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São Paulo
Saraiva, 1968
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Capítulo 1
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MINHA amiga D. Genu apareceu um dia muito cedo, o rosto
afogueado por causa do calor. Estávamos em fins de dezembro, o sol
abrasava; foi me encontrar no tanque, lavando roupinhas das crianças.
Levantei a cabeça e enxuguei o suor da testa ao ouvir a voz tão
conhecida: - Passei pelo jardim e não vi ninguém. Como vai, Isabel? E
as crianças? Todos estão com saúde?
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sacudindo a cabeça, os olhos pequeninos e espertos. Depois da missa,
as velhas fechavam-se nos quartos até a hora do almoço; arrumavam
gavetas, costuravam, olhavam retratos. Algumas tinham
correspondência e respondiam cartas, outras com o rosário nas mãos,
continuavam a rezar para ganhar o céu e a cochilar nas cadeiras de
balanço que rangiam suavemente.
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- Velha com pneumonia é a morte, explicava minha amiga. Ontem
telefonei para saber, estava com quarenta de febre. Desta vez não
escapa.
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Entramos. O silêncio era maior na pensão; quando nossos passos
ressoaram no corredor, as cabeças das velhas surgiram nos vãos de
todas as portas, assustadas e atormentadas A morte rondava. D. Genu
empurrou com decisão a porta, pôs a cabeça dentro do quarto,
espiou, escutou. Um bafo quente de bolor e de urina espalhou-se no
corredor, onde duas ou três velhas haviam nos seguido e esperavam
rentes à parede, cheias de curiosidade. Uma Irmã de touca branca e
rosto ainda mais branco apareceu e nos olhou calmamente,
respondendo ao olhar interrogativo de minha amiga.
- Ora esta. Ainda no caminho vim dizendo para D. Lola que desta
vez seria difícil Prudencinha escapar Com a idade que tem…
- Mas com a idade que tem… Ela não está com quase noventa? É
incrível, nunca vi isso. Qualquer outra esticava..
- Graças a Deus…
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No íntimo disfarçava a revolta, fora frustada desta vez.
Conversamos em voz baixa no meio do quarto; quando a doente fazia
um movimento ou gemia D. Genu se debruçava com solucitude,
observava, escutava, passava a mão na sua testa, pegava-lhe O pulso,
admirada de haver-se enganado. Uma hora depois, D. Prudencinha
mexeu-se, abriu os olhos, pediu um prato de canja. D. Tututa deixou
O quarto para encomendar a canja. D. Genu voltou-se para mim,
indignada: - Já viu que coisa? Pensei que não passasse de hoje; ainda
vai sarar imagine, está pedindo comida. Velha danada.
- Parece que tinha melhorado, agora não quer nada e O leite que
lhe ponho na boca volta. Tem muita febre Felício aproximou-se e
colocou a palma da mão direita na testa da criança; ficaram os dois
atentos perscrutando O rosto do filho.
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- O médico vai voltar às oito horas. Somente O rumor do vento
em volta da casa, como que assobiando. Dirigiram-se para O quarto,
ela carregando O menino. Falei em voz baixa que a sopa estava
pronta não seria melhor jantar? Tomar a sopa, ao menos? Não
responderam. As três crianças que estavam no quarto vieram em
silêncio, sentaram-se à mesa da cozinha; cortei O pão era pedaços
pequenos. Ninguém falava. Fui ver se precisavam de mim. O quarto
de .Isabel e Felício dava para a sala de jantar empurrei a porta;
Zezinho estava agora no colo do pai, virando a cabecinha de um lado
para outro, dando gemidos suaves. Isabel ia e vinha guardando roupas
esparsas, enfileirando vidrinhos de remédio na cômoda Do canto
sobre a mesinha da cabeceira, vinha uma luz mortiça, azulada Ela
esticou a colcha, pôs os travesseiros no lugar depois de sacudi-los,
ajuntou xícaras e pratos usados, levou-os para a sala.
- Parece que agora está melhor, creio que vai sarar. As crianças
foram dormir, sentei-me ao lado do fogão e esperei esperei alguma
coisa e ouvi O assobio do vento A noite foi longa e incerta De duas
em duas horas, Felicio ou Isabel vinham aquecer-se perto do fogo e
tomar um pouco de café. Eu perguntava do menino, eles sacudiam os
ombros, parecia melhor, não sabiam. Ninguém sabia se nosso Zezinho
ia sarar ou morrer. Já madrugada, quando a luz do dia entrava
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frouxamente pela vidraça e minha cabeça pendia para O peito num
cansaço imenso, Felício apareceu novamente e disse que O menino
estava melhor O
- Sílvia vive falando que quer estudar piano, não sei onde essa
menina viu piano, só fala nisso. “Ih, vovó, se eu tivesse um piano.”
Tem músico na família, olhe O tio Damião como toca bem, até
escreve música; ela tem por quem puxar, agora só fala nisso. Mania.
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Um dia, ela apenas me perguntou com voz seca, olhar duro.
- Não quero.
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- Não.
- Quer chá?
- Não.
Era um não seco, áspero, atirado longe como uma pedra para
acertar. Êle parecia um menino brincando sem vontade, perguntando
e respondendo zangado: - Onde está O fogo?
- Água apagou.
- Boi bebeu.
- Amassando trigo.
Êle queria Zezinho, mas Zezinho fora embora num caixão azul
enfeitado de ouro, amôres-perfeitos amontoados no peito, margaridas
nas mãos, rosinhas nos pés. Tão bonito.
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quintal sem barulho quando O pai estava em casa a ordem era -
silêncio. Ela arrastava os pés inchados, despenteada, O rosto
manchado de amarelo; tornava a passar, a testa cheia de rugas.
- Quer que eu faça café, Isabel? A água está fervendo. Ela ficava
por ali suspirando, apoiando-se à mesa da cozinha, olhando através da
vidraça os filhos sob a ameixeira. As crianças preparavam-se para a
escola. Eduardo era O mais velho, filho da primeira mulher de Felício.
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chovendo e fazia frio. Isabel começou a gemer e a perguntar as horas,
como se assim O tempo passasse mais depressa E êle pôs-se a correr
de um lado para O outro, agitado; sempre auxiliava os partos da
mulher, dizia que estudara medicina durante dois anos e não havia
necessidade de médico.
- Vamos ver esta menina, vamos ver como vai isto. Fecharam-se.
Fui para a cozinha, comecei a tremer.
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precisam dormir. Ouvira gritos, mentira Por que vinha com aquele
rosto pálido, tremendo de frio, espiar a cozinha?
Por que tanto sofrimento? Que mocinha feliz ela fora, dançando
como uma flor! Agora estava estendida naquele leito. Ruptura da bolsa
, faça força, grite, segure a grade da cama, tome água com açúcar,
isso mesmo. E com aquele marido… Eu batia no parapeito da janela e
repetia as palavras esperando a manhã.
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Nesse tumulto de pensamentos, vi Felício sair do quarto e ir fumar
um charuto no terraço voltou dizendo que estava ventando, eu disse
que lá ventava sempre, como ela ia passando, não seria melhor
chamar um médico? Na mesma. Não, não para que médico? Essas
coisas são assim mesmo. Sentou-se na cadeira que ocupava sempre
para ler jornais e fumou serenamente O charuto, presente de D.
Augusta. Por que a dor não cessava? Não acabava de uma vez? Na
mesma. Tapei os ouvidos, grite, grite Percebi vaivém, movimento,
passos apressados, batidas de portas, a voz de D. Venuta como um
trovão a rolar. Onde estão as roupas? Corri, os gemidos cessaram,
foram se encolhendo, amortecendo. Choro de criancinha. A parteira
passou nos seus passos de gigante, voltou, quebrou ampolas, injeções,
a menina é uma beleza. Menina?
saiu. As roupas estão aqui. Pode entrar, minha mãe. Êle está
radiante, me chamou de minha mãe. Lembrei de uma antiga vizinha
que dizia - muito radiante. D. Venuta lidava com Isabel, parecia um
açougueiro gordo. A criancinha chorava, toda vermelha. Comecei a
rir, a princípio baixinho, devagarinho, disfaçando; depois O riso foi
aumentando, foi sacudindo meus ombros, todo meu corpo. A
criancinha berrava que era um gosto, senti alívio, toda a aflição se
desvaneceu, só queria rir, até dar gargalhadas. Isabel tinha um ar
cansado, sorriu de leve:
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Boca cheia, pão e queijo, mastigou forte, O marido da tal quase
morrera de susto. Começou a rir, seu peito tremia com as risadas. Ah,
ah, ah. Me deu com O cotovelo: - Está louca de alegria com a netinha
e está disfarçando, não é? Pensa que me engana?
