz muito calor ficam O dia todo de caleinhas curtas andando pela
casa. E com blusas que cobrem só n parte da frente do corpo. Elas
têm amigas, aprendem inglês, conversam com desembaraço, dançam
e recebem tele-foliadas de rapazes. São meus amigos, respondeu
Ivone, um dia cm que perguntei.

Eu não entendo muito bem a vida que a família de Julinho leva; é


como se me mostrassem um livro escrito em língua diferente da
minha, impossível decifrar por mais esforços que faça. Maria Laura

97
tem idéias avançadas, dá inteira liberdade às filhas; creio que ela é um
pouco diferente das outras mulheres e eu não poderia explicar em que
é diferente. Bonita, cheia de corpo, elegante, possui vestidos
deslumbrantes, freqüenta bailes, dança e usa jóias finíssimas,
principalmente anéis com pedras de todas as côres. Cabelos e olhos
castanhos, dentes brancos e é um gôsto vê-la rir; pele muito alva,
mãos finas e compridas, macias feito seda.

Admiro-a, mas não a compreendo. Parece que ela não dá muita


atenção ao marido, aos filhos, é O que penso, mas não sei se estarei
certa. Tem vestidos de linho, vestidos de seda fantasia, de bolinhas,
risquinhos, flor, vestidos de todas as cores. Possui tantos pares de
sapatos que poderia abrir uma lojinha; é muito elegante e fala muito
bem. Perto dela sinto-me sempre constrangida, meio acanhada, mas
ela me trata com distinção e não sei porque este meu sentimento de
inferioridade.

A casa deles é bonita, dá para O mar; há um jardim na frente, uma


escada de mármore, um terraço com mesa e cadeiras apropriadas;
duas salas, uma maior e outra menor que chamam de saleta onde há
um piano que ninguém toca. A sala de jantar é grande, pratos pelas
paredes e um aparador num canto coberto de objetos de prata: cestas,
bandejas, caixinhas, aves, cachos de uvas, tudo em prata.

Os quartos são em cima, espaçosos e confortáveis. Julinho e Maria


Laura ocupam um de dormir, outro de vestir; este tem espelhos até O
teto, pode a gente se virar de todos os lados, está sempre se
refletindo; as duas meninas ocupam outro e Júlio César outro.
Quando vou para lá, Júlio César vai dormir na rouparia e eu fico no
quarto dele, por isso minha nora queixa-se de que a casa é pequena, é
preciso mais um quarto e aumentar a sala duas vezes, as meninas
estão moças e precisam receber as amigas.

Fico deitada na cama de Júlio César olhando os objetos que êle


tem no quarto: luvas de boxe dependuradas na parede, um par de
sapatos enormes forrados de pedacinhos de ferro, algumas revistas; e
pelas paredes, fotografias de lutas de box e de artistas de cinema.
Sobre a mesa de estudos, livros de histórias, uma geografia, um mapa
colorido, cordões de sapatos, fotografias de cachorros e cavalos, um

98
vidro de goma, uma caixinha de tachas; no outro lado do quarto, uma
bola grande e um par de patins. Ao lado da cama, uma mesinha com
lâmpada, no chão um tapete azul. Na janela larga, uma cortina de um
tecido grosso azulado e na parede em cima da cama, outros
quadrinhos com retratos que devem ser de artistas de cinema.

Esse O quarto do meu neto Júlio César. Preciso repetir muitas


vezes mentalmente que êle é meu neto, que Ivone e Lídia são minhas
netas, para eu acreditar, para entrar na minha cabeça, pois eles são
tão diferentes dos outros netos e de todo O resto da família que nem
parecem meus netos.

Julinho, Maria Laura e os filhos mais moços foram me esperar na


estação; Ivone havia ido a um chá. No trajeto da estação a Ipanema,
foram perguntando pela viagem, pelos parentes, Julinho perguntou
pelas tias de Itapetininga pelos filhos de Isabel, mas sem interesse,
com voz mole, por perguntar. Pois um dia chegou a me dizer: Não sei
mais O nome do tio Zeca, José de quê? Esquecera. Esquecera O
pobre Zeca que O vira crescer, que brincara com êle. José de quê?
Isso me doeu, José de quê.

Nada interessava a Julinho a não ser sua bela situação, sua riqueza,
sua família.

Maria Laura perguntou com displicência: Como vai Isabel? E


quando eu respondi Isabel vai bem, Sílvia toca muito bem piano,
Carlos é estudioso, Eduardo fez segunda época de latim, ela
interrompeu: - Segunda época? Quem? Só ouviu a última frase.

Frango com farofa, filé mignon, pudim de pão… De pão? E O


racionamento? Havia pão até para pudim? Eu não perguntava,
colecionava as perguntas umas sobre as outras, em ordem. Era um
trocar de pratos na mesa… Serviço à francesa. A salada vinha num
prato diferente, enviesado, colocavam ao lado do meu; às vezes eu
fazia confusão, colocava O prato enviesado na minha frente, ficava
vermelha, suando com as complicações. O olhar de Maria Laura era
mudo e levemente complacente, de crítica disfarçada.

Trocavam outra vez de prato, depois outra vez, para a fruta; os


pratinhos de fruta eram coloridos, com cerejas e uvas pintadas no

99
fundo. Eu me esquecia de conversar, calculava quantos pratos a
cozinheira teria de lavar. Com estes serão trinta e seis, barbaridade.

Vinha a água para lavar as pontas dos dedos nada mais antipático.
Eu percebia os nomes que as meninas davam àquela antipatia - bóis.
Falavam pronunciando O ó abertíssimo.

- Mamãe, estes são os bóóóls que você comprou agora? De


porcelana inglesa?

- Não, estes são para O uso diário. Os de porcelana estão


guardados.

Pétalas de rosas bailando na água. Imagine como Julinho subiu na


vida, tem bóis com pétalas de rosas na mesa. Impliquei com aquilo
desde a primeira vez que fui para lá, nunca lavei os dedos naquela
baciazinha, ou lavava a mão inteira ou nada, que adiantava aquilo?
Depois, meus dedos eram grossos, feios, cheios de nós, unhas
amarelas, chatas, aquilo era para mãos delicadas, de unhas vermelhas,
polidas. Não usava de propósito. Bobagem.

Eu observava meu filho; estava forte, parecia mais alto, corpulento,


bem nutrido, bem vestido, O bigode tratado sombreando-lhe O lábio
superior, lenço levemente perfumado, ar sério, compenetrado,
convencido de que mereceu aquilo tudo, aquela casa, aquela mulher,
aqueles filhos, pelo trabalho, pelo esforço próprio. Falava com ênfase,
certo do que afirmava, a consciência tranqüila. Eu lembrava do meu
Julinho tímido, indeciso naquela longínqua noite de pobreza e
hesitações, quando me pediu, suplicou para ir para O Rio. “Mamãe, lá
está meu futuro, tenho certeza.” Eu a ouvir cantar O galo de D. Genu
â noite inteira e a pensar se deixaria ou não Julinho partir. Estava ali
O futuro que êle esperara, ali naquela mesa, rodeado pela família,
bafejado pela fortuna, lavando as pontinhas dos dedos nas pétalas de
rosas. Muito bem, Julinho.

Subi os degraus cobertos de tapetes macios, acariciando O


corrimão dourado da escada, fui para O quarto de Júlio César; Julinho
me acompanhou até a porta, deu uma tapinha delicada no meu
ombro, perguntou num bocejo:

- Mamãe não teve mais notícias de Alfredo?

100
- Nunca mais.

Ficamos olhando um para O outro, depois êle murmurou: y - Que


louco.

Lá estavam a bola de borracha, as chancas, os retratos dos artistas,


das lutas de boxe, as luvas enormes como balões abandonados, as
particularidades do meu neto Júlio César. Meu neto, meu neto Júlio
César. Meu… .

A copeira bateu de manhã na porta do meu quarto: café. Não


precisava, eu ia tomar lá embaixo. Ordens de D. Maria Laura Eu
ficava acanhada, ela espiava a mala debaixo da cama, mala
emprestada. Por que eu estendera a cama? A arrumadeira viria fazer
O serviço; ah, estou acostumada. Pensava nas minhas camisolas
remendadas; servia-me um pouco atarantada. A bandeja era de prata,
tudo muito delicado, toalhinha bordada a mão; sim, a mão.

Eu ficava sozinha dando um arranjo “ias roupas, olhando O quarto


do neto; haviam posto flores na jarra em cima da mesa, O guarda-
roupa tinha espelho, tudo fino, bonito. Só em casa de Julinho eu via
essas coisas; êle vencera, conseguira. Eu passava a mão pelos móveis
num gesto de caricia, devagarinho, suavemente. Móveis de rico

Batidas leves na porta, eram as meninas que iam para a praia.


Estavam com dezesseis e quinze anos, Ivone e Lidia. Ivone tinha
traços de Julinho, era morena, corada, alegre; as pernas eram fortes,
rijas, eu ficava constrangida diante da quase nudez das minhas netas.
Elas cruzavam as pernas e ficavam me olhando; eu olhava os retratos
dos artistas. Faziam-me perguntas “Dormiu bem?” “Não estranhou a
cama do Jota César?” “Quer ir à praia?” Andavam pelo quarto
cantarolando, fazendo trejeitos com O corpo. E Julinho?

- Papai? Não sei se já levantou, você sabe, Lídia? Mamãe acorda


às onze.

Onze? Ah, muito bem. Lá fora a voz esganiçada de Júlio César:

- Vocês não vêm?

- Estamos no quarto de vovó… Lola.

101
Êle subia correndo a escada, eu ouvia um tropel dá licença?
Moreno e forte, risonho, um pouco dentuço; sentava-se na beira da
cama, outras perguntas, “Dormiu bem?”

“Gosta do Rio?” “S. Paulo não é cidade bonita, a senhora acha?”


Os dois cachorros entravam atrás dele, baixinhos, compridos, uns
rabos esguios, muito feios. Cheiravam tudo, davam voltas pelo quarto
estranhando minhas coisas, minha mala. Tinham línguas vermelhas e
longas que desenrolavam para fora da boca, depois enrolavam outra
vez. Júlio César dava um soco na bola, os cachorros pulavam para
abocanhá-la, as duas meninas gritavam Vamos então?” Saíam todos
em tropel, os cachorros corriam, uni barulhão na escada, eu ouvia a
voz do neto:

- Uísque-an-soda, por aqui.

Que coisa, Uísque-an-soda, nome estrambótico, nunca

vi.

As manhãs eram longas, eu não tinha com quem conversar, falava


com O jardineiro, a cozinheira; passeava pelo jardim, lia jornais,
sentava-me no terraço, ficava marombando pelos cantos, espiava O
piano na saleta, estava esquecido, ninguém estudava, preferiam ouvir
rádio. Sílvia estudava no piano alugado, desafinado e velho. a Fiz
camaradagem com a cozinheira, visitei a despensa;

latas de todas as qualidades, de todas as marcas nas prateleiras, O


açúcar não está racionado? Não senhora, não faltava nada,
compravam no câmbio negro, tinham tudo.

Latas de. doce, vidros de geléia, eu embasbacava: sim senhora,


não falta nada.

Maria Laura apareceu à hora do almoço, bem vestida e


perfumada, mãos finas como seda. Julinho chegou da cidade; queria
saber como eu passara a noite, descansara da viagem? Durante O
almoço falou nos negócios, a firma progredia, ia longe. As meninas
conversavam, faziam planos, essa tarde não tinham aula, iriam à casa
de Didi.

102
Haveria reunião, pouca gente. O pai chamou a atenção: “Sua avó
chegou ontem, vocês já querem sair?”

Olharam para mim sorrindo. Não, por favor, faço questão, sou eu
que peço para irem à casa de Didi, não quero interromper a vida de
vocês.

Conversava-se depois no terraço, tomava-se O café, todos tinham


projetos para a tarde, para a noite; Julinho vollava para O escritório,
Maria Laura continuava no terraço, bocejava. Fazia esforço para
prestar atenção ao que eu falava, procurava conversar, levava a mão à
boca, outro bocejo. Eu pedia que saísse, continuasse a vida a que
estava habituada, fizesse O favor; eu trouxera costuras para fazer,
vestidinhos para as crianças de Isabel, e outros trabalhos.

Ela se levantava, distendia O corpo, endireitava as pregas da saia,


tinha hora no cabeleireiro, eu não reparasse por ficar lá, ia embora
num passo elástico e rápido.

Absolutamente não reparo. Iriam jantar fora essa noite, estavam


compro-metidos desde a semana passada, não reparasse.
Absolutamente, ora esta. Eu andava pela casa, tudo era silêncio;
sentava-me na cama, tinha sono, preguiça. A copeira trazia café,
conversava, os patrões jogam muito, toda a semana. Diz que a
senhora tem um filho na guerra?

Eu sentia as pálpebras pesadas de sono, que seria? Vadiação.


Pensava na chegada, nas ocupações que todos tinham, nas perguntas
de Julinho. José de quê? Isso me doeu, coitado do Zeca. No
pensamento, marcava O dia da

minha volta.

Os pais de Maria Laura visitaram-me uma tarde.

Seu Raimundo era surdo, baixo e gordo, não tinha pescoço.


Vermelho e suarento, perguntou com voz profunda, passando O lenço
na testa: - Tem tido notícias de seu filho? O que está na América?

Contei que Alfredo me escrevera do Pacífico, estava combatendo


no Pacífico; êle perguntou para a mulher - “Onde fica isso?” Ela não

103
sabia, respondi com voz gritante que ficava muito longe, do outro lado
do mundo.

- Do lado de onde?

Julinho socorreu, explicou, êle se acalmou; depois que


compreendia, ficava satisfeito, sorria e se recolhia de novo ao
isolamento. No meio da conversa tornou a perguntar: - Êle escreve de
vez em quando?

- Há tempo não recebo notícias.

- Quanto tempo?

- Três anos.

- É muito tempo.

- É muito mesmo.

Sacudiu a cabeça sem esperança. Maria Laura começou a falar


sobre vestidos, êle prestou atenção, percebeu O assunto, fêz ar de
pouco caso, recolheu-se de novo, desinteressado.

Perguntei mais tarde:

- Por que não usa aparelho?

- Diz que só quando ficar surdo vai usar, por enquanto ainda pode
ouvir.

As cunhadas de Maria Laura me faziam visitas rápidas de cortesia,


despediam-se com pressa acenando adeusinhos. Julinho declarou um
dia na mesa: - Nunca a firma ganhou tanto como nesta guerra. Que
coisa, pensei, a mesma guerra que mata os filhos das outras mulheres.
E Alfredo? Estava em qualquer parte do Pacífico, lutando. A última
carta: Estou combatendo.

- “Nunca a firma ganhou tanto como nesta guerra”, isto não me


saía da cabeça.

As meninas contavam os desquites das amigas com de, talhes


felizes, Lídia era contra casamento. Ficavam horas na saleta pondo
discos na vitrola, de shorts brancos, sem meias, as pernas sobre
cadeiras em frente, cantarolando. Às vezes discutiam por causa de

104
filmes, brigavam; Ivone ficava amuada dizia para Lídia - você é uma
bestinha, colocava um bonézinho listado de vermelho sobre os
cabelos, ia para a casa da vizinha, sandálias brancas, tóc, tóc, tóc Lídia
continuava a pôr discos e comer bombons; quando O irmão voltava
do colégio, gritava:

- Jota César, venha ouvir O novo disco americano. Júlio César


comparava O saxofone com mugidos de boi, Lídia ria e segurando os
dois joelhos com as mãos, levantava as pernas para O alto e sacudias,
ah, ah ah, boi, imagine! Eu via-lhe as coxas rosadas, ela comia
bombons.

Sem modos. Ivone entrava tarde balançando as cadeiras, ia vestir-


se para O jantar. Lídia me contava em segredo que Ivone estava
namorando um homem muito mais velho, desquitado, jogador e ainda
por cima - pobre. Os pais não queriam, principalmente a mãe, por
isso Ivone andava de mau humor, briguenta por causa do homem.
Falou arregalando os olhos:

- Mas êle é formidável, parece artista de cinema. Alto e loiro. Ela


está louca de paixão, mamãe está des-gos-tosís-si-ma. Disse que nunca
permitirá essa loucura, ela disse

que casa nem que seja para fugir. Imagine que situação de
inferioridade.

Uma noite, depois do jantar, Julinho e Maria Laura ficaram na sala


esperando os companheiros para O jogo, as meninas tinham
programas, iam ao cinema. Julinho examinava os baralhos pedia
cinzeiros, perguntava pelas bebidas, cigarro na boca, preocupado.

- Mamãe, hoje vamos ter jogo.

Sim? Gostam de jogar, não? Muito bem. Nunca joguei, mas deve
ser um passatempo agradável. Êle parecia inquieto, um pouco
nervoso, Maria Laura olhava-o sem nada dizer.

Boa distração O jogo, para quem tem tempo e dinheiro. Julinho


tomava um baralho entre as mãos, fazia como se fosse um leque, as
cartas davam estalos. Carrancudo, cigarro na boca, ia até a porta,
escutava, olhava para Maria Laura, ela olhava para êle. Boa coisa O

105
jogo, distrai, diverte, O tempo passa mais depressa. Jogam, vão aqui,
ali, vida divertida eles levam.

- Mamãe, preferimos que a senhora vá para O quarto ou para a


sala de jantar, assim os amigos ficarão mais à vontade.

- Pois não, quer que eu me retire já? Vou para O quarto, estou
com sono, tenho dormido tão bem aqui. Boa noite.

Os dentes de Maria Laura brilhavam de tão brancos.

- Boa noite, D Lola.

Subi. Ouvi retinir de campainhas, bater de portas de automóvel,


vozes. Pois não, muito natural, os amigos são moços, O que faz uma
velha no meio da mocidade? Não que Julinho se envergonhe de mim,
afinal sou uma velha como outra qualquer, não, nada disso, quem
poderia pensar uma coisa dessa? Mas que destoa, destoa. Depois, êle
teria que me apresentar aqui e ali, seria fastidioso, cacete. Tenho
sempre sono aqui, tenho dormido tanto. Vergonha não, por que êle
teria vergonha de mim? Meus vestidos são muito modestos, minhas
mãos são grossas e cheiram a cebola; desde que cheguei deixaram de
cheirar. Não é nada disso, querem ficar à vontade, é muito justo,
muito natural, são moços.

Mas, também, êle não precisava dizer - vá para seu quarto. Eu ia


mesmo, não era preciso falar. Não sei jogar, não conheço ninguém,
eu não ia ficar, mas para que dizer - vá para seu quarto? Isso me doeu,
vá para seu quarto. Tudo me dói, decerto é por causa da idade. Que
mundo este.

As luvas de boxe estavam inchadas, pareciam balões que


flutuariam logo mais.

Nas tardes de domingo, me levavam a passear de automóvel; os


netos mostravam casas e terrenos pertencentes ao avô, ao pai; riam-
se da minha admiração. Aquele terreno é de Ivone, O outro é de Lídia
para quando se casarem. Mostravam os alvos dentes em risadinhas de
entusiasmo. Os três falavam em dinheiro, em prédios. Na frente do
carro, Julinho guiava e conversava com Maria Laura sobre O jogo da
véspera. Carrancudo, perdera dinheiro.

106
Em casa, os netos me chamavam a atenção para os quadros; este
é de um pintor do século XVII, dizia Lídia.

- Dezoito, corrigia Ivone.

- Papai falou dezessete

- Dezoito.

Ficavam teimando enquanto Júlio César apontava um quadro


pequeno.

- Este custou dez mil cruzeiros.

As meninas achavam caro, um quadrinho daquele tamanhinho.


Júlio César protestava, O que valia era O nome do pintor.

- Como é O nome?

Não sabiam. Mostravam os tapetes, as jarras antigas, a


escrivaninha de esconderijos e gavetas minúsculas do século … Que
século mesmo? Haviam esquecido. E a novidade que

mais se orgulharam de mostrar numa das minhas visitas, foi a


cama que a mãe comprara* num antiquário. A cama de Maria Laura
era grande, funda, complicada, trabalhada em rosas e dourados. Os
netos me chamaram a atenção, apontando O móvel, era de uma
época muito antiga, viera de Roma. Lídia juntou os lábios e apertou-os
fazendo boca pequena para dizer que custara um dinheirão.

- De que época? perguntei.

Titubearam, parece que da Renascença. Não sabiam com certeza,


ficaram pensativos.

- É isso mesmo. Renascença, falou Ivone com firmeza, encerrando


O assunto.

Lídia me mostrou os arabescos dourados, as flores esculpidas.


Rimos dos anjinhos eram quatro muito gordos, barrigudos, faces
redondas, sorridentes, arcados sob O

peso do dossel que se apoiava em quatro colunas Coitadinhos,


deviam estar cansados, há séculos escoravam aquele peso, desde a
Renascença, comentou Júlio César.

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- Dizem que uma princesa italiana tem uma igual. Redobramos de
atenção para a cama igual à da princesa.

Rosinhas e gordos querubins.

Contavam que a mãe ia comprar um tapete chinês autêntico O pai


não queria mas acabaria comprando.

- Quando mamãe quer as coisas… falou Ivone e assobiou.

Quando descemos os quatro, Maria Laura perguntou se eu havia


gostado da cama. Lindíssima, falei.

- Lindíssima e caríssima, comentou Julinho mascando um charuto.

E O quadro novo? Eu já havia visto? Estava na saleta. Era um


quadro pequeno, escuro, representava O vestíbulo de uma casa rica,
onde uma velha estava sentada, inclinada para a frente, e mal se lhe
via O rosto, quase coberto por um chapeuzinho que mais parecia uma
touca; tinha um guarda-chuva junto aos joelhos e apoiava-se com as
duas mãos sobre O cabo, numa atitude inconfundível de espera.

- Bonito vó Lola?

- Muito bonito.

Parece que ela está ali para fazer algum pedido, não parece?

- A velha?

- Deve ser uma dessas importunas que vêm pedir emprego para O
filho, disse Lídia rindo, ah, ah. E a gente tem que receber e ser
importunada por elas, ah, ah.

- Eu sei que custou caro.

Voltavam então a falar de suas preferências, seus pianos; queriam


ter barcos, cavalos, automóveis das melhores marcas, realizar grandes
viagens.

Então eu falava de Sílvia, que ela tocava Beethoven, Villa Lobos, ia


ser pianista, grande pianista. A professora disse que logo ela tocaria
Schumann, músicas de um caderno com O título “Peças Fáceis de
Schumann”. Este compositor escrevera coisas lindas. Tocaria Bach
também, as músicas de Bach eram parecidas com as de tio Damião -

108
Tra-la-la-la? Tri-li-li-li. Olharam incrédulos. É? Não se interessaram.
Saíam quase diariamente, só se reuniam para as refeições; quando
Julinho e Maria Laura iam jantar fora, as duas meninas pediam para ir
ao cinema com a vizinha; O filme era formidável, todas as amigas já
haviam assistido. À meia-noite eu via quando as duas chegavam;
desciam de um automóvel perto da casa; enquanto Lídia entrava,
Ivone continuava no carro conversando com um rapaz. Ficavam em
cochichos durante meia hora, então Lídia assobiava do quarto, já de
camisola, na janela, chamando a irmã. Uma noite, era quase uma
hora, Lídia impaciente gritou: - Você quer que mamãe te pegue, não
é? Uma hora da manhã!

Ivone desceu e, de pé na calçada, continuou a conversar debruçada


para dentro do carro; depois puxou O braço que alguém segurava e
não queria largar. Vi que a beijaram.

Afinal, desvencilhou-se e correu para casa; ouvi as vozes discutirem


no quarto.

Maria Laura me contou, contrariadíssima, O namoro de Ivone; um


rapaz que perdera a fortuna no jogo, sem juízo, boêmio, tinha um
emprego ordinário, quinze anos mais velho que ela, quase pobre. Ao
pronunciar essa palavra, tornou a repetir com ênfase para ficar bem
gravada: - Pobre! Sem vintém. Ela acostumada com a vida que leva,
que é que está pensando? Vão viver de que maneira? Já avisei muitas
vezes Se eu a vir em companhia desse sujeito, faço um escândalo que
vai deixá-los envergonhados diante de toda a gente. Sou capaz de
fazer as piores coisas, ela sabe disso.

Batia O pé; Ivone se encolhia, por que mamãe falava daquele


jeito? Não havia nada, há muito tempo não se encontrava com êle,
não havia mais nada, nada.

Houve jogo numa quinta-feira; as meninas pediram para ir ao


cinema com a vizinha. À meia-noite O automóvel estava na esquina e
Lídia entrou na frente para sondar, tudo em ordem. Ivone ficou
quarenta minutos a se despedir do dono do carro, O busto para dentro
e O resto do corpo, que estava fora, se contorcia, se inclinava, se
encolhia, se virava, voltava para trás, por pouco entrava no automóvel
de novo e os braços pareciam mais compridos, presos no escuro do

109
carro, sempre com as mãos lá dentro, ela puxava, puxava e êle não
queria largar. Até que O assobio fininho de Lídia, três em intervalos
regulares, fiu-fiu-fiu, avisou que estava na hora.

Ivone deu um puxão, parece que O braço ficou dentro do carro,


mas ela correu e entrou em casa.

110
Capítulo VII

111
As meninas liam livros de nomes arrevesados depois

f discutiam com as amigas “problemas do sexo”. E

quando Júlio César se aproximava, calavam-se ou

mandavam-no embora, “isto não é assunto para menino”.

Ivone, muito séria:

- Devia haver uma espécie de casamento experimental para se


conhecer O futuro marido, assim a gente viveria quatro meses com O
noivo, se não desse certo desistiria do casamento.

Deu uma batidinha no boné listado e continuou:

- Como é que se pode viver com um moço sem se conhecer. nada


dele, nem O corpo, nem a alma. Você não sabe se êle tem algum
defeito, ou ferida na perna, ou falta um dedo no pé, ou tem O corpo
manchado. Pode ser que seja diferente em tudo, goste de coisas que
você não gosta, goste de deitar cedo, de ler na cama, de andar de
chinelos, de pôr O pijama para jantar…

Lídia interrompeu com um gritinho:

- Ou não escove os dentes e nem tome banho… Riram e fizeram


caretas; uma das amigas pensou um pouco:

- Eu acho que quatro meses é muito, dois bastariam. - Dois só


gritaram. Então você pode conhecer um homem em dois meses de
convivência?

- Para se conhecer de verdade, é melhor um ano, falou Ivone


atravessando a sala para pôr um disco na vitrola. Em um ano ninguém
pode esconder coisa alguma, nem disfarçar.

De ano em ano a gente troca, até dar certo.

- E como é que dá certo? perguntou Lídia fervendo de curiosidade.


Como é que se sabe quando dá certo?

O saxofone que tocava O fox-trot deu um guincho agudo; Ivone


fêz uns passos de dança, ninguém respondeu à pergunta de Lídia. Ela

112
ficou pensativa, as pernas dependuradas no braço da poltrona.
Escutavam a música, depois falavam em vestidos e jóias.

_ Mamãe disse que para O fim do ano vai me mandar fazer um


vestido de cetim finíssimo, nem que seja para pagar cinco mil
cruzeiros, mas quer coisa boa.

Quanto você pensa que custou aquele meu cor-de-rosa? De baile?


Três mil e cinqüenta cruzeiros, disse Ivone. .

Houve uma pausa. A do vestido de cinco mil cruzeiros

voltava: , . .

_ E vai também me comprar um relogio-pulseira de

ouro e safiras. Será O. meu presente de Natal este ano. Ivone não
queria ser derrotada, lembrou: - Sabe aquele anel de brilhantes e
pérolas que mamãe usa algumas vezes Vai ser meu quando me casar,
ela ja disse

Lídia entrou na conversa, voz enguiçada.

_ E você sabe (cara a cara, para a amiga) e você sabe realmente


quanto está custando esse anel de mamãe que Ivone falou? Mais de
cem mil cruzeiros!

- Muito mais, replicou Ivone num risinho de mofa,

muito mais!

A amiga retrucou com energia:

Por falar em jóias, não sei se vocês se lembram daquela pulseira


que mamãe tem, larga assim toda de brilhantes ela mandou avaliar
outro dia, adivinhem por quanto avaliaram… . .

Ninguém queria saber, ela continuou, triunfante.

Duzentos e cinqüenta mil cruzeiros Imaginem

Uma simples jóia.

_ Mamãe também tem um de brilhantes, vovó deu O ano passado,


disse Lídia inquieta, receando ficar em segundo plano. E as jóias que
vovó tem, que maravilha…

113
- Papai vai comprar um automóvel novo, um Lincoln, falou Ivone
arquejando para ver se conseguia levar vantagem agora, já que
perdera nas jóias. Está na fila há muito tempo, adoro O Lincoln!

- É mesma, gritou Lídia agudamente. Já encomendou, já


encomendou.

- Mas tem. que esperar acabar a guerra, lembrou a amiga.

j - Mas já encomendou, tornou a guinchar Lídia. E

sabe O que êle vai nos dar de presente? Dois cavalos lindos, vamos
andar a cavalo todas as manhãs; estou louca de alegria.

Pulava com as pernas compridas, batia palmas, Ivone exultava, a


amiga retrucou friamente: - Cavalos? Ah, não gosto de andar a cavalo,
não aprecio esse esporte.

Ar de pouco caso. Ivone e Lídia falaram em cavalos puro sangue,


meio sangue, a amiga não se interessou. A outra amiga começou a
discorrer sobre a chácara que possuíam perto de Petrópolis, aquilo
que era chácara, cada vez t mais bonita. O pai iria oferecer uma
grande festa, um ai-moço, serviria apenas champanha; apesar da
guerra, possuíam caixas da mais fina champanha. Convidariam muita
gente, seria um sucesso. Assobiou de leve. Lídia lembrou, impaciente,
a voz mais aguda:

- Vovô vai comprar também uma chácara, não é Ivone? Disse que
nós é que vamos escolher, já vimos três mas não gostamos de
nenhuma, queremos que tenha piscina de azulejos.

- A nossa tem piscina, gritou a amiga.

- A nossa terá piscina, cavalos e um bar. Quero um bar. Quero ura


bar rústico, todo de madeira ao lado da piscina. Vamos nadar e tomar
cocktails…, falou Ivone, ofegante.

E terá guarda-sóis listados à volta, com mesinhas e cadeira de


ferro, triunfou Lídia. Tudo isso vovô vai nos dar. Ficaremos horas
inteiras de maio, bebendo Martinis, depois mergulharemos outra vez…
Vai ser uma delícia. . A amiga interrompeu: Não gosto de Martini,
prefiro Gin tônica com canudinho.

114
Lídia continuou:

- Então você toma Gin tônica, eu prefiro Martini seco O bar vai ter
tudo, cada um beberá O que quiser…

E tomaremos banho de sol no gramado, falou Ivone.


Convidaremos muitos rapazes, depois do banho de sol puí ff… piscina
outra vez. Vai ser formidável.

Lídia passou os braços sob os joelhos, levantou as pernas e


sacudiu-as. Ta-ra-ra-rim… Ta-ra-ra-rim… A amiga sentiu-se derrotada.
Pensou um pouquinho, então contou que quando acabasse a guerra,
iriam aos Estados Unidos, depois à França; O pai já reservara
passagem no primeiro vapor.

Que vapor? gritou Ivone, incrédula

- O primeiro que partir do Brasil depois da guerra…

- Ah, isso é muito vago, cantarolou Ivone e deu uma risadinha


irônica.

Lídia riu agudamente e repetiu:

- Ah, isso é muito vago, va-guís-si-mo. Prefiro a minha chácara


com piscina, bar e Martinis. Para você (apontou para a amiga O braço
comprido) garçon, uma Gin tônica bem gelada com canudinho de
palha, ta-ra-ra-rim.

Sacudiu energicamente as pernas no ar. Ganhara a

batalha.