- Olha a avó como está orgulhosa, até teve engasgos. Sua risada
ressoava pela casa, rimos juntas enquanto ela esmurrava minhas
costas. Meus olhos pareciam querer saltar das órbitas. Que mulher!
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Capítulo II
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Com a guerra e O racionamento, a vida foi ficando difícil; era
como um círculo que nos fosse apertando, até nos sufocar. Eu saía às
seis horas da manhã para ir à fila de carne e de pão, depois comecei a
sair às cinco, depois às quatro da madrugada. Muitas vezes Felício me
acompanhava às duas horas, noite fechada, até à porta do açougue,
onde eu esperava minha vez. E quantos dias voltava sem trazer nada
porque O açougueiro anunciava da porta, sob a luz mortiça, O avental
manchado de sangue: “Não há mais carne.” Ou então era O padeiro
que dispersava as filas: “Acabou-se O pão.”
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outras crianças, comentaram outros fatos; falaram do tempo, das
chuvas que estavam atrasadas, da guerra.
Depois da partida dos padrinhos, Isabel avisou que não havia mais
açúcar em casa, a cota dava mal e, com O lanche do batizado, se
acabara Felício impacientou-se, por que não avisou antes? Agora que
acabou é que vem me avisar, eu poderia ter arranjado um pouco com
D. Augusta Que posso fazer agora? Ficou furioso de repente: - Faz
doces, bolos, balas, depois vem me avisar:. - Acabou O açúcar.
- Acabou O açúcar.
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- Desta vez vou esconder, disse Isabel.
Êle vai voltar e vai pôr as mãos sobre meus ombros novamente.
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sempre para melhor. Muita coisa cairá mas nossa idéia ficará de pé.
Felicidades a todos.”
Alfredo.
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contar que tio Alfredo ensinou-os a nadar. “Vovó, êle nada como um
peixe.” “Êle foi marinheiro.”
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então brincava com os filhos pequenos, dizia - meu bem - para Isabel.
Gostava dos filhos quando eram pequenos como bonecas; fazia O que
queria com eles, jogava-os para cirna, aparava-os, embalava-os para
dormir,
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pingo d’agua ressoava, batia na lata pin! pin! enchia-me a noite,
continuava a cair; eu ia para a cozinha acendia a luz, mexia nos paus
do fogão, vou fazer ena. Vinha O grande silêncio sobre a casa.
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Ensaboando a roupa, ela mal ouvia e sacudia os ombros, incrédula;
e eu ficava acreditando que uma distância enorme nos separava. As
crianças diziam por brincadeira: - Olhe aquele Rousseau que vovó
falou.
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Ouviam-se tiros espaçados; voltavam à noitinha, famintos, a sacola
ensangüentada de passarinhos. Isabel enrugava a testa: - Coitados.
Homem incompreensível.
E êle dizia que sim, que falara, se não tivesse falado O menino
voltaria contente para casa, não faria cara de mártir só para
enternecer, provocar compaixão. “Coitado de Eduardo, a mãe tão
carinhosa, tão boa e êle em casa do pai uma fera.” É isso que falavam
dele, bem sabia mas aquela miserável nada conseguiria, era
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desprezível, desprezível atormentar O menino desse jeito. Isso tinha
que acabar daria um fim àquelas visitas, acabaria com aqueles sábados
choramingas, haviam de ver. “Chega os aborrecimentos que tenho no
meu trabalho, ainda tenho que aguentar outros em casa!” Batia com
O punho forte na mesa, esbravejava, ameaçava “Ainda hei de
suportar O choro deste
menino?”
quintal. .
durma sossegado.
tanto, eram ciúmes, tinha medo de que êle quisesse mais bem à
mãe. Continuaria a visitar a mãe todos os sábados ficasse tranqüilo,
não havia lei que impedisse um filho de ver sua mãe. Conversávamos
Quando eu deixava O quarto, falava: - Se quiser alguma coisa, dê uma
batidinha na minha porta, acordo à toa.
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alegria, pisar sentimentos, esquecer, e como se pode esquecer O que
se não quer? Como uma erva pobrezinha que por compaixão se deixa
crescer num jardim, cresce êle nesta casa solitária. Pouco amado.
as verduras O peixe.
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Capítulo III
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Um velho parente de Felício que chamavam de tio Damião, vinha
visitar-nos aos sábados. Teria uns sessenta e poucos anos, forte, baixo,
possuía uma casinha na Mooca e vivia da aposentadoria e do aluguel
de outra casinha. Quando aparecia, trazia tomates da horta, hoje
umas ervilhas tortas, outro dia carambolas. Cultivava rosas.
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O arco continuava subindo e descendo nas músicas de Bach.
Quando alguém cobiçava-lhe O violino, vendia por trinta cruzeiros e
fabricava outro. Tinha um amigo que tocava viola e quando os dois se
juntavam, faziam orquestra. Discutiam música, literatura, rosas e
repolhos.
- Mas não são só esses, tio Damião, tenho outros, veja. Êle sacudia
a cabeça penalizado, olhando a prateleira da sala com livros
desconhecidos. Fazia muxoxos.
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- Eu sou dos Soutos mais antigos do Estado do Rio, meu ramo vem
de Portugal, do alvorecer do século XVIII.
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A rabeca realizava milagres nos Braços de tio Damião êle ria-se
com nossos aplausos e quando Lena batia as duas mãozinhas, êle
apertava-lhe O queixo: - Gostou, meninazinha? Quando você tiver a
idade de Janina, irá apreciar melhor.
A casa de tio Damião era pequenina, com duas janelas dando para
a rua, a porta de um lado; contava êle que de manhã trabalhava na
horta e no jardim, e seu maior prazer durante a tarde era ficar na
janela, olhando O movimento da rua, os cotovelos apoiados no
peitoril. Era querido e respeitado por toda a vizinhança que O
considerava e O consultava em todos os assuntos. Era O mediador e
O conselheiro um pouco médico, um pouco dentista, um pouco
calista. Extraía com muito jeito os dentinhos de leite de todas as
crianças do bairro punha a criança sentadínha, mostrava-lhe uma
carambola ou um caramelo prometia, ria, disfarçava pegava um fio
forte, brincava com êle, tudo isso com muita habilidade e gentileza,
conversando e contando histórias, zás, a criança saía aliviada. Indicava
remédios para os homens, certos chás para as mulheres, mas sua
maior habilidade era tirar calos. Conhecia todos os pés das imediações
e já havia extirpado todos os calos incômodos. Nas manhãs tratava da
horta e do jardim; nos aniversários das senhoras, aparecia sempre
com uma rosa especial e dizia O nome, como entendedor: -
Excelentíssima, uma “Condessa de Sastago” para festejá-la.
E se inclinava:
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festa um pouco antes das vinte horas, desculpando-se, dizendo que era
metódico, não reparassem. Ia correndo para casa, tirava O paletó,
acendia a luz pegava a rabeca. Sentava-se diante da mesinha da sala
de jantar coberta com uma toalha bordada e onde havia um vaso com
flores um caramujo enorme que colocava todos os dias no ouvido
direito para ouvir O “grande mar”, um castiçal com vela e fósforo
para O caso de faltar luz e um livro de orações. Ficava esperando; às
vinte horas e vinte e cinco minutos levantava-se, colocava a rabeca
sob O quei xo, olhando sempre O relógio que estava ao lado do
castiçal, às vinte e trinta começava a tocar. Tudo isso é por método,
explicava, tudo tem sua hora. Durante trinta minutos tocava suas
composições, depois as músicas que tocava de ouvido e por fim a
valsa de Janina. Às vinte e uma horas, guardava cuidadosamente a
rabeca, colocava O caramujo no ouvido direito para ouvir O grande
mar e ia para O quarto, O livro de orações na mão.
O irmão Cosme era como se ainda vivesse; tio Damião falava nele
com carinho todas as vezes que nos visitava. Cosme dizia isto, contava
aquilo, ria-se das piadas do irmão. Êle gostava de pilheriar, ora se
gostava. Contava que êle, Damião, era mais velho quatro minutos e
meio; já estava nascendo, vivo, vermelho, aos berros, quando a avó
que ajudava O parto deu um grito assustado: Temos outro! A parteira
largou-o nas mãos da avó, voltou-se para acudir, qual, O Cosme vinha
vindo sozinho, esperto, um olho aberto outro fechado, nem precisou
de auxílio. A parteira ficou espantada Este já nasceu engatinhando.
Por isso O Cosme sempre mais esperto que êle, mais ladino,
ganhou rios de dinheiro, pena aquela mania de fabricar dados
viciados. Sua voz engrossava, franzia a testa.
Sorria:
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- Mas que êle era hábil, ah, isso era. Ha-bi-lís-si-mo. Pois nasceu
engatinhando.
Engrossou a voz:
- Mas tio Damião, O senhor é tão bom de gênio, tão manso, por
que Felício que é seu sobrinho não é como O senhor?
- Ah! Eu não sou capaz de matar uma mosca. Sou calmo. Mas
assim como os dedos da mão são diferentes, nem todos os irmãos e
sobrinhos são iguais. Assim mesmo minha mulher se queixava, dizia
que eu não era biscoito. Debaixo das cinzas há sempre brasa, ela
falava.
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Casquinou uma risadinha ao lembrar a esposa:
- Brava era ela. Onça pintada, mas eu fazia as coisas de tal jeito,
tapeava aqui, endireitava ali que a vida inteira quem mandou fui eu e
ela tinha orgulho de dizer que mandava em mim. Farofada. Sabe que
nos domingos eu viro O retrato dela para a parede? Ela me azucrinava
tanto nesses dias, me perseguia, me mandava fazer isto e aquilo que
eu sempre lembro dela com raiva nos domingos, então por vingança,
viro O retrato dela de cara para a parede. Só de raiva; na segunda-
feira de manhã O retrato está de frente outra vez. Coitada Que O bom
Deus lhe dê um bom descanso, é O que eu desejo.
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desculpe se falo essas coisas, mas muitas Justinas passaram por
aqui…
Coçava O queixo.
lá se cantam alvoradas.
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Tanta coisa e falava de cor páginas inteiras; pediam para êle
lembrava Sílvia.
vós todas que tendes dentro do peito O mal que nada cura,
fraca.
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alugava para ver se tudo estava em ordem; se havia uma falha
qualquer, uma sujeirinha na janela, um respingo na porta, êle pedia
Mas era tão delicado, tão cuidadoso no falar, sua voz era tão doce
que gostavam dele e faziam-lhe as vontades. Ao despedir-se, curvava-
se diante da inquilina: - Me perdoe, sim? É minha única jóia, pode
compreender, não é verdade? É meu tesouro, não me leve a.
mal.
Somente nesse dia do ano, saía fora dos hábitos e ficava até mais
tarde conversando e tocando. Compôs um fado para esse dia e tocou-
o à hora de ceia. Recostado na cadeira predileta, Felício fumava um
charuto. Tio Damião interperlou-o: - Falar em fado, sabe a história do
fado?
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Camilo ou do Eça. Diz assim: Roma fêz O Direito, Atenas criou a
escultura, Paris inventou a revolução, a Alemanha criou O misticismo,
Lisboa fêz O fado. Esta é muito boa, ah, ah, ah. Isabel perguntava: - E
O Anatole?
Mudava de assunto:
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quadrinha, não reparem, passatempo de velho. E lá veio mais um
versinho.
- Para que, meu Deus do céu? Para que fazer dados para ladrões?
Preparava O marfim, O mercúrio, eu nem gostava de olhar e sabem
de uma coisa? Não gosto nem de lembrar.
Vamos falar de outra coisa, vamos falar dos poetas, Como eles têm
cantado a lua, lua cheia, minguante, crescente, nem sei que mais. Eu
falando essas coisas bonitas, nem me lembrava que amanhã tenho que
cortar os calos da vizinha, uma velhinha de oitenta anos. Imaginem,
ainda tem calos. D. Inacinha, muito boa, coitada, para me pagar os
calos, me manda de presente docinhos, baba-de-moça feito por ela.
Não digo nada, a velha vai para a cozinha e faz tudo na perfeição; só
que outro dia esqueceu de pôr açúcar no bolo. Saiu intragável.
Coitada, decerto com a mania de racionamento, esqueceu O açúcar.
A vida é cheia de surpresas.
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- Não é, quer ver? Com essas conduções difíceis de agora, vou
chegar na minha casa às dezenove horas ou mais. Na hora de
saborear meu parco jantar, café com leite e bolachas. Depois Janina
está me esperando. Tenho minha aula de música, minhas páginas de
leitura, depois sono. Amanhã temos orquestra em casa, é O dia do
Juvêncio levar a viola.
- Jante aqui hoje, dizia Isabel. Temos uma sopa de macarrão, fique.
- Sou O homem dos métodos; quem quiser ter hora para tudo
precisa aprender comigo. Até sábado.
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senhor Damião Vasconcelos Souto. Souto de Portugal, do alvorecer
do século XVIII.
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capítulo IV
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O tempo passando. Vinham cartas de Itapetininga contando
notícias; Clotilde queixava-se de reumatismo. “O que me faz mal é
trabalhar no calor do forno, depois tomar friagem.” Para ganhar a
vida continuava no calor e na friagem. “Glorinha ficou noiva, O
casamento é em fevereiro, contamos com você para madrinha.”
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tomava um copo de agua, uma voltinha, ia embora Olga
impacientava-se: um ir e vir O dia todo Ouvi vozes de criança.
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Até a autoridade parecia arrefecida, abafada pela gordura; já sua voz
não tinha aquele tom enérgico de mando. Esfriara. Uma vez ou outra
voltava ao tom antigo, assim como uma vez ou outra procurava
conter-se na mesa; tinha então desmaios na voz: “Não posso repetir
isso, preciso cuidado.”
Mas as palavras tinham uma leveza tão grande que O vento levava.
Parou ao me ver, um ar reprovador: - Ora viva, até que enfim.
Precisou Glorinha resolver casar para você vir nos visitar. Cinco anos
já que não aparece. Glorinha!
“Aqueles que fiz ontem, da lata verde.” Zeca voltou apressado para
a farmácia Todos falavam ao mesmo tempo; abri malas, distribuí
presentes, os meninos saíram aos pulos, radiantes. A tarde caía
devagar sobre a cidade e através da janela, eu olhava O largo amigo e
silencioso.
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- Morreu?
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Fim de quaresma. Fazíamos jejum, rezávamos, conversávamos
sobre O passado. Ficávamos recordando como se folheássemos velho
álbum. O passado voltava inteiro, vivo, palpitante, quente.
Retalhávamos tudo, depois rezávamos a ladainha, contritas; Clotilde
puxava O terço com devoção, voz mansa. Olga pedia: - Vamos rezar
O Bendito?
- Ah, sei.
Arrepios.
Morreu? Coitado.
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Nas horas vagas costurávamos; ajudei a bordar peças do enxoval;
Glorinha e Inês bordavam. As crianças chega vam depois do jantar,
balbuciantes Zeca ficava de quatro no chão para as meninas subirem-
lhe nas costas. Olga sacudia a cabeça: - Olhem para que deu O avô.
- Olhem a toalha…
- Chove pra burro… Vai chover O dia inteiro. Vítor socou O irmão
por cima da mesa; Clotilde, alfinêtes no canto da boca, a voz
engasgada: - Tenham modos, meninos. Inês tornou a chamar:
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Zeca disse que Inês parecia máscara, por que tanta pintura?