Falei vagamente em voltar para S. Paulo. Como? E as festas de


aniversário da firma? Fagundes Vaz e Cia. Limitada ia fazer cinqüenta
anos de vida e eu ma embora sem assistir a esse acontecimento? Seu
Raimundo esfregou as mãos gordas, cobertas de pêlos escuros,
perguntando se eu queria partir sem esperar as festas da firma. Ora
essa, ora essa!

Fui ficando. Convidaram-me para almoçar no apartamento deles.


Havia uma sala dando para O mar, muitas pratas pelas paredes, na

115
mesa, nos aparadores: bandejas, açucareiros, jarras. O paliteiro era
uma ave com bico comprido que baixava, abria O bico e tirava O
palito, tudo de prata. E muitos tapetes. Sentime honrada com O
convite. Serviram um cozido à portuguesa com muito azeite, legumes,
carnes cozidas, pedaços fofos de toucinho, tudo bem tenro, de
derreter na boca. À sobremesa serviram trouxinhas de . ovos
deliciosos, amarelinhas, macias. Julinho me fêz tomar

vinho, eu implorava, não pusesse mais vinho no meu copo.


Reclamavam todos: “Ora essa, não gosta do bom vinho português?” E
meu copo estava novamente cheio; eu tornava a beber, era saboroso,
adocicado, um néctar, e há quantos anos eu não bebia vinho! Senti os
olhos úmidos, O coração muito terno, carinhoso. Tornei-me amável,
de uma amabilidade insistente, afetuosa.

Queria saber quando iriam a S. Paulo, queria oferecer-lhes um


almoço, mas um almoço todo especial, feito por mim. Ninguém sabia,
iam raramente mas aceitavam O convite, iriam um dia almoçar em
minha casa. Lembrei-me

então de que não tinha casa, morava em casa do genro, mas

continuei a oferecer, insistindo sobre O almoço. Qual era O prato


predileto de seu Raimundo? E da D. Aninhas? Não queria mais vinho,
obrigada, mas Julinho a teimar, a dizer que O vinho era fraquíssimo,
O bom vinho português; eu não estava habituada, não podia abusar.
Seu Raimundo exclamava: Ora essa, ora essa. E dizia que O

vinho era como água, só fazia bem. Meu coração cada vez mais
carinhoso, como se fosse derreter, meus olhos mais úmidos, uma
vontade de derramar lágrimas, vontade louca de chorar. Seu
Raimundo, com voz muito grossa, perguntou:

- Onde está seu filho? Onde está?

- Combatendo no Pacífico.

- Aonde? Inclinou-se, segurou a orelha.

No Pa-cí-fi-co. Fica muito longe daqui, do outro

Fiz um gesto vago; êle enfiou unia trouxinha de ovos

116
na boca.

- Mas O Pacífico é um oceano, oceano Pacifico Como pode êle


combater num oceano?

Fiquei pensando, depois lembrei e falei aos gritos: ‘- Êle é


marinheiro. Ma-ri-nha.

É O quê?

É da Marinha. Marinheiro.

- Muito bem. Então vamos beber à saúde do marinheiro! Sirva-se


de vinho, sirvam vinho aqui.

Agora eu vou chorar, não posso mais, vou chorar. Mas não devo,
tenho que beber à saúde de Alfredo, quero ver se agüento mais um
pouco. Preciso ficar firme. Firme - Pela volta do marinheiro que está
lutando pela Liberdade. Pela Liberdade!

Virei mais meio copo pela Liberdade. Meu coração transbordava,


me oferecem almoço de luxo, brindam pela volta do meu filho, gente
boa e honesta, creio que vou chorar.

Firme. Firme. Bebemos pela volta de Alfredo por todos da mesa,


pelo almoço, pelo vinho por Alfredo outra vez. Pela Liberdade. Li-ber-
da-de Comecei a analisar, O

que é pela? “Pela… pela… E Liberdade? Cantarolei -Liberda-a-de!


Liberda-a-de! Abre as asas sobre nos!

Virei brinquedo a que dessem corda e a corda desconsertasse;


falei, falei…

Julinho mudou um furo na cinta de couro, esparramou O corpo na


cadeira, abriu as pernas, suspirou Continuei: Liberda-a-de! Liberda-a-
de! Abre as asas sobre nos Naquela meia tontura que senti, vi as flores
da mesa mudarem de côr, a princípio azuis, depois vermelhas, depois
verdes; as confundia com as flores bordadas da toalha.

117
Recitei

As Pombas de Raimundo Correia “Vai-se a primeira pomba


despertada, vai-se outra mais, mais outra, enfim dezenas… de pombas
vão-se do pombal apenas raia sangüínea e fresca a madrugada…”
Atirei miolo de pão na cabeça de Julinho e êle ria, ria e parece que
dizia: “Que tal é O vinho?” Lembrei de um homem chamado Pinduca;
meu pai dizia: Pinduca vive na água. Bebia pinga e vivia na água,
nunca compreendi. Vou chorar, não, não vou. Firme. Olavo Bilac
tinha uns versos que falavam em máscara da face. Por fora estou
rindo, por dentro estou chorando. Cantarolei um trecho do hino da
bandeira, esqueci O resto, Julinho me auxiliou, fomos nos amparando
até O fim e repetimos O estribilho, bateram palmas e eu voltei à
Liberdade: Liberda-a-de! Liberda-a-de!

Abre as asas sobre nós

Das lutas na tempestade..

Marquei compasso com O garfo, como tio Damião. A garrafa de


água ao meu lado ia entortando, eu endireitava e colocava-a de pé
outra vez, ela tornava a entortar, eu tornava a endireitar. Que coisa. O
paliteiro tomou proporções grandiosas, a ave de bico comprido tirava
dois, três palitos de cada vez e oferecia às visitas Seu Raimundo
palitava os dentes com palito de prata, a prata rodava na sala. D.
Aninhas mandou vir café; seu Raimundo trovejou: - Ó Aninhas, não
vem esse café?

Repeti cantarolando: “Ó Aninhas, não vem esse café?” Um, dois,


três, marcando compasso. Esse café, esse café. De vez em quando eu
fixava Julinho, Maria Laura, a D. Aninhas e seu Raimundo para ver se
estavam rindo de mim, me ridicularizando. Não, não estavam,
estavam marcando compasso e cantando. Depois tomaram café e
usaram os palitos de prata. Tudo era de prata. Tomei café em tragos
largos, apressados; olhei Julinho de novo, estaria rindo de mim?

Tornei a convidá-los para O almoço em S. Paulo, seria um prato


diferente, feito por mim. Insisti que marcassem O dia, queria que
fossem logo, no próximo mês. O brinquedo continuava, quebrado, a

118
corda girava, girava. Reco mecei batendo O pé: “Liberda-a-de!
Liberda-a-de!”

Marcaram compasso me acompanhando. Quando, afinal,


levantamos da mesa e fomos para O terraço, meu filho deu uma
pahnadinha amistosa no meu braço: - Então, minha velha, gostou do
vinho? Fechei carranca e fingime zangada: - Por que me fêz beber
tanto? Você é culpado.

Êle riu sacudindo os ombros, charuto na boca, homem

rico.

- Ora essa, a senhora bebeu porque gostou, não sou culpado coisa
nenhuma.

Veio-me então um peso, uma sonolência, uma tristeza e fiquei


murcha num canto, sem vontade de falar nem de fazer convites.
Vontade de emudecer, sair dali, voltar para casa. Quando entrei no
meu quarto uma hora depois, chovia torrencialmente e O vento
dobrava as árvores Aborrecida por ter falado demais, como um
brinquedo desandado, apreensiva pelo filho soldado que combatia pela
Liberdade, sentei-me na cama e esperei a noite cair. Chovia e ventava.

Ivone dizia, sorridente, mostrando um rapaz que passava num


automóvel verde: - Aquele é O Edgard, O que desquitou de Marina
Seixas.

Enquanto falava acenava para O rapaz que correspondia da


mesma maneira; as amigas e Lídia inclinavam-se para vê-lo melhor,
curiosas e irrequietas. Lídia achava-o um colosso Outra vez, trouxeram
para casa uma mocinha de vinte e poucos anos, morena e simpática.
Dias depois, eu ouvi comentários: - Vovó Lola lembra-se de Leda?
Aquela morena que apresentamos à senhora? Divorciou-se O ano
passado, tem dois filhinhos.

Diante do meu espanto, continuaram a falar de Leda e quando


fiquei penalizada, riram com gosto.

- Mas ela já vai casar outra vez, está noiva de um rapaz


corretíssimo.

119
Eu batia a cabeça, como é que todo O mundo aceitava essas coisas
tão naturalmente? Tinha vontade de contar a história de uma parenta
que se separou do marido porque era um homem muito ruim e ela
nunca mais saiu de casa. De desgosto. Mas não conto; haviam de dar
gargalhadas e perguntar: Mas quando isso? Só se foi no tempo de
Adão e Eva. Não conto.

Houve um caso de desquite de um casal conhecido de Julinho


enquanto estive no Rio; deu muito que falar. Todos os dias chegavam
notícias acerca dessa separação; as meninas comentavam O fato,
davam palpites, falavam sobre outros casos, davam opinião, diziam
como é que O casal deveria agir. Era O assunto do dia. Eu tornava a
bater a cabeça, sem compreender.

Julinho chamou minha atenção. Eu pensava que aquilo só


acontecia no Rio de Janeiro? Em toda parte, em toda parte. Respondi
que nunca percebera da maneira como estava agora, tantas
separações seguidas, devia ser próprio das cidades grandes, das
capitais. Riram-se. Julinho falou pausadamente: Mamãe, a senhora
não sabe desses fatos em S. Paulo porque a senhora pertence a outra
camada social e nessa camada onde a senhora vive, há poucos
desquites.

Fêz uma pausa e continuou dizendo que a minha classe era mais
comedida nos divórcios, não porque vivesse em harmonia, mas
porque não tinha dinheiro e um desquite custa caro. A classe deles no
Rio, a classe em que eles viviam era onde havia mais separações,
ninguém suportava nada, era a alta burguesia. Riu-se: - Os ricos, os
burgueses ricos.

Perguntei como se chamava minha classe em S. Paulo,


humildemente.

- O pequeno burguês, a classe média. As D. Genu, as Isabel e


Felício, etc - As D. Lola…, rematei.

Êle riu-se e me abraçou como a desculpar-se. Ri-me também, mas


fiquei magoada. Êle não precisava falar assim com desprezo: A classe
média, as D. Genu, as Isabel.

120
. Fora rude. Para que dizer que somos burgueses pobres? Pequeno
burguês. Para quê? Estou cansada de saber que sou burguesa e pobre,
desde O tempo em que Carlos e Alfredo discutiam na Avenida
Angélica; não precisava dizer as D. Genu, as Isabel e Felício, para
quê? Alguém tem culpa de ser pobre? ‘ Pobreza é como doença,
alguém tem culpa Êle também fora, pertencera à classe média, agora
estava orgulhoso de ser da alta. Grande coisa pertencer à alta
burguesia, grande coisa. Julinho ficou assim orgulhoso depois de rico.
Êle era delicado, atencioso, modesto, simpies, inteligente. Agora até
parece que perdeu a inteligência, quanto ganhou em dinheiro perdeu
em inteligência Imagine, as D. Genu… As Isabel… Para que ofender?
Está gordo, cheio de dinheiro, chamando a gente de pequena
burguesia. Antes pertencer à pequena burguesia sem muito dinheiro e
sem desquites do que pertencer à alta com muito dinheiro e pouca
vergonha. Isso é que eu deveria dizer. Tulinho teve coragem de falar
assim sabendo que D. Genu, é minha amiga. Desaforo. As D. Lola…
Não falou mas pensou. Também, por que fui perguntar Só para ver
como êle respondia, eu conheço muito bem minha camada, minha
classe; desde a Avenida Angélica.

Êle também pertencia a essa camada, a essa pequena burguesia;


agora porque tem uns caraminguás, automóvel, casa, quadros na
parede, tapete no chão, fala assim: Sou da alta burguesia. Alta O que,
já esqueceu que um dia chorou por que não tinha manteiga na mesa?
Dinheiro às vezes é um mal.

Outra noite, ouvi-o contar com entusiasmo:

- O Durval fêz um negócio esplêndido. Foi esperto como O diabo;


imaginem que deu um jeitinho naquele negócio do algodão, distribuiu
umas notas, comprou um, tapeou outro e saiu ganhando um
dinheirão. Rapaz de sorte.

Risadas de Maria Laura, risadas de todos da mesa. Tive vontade de


dizer: “Isso nos outros tempos seria roubo. Hoje quando dizem
tapeação, esperteza, seria roubo no meu tempo.” Não digo nada. Eles
haviam de rir mais e perguntar: Quando? No tempo de Adão e Eva?

Fico quieta e penso que sou demais neste mundo. Não


compreendo muitas coisas, preciso deixar meu lugar para os outros.

121
Em vão procuro entender O que vejo.

Fiquei mais uma semana por causa da festa da firma. Fizeram


vestidos novos, haveria baile que a firma ofereceria aos empregados
da casa. Todos estavam excitados e Júlio César contava os dias que
faltavam.

Certa manhã recebi carta de Sílvia; estava estudando outra música


de Villa Lobos: “Garibaldi foi à missa”. Nós também fomos a uma, na
Candelária, em ação de graças pelo cinqüentenário de Fagundes Vaz e
Cia. Limitada. Ao meio-dia os chefes reuniram-se novamente para O
almoço em casa de Julinho e Maria Laura. O almoço foi demorado,
acompanhado de champanha. Julinho era, agora, um dos principais
chefes de Fagundes Vaz e Cia. Limitada; falava com voz grossa cheia
de autoridade, porém com certa benevolência para os subalternos.
Vendo-o dirigir aquêles homens, alguns mais velhos que êle, não pude
deixar de me sentir orgulhosa. Era O meu Julinho: firme, respeitado,
rico e importante. Tinha um modo de falar diferente:

- Ó Santos, sirva-se de vinho, homem, que está delicioso.

- Você, Trancoso, não repete os frios?

- Ó Amaro, não venha me dizer que não gostou do peixe.

Conversou com todos, fêz discurso: “Se não fossem vocês homens
de critério e bom senso, que seria de Fagundes Vaz e Cia. Limitada?
Eu, um simples trabalhador…”

“Não apoiado!” “Nada poderia realizar sem O auxílio valioso dos


meus sócios e amigos.” Ouviam em silêncio, apoiando-o mudamente
com as cabeças, sim senhor, ou repetindo “não apoiado” quando êle
se fazia modesto. Seu Raimundo esforçava-se por ouvir, inclinava-se,
dobrava a orelha; olhava os outros e sacudia a cabeça. Novos goles de
champanha, palmas, muito bem. As mulheres abanavam-se com
leques, constrangidas, apertadas naquela mesa coberta de iguarias e
bebidas.

Um dos sócios tirou então um papel do bolso, leu outro discurso;


historiou a firma desde O nascimento, lembrou Camões, elogiou seu
Raimundo. D Aninhas comoveu-se, enxugou discretamente os olhos;
O orador continuou, citou antigos nomes de fundadores: “O defunto

122
Cunha Vaz…” Seu Raimundo redobrou de atenção, confirmou, isso
mesmo, muito bem. Novas palmas.

Espalharam-se depois pelo terraço na sonolência da boa digestão,


fumaram charutos, estenderam as pernas, palitaram os dentes,
elogiaram O almoço. Sim senhor, seu Julinho. Batiam-lhe nos
ombros, cochichavam anedotas, sim senhor.

Afinal, foram se retirando, pesados ainda do almoço, acenando até


mais tarde, no baile. Preparamo-nos para a festa às vinte e uma
horas. Maria Laura, apareceu de azul, com diamantes e pérolas, um
decote atrás que ia até a cintura. Ivone e Lídia de vestidos compridos,
brancos vaporosos; estavam lindas. D. Aninhas quando as viu, sus-
.’.> surrou-me ao ouvido:

- São duas açucenas. Veja que galanteza, duas açucenas!

Ivone comentou:

- Vovó Lola com O cabelo puxado assim está sofistiqueited.

Não sei O que quer dizer isso. Será um elogio? Lídia e ela riram-se.
O salão de baile estava cheio; quando entramos bateram palmas e
gritaram: “Viva O senhor Júlio!

Havia lugares especiais reservados para os chefes. Maria Laura


havia me emprestado um vestido prêto, enfeitado de renda e eu não
podia quase andar, com a saia a bater-me nos pés. Sentamo-nos.

A orquestra começou a tocar e os pares foram se espalhando pelo


salão; dançavam uma dança esquisita, que era aquilo? Quase não
andavam, O par ficava, abraçado no meio da sala, de quando em
quando um passo para a frente, outro para trás, um para a frente,
outro para trás, faces coladas uma na outra, sonolentos. Ivone e O
filho de um dos sócios cambaleavam no meio do salão; Lídia com
outro rapazinho fazia O mesmo. Perguntei a Júlio César que era
aquilo, riu-se e respondeu: Blue vovó Lola.

Quando a dança terminou, tornei a perguntar às netas: Isso é


dança? Riram-se muito.

- Que há de ser vovó? - Pensei que era algum jogo.

123
A música era muito lenta, parecia canto de embalar berço, os
músicos tocavam de olhos fechados, os pares não saíam do lugar. Que
coisa. Repetiram aquela esquisitice, Que diferença do meu tempo; a
gente virava, volteava, marchava, dava uns passinhos, uma volta,
outros passinhos, havia animação, ritmo. Agora era aquela malícia,
muito colado, vai - não vai, dança boba.

Vieram rapazes cumprimentar os chefes, senhoras falavam com


Maria Laura, com D. Aninhas, que beleza, a festa está linda De
repente O saxofone deu gemidos lancinantes, ora parecia sapo, ora
boi; a clarineta guinchou, O pistão acompanhou, O trombone fêz
fuen… com toda a força, e O bumbo: tum… . tum. . tum… O salão
parecia ensurdecer com O barulho. Onde estão os violinos? Não havia
nenhum. Ah meu tempo. Um rapaz encaminhou-se para a frente,
segurou O microfone, cantou em inglês, a voz era lúgubre, sinistra. As
netas disseram que era uma beleza. A dança era um sacudir de
corpos, um balanceado de quadris, que é isso agora? É fox-trot, vovó
Lola.

Qual, sinto-me perdida, não entendo esta geração. Outro dia vi no


jornal O. quadro de um pintor célebre; virei O jornal de todos os
lados, procurei, não percebi nada. Chamei Maria Laura, que significa
isto? Ela também nao entendeu, mas disse que era bonito, O pintor
era notável e toda a gente queria ter um quadro dele. Fiquei olhando
aquela mancha do jornal e me lembrei que antigamente apareciam
figuras assim em jornais e uma frase embaixo: Onde está O
coelhinho?” Ou “Onde está O homem a cavalo? Quem acertasse,
recebia um prêmio.

Li dez vezes uma poesia e não descobri sentido algum, perguntei


para as meninas se ali não faltava nada, deve faltar alguma palavra,
estava incompreensível Riram, e assim mesmo. Onde está O ritmo?
Não precisa. E a rima? Não existe.

Agora eu ouvia música: um socava O bumbo, outro dava batidas


aqui e ali, a trompa e O pistão apostavam para ver qual gritava mais,
outro ficava inchado de tanto assoprar outro gemia, outro gania e
miava, todos os animais estavam ali representados Geração estranha.

124
Sou demais no mundo, não compreendo nada, preciso ceder meu
lugar aos outros. No meu tempo… Que tinha eu de falar para as netas
“no meu tempo . Que tinham elas com isso? Cada um tem O seu,
acabou-se Fagundes Vaz e Cia. Limitada divertia-se. Havia bebidas,
mesas de doces, salgados. A orquestra recomeçava, toda a gente se
espalhava, O moço que segurava O microfone cantava languidamente
Júlio César disse que era outro fox-trot; depois a música saltitou,
disseram que era samba. Perguntei se não tocavam valsas. Valsas?
Valsas? Ninguém gosta, dão risada.

De repente toda á gente enlouqueceu; os rapazes jogavam as


moças para trás, davam um giro, puxavam-nas para a frente, outro
giro; tudo muito depressa, muito rápido, mal dava tempo para se
acompanhar aquela maluqueira. Nossa Senhora do Carmo, que é isso
meninas? Nesse instante Ivone saiu de perto de mim, como um
vendaval nos braços de um rapaz; estremeci. Lídia riu e falou um
nome esquisito; perguntei se era assim mesmo, disse que sim,
barbaridade. Mal acabou de falar, desapareceu, um rapaz magrinho de
grande cabeleira arrancou-a com força. Que coisa desesperadora. Às
vezes as moças pareciam ficar sem cabeça de tanto se inclinarem para
trás, voltavam outra vez, a cabeça estava no lugar: giravam, depois O
rapaz largava O par e ia segurar lá adiante, nem sei como não
trocavam. Os músicos riam, Julinho e Maria Laura riam, os sogros
riam, todo O mundo ria. D. Aninhas sacudia a cabeça reprovando e
ria. Divertiam-se enormemente, perguntei outra vez: - Que dança é
essa?

O mesmo nome esquisito. Está certo isso? É assim mesmo? A


clarineta dava guinchos como se estivessem matando um porco, O
saxofone ria ha, ha, ah, ah. O pistão dava urros, O trombone roncava
e O bumbo quase se arrebentava de tanto ser esmurrado. Coisa louca.
Os casaizinhos se atiravam um contra O outro, se apartavam, se
juntavam, rodopiavam; de repente os rapazes atiravam as moças para
O ar, aparavam, jogavam para um lado ou para debaixo das pernas,
tornavam a puxar, a aparar, a segurar Procurei as açucenas, estavam
perdidas no vendaval, levadas pelo tufão. Mas isso é dança? perguntei
pela terceira vez. Pareciam loucos. Será que enlouqueceram? Os que
V não dançavam estavam de lado aplaudindo, rindo, batendo palmas;

125
quanto mais forte eram os arrancos, os puxões, os encontrões, mais
aplaudiam. Onde estão os violinos?

Ah, meu tempo. Cada um tem O seu, ora esta. Toda a gente ria,
era para rir. Isso é dança? Bárbaros. Novo intervalo; respirei aliviada,
a loucura passara. Os rapazes enxugavam os pescoços, as testas, as
moças se abanavam frenéticamente; todos foram beber. Ouvi Ivone
dizer com admiração: - O Carlinhos bebe dez whiskies seguidos e não
tica

tonto. Êle é formidável!

As amigas também admiraram O Carlinhos. Formidavel .


Perguntei quem era O moço; era filho de um dos sócios, estava noivo
pela terceira vez. Os noivados não deram certo Desmanchara dois?
Nada disso. Fora casado duas vezes, tinha um filho da primeira, ia
casar-se com a terceira. Muito bem, perfeitamente.

Veio outra vez a dança mole, ninguém andava; os pares se


abraçavam e os corpos iam para a frente, para trás uma preguiça,
uma moleza como nunca vi. Que dança e essa Blue. Não dançam
valsa Ninguém gosta, dão risadas As netas apoiavam aquela
maluqueira, gostavam de dançar assim, corpos colados, rostos
colados, indolentes, moles Uma hora correm e pulam feito loucos,
jogam as moças pelos ares como se elas fossem de pano,
desengonçados, desarticulados, desajustados, agora é essa preguiça,
essa indolência contraste louco. Geração desgraçada. Soiistiqueited.”

Vamos embora? Despedimonos e saímos depressa, graças a Deus.


Saí tropeçando na saia comprida, ainda com os ouvidos cheios
daquela música de gritos e guinchos Fagundes Vaz e Cia. Limitada
dançou até de madrugada daquele jeito: esperneando, tremelicando,
pulando, atirando O corpo para os lados que nem boneco que a gente
puxa a .

cordinha e eles ficam saltando sem parar. Sou demais neste


mundo, não compreendo coisa alguma.

D Frida surrava Maria Laura três vezes por semana; no silêncio da


casa ouvia-se O ruído seco das tapas. As vezes as mãos de D. Frida
deviam estar meio cerradas, côncavas, porque O som era rouco,

126
como que fechado a surradevia ser no dorso; às vezes O som era
aberto e forte tla-tla-tla, provavelmente nas nádegas. Dava palmadas
seguidas e rápidas depois lentas como se contasse: tlá-tlá-tlá para
finalizar desse lado. Quando não se ouvia barulho de tapas, era a voz
estridente de D. Frida falando alto. Era a hora dos apertões, dos
beliscões, como se fizesse massa de pão. Esticada na cama, coberta
com um lençol de linho, Maria Laura apanhava em silêncio, só a voz
de D. Frida perturbava a quietude. Era uma alemã robusta e sardenta,
cabelos côr de cobre, suarenta, com mãos grandes, quase brutais.

- Eu digo para a senhora que O mundo está ficando cada vez mais
ruim. Cada vez pior. Essa guerra só pode trazer desgraças.

- Hum, fêz Maria Laura rebolando-se como gata satisfeita.

D. Frida apertava-lhe agora a barriga.

- A senhora vai ver, nunca mais haverá paz; será uma guerra
depois da outra.

Tlá! A bofetada ressoou, Maria Laura falou qualquer coisa, a frase


saiu entrecortada por causa dos apertões na barriga. A voz da alemã
trovejou: - Respire! Outra vez. Outra vez. Pausa.

- Pode virar agora. Eu não gosto de Hitler.

As solas dos pés eram espremidas com força, D. Frida devia estar
suando, os cabelinhos pregados na nuca, na testa.

- Não gosto daquele homem. Acho que êle é um sádico. Manda


matar tanta gente…

- Hum, repetiu a gata. Falou com voz abafada, como se a


estivessem estrangulando.

- A outra faça O favor. Assim está bem, muito bem. Não gosto de
tiranos, acho que êle é um tirano, a senhora não acha?

Não veio resposta. D. Frida continuou:

Já sé foi O tempo era que O povo agüentava os tiranos. Eles


mandavam distribuir vinho e abrir circo quando havia muitos
descontentes, pronto, O povo ficava alegre outra vez, esquecia
sofrimento, fome, tudo. Palmadinhas, beliscões.

127
Agora está diferente, nem que Hitler mande dar vinho e festas
depois desta guerra, ninguém ficará contente. Tudo mudou, madame,
O mundo está mudando sempre, as gentes também.

Apertões. Deitada de bruço, olhos semicerrados de animal


satisfeito, Maria Laura concordava enquanto D. Frida amassava suas
costas morenas e nuas. Vinha do jardim eco das vozes de vários
meninos brincando. Júlio César e os amigos voltavam juntos do
colégio. Um deles, devia ser O vizinho, distribuía papéis.

- Você é Aramis, Carlinhos é Porthos você é Athos, eu sou


D’Artagnan. Chego e venço todos.

Athos perguntou porque D’Artagnan escolhia sempre os melhores


papéis, não era justo; começou a dar pontapés nas pedrinhas do
jardim. D’Artagnan encolheu os ombros, era O mais velho, ora esta e
tivera a idéia.

Atirando os livros numa cadeira do terraço Júlio César propôs:

- E se brincássemos de Tarzan?

Os outros não aprovaram e depois de confabularem entre si,


resolveram continuar brincando de mosqueteiros, D. Frida passou pela
copa e tomou café, não podia passar sem O cafezinho brasileiro;
perguntou-me se eu estava gostando da temporada, olhou O relógio
mais de uma vez e disse que ia agora para Copacabana, tinha que
fazer massagens numa senhora que pesava noventa quilos. Repetiu:

- É bastante noventa quilos. Puxa.

Despediu-se e passou pelo jardim onde os mosqueteiros


conspiravam.

Era sábado. Em S. Paulo àquela hora, tio Damião sentado na


cozinha, contava a Isabel a história de Maria Isabel Traga Malhas, a
barregã d’el rei D. João IV. E enquanto nossa Isabel escolhia
pacatamente O arroz para O almoço, tio Damião de pé, em mangas
de camisa, a barriga saliente acima do cós das calças, fazia desfilar
diante dela os amores dos reis portugueses. Enumerava nos dedos:
Temos a Terçsa Martins, amante de D. Diniz, a Maria Manuel, amante
do rei D. Duarte, a Isabel Moniz, amante de D. João III, a Maria Pais,

128
de Sancho II, Ana de Mendonça, de D. João IL E lá disse O grande
Camões, justificando O amor de D. Fernando por Leonor Teles:

“Mas quem pode livrar-se porventura,

Dos laços que Amor arma brandamente?”

Haveria uma pausa na cozinha enquanto Isabel escolhia


docemente as folhas de alface para a salada. A voz de tio Damião
cresceria no silêncio: - E que monta ser rei, quando se é frágil como
qualquer homem?”

Ninguém responderia a pergunta de D. João IV e Isabel estaria


cansada de ouvir falar nos amores dos reis porque quando tio Damião
principiava O assunto, ninguém O fazia calar; até eu sabia de cor
esses amores e a paixão d’el rei pela Traga Malhas. Tio Damião
haveria também de cansar-se e terminaria declarando: “Camilo!
Camilo!”

Como a pedir socorro.

Maria Laura ainda não descera para O almoço, seu Raimundo


chegou:

- Aquela preguiçosa teve massagem hoje? Ainda não desceu?

Êle gostava de falar para não ter que ouvir. Ivone e Lídia beijaram
O avô; vieram da praia e ali mesmo na saleta enquanto perguntavam -
como vai vovô? - foram desabotoando as saias de flores berrantes e
ficando só de roupa de banho, as pernas muito fortes e morenas
terminando em sandálias abertas. Falavam juntas perguntando se
estavam atrasadas, onde estava mamãe, teriam tempo de tomar um
banho de chuveiro? Subiram as escadas correndo, as saias multicores
sacudidas no ar como bandeiras desfraldadas. Seu Raimundo achou
assunto: - No meu tempo de rapaz seria um escândalo andarem assim.
Pior que escândalo, seria degradante, sem palavras para definir. Eu me
lembro…

Fêz comparações, divagou largamente. Seu rosto avermelhado era


plácido quando conversava, mas sua boca entortava do lado esquerdo
quando ficava zangado ou emocionado, assim como O olho que desse
lado estava sempre fechado e parado. Os bigodes brancos eram

129
aparados com cuidado e no alto da cabeça alguns fios, também
brancos, estavam sempre esvoaçando. Completara 68 anos, gabava-
se da saúde e do bom apetite. Uma ou duas vezes por semana,
principalmente aos sábados, almoçava em casa de Julinho, e Maria
Laura mandava então fazer pratos especiais para agradar O pai. Êle
esfregava as mãos grossas e polpudas ao perguntar quando iam pára
a mesa, na esperança de encontrar os quitutes prediletos.

Sua grossa mão me apontou:

- Qual é O jogo que a sociedade mais aprecia hoje em dia? O pif-


paf. E O buraco? É O jogo mais corriqueiro e fácil que existe. Que
significa? Significa a futilidade da época. Ninguém quer pensar,
ninguém quer se esforçar. Antigamente os jogos requeriam
inteligência, intelecto, pensamento; jogava-se para se distrair, mas os
jogos puxavam pela idéia. Mesmo O bridge era jogo inteligente.
Época infeliz esta. Eu já disse a Maria Laura, infelizmente ela e a
família não fogem à regra. Tudo é futilidade.

Repetiu abanando a mão:

- Futilidade! As moças não se dão respeito, andam nas cidades


com vestidos inconvenientes e, na praias, quase sem roupa. A graça
do nosso tempo, D. Lola, era a graça da modéstia, da pudicícia e da
inocência. Os rapazes respeitavam as moças como respeitavam a
própria mãe, hoje abanam a mão e dizem: “Alô isto ou aquilo” como
se todas fossem iguais. As jovens eram pudicas e dançavam com
distinção. E hoje?

Estendeu O beiço com desprezo, O olho esquerdo mui to fixo


como se fosse de vidro: - Hoje é O que se vê. Completa falta de
respeito e completa liberdade, não vê nossas netas? Decadência
social. Por isso surgem idéias extremistas todos os dias entre a
juventude, procuram se estender, se infiltrar e não há melhor ocasião
para lançarem a semente A decadência de costumes é a melhor
oportunidade para que germinem as idéias nocivas. Pergunto a mim
mesmo: A colheita será promissora?

Fêz uma pausa è eu quis dizer alguma coisa sobre religião, êle não
me ouviu: - Sabe qual é a divisa desta geração? “Eu não ligo.” Se um é

130
reprovado nos exames e fica por acaso aborrecido, vem a frase-
consolação da mocidade de agora: “Não ligue.” Ou “Eu, se fosse você
não ligava.” Não há a responsabilidade que havia, mesmo entre a
juventude de antigamente; hoje ninguém é responsável por coisa
alguma.

Outro dia um jovem estava guiando um automóvel, fêz uma


manobra mal feita, amassou O pára-lama do carro vizinho, disse
rindo: “Eu já sabia que ia bater.” E foi embora sem dar a menor
importância ao caso. .

Maria Laura apareceu na saleta, Julinho chegou para O almoço.


Minha nora estava bem vestida e alegre, retemperada pela massagem
e pelo banho prolongado. Dirigimo-nos à sala de jantar enquanto
Julinho reclamava a presença das filhas que estavam sempre atrasadas
e eu pensava em Isabel. Ela, os filhos e tio Damião estariam
almoçando na cozinha; cansada, com olheiras, Isabel daria mingau a
Lena; tio Damião falaria de João Bernardo Traga Malhas e as crianças
ouviriam atentamente.

Meu pensamento voltou ao Rio com a frase alvissareira de seu


Raimundo ao ver na mesa a terrina onde O vatapá fumegava. O
cheiro das especiarias se evolava com a fumaça.

- Por acaso temos hoje O festim de Baltazar?

Marquei a viagem de volta. Recebi roupas velhas para os filhos de


Isabel; soquei na mala, apertei. O jantar da véspera foi mais tarde,
Julinho chegou atrasado; no centro da mesa havia margaridas brancas
muito bonitas. Maria Laura e Julinho tinham jogo marcado para essa
noite Ivone continuaria a namorar O moço que os pais não queriam, a
vida continuaria a correr.

- Com margaridas também a gente pode dizer - mal me quer, bem


me quer, falou Lídia.

- Só agora que descobriu isso? perguntou Ivone. Lídia despetalou a


flor. Eu não tinha apetite, pensava na viagem do dia seguinte e
naquelas criaturas que eu amava e deixaria novamente e por quanto
tempo? Quantos meses passariam sem que os visse de novo? Anos
talvez? Falaram sobre vários assuntos, lembraram as festas da firma, e

131
a conversa caiu logo, desinteressante. De repente Julinho me encarou
e fêz uma pergunta, foi como se ela me ficasse gravada na fronte: -
Mamãe já foi à sede da Cruz Vermelha pedir notícias de Alfredo?

Fiquei atarantada; olhei Julinho, pedir notícias? Êle tornou a falar,


depois explicou que a Cruz Vermelha passava telegramas para O
estrangeiro, pedia notícias de pessoas, de soldados, as respostas
vinham logo dizendo isto ou aquilo.. Engasguei e Júlio César me
aconselhou a tomar um pouco de água.

Maria Laura citou O caso de uma amiga que havia pedido notícias
e havia conseguido, os parentes estavam em Viena. Com esta guerra?
Com esta guerra. Olhei as margaridas, olhei os netos, esperei.

- Vá à Cruz Vermelha em S. Paulo, peça para eles passarem um


telegrama, quem sabe receberá alguma notícia? É melhor saber a
verdade nem que seja ruim do que viver sem saber nada.

- Telegrama?

- Sim, telegrama.

Perguntei O endereço da Cruz Vermelha, ninguém sabia, qualquer


pessoa me ensinaria em S. Paulo. Muito bem. Não pude dormir; ouvia
a música do rádio que ouvira durante O jantar. “Consolatrix
Afflictorum - Ora pro nobis.” Abri O “Caminho Reto” e li a “Oração
Eficaz”. Por que não disseram isso antes? Notícias de Alfredo.
Notícias.

. . Antes saber a verdade nem que seja ruim… “Virgo


Prudentissima - Ora pro nobis.” Recitei a ladainha, por que não me
disseram antes?

Julinho acordou cedo, tonto de sono, me acompanhou à estação


pedi desculpas, não precisava, que maçada. Júlio César beijou minha
mão, prometeu passar umas férias comigo. Antes do trem se pôr em
movimento, Julinho bocejou, enfiou a mão no bolso para me dar
dinheiro para a viagem, esquecera a carteira em casa; não faz mal,
obrigada por tudo. Quando vai a S. Paulo? Sacudiu a mão, breve teria
negócios lá, qualquer dia aparecia, boa viagem, boa viagem. O trem
deslizou mansamente, meus olhos ficaram úmidos, até breve, meu
filho, adeus. O trem repetiu: negócios, negócios. Quando parava e

132
recomeçava, mudava de tom: Cruz Vermelha. Cruz Vermelha.
Lembrei-me das canchas, da bola de futebol flutuando, as luvas de
boxe como que inchadas, os retratos das lutas, dos animais, dos
artistas nas paredes do quarto. Lá ficavam todos; e O trem a repetir:
negócios, negócios. Cruz Vermelha. Cruz Vermelha.

Durante a longa viagem, pensei. Felício às vezes falava sobre


democracia e luta de classes; citava fatos, contava histórias,
comentava. Vinda do mundo rico que eu deixará e caminhando para
O meu mundo, O da luta e do trabalho, O do pequeno burguês, eu
pensava em Felício e nas palavras dele. A classe média a que eu
pertencia era muito mais numerosa que a rica; assim em toda a parte.
Êle dizia levantando O dedo indicador como se falasse para O mundo:
- A classe pobre engulirá a rica.

Por quê? De que maneira Comparando agora as duas classes que


existiam na minha família, comecei a compreender vagamente. Os
filhos de Julinho eram ricos e talvez fossem um dia riquíssimos;
falavam em dinheiro e Túlio César dizia que queria continuar O
negócio do pai para ganhar dinheiro. Êle não se importava com
estudos, só queria dinheiro.

Os filhos de Isabel não pensavam em fortunas, talvez porque


pressentissem que seria muito difícil enriquecer; Sílvia queria ser
pianista, Carlos um grande médico, Eduardo engenheiro-arquiteto. Os
filhos de Olga e Zeca que também pertenciam à pequena burguesia
queriam estudar para continuar com a farmácia do pai A classe pobre
se esforçava para vencer pela inteligência e pelo saber; mesmo que
nunca fossem ricos, teriam saber E O saber preencheria as lacunas. A
classe rica queria apenas continuar rica e dormir sobre os lucros do
avo ou do pai; não queria se esforçar, não queria estudar não queria
vencer. Bastava esse quadro, os filhos do pobre e os filhos do rico,
para compreender as frases de Felício e delinear O futuro: nas
ciências, nas artes, na política, em tudo os pobres venceriam os ricos
porque aqueles redobrariam os esforços e alcançariam O cume, a
estes sobraria apenas O dinheiro. Em todas as partes do mundo
acontece O mesmo. Elogiei uma vez umas crianças fortes e bonitas, a
mãe me disse:

133
- A senhora conhece essas laranjas grandes, de aspecto bonito,
ocas por dentro? Enganam a gente; a casca é grossa O miolo tem a
grossura de um dedo e a laranja esta mirradinha lá no fundo, seca e
sem suco. Assim são meus filhos Grandes, fortes e bonitos por fora,
mas não sabem nada, não estudam, não querem aprender, são
completamente vazios. Eu preferia que exteriormente nao tossem tão
belos, não tivessem tanta aparência como as laranjas bonitas, mas
tivessem suco, fossem menos vazios.

Os filhos de Julinho são como as laranjas que enganam, belos e


ocos; os de Isabel não são tão bonitos mas têm suco. As laranjas
pequenas e mirradas vencerão as de bela aparência? Estas perderão
no jogo da vida e terão O dinheiro como consolo.

A democracia é uma grande coisa. A Carmela verdureira que tinha


venda na esquina, andava de chinelos e vendia repolhos, está rica,
mora numa bela casa, usa vestidos de seda e automóvel. A
democracia fêz Julinho comprar casa, ter automóvel, ser servido à
francesa. Torta de frango: troca prato. Bife com batatas: troca prato.
Queijo: troca prato. Fruta… Lavar os dedos em pétalas de rosas.
Todos falam em democracia. Alfredo, quando foi para a guerra,
escreveu que ia lutar pela democracia.

O chefe do trem pediu meu bilhete. E as rodas continuaram


monótonas, birrentas, obstinadas, a me atormentar: Cruz Vermelha
Cruz Vermelha.

Abri O “Caminho Reto”: Para ganhar as indulgências, os que


rezarem O triságio. Pelos séculos dos séculos. Aleluia.

134
Capítulo VIII

135
Silvia pediu para reunir as colegas no dia do seu aniversário. O pai
deu consentimento e lembrou que era preciso poupar O açúcar, os
ovos, tudo tão caro. Haveria um bolo grande chamado de areia,
sanduíches variados, pastéizinhos de tomate e queijo. E balas, muitas
balas. Sílvia ficou nervosa, pela primeira vez receberia amiguinhas em
casa, colocou flores nas jarras. Fiz balas de chocolate, de café, de
coco. Isabel começou a estender a toalha bordada na mesa da sala de
jantar, pôs os pratinhos, quantas colegas viriam? Sílvia com os olhos
brilhantes afobada, impaciente de aflição, respondeu dez, dez colegas.
Eduardo e Carlos enceraram toda a casa, terminaram a limpeza do
jardim, espremeram limões, tudo quase pronto. O dia estava bonito,
um domingo dourado de sol muito claro, cintilante.

Os pastéizinhos estavam num prato sobre a mesa da cozinha,


ainda quentes; Sílvia passou, não resistiu, tirou um e começou a
saborear; foi quando Felício viu e avançou, irritado:

- Por que veio comer pastéis? Não vê que estão prontos para ir
para a mesa? Não pode esperar? Você é gulosa, menina sem
educação.

- Mas eu tirei um só, papai, queria ver se estavam bons…

Êle começou aos gritos:

- Não se pode fazer nada nesta casa, as crianças estragam tudo,


nunca vi gente mais esfaimada, não se tem pra zer em fazer nada,
querem comer antes da hora. Menina sem educação…

Ela estava tremendo, procurando explicar:

- Foi um só. Não comi mais que um, tirei para experimentar,
papai, só para experimentar.

- Para experimentar? Você parece sempre esfaimada, tem olhos de


quem tem sempre fome e eu gasto todo meu ordenado em comprar
alimentos para vocês. Não sei O que suas colegas hão de pensar,
parece que está faminta. Fa-min-ta.

136
Enrolando as últimas balas, expliquei que aquilo não tinha
importância, que falta fazia um pastel? Havia um prato cheio. Êle
irritou-se mais; com todo O racionamento que havia, a menina vinha
comer antes das visitas, por isso não havia O que chegasse naquela
casa, era um gasto extraordinário; uma falta de ordem, de educação,
de tudo. Não havia quem controlasse desse ordem, tudo na casa era
isso - desorganização. Crianças comiam antes da hora, não falava
respeito era preciso ordem, ORDEM.

Veio Isabel, mas Felício… Zangou-se com todos, foi para O quarto,
bateu a porta.

Num canto Sílvia soluçava, inconsolável, repetindo: “Eu tirei só


um, só um pastelzinho.” Carlos entrou com um ramo de rosas para O
centro da mesa, mas Sílvia continuou a chorar, não queria mais festa
de aniversário; pediu aos irmãos que fossem avisar, telefonar às
colegas, dissessem que ela estava doente, não haveria mesa de doces.

Isabel aconselhou conciliadora:

- Mas minha filha, seu pai é assim mesmo, deixe que venham as
colegas, as velinhas já estão no bolo., vamos festejar.

Em grandes soluços, pediu que por favor fossem telefonar, por


favor; deu a lista dos telefones das colegas tossem falar por favor,
repetiu os nomes: Luísa, Maria Helena, Teresinha, Heloísa… Os
meninos esperaram com a lista na mão; Isabel me pediu para falar,
em vão. Chorou sem consolo, inabalável na resolução: não, não, não.
Enumerou outros nomes:

- Edite, Lour-di-nha, Lú-cia…

Eduardo e Carlos saíram ninguém veio, não houve mesa de doces,


nem alegria de aniversário. As velas foram retiradas e uma por uma
guardadas na caixinha; vagarosamente Isabel recolheu os pratos,
dobrou a toalha bordada, os enfeites da mesa que Sílvia mesmo
escolhera e tivera tanto gosto em espalhar nos lugares determinados:
“Este é para Maria Helena, este é para Teresinha…” desapareceram,
as rosas principiaram a murchar e O bolo ficou esquecido. Ninguém
falou, ninguém riu; O silêncio reinou.

137
Eram vinte e duas horas e meia quando Felício saiu do quarto e
perguntou pela festa: - As amiguinhas de Sílvia já foram embora? Está
tudo tão quieto…

Isabel explicou, não houve nada, Sílvia chorou muito, foi dormir
cedo, as amigas não vieram. Por quê? Por que não se festejava O
aniversário de Sílvia? Onde ela está? Dormindo?

A voz ressoou na casa:

- Sílvia, venha cá

Ela continuou fingindo, mas êle entrou no quarto, tirou a menina


da cama, que é isso? Por que não quis festa? Vamos para a mesa.
Vamos. Ela procurou segurar-se no colchão, firmar, êle insistiu, não
senhora, vamos para a mesa. A vozinha dela era trêmula: - Obrigada,
papai, agora estou com sono…

Êle não quis ouvir, puxou-a para fora da cama e gritou forte:

- Isabel, estenda a mesa, ponha O bolo, as velinhas, vamos fazer a


saúde da aniversariante. Onde estão os meninos? D. Lola, vamos para
a mesa, vamos todos…

De pijama, as duas trancinhas soltas nas costas, em completo


desalento, Sílvia apareceu pela mão do pai que fingia um riso forte e
ruidoso. Venham todos, D. Lola, faça

O favor… Onde estão os meninos? E Lena? Obedientemente


Isabel estendia a mesa e com O dedo nos lábios, pediu que não falasse
alto, Lena estava dormindo, os meninos também. Deixasse-os dormir,
os meninos tinham muitas lições para O dia seguinte. E nesse
instante, enquanto falava, colocava os enfeites na mesa O da
Lourdinha, a casinha de boneca de Edite, a gaiola com canarinhos de
Lúcia… O grande pinto amarelo que saía do ôvo com penugem macia
e bico vermelho de Luísa. Perguntou se era assim mesmo; Sílvia
confirmou com a cabeça.

Colocamos os pratos, os copos, os sanduíches, os pastéizinhos,


tudo foi arrumado novamente como se os convidados estivessem para
chegar. Cabisbaixas e tristonhas sentamo-nos à volta: Isabel, Sílvia e
eu. Tomamos refresco, fingimos alegria, mentimos. Felício tirou as

138
velas da caixa, colocou-as no bolo com todo cuidado, olhava Sílvia, ria
e repetia:

- Você será capaz de apagar todas de uma só vez? Quero ver.

Na cabeceira da mesa, Sílvia olhava os preparativos, percorria com


os olhos os enfeites, suspirava e não queria comer. Felício ordenava,
por que não come? Então tornávamos a fingir, mastigávamos
enquanto êle servia limonada, tomava cerveja em copos grandes,
oferecia sanduíches e pastéis. Acariciava a mãozinha da menina: -
Você está mocinha. Como poderíamos deixar de beber à saúde da
pianista? Aqui esiá uma grande pianista. Então O dia há de terminar
assim, sem festa?

Ria, oferecia balas, por que não comem? Fêz Sílvia tomar refresco,
comer pastéis, ela não queria, teve que comer e beber. Estava
engasgada, os olhos vermelhos, empurrava pedaços de pastéis na
boca, ficava mastigando com vontade de chorar. A cena era tristíssima
assim à luz fraca da lâmpada da sala, os enfeites da mesa como que
abandonados, a menina lacrimosa e aquele fingimento, aquela alegria
falsa bailando nas sombras.

Êle acendeu as velas do bolo, quero ver se a pianista vai “-pagar


todas de uma só vez; ria e falava como se estivesse sozinho.

- Assopre, filhinha, são vinte e três horas e trinta e cinco minutos,


assopre com força, apague todas de uma vez.

Tristemente a menina assoprou e os outros bateram palmas. Viva


Silvinha! Os outros responderam todos juntos: Viva! Êle cortou fatias
de bolo, serviu: come. Ela não queria, ninguém queria, sacudiam a
cabeça: obrigada, obrigada. Tem que comer, nem que seja um
pouquinho, um pedacinho. Então comiam, engasgavam, ficavam com
olhos vermelhos, enguliam. Era como se a gente engulisse papel, não
tinha gosto. Com soluços na garganta, a aniversariante mastigava, a
boca seca, gosto de papel. A luz continuava a iluminar fracamente, os
cantos estavam eseuros e sinistros, as rosas murchas, O bolo desfeito,
os enfeites esquecidos, mas todos continuavam a obedecer: sim, não.
E sacudiam as cabeças: sim, não.

139
E se êle ordenasse: agora dancem. Dançariam. E se êle dissesse:
agora chorem. Chorariam.

Enquanto eu costurava ou lidava na cozinha, pensava em que dia


iria procurar O escritório da Cruz Vermelha, Sei que êle está
combatendo no Pacífico, dizem que aqui os senhores podem dar
informações, podem fazer esse obséquio? E se perguntarem: êle está
no exército ou na marinha? Isso eu não sei muito bem, façam O favor
de indagar, sim?

Hoje eu vou, pensei uma madrugada. Saí de casa, caminhei, tomei


O ônibus, fui à cidade. Como hei de saber O endereço? A quem
perguntar? Essa idéia me atormentava.

Perambulei pelo Largo da Sé; havia grande movimento àquela


hora, olhei O relógio do largo, oito e quarenta minutos. As pessoas
que passavam tinham pressa, andavam rapidamente, entravam nas
casas comerciais, outros esperavam condução, compravam jornais
ficavam lendo ali mesmo nas esquinas, na beira da calçada. Notícias
da guerra A quem hei de perguntar? Não queria esse segredo
guardava-o avaramente no meu peito.

Era preciso escolher a pessoa a quem falar, confiar O segredo. A


senhora vai saber notícias de seu filho? Acho muito difícil a Cruz
Vermelha informar. Enfim Era preciso saber, perguntar, mas a quem?
Vi uma senhora de preto comprando frutas, tinha um rosto simpático,
sereno Perguntarei a ela. A senhora pode me informar O

endereço da Cruz Vermelha? E se ela não soubesse? Pode fazer O


favor de me informar etc, etc. Fiquei esperando, ela terminou a
compra, abriu a bolsa, tirou O dinheiro, pagou E agora. Esperou O
troco, também esperei ali do lado recebeu as moedinhas, guardou-as
na bolsa. É agora ‘ Fiz menção de tocar-lhe O braço, ela voltou-se
rapidamente e saiu depressa para tomar O ônibus. Fiquei imóvel
observando-a.

- A senhora?

Olhei as frutas, indecisa. Era preciso comprar alguma coisa,


perdera uma grande oportunidade. Quanto cus ta a maçã? O ônibus
partiu. Três cruzeiros. Muito caro; O homem não respondeu. Comprei

140
uma maçã para Lena. A quem perguntar? Ao fruteiro? Embrulhou a
fruta com pouco caso. E se eu perguntasse? O senhor pode me
informar etc, etc? Êle deu um grito e chamou O jornaleiro que ia
passando, começaram a conversar sobre a Itália Viu as notícias?
Falaram em bombas, no frio, na neve Fui indo devagar, a maçã entre
os dedos; passei por um café parei. Rapazes e velhos, senhores e
mocinhos tomavam café, apressados. A quem perguntar Ao dono?
Havia um senhor gordo em mangas de camisa atrás da caixa,
empregados lavavam xícaras, serviam pãezinhos; um menino varria O
chão onde havia tocos de cigarros, papel, sujeira. Fiquei parada
olhando uma vitrina com empadinhas; uma lampadazinha brilhava
frouxamente aquecendo os comestíveis Pensam que eu estou com
fome; não, não estou, quero apenas um endereço.

Por que tanta cerimônia por causa de um endereço? Não podia


entrar e perguntar para qualquer daquelas pessoas Se uma não
soubesse, outra saberia, indagaria. E depois?

Respirei fundamente; não seria melhor continuar ignorando? Sem


querer saber? E se as notícias… Não, era preciso perguntar.
Perguntaria ao homem da caixa, não podia continuar a viver no
escuro. Tinha que saber. Pode fazer O favor de informar? Entrei no
café, fiquei parada perto do balcão, O moço inclinou-se diante de
mim, esperando.

- Um café faça O favor?

Senti-o amargo, era como a dúvida que eu tinha era mente. Que
fazer? Amargura. Caminhei pelo Largo da Sé sempre indecisa. Não
seria melhor viver ignorando? Não poderia estar procurando minha
desgraça? Passei lentamente pela Rua Direita, parei diante de cada
vitrina, me interessei pelos mínimos objetos querendo esquecer O que
tinha na cabeça. Será seda? Quanto custara O metro? Continuei a
andar, deram-me encontrões, quanta gente na cidade a essa hora.
Desci a Rua S. Bento; fui descendo, olhando, não estaria procurando
minha desgraça Não seria melhor viver como vivera até então? No
escuro? Pode fazer O favor de informar etc, etc? E depois? Esse futuro
vinha carregado de incertezas, de dores, quem sabe de luto. Era tão
bom como tinha vivido até agora. Como vai seu filho Alfredo?

141
Ultimamente não tenho recebido noticias, mas creio que vai bem A
última carta que recebi dizia Sue estava bem. Aonde? No Pacífico. Ah!
Era tão bom viver sem saber, sem procurar. Perguntavam baixinho
como se êle tivesse morrido: Tem tido noticias de Alfredo? A última
carta dizia que ia bem, combatendo pela democracia pela liberdade.
Combatendo para melhorar O mundo.

Ah! Se tivesse alguma coisa, eles avisariam a senhora, as notícias


ruins correm depressa É verdade. A inversa terminava assim e eu ia
embora satisfeita, aliviada, ele ia bem tudo ia bem Não seria melhor
continuar ignorando E ç viesse alguma notícia dessas que arrasam, que
destróem Senti um arrepio, entrei na primeira porta, era uma loja de
fazendas. Dirigi-me a moça da caixa, resoluta e fiz a pergunta
olhando-a nos olhos, voz forte: - A senhora pode fazer O favor de
informar O endereço da Cruz Vermelha?

Ninguém sabia na loja; outras pessoas foram interrogadas,


ninguém sabia. O endereço da Cruz Vermelha? O escritório? Sim
senhora Repetiram as perguntas, uma olhava para a outra, sacudindo
a cabeça, não sabiam. Sorri para a caixa, contente; era como se me
tivessem tirado um peso muito agradecida. Não sabe? Aliviada, mil
agradecimentos.

Que bom, ela não sabe, ninguém sabe; fiz O que pude, não
consegui descobrir. Me aconselharam a procurar na lista telefônica,
sorri outra vez, estava livre daquilo, não tinha lista telefônica, muito
obrigada.

A mão da caixa apareceu com a lista, encostou no meu rosto. A


senhora quer procurar? Meu coração deu um salto, Nossa Senhora do
Carmo, tenho que procurar. Vou fingir depois digo que não encontrei;
tomei a lista, coloquei-a sobre O balcão, abri a bolsa, tirei os óculos.
Vou fingir que procuro, não quero saber. Quem disse que eu quero?
Folhei vagarosamente, procurei, li números, nomes: Afonseca,
Afrodísio, Agência, Agentes Agro, Agro-lo-sa, Alamberti, Alam..
Brinquedos… Bueno…

Bussi, Buzi… Estou fingindo, não quero saber. Para quê? Levantei
a cabeça, as moças estavam ocupadas, ninguém reparava em mim.
Caixa registradora…, Calçados… Caldeiraria .. Calvoso… Camassa,..

142
Casa… Casa… Virei páginas. Camisaria… Comissária… Quanta
Companhia… Páginas de Companhias.. Domingos… Elevadores…
Embalagem..

Estou continuando a fingir, depois digo que não encontrei O


endereço. Para que saber? Todas estão ocupadas, não encontrei nada,
muito obrigada. Empresa… Empresa.

. . Fábrica… Fábrica, Ferraz, Ferr… Fogão… Fonseca… Fontes…


Fortaleza… Fran. . G… G… Gabriel… Galo… Lima..

Cinco minutos, dez minutos, eu debruçada sobre a lista, fingindo.


Bem. Agora eu agradeço e vou-me embora. Obrigada, senhorita.

- A senhora quer que eu procure?

A mocinha era amável. Não custa nada, eu procuro para a


senhora. Meu Deus, será que vão me contar? Que hei de fazer? Sorri:
- Muito obrigada, não tenho pressa, fica para outro dia. A senhora
está ocupada.

Senti frio, angústia, arrepios. Tive ímpetos de gritar Não quero


saber, não quero. Sair correndo, obrigada por tudo. Mas a moça disse
que não tinha serviço àquela hora, procuraria para mim, não custava
nada. Agora todas estavam interessadas em saber O endereço da Cruz
Vermelha; um homem veio lá de dentro passou, falou qualquer coisa,
a caixa perguntou, êle respondeu que não sabia, olhou para mim, foi
para dentro outra vez.

A mocinha que se oferecera para procurar estava debruçada sobre


O balcão; seus cabelos eram claros e crespos. Vou tapar meus
ouvidos, não quero saber, não quero ouvir. Entraram uma senhora e
uma moça para comprar fazendas; escolhiam, apalpavam,
comentavam, cochichavam, quanto custa O metro? A moça que as
servia estava mais interessada no endereço que a companheira
procurava com sofreguidão. Procure - escritório. A outra sacudia a
cabeça, debruçava-se mais, procurava. A senhora e a moça
compravam, escolhiam, acariciavam sedas, perguntavam, e esta
quanto custa? A moça que as servia, respondia: oitenta O metro.
Voltava-se para mim e para a companheira, aconselhava: Procure

143
sede. A moça repetia: sede… sede… corria O dedo pelas sedes, os
cabelos dependurados nos ombros.

Eu sentia O suor na testa, no pescoço, não está fazendo calor,


estou suando, deve ser de aflição, Minhas mãos estavam úmidas.
Sede… sede… Ela levantou a cabeça, vai dizer rua tal, número tanto.
Então? Falou.

- Está aqui.

Tive vontade de perguntar: Está falando comigo? Não pedi


endereço algum, ora esta. Com quem a senhora quer falar? O dedo
branco havia parado num número, meu coração esfriou; encarei-a,
moça feia. Eu pedi? Eu pedi para procurar? Por que essa pressa? Eu
pedi?

Sua voz era nítida, clara; falou alto, todos da loja ouviram, a Rua
S. Bento inteira deve ter ouvido. Nossa Senhora do Carmo.

- Rua Libero Badaró, 595. A senhora quer O enderêço do


escritório, não é?

Repetiu:

- Libero Badaró, 5-9-5.

Falou claro, com firmeza, com convicção; seus lábios eram


arredondados, avermelhados, pronunciou bem devagar, repetiu,
remoeu, remexeu a ferida, tudo ficou dolorido, meu corpo inteiro
doeu. Fiquei olhando-a; com a mão afastou os cabelinhos loiros da
testa, os lábios redondos se moveram num sorriso, vi os dentes
escuros, miserável.

Tornou a repetir aquilo era para eu não esquecer, toda a loja


decorou, era para me mortificar, torturar. Rua… numero… Detestei-a.

- Quer que eu escreva num papelzinho? Agradeci, não é preciso,


tenho uma memória… Sorri, ela sorriu. Agradecida. Deixei a loja, fui
tomar O ônibus para casa. Passei O dia com O endereço na cabeça,
impossível esquecer.

Sílvia tocou “Garibaldi foi à missa”; tive vontade de

chorar, para quê? Não chorei, repeti O endereço, magoada,

144
dolorida. E acabei escrevendo-o num papelzinho, que

guardei na bolsa.

A noite toda com O endereço na cabeça; acordei, lá estava êle


bem claro como se fôsse a voz da moça a repetir, a martelar para toda
a cidade ouvir. Sílvia tocou a manhã toda, eu não ouvia, pensava na
hora de ir à Rua Libero, etc, etc. Será que me recebem? E passarão O
telegrama ou escreverão carta? Para onde Como poderei explicar?
Chama-se Alfredo Abílio de Lemos, está combatendo no Pacífico,
com O exército norte-americano A última carta dizia… E se rissem de
mim? Mas como? O

Pacífico é imenso, em que ponto êle está? Isso eu não sei. Não
sabe? Hão de rir, de ridicularizar. Imagine, esta velha quer que a Cruz
Vermelha procure O filho que está no Pacífico e há três anos não dá
notícias. Ah, ah, ah. Uns contariam aos outros, me apontariam com
O dedo: Aquela ali.

Mas Julinho disse que a Cruz Vermelha tem auxiliado muita gente,
famílias inteiras. Eu sentia aflição, era como se me torturassem. Ponha
a velha na tortura. Que tortura? A de procurar O filho em vão. Ótimo.

Demônios à minha volta dançavam uma sarabanda. Ponha a velha


na tortura. Qual delas? A de procurar O filho em vão. Ótimo. As
escalas pareciam risadinhas de demônios.

Os dedinhos de Sílvia batiam as teclas, ela vai ser pianista, vai dar
concertos, toda a gente irá ouvir e eu direi: é minha neta. A sarabanda
continuava.

Abri O “Caminho Reto”: Paciência. Meios para adquiri-la.”


“Levanta teu pensamento ao céu e considera quanta é a glória que lá
te espera, se sofreres aqui com paciência.”

Tenho que ir à Rua Libero Badaró. Quando? Amanhã? E quando


estiver lá, que hei de falar? Como pode a Cruz Vermelha descobrir um
soldado perdido na imensidão do oceano, um entre milhões, que se
chama Alfredo e tem a mãe morando em S. Paulo? Como pode ser
isso? Agora Sílvia está tocando outra música, é uma valsa. Meu
pensamento vai e vem no embalo da valsa. Irei amanhã, está
resolvido. Aproximei-me da janela, olhei O quintal, as flores, as roupas

145
dependuradas na corda. Lá está O canteiro de Sílvia, O de Carlos,
aquele mais longe é de Eduardo. As flores brilham ao sol; algumas são
coloridas, pétalas que parecem seda. Papoulas vermelhas, côr-de-rosa,
listadinhas, margaridas brancas, verbenas rajadas de roxo, todas
bonitas e tranqüilas; O vento passa devagarinho, agita-as de leve e elas
dão a impressão de que estão contentes. Contentes com O vento.

Lá onde O terreno se inclina e quase não se vê daqui, estão os


canteiros de legumes; os tomates, as alfaces, os repolhos, as couves
de folhas carnudas, as ervilhas.

Agora os dedos de Sílvia percorrem as teclas em exercícios sem


fim: saltos, corridinhas, paradas, pulos, marchas: um, dois, um, dois.

Devo ir amanhã, irei amanhã. E se eu fôsse antes procurar tio


Damião na casinha da Mooca? Pedir conselhos? Havia de encontrá-lo
sentado perto da janela, olhando a rua, conversando com Janina
Como vão passando? Mas que boa surpresa! Entre, excelentíssima.
Janina, veja uma cadeira. Filhinha, e se preparasse uma chávena de
café? Um cafezinho para a excelentíssima.

E eu contaria tudo, acha que devo ir à Rua Libero, etc, etc? Pedir
notícias? Acha que me receberão? Tio Damião havia de coçar O
queixo, refletir seriamente sobre O caso Depois havia de rir seu riso
bom e doce por causa da idéia luminosa, e diria: - E eu vou escrever
uma valsa para tocar no dia da chegada, para O dia da chegada. O
nome… O nome… espere um pouco: “A volta de Alfredo.” Que tal?