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de começarem a andar, as pequenas sacudiram as saias
respingadas de chuva, como cachorrinhos molhados. Fêz-se silêncio
na igreja. A noiva de olhos baixos e O pai como vido; êle não queria
olhar para O povo que se aglomerava nos bancos e quando olhava,
sorria e cumprimentava de leve.
Vi tia Candoca bem vestida; fizera vestido novo de tafetá azul para
a cerimônia; enfeitara-se com jóias, broche de pérolas, pulseira de
ouro e camafeu, brincos pendentes.
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do nascente, êle pulava a janela e fugia. A mãe olhava Cora e dizia:
“Como você está engordando, seus vestidos já não servem.”
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Mais ao lado, vi Angélica e a filha. A menina de Angélica nascera
aleijada. Contavam que em uma tarde de tempestade, Angélica, já em
véspera de dar à luz, fora segurar uma criança que escorregara,
falseara O pé e rolara uma escada de vinte degraus A filha nascera
nessa noite; uma menina bonita e forte, porém com defeito na
espinha.
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sinais para as negras da cozinha: “Onde estão as bandejas de
salgados?” Angélica e a filha entraram; a moça agitava as asas
quebradas, abraçava outras moças.
- Nossa Senhora, mas ela está moça e bonita… Vítor e José Luís,
dentes grandes e ares provocadores, escondiam-se por trás dos
grandes e faziam caretas aos outros meninos.
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- A lei de estabilidade veio transformar O bom empregado em
mau. Não há mais estímulo. Protege O vagabundo.
- Porque desta vez a Bélgica não lutou; se ela tivesse escorado uma
semana, a França não cairia.
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ouvindo a ameaça dos totalitários, não se prepararam. Até nós
sabíamos que a guerra era inevitável.
Alguém lembrava:
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- Será possível? O dinheiro perder O valor de três em três meses?
E quanto custa ao governo fazer dinheiro assim? Viver fazendo
dinheiro?
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- Para fazer política há dinheiro, para outras coisas há dinheiro,
por que não para abrir estradas Por que não cobram taxa de pedágio,
tanto por carro? Num instante O governo receberá O que gastou e O
Brasil ficará mais forte, mais rico. Vocês já pensaram no que as
estradas significariam para O transporte de coisas? O que O
Alguns confirmaram, seu Lúcio falou com voz arrastada, mole sim,
era isso mesmo. . As boas estradas haviam de ajudar muito, tinha a
filha e oito netos morando em S. Paulo; ela comprava leite, manteiga,
verduras, tudo por
preço alto e nem sempre bom produto, e a sitioca que êle possuía
nos arredores da cidade dava bom leite, ovos, frangos, verduras,
manteiga Pois bem. Êle podia mandar tudo isso para a filha, mas de
que jeito? Se a estrada de rodagem Itapetininga-S. Paulo fosse mesmo
das boas, em quanto tempo um caminhão cobria essa distância?
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Riram, comer O quê? A questão é que não havia O que comer. Êle
exaltou-se: - Porque não sabem plantar; O caipira come feijão, farinha
e carne seca quando tem, O que é isso para uma criatura?
Enfraquece, a raça não desenvolve. Vocês que viajam por aí, me
digam uma coisa, O que é que O caboclo planta à volta da casa? Nada
minha gente, nada. Nem um pé de xuxu, nem couve, por quê? Por
ignorância. Se êle soubesse ler, saberia que xuxu é bom para a saúde.
Já vi na minha fazenda a mãe dar à criancinha pedaços de rapadura
porque a criança tinha fome. Quando eu disse que aquilo fazia mal,
respondeu que criara os outros assim. Mas os outros O que eram? Uns
molambos de gente. Vivem numa miséria horrenda e nunca
receberam tanto dinheiro como agora, mas não têm nada. Você entra
numa casa daquelas, vê só pobreza; minha filha foi dar injeção numa
criança, não tinha mesa para ferver a agulha teve que ferver no chão.
E no entanto eles têm terra para plantar, plantam pouco e só milho,
feijão, quando poderiam plantar incuto mais. Também, penso às vezes
para quem comprar?
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O avião não resolve, não pode trazer carga, fica caríssimo, era preciso
estradas pavimentadas cortando esses sertões, unindo tudo. Aí O
Brasil ficaria grande, não só em território.
Outro falou:
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burguês. Na Rússia não, é O proletariado derrubaram também O
burguês.
- Nós talvez não, mas nossos filhos e netos O que hão de ver
ainda?
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levantados, numa saraivada de arroz e gritos, Olga estava com os
olhos úmidos, Zeca sorria. Partiram. Os convidados despediram-se e
deixaram a casa, apressados. Olhamos as salas vazias, papéis de bala
pelo chão, pedaços de doces pelos cantos, copos esquecidos sobre os
móveis. Zeca olhou tudo meio desanimado, coçou a cabeça, passou O
braço pelo pescoço de Olga que chorava baixinho;
- Será possível, meu Deus? falou Zeca com voz de choro. Clotilde
veio atrás, acalmou-o: - Não é nada, Vítor chamou-a de “rainha
morta”, ela ficou furiosa.
Tinha a escola, era verdade, mas só três horas de aula por dia, O
resto do tempo em casa, mas qual, era mole por natureza. Com os
mais velhos fora autoritária, danada para os mais moços era aquilo
que se via.
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Ela procurava não ser pesada, ganhava dinheiro com as tachadas
de doces, ou marmelo, ou goiaba, bananada, figada; Deus a livrasse
de ser pesada, enquanto tivesse forças, seus braços haviam de
trabalhar. Mostrou as mãos calosas; olhe os calos. Fêz uma pausa,
depois continuou dizendo que os meninos não a respeitavam,
imitavam-lhe O modo de rezar, de falar; Olga em vez de zangar-se, ria,
imagine. Uma vez estava descascando goiaba, e quando viu, Vítor
estava atrás imitando-a. Ficou indignada, Olga também riu e na hora
do almoço contara a Zeca, contara mesmo, desaforo Clotilde movia as
mãos, abria e fechava os óculos a ponto de os quebrar, nervosa. Os
meninos eram insuportáveis, não obedeciam nem O pai, eu não havia
reparado?
Endiabrados.
- Não.
- Que coisa. Houve tempo que êle escrevia, cartões com poucas
linhas, mas dava notícias.
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assunto; perguntou se eu havia reparado na predileção que Clotilde
tinha por Inês. Antes que eu respondesse, falou que toda a gente
notava e achava as duas parecidas, eu também achava? Abri a boca
para responder, ela continuou, Clotilde era boa, ajudava-a a criar os
filhos, mas também tinha seus defeitos, quem não os tinha? Com toda
aquela bondade, ela perturbava a educação que ela gostaria de dar aos
meninos. A princípio Zeca se aborrecera, depois não se importara
mais. Clotilde fazia todas as vontades dos sobrinhos. Inês, então, era a
predileta. O vestido côr-de-rosa de seda cara?
- Nunca mais.
- Que pena. Sabe que dos seus filhos sempre achei Alfredo O
melhor? Mais simpático, mais carinhoso para todos. Olhe Julinho:
nunca mais nos procurou nunca mais nos visitou. Ficou rico,
65
importante, esqueceu-se de nós. Nem nos participou O nascimento
dos últimos filhos Alfredo nunca se esqueceria, era delicado, bom.
Para você foi um ótimo filho, eu me lembro; deu algumas dores de
cabeça, mas era bom menino.
- Meu Deus, Lola, ela é meu braço direito, é tudo nesta casa, não
viu como foi dedicada quando Vítor se machucou? É sempre assim, as
crianças não podem passar sem ela.
Clotilde não quis. Iria mais tarde, Vítor ainda não estava
completamente bom, a ausência de Glorinha entristecia a casa, Inês
66
precisava de vestidos, José Luís precisava de camisas, mais tarde, mais
tarde.
Seria sempre assim até a morte chegar para cada um. Glorinha,
Inês, a filha casada, Vítor, José Luís seguiriam a mesma rotina. As
pequenas também. Envelhecendo sentados nas cadeiras do terraço
nas tardes amenas, olhando as rosas. Clotilde visitando os pobres e
doentes, levando consolo aos que precisavam, ensinando orações aos
que não sabiam. Fazendo novenas. Pedindo hortênsias a todas as
crianças da cidade para enfeitar O altar da Capela do Santíssimo,
ajoelhando-se contrita e cantando a ladainha acompanhada por toda a
Irmandade: “Mater Prudentíssima - Ora pro nobis.” Zeca recebendo
os amigos na farmácia para dois dedos de prosa: discutindo política,
contando novidades, falando mal do governo, comentando a guerra,
mostrando os erros, corrigindo, consertando. Sentados nos bancos da
farmácia ou de pé, encostados à porta, êle e os amigos corrigiam a
humanidade e salvavam O mundo todas as tardes.
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cantavam quando ouviam as escalas. Dó-ré-mi-fá-sol-lá-si. Perguntei
por perguntar.
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Mooca, êle nos esperava no portão, sorridente. A casa cheia de flores
nesse dia, a mesa arrumada com toalha bordada, havia um bolo
encomendado na confeitaria, havia sanduíches e chá. O principal
eram os “sonhos” que tio Damião fazia na hora de servir e vinham
ainda quentes, macios, acompanhados de calda grossa e espêssa.
“Como estão fofos, deliciosos, tio Damião.”
Êle esfregava as mãos: “Feitos por Janina, tudo O que ela faz é
perfeito.” Tornava a esfregar: “Perfeito.”
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Êle mandava bordar toalhas por bordadeiras peritas e nos
mostrava, olhe que beleza, bordado de Janina; sobre as cadeiras, em
todas as mesinhas, na sapateira, havia toalhas bordadas pela filha. E
quando êle passava as tardes perto da janela olhando a rua, Janina ao
lado bordava, bordava, fazia coisas lindas; que mãos primorosas
Quando êle pegava a rabeca, dizia que fizera aquela valsa para O
aniversário da filha; ficava de pé muito sério, preparava a rabeca sob
O queixo, segurava O arco, olhos fixos no espaço, levantava a ponta
do pé direito para marcar compasso. Começava, uma pancadinha no
chão e duas no ar, uma para a direita, outra para a esquerda - um,
dois, três. Um, dois, três. Quando tocava polca havia quatro
compassos, dois no chão, dois no ar.
O jantar era sóbrio. Êle dizia: “Fique aí, Janina, eu mesmo vou
preparar.” Estendia a mesinha, aquecia O leite, O café, cortava O pão
e O queijo em fatias finas, passava manteiga, abria a lata de bolachas.
“Pronto filhinha”. Comia fazendo comentários sobre O tempo, os
vizinhos, raramente sobre a guerra, para que lembrar aquele horror?
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Os olhos da minha Janina
feliz.
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quarto, pronto D. Lola, O café está servido. Ouvindo-lhe O riso, eu
também ria; sentava-me então na cama e me espreguiçava, estou
ficando como tio Damião, estou ficando como tio Damião. Inclinava a
cabeça para ouvir a voz de Alfredo, em vão procurava ver-lhe O rosto
na porta, não ouvia O assobio, nada. Tio Damião, tio Damião. A
cozinha fria e deserta, no fogão só havia cinzas e através do vidro da
janela, O quintal imerso ainda em sombras, somente os galhos das
árvores a se balançarem, a se moverem tristemente.
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afeição. A amizade de um filho, ou de uma mulher ou de um amigo ou
de um irmão, uma amizade que você possa contar com ela, ter certeza
que pode contar com ela a qualquer hora, que possa chegar e dizer:
“Estou em aflição e quero que me ajude.” Isso é que vale. Olhe, O
dinheiro nem sempre traz felicidade, já tenho visto famílias se
desmoronarem por causa do dinheiro, tenho visto irmãos se odiarem,
tenho visto discórdias, separações, suicídios, mortes por causa de
dinheiro. Glória? É tão passageira, tão efêmera., Você mesmo que
esteve na guerra, que combateu para libertar os povos escravizados,
que lutou em nome da Liberdade é considerado hoje um herói. Mas
amanhã quem se lembrará disso?
E uma boa amizade? Quanto não vale? Por isso eu quero que você
case, forme seu lar, sua casa. Os idealistas como você são os que mais
precisam de lar, não sabia?
E quero que tenha filhos, não vê como ajudo Isabel a criar os dela?
Ajudarei a criar os seus também, gosto tanto de crianças, e depois são
meus netos, dormirão no meu quarto, não darão quase trabalho, vai
ver. Seremos felizes, viveremos todos juntos e quando eu fizer setenta
e cinco anos ou setenta e seis, daí por diante, quem sabe viverei até
oitenta Julinho virá do Rio com a tribo como êle diz, e festejaremos
todos juntos, a família aumentada, numerosa unida. Todos juntos,
Alfredo, como no tempo da Avenida Angélica, juntos de novo, unidos.
Os mortos terão os lugares ao nosso lado como se fossem vivos. Virá
um bolo grande na mesa, um bolo de aniversário com uma porção de
velinhas, todo enfeitado de branco e vocês dirão: “Vamos ver se
mamãe é capaz de apagar todas, todas de uma só vez.” Estarei muito
trêmula, é verdade, toda trêmula e cansada, como a árvore do
caminho que já viveu muito e deu muita sombra, mas apagarei as
velas, oh, sim, terei forças para assopra-las duas, três vezes até que
todas tenham se apagado e vocês à minha volta baterão palmas e
dirão Viva mamãe.
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Sílvia tocará uma música em minha homenagem e os netos dirão
batendo palmas Viva vovó. Hei de sorrir, achar tanta graça, você sabe
que nunca me fizeram uni bolo de aniversário? Eu já fiz muitos mas
não para mim, para vocês quando eram crianças, agora para os netos.
Também hei de bater palmas com minhas mãos secas, mirradinhas
como folhas amarelas, mas hei de rir vendo vocês todos juntos e
reunidos, a festejarem minha velhice, minhas rugas, meus cabelos de
algodão Viva mamãe.
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Pulava sem ritmo, depois ficava séria e andava bem direitinha
marcando passo: um dois, um, dois. Travessa, alegre, não parava,
enchia a casa com seus sons, suas peraltagens. Às vêzes subia pela
fumaça do fogão, menina levada, tornava a descer dando uma risada
das travessuras que fazia, a risada parecia uma escala parava um
pouco e marchava feito soldado: um, dois, um, dois. Eu tinha vontade
de perguntar: Não está cansada, sua levadinha? Fazia piruetas em
cima do fogão, olhe que você se queima. De repente sentava-se na
mesa da sala e fazia Lena mostrar O primeiro dentinho numa risada,
depois saltava como se estivesse pulando corda, depois safe outra vez
e dava corridinhas loucas pelo jardim, espiava pelas frestas das portas,
olhava os meninos, olhava Isabel, saía correndo e rindo, de repente
parava cansada e ficava quieta, silenciosa como se fosse uma santinha.
Santinha, hein?
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Beethoven, um colega chamado Emílio disse que ia um domingo a
nossa casa para ouvir Sílvia tocar.
Diante dos amigos O pai elogiava a filha, que ia ser i pianista, era
uma boa menina, ajudava todos em casa e ainda arranjava tempo para
estudar piano. Os compadres vinham almoçar aos domingos, Sílvia
ficava ruborizada com os elogios, procurava agradar O pai, ia buscar
cigarros, cerveja, ia depressa.
- Toque Mi bemol. Não, esse é Si bemol falei Mi. Por que tocou
Dó? Este é Fá. Toque Ré bemol. Agora Si. E O Fá sustenido onde
está? Por que não tocou certo? Toque Lá, vinha um Dó.
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- É assim que você estuda Assim que corresponde aos meus
esforços? Faço serviço extra de noite para esta menina poder estudar
piano olhem que lição ela deu hoje. Péssima, ouvi tudo.
- Ela estuda duas, três horas por dia. Às vezes acontece que a lição
não está boa, é por causa da escola, dos outros estudos, lá puxam
muito por ela. Está em véspera de exames…
Felício, por favor. A voz de Isabel nunca foi ouvida; Sílvia dava
gritos finos, agudos de medo, tremia, conhecia a força daquelas mãos.