Ouvi a voz de Isabel, me chamou para ver Lena que mostra as


mãos e fala as primeiras palavras. Rimos juntas e Isabel levantou a
menina nos braços para beijá-la.

Qualquer dia falará tudo e dará saltos como Pour Élise, como a
Carranquinha. Os exercícios se sucedem e as mãozinhas de Sílvia
parecem crescer sobre O teclado: dó-ré-mifá-sol-lá-si . Dó-ré-mi-fá-sol-
lá-si. Do grave ao agudo em escalas intermináveis e rápidas, Sílvia está
contente, já alcança as oitavas.

Não dormi bem, acordei muitas vezes, dizia O endereço sonhando;


mergulhada no sono inquieto, olhos meio abertos encolhida na cama,
cansada, repetia: Rua Libero etc, etc. Rua Libero etc. Acordava com

146
uma secura na boca, vontade de levantar, ir embora cedo, procurar
meu filho no Pacífico. Que pena essa lonjura sem fim.

Levantei de madrugada, tomei café, de pé, olhando O quintal


através da vidraça; meu pensamento no Pacífico, procurando, será
este? E este? Virar as caras de todos os soldados até encontrar a de
meu filho. Fiz a limpeza da casa, corri, queria que as horas corressem
também; fiz almoço, auxiliei as crianças a se aprontarem, vão
depressa, não se esqueçam de nada. Lavaram as mãos? Escovaram os
dentes? Deixa ver. Falava com O pensamento no Pacífico, virando as
caras dos soldados, um por um.

Este? Do exército inteiro. Não é este, nem este nem este. Onde
estará?

Fui me aprontar, disse a Isabel que ia fazer uma visita há que anos
não visito ninguém. Saí, bati a porta, resoluta; andei apressada O
mesmo caminho que percorria nas madrugadas atrás das filas. Parei
no ponto do ônibus, pouca gente, vou no primeiro. Enquanto O
ônibus trepidava naquelas ruas, mudei de idéia, iria ver D. Genu,
contaria tudo antes de ir à Cruz Vermelha, quem sabe até ela iria
comigo, seria melhor irmos juntas. Duas têm mais força, ninguém riria
de nós.

Toquei timidamente a campainha, ouvi uns passos arrastados, ela


me abriu a porta entre sorrisos, os óculos no meio da testa.

Abraçamo-nos. Contaria tudo; sentime aliviada, satisfeita, tinha


para quem contar. Sentamo-nos na salinha de jantar, uma de cada
lado da mesa; estava só, a filha saíra para compras.

Quis saber da minha viagem ao Rio, contei, mostrei retratos dos


netos. E Julinho era então muito rico? Falei do almoço que me haviam
oferecido no apartamento de luxo,

das pratas, da riqueza; falei que na casa de Julinho lavavam as


pontas dos dedos nas pétalas de rosas das festas de Fagundes Vaz e
Cia. Limitada, falei do baile.

- Ah, D. Genu, as danças de hoje… não queira saber. Contei dos


pulos, das voltas, da música, ela pôs a mão na boca.

147
- Mas que selvagens. Isso é selvageria, bem se vê que estamos
vivendo em época diferente, de guerras e loucuras.

Com suspiros lembramos nosso tempo todo delicadezas e


curvaturas. D. Genu continuou: - Antes os salamaleques do nosso
tempo do que os socos e safanões de hoje. Antes as valsinhas
sentidas, as moças se abanando nas noites de calor, cada leque tão
bonito alguns com versinhos escritos nas varetas, de gaze, de cetim.
Tive um que era uma beleza, escrito assim: “A vida sem amor não
vale nada.” Antes nosso tempo.

. . Dançava-se tão bem, comia-se baba-de-moça, suspiros, pastéis


de nata, namorava-se discretamente, que tempo bom. Até os doces
eram diferentes, até os homens.

. .

Demos passos para trás e com suspiros fundos mergulhamos no


passado. É verdade até os homens…

- Os moços eram tão delicados que até punham lenço para segurar
a cintura da gente. Hoje jogam as moças para O ar como se fossem
de borracha. Tempo bom aquele, nem havia guerras…

Voltei ao presente com um soco no peito; arranjei O pensamento,


preparei a boca: “Por falar em guerra…” Ela levantou-se e pediu à
cozinheira que fizesse café a campainha tocou, eram duas visitas.
Entre goles de café e fatias de bolo - ela desculpou-se por ter ficado
batumado - a prosa continuou. Ninguém falava em sair.

De repente uma cotovelada:

- A senhora conhece, não é verdade?

Eu voltava, via O rosto na minha frente a perguntar, a esperar


resposta.

- Não senhora, não conheço.

Outra cotovelada:

- O quê? A senhora não conhece a filha de D. Genu?

148
Conheço perfeitamente, pensei que estivesse falando de outra
pessoa. Conheço muito bem, qual delas? Pois não, conheço todas.

Despedi-me tarde, as visitas ficaram; voltei para O Cambuci, O


coração cheio. Todas as luzes se acenderam de repente como num
presépio Enquanto esperava O 14, fui lendo os anúncios luminosos:
RESTAURANTE… O AZEITE… brilhava e piscava. ACADEMIA -
BILHAR - … CASIMIRAS - LINHOS - CASIMIRAS. “Antes nosso
tempo, nem havia guerras. É verdade.” MEDICINA VEGETAL.
COCA-COLA - APERITIVOS. CAFÉ S. PAULO. Até os homens
mudaram…

149
Capítulo IX

150
AMANHECEU um dia frio e úmido, um sol amarelo, pálido. Firme
na minha resolução, disse a Isabel que ia fazer outra visita. Meu
coração batia com pressa, por que tanta emoção? Tomei O ônibus e
desci no Largo da Sé. Vagarosamente enveredei pela Rua Direita,
olhando para os lados, indiferente; era como se estivesse sòzinha,
ninguém na rua. Atravessei a Praça do Patriarca, cheguei à Rua
Libero, de que lado seria O número 595? E se perguntasse ao guarda?
Não, tinha que descobrir sòzinha.

Comecei a descer para O lado da Avenida São João, olhei os


números. Esbarrava nas pessoas, pedia desculpas. Não era ainda ali,
precisava atravessar, esperei um minuto, havia tanto movimento;
gente, automóveis, jornaleiros.

Cheguei ao outro lado, olhei os números, era mais abaixo; fui


descendo devagar, cada vez mais devagar, esbarrando, pedindo
desculpas. Me desculpe. Humilde, com medo de nao encontrar meu
filho em parte alguma; tropecei na calcada, não é nada, hei de
encontrar O número E se eu perguntasse a alguém? Na esquina da
Avenida São João, esperei na beira da calçada até que O sinal fosse
aberto, teria que atravessar. Perguntar a quem Pois se eu tinha O
enderêço na cabeça, para que perguntar? A moça de lábios redondos
falara alto, toda a rua ouvira.

O sinal foi aberto, atravessei a avenida por entre a multidão,


cheguei do outro lado, comecei a subir a Rua Libero Badaró. Olhei O
número da primeira casa, Nossa Senhora, estava próximo ao meu.
Coloquei a mão sobre O peito, olhei uma vitrina de comestíveis, dei
mais uns passos, olhei outro número, outra casa. Me desculpe.

5-9-5, eis O meu número. Em todo caso, abri a bolsa, olhei O


papel onde eu havia escrito para não esquecer, como se pudesse
esquecer. Era ali mesmo, não havia dúvida.

Entrei, várias pessoas esperavam O elevador, entramos todos.

Coragem, coragem. No quarto andar, saí e vi uma fila de homens


e mulheres que serpenteava até a escada; uma mulher sentada no
primeiro degrau, cobrira O rosto com os braços, que estaria

151
esperando? Havia mais gente amontoada diante de uma porta, seria
ali? Todas aquelas pessoas procuravam a mesma coifai que eu? Fiquei
com mais coragem.

- Faça O favor de me informar se é aqui O escritório da Cruz


Vermelha Brasileira?

O homem fêz que sim com a cabeça; suspirei, muito obrigada.

- A senhora está esperando notícias?

Fiquei atordoada, como é que sabiam? Eu estava esperando


notícias? Não senhor, vim pedir notícias de meu filho Alfredo, Alfredo
Abílio que está combatendo… Comecei a contar a história em voz
baixa, sussurros, só para O homem, não queria que outros ouvissem…
Êle respondeu - Então a senhora tem que ficar na fila lá embaixo.
Esperar a sua vez.

.” Olhei para trás, muito bem, onde está a fila? Na escada? Pois
não. Comecei a descer um andar, dois, três, havia gente parada em
todos os degraus; uns conversavam, outros encostados na parede
pareciam dormitar, de olhos fechados. Estariam procurando os filhos?

Fiquei no último lugar no fim do terceiro andar. Uma velha e uma


moça cochichavam na minha frente, e se eu perguntasse alguma
coisa? Só para falar? Se contasse minha história? Toda a fila se moveu
e deu um passo à frente; a velha falou palavras de animação, a moça
sorriu. O que eu havia de perguntar? Precisava falar com alguém.

Uns dez minutos depois a fila se movimentou, subiu mais um


degrau, estremeceu; mas O estremecimento que começou lá em cima
passou por nós em vibrações doloridas, suspiros, desfalecimentos e
duas mulheres desceram chorando, uma apoiada na outra, quase a
despencarem pelas escadas, trêmulas, cegas de pranto, uma delas
levando nas mãos um telegrama amarfanhado.

Isso foi O toque que uniu a fila inteira, foi O traço de união.
Começaram a trocar idéias, falar, sussurrar umas nos ouvidos das
outras; a velha à minha ff ente tinha os olhos esgazeados, aterrorizada
com O que vira, tocou-me O braço, falou numa língua estrangeirada: -
Está esperando notícias dos parentes?

152
Sua voz era rouca e trêmula, tinha medo; todos pareciam ter
medo. Contei em voz baixa, ia pedir um favor à Cruz Vermelha, será
que ela poderia me auxiliar? Haviam me aconselhado, sabe? Era ali
mesmo, não era? Ia pedir que procurasse meu filho Alfredo, um rapaz
que tem ideal, sabe? Foi lutar pela democracia, para um mundo
melhor.

Sorri. A velha e a moça ficaram me olhando, admiradas.

- Tive três filhos homens. Esse foi sempre diferente dos outros,
desde pequeno. Tinha um ideal. Foi correr mundo, realizar O ideal de
lutar pela liberdade dos povos.

Chama-se Alfredo, um mocetão, O mais bonito dos três.

Elas me olhavam, incrédulas; depois sorriram e confirmaram, sim


senhora. O mundo estaria melhor? A batata por um preço absurdo, O
arroz caríssimo, O açúcar racionado, a carne duas vezes por semana,
O leite… a manteiga… O mundo estaria melhor? Enquanto elas
olhavam eu pensava O transporte cada vez mais difícil, O par de
sapatos que eu comprava 80 cruzeiros, custa agora cento e quarenta,
navios brasileiros cheios de crianças e mulheres bombardeados
inutilmente, milhares de pessoas morrendo diariamente na Europa, na
Ásia, no Pacífico. Um suor frio desceu pelas minhas costas, O mundo
estaria melhor? Não havia farinha de trigo e O pão era misturado, O
feijão subindo sempre, O mundo estaria melhor?

Olhei as duas à minha frente humilde na minha ignorância; era


melhor não falar mais, não abrir a boca, dizia coisas que eu não
entendia, ninguém entendia. O mundo estava pior, cada vez pior, por
que Alfredo fora lutar? Por que não voltara para casa? A casa dele era
aqui em S. Paulo, por que não voltara? Fiquei silenciosa com meus
pensamentos, angustiada por causa deles. Eu não entendia, ninguém
entendia. Baixei os olhos para a ponta dos meus sapatos, tive vontade
de perguntar aos gritos “Onde está O mundo melhor?”

- Êle está combatendo?

Era a moça que perguntava; humilde, contei que sim. Era pena eu
não ter um retrato ali para mostrar, um mocetão.

- Alto, bonito, era marinheiro.

153
Pessoas passavam por nós; a velha fixou O chão, obstinada; a fila
foi mais para cima, um homem gemeu: “Ai meu Deus.” O dia
definhava rapidamente, um homem esperava notícias da irmã, havia
passado um telegrama, até agora nenhuma notícia. A velha contou
que esperava resposta de um telegrama, não sabia que fim levara a
família; com a boca quase fechada, os olhos esgazeados, imaginando
tragédias, explicou: - Morava no sul da Bélgica.

O que estava atrás sacudiu a cabeça como quem diz: perdida. O


dia definhava, que horas seriam Agora eu estava ali, não devia ir
embora, devia esperar. Já estava cansada, tinha vontade de me sentar,
cobrir a cabeça com as duas mãos. Bélgica. A família dela estaria
ainda na Bélgica? “Levanta teu pensamento ao céu e considera quanta
é a glória que lá te espera. Paciência. Meios para adquiri-la. “Caminho
Reto”. Advertência: Para que a paciência seja frutuosa e meritória, é
indispensável sofrer as penas em estado de graça porque àquele que
está em pecado mortal de nada lhe serve para ganhar O céu, sofrer
muito com paciência.” Estarei em estado de graça?

Alfredo me escreveu uma vez que estava combatendo pela


liberdade dos povos. Liberdade. Que palavra tão vasta. Os campos de
concentração de todo O mundo estão cheios de prisioneiros, milhões
de prisioneiros, nunca houve tantos. Liberdade.

Seis e meia? A fila toda se desmantelou, se partiu. Os de cima


foram descendo a escada e falando que O escritório se fechara, só
amanhã. Amanhã? Muito bem. A velha gemeu e segurou O braço da
moça para descer; lentamente fui descendo também, repetindo:
“Paciência. Meios para adquiri-la.”

Na manhã seguinte contei tudo a Isabel, ela me olhou:

- Quem disse isso para a senhora?

Expliquei que Julinho me falara no Rio, muita gente fazia isso,


passava O telegrama e esperava. Eu também ia passar, vou passar
hoje. Hoje? ela perguntou. Sim, hoje.

- Peço a você guardar segredo, que ninguém saiba antes de eu ter


uma resposta.

Ela aborreceu-se, enfarruscou O rosto:

154
- A quem hei de falar?

Saí logo bem depressa, decidida. Atravessei a cidade, sabia O que


queria, O que ia fazer.

A fila era comprida mas não tanto quanto a da véspera; fiquei no


meu posto, silenciosa na minha resolução, de pé, atrás de um homem
velho, cansado. De vez em quando dava um passo à frente, subia mais
um degrau, O coração batendo acelerado. Estava chegando a minha
vez, estava chegando a minha vez; fui ficando angustiada, sentia um
apêrto na garganta, teria voz para falar?

Havia uma espécie de balcão arredondado e ali muitas pessoas


estavam debruçadas narrando suas mágoas; muitas tinham nos olhos a
expressão do desalento, aquela expressão que existe nas pessoas que
se apegam desesperadamente na Última esperança. Por que eu fora?
Por quê? Não seria melhor viver como vivera até então? “Êle vai bem,
a última carta que recebi, etc, etc?” Vai muito bem, sim senhora. Vi a
moça na minha frente; ela esperou que eu falasse, tinha um papel
sobre O balcão e um lápis na mão.

- A senhora?

Sorri, não encontrei palavras, por que viera? Não seria melhor
viver na ilusão? Está combatendo no Pacífico, sim senhora… Ouvia
sussurros ao meu lado, ah, é muito longe daqui, na Europa? Sim
senhora, não senhora. Sim senhora, não senhora. - Paciência. Meios
para adquiri-la. A moça estava ali na minha frente esperando que eu
falasse senti um suor frio nas minhas costas, rias minhas mãos Era
preciso falar? Por que viera? Por que chegara minha vez Era tão bom
ficar na escada esperando, todos os dias subir mais um degrau,
preferia ficar sempre na escada, um degrau por dia. Não reconheci
minha voz, falei baixo: .

_ Chama-se Alfredo Abílio de Lemos, a ultima carta

que recebi dele veio…

Falava baixinho, haveria um morto na sala? Não queria que


ninguém ouvisse meu segredo, só a moça. Ela começou a escrever
depressa, depressa, e eu a falar: - Há três anos não recebo notícias, é
muito, não acha? Êle me escreveu que estava bem, muito animado,

155
disse que estava combatendo por um mundo melhor, foi assim mesmo
que êle escreveu…

O mundo estaria melhor? Meu olhar interrogou a moça, ela estava


escrevendo. A batata pelo preço que está? Açúcar raciocinado, carne
duas vezes por semana, nao ha pão e quando há… Faz-se pão de
macarrão E se acabar O macarrão? Os campos de concentração
cheios de prisioneiros, mortes, bombas, destruição…

163

- Há quantos anos êle partiu para lá?

Quantos anos? Deixa ver, fiz a conta, nós morávamos ainda na


Avenida Angélica, espere um pouco… (eu sabia perfeitamente, mas
comecei a lembrar para ficar mais calma) não havia guerra naquele
tempo, depois é que veio essa calamidade e atrapalhou tudo, aí êle me
escreveu que estava com os norte-americanos, no Pacífico…

Êle foi sempre valente, muito corajoso, muito forte, tinha umas
idéias diferentes, sabe? Às vezes eu digo comigo mesma filhos dos
mesmos pais, criados do mesmo jeito, e no entretanto com idéias tão
diferentes uns dos outros, não é mesmo? Era O mais alto O mais
bonito, alourado, dentes fortes, a última vez que me visitou faltava um
dente aqui do lado. Quando perguntei O que tinha acontecido, deu
risada e disse que um marinheiro para ser bom tem que fumar
cachimbo, brigar e… não me lembro a outra coisa que êle disse.
Perdeu O dente numa briga, sempre foi valente, já contei isso para a
senhora? Desculpe sê estou contando essas coisas, mas mãe quando
começa a falar de filho… compreende, não é? Veio a última vez
fumando cachimbo…

- Há quanto tempo isso?

- Que êle fuma cachimbo? Não, que êle me visitou? Pensei, fiz a
conta, respondi e ela escreveu. Tornei a explicar:

- Mas quando êle veio, nessa ocasião não havia guerra; O mundo
estava calmo… nada estava caro assim, a vida não era difícil como
agora, toda a gente vivia tranqüila.

156
E a tranqüilidade na vida vale tanto, não é mesmo? Êle me disse
que iria para longe, muito longe; fêz assim com os braços e eu
perguntei: Europa África? Mais longe ainda. , . Então no fim do
mundo… Êle sorriu… Senhora? Pensei que a senhora tinha
perguntado alguma coisa. É alto, alourado, tem uma pintinha aqui do
lado perto da boca, já falei isso para a senhora? Ombros largos, mãos
fortes, me trazia presentes todos os dias: lencinhos, frutas, queijo,
coisinhas assim Muito presenteador.

Eu já estava desanimada, a senhora compreende, há três anos sem

notícias, essa guerra matando milhões de soldados todos os dias,


fiquei pensando O pior… mas todos dizem: Vá à Cruz Vermelha, a
Cruz Vermelha pode passar um telegrama perguntando por êle e
assim você pode saber alguma coisa. Quem sabe êle está prisioneiro e
não pode escrever. . coisas assim… Então resolvi vir aqui, é minha
última esperança… Meu filho Julinho disse: “Mamãe, antes saber a
verdade nem que seja ruim, do que viver assim sem saber nada.” Por
isso vim aqui. .

. Êle gostava de me chamar D. Lola em vez de mamãe, meu nome


é Lola, quero dizer, meu apelido. Ele dizia rindo e batendo no meu
ombro: Esta D. Lola…

A moça olhava para mim, um ar penalizado, a cabeça inclinada


para O lado, os olhos muito brilhantes; percebi então que ela estava
comovida e meu rosto estava coberto de lágrimas.

- Desculpe estar falando essas coisas todas, a senhora não tem


nada com isso. Até… até me esqueci de que estava aqui.

Olhei à volta, havia tanta gente, a fila aumentara pela escada


abaixo. Disfarcei e sorri, ela me perguntou se eu podia pagar O
telegrama; sim senhora, então vão mesmo passar O telegrama
Felicidade. Fe-li-ci-da-de.

- São trezentos cruzeiros

Trezentos? Ah, sim senhora eu trago amanhã. Amanhã ou depois,


mas eu trago, não tenho tudo aqui co migo. Muito obrigada.

157
Tomei O elevador um pouco estonteada, havia falado tanto, por
que precisava a moça saber tudo isso? Afinal vou saber notícias de
Alfredo; Santa Rita dos Impossíveis, valei-me. Valei-me, Senhora,
Senhora Santa Rita Tive ímpetos de gritar na porta da rua, em meio à
multidão que passava àquela hora: Preciso de trezentos cruzeiros para
encontrar meu filho, quem pode me emprestar? Quem pode? Quem

pode?

Nem lembrei que era telegrama para O estrangeiro, pensei que


ficasse nuns vinte cruzeiros. Nem me lembrei Escrevi nesse mesmo dia
para Julinho e pedi O dinheiro, dias depois recebi a resposta com a
quantia pedida. Sílvia começou a tocar O caderno de Schumann:
Peças Fáceis. Para acalmar meu coração, pedi muitas vezes à neta
querida:

- Sílvia, toque Schumann para sua avó ouvir, sim? No dia seguinte
corri com O dinheiro nas mãos, a escada estava cheia. Todos
esperavam respostas. A velha estrangeira e a mocinha do outro dia
estavam lá, dois degraus aci ma, cumprimentamo-nos como amigas.
Bom dia. Bom dia. Um homem triste estava à minha frente, tinha O
rosto sombreado de barba, perguntou-me num leve cumprimento,
mostrando O espaço: - Tem parentes lá?

Tenho um filho na guerra.

Eu dizia isso como se tivesse certeza: tenho um filho na guerra.


Está lá combatendo, vai bem, obrigada. Certeza, certeza, tenho um
filho na guerra. Santa Rita dos Impossíveis, valei-me, que êle esteja
mesmo na guerra.

- Na Itália? Foi com as Forças Brasileiras?

- Não senhor, no Pacífico, com os norte-americanos.

- Por acaso é voluntário?

Sorri, triunfante, todos que estavam próximos olhavam para mim


com admiração. Eu era a mãe do herói - tinha um filho na guerra.

- Há muitos anos estava por lá, veio a guerra e alistou-se.


Voluntário, sim senhor.

158
Falava leve, olhando todos, contente, como se dissesse: Foi ao Rio
de Janeiro dar um passeio. Sim, senhor. Vai bem, obrigada.

Houve uma pausa, depois O homem contou-me que morava no


Brasil há muitos anos, a mulher e duas filhas haviam ido visitar uns
parentes na Tchecoslováquia, veio a guerra e não puderam voltar;
perguntei em que cidade elas estavam como se conhecesse todas as
cidades da Europa. Respondeu-me um nome que não entendi. A
mocinha e a velha ouviam, todos que estavam perto também ouviam.

- Não teve mais notícias? perguntou um rapaz. Falou que no


princípio haviam escrito duas cartas, aquilo estava um pandemônio,
êle respondera por telegrama: “Venham.” Não acusaram O
recebimento do telegrama e nada mais soube a respeito delas.

- E agora? alguém perguntou lá da frente.

Agora pedi à Cruz Vermelha para procurar, quero ver se veio


alguma notícia, me avisaram para vir aqui…

Ficamos olhando em silêncio O homem triste; dois passos para a


frente, dois degraus, toda a gente subiu. Todos quietos agora,
pensando na família do homem, a velha perguntou:

- Chamaram O senhor?

Sim, havia recebido uma cartinha da Cruz Vermelha, queriam ver?


Como êle morava em Santo Amaro e não tinha telefone, escreveram
a carta chamando. Tirou do bolso de dentro um papel meio
amassado, abriu, alisou com carinho, nos mostrou, todos nos
inclinamos: “Solicitamos por gentileza O comparecimento de V. S. na
sede…”

Não consegui ler O resto, comecei a tremer e a suar só em pensar


que êle ia receber notícias, que espécie de notícias? Senti angústia,
olhei O rosto sombrio, reparei num tique nervoso no olho esquerdo
do homem. Pobre.

Todos que estavam na escada daquele terceiro andar ficaram


pensativos, cabeças baixas. O suor das minhas mãos foi esfriando,
esfriando. Um degrau à frente, subimos.

159
O tique nervoso continuava se acentuando no rosto dele; a face
azulada estremecia do lado esquerdo. A mocinha que acompanhava a
velha inclinou-se para me perguntar: - E a senhora já passou O
telegrama?

- Vou passar hoje.

Silêncio na escada; ouviam-se vozes lá em cima, sussurros,


perguntas em voz baixa, a porta do elevador abria e fechava. A
mocinha repetiu - hoje - e sorriu me encorajando.

Movimento de passos, outras portas se abriam. Cinco pessoas


atrás de mim. O vento frio entrava pela porta da rua e subia os quatro
andares em lufadas rápidas de angústia.

Desciam pessoas embuçadas, passavam por nós, tristonhas,


distraídas; as horas corriam, haveria tempo de chegar ao escritório e
entregar O dinheiro? Entraram duas moças comentando O frio e a
chuva. Ouvia-se perguntar as horas, haverá tempo? Estávamos
próximos do quarto andar, lá em cima O movimento era ruidoso, e
tudo parecia mais demorado. Dois homens começaram a falar sobre a
guerra, trocaram opinião, comentaram as últimas notícias. De súbito
as luzes se acenderam, motivo para conversa, ninguém pecebera a
escuridão. Assopravam os dedos, O frio mais forte. A velha suspirou e
cochichou para O homem triste: “O senhor vai receber boas notícias,
com certeza.” Perguntei à velha se também fora chamada; não, viera
para saber se havia novidade, vinha sempre que podia, fazia um mês
que esperava todos os dias…

O murmúrio começou em cima e cresceu perto de nós, estavam


fechando as portas do escritório, era hora de fechar O expediente.
Houve um reboliço, alguns se prepararam para ir embora, outros
protestaram. Eu trouxera dinheiro, O dinheiro do telegrama, tive
vontade de sair correndo, fazer berreiro, mostrar O dinheiro, está
aqui, olhem, está aqui. Protestei timidamente, O homem triste tirou a
carta do bôlso e mostrou a todos que passavam Subimos juntos os
últimos degraus e chegamos juntos até a porta; havia ainda um grupo
de pessoas falando, não queriam sair.

160
As moças estavam ocupadíssimas, iam de um a outro, atendiam as
últimas pessoas. Chamei, faça O favor, eu trouxe O dinheiro para O
telegrama, a senhora quer ver?

O homem mostrava a carta, recebi esta carta, disseram para eu

vir, faça O favor minha senhora… Eu sentia um aperto na


garganta, é para O telegrama de meu filho Alfredo, a moça que me
atendeu a semana passada disse que eu devia trazer trezentos
cruzeiros… Coloquei os cotovelos no balcão, chamei; uma passou
perto de mim, segurei-lhe O braço, tenha a bondade.

- Como é seu nome, faça O favor?

Ela voltou-se, não era a que me atendera dias antes. Leia.


Expliquei, mostrei O dinheiro, faça O favor D. Leia. Ela conversou
com outra pessoa, falou, escreveu, foi embora, e quando eu pensei
que ela tivesse se esquecido, voltou-se sorrindo para mim. Tomou O
dinheiro, disse que me daria um recibo, O telegrama seria passado,
ficasse tranqüila.

- Hoje mesmo? perguntei quase sem ar.

- Amanhã cedo, hoje O expediente está encerrado. Amanhã sem


falta seguirá O telegrama, fique sossegada.

- Não será tarde, D Leia?

Respondeu que não, nunca era tarde, ora esta. Por que tarde? Eu
nem sabia porque. Escreveu num papel, deu-me outro, despediu-me
depois de ter tomado notas, escrito coisas. Alfredo Abílio de Lemos.

Saí tonta, esgotada, desci novamente a escada, tropecei num


degrau; na minha frente um homem chorava apoiado no corrimão,
era O triste. Toquei-lhe O braço de manso: - Recebeu alguma
notícia?…

Êle voltou-se, enxugou os olhos; quando me reconheceu falou:

- Más notícias, minha mulher e minhas filhas foram transportadas


para um campo na Bavária. Prisioneiras, oh!

Desceu a escada cambaleando, a voz embargada; fui consolando


atrás:

161
- Mas elas não têm culpa de nada, estavam visitando parentes,
deve haver algum engano, O senhor vai ver. É engano prender quem
está passeando, visitando parentes.

Que tempos estes… Reze, senhor…

Êle sumiu na chuva, a cabeça descoberta, os olhos vermelhos.


Atravessei a cidade, em busca da fila do meu ônibus. Não sentia frio,
nem a chuva que me encharcava.

Oh, Senhora Santa Rita, estarei pedindo um impossível?

Todos interromperam O jantar para me ouvir contar, Felício fitou-


me: - A Cruz Vermelha se encarrega dessas coisas? Contei que
Julinho tinha me aconselhado, que me havia mandado O dinheiro e a
moça passaria O telegrama na manhã seguinte.

Êle disse que não sabia, os olhos das crianças estavam


interrogando; êle tornou a perguntar: - Para que endereço vai O
telegrama? Deu endereço?

- Para O exército norte-americano no Pacífico… Sorriu com


triunfo: - O exército norte-americano no Pacífico… Mas são milhares
de soldados que morrem ou desaparecem todos os dias, outros estão
prisioneiros ninguém sabe onde…

Será bastante difícil.

Fêz um gesto vago de desânimo, de piedade; voltou ao prato, um


leve sorriso de escárnio nos lábios.

Por isso eu não queria contar, é um cético, um derrotista, um


aborrecido da vida. Por que contei?

Isabel ofereceu-me sopa, respondi que sim, tomaria; quis fazer-me


de forte, fui para O quarto, na verdade sentia-me trêmula, infeliz.
Voltei logo, estavam comentando O fato. Isabel argumentou:

- Mas se descobrem parentes em qualquer parte da Europa, como


Julinho disse, podem descobrir um soldado no exército americano.

Tomando café, Felício falou que não acreditava, era difícil, quem
disse que descobriam parentes? Boatos… Falava assim não para eu
perder as esperanças, mas para prevenir-me eu que esperasse O pior.

162
Em todo O caso nada era impossível, por que não haviam de
encontrá-lo?

Todas as noites ao jantar, Felício perguntava se eu havia recebido


alguma notícia, eu respondia que não, ainda era cedo. Seu sorriso era
cético. As crianças rezavam para que vovó Lola recebesse uma boa
resposta; Sílvia tocava:

- Escute, vovó, esta é para quando tio Alfredo voltar.

Sílvia estava tocando Schumann, que orgulho. Escrevi para


Itapetininga “Sílvia começou Schumann, se ouvissem como é bonito.
E O telegrama seguiu pedindo notícias de Alfredo.”

Clotilde respondeu: “Uma neta que toca Schumann deve dar uma
grande alegria. Quanto à resposta ao telegrama, comecei uma novena
para que seja a mais satisfatória possível. Reze esta jaculatória três
vezes ao dia: “Meu doce Jesus, não sejais para mim juiz, mas
Salvador.” E mais adiante: “Leia “Piedosas Meditações”: Santíssima
Virgem Maria, minha esperança…” Da irmã que muito a quer.
Clotilde.”

Sábado de julho. Tio Damião apareceu sobraçando um pacote de


jornais. No seu passo rápido, foi entrando e cumprimentando,
distribuindo rosas, níqueis, legumes. Então?

Então? Com um grande suspiro, depositou O pacote na mesa,


depois voltou-se e perguntou piscando os olhos, coçando O queixo.

- Lembram-se da data de hoje? Ninguém se lembra? Será possível,


santo Deus?

Abriu os braços, deixou-os cair novamente, melancólico.

- Como poderia me esquecer, tio Damião? Tive um filho nessa


guerra: Carlos.

- Bem diz, excelentíssima, bem diz. Não foi revolução, foi guerra.
Seu filho foi combater pela nobre Causa. Pela nobre Causa.

E batendo na mesa, falou como se discursasse:

- Nove de julho de 1932. Foi a data mais bela da história paulista.


A data magna. Os meses sangrentos de foram trágicos, mas em meio

163
à tragédia, houve O mais arrebatador dos heroísmos. Nunca mais essa
data se apagará da memória dos paulistas, principalmente daqueles
que a presenciaram. Assim como me vêem, vesti a farda caqui e fui
combater a Ditadura.

Ficou hirto e firme, a cabeça erguida, como se fizesse continência


à História, depois afrouxou os braços, todo O corpo, abriu os jornais
que havia colecionado e guardado; as folhas amareladas do “Estado de
S. Paulo” ficaram esparsas na mesa, as crianças se debruçaram,
curiosas, O dedo de tio Damião foi apontando.

- Os jornais publicaram na primeira página estas palavras:


“Paulistas, na mais vibrante manifestação de civis mo, na mais pujante
prova de amor ao Brasil e a São Paulo, na mais impressionante
atitude de heroísmo, de abnegação e de renúncia, na madrugada de
hoje, O Exército, a Força Pública e O Povo de São Paulo lançaram
aos quatro ventos da terra bandeirante, O grito de revolta pela Pátria
redimida.” Depois outro escrito: “Ao Povo Paulista, neste momento
assumimos as supremas responsabilidades do comando das forças
revolucionárias empenhadas na luta pela imediata constitucionalização
do país.” S. Paulo queria O regime da Lei, a Constituição. A Liga
Paulista Pró Constituinte pediu a todos os paulistas válidos que
comparecessem ao edifício da Faculdade de Direito, onde receberiam
armas e seriam devidamente incorporados.

Assim os batalhões de voluntários começaram a se formar. Os


aparelhos de rádio tocaram hinos, fizeram discursos patrióticos
convidando O povo a lutar contra a ditadura.

E S. Paulo pôs-se de pé. Nove de julho de 1932.

Tio Damião fêz uma pausa, olhou à volta, continuou, solene:

- Como um só homem, um só pensamento. Cada paulista virou


soldado, ou nas trincheiras ou na retaguarda. Formaram-se batalhões,
organizaram-se trens extraordinários, fundaram-se escolas de
enfermagem. Leia isto: quatro dias depois do início do Movimento, os
pernambucanos aqui residentes declararam-se “irmanados moral e
materialmente com os nobres e bravos paulistas, na indomável guerra
à ditadura.”

164
Enquanto êle falava, eu pensava em Carlos.

O dedo seco de tio Damião apontou, Eduardo balbuciou: Viva os


pernambucanos. Tio Damião respondeu: - E os estudantes
paranaenses? Nesse mesmo dia, a caravana de estudantes do Paraná
de passagem por S. Paulo, publicou um manifesto aderindo ao
Movimento e os seus membros alistaram-se nos batalhões de
voluntá…

- Viva os paranaenses, disseram as crianças.

- Viva. Escutem, no dia 14 de julho foi publicada a adesão coletiva


dos cearenses…

- Viva O Ceará!

- Viva. Dia 16, houve a adesão dos baianos, dos fluminenses, de


Mato Grosso, do Rio Grande do Sul…

As crianças entremeavam com vivas que êle respondia e


continuava, cada vez com mais calor.

- Homens ilustres do Rio Grande do Sul elevaram a voz em prol


dos irmãos paulistas e muitos vieram a S. Paulo e deram sua integral
adesão. Dia 11 de julho, a Associação Paulista de Medicina abriu uma
inscrição para os associados que quisessem oferecer seus serviços à
Causa e dia 13 os Clubes Esportivos de S. Paulo publicaram: “É

preciso que O esporte demonstre nesta hora máxima que êle não
só robustece O corpo, mas também dá têmpera às almas.” Dias
depois, partiu O primeiro batalhão esportivo para a frente. Mais de
2.000 esportistas se alistaram e combateram com bravura. A Cruz
Vermelha deu todo O seu apoio; médicos e enfermeiras seguiram nos
primeiros dias para as cidades próximas às divisas do Estado, os
Grupos Escolares e Escolas foram transformados em hospitais.
Automóveis particulares foram oferecidos, donativos grandes e
pequenos foram feitos. Dinheiro, gêneros, serviços, vidas, foram
dados generosamente incessantemente. Partiam os batalhões
cantando hinos ao Brasil; todos os rapazes vestiram fardas, as

máquinas de costura rodaram 24 horas por dia para que nada


faltasse aos heróis. Todas as mãos delicadas ou grosseiras, brancas ou

165
negras trabalharam pela Causa.

Sabem como foi? Foi como se um vento de loucura tivesse varrido


a cidade, uma loucura de grande elevação moral, acima dos
preconceitos das vaidades, das diferenças sociais; irmanava a
população Igualava O ideal era muito alto e nada podia pairar acima
dele. Era apenas O ideal. A Causa.

Fêz nova pausa. Sentou-se como se estivesse cansado; as crianças


pediram: - Continue, tio Damião. Faça O favor, continue. E depois?

166
Capítulo X

167
A vida da cidade palpitava de outra forma, escolas twr diversões
foram fechadas; automóveis passavam levando chefes, caminhões
transitavam levando gêneros para as divisas do Estado. Por toda a
cidade grupos de pessoas angariavam donativos; mais de doze mil
senhoras faziam roupas, ataduras, pensos para os hospitais. Centenas
de moças ofereciam seus serviços gratuitamente para substituir nas
caixas, nos balcões, nos escritórios, os que partiam para as linhas de
frente. As mulheres espalharam-se pelos hospitais, sentaram-se nas
máquinas de costura, embrulharam milhares de lanches por dia e, na
retaguarda das trincheiras, cozinharam para os nossos soldados.

As estações viviam repletas; trens partiam para O Norte e para O


Sul levando batalhões e trens vinham do interior trazendo milhares de
voluntários. Até 27 de agosto, as cidades do interior haviam enviado
81.451 voluntários, fardados e equipados à custa das respectivas
populações. Todos queriam dar, combater, trabalhar; procuravam O
sacrifício, O sofrimento, O inconfortável, a morte. Uma noite logo ao
entardecer, os jornaleiros apregoaram nos bondes, nas ruas: “O
primeiro encontro entre as forças combatentes. O grande combate do
túnel.”

A voz de tio Damião tornou-se rouca, redobramos a atenção.

- S. Paulo estava lutando. O Instituto dos Advogados lançou nos


primeiros dias de julho uma proclamação: “Não há campanha que
mais interesse os advogados do que a campanha a que S. Paulo se
empenhou com todas suas forças vivas… S. Paulo quer simplesmente
a restauração da lei…” Logo partiu para a luta O primeiro batalhão da

Justiça. As colônias estrangeiras, sem exceção, congregaram-se


para auxiliar S. Paulo, tudo fizeram nesse sentido: ofereceram
serviços, donativos, doaram hospital, aparelhos de raio X,
ambulâncias; mandaram gêneros, dinheiro, etc. Dia 12 de julho,
partiu O primeiro batalhão de voluntários civis, organizado na
Faculdade de Direito, depois seguiram muitos outros “Nove de Julho”,
“Piratininga”, quatro batalhões do Instituto do Café, “14 de Julho”,
“Funcionários Públicos”, dos “Estudantes do Comércio”, do Rio

168
Grande do Norte, de Mato Grosso, da Legião Negra e muitos, muitos.
Fez uma pausa para perguntar em que batalhão meu filho Carlos se
alistara e quando respondi: “Borba Gato”, êle exclamou: Grande
batalhão. Brava gente. E continuou: - A cavalaria do Rio Pardo,
equipada à custa dos seus organizadores, partiu para a frente onde
prestou relevantes serviços no Setor Sul. Para substituir cada homem
que caía, surgiam legiões de patriotas; morreu em combate um filho
de Piracicaba, imediatamente 55 rapazes daquela cidade alistaram-se
para substituir O que morrera.

Todas as classes conservadoras de S. Paulo reuniram-se a 11 de


julho na Associação Comercial e deliberaram unanimemente prestar
inteiro apoio ao Movimento. A Liga das Senhoras Católicas forneceu
139.000 refeições, 244.797 peças de costura e socorreu 21.574
famílias. As Igrejas Evangélicas prestaram inteiro apoio, todas suas
associações foram transformadas em oficinas hospitais, abrigos.
Ouçam isto: um paulista doou metade da sua fortuna. Os Bancos
puseram à disposição do Tesouro as reservas acumuladas no Banco do
Brasil e com esse lastro emitiram-se os Bônus Pró Constituinte.
Ninguém deixou de aceitá-los, foram até disputados. As casas
comerciais ofereceram abatimento aos fregueses que efetuassem
pagamento em Bônus. Os locutores falavam com voz vibrante:
“Paulistas, para diante. Continuai a cruzada redentora Vosso sangue
não valerá tanto como a glória de tombardes por S. Paulo e pelo
Brasil.” E a Escola Politécnica? A Escola Politécnica se pôs a serviço
da Causa; fêz explosivos, balas, bombas, granadas, morteiros,
bombardas, estojos, lanchas, carros e trens blindados, metralhadoras,
tudo pela volta do país ao regime da Lei.

Tio Damião falava animado, fazendo-nos evocar os episódios da


Revolução Constitucionalista mas meu pensamento era um só: Carlos.
Carlos de farda, despedindo-se, e a minha corrida à estação para vê-lo
partir. Lembro-me que vi milhares de mãos se agitando no meio da
fumaça e gritos de vivas aos soldados. Carlos em Buri. Carlos tocando
Violão. Carlos cantando. A volta. Carlos furioso com a derrota. Os
planos de Carlos. O amor de Carlos. Carlos morto.

Tio Damião descansou enquanto seu dedo percorria as folhas dos


jornais, parou. Recomeçou de novo: - Dia 18… deixa ver… isso

169
mesmo. Dia 18 de julho, O Quartel General precisou de motocicletas;
imediatamente apareceram motocicletas de todos os cantos da cidade
à disposição do Q. G. Nessa ocasião, os donativos angariados já
subiam a trezentos mil cruzeiros. Os batalhões de voluntários
continuavam a se formar, a partir.

Dos advogados, dos professores, daqui, dali, de todos os recantos


do Estado. Tenho a satisfação de contar que me alistei no batalhão
chamado “Liga de Defesa Paulista”

estava um pouco velho, cansado, mas foi com O maior entusiasmo


e ardor cívico que me alistei e parti.

Levantou a voz, endireitou O corpo.

- O policiamento da cidade era feito pelos civis: homens de todas


as profissões zelavam pela cidade em turmas organizadas dia e noite.
Batalhões de escoteiros trabalhavam ativamente por toda a parte,
outros escoteiros seguiram para as linhas de frente onde prestaram
valoroso auxílio. Dia 21 de julho, O Q. G. precisou de auto-caminhões
e automóveis; centenas de veículos foram postos à disposição do Q.
G. Os jornais anunciaram a tomada da fábrica de Piquete, foi um dia
glorioso para S. Paulo. Pediram: “Nossos soldados precisam de
cigarros, roupas de lã, meias, camisas.” As fábricas de cigarros
enviaram milhares de pacotes, as mulheres redobraram O trabalho, os
soldados não podiam sentir frio. Os donativos recebidos até essa data
subiram a 900 mil cruzeiros. Os jornais pediram: “frutas para nossos
soldados Em dias consecutivos, caminhões rodavam pelas estradas
levando aos que combatiam toneladas de fru fas. Assim passou-se O
mês de julho, cheio de esperança. Entrou agosto. O mesmo
entusiasmo, talvez maior… A mesma luta, O sacrifício de todos os
dias. Os hospitais das cidades próximas às linhas de frente estavam
cheios; começaram a chegar à Capital trens com feridos, com mortos
ilustres: Listas de mortos em combate. Os dias se passavam numa
ansiedade… cada vez maior. Turmas de enfermeiras de emergência
trabalhavam no Hospital Militar do Brás, na Cruz Azul, no Colégio
Mackenzie. Toda a gente trabalhava, ninguém ficou inativo. Dia 1° de
agosto O Quartel General precisou de binóculos de campanha, no
segundo dia, mais de 200 binóculos haviam sido entregues, depois

170
setecentos binóculos. Dia 3 de agosto: “Precisamos de capacetes de
aço para nossos soldados. Cada capacete custa quinze cruzeiros, quem
quer dar?” Em dois dias O povo paulista deu 10.000 capacetes aos
defensores da Lei. No quarto dia, 19.000 capacetes.

Continuaram a seguir batalhões para as linhas de frente: eram os


“Voluntários do Brás”, O “Felipe Camarão”, “José Bonifácio”. A
iniciativa de enviar garrafas térmicas aos soldados foi coroada de
êxito; nos primeiros dias fizeram donativos no valor de dez mil e
seiscentos cruzeiros. Os donativos para os capacetes de aço elevaram-
se a 381.000 cruzeiros…

Pensei: onde estará O capacete de Carlos? Preciso procurar entre


os guardados do porão, pregá-lo na parede do meu quarto, ao lado do
mapa da Austrália. Tio Damião contou que a 11 de agosto, alguém
escreveu nos jornais: “Basta de apelos. S. Paulo está só. Saibamos
vencer ou morrer, envolvidos no manto do nosso orgulho, sem atroar

08 ares com pedidos de socorro. É isto O que pensam os nossos


irmãos que estão dando seu sangue nas trincheiras. É O que mandam
dizer.” Deu um suspiro fundo, disse como que ainda em dúvida:

- E era verdade. S. Paulo estava sozinho.

- Afinal no dia 12 de agosto começou a campanha do Ouro para a


Vitória. “Para vencermos a Causa precisamos de ouro, prata, tudo O
que puderem dar para O bem de S.

Paulo. Paulistas, ouro para a Vitória, ouro para O bem de S.


Paulo.” Ah, meus filhos, foi a página mais bela do Movimento em prol
da Constituição; em cinco dias apenas foram entregues jóias, ouro e
prata no valor de um milhão e setecentos mil cruzeiros. Esse
desprendimento, esse altruísmo, esse desinteresse de um povo pode
ser igualado, mas jamais ultrapassado. Faz lembrar os antigos
bandeirantes quando foram à corte lusitana levar presentes de ouro ao
monarca. Este perguntou: Que quereis de mim agora?” Ao que os
paulistas embaixadores responderam bravamente: “Nada. Nós viemos
dar, não viemos pedir.” Assim em 32 deram, deram. Velhos, crianças,
moços, pobres, ricos, depositaram ouro e jóias nos cofres dos Bancos.
Milhares de mãos fizeram ao mesmo tempo O gesto de tirar a aliança

171
para dar e milhares de vezes O ruído seco do ouro batendo no ouro
foi ouvido pelos que estavam próximos. Eram pedacinhos de corações
que caíam com as alianças. Escreveram: “Do fundo das velhas arcas,
cofres foram retirados e as relíquias e jóias que continham,
encaminhadas aos Bancos onde se iam formando montões de ouro
para a reserva de que S. Paulo precisava.”

Em seis dias foram recebidos nos Bancos dois milhões e dezoito


mil cruzeiros. Mais de mil pessoas por dia faziam donativos. A 17 de
setembro, O número de dádivas subia a 42.625. Filas estacionavam
em frente aos Bancos esperando a hora . Como na Roma dos
Césares, os romanos despojaram-se do seu ouro para a restauração
do Erário Romano como na França de 1870, as

mulheres deram suas jóias e seus colares de pérolas para salvar a


França, todos os paulistas também deram ouro e brilhantes para salvar
S. Paulo em 1932. Quarenta dias depois de iniciada a campanha,
1.529 pessoas por dia faziam

ainda suas ofertas. Os que davam alianças recebiam em

troca alianças de ferro com estes dizeres: Dei ouro para O

bem de S. Paulo. 1932.” Foi incessante e ininterrupto: estojos


com talheres de prata e ouro, canetas de ouro de escritores e homens
de Estado, medalhas de bronze e ouro dos

atletas, estátuas de mármore, relógios, colares, anéis, tudo

que pudesse ser transformado em ouro para a Vitória foi

caindo nos cofres. Das cidades do interior, vinham centenas de


alianças, correntes, anéis de brilhantes… Enquanto isso a Escola
Politécnica continuava a fabricar trens blindados, granadas de mão,
metralhadoras, bombardas, morteiros, balas, bombas. Um fluminense
ilustre, juiz há muitos anos residente em S. Paulo, escreveu: “Esta
vasta oficina

de trabalho pacífico está transformada em formidável máquina de


guerra que a todos assombra e não é possível descrever. Por quê?
Porque este grande povo ama profundamente a sua liberdade
disciplinada pela Lei, que é a grande

172
força harmonizadora das sociedades civilizadas.”

E tio Damião com os olhos mais brilhantes, O corpo erecto e a voz


mais calorosa, continuou a falar.

- A subscrição para os capacetes de aço, sete dias depois de


iniciada, atingiu a importância de 494.700 cruzeiros e os 33.000
capacetes foram enviados para as trincheiras, vinte e quatro horas
depois de encomendados. E dia 19 de agosto, mais de um milhão de
cruzeiros foram doados para os capacetes. Quanto ao ouro, em fins
de agosto já haviam sido fundidos 140 quilos de ouro. Vejam isto,
vejam isto, O que um grande escritor falou num discurso: “Ao grito de
alerta: dai ouro a S. Paulo para que salve O Brasil, serpenteou pelo
Estado, rumo aos Bancos, a fila indiana de generosos doadores.
Tênues afluentes de um riacho desembocando na corredeira rebojante
da maior prova de desprendimento vista sob O sol, O rio se fez caudal
e a caudal oceano.

Eu vi! - Vieram os ricos e deram suas riquezas. Vieram mulheres e


despojaram-se de suas jóias. Eu vi! - Vieram os atletas e entregaram
seus troféus. Vieram os bispos e ofertaram suas alfaias e suas cruzes.
Eu vi! - Depois vieram as crianças e deram os áureos bentinhos que
haviam recebido na primeira comunhão. Vieram os heróis - velhos
soldados cheios de cicatrizes e deram suas medalhas. E vieram,
tisnados do sol, os operários e colonos. Também deram seu ouro.
Pareceu-me a metalização de suas fadigas feitas de moléculas de sol
nas carnículas da áspera faina dos cafezais rumorejantes. Eu vi! - por
fim os próprios mortos, como um braço espectral que saísse da
eternidade trazendo um punhado de ouro, deram a oferta póstuma do
preço das próprias coroas. Até os mortos dão ouro à santa causa do
Brasil.”

Apesar da fria manhã de julho tio Damião passava O lenço na


testa úmida de suor e continuava: - As casas do Soldado existentes na
Capital até princípios de agosto, atenderam mais de 70.000
combatentes dando-lhes frutas, doces, refrescos, cigarros. A Cruz
Vermelha enviou, até O dia 8 de agosto, 52.000 saquinhos de
medicamentos e a União Farmacêutica de S. Paulo remeteu mais de
três mil caixas com remédios urgentes.

173
O Posto da Rádio Record enviou 15 milhões de cigarros, além de
milhares de peças de lã e fardas Dia 25 - nossas tropas tomaram Vila
Queimada e tiveram grande vitória em Cunha A notícia alegrou a
cidade. Anéis de médicos, advogados, anéis de brilhantes e pérolas
continuavam a cair nos cofres os bispos entregaram as cruzes peitorais
e O ouro das igrejas. E passou-se O mês de agosto. A luta continuou,
tenaz. Chegavam soldados em licença, olhos cheios de sombras.
Incertezas. Chegavam notícias do Setor Sul: Os batalhões “9 de
Julho”, “14 de Julho”, “Fernão Dias”, “Marcílio Franco” “Borba
Gato” e outros - Exército, Força Pública e voluntáríos estavam sem
munição, sem canhões, sem aviação. Suportaram heroicamente nas
trincheiras um canhoneio que durou horas: mil e quinhentos tiros de
canhão foram disparados pelo inimigo, sem interrupção. Vejam bem:
mil e quinhentos tiros de canhão. Firmes nas trincheiras, sem arredar
pé, cobertos de lama e estilhaços, nossos Soldados tudo suportaram.

Quando os da ditadura avançaram pensando encontrar apenas


cadáveres depois do canhoneio, foram recebidos por rajadas de
metralhadoras e fugiram em debandada deixando mortos e feridos.
Assim eram os soldados nossos, como se fossem veteranos de longas
guerras. Os poucos aviões que auxiliavam nossas tropas voavam do
Norte para O

Sul, socorriam aqui, ali, sem poder fazer quase nada, eram os
mesmos para todas as frentes, realizando assombros de rapidez e
eficiência. Enquanto isso dezenove fazendeiros ofereceram 700 bois,
outro, antes de partir para a linha de frente, doou O gado de sua
fazenda que atingia centenas de cabeças. E O trem blindado vencia
brilhante mente na frente Sapucaí-Eleutério, lá onde O primeiro
batalhão Esportivo teve O batismo de fogo. E aqui em S. Paulo os
“chapinhas”, nomes conhecidos nas artes, na indústria, no comércio,
nas profissões liberais, na ciência, zelavam pelos moradores da cidade,
vigilantes nas noites frias, nos bairros distantes…

Deu um suspiro fundo e parou um instante corou a recordar.

- E O senhor, tio Damião? Combateu?

Pensou um pouco, acanhado como se tivesse cometido uma falta e


respondeu titubeando: - Eu? Eu não fui aceito para combater porque

174
estava velho. Fui “chapinha” também. Velei as ruas da Mooca durante
todo esse tempo. Meu turno era da meia-noite às oito da manhã.
Passeava nessas horas da noite

por todas as ruas vigiando bem e durante esses meses nunca houve
um roubo, nunca houve briga. Paz absoluta.

- Chegou O mês de setembro. Começou a pairar a incerteza em


toda a parte; a retaguarda trabalhava mais, dava coragem aos que
partiam, mas uma dúvida ficava pairando no ar, indefinida. Ninguém
queria falar, uma espécie de amargura foi dominando as fisionomias.
Que estaria sucedendo? A imprensa paulista trabalhou como nunca;
noite e dia os operários não largaram as máquinas rotativas, era como
se fossem máquinas de guerra. Todos os jornalistas foram soldados,
sem trégua, sem descanso. Nunca as penas dos escritores e jornalistas
tiveram maior brilho do que na campanha de 32; tinham como que
fulgurações de gênio. Muitos combateram nas trincheiras e os que
ficaram não desertaram. Nenhum sequer deixou sua trincheira
espiritual, numa demonstração de lealdade e sacrifício sem igual. E
para as frentes de batalha que eram mais vastas que as da primeira
grande guerra, seguiam batalhões, esquadrões de cavalaria, milhares
de voluntários. A Escola Politécnica trabalhava incessantemente fazia
até metralhadoras, mas que estaria acontecendo? O ouro para a
Vitória estava avaliado em três milhões de cruzeiros. Com tanto
dinheiro, boa vontade, soldados valorosos, trabalhos sacrifícios,
venceríamos. Os dias foram passando tão lentamente… Por que não
vinham notícias das vitórias do nosso exército?. Os soldados
continuavam a morrer nas frentes. O ouro estava avaliado em quatro
milhões. Os soldados a morrer. A quatro milhões e meio. Os soldados
a morrer. A cinco milhões de cruzeiros. E ainda havia a campanha dos
capacetes de aço, das garrafas térmicas, as cruzadas artísticas, as
doações em dinheiro, em gêneros. Ê em vidas, vidas, vidas… Os
soldados a morrer. Foi quando começaram a chegar do Norte famílias
que fugiam das cidades invadidas O êxodo foi completo. Toda a
população das pequenas cidades às margens do Paraíba deixou suas
casas, suas fazendas, seus sítios e tangendo seus animais tristemente
pelas estradas sem fim, caminhava, caminhava em busca de paragens
mais tranqüilas. Os longos trens, quase intermináveis passavam

175
lentamente dando apitos estridentes, arfando, gemendo, levando em
seus vagões multidões aterrorizadas. Boiadas levantavam O pó dos
caminhos; carros de todas as espécies, cavaleiros, automóveis
passavam, passavam. Milhares de pessoas iam a pé; famílias levavam
velhos, crianças, animais domésticos, gaiolas com pássaros queridos.
O mugido dos bois, O pranto das crianças, O grito dos homens
enchiam a estrada branca de luar. E durante toda aquela noite e nos
dias consecutivos, multidões passaram, ainda. Lá atrás ficavam pontes
destruídas, cidades silenciosas, onde apenas as casas, como fantasmas
reprovadores e abandonados, esperavam os soldados da ditadura. No
Oeste, na cidade de Ribeirão Preto, seus homens mais ilustres
reuniram-se na Câmara Municipal a fim de deliberarem que atitude
devia ser tomada diante da trágica verdade: os ditatoriais estavam a
três dias apenas da cidade, Ribeirão Preto cairia nas mãos do inimigo.
Como nas grandes ocasiões da vida de um povo, cada cidadão ilustre
deu sua opinião. Reunidos no salão principal, alguns ainda fardados,
recém-chegados das trincheiras, contavam que cidades importantes
como Orlândia, Igarapava, Franca já haviam caído, agora era a vez de
Ribeirão Preto. Um protesto veemente, como um grito de revolta,
partiu de quase todas as bocas. Não, Ribeirão Preto não podia cair.
Gritos de raiva e ódio atravessaram O salão, enquanto que alguns
mais velhos e calmos, pedindo silêncio, falaram que nada havia a
fazer. Combater de que modo? Não havia armas, não havia nada. Era
receber pacificamente os soldados da ditadura e aceitar O destino.
Protestaram novamente: não! Deviam abandonar então a cidade,
fazer a população fugir para que, quando os adversários entrassem,
encontrassem uma cidade sem vida. Outros, de ânimo exaltado,
recusaram. Não, deviam reagir, combater de qualquer maneira.

- Mas não temos meios, disseram os mais velhos, cheios de critério


e desânimo.

- Devemos combater com O que temos, responderam os mais


moços. Por acaso não temos revólveres? Não temos carabinas?
Combateremos com O que temos.

- É loucura ponderaram os mais velhos. Perderíamos vidas


inutilmente.

176
- Antes sacrificar vidas do que demonstrar covardia, respondeu um
deles.

Outro exaltou-se mais:

- E mostraríamos aos ditatoriais que sabemos reagir, sabemos


revidar afrontas. Não podemos entregar uma cidade como a nossa,
não devemos.

- Outros antes de nós disseram a mesma coisa, responderam os


mais velhos. Quem quer entregar sua cidade? Franca, Orlandia,
Igarapava, Ituverava estão derrotadas e suas gentes não queriam a
derrota… O Norte do Estado também está nas mãos deles…

- Mas Ribeirão Preto tem mais recursos, tem O dever de saber


defender-se não pode se entregar sem luta, argumentaram os mais
moços.

- Amigos, amigos, aconselhavam cautelosamente os velhos e


ponderados habitantes, a Gausa infelizmente está perdida. Saibamos
perder a partida. Saibamos aceitar a derrota de cabeça erguida.

Alguns choravam, entregar a cidade depois de tanto sacrifício?


Continuaram as discussões: a maioria preferia abandonar a cidade,
levar tudo, não deixar uma pessoa para receber O inimigo.
Novamente deliberaram e depois de horas de discussões, ficou
assentado que ninguém fugiria, nem abandonaria Ribeirão Preto.
Nada havia a fazer. Os cidadãos que ficassem em suas casas, altivos
em suas atitudes, firmes nos seus postos. Mas ficassem. Terminou a
reunião. Dias depois os soldados da ditadura invadiram Ribeirão Preto.
Lá encontraram homens serenos e vigilantes demonstrando nas
atitudes que assim como sabiam ganhar, também sabiam perder com
dignidade e honra.

Enxugando novamente a testa e os olhos, tio Damião fêz uma


pausa.

- E S. Paulo? E S. Paulo? perguntaram as crianças.

- Em S. Paulo perguntava-se: Os nossos recuavam? Por que não


resistiam? Por quê? Então vieram as primeiras notícias: não tínhamos
armas, nem aviões, nem canhões, tínhamos apenas soldados. Que

177
pode fazer um soldado desarmado? S. Paulo estava cercado, sozinho,
abandonado por todo O Brasil. Foi trágico, muito trágico. Nas ruas,
nos hospitais, nos cafés, nos bondes, nas praças, falavam do mesmo
modo, tinham O mesmo pensamento: São Paulo não seria entregue.
Preferia morrer. Como Sagunto, cercada de todos os lados pelos
cartagineses, esperou em vão O socorro de Roma e sucumbiu lutando
nas portas da cidade, S. Paulo também lutaria até O fim nem que para
isso fosse preciso morrer O último paulista. A cidade seria incendiada
e arrasada para que quando entrassem os vencedores, pisassem uma
cidade morta, em ruínas.

Conquistariam O cadáver de uma cidade. E os outros vieram vin


do… A retaguarda não podia acreditar, ela que dera tudo: quase sem
dormir, sem se queixar, trabalhando, sofrendo, não podia acreditar na
derrota. Não, era preferível morrer, ser uma outra Sagunto. Já não
havia esperança, somente fadiga, imensa e trágica. No dia 30

de setembro veio publicado: “Ao povo, tendo O comandante do


exército Constitucionalista, com O fito de não causar à Nação mais
sacrifícios de vidas, nem mais danos materiais, proposto ao governo, a
imediata suspensão das hostilidades, a fim de serem assentadas as
medidas, etc, etc.” Tudo fora inútil, tudo perdido. S. Paulo lutara
sozinho durante três meses por um ideal que agora estava morto. O
pranto correu em todas as faces, os soluços explodiram no peito das
mulheres. O sofrimento, O trabalho, a angústia das horas lentas e dos
dias sem notícias, as mãos feridas na costura e nos trabalhos de
enfermagem, as noites sem sono, as vigílias, os mortos, as lágrimas
pelos mortos, as dádivas, tudo fora perdido.

E tio Damião baixou os olhos para os jornais velhos, como se


estivesse chorando Acariciou as notícias com de dos trêmulos, juntou
os jornais novamente para guardá-los, mas antes, olhou as crianças,
endireitou O busto, perfilou-se todo olhando para a frente como se
falasse para a História do Brasil, e disse: - Ouçam bem, meus filhos, S.
Paulo não perdeu nem foi derrotado. S. Paulo caiu pela traição dos
que prometeram e não cumpriram.

E deu uma palmada no maço de jornais como uma confirmação às


suas palavras. Rematou: - Fiz até a marchinha intitulada “S. Paulo de

178
32”, inspirada nos atos de bravura e na grande abnegação de nossa
gente. Já me ouviram tocar na rabeca.

Tamborilou os dedos na ponta da mesa ao mesmo tempo que


cantava ta-ra-ta tum-tum-tum. Ouvi vozes na porta da rua.

- Esperava essa carta?

- Esperava, deve trazer notícias de meu irmão Alfredo que está na


guerra.

- Espero que sejam boas notícias.

- Muito obrigada.

Comecei a tremer, não pude falar e Isabel me entregou a carta que


O homem trouxera. Apertei-a um momento, parada no meio da sala,
ouvi baterem O portão, e as vozes das crianças que falavam de
soldados. A carta não traria notícia alguma, apenas me chamaria ao
escritório; abri O envelope, lá estavam as palavras que eu lera na carta
do triste: “Solicito por gentileza O comparecimento de V. S. na sede
desta instituição a fim de tratar de assunto de seu interesse.”

Muito bem, iria saber alguma coisa, iria saber hoje mesmo.

Dobrei a carta demonstrando muita calma desdobrei-a outra vez


para que todos lessem. Chamei as crianças, Isabel leu alto, tio Damião
ouviu, sorriu, coçou O queixo.

Depois tomou a carta, leu alto outra vez, bem devagar.

- Isso mesmo, a excelentíssima foi chamada à Cruz Vermelha.