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a mão, empregava força, suava.
Não pôde bater mais devido à nossa intervenção, largou Sílvia com
um soco nas costas. Voltou-se furioso para nós, os olhos fuzilantes de
ódio, ganiu para meu lado: - Da outra vez, procure não se intrometer
na educação que quero dar aos meus filhos.
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nada tão bom. Isabel odiava e sorria.
- Estude, Eduardo.
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Para O Natal faria outro, naturalmente.
- Calorzinho, hein?
- Felício, não quero que você fique zangado com Eduardo, mas…
coitado, não bata nele, não faça nada, creio que foi reprovado em
latim. Não foi em latim, Isabel?
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Ou matemática?
- Reprovado?
- Mas isso não pode ficar assim, preciso fazer alguma coisa Tinha
tanta esperança nesse menino, êle era estudioso, agora é que está
vagabundo. Meus sacrifícios de nada valem? Isabel, chame Eduardo.
O vulto da sala sumiu. Queria botar energia, mas falava mole, com
preguiça O jantar fora puxado, repetira os pratos, comera três vezes
O pudim de D. Augusta. Não era a voz dos outros dias, enérgica,
apressada, retumbante; Eduardo.
Não era aos gritos, era mansa, tom delicado. Voz cansada. Isabel
que nada dissera, aconselhou, pacata: - Já ralhamos tanto com êle… .
Mamãe e eu falamos tudo que tínhamos de falar. A choradeira foi
grande, deixe para amanhã, você precisa descansar…
81
falando: “Quis Carthaginem delevit? Scipio.” “Lex-Legis-Legibus. Qui-
Quae-Quod.” Língua atrapalhada.
- Pode misturar.
82
Mais tarde tornou a perguntar onde estava O Sancho e quantos
moinhos de vento êle havia derrubado. Muito desanimado, Eduardo
chorou à noite no quarto, sem saber porque O pai O chamava
daquele jeito.
- Porque êle era muito magro e alto, parecido coni Eduardo, por
isso. Um valente, homem extraordinário para aqueles tempos. Eu
gostaria de ser um D. Quixote, palavra.
83
Felício tinha serviço para fazer à noite em casa, batia horas na
máquina de escrever, era preciso ganhar mais, vida cara. Logo no
princípio do ano, tornou-se apreensivo cochichava com Isabel; ela
andava tristonha, suspirando pelos cantos A máquina de escrever
continuava a trabalhar àrduamente, apressadamente todas as noites.
Êle ficava com os olhos vermelhos, dedos duros. As crianças estavam
em férias, Sílvia começou a estudar a “Moda da Carranquinha O pai
ficou entusiasmado. Minha filha está tocando mu-f sica de Villa Lobos.
Será que vou ter uma neta pianista? Celebre? Uma neta que aos
dez anos toca Beethoven, Villa Lobos, ficará célebre. Os irmãos
pediam: Toque, Silvinha, a “Moda da Carranquinha.
- Para quem hei de dar então? Se a filha não aceita quem vai
aceitar?
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cacos, comecei a pôr ordem na cozinha. Quando a voz dele serenava,
eu ouvia O vento a sacudir as portas. Sentei-me e olhei O fogo
pensando em tio Damião. Tudo poderia transformar-se em cinzas,
mesmo O fogo destruidor.
- Mais de uma vez já tenho reparado nas blusas com que vão à
escola, nem sempre estão limpas. Você precisava ver os filhos de D.
Augusta.
- Este pão está horrível, por que não procura fazer melhor? Com
mais capricho?
- É
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Ela sorria. Odiava e sorria. Na porta do quintal, êle gritava:
86
capítulo VI
87
O frio era forte na madrugada; Isabel veio com um xale nos
ombros:
Ela fechou a porta atrás de mim. O vento frio que soprava parecia
gelar os ossos; eu caminhava depressa para alcançar a primeira rua
que tivesse luz, aquela escuridão assustava. Com a cabeça baixa
andava rapidamente, pensando nas crianças que precisavam de carne;
enquanto pudesse faria por eles O que havia feito”por meus filhos.
Não queria pensar no frio que me envolvia nem sabia onde punha
os pés na rua escura; gostaria de assoprar as mãos que estavam
esfriando enroladas no xale, mas se as tirasse dali, poderiam esfriar
ainda mais. As crianças, pobrezinhas, não eram alegres como as
outras, não podiam expandir-se, O olhar do pai era severo, estava
sempre censurando e exigindo.
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Esfregava as mãos. O tempo não passava e enquanto se estava
parada, O frio aumentava. Eu ouvia a voz da mulher cheia de queixas,
batia os pés no chão para aquecer.
89
Outro respondia
povo…
que está faltando para nós, vai para ajudar os povos aliados. Estão
mandando arroz, carne congelada, café, feijão. Para os nossos
soldados também, tenho um neto na guerra… Ao ouvir isso, todos se
voltaram para ver O homem que tinha um neto combatendo na Itália;
houve um silêncio de simpatia, um mocinho que estava mais na
frente, perguntou
- Na Itália?
- Na Itália.
Na Itália?
- Na Itália.
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Chama-se Alfredo, está combatendo os japoneses, os japoneses do
Pacífico. Êle me escreveu uma vez que a Austrália podia ficar
sossegada, eles expulsariam os japs de lá escreveu japs sim senhor.
Estão combatendo como demônios e estão vencendo. Isso mesmo,
vencendo; quando começou a guerra, foi com os americanos para O
Pacífico.
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minhas mãos sob O xale e apertei-as sentindo-as geladas. Não tem
mais?
Genu tinha um bom quarto, boa mesa, uma pensão que a filha lhe
dava todos os meses e paz de espírito. Amou Deus, freqüentou
missas, tornou-se piedosa, bondosa, fêz caridade e censurou aqueles
que eram indiferentes à igreja. Como se pode viver sem Deus? Deus é
um só.
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queixavam. Conseguia perdoar a pobreza resignada, que baixava a
cabeça e não ostentava, mas os necessitados que faziam alarde, que
gritavam e pediam, não suportava. “Que diabo, como é que eu me
arranjei?” perguntava. “Gastaram em ninharias O que ganharam,
agora toca a pedir, toca a importunar os outros.”
Queria saber como era a casa dele, por que não ia mais vezes ao
Rio. Contava O casamento das netas, casos de família, censurava
Joca, a filha mais velha e O genro - aqueles pobretões sem cabeça.
Mas falava sem amarguras, sem desejos; sua voz que fora arrogante e
ríspida, tinha agora inflexões suaves de água corrente Deus acima de
tudo. Estava rica. O genro já falava em comprar automóvel, só
esperava terminar a guerra; Naná guiaria O carro e ela, D. Genu só
me visitaria de automóvel. Seu rosto cheio sorria ao falar. A casa onde
moravam era deles, casa própria.
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por tuas palavras serás condenado. Não se deve falar de
- Uma coisa que eu não faço é falar mal dos outros, a vida alheia
para mim é sagrada. Jesus disse: “Por tuas palavras serás condenado.”
E eu respeito as palavras de
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Deus
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D. Genu deu uma risadinha:
- Nenhuma.
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Pôs a mão no meu ombro, aconselhou calma, confiança. Pedisse à
Mãe do Céu, pedisse.
Conviver com uma pessoa não quer dizer conhecê-la. Muitas vezes
os pais não conhecem os filhos que geraram, os cônjuges não se
conhecem entre si. A natureza humana é tão misteriosa e variada que
sempre nos surpreende, assim como O tempo num país tropical,
sempre incerto. E só depois que alcançamos a velhice,
compreendemos a resposta para muitas perguntas. A idade nos
ensina a tudo esperar, a tudo aceitar, a tudo crer.
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tem idéias avançadas, dá inteira liberdade às filhas; creio que ela é um
pouco diferente das outras mulheres e eu não poderia explicar em que
é diferente. Bonita, cheia de corpo, elegante, possui vestidos
deslumbrantes, freqüenta bailes, dança e usa jóias finíssimas,
principalmente anéis com pedras de todas as côres. Cabelos e olhos
castanhos, dentes brancos e é um gôsto vê-la rir; pele muito alva,
mãos finas e compridas, macias feito seda.
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vidro de goma, uma caixinha de tachas; no outro lado do quarto, uma
bola grande e um par de patins. Ao lado da cama, uma mesinha com
lâmpada, no chão um tapete azul. Na janela larga, uma cortina de um
tecido grosso azulado e na parede em cima da cama, outros
quadrinhos com retratos que devem ser de artistas de cinema.
Nada interessava a Julinho a não ser sua bela situação, sua riqueza,
sua família.
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fundo. Eu me esquecia de conversar, calculava quantos pratos a
cozinheira teria de lavar. Com estes serão trinta e seis, barbaridade.
Vinha a água para lavar as pontas dos dedos nada mais antipático.
Eu percebia os nomes que as meninas davam àquela antipatia - bóis.
Falavam pronunciando O ó abertíssimo.
100
- Nunca mais.
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Êle subia correndo a escada, eu ouvia um tropel dá licença?
Moreno e forte, risonho, um pouco dentuço; sentava-se na beira da
cama, outras perguntas, “Dormiu bem?”
vi.
102
Haveria reunião, pouca gente. O pai chamou a atenção: “Sua avó
chegou ontem, vocês já querem sair?”
Olharam para mim sorrindo. Não, por favor, faço questão, sou eu
que peço para irem à casa de Didi, não quero interromper a vida de
vocês.
minha volta.
103
sabia, respondi com voz gritante que ficava muito longe, do outro lado
do mundo.
- Do lado de onde?
- Quanto tempo?
- Três anos.
- É muito tempo.
- É muito mesmo.
- Diz que só quando ficar surdo vai usar, por enquanto ainda pode
ouvir.
104
filmes, brigavam; Ivone ficava amuada dizia para Lídia - você é uma
bestinha, colocava um bonézinho listado de vermelho sobre os
cabelos, ia para a casa da vizinha, sandálias brancas, tóc, tóc, tóc Lídia
continuava a pôr discos e comer bombons; quando O irmão voltava
do colégio, gritava:
que casa nem que seja para fugir. Imagine que situação de
inferioridade.
Sim? Gostam de jogar, não? Muito bem. Nunca joguei, mas deve
ser um passatempo agradável. Êle parecia inquieto, um pouco
nervoso, Maria Laura olhava-o sem nada dizer.
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jogo, distrai, diverte, O tempo passa mais depressa. Jogam, vão aqui,
ali, vida divertida eles levam.
- Pois não, quer que eu me retire já? Vou para O quarto, estou
com sono, tenho dormido tão bem aqui. Boa noite.
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Em casa, os netos me chamavam a atenção para os quadros; este
é de um pintor do século XVII, dizia Lídia.
- Dezoito.
- Como é O nome?
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- Dizem que uma princesa italiana tem uma igual. Redobramos de
atenção para a cama igual à da princesa.
- Bonito vó Lola?
- Muito bonito.
Parece que ela está ali para fazer algum pedido, não parece?
- A velha?
- Deve ser uma dessas importunas que vêm pedir emprego para O
filho, disse Lídia rindo, ah, ah. E a gente tem que receber e ser
importunada por elas, ah, ah.
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Tra-la-la-la? Tri-li-li-li. Olharam incrédulos. É? Não se interessaram.
Saíam quase diariamente, só se reuniam para as refeições; quando
Julinho e Maria Laura iam jantar fora, as duas meninas pediam para ir
ao cinema com a vizinha; O filme era formidável, todas as amigas já
haviam assistido. À meia-noite eu via quando as duas chegavam;
desciam de um automóvel perto da casa; enquanto Lídia entrava,
Ivone continuava no carro conversando com um rapaz. Ficavam em
cochichos durante meia hora, então Lídia assobiava do quarto, já de
camisola, na janela, chamando a irmã. Uma noite, era quase uma
hora, Lídia impaciente gritou: - Você quer que mamãe te pegue, não
é? Uma hora da manhã!
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carro, sempre com as mãos lá dentro, ela puxava, puxava e êle não
queria largar. Até que O assobio fininho de Lídia, três em intervalos
regulares, fiu-fiu-fiu, avisou que estava na hora.
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Capítulo VII
111
As meninas liam livros de nomes arrevesados depois
112
ficou pensativa, as pernas dependuradas no braço da poltrona.
Escutavam a música, depois falavam em vestidos e jóias.
voltava: , . .
ouro e safiras. Será O. meu presente de Natal este ano. Ivone não
queria ser derrotada, lembrou: - Sabe aquele anel de brilhantes e
pérolas que mamãe usa algumas vezes Vai ser meu quando me casar,
ela ja disse
muito mais!
113
- Papai vai comprar um automóvel novo, um Lincoln, falou Ivone
arquejando para ver se conseguia levar vantagem agora, já que
perdera nas jóias. Está na fila há muito tempo, adoro O Lincoln!
sabe O que êle vai nos dar de presente? Dois cavalos lindos, vamos
andar a cavalo todas as manhãs; estou louca de alegria.
- Vovô vai comprar também uma chácara, não é Ivone? Disse que
nós é que vamos escolher, já vimos três mas não gostamos de
nenhuma, queremos que tenha piscina de azulejos.
114
Lídia continuou:
- Então você toma Gin tônica, eu prefiro Martini seco O bar vai ter
tudo, cada um beberá O que quiser…
batalha.
115
mesa, nos aparadores: bandejas, açucareiros, jarras. O paliteiro era
uma ave com bico comprido que baixava, abria O bico e tirava O
palito, tudo de prata. E muitos tapetes. Sentime honrada com O
convite. Serviram um cozido à portuguesa com muito azeite, legumes,
carnes cozidas, pedaços fofos de toucinho, tudo bem tenro, de
derreter na boca. À sobremesa serviram trouxinhas de . ovos
deliciosos, amarelinhas, macias. Julinho me fêz tomar
vinho era como água, só fazia bem. Meu coração cada vez mais
carinhoso, como se fosse derreter, meus olhos mais úmidos, uma
vontade de derramar lágrimas, vontade louca de chorar. Seu
Raimundo, com voz muito grossa, perguntou:
- Combatendo no Pacífico.
116
na boca.
É O quê?
É da Marinha. Marinheiro.
Agora eu vou chorar, não posso mais, vou chorar. Mas não devo,
tenho que beber à saúde de Alfredo, quero ver se agüento mais um
pouco. Preciso ficar firme. Firme - Pela volta do marinheiro que está
lutando pela Liberdade. Pela Liberdade!
117
Recitei
118
corda girava, girava. Reco mecei batendo O pé: “Liberda-a-de!
Liberda-a-de!”
rico.
- Ora essa, a senhora bebeu porque gostou, não sou culpado coisa
nenhuma.
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Eu batia a cabeça, como é que todo O mundo aceitava essas coisas
tão naturalmente? Tinha vontade de contar a história de uma parenta
que se separou do marido porque era um homem muito ruim e ela
nunca mais saiu de casa. De desgosto. Mas não conto; haviam de dar
gargalhadas e perguntar: Mas quando isso? Só se foi no tempo de
Adão e Eva. Não conto.
Fêz uma pausa e continuou dizendo que a minha classe era mais
comedida nos divórcios, não porque vivesse em harmonia, mas
porque não tinha dinheiro e um desquite custa caro. A classe deles no
Rio, a classe em que eles viviam era onde havia mais separações,
ninguém suportava nada, era a alta burguesia. Riu-se: - Os ricos, os
burgueses ricos.
120
. Fora rude. Para que dizer que somos burgueses pobres? Pequeno
burguês. Para quê? Estou cansada de saber que sou burguesa e pobre,
desde O tempo em que Carlos e Alfredo discutiam na Avenida
Angélica; não precisava dizer as D. Genu, as Isabel e Felício, para
quê? Alguém tem culpa de ser pobre? ‘ Pobreza é como doença,
alguém tem culpa Êle também fora, pertencera à classe média, agora
estava orgulhoso de ser da alta. Grande coisa pertencer à alta
burguesia, grande coisa. Julinho ficou assim orgulhoso depois de rico.