Vesti O casaco, procurei a carteira, todos me auxiliavam. Eduardo


me aconselhou a ir de luvas, bem agasalhada, fazia frio. As luvas
estavam furadas nas pontas dos dedos, luvas rotas. Tolices, num
momento destes vou pensar em luvas? Isabel atrás de mim disse que
eu devia levar O guarda-chuva, estava garoando. Nem tinha reparado,
faz frio? Temos garoa? Muito bem. Que horas são? Não reparei que
horas eram, lembrei da fila, devia estar enorme, até na porta da rua.
Sílvia perguntou, e um golinho de café, vovó? Tio Damião correu para
a cozinha, faria depressa, depressinha, a excelentíssima não podia sair
sem tomar alguma coisa. Respondi a Sílvia, obrigada, minha querida.

179
Respondi a tio Damião, obrigada, até logo. Na volta, na volta. Foram
me acompanhando até a porta. Felicidades, felicidades, Isabel gritou
quando eu já estava na rua, tio Damião sacudiu a mão seca.

Eu corria pela rua a fora. Desci do ônibus, atravessei a cidade, a


carta na bolsa. Finalmente vinha alguma notícia de meu filho Alfredo:
“Êle está com saúde, combatendo no Pacífico.” Perfeitamente. E se
estivesse ferido? “Êle está ligeiramente ferido num hospital da…”
Felício me disse que êle deve estar na Austrália, fica por aquele lado, a
tal Austrália. Ligeiramente ou levemente? Coisinha à-toa, ferimento
sem importância. E se estiver prisioneiro? “Êle está no campo de
concentração de…” Bobagem, mentira. Solicito por gentileza O
comparecimento . . Seu filho está prisioneiro, ou doente, ou morto.
Barbaridade.

Êle não escreveu porque não gosta de escrever, conheço muita


gente assim, não gosta, pronto. Alguém tem alguma coisa com isso?
Antes da guerra êle também não escrevia sempre, passava mais de um
ano sem escrever, imagine agora com esses combates, bombardeios,
essa maldição a sacudir O mundo e êle a procurar papel, caneta:
“Mamãe, vou bem só com muito barulho por causa das bombas.”
Alguém terá caneta naquelas paragens? Duvido. Quem tinha já
perdeu. No meio do pandemônio, como diz D Genu, onde êle vai
arranjar papel para me escrever? Deus me livre, é impossível.

Levei um encontrão, bateram no meu ombro, desculpe. Desci a


Rua Libero Badaró. CASIMIRAS - PRESENTES FINOS. LIVROS -
PRESENTE DE AMIGO. Há uma cantiga que Carlos gostava:
“Felici… dade foi-se embora e a saudade no meu peito ainda mora…
Morou sempre desde que O primeiro desertou. Meu passos vão como
que se arrastando nesta tarde triste, vou retardando, minha pressa vai
diminuindo, minguando, toda minha pessoa vai ficando esquisita,
tenho vontade de fugir, não parar na porta ir alem, passar, andar até
não poder mais e voltar para casa livre deste fardo, desta carta que me
queima. Ou se receber alguma notícia má, dar risada, responder aos
gritos Que e que eu tenho com isso? Que me importa? Solicito por
gentileza… que irão me dizer? Sussurrar ao meu ouvido?

180
Lembro-me de quando êle era pequeno, menino levado Andava
sempre com canivete no bolso, dizia nomes feios, tinha uns amigos
muito moleques, um terror. Saía cedo de casa, voltava tarde,
respondia vagamente às minhas perguntas, fui não sei onde, fiz isto,
aquilo. Não gostava de estudar, não admiro, eu também não gostava;
fui péssima aluna, uma das piores, nunca sabia nada. Êle também não
sabia, não estudava, tinha idéias diferentes dos irmãos, era diferente
em tudo. Dizia que faria qualquer coisa para melhorar O mundo, havia
muitos erros falava em diferenças de classes, em lutas, coisa assim. Às
vezes brincava: Esta D. Lola… Dava tapinhas no meu ombro, sempre
tão delicado, tão amável, tão bom. Me trazia presentinhos, nunca se
esquecia da velha. Adorei esse filho não sei se porque esse era
diferente, para os diferentes a vida é mais difícil. É verdade, ninguém
compreende os diferentes, mas eu compreendia Alfredo.

Quantas vezes não O protegi quando entrava em casa de


madrugada, não O escondi dos irmãos quando vinha de umas
reuniões políticas, e quando os outros vinham me contar que Alfredo
freqüentava isto e aquilo, que Alfredo cairia nas mãos da polícia, que
estava em caminho errado, eu dizia fingindo aflição: “Meu Deus, que
menino. Que hei de fazer?” Mas eu sabia tudo, pois muitas vezes êle
se esquecia da chave e era eu quem abria a porta, censurava-o por
voltar tarde, zangava-me um pouco, mas no íntimo não me importava
porque Alfredo era diferente e ninguém pode mudar O gênio de um
filho. Para aqueles que levam vida igual à dos outros, que nascem,
seguem a mesma rotina da família, estudam, casam, formam nova
família, sempre naquele ramerrão certo, naquele caminho largo sem
tropeços, sem encruzilhadas, tendo as mesmas idéias que O pai, O
avô, que todos os antepassados tiveram, a vida é um lago muito
tranqüilo, sem ondas. Mas para aqueles que nascem com outras idéias,
a vida é um rio impetuoso deslizando sobre pedras, despencando das
alturas, mergulhando em abismos, rugidor, desesperado por se evadir
e em vez de procurar O mar como todos os outros, desdobra-se em
cataratas e desaparece no desconhecido.

Assim tem sido a vida de Alfredo, um rio inquieto em busca de


outras paragens, outros abismos. “Lembre-se de que luto pelo ideal
que sempre desejei e depois desta guerra O mundo vai mudar, sempre

181
para melhor.” Ah, meu filho, este mundo não muda, talvez sejam suas
idéias que mudem, que se desmoronem como um castelo de areia.

Tanta coisa tem se desmoronado, tanta idéia tem ruído com O


correr dos tempos e O mundo não melhora, ou melhora para uns,
piora para outros, é como uma balança que pende ora para a direita,
ora para a esquerda. As idéias e as ambições dos homens são muito
pesadas e desiguais para que a balança fique equilibrada, e O mundo
está pior, meu filho, cada vez pior

Andei mais lentamente, entrei, tomei O elevador. Ficarei na fila?


Mas se eu tenho a carta na mão, irei até a porta, quanto mais
depressa melhor, seja O que fôr.

Lembrei-me dele pequenino, sempre foi O mais forte, O mais


robusto. D. Genu dizia que não tinha inveja de mim, tinha inveja da
mãe de Alfredo, quanto lamentava não ter um filho Alfredo. Queria-o
tanto que protegeu-o na noite da fuga. E quando eu recebia notícias,
corria a contar à minha amiga; lembrávamos juntas as peraltagens do
menino e as idéias do moço, até que um dia veio a guerra. Foi como
uma barreira que me separou de Alfredo, além da distância, a barreira
intransponível da dificuldade de comunicações. “Estou lutando para
expulsar os invasores da Austrália.” A barreira foi se tornando mais
densa, com maior espessura, mais difícil de ser transposta.

Quando os sinos das igrejas começam a tocar, parecem dizer aos


meus ouvidos: três! quatro! três! quatro! representam os anos de
silêncio, sem notícias. Barreira fechada.

Toda a gente a dizer agora: “Procure a Cruz Vermelha. Peça


notícias à Cruz Vermelha.” Muito bem.

E quando a moça me estendeu O telegrama comecei a rezar e a


olhar a mão da moça. Sim senhora pois não Se eu tivesse aqui
comigo “Solilóquios da Alma Aflita diante de Deus”, ficaria mais
tranqüila, mas não tenho nada. Que fazer? “Tenha dó de mim, tenho
sofrido tanto, sabeis meu sofrimento tão bem quanto eu, sabeis minha
luta, meus sacrifícios, minhas amarguras. Sabeis que perdi um filho de
vinte anos e antes que O levassem, cantei para êle as cantigas da

182
infância, aquelas mesmas que cantaram para mim; e plantei roseiras
no seu túmulo, as rosas são brancas e grandes, as que êle mais
gostava; rego todos os anos com minhas lágrimas para que elas sejam
mais belas e mais viçosas. E não é por isso que poderei perder outro
filho, não Senhor, não é por isso. Apesar de considerá-lo quase
perdido há tanto tempo, há sempre uma esperança no fundo do
coração. Sempre uma esperança. E que desgraça se não fôsse a
esperança. Que desgraça.”

Tomei O papel, olhei, fiquei contente porque não entendi uma


palavra. Obrigada Delicadamente ela disse segurando de novo O
papel: - Vou ler para a senhora.

- Não precisa muito obrigada. Não precisa.

Disse que não custava nada, O telegrama era em inglês, cia


entendia muito bem, não custava nada. Ia ler. Tive vontade de tapar
os ouvidos, gritar por socorro, deixar a moça com O telegrama na
mão, ir embora. A vozinha dela era delicada, falou com atenção, não
entendi nada. Tornou a repetir com paciência, mostrou as palavras
com a ponta do lápis, eu fui seguindo O lápis, a mão da moça, minha
vista ficou turva, meu ouvido fêz zuin… “Paciência. Meios para
adquiri-la.” Sim senhora.

- Vou repetir. Diz assim: “Referindo ao seu telegrama 1.247 ponto


Nós ainda não encontramos Alfredo Abílio de Lemos ponto
Continuamos a procurar ponto”

Um intervalo. Ouvi uma belíssima orquestra tocando música


desconhecida. Onde estarão tocando? Olhei à volta. Muitos
instrumentos. Sílvia está aprendendo piano. Violinos Deus louvado,
violinos, sempre gostei de música Tio Damião está compondo uma
polca para quando êle chegar. Alfredo. A moça repetia as palavras do
telegrama devagar, pôs O dedo em cima de cada palavra, com a ponta
da unha acariciou O nome Alfredo. Devagarinho.

- Não foi encontrado? Falei com voz firme, tirei os óculos da bolsa,
fixei O papel, O nome de meu filho estava ali, inteiro. Com todas as
letras, não faltava nenhuma.

183
Li O nome outra vez, estava direitinho, muito bem. Os violinos
cantavam, todo O ambiente vibrava de entusiasmo. Veio a voz: - Mas
então êle não morreu?

Sorriu ternamente, tinha olhos grandes, paciência.

- Não senhora, se tivesse morrido, eles sabiam. Pancadas fortes,


levei a mão à boca para conter O coração. Despedi-me, agradeci,
atordoada. Perguntei se po dia levar O telegrama, queria mostrar a
toda gente, aos da família, sabe? Voltei para dizer que estranhava
muito O exército norte-americano não saber onde meu filho estava, a
última carta viera do Pacífico. A última, sabe? Ela respondeu que O
exército norte-americano estava muito espalhado: Inglaterra, Itália,
África, Japão.. Austrália.

Repetiu: Austrália. Também falei - Austrália - e ri. Tornamo-nos


íntimas, amigas íntimas. Quem sabe êle foi mandado para outro lugar?

- Tem razão. E como é seu nome?

- Meu? Leia.

Rimos outra vez. A intimidade cresceu entre nós.

Já perguntei uma vez. Desculpe e muito obrigada. D. Leia, a


senhora me deu uma esperança.

Ela ficou sorrindo. Tropecei na entrada do elevador, levei a, mão à


boca outra vez, parece que O coração estava ali, ia saltar. Sempre fui
velha forte, serei forte.

Sinfonia n. 40 de Mozart. Essa foi a música que ouvi, ouvi de


manhã em casa pelo rádio e ouvi enquanto recebia O telegrama.

O n.° 14 estava demorando - SEGUROS DE VIDA CINE SANTA


HELENA. Veio O 16, veio O 18.

- Então? Recebeu alguma notícia, mamãe? Como foi?

Isabel gritou do portão, os netos estavam no ponto do ônibus,


esperando.

- Não foi encontrado no Pacífico. D. Leia disse que O exército


americano está muito espalhado, êle deve estar em outro lugar. Deve

184
estar bem, do contrário mandavam dizer.

Sacudi no ar O telegrama. Silêncio profundo. Felício no terraço,


tirou O charuto da boca. Triunfante.

- Eu não disse que era difícil? Quase impossível.

Recostou-se na cadeira, feliz por ter acertado. Contei que a Cruz


Vermelha ia continuar a procurar em outros países, mandariam
notícias logo que tivessem. O telegrama estava ali, D. Leia…

- Quem é D. Leia?

- A moça que me deu O telegrama. Examinaram-no, olharam,


ninguém entendeu. Expliquei, olhem aqui O número e as palavras que
D. Leia traduziu, está era inglês.

Aqui é Genéve, cidade da Europa…

As crianças disseram que era na Suíça, pois é isso mesmo Eduardo


e Carlos pediram para ler, estavam aprendendo inglês. O pai
concordou, orgulhoso. Leram - Alfredo comovidos. Isto quer dizer -
não foi encontrado.

Stop é ponto. Assinado - Intercroixrouge Xal, tal. Ficaram com O


papel na mão reviraram leram palavra por palavra. Felício voltou ao
charuto, Isabel riu, contente, há tempos não a via tão contente.

- Já é uma esperança, hein, mamãe?”

Isso mesmo; D. Leia disse que se êle tivesse morrido, saberiam.


Deve estar em outro lugar qualquer, não no Pacífico.

Torciam O telegrama nas mãos, A chuva caía com estrondo no


telhado, a ameixeira estremeceu e O vento que há muitos dias não
rondava a casa, sacudiu todas as portas.

Abri O “Caminho Reto” na página 384: “A morte chega na hora


menos pensada.” “

185
Capítulo XI

186
Transcrevi as palavras do telegrama para Itapetininga e para O Rio
de Janeiro. Julinho telegrafou em resposta: “Congratulações cordiais
de toda a família. Lema: não perder as esperanças. Julinho.” Clotilde
me aconselhou fazer duas novenas e me mandou uma oração
milagrosa.

Felício levou O telegrama para um colega do Departamento


traduzir, voltou dizendo que O colega não fora esse dia e quem
traduzira fora D. Augusta. Passara na casa do Honório para provar
uns biscoitinhos de araruta (por sinal que deliciosos) e ela se oferecera
para traduzir. Explicou desdobrando O papel: Olhe, as palavras
textuais são estas, quer ver Este stop quer dizer ponto final Isto quer
dizer…

Repetiu minhas palavras, mas D. Augusta traduzira, deu mais valor


ao que estava escrito. Os meninos sentiram orgulho por ter um tio na
guerra do Japão, colocaram O telegrama sob a fruteira, bem à vista.

Passei pela casa de D. Genu, só para contar a novidade. Mostrei O


telegrama, expliquei, sabia de cor as palavras; minha amiga comoveu-
se, enxugou as lágrimas, alisou O papel como se alisasse a mão de
Alfredo. Sorriu.

- Morreu O quê. Um dia a penhora me disse toda chorosa: “Ah,


D. Genu, tenho quase certeza de que êle morreu, nunca mais me deu
notícias. Morto no mar, gostava tanto do mar…” Morreu O que,
nunca acreditei um riquinho assim que êle tivesse morrido (mostrou a
unha do mindinho). Ainda vamos dar muita risada com as proezas que
êle vai contar. A senhora vai ver, esperou japonês que não foi vida. . “

Riu alto. Enfim já é uma esperança falei. Se Alfredo tivesse


morrido eles sabiam, dizem que os norte-americanos são muito
organizados, tudo que eles fazem é perfeito, até a guerra. Falei com
voz forte, esperançada:

- Pense um pouco. Se Alfredo estava combatendo com eles e


tivesse morrido ou desaparecido, então não haviam de saber?

187
O nome de Alfredo estaria na lista do exército norte-americano,
haviam de saber qualquer coisa. Isso é que eu penso.

Ela continuou, quis falar. Eu continuei, inventei historias, elogiei O


exército dos Estados Unidos, gabei a organização, tudo deles é
perfeito, sem falhas. Convencida, animada, para que a esperança
crescesse, virasse realidade.

Minha amiga concordou, falou é isso mesmo, meu genro, O


marido de Lili, trabalhou numa empresa norte-americana há muitos
anos, empresa de transportes, só vendo como êle gabava estava
satisfeitíssimo, homens corretos aquêles. Depois encrencou com um
colega de trabalho, intriga, inveja compreende? Saiu uma gororoba
danada, briga feia O genro deixou a empresa; mas gabava muito,
gente boa. Meu olhos riam, minha boca ria, isso mesmo são
formidáveis, não lembra Alfredo como escrevia que vivia contente?
Cada carta elogiosa, satisfeita da vida, dava-se bem com eles, gente
boa.

- Eu me lembro que numa carta contava que combatia os


japoneses, êle e os norte-americanos eram íntimos, eu tenho a carta,
lembra-se? Estavam num lugar chamado Guadalcanal, nunca me
esqueço, lutava junto com os norte-americanos, escreveu que a
Austrália podia ficar tranqüila, eles expulsariam os japs de lá.

Rimos juntas, D. Genu repetiu alto - japs - lembro bem agora. E


que O mundo ia ficar melhor, combatia por um mundo melhor. Isso
mesmo, lembro muito bem. Ficamos nos fitando um instante, rindo
ainda, minha amiga continuou:

- Por falar em mundo melhor, onde é que a senhora compra


manteiga? Aqui no nosso empório não há mais.

Contei que também não tínhamos manteiga e quando encontrava,


que preço, hein? E O leite? Que dificuldade. É verdade. A conversa
voltou para a vida cara, tudo pela hora da morte, como se pode viver
assim? Nem sei como O povo agüenta. Metemos a lenha no governo,
na política, nos homens que governavam, queixamos amargamente de
tudo oh, vida amarga, nem açúcar para adoçar, suspirou D. Genu.
Levantei-me, guardei a preciosidade do telegrama, despedi-me. Ela

188
disse - Pois receba meus parabéns. A notícia não dá muita certeza,
mas meu palpite é que Alfredo está bom e ainda vai voltar para contar
quantos inimigos liquidou. Aquele é homem de verdade, nunca teve
medo de nada. Lembra a noite em que foi perseguido? Pensa que êle
estava com medo? Qual, aquele é valente no duro, qualquer dia está aí
fazendo surpresa, contando aventuras. Se os americanos soubessem
alguma coisa ruim mandavam contar, morte anda no ar É porque êle
está bom Exército organizado esse exército norte-americano.

Criei forças, nem fale. De pé na porta da rua, tornamos a elogiar


O exército, a descer a catana no governo, que nem põe bondes nem
ônibus para O povo, O pobre que marche a pé, ou fique nas filas. Uns
sem-vergonhas, a gente que agüente Voltei para casa, animada
aliviada com as palavras da minha amiga, que na porta da rua me
sussurrara: “Reze para Santo Antônio: os doentes se levantam sãos, O
mar se abranda, são livres os presos. Os perigos se apartam, os
pobres são remediados, bens perdidos recobram moços e velhos.”

Felício estava com amigos na sala. Abriu garrafa de vinho, fizeram


brindes, falaram na invasão, toda a gente falava. Beberam pelos
aliados, pela invasão, pelas famílias, Felício ficou prosa, contou a vida
toda, fiz isto, resolvi aquilo, ganhei dinheiro, aconselhei fulano, bebeu
mais um copo. Os amigos olhavam, aprovavam, justamente, você tem
razão, também penso assim. Êle foi se animando, tomando mais meio
copo, contando histórias, se elogiando, crescendo, subindo. Já era
quase um santo a caminho do céu, anjo de bondade para os filhos,
marido exemplar, genro delicado e amigo. Todos ouviam com
atenção, os meninos piscavam de sono mas queriam ficar ouvindo,
era tão raro ter visitas, O pai esquecia de ralhar e os elogiava.
Concordavam, isso mesmo, você fêz muito bem, eu faria O mesmo,
tem razão.

Outra garrafa, este vinho é especial. Mais brindes, mais elogios


“Eu trabalho de noite, eu comprei terreno, eu vendi por tanto ganhei
tanto. Eu acertei quando disse para sicrano, eu tinha razão disto, eu
sabia há muito tempo que ia acontecer, quem não estava vendo?”
Entrou no reino dos céus acompanhado dos anjos e santos, tôda a
corte celeste cantando hinos e tocando trombetas, O arcanjo Gabriel
na frente com a espada de fogo, escoltando-o. Hosanas, salve.

189
Terminou com as garrafas vazias, as visitas ainda concordavam, as
crianças cochilavam, as cabeças na mesa. Isabel levou Lena,
delicadamente êle mandou os filhos para O quarto, abençoou-os,
acompanhou-as com olhar terno. E começou a traçar os planos da
invasão. Explicou que os aliados deviam fazer assim, forçar neste
ponto aqui, a vitória será garantida. E se não fizerem assim, não
conseguem coisa alguma. Concordaram.

Falou no telegrama, tivera razão, dificilmente D. Lola teria


resposta satisfatória, bem avisei, não foi? Pediu O telegrama para
mostrar, traduziu as palavras, os pontos finais, voltou, foi para diante,
para trás, parou, continuou. Foi quando D. Augusta apareceu,
modesta tradutora.

- Quem é D. Augusta? alguém perguntou.

Contou quem era, fêz elogios à arte culinária da mulher do


Honório seu colega, falou sobre biscoitos, broas, geléias, pudins, pão
de macarrão e O inglês de D. Augusta.

Sorriu modestamente. Concordaram.

Julinho aparecia duas vezes por ano. Vinha para uma visita rápida.
Tomava café, contava casos. Da última vez, ficou muito tempo virando
O telegrama entre as mãos.

Falou na guerra, na invasão. Quando O assunto esmorecia, eu


perguntava: - E os negócios como vão? A firma vai bem?

Êle ria, Fagundes Vaz e Cia. Limitada? Cada vez melhor, dando
bom lucro, nunca a firma ganhou tanto como nesta guerra. Eu
escutava, essa mesma guerra que pode matar Alfredo. Eu não queria
que êle fosse embora, então continuava a fazer perguntas; queria
prendê-lo, achava que se não fizesse perguntas, êle se despedia, ia
embora.

Minha cabeça trabalhava forjando coisas para perguntar, queria


que ficasse mais tempo, esquecesse de partir. Contava das músicas
que Sílvia estudava, contava dos estudos dos meninos, das travessuras
de Lena.

- Sílvia vai começar a tocar Mozart.

190
Seus dedos tamborilavam na tábua da mesa.

- Mozart? Ela está adiantada.

Muito. Tirava um cigarro, batia, começava a fumar. Perguntei se


continuavam a jogar, jantar fora, ir a festas, sempre muitos
compromissos? Disse que sim, muito mais, naquela ocasião deixaram
de ir a muitos lugares por minha causa, para me fazer companhia.
Fiquei perturbada, como não havia percebido?

- Mas que tem isso? Tivemos muito prazer em hospedá-la, quando


vai agora?

De pé, na minha frente, parecia mais alto, encorpado, bem


nutrido, os cabelos começando a rarear nas têmporas, a pele do rosto
muito lisa, e levemente rosada, os bigodes bem cortados, pretos,
lustrosos. Bem vestido, gravata vistosa, uma bonita pérola
sobressaindo no tecido colorido.

Meu Julinho. Tornou a perguntar de pé na minha frente, forte e


rico: - Quando vai agora?

Não sabia era preciso resolver O caso de Alfredo, sabe? De


repente pode chegar um telegrama e eu não estou aqui. Riu sacudindo
os ombros, felicíssimo com os lucros da firma, com a vida.

- Ora O Alfredo qualquer dia aparece por aí e a senhora fica


tranqüila. Não aconteceu nada para êle, sou capaz de apostar Ficou
olhando a ponta do cigarro e eu fiquei séria; eu não gostava quando
êle falava de Alfredo assim levianamente parecia consolar uma
criança: “Você recebe a boneca, não se assuste.”

Então tem havido festas?

Sim, até haviam convidado um conde português para jantar. Maria


Laura ficou aflita, como é que êle convidava um conde se não tinham
uma toalha de renda verdadeira para cobrir a mesa Tinham tantas
toalhas… Mas ela queria uma toda de renda verdadeira digna de um
conde. Êle correra à cidade visitara as principais casas, fora às lojas
melhores à procura da toalha. Encontrou afinal uma preciosidade,
com bordados nos cantos belíssima. O jantar foi fino serviram

191
champanha pratos escolhidos, os sogros haviam jantado também, ao
todo quatorze pessoas.

Isabel entrara na sala e escutava sentada num lado, os olhos muito


abertos como se escutasse uma história de fadas. “Então a Fada boa
levantou a varinha e fêz aparecer uma mesa com iguarias finíssimas,
os candelabros brilhavam na toalha de renda.”

- E a toalha? Custou caro?

Hesitou um instante, sorriu, orgulhoso porque a história era


empolgante, as Fadas eram boas e os ouvintes atentos. Amassou O
cigarro no cinzeiro, vinte mil cruzeiros.

Dei um gritinho de rato assustado:

- Julinho, que despesa enorme você teve. Vinte mil cruzeiros? Se


você não contasse, eu não podia acreditar não é mesmo, Isabel?

No íntimo eu estava radiante meu filho Julinho podia comprar


toalhas caríssimas, era rico eu tinha um filho rico. Isabel sorriu
palidamente decerto pensando na Fada boa sem coragem de
perguntar ao irmão onde a encontrara Êle riu-se alto, bateu nas
minhas costas, despediu-se, precisava ir, beijou minha mão. Quis
ainda retê-lo, ofereci doce de marmelo que recebera de Clotilde,
ofereci outro café fresco, olhei à volta procurando avidamente O que
podia oferecer ou falar para que êle ficasse mais um pouco.

Precisava ir, tomaria O avião noturno para O Rio, Maria Laura


esperava-o. Abraçou Isabel, deu um piparote no rostinho de Lena,
entrou no automóvel que esperava no portão, foi embora. Fiquei
pensando no conde lavando os dedos na água de rosas, na toalha de
vinte mil cruzeiros. Sim senhor, Julinho subiu na vida. Alta burguesia.

Assim estivessem todos os meus filhos na alta burguesia,


conduzidos pela Fada boa, oferecendo jantares a condes.

Bem melhor do que combater, sujo, cansado, coberto de lama e


sangue, a lutar, a lutar para melhorar O mundo. Melhorar O quê? O
mundo? Mesmo com guerras e idealistas como Alfredo êle continuará
O mesmo, as pessoas é que mudam. O Julinho é que têm razão, antes
oferecer jantares finos que combater.

192
Os olhos de Isabel estavam parados, fixos num ponto perdido.

Eram seis e meia de uma manhã muito clara, O céu lavado de


nuvens, muito azul, bateram no portãozinho.

- Quem é?

Era Tinôco, vago amigo de Felício morador naqueles ermos. Uma


vez por ano, nem isso, parava no portão para uma prosa. Cabelos
pesados de brilhantina, a roupa velha bem escovada, tratada,
lembrava Felício nesse esmero no

trajar Era guarda-livros numa casa da cidade; dera volta grande,


quis passar em casa para ser O primeiro a dar a boa nova. Falou do
portão a voz embargada: - Bom dia, minha senhora. Felício ainda não
saiu Passei aqui para contar que começou a invasão esta noite na
Europa.

- A invasão? Não me diga.

Felício veio lá de dentro, empurrando os cabelos para trás,


amarrando os cordões do pijama, O rosto branco de espuma.
Debruçou-se: - Que foi? Bom dia, Tinoco. Começou a invasão?
Quando? Como é que não ouvimos nada?

Voltou-se para dentro; sua voz era fria.

- Até que horas O rádio ficou ligado ontem?

Os meninos começaram a dar urros na sala, Isabel apareceu


risonha, será possível?

Que felicidade. Mamãe, agora Alfredo volta Sílvia esparramou as


duas mãos no teclado, nuns acordes de marcha, O piano estremeceu
aos gritos agudos e graves. Felício voltou-se furioso, mandou que
ficassem quietos, estavam loucos? Debruçado na janela, Eduardo
queria saber. Tinoco respondia aos arrancos, as perguntas e respostas
se encontravam no ar e desencontravam, não se entendiam. Felício
resolveu: - Entre, Tinoco, venha tomar café. Vou ligar O rádio. Isabel
levantou Lena nos braços, entusiasmada. A voz do locutor estava
rouca, cheia de trêmulos, de altos e baixos. Os meninos abriram O
mapa no chão, Eduardo mostrou com O dedo os pontos onde
deveriam estar os aliados.

193
Aqui? Aqui? Felício fingia indiferença, procurava manter-se frio.

Entre, Tinoco, sente-se. Não foi nos pontos em que se esperava.


Veja bem, foi num lugar onde ninguém podia imaginar.

Carlos gritou: Generais formidáveis. O pai franziu a testa. Seu


Tinoco pôs a mão no mapa, O dedo correu sobre a costa do
Atlântico, fêz exclamações; O locutor nervoso quase berrava, ouviam-
se hinos. Preparei a mesa, trouxe a louça. Sílvia e Eduardo me
auxiliaram, Carlos encheu O açucareiro com parcimônia, Isabel fêz O
café. Todos falavam, perguntavam, silenciavam para ouvir O locutor,
tornavam a falar, a rir. O cheiro do café fresco se espalhou, sentamos
à volta da mesa Seu Tinoco, meio acanhado, sentou-se também. À
vista do acontecimento, não havia cerimônias, todos se davam e se
apertavam as mãos, eram irmãos. Não é, seu Tinoco? Isabel
perguntou sorrindo e eu olhei para Felício. Êle franziu a testa,
aborrecido.

- Mas Tinoco, nunca acreditei na invasão.

Falava nos aliados, nunca pensara que se desse a invasão. Falava


com calma indiferença, media as palavras. Seu Tinoco tomava café,
cerimonioso, perfilado na cadeira, cheirando sabonete. Que coisa
estupenda. Todos unidos pelo mesmo pensamento, menos Felício. Os
meninos empurravam pedaços de broa na boca, não queriam perder
palavra do locutor, do seu Tinoco, de Isabel.

- Nunca imaginei que houvesse mesmo invasão, que diabo.


Tinoco, mais uma xícara. Sirvam café a Tinoco.

O nervosismo enchia a sala pela voz do locutor; novo hino, os


meninos comiam de pé, esquecidos da severidade do pai, hoje todos
são irmãos. Isabel ria, satisfeita.

- Não é, seu Tinoco? Hoje deveria ser feriado.

Lena falava alto, sacudia a mão por cima da xícara, os lábios


molhados de leite. Isabel riu alto: - Grande dia este. Agora a guerra vai
acabar, grande dia.

Felício chamou-o por outro nome, pediu desculpas. O outro sorriu


que não era nada, não se importasse, nesse dia ninguém se importava

194
com coisa alguma, ora esta.

Agora os dois meninos mastigavam debruçados sobre O mapa no


chão. Seu Tinoco levantou-se para sair, obrigado, precisava ir, estava
na hora. Apertou as mãos, grande dia este, Isabel confirmou, é
verdade. Obrigado.

- Obrigado a você que trouxe a notícia, Felício respondeu


polidamente.

E enquanto O outro alcançava O portão, Eduardo gritou:

- Hoje deve ser decretado feriado. Puxa, O maior dia do ano, deve
ser feriado.

O outro confirmou, saiu rindo e fechando O portão. Felício ralhou,


onde estamos? A testa cheia de rugas.

- Ninguém tem compostura nesta casa? Que falta de educação.


Onde se viu esse descontrole? O que O Tinoco há de dizer Olhava
Isabel, censurando-a. Estava furioso porque não acreditava na invasão
e O fato se dera, furioso porque não fora O primeiro a ouvir a notícia,
furioso porque todos estavam contentes, pareciam contra êle e êle
não havia podido conter aquele entusiasmo que transbordava mesmo
em Isabel, Isabel que não obedecia, nem O escutava nesse dia.
Ordenou aos gritos que O Cavaleiro da Triste Figura fosse trabalhar,
voltou ao banheiro e fechou a porta batendo com força.

Isabel sacudiu os ombros de leve, chamou Eduardo e de joelhos,


no chão ao lado do mapa, conversou com os filhos, mostrou,
explicou. Novos hinos. Eduardo perguntava, onde está a fortaleza
invencível? Lena saiu pela casa a procurar: Onde tá?

Havia animação nas ruas, trocavam idéias nas filas de carne e pão,
falava-se com conhecimento nos generais ingleses e americanos.
“Fulano fêz isto ou aquilo.” Fulano era O general, amigo de todos,
conhecidíssimo Os meninos cortavam os retratos dos jornais,
pregavam nas paredes do quarto. Pronuciavam os nomes com
respeito, seguiam O movimento das tropas, dos paraquedistas.
Formidáveis.

195
O povo tinha esperança, os racionamentos vão se acabar, dizem
que logo vamos ter açúcar. Toda a gente sentia mais alívio, O fardo
diminuíra de peso, tornara-se mais leve.

Julinho apareceu sem ser esperado, bem tratado, satisfeito,


abraçou todos, perguntou por Isabel, conversou. Contou as últimas
notícias da guerra, achou Lena crescida, distribuiu dinheiro, examinou
de novo O telegrama. Nestes anos de guerra, Fagundes Vaz e Cia.
dera um resultado bom, de agora em diante talvez os lucros
diminuíssem, não importa, em primeiro lugar paz para O mundo,
depois Os lucros. Êle era humano, não como outros que conhecia,
gananciosos, só pensavam em juntar milhões.

Levantou-se para sair; contei que Sílvia estava tocando Mozart,


não queria ouvir? Ficava para outro dia, viera com pressa, negócios,
mandou abraços a todos, gritou para dentro:

- Até logo, Isabel.

Logo mais, ela veio dos fundos da casa perguntando pelo irmão.
Enrugou a testa: - O quê? Foi embora sem falar comigo? Que ingrato.
Queixou-se. Depois que ficara rico era assim, não se importava com
ela, ela era pobre. Se fosse rica, êle seria capaz de ir embora sem
falar, apertar a mão, dar um abraço? Ricos ingratos, egoístas, só
pensam neles.

Devia estar acostumada, O rico não liga para O pobre, mesmo


sendo irmão; nunca êle ficava para almoçar ou jantar, tinha medo de
passar mal. Haviam sido tão amigos, brincado juntos, sofrido juntos,
agora não pareciam irmãos. Estava cheio de dinheiro esquecera que
ela era sua irmã, que continuava a ser. Presumido. Orgulhoso.

Lembrei-me de D. Genu a recriminar a irmã rica, a ameaçar todos


os ricos, quando estava pobre. Isabel sofreria também? Teria fel no
coração como só têm os que odeiam?

Que poderia eu fazer para suavizar-lhe O sofrimento, diminuir-lhe


a dor? Preocupada com Alfredo eu me esquecia de Isabel e ela estava
ali, sofredora.

Os parentes de Itapetininga e Isabel não perdoavam a riqueza de


Julinho; se êle fosse pobre, podia esquecer, não perguntar, ignorar

196
nomes, não se importariam. Mas era

rico não perdoavam. Que mundo. Seria essa a luta de classes que
eu tanto ouvira falar? A tarde caiu rapidamente. Isabel levantou-se
com a menina nos braços, resmungou ao deixar a sala:

- Sou pobre, por isso sou desprezada. Queria ver se fosse bem
rica, êle havia de me adular.

Espirrou fel. Ódio de classes, a verdade estava ali naquele fel que
esguichava.

. A paz era profunda no jardim da Pensão, onde D. Genu e eu


estávamos de visita. Sobre O canteiro de esporinhas roxas, borboletas
voejavam. Um beijaflor pintado de verde vinha com O bico comprido
e sugava avidamente as palmas de Santa Rita. Lá no fundo do jardim,
engastada na gruta rústica, a Virgem de fita azul na cintura escutava
Bernadette

D. Genu é D. Tütuta conversavam ternamente sobre os parentes


que haviam morrido - O defunto Benedito gostava de atormentar os
outros. Atormentou tanto a mulher que ela morreu antes do tempo.
Deus O perdoe.

D Tututa respondeu fungando:

E meú tio Inácio? Era tãò avarento que escrevia a data no rolo de
papel higiênico do banheiro. Se acabava logo, discutia com os filhos
porque não sabiam economizar papel. Deus me perdoe, mas era
terrível na ganância. Morreu de doença ruim.

Houve uma pausa. D. Genu seguiu com os olhos O beijaflor


verdolengo e perguntou balançando a perna: - Que doença?

Nesse instante D. Prudencinha apareceu no jardim Estava agora


com noventa e dois anos, pequena, magra, os olhos muito espertos,
perscrutadores Seu rosto murcho era da eôr de limão, um limãozinho
velho e murcho. Não tinha dentes é continuava a brigar com a irmã
porque não queria usar dentadura. Sobre O crânio liso, raros cabelos
de um branco amarelado estavam presos por uma fita preta. Usava
uma saia escura de lã e uma blusa de pintinhas brancas, abotoada na
frente, solta por cima da saia como casaco Meias pretas e chinelos de

197
couro, folgados. D. Genu foi ao encontro da amiga, exclamando: -
Prudencinha, como vai? Sarou do braço? Procurou abraçá-la. D.
Prudencinha livrou-se do abraço fazendo um gesto de amuo, sorriu
com indiferença e mostrou O braço direito. Mancando, dirigiu-se para
O banco de madeira; sentou-se, puxou a saia para os pés, olhou-nos e
sorriu ternamente, mostrando as gengivas rosadas. Ficou ali quietinha
como uma menina bem-educada, ouvindo a conversa dos grandes. D.
Genu sentou ao seu lado, começou a acariciar-lhe O braço, perguntou
pela segunda vez se estava melhor e não sentia dor. D. Tututa disse
que estava melhor, os remédios haviam feito bem, só que ainda não
podia comer sozinha, era preciso pôr-lhe a comida na boca.

- Continua que nem criancinha? perguntou rindo D. Genu.

D. Prudencinha confirmou; sua voz era baixa e rouca: mostrou


outra vez O braço, fêz caretas.

- Dói muito, ela diz que não, mas dói muito. Olhou a irmã, fêz
outra careta. Pacientemente D. Tututa explicou, sabia que doía, como
não havia de saber? Mas D. Prudencinha já não ouvia; levantou-se
manquitolando e foi buscar a gata que apareceu no jardim
acompanhada de dois gatinhos. Pegou um dos gatinhos segurou-o na
mão esquerda veio nos mostrar:

- Esta é Desdêmona.

O rosto enrugado careteava como se fosse O de um macaquinho.


Sentou-se novamente com O gato no colo, depois apertou-lhe a
barriga, achou-o magro Chamou a gata: - Venha aqui, Bichana,
Desdêmona está com fome. Pôs a gata no banco ao seu lado, voltou-a
de barriga para cima, começou a apertar-lhe as maminhas A gata, de

olhos cerrados, não protestou. D. Tututa olhou-nos como a pedir


desculpas. Suplicou: - Prudencinha, que é isso? Deixe a gata.

- Quero ver porque ela não tem leite, olhe como Desdêmona está
magra, está mostrando as costelas.

Continuou a apertar as maminhas da gata com toda a pressa.


Quando se inclinava, via-se-lhe O crânio liso, que palpitava como
moleira de criancinha. A voz da irmã era suplicante:

198
- Prudencinha, pare com isso por favor.

Lembrou-se de outra coisa, largou a gata no chão, levantou-se de


repente e foi para dentro, mancando, apressada. D. Tututa começou a
se lamentar, havia dias que Prudencinha dava um trabalhão e nada
havia a fazer. Tinha boa saúde, bom apetite, não fazia bobagens, mas
estava vivendo assim, como uma criança. Suspirou e olhou a gruta
onde Bernadette continuava de joelhos, a rezar Os hibiscos amarelos
tinham pétalas dobradas e cheias como se fossem de musselina. A paz
no jardim era perfeita.

Uma sinêta tocou chamando para O café. Levantamo-nos para


entrar quando vimos D. Prudencinha vir de um dos quartos, um
travesseiro pequeno nos braços, a blusa desabotoada como se
estivesse dando de mamar. D. Tututa levantou as mãos assustada, foi
levar a irmã ao quarto, abotoar-lhe a roupa, prender-lhe novamente os
cabelos raros na moleira que palpitava. Ouvimos-lhe a voz
aconselhando, acalmando a loucura senil de D. Prudencinha. Minha
amiga sussurrou-me encostando O indicador na testa: - Está pior, cada
vez pior. E não morre, a danada. Desde aquela pneumonia, é essa
fortaleza que está se vendo.

Na sala de jantar da Pensão, as velhas já estavam sentadas,


tomando café. Os olhos de D. Prudencinha percorreram com gula os
pratos de bolo, geléia e torradas. D.

Tututa prendeu-lhe um guardanapo à volta do pescoço, deu

um lacinho, falou, fique quietinha. Pacientemente, foi pondo-lhe


na boca tudo O que ela queria. “Dou café com leite, bolo, tudo O que
quiser, mas fique quietinha.”

A língua rosada se espichava para receber os alimentos. De


repente parou de mastigar, olhou à volta e falou pondo a mão
esquerda no estômago: - Todas as vezes que verto as águas, sinto um
calor no corpo…

Olhou a irmã, continuou:

- Estou abrasada.

D. Tututa assustou-se, olhou O chão sob a mesa

199
- Prudencinha, você quer alguma coisa? Se quiser, fale.

Fêz menção de levantar-se, mas D. Prudencinha fêz sinal que não


era nada e continuou a mastigar os olhinhos vivos nos pratos da mesa.
Nas outras mesas, as velhas já haviam terminado de comer,
empurravam as cadeiras e deixavam a sala sumindo-se no corredor. D.
Prudencinha mastigava ainda, cheirando a urina.

No bonde que nos transportava, D. Genu que sabia agora as vidas


dos Santos, foi falando sobre São Francisco. O “poverello” de Assis
chamava todos os bichos de irmãos e um dia também disse: “Bendita
sejas, ó Morte, minha irmã.”

- Se D. Tututa morrer, quem há de ter paciência com aquela


coitada? Comendo daquele jeito e fazendo pipi nos corredores
Compreendo perfeitamente porque São Francisco falou assim,
rematou minha amiga.

O panorama da guerra foi se modificando. Bem me dissera um dia


Carlos nos seus vinte anos já experientes: “Mamãe, repare, ninguém
domina pela Força durante muito tempo. Se domina é transitório.
Aqueles que querem viver pela Força, caem vencidos mais cedo ou
mais tarde.”

Uma vez por semana, eu passava no escritório da Cruz Vermelha.


Fingia distração dissimulava, escondia sentimentos. Passava pela Praça
da Sé e pela Rua Direita, devagar, lendo nomes. CASA INFANTIL.
LUXO DE PARIS. MEDICINA VEGETAL. CASIMIRAS.

Via às vezes D. Leia.

- Eu ia passando mesmo por aqui, entrei para ver se há algum


telegrama…

Ela sorria confiante, transmitia esperança:

- Ainda não, senhora, quem sabe na semana que vem. Passe por
aqui outra vez.

Criatura de coração, de sentimento, me compreendia tão bem.

Passe por aqui outra vez. Imagine que bondade. Eu voltava


novamente para tomar O 14 - Lins de Vasconcelos. AZEITE…

200
GORDURA DE… RESTAURANTE.. TRIÂNGULO… CAFÉ

S. PAULO… SEGUROS DE VIDA… APERITIVOS… Já conhecia


todos os anúncios e letreiros.

Por mais que Felício ganhasse era pouco, não dava, a vida cara,
sempre cara. Quis que Sílvia deixasse os estudos de piano, falou em
mandar O piano de volta. Encontrei a. menina uma noite tocando
Pour Élise e chorando, estava se despedindo.

Escrevi novamente para Julinho, expliquei pedi dinheiro para os


estudos, Sílvia não podia deixar de tocar Julinho mandou, O piano
continuou. Música à noite. Música todas as tardes.

Felício ficava horas inteiras sentado sozinho no terraço, fumando.


Suspirava fundo. Charutos que D. Augusta dava de presente. Ela
ficara um pouco de lado depois da invasão; com O correr dos dias,
voltara de novo, se insinuara, fincara pé na casa, resoluta. E quando
êle tomava vinho ao jantar falava na infância, oh que infância.

O pai e ã mãe brigavam aos socos e tapas, aos berros e ao


arrancar de cabelos, êle, pequeno e magro em defesa da mãe: “Não
bata, não bata por favor.” O pai ouvia?

Era esmurrado na luta, seu rosto sardento ficava cheio de sangue.

Um dia a mãe desapareceu, disseram-lhe que estava no hospital


onde êle foi visitá-la algumas vezes. Via a mãe com a cabeça enrolada,
O rosto inchado, sofrendo. Não viu mais O pai, nem achou-lhe falta,
culpava-o de todas as dores por que passava. Ficou em casa de uma
tia áspera que usava óculos escuros, cheirava a terebentina e dizia-lhe
todos os domingos ao voltar da missa: “Por que você se chama
Felício? Felício vem de felicidade…”

Êle não compreendia, tinha medo do mistério. A tia fazia-lhe O


prato ao almoço e ao jantar; por mais fome que sentisse, não ousava
repetir porque a tia dizia ao preparar-lhe O prato: “Você é como sua
mãe, come como um passarinho.” A tia repetia os pratos, gostava do
arroz que ficava no fundo da panela, meio queimado; raspava tudo, .
dizia que gostava assim, comia com gosto. Êle ficava olhando louco de
fome. “Sua mãe comia tão pouco, não tinha apetite, era assim como
você, magra e pálida.”

201
Um dia vestiram-no de escuro, puseram-lhe um lenço preto no
paletó, levaram-no para O hospital, onde viu a mãe pela última vez
num caixão cheio de dourados. Voltou para casa em soluços,
tropeçando, cheio de fome e fraqueza, a tia atrás dizendo-lhe: “Não
sei porque seu nome é Felício. Felício vem de felicidade…” “Hoje não
é domingo”, pensou em suas atribulações. Cresceu faminto e sardento
ao lado da tia áspera que falava pouco e cheirava a terebentina.

Empregou-se em um armazém onde era entregador. Quando fêz


dezoito anos, a tia morreu e deixou-lhe algum dinheiro e a casa.
Perdeu a casa e O dinheiro em pouco tempo, gastou a liberdade, que
nunca tivera, em comer e beber à farta. Voltou a trabalhar arduamente
e casou-se aos vinte e dois anos, e não foi feliz. O segundo casamento
era aquilo que se via.

Ninguém O compreendia, nem explicava a razão de certos atos.


Amava os filhos e era capaz de passar fome para que eles não a
sofressem, mas batia-lhes sem piedade quando se zangava. Dizia-se
infeliz e que um dia se mataria, queixava-se de incompreensão à sua
volta.

Para ser-lhe agradável, Isabel fazia-lhe O prato predileto aos


domingos; se êle apreciava, ela tornava a fazer e êle empurrava-o,
aborrecido.

- Mas se você gostou tanto, Felício.

Não comia, zangava-se por ninharias. Quando falava na guerra


com bombardeios destruidores, dizia que não era guerra.- As
verdadeiras eram as antigas, quando os inimigos se encontravam
frente a frente no campo de batalha. Que espetáculo belíssimo um
encontro de cavalaria sobre uma colina, O soldado sentir seu sabre
penetrar no corpo do inimigo, sentir a lâmina quebrar-se no peito do
adversário. Essa era guerra limpa e honesta, tinha sua graça, sua
poesia. Era admirável. Mas as guerras modernas com aviões de
bombardeio destruindo cidades, jardins, crianças, era absurdo. Era
traição. Brutalidades. Um corpo a corpo no campo de batalha, ver O
inimigo tombar morto, era bonito, era lindo. As guerras modernas de
traições, covardias, espiões, bombas? Uff. Achavam correto Fazia ar
de pouco caso, de nojo.

202
Tio Damião chegava todos os sábados, a rabeca debaixo do braço.
Tocava Bach, torcia cravelhas, tocava outra vez. Os sons agudos
enchiam a casa, tio Damião sorria, O arco acariciava as cordas.

O tempo se arrastava, decerto porque eu sabia que Alfredo havia


de voltar um dia. A vida continuava cheia de trabalhos, nada mudara
em casa, O tempo não passava.

Antigamente, êle corria, e corria-se para acompanhá-lo. Quando


se pensava que eram dez horas, eram onze, dera um salto sem
ninguém perceber. Agora, não andava. Eu ficava no terracinho
esperando O carteiro; vinha O moço da tinturaria, O entregador de
contas, O homem da água O da prestação dos ternos dos meninos,
todos menos O carteiro. Eu correndo atrás do tempo como dentro de
um nevoeiro sem saber O que estava adiante.

Não foi encontrado, mas quer dizer que vive, se tivesse morrido
eles saberiam, todos saberiam. A morte é uma coisa que todo mundo
sabe logo, quase que adivinha, vem no ar, tem pressa de chegar. Há
muitos anos em Itapetininga, quando D. Carola me disse - boa noite -
pensei: “Minha mãe morreu.” Morrera mesmo. A morte está na voz,
no olhar, na boca, no gesto dos vivos; não precisa perguntar, a gente
adivinha quando ela chegou, às vezes só pelo olhar. Vem sempre sem
avisar, gosta de fazer surpresa, a miserável. E O exército norte-
americano não havia de saber, se êle tivesse morrido? Exército
organizado estava ali, D. Genu sabia.

O tempo foi como que parando. Ficou preguiçoso, se arrastava.


Às vezes a esperança tomava vulto em mim, enchia meu peito,
encorpava. Eu então ficava firme, andar decidido pisava duro; espiava
para ver O que estava adiante, inclinava O corpo para ver melhor,
sentia-me vitoriosa, de cabeça erguida. Falava forte, é isso mesmo, sei
muito bem O que estou falando, ora como não? Tinha certeza do que
afirmava, gostava de ter certeza, queria discutir, pigarreava com
barulho, então não hei de saber? Ora esta.

Mas quando O tempo foi quase parando, andando tão devagar que
afligia, não vinha telegrama, nem carta, nem notícia, ah, perdi a
empáfia, fui murchando, encolhendo os ombros, ficando
pequenininha, humilde, corcunda. A. guerra não acabava, contavam

203
da invasão, mortes sem conta, destroços. A Europa morrendo,
agonizando, não ia restar nada, só chão e pedras. Toda a gente
morria, Alfredo não estaria entre os que morriam? Aquele valente
Alfredo que combatia pela Liberdade?

Fui ficando encolhida, a tiritar apesar do calor, esperando a Cruz


Vermelha me chamar outra vez, para dizer O

quê? Sentia um suor frio nas mãos, nas costas, acordava de noite
ouvindo gritos, acordava Sílvia: “Você gritou, Sílvia?” Ela não gritara,
não ouvira nada, dormia outra vez. A insônia me ditava frases, frases
sem fim; desenhadas nas paredes do quarto, pairando no ar, flutuando
na minha cabeça: “Por que você se chama Felício?

Felício vem de felicidade… “Bendita sejas, ó Morte, minha irmã.”


Via a rabeca de lata “Gargoyle Mobilou” nos braços de tio Damião, O
arco arranhava as tripas e a música era como as de Bach, e os versos
que estava escrevendo para a chegada de Alfredo: “Ó Alfredo não se
embarque Que no mar está ventando, As folhas do patieiro Já estão
se arrequebrando.”

E na minha insônia, via tio Damião rindo e se inclinando para


mim: “É para que Alfredo nunca mais se lembre de viajar outra vez.”

Sílvia continuava a tocar, a tocar. Tive O pressentimento de que


ela ia crescer, crescer sem perceber aquela grandeza. Começou a
estudar Chopin. Algum dia pude imaginar que minha neta tocaria
essas músicas?

- Sabe, vovó? Frederico Chopin compôs os Noturnos numa ilha da


Itália; morava numa casa velha que tinha sido um mosteiro. Chovia
dentro da casa tinha lagartixas nas paredes, tinha ratos nos cantos e
naquela solidão êle compunha as músicas à luz de uma vela. Êle era
tuberculoso e tossia, mas assim mesmo escreveu os Noturnos na casa
velha com chuva caindo Quer ouvir?

- Mas quem disse que tinha lagartixas nas paredes e ratos nos
cantos?

Ela sorriu, as mãos sobre O teclado, a voz maliciosa: - Ora vovó,


quem não sabe disso? Num mosteiro tão velho devia ter essas coisas…

204
Quando chegou a notícia de que a guerra havia terminado na
Europa, Eduardo tinha posto calças compridas porque crescera muito
e Lena estava começando a falar, a perguntar, a exigir isto e aquilo.
“Vovó, faça bolinho pá mi. Um dia eu estava fazendo bolinhos e com
as mãos grudentas de massa, quando recebi nova cartinha da Cruz
Vermelha pedindo meu comparecimento no escritório.

CINE SANTA HELENA - TACO DE OURO SEGUROS DE VIDA.


O melhor sorriso de D. Leia foi quando leu para meus ouvidos O
seguinte telegrama: “Informamos que seu filho Alfredo Abílio de
Lemos está agora em Bushnell General Hospital Cruz Vermelha
americana Brigham City Utah ponto Ferido no pé ou na perna ponto
Boas condições ponto”

205
Capítulo XII

206
Foi como se eu tivesse caminhado durante oito anos ao encontro
do meu filho. Como se êle tivesse morrido. Imaginei-o morto no mar
desde O princípio da guerra; vi-o nos meus sonhos se debatendo entre
ondas pesadas e negras e senti que seu último pensamento foi para
mim. Ouvi sua voz chamando: Mamãe.

Quatro longos anos sem notícias e sem cartas, foi como se os


sinos já tivessem repicado pela sua morte. Como se eu tivesse galgado
montanhas; depois dessa longa caminhada, senti os pés cansados e O
corpo dolorido.

Foi como se eu tivesse caminhado durante oito anos Alcancei O


cimo da montanha, olhei à minha volta até onde a vista alcançava, e vi
no vale em baixo, ruínas, destroços de guerra e corpos mutilados Senti
então como O Anatólio de tio Damião, que minhas idéias são velhas
como O pensamento, velhas como O mundo Senti que a terra, as
flores, O vento, O sol e tudo que me rodeia, carregam séculos de
idade.

Sentada perto da janela do meu quarto, O “Manual do Bom


Cristão” no colo, não tenho coragem para abri-lo. Sei que numa das
páginas, está escrito: “Bem-aventurados os que esperarem…” E eu
esperei.

Durante muito tempo, O único assunto era a volta de Alfredo, e


quando dois meses depois, ouvi a voz do carteiro na porta da sala,
estremeci sem compreender porque.

Minutos se passaram, que a mim pareceram horas, antes que


Isabel viesse ao meu quarto mostrar O cartão de Julinho Ela estava
com O rosto transfigurado de emoção e mal pôde falar:

- Mamãe, mamãe, sabe O que Julinho manda dizer? Minha Nossa


Senhora, Alfredo chegou ao Rio. Chegou ao Rio, mamãe, chegou.

Se um vento zunisse através da casa e batesse todas as portas, não


faria tanto estrondo, e ao mesmo tempo tudo estava calmo ao meu
redor, como todos os dias.

207
Muito bem, preciso ser forte. Não tenho sido sempre forte? Vamos
ver O que devo fazer. Preciso ter calma. Tomei O cartão e li; em
palavras lacônicas Julinho contava que Alfredo chegara, estava bem
apesar da magreza, viria logo a S. Paulo. Fossem me prevenindo aos
poucos para recebê-lo.

- Prevenir O quê? gritei Prevenir por quê? Então não tenho


passado momentos piores? Por que esses cuidados comigo?

Firmei a voz, encarei todos, joguei os ombros para trás, fiquei


corajosa. Prevenir O que, por que Alfredo não veio diretamente? O
que ficou fazendo no Rio? Acha que oito anos não são bastante? Ora
esta. Isabel, Carlos, vão passar um telegrama para Julinho. Não,
Eduardo e Carlos é que devem ir; passem um telegrama assim
“Alegria notícia chegada Alfredo. Venham imediatamente.” Assim está
bem, vão passar já, não sei por que não vieram para cá. Que coisa.

Não consegui dormir. Na manhã seguinte, novas notícias, desta


vez de Maria Laura. Dizia que Julinho acompanharia Alfredo até S.
Paulo; Alfredo estava magro e fraco, mas estava bem. “Que se pode
esperar de um homem que fêz a guerra e esteve prisioneiro?”

Aos poucos percebi que os filhos iam me prevenindo; na última


linha da carta, Maria Laura escreveu: “Êle sofreu muito.” Por que não
escreviam contando tudo de uma vez? Essa dúvida e essa espera eram
angustiosas; Isabel fingia confiança: - Então O hospital norte-
americano daria alta se êle não estivesse bom? Decerto está fraco, é
natural, mas doente não está.

Eu mordia os lábios, indecisa. Afinal resolvi:

- Sabem de uma coisa? Vou para O Rio esta noite. Felício me


aconselhou, eu devia esperar mais um pouco, dois dias, um dia, mas
não seguisse. Isabel perguntou: Eles não chamaram a senhora.
Chamaram?

- E as mães esperam que os filhos chamem quando estão doentes?


perguntei com olhos fuzilantes.

Comecei a preparar a mala. E enquanto preparava e dobrava


alguma roupa, veio-me um desânimo muito grande O que iria
encontrar? Não seria melhor esperar? Parece que foi Santo Inácio que

208
escreveu: “De um lado devemos empregar todos os meios ao nosso
alcance como se nada dependesse de Deus; de outro lado, devemos
rezar e confiar em Deus, como se nada dependesse de nós.”

Segui O conselho de Santo Inácio, confiei mais um dia; pensei em


enfeitar a casa com flores; preparar O quarto dos meninos para
Alfredo, fazer O prato que êle mais apreciava para O jantar; mas
sentia-me como paralizada, sem fôrças, cansada.

No terceiro dia estava sentada no meu quarto, na doce sonolência


da velhice, desta velhice que enche meu coração de ternura por tudo
que tem vida, e me faz ver através de uma beleza emocionante, desde
as flores mais singelas até O gato de tio Damião que se chama
“Amílcar” porque Anatólio teve um gato com esse nome.

Tenho mais de sessenta anos, vividos no trabalho e no amor da


família. Nunca ambicionei além do que podia ambicionar, mas fiz de
um sonho, O ideal da minha vida e peço a Deus que O realize. Há
oito anos caminho para êsse sonho, e creio que desta vez Deus me
ouviu. Que me leve depois, não importa. Esta calma sonolência não é
apenas da velhice, é também do calor desta tarde ensolarada, e das
noites que passei sem dormir.

Novamente pensei em Alfredo. Voltei-me ura pouco para olhar seu


retrato sobre a cômoda do quarto; lá estava êle belo e forte a olhar-me
tranqüilo. Sacudi a cabeça para confirmar a mim mesma que este foi
O mais belo dos meus filhos. Vi Sílvia espiar-me pela porta
entreaberta, ia pedir que tocasse um pouco de piano, aquela música
chamada Tristesse. Ela me perguntara se eu sabia O que queria dizer
essa palavra, os netos gostam de ensinar os avós, e como eu dissesse
que não sabia, explicara: - Tristeza, vovó. Quer dizer tristeza. Ouvi
passos que se aproximavam e me lembrei que decerto alguém viria
perturbar meu calmo repouso. Um velho de cabelos grisalhos, O rosto
magro marcado por muitas doenças, entrou no meu quarto; tinha os
olhos vermelhos e as pálpebras queimadas, a mão esquerda envolvida
em pano branco assim com a testa e um lado da cabeça; mancava
apoiado a uma bengala e eu pensei: “Quem será este velho?” A
expressão do seu rosto não me era estranha, mas de onde eu O
conhecia? De onde? Levantei-me um pouco aturdida e abri bem os

209
olhos para me lembrar, quando ouvi soluços e O rosto branco de
Julinho no vão da porta O velho abriu-me os braços, então eu
compreendi. Ali eslava O homem que lutara em nome da Liberdade E
no mundo todo, muitos homens continuavam escravos. Dos Regimes
e das Ambições Estendi também os braços:

- Alfredo.

Fomos depois para a sala, onde ficamos sentados muito tesos,


enxugando lágrimas. Passada a primeira emoção, ninguém sabia O
que conversar; O rosto de Alfredo estava tão deprimido e infeliz que
tínhamos receio de fazer perguntas. Sobre seu peito, pregada na
farda, havia uma medalha; começamos a falar quase ao mesmo
tempo, fingindo alegria, forçando entusiasmo:

- Que medalha é essa? Do exército americano?

Julinho foi O primeiro a acalmar-se; ficou de pé e com as mãos


nos bolsos, contou da surpresa que sentiu ao ver O irmão de repente
aparecer em casa; pouco se dirigia a Alfredo, tinha também receio.

- Que medalha é essa? tornei a perguntar para vê-lo falar.

Explicou que a recebera por atos de bravura, na Austrália. Ficamos


admirados olhando a medalha, procurando ler O que estava escrito.
Julinho disse: “Sim senhor, seu Alfredo. Bravos.”

Lembrei-me de súbito que O jantar estava tão fraco esse dia, por
que Julinho não telegrafara? Não avisara a chegada? Julinho
protestou, avisamos, passamos telegrama, não foi, Alfredo? Como
não havíamos de passar? Isabel mostrava Lena ao irmão, perguntava
se não eram parecidas?

Fui à cozinha fazer café, os três irmãos saíram para dar uma volta
pelo jardim, Alfredo entre os dois, sempre apoiado na bengala,
seguidos pela criançada aturdida.

Então chamei depressa os meninos, mandei-os ao empório


comprar qualquer coisa para O jantar; por causa dos raciona mentos
não havia carne, nem leite esse dia. O

sono desapareceu, voltou a energia, fiquei lidando com as panelas


numa afobação andando para cá, para lá, coando café, pensando nos

210
pratos que êle mais gostava, espiando através da vidraça os três
parados em frente ao canteiro de margaridas Para O jantar, havia
apenas polenta com feijão e verdura da horta; fiquei aflita, gritei: - O
que estão esperando? Vão comprar alguma coisa…

- Há que tempo eles já foram, vovó.

- E você? Por que não vai colher flores para enfeitar a casa?
Depressa, ponha flores em todos os vasos, na mesa do jantar
também.

Sílvia saiu numa corridinha, Eduardo e Carlos voltaram quase sem


fôlego, trouxeram uma lata de sardinhas e um pedaço de lingüiça. O
armazém de nossa rua não tinha muito recursos, Carlos disse que a
lingüiça tinha um metro.

- E você acha que um metro de linguiça da para todos de casa


comerem? Ora esta, é só uma lata de sardinha.

Não havia mais, trouxeram O último pedaço, O homem do


empório disse que ia receber só no dia seguinte. Está bem. Está bem.

Comecei a preparar O jantar. Alfredo devia ter fome. Entraram na


cozinha onde tomaram café de pé, ainda constrangidos. Julinho disse
que precisava ir para O Rio essa noite, prometera à mulher, voltaria
na semana seguinte com mais vagar. Bateu no ombro do irmão: - Até
a semana que vem, meu velho. Agora com os cuidados de mamãe
você ficará completamente bom. Até breve.

Alfredo continuava com O rosto triste, esforçando-se por prestar


atenção no que falavam; perguntava os nomes das crianças, tornava a
esquecer, desinteressado. Preparei O jantar, fiz salada de frutas, pensei
no “Paciência. Meios para adquiri-la”. Felício chegou atrasado,
queixando-se dos ônibus, deu com Alfredo sentado num canto da
cozinha, sob a luz amortecida da lâmpada, olhando as gaiolas dos
pintassilgos. Fêz exclamações, abraçou O cunhado, bateu-lhe
amigavelmente no ombro, chamou-o de herói. “Afinal você é um
herói.” Abriu vinho, fêz saúde, procurou conversar, fingir alegria,
entusiasmo.

O jantar foi pobre, todos desapontados por causa da pobreza.


Isabel e eu esforçávamo-nos para tornar O ambiente alegre: - Lembra-

211
se, Alfredo, daquela vez que você escondeu O boletim em baixo do
colchão para mamãe não ver Lembra-se de como você gostava de
jogar futebol? E da bicicleta de Carlos?

Os meninos olhavam para as pálpebras queimadas e para as mãos


de Alfredo; eu fazia sinais: “finjam que não. Vêem, não olhem assim”.
Lembramos pessoas amigas, fatos da época “Alfredo, você se lembra
de D. Genu?” Apesar cios esforços, O ambiente continuava sombrio;
faltou um bom jantar e O desejo de esquecer a guerra ela estava ali
imperiosa e dominante na febre, na boca murcha, nos cabelos
grisalhos, na perna doente, na mão enfaixada. Êle não era mais que
uma sombra. Meu pobre idealista Felício perguntou pela medalha;
Alfredo tornou a explicar; novas batidinhas no ombro, novamente
herói. Trocaram cigarros, fumaram. Alfredo quase não comeu, apenas
provou os alimentos; há meses estava assim, sem apetite; só queria
fumar e beber.

Bateram no portãozinho, era um menino com O telegrama:


“Seguiremos hoje. Abraços Alfredo. Julinho.” Li duas, três vezes;
mesmo que eu tivesse preparado um banquete, êle não teria apetite.
Êle não queria nada, nada.

Insistiram que êle devia dormir cedo, ainda estava fraco, fosse para
O quarto, iríamos conversar lá. Foi para O quarto dos meninos;
Felício e Isabel prepararam tudo num instante, os meninos dormiriam
na sala.

O vento começou a soprar fortemente e a tempestade que havia


ameaçado cair durante toda a tarde, veio como um tufão. O ar tornou-
se mais quente, quase irrespirável.

Fiquei ao lado de Alfredo e, enxuguei-lhe O suor do rosto com


uma toalha molhada; perguntei-lhe de que modo poderia tratar-lhe a
perna e aliviar-lhe O sofrimento.

Êle disse que estava bem, não sentia dor, nem sofria. Entraram
todos para ouvi-lo contar como fora ferido e caíra prisioneiro.

Não sabia como escapara com vida depois de tanto sofrimento,


devia ter morrido. O navio em que navegava foi bombardeado uma
noite nas costas do Japão. Êle e alguns americanos foram

212
aprisionados e levados para uma cidade onde havia um hospital
chamado Shangai General Hospital. Ficou hospitalizado porque fora
ferido na perna e O ferimento era grave. Logo que teve uma ligeira
melhora, foi transportado para a prisão de Kiangwan, nos arredores
da cidade; ficou três meses nessa prisão antes de seguir pari uru
campo de concentração. Fazia muito frio quando foi para Kiangwan,
cada cela era feita para vinte prisioneiros, mas eram muito mais,
nunca menos de cinqüenta, apertados noite e dia. Combinaram e
dormiam em turnos, enquanto uns ficavam de pé. Sofreram fome,
frio, sede e imundície; passaram três meses sem fazer barba e sem
tomar banho. Proibidos de falar, sem ter nada para ler, nem se ocupar
esperavam qualquer coisa que os fosse libertar, mesmo a morte seria
bem recebida.

Quando se cansavam de ficar de pé, acocoravam-se e outro grupo


se levantava para sobrar espaço: americanos, chineses, coreanos e
alguns japoneses que não recebiam melhor tratamento pelo fato de
serem compatriotas. Pelo contrário, eram espancados por
desobediência e um deles morreu dos ferimentos, sem assistência
médica. Levaram O cadáver como quem leva um saco de estrume;
dobrado num carrinho de mão, desses que os jardineiros usam para
adubar a terra.

O mau cheiro e a imundície eram intoleráveis na cela; num canto


havia um buraco no chão que servia de privada, à vista de todos.
Havia duas mulheres chinesas na mesma cela e de vez em quando
eram chamadas para interrogatório. Voltavam em estado miserável,
assim como os americanos e Alfredo que um dia foi espancado e
perdeu os dentes porque não sabia quantos aviões a Marinha norte-
americana possuía no Pacífico. Passavam as horas matando piolhos,
era proibido falar; mas os chineses cochichavam e pagavam
duramente pela desobediência. O beribéri e a desinteria eram comuns
entre os prisioneiros, assim como as doenças venéreas que eram
tratadas pelos médicos japoneses na própria cela diante de todos.

De manhã serviam sopa de arroz quente, às vezes com cabeças de


arenques podres; à noite, O mesmo arroz porém frio, intragável; só os
coreanos e chineses podiam comer Quando O frio era intenso,
serviam uma tigela de chá. Alguns começaram a sofrer de gangrena

213
nos pés devido à imobilidade; e quando ficavam muitas horas de
cócoras e depois eram chamados para interrogatório, eram arrastados
pelos guardas, não podiam caminhar.

O que mais os atormentava era a sede. Três meses depois dessa


tortura, foram transaportados para a estação da estrada de ferro e
tomaram o trem em que os levaria para

campo de concentração.

Tomou uma xícara de chá antes de continuar e pedimos-lhe para


deixar a história para O dia seguinte. Mas ele não quis, parece que
também tinha sede de desabafo Contar O que foi essa viagem, três
dias e três noites viajando no escuro sem nada para comer e
principalmente para beber . Apertados como gado no vagão, sem
poder se mover ouvindo as lamentações dos mais fracos, os
queixumes, os soluços. Quando O trem parava nas estações e os
prisioneiros ouviam O som da água que entrava em borbotões nas
maquinas, imploravam água em várias línguas para ver se uma delas
tocava O coração dos bárbaros. “Água pelo amor de Deus, suspirou
Alfredo a boca seca, Mas quem era Deus? Os oficiais japoneses riam-
se e nem uma gota foi-lhes dada durante a viagem. No fim do terceiro
dia desceram numa pequena estação perdida num campo lúgubre um
batalhão composto de vinte soldados e um oficial esperava os
prisioneiros, de carabina embalada. Desceram cambaleando, os
gangrenosos e os doentes apoiados nos companheiros; assim tiveram
que marchar a noite toda a pe até chegar ao campo de concentração,
onde teriam de ficar bem dizer palavra, ameaçados por todos os lados,
caminharam atras dos archotes que iluminavam a estrada cheia de
pedras. Quatro ficaram no caminho, inclusive as duas mulheres; um
deles, um coreano que vinha sofrendo de beriberi.e tinha convulções,
caiu de repente de bruços, sem um ai na frente de Alfredo. Seu rosto
bateu na pedra da estrada e O som da batida foi O único sinal de que
ele ficara no caminho Quando a madrugada, uma madrugada
cinzenta, veio surgindo por trás das montanhas que fechavam O
horizonte, um cão saiu latindo do portão de uma fazenda.

O oficial que ia na frente com a espada desembainhada, decepou


de um golpe as duas patas dianteiras do cãozinho e enquanto O

214
animal rolava de dor, todo O batalhão de guardas ria às gargalhadas.

No campo de concentração onde já havia centenas de prisioneiros


magros e famintos, os recém-chegados conseguiram tomar banho,
beber água e fazer a barba depois de três meses de reclusão em
Kiangwan. Esse ano no campo dava para escrever um livro com
sofrimento, lágrimas e sangue dos prisioneiros; nunca Alfredo vira
tanta dor e tanta miséria e sua perna ameaçada de gangrena era
apenas um detalhe entre milhares de outras chagas e outras pernas e
carnes mutiladas. Alguns companheiros suicidaram-se uns enforcaram-
se, outros cortaram os pulsos com canivetes roubados.

No fim da guerra, quando veio a libertação, todos os prisioneiros


foram levados em aviões para os Estados Unidos; Alfredo chegou ao
hospital de Utah, e apesar das dores e de estar ameaçado de perder a
perna, sentiu grande alívio. Depois ficou inconsciente durante meses,
apático, desejando morrer, pensando no que sofrera e nó que vira
sofrer. Quando soube que a Cruz Vermelha p estava procurando,
lembrou-se de repente dos parentes,. do Brasil, e sentiu renascer uma
leve esperança de vida a aquecer-lhe O peito. Foi quando teve alta e
soube de um vapor que partia F para a América do Sul; resolveu
embarcar e procurar a mãe, os irmãos. Ao chegar ao Rio, lembrou-se
de Julinho e de Fagundes Vaz e Cia. Limitada. Era firma conhecida e
ele não esquecera. Seu cérebro repetia: Fagundes Vaz e Cia., tinha
medo de não lembrar

Quando Isabel perguntou porque não escrevera, fêz um gesto


indiferente. Vivia a pensar na morte, lembrava ‘ da família sempre,
mas sabia que estava longe, talvez nunca mais a visse, não sabia
explicar porquê.

- Não entendo.

Tinha a testa quente. Êle precisa de descanso, disse ; Felício


levantando-se. Convidou todos a se retirarem os meninos deviam
dormir na sala, Alfredo tinha direito a descanso completo, O quarto só
para êle. Perguntei-lhe se queria água ou café ou chá. Sentado na
cama, olhou-me algum tempo como quem faz um esforço de
memória, depois perguntou estendendo-me O braço - Então, D. Lola?

215
Todas as lágrimas que eu guardava durante anos brotaram-me dos
olhos e rolaram queimando-me as faces. Só pude repetir: - Meu
filhinho, meu querido filhinho… Sentei-me aos pés da cama e cobri O
rosto com as mãos.

Pediu “

- Ora mamãe, não chore. Afinal estou aqui, não estou?

Em vista do meu pranto, insistiu mansamente:

- Não estou aqui? Hein mamãe?

- Sim, meu filho. Felizmente você voltou.

Sim, êle estava ali perto, ao alcance de minha mão, seria êle
mesmo? Bem Julinho dissera que os olhos eram os mesmos. Os
olhos. . Estavam secos, parados, como se tivessem febre. Lembrei-me
da noite em que se despediu de mim sufocando soluços, debruçado
sobre O muro. Naquele tempo êle chorava. Agora me olhava
estranhamente, um pouco admirado, envelhecido, quase
irreconhecível. Repetiu:

- Afinal estou aqui, não estou?

Pediu água; dei-lhe um copo de água e desejei-lhe um bom


descanso. Fui para meu quarto e ouvi os primeiros pássaros a
cantarem na ameixeira. Por que os homens faziam guerras? Choveu a
noite toda, há muito tempo eu não via tempestade tão forte. Vento e
chuva. Por que os homens fazem as guerras?

A partir daí, Alfredo não voltou a falar cm guerra, nem contou


outros episódios dos seus anos de ausência.

Estava ali diante de mim. Era Alfredo e não era; não sei O que se
passara; talvez porque sofrera e envelhecera, mudara tanto. O olhar,
as mãos, O modo de falar eram de Alfredo, mas O riso, a boca, O
andar não eram dele. Apoiava-se a uma bengala que Julinho lhe dera
no Rio, andava pela casa estranhamente, não parecia O mesmo de
antes, ágil e bonito. Já não era O mesmo. Só quando estava distraído
sentado ao sol do jardim, O olhar perdido, suave e tranqüilo, eu me
lembrava nitidamente do meu menino que havia partido há tantos
anos. De quando êle me batia no ombro e dizia meu nome, de quando

216
conversava comigo enquanto eu trabalhava: “Olhe, mamãe, quando
eu for rico…” E depois daquela outra vez que viera de longe somente
para me ver e me abraçar, e fumara cachimbo, e contara histórias de
marinheiro, e quase me levantara nos braços ao se despedir, esse era
O meu Alfredo.

Mas este aqui, indiferente e mudo, que me olha e não sorri, que
ouve piano muito quietamente, que nunca diz se gostou ou não
gostou, não sei quem será. Na primeira semana contou fatos de
guerra contou como as crianças japonesas começavam O preparo
militar desde que entravam para a escola aos seis anos de idade,
contou que aos quinze anos, todos os meninos tomam parte nas
grandes manobras de inverno, tão pesadas que qualquer outra criança
não suportaria. Contou que os soldados japoneses tinham marchas
forçadas diariamente, nunca menos de quarenta e cinco quilômetros,
tendo como alimento apenas um punhado de arroz. E que eram os
soldados mais resistentes do mundo, e também os mais perigosos.

Depois de uma semana em que parecia estar melhor, Alfredo disse


tapando os olhos que não queria mais se lembrar da guerra.

- É tão horrível, não quero lembrar, não quero falar. Vi-lhe a boca
crispada, O olhar endurecido. Não quero lembrar.

* Ninguém quer que você fale, meu filho. Ninguém quer, esqueça.

Estava ali diante de mim. Era Alfredo e não era; não sei O que se
passara; talvez porque sofrera e envelhecera, mudara tanto. O olhar,
as mãos, O modo de falar eram de Alfredo, mas O riso, a boca, O
andar não eram dele. Apoiava-se a uma bengala que Julinho lhe dera
no Rio, andava pela casa estranhamente, não parecia O mesmo de
antes, ágil e bonito. Já não era ò mesmo. Só quando estava distraído,
sentado ao sol do jardim, O olhar perdido, suave e tranqüilo, eu me
lembrava nitidamente do meu menino que havia partido há tantos
anos. De quando êle me batia no ombro e dizia meu nome, de quando
conversava comigo enquanto eu trabalhava: “Olhe, mamãe, quando
eu for rico…” E depois daquela outra vez que viera de longe somente
para me ver e me abraçar, e fumara cachimbo, e contara histórias de
marinheiro, e quase me levantara nos braços ao se despedir, esse era
O meu Alfredo.

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Mas este aqui, indiferente e mudo, que me olha e não sorri, que
ouve piano muito quietamente, que nunca diz se gostou ou não
gostou, não sei quem será. Na primeira semana contou fatos de
guerra; contou como as crianças japonêsas começavam O preparo
militar desde que entravam para a escola aos seis anos de idade,
contou que aos quinze anos, todos os meninos tomam parte nas
grandes manobras de inverno, tão pesadas que qualquer outra criança
não suportaria. Contou que os soldados japoneses tinham mar chás
forçadas diariamente, nunca menos de quarenta e cinco quilômetros,
tendo como alimento apenas um punhado de arroz. E que eram os
soldados mais resistentes do mundo, e também os mais perigosos.

Depois de uma semana em que parecia estar melhor, Alfredo disse


tapando os olhos que não queria mais se lembrar da guerra.

- É tão horrível, não quero lembrar, não quero falar. Vi-lhe a boca
crispada, O olhar endurecido. Não quero lembrar.

- Ninguém quer que você fale, meu filho. Ninguém quer, esqueça.

Algumas noites, eu ouvia-lhe a voz, altas horas; abria a porta do


quarto, escutava, perguntava: - Alfredo, quer alguma coisa?

Dormia de qualquer jeito, nunca fechava a porta, os lençóis no


chão, sem travesseiro. Apoiava a cabeça no braço dobrado gemia
durante O sono, gritava com voz rouca.

Eu acendia a luz e êle sentava-se na cama e me encarava como se


não me tivesse reconhecido. A voz vinha do fundo do peito torturada:
- Que é?

- Ouvi sua voz, pensei que quisesse alguma coisa. Quer água?

- Não, não, não.

Deitava-se de costas e punha-se a olhar O teto como se não


percebesse minha presença. Eu voltava para O quarto e ficava
escutando. Durante O dia quando lembrávamos de quando êle era
criança e queria me auxiliar, ria-se e seu riso era suave, tinha a mesma
doçura do riso do meu filho. Depois tornava-se de novo O homem
torturado e infeliz.

218
Tio Damião veio com a rabeca Gargoyle Mobilou. As crianças liam
enquanto êle afinava: “É um óleo de côr rubi, da mais alta qualidade.”
Fêz versinhos caipiras para distrair Alfredo.

Tocou depois as próprias composições, contou que eram como as


músicas de Bach, queria saber O que Alfredo preferia ouvir. Alfredo
sempre calado, não fêz comentários e mal ouviu O que tio Damião
perguntou.

Calmamente, tio Damião guardou a rabeca, disse que voltaria


outro dia, O rapaz estava muito desanimado, muito triste. Havia de
melhorar, como não Despediu-se e saiu com O violino sob O braço,
nas pontas dos pés, como se um doente grave estivesse na sala.
Alfredo apenas disse, mal-humorado: - Velho cacete.

Comprei camisas, gravatas, roupa branca; Julinho man dou do Ri”


uma roupa nova. Lembrei-me de todos os pratos da preferência de
Alfredo e comecei a prepará-los um por um. Comecei com cocada
queimada; fui à casa de D. Genu pedir açúcar emprestado. Ela me
abraçou comovida que felicidade, logo iria fazer uma visita, começou a
se lembrar de tanta coisa, amizade antiga, de quanto tempo? Despedi-
me com pressa, que fosse logo em casa ver Alfredo, mas não
reparasse, não falasse em guerra, êle estava meio esqui sito, mas
gostava dos velhos amigos, como não? Ficaria tão contente em vêla,
já havíamos falado nela. Fosse logo, mas não reparasse. Pois não,
pois não.

Fiz a cocada em segredo, levei O prato ao quintal onde êle ficava,


a perna estendida na grama.

- A senhora não e esquece disseme com um sorriso. Comeu


apenas três e eu que ficara ali para vê-lo comer até O último pedaço,
desapontei Quando êle era pequeno, comia quinze, vinte cocadas de
uma só vez.

- Não é dessa cocada que você gostava?

- É sim, por quê?

Estava muito diferente. Seu rosto apresentava ainda uma coloração


pálida e um rictus sofredor vincava-lhe os cantos da boca. Parecia
sofrer e se alguém perguntava se sentia dor, dizia que não. Eu

219
conversava, contava todos os fatos de que me lembrava, procurava
prender-lhe a atenção, queria fazê-lo voltar, ter amor à sua cidade, ao
seu país, queria que êle criasse raízes tão fundas que nem a saudade
do mar, nem O amor às aventuras pudesse levá-lo novamente de mim.

O sol do Brasil foi-lhe colorindo as faces, dando novo brilho aos


seus olhos amortecidos. Engordou um pouco e O médico que veio vê-
lo várias vezes disjse que a perna ficaria logo curada. Surpreendi-lhe a
fisionomia animada.

Redobrei de esforços, convidei-o para passar uns dias em Santos,


em frente ao mar; disse que iria mais tarde, preferia ficar mais forte.
Quando assim falava, seu olhar perdia-se passava além do horizonte,
desaparecia no infinito. Um dia observou Isabel - Ela está bem
mudada, não?

As vezes saía de casa depois do almoço e só voltava tarde


cheirando a vinho. Disselhe: - Meu filho, você não deve sair enquanto
não sarar bem da perna.

Respondeu que estava bom, continuou a sair; voltava pálido e


cansado, sempre apoiado na bengala. Dizia que não encontrava os
amigos, estava tudo diferente do tempo em que morava na Avenida
Angélica. Eu fazia-lhe café e oferecia algum prato que guardava do
jantar; a sós comigo na cozinha, às vezes até tarde, conversava mais
intimamente, lembrávamos os velhos tempos. Eu observava-lhe O
rosto enrugado, os olhos vermelhos e sempre piscando como se
tivessem areia, a boca murcha, via aquela criatura que eu conhecera
tão vibrante de vida e que não era agora senão uma ruína. Um
homem torturado de corpo e alma.

Enquanto conversávamos, nunca perguntei O que pretendia fazer


no futuro; apesar do sofrimento, havia ainda um futuro. Nunca me
falou se partiria de novo e só em pensar nisso um suor frio escorria-
me pelas costas. Juntos tomávamos cerveja, que êle apreciava muito.
Se em conversa falava num prato que gostara em criança, eu
preparava-o no dia seguinte, mesmo com sacrifício. Queria que êle
tivesse tudo, nada lhe faltasse. Êle perguntava: - Mais um pouco de
cerveja?

220
Eu dizia que não, já tomara, obrigada. Mas êle insistia, ora por que
não? Para me fazer companhia, só um pouco mais… Eu aceitava. Êle
enchia novamente meu copo e ficávamos olhando a espuma quase a
transbordar; enchia O dele, também, depois bebíamos lentamente e
conversávamos sob a lâmpada morrediça da cozinha, diante do fogão

apagado, até êle ter sono e ir para O quarto. Como dois velhos
amigos a recordar.

Nessas madrugadas de intimidade, às vezes três da manhã, eu


tinha vontade de implorar: “Alfredo meu filho vamos falar um pouco
sobre o que você deseja fazer. Já esta quase bom da perna, qual é sua
idéia? Pode-se arranjar uma boa colocação aqui em S. Paulo ” Mas eu
tinha tanto medo da resposta não podia imaginar seu pensamento
Quando ficava sozinha, sofria.

Na calma serenidade da velhice que curva meus ombros e põe


cinzas nos meus cabelos, vejo tudo como é na verdade não atravez de
sonhos e ilusão Sinto o âmago das coisas. Não pretendo conhecer as
pessoas porque a natureza humana é tão profunda que não nos
conhecemos a nos mesmos. Só Deus conhece e compreende sabe que
não tenho ambições e minha alma não acalenta desejos vãos, Na mais
crua adversidade ou na mais funda dor acreditei que mereci sofrer. O
porquê não poderei jamais saber assim como vivemos e morremos na
ignorância de fatos às vezes bem próximos de nós. Mas desde que
Alfredo chegou, pressinto que partirá de novo. E desejo que me
engane Veio carta de Itapetininga. Minhas irmãs queriam que o
sobrinho herói passasse uns tempos com elas. Lembravam-se de
Alfredo , um rapagão simpático. Meu Deus como

podem ter a ilusão de que êle seja ainda um rapaz. Tive ímpetos
de gritar: Ele está doente, emagrecido, veio da guerra. Não sabem O
que é guerra?” Na vida pacata de interior, onde tudo era tranqüilo e
lento, haviam se esquecido que o tempo deixa marcas, mesmo na
juventude E Alfredo trouxera cicatrizes da guerra . Diante da carta
fizeram um gesto indeciso, não tinham vontade de ir. Insistí só podia
fazer bem. Fomos num sábado.

Estavam na estação. Reclamavam abraços e se houve desilusões,


ocultaram. Zeca explicou que a banda de música não fôra porque O

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herói era modesto; e que matara um boi para a volta do filho pródigo.

Deram-lhe O quarto dos meninos, havia flores nas jarras,

colcha de renda na cama O jantar foi lauto jantar da

roça com lombo assado que representava O boi da Escritura. Tudo


O que Alfredo mais gostava veio como sobremesa rocambole, cocada
queimada, pudim de pão com passas.

Êle sorria e agradecia; fazia esforço para suportar tudo para êle era
difícil de suportar. Era só olhar; gotas de suor brotavam-lhe na testa,
no pescoço. Mas seu andar claudicante seu rosto abatido, sua magreza
atraíam simpatias, cuidados confortos especiais. A melhor poltrona
era para ele por que não comia mais um pouco?

O pudim Ofereciam, insistiam; êle aceitava com ar cansado,


sorrindo

e suando, insatisfeito. sofrerá

Chamei a família de lado, contei O quanto ele sofrera não falassem


em guerra, em prisão, por favor. Não podia imaginar O que êle
sofrera, não se esquecessem. Clotilde levou a mão à boca:

- Virgem Nossa Senhora, como ele mudou ..

- Depois do que sofreu, você queria que ele estivesse a mesma


coisa? Dançando e cantando?

Ela tocou no meu ombro, humilde:

_ É verdade, você tem razão. Pobre

Na sala, rodeado por toda a família, Alfredo ouvia casos contados


por Zeca, a fisionomia impassível mal algum de emoção, apenas O
sorriso um pouco forçado. Clotilde queria agradai, veio do quarto, um
retrato apagado nas mãos tirou O p6, sentimental, inclinou-se com
solicitude; - Alfredo, você se lembra de mamãe? Olhe aqui um

retratinho dela, sua vovó

- Lembro, como não? . ,

Olhou rapidamente, fingiu que olhou ah sim, vovó. Como não hei
de lembrar? Pôs O retrato detonem e parou, cansadíssimo. Não queria

222
lembrar. Já se havia se parado do passado há muito tempo. Para que
lembrar?

A pedido dos parentes Alfredo ficou em Itapetininga Voltei para


São Paulo sozinha. Uma semana depois, Olga escreveu que êle
continuava bem, mas muito indiferente Admirava-se porque Alfredo
não gostava de visitas e no interior era difícil esquivar-se. Êle vivia se
escondendo e na véspera partira para a fazenda do Manecão, mas já
falava em voltar para S. Paulo.

No dia seguinte, apareceu em casa de novo. Contou que era gente


O dia todo a querer falar com êle, estava cansado. Zeca contara a sua
vida a toda a cidade e na rua, era motivo de curiosidade, parecia
palhaço de circo. E sempre a lhe perguntarem coisas da guerra. Não
gostava.

Coloquei O aparelho de rádio na cabeceira de sua cama, escolhi


programas preferidos por êle, procurei livros, pedi emprestado a todas
as pessoas conhecidas. “Por acaso tem algum livro para Alfredo ler?
Algum romance ou quem sabe livros de viagem?” Trazia-lhe livros,
enchia-lhe O quarto de pratinhos com O que êle mais gostava, punha
flores na mesa, fazia broinhas de fubá todas as tardes ao café.
Perguntava O que preferia para O jantar, talvez quisesse alguma
receita das antigas?

Respondia: “qualquer coisa qualquer coisa”, conversava um pouco


e caía naquela apatia com O olhar perdido no horizonte. Sugeri-lhe
uma viagem ao Rio, passar uma temporada em casa de Julinho.
Respondeu: talvez, com indiferença. Se tio Damião vinha com a
rabeca e tocava para êle ouvir, não se interessava, ia para O quintal.

Tio Damião guardava cuidadosamente O instrumento, suspirava,


dizia numa voz que procurava consolar-me: - Êle ficará bom,
excelentíssima, é questão de tempo. Depois tomará gosto pela vida
novamente.

Chegou O mês de junho e passou São João. São Pedro também


passou com balões perdidos no céu. Fogueiras no quintal, fogos em
forma de estrelas, todas as estrelinhas do céu. Alfredo e os sobrinhos
debruçados para O chão, fabricaram balões. Que bom, êle gosta de

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balões, lembrou-se da infância. Querem mais papel de seda? Esperem
que

eu vou comprar. Ia à cidade, comprava, eu também fazia balões,


auxiliava, preparava mechas, ria. Que bom, Alfredo lembrou-se da
infância, do tempo em que era menino.

Eu cortava papel, tinha idéias, perguntava se êle lembrava de um


balão que tinha forma de sapo? Êle riu e perguntou se eu me
lembrava de outro que tinha forma de jacaré. Rimos juntos, depois
perguntei se não iríamos fazer outros? De outra côr?

Os santos passaram. Êle voltou a lembrar da guerra porque gritava


durante a noite, tinha pesadelos, esqueceu os balões que tinham
forma de bichos, esqueceu a infância.

Voltou a ser O homem torturado, O soldado que veio da

guerra.

Um dia falou vagamente em doce de cidra feito por

tia Clotilde. Perguntei:

- Lembra-se, meu filho?

Sim, lembrava. Escrevi para Itapetininga: “Pelo amor de Deus,


mandem doce de cidra feito por Clotilde.” Nao era tempo, onde iriam
encontrar cidra? ‘Procurem até encontrar.” Semanas depois, chegou
um pacotinho de Itapetininga Alfredo riu-se quando viu O doce,
acariciou meu ombro: “Esta D. Lola…” Comeu um pouquinho, nao
quis mais. Por acaso não é O mesmo doce? perguntei.

- O doce é O mesmo, eu é que mudei. A gente muda de paladar,


não é mesmo?

Como estava diferente. Só os olhos eram os mesmos. Os olhos de


meu Alfredo.

Felício um dia perguntou-lhe O que pretendia fazer, trabalhar em S


Paulo? Alfredo respondeu vagamente, não resolvera ainda. Chamei
Isabel para um lado essa noite, dissesse a Felício que não perguntasse,
não perguntasse sobre O futuro de Alfredo Êle ainda estava doente, se

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O corpo estava sarando, a alma continuava enferma, muito enferma.
Por favor, não perguntasse.

Uma tarde, Alfredo lembrou-se dos pacotinhos de doces que


vinham de Itapetininga todos os anos, queria saber se ainda vinham.
Alvoroçada, respondi que sim, Clotilde mandava todos os dezembros,
pelo Natal. Êle esperasse, iria ver. Escrevi essa noite para Clotilde,
mandasse um pacotinho para cada um como no tempo de mamãe, O
Natal estava próximo. “Serão muitos pacotes agora, não faz mal,
mande assim mesmo, quero que Alfredo sinta O passado.”

Julinho visitou-o várias vezes. Da última, achou-o mais forte, a


perna quase sã. Bateu-lhe no braço.

- Então Alfredo, quer trabalhar para Fagundes Vaz e Cia.


Limitada?

Ninguém respondeu.

- Você agora precisa trabalhar conosco. Já viajou muito, já


conhece O mundo, creio que não vai voltar para a vida de antes. Que
tal?

Alfredo morando no Rio de Janeiro, eu tomando O trem e indo


todos os anos para lá, no inverno. Vou visitá-lo Perguntariam: “Aquele
que esteve na guerra?” “Sim senhora, aquele mesmo, agora reside no
Rio, trabalha lá com meu outro filho. Vai muito bem.” Daria uma
risada. Felicidade. Eu ria só de pensar, só de pensar em visitá-lo todos
os anos. No inverno.

Respondeu que daria depois uma resposta; seu olhar atravessou as


paredes do quarto e foi embora, não pude acompanhá-lo. Fiquei
parada na porta, olhando. Depois per guntei, O coração enorme
dentro do peito

- Vai para O Rio, Alfredo? Trabalhar com Julinho? Êle havia tirado
a mala velha de sob a cama, havia se ajoelhado, e examinava O fecho
quebrado. Levantou a cabeça, disse:

- Vou-me embora, mamãe.

Sim, muito bem. Trabalhar para Fagundes Vaz e Cia. Limitada,


quem não iria? Em voz alta, perguntei: - Vai trabalhar no Rio, meu

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filho? Com Julinho? Fagundes Vaz e Cia. Limitada é uma grande
firma, você não acha?

Não se voltou para me olhar, apenas sacudiu a cabeça. As nuvens


que de manhã estavam muito brancas, eram agora escuras e
passeavam pelo céu ameaçando chuva. Longe da terra e da
humanidade. Longe do sofrimento.

“O que foi minha vida em todos esses anos? Sacrifício e


devotamente. É como viver sempre numa tarde assim de chuva
pesada de tristezas. Mas não devo lamentar-me; se fosse preciso
recomeçar novamente, novamente faria da minha vida a mesma que
foi, de sacrifício e devotamente Devo sentir-me feliz porque cada filho
seguiu O

caminho escolhido.” Ouço as vozes dos meus netos que brincam


na sala, ouço a chuva que cai sobre a terra, sobre as folhas das
árvores, sobre os telhados. Meu neto Carlos irrompeu pelo quarto:

- Vovó, a senhora não disse que queria ouvir musica de Bach O


rádio está tocando “Coros da Paixão”.

Muito bem. Não estou só, mas tenho a sensação de

que tenho no peito um deserto. Escreverei um bilhetinho

para Clotilde: “Não precisa mais você mandar os pacotinhos

de doces para O Natal. Obrigada.” E se ela perguntar:

“Mas por quê? Alfredo vai embora outra vez? Tremo só

, de pensar.” Responderei num outro bilhete: Tornada.

Se êle vai embora? Será que veio alguma vez? Este homem

de alma tão velha quanto a humanidade será mesmo êle?”

Foi quando Alfredo perguntou, colocando a mão sobre

meu ombro curvado:

* Então, D Lola?…

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