Êle era delicado, atencioso, modesto, simpies, inteligente. Agora até
parece que perdeu a inteligência, quanto ganhou em dinheiro perdeu
em inteligência Imagine, as D. Genu… As Isabel… Para que ofender?
Está gordo, cheio de dinheiro, chamando a gente de pequena
burguesia. Antes pertencer à pequena burguesia sem muito dinheiro e
sem desquites do que pertencer à alta com muito dinheiro e pouca
vergonha. Isso é que eu deveria dizer. Tulinho teve coragem de falar
assim sabendo que D. Genu, é minha amiga. Desaforo. As D. Lola…
Não falou mas pensou. Também, por que fui perguntar Só para ver
como êle respondia, eu conheço muito bem minha camada, minha
classe; desde a Avenida Angélica.
121
Em vão procuro entender O que vejo.
Conversou com todos, fêz discurso: “Se não fossem vocês homens
de critério e bom senso, que seria de Fagundes Vaz e Cia. Limitada?
Eu, um simples trabalhador…”
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Cunha Vaz…” Seu Raimundo redobrou de atenção, confirmou, isso
mesmo, muito bem. Novas palmas.
Ivone comentou:
Não sei O que quer dizer isso. Será um elogio? Lídia e ela riram-se.
O salão de baile estava cheio; quando entramos bateram palmas e
gritaram: “Viva O senhor Júlio!
123
A música era muito lenta, parecia canto de embalar berço, os
músicos tocavam de olhos fechados, os pares não saíam do lugar. Que
coisa. Repetiram aquela esquisitice, Que diferença do meu tempo; a
gente virava, volteava, marchava, dava uns passinhos, uma volta,
outros passinhos, havia animação, ritmo. Agora era aquela malícia,
muito colado, vai - não vai, dança boba.
124
Sou demais no mundo, não compreendo nada, preciso ceder meu
lugar aos outros. No meu tempo… Que tinha eu de falar para as netas
“no meu tempo . Que tinham elas com isso? Cada um tem O seu,
acabou-se Fagundes Vaz e Cia. Limitada divertia-se. Havia bebidas,
mesas de doces, salgados. A orquestra recomeçava, toda a gente se
espalhava, O moço que segurava O microfone cantava languidamente
Júlio César disse que era outro fox-trot; depois a música saltitou,
disseram que era samba. Perguntei se não tocavam valsas. Valsas?
Valsas? Ninguém gosta, dão risada.
125
quanto mais forte eram os arrancos, os puxões, os encontrões, mais
aplaudiam. Onde estão os violinos?
Ah, meu tempo. Cada um tem O seu, ora esta. Toda a gente ria,
era para rir. Isso é dança? Bárbaros. Novo intervalo; respirei aliviada,
a loucura passara. Os rapazes enxugavam os pescoços, as testas, as
moças se abanavam frenéticamente; todos foram beber. Ouvi Ivone
dizer com admiração: - O Carlinhos bebe dez whiskies seguidos e não
tica
126
como que fechado a surradevia ser no dorso; às vezes O som era
aberto e forte tla-tla-tla, provavelmente nas nádegas. Dava palmadas
seguidas e rápidas depois lentas como se contasse: tlá-tlá-tlá para
finalizar desse lado. Quando não se ouvia barulho de tapas, era a voz
estridente de D. Frida falando alto. Era a hora dos apertões, dos
beliscões, como se fizesse massa de pão. Esticada na cama, coberta
com um lençol de linho, Maria Laura apanhava em silêncio, só a voz
de D. Frida perturbava a quietude. Era uma alemã robusta e sardenta,
cabelos côr de cobre, suarenta, com mãos grandes, quase brutais.
- Eu digo para a senhora que O mundo está ficando cada vez mais
ruim. Cada vez pior. Essa guerra só pode trazer desgraças.
- A senhora vai ver, nunca mais haverá paz; será uma guerra
depois da outra.
As solas dos pés eram espremidas com força, D. Frida devia estar
suando, os cabelinhos pregados na nuca, na testa.
- A outra faça O favor. Assim está bem, muito bem. Não gosto de
tiranos, acho que êle é um tirano, a senhora não acha?
127
Agora está diferente, nem que Hitler mande dar vinho e festas
depois desta guerra, ninguém ficará contente. Tudo mudou, madame,
O mundo está mudando sempre, as gentes também.
- E se brincássemos de Tarzan?
128
de Sancho II, Ana de Mendonça, de D. João IL E lá disse O grande
Camões, justificando O amor de D. Fernando por Leonor Teles:
Êle gostava de falar para não ter que ouvir. Ivone e Lídia beijaram
O avô; vieram da praia e ali mesmo na saleta enquanto perguntavam -
como vai vovô? - foram desabotoando as saias de flores berrantes e
ficando só de roupa de banho, as pernas muito fortes e morenas
terminando em sandálias abertas. Falavam juntas perguntando se
estavam atrasadas, onde estava mamãe, teriam tempo de tomar um
banho de chuveiro? Subiram as escadas correndo, as saias multicores
sacudidas no ar como bandeiras desfraldadas. Seu Raimundo achou
assunto: - No meu tempo de rapaz seria um escândalo andarem assim.
Pior que escândalo, seria degradante, sem palavras para definir. Eu me
lembro…
129
aparados com cuidado e no alto da cabeça alguns fios, também
brancos, estavam sempre esvoaçando. Completara 68 anos, gabava-
se da saúde e do bom apetite. Uma ou duas vezes por semana,
principalmente aos sábados, almoçava em casa de Julinho, e Maria
Laura mandava então fazer pratos especiais para agradar O pai. Êle
esfregava as mãos grossas e polpudas ao perguntar quando iam pára
a mesa, na esperança de encontrar os quitutes prediletos.
Fêz uma pausa è eu quis dizer alguma coisa sobre religião, êle não
me ouviu: - Sabe qual é a divisa desta geração? “Eu não ligo.” Se um é
130
reprovado nos exames e fica por acaso aborrecido, vem a frase-
consolação da mocidade de agora: “Não ligue.” Ou “Eu, se fosse você
não ligava.” Não há a responsabilidade que havia, mesmo entre a
juventude de antigamente; hoje ninguém é responsável por coisa
alguma.
131
a conversa caiu logo, desinteressante. De repente Julinho me encarou
e fêz uma pergunta, foi como se ela me ficasse gravada na fronte: -
Mamãe já foi à sede da Cruz Vermelha pedir notícias de Alfredo?
Maria Laura citou O caso de uma amiga que havia pedido notícias
e havia conseguido, os parentes estavam em Viena. Com esta guerra?
Com esta guerra. Olhei as margaridas, olhei os netos, esperei.
- Telegrama?
- Sim, telegrama.
132
recomeçava, mudava de tom: Cruz Vermelha. Cruz Vermelha.
Lembrei-me das canchas, da bola de futebol flutuando, as luvas de
boxe como que inchadas, os retratos das lutas, dos animais, dos
artistas nas paredes do quarto. Lá ficavam todos; e O trem a repetir:
negócios, negócios. Cruz Vermelha. Cruz Vermelha.
133
- A senhora conhece essas laranjas grandes, de aspecto bonito,
ocas por dentro? Enganam a gente; a casca é grossa O miolo tem a
grossura de um dedo e a laranja esta mirradinha lá no fundo, seca e
sem suco. Assim são meus filhos Grandes, fortes e bonitos por fora,
mas não sabem nada, não estudam, não querem aprender, são
completamente vazios. Eu preferia que exteriormente nao tossem tão
belos, não tivessem tanta aparência como as laranjas bonitas, mas
tivessem suco, fossem menos vazios.
134
Capítulo VIII
135
Silvia pediu para reunir as colegas no dia do seu aniversário. O pai
deu consentimento e lembrou que era preciso poupar O açúcar, os
ovos, tudo tão caro. Haveria um bolo grande chamado de areia,
sanduíches variados, pastéizinhos de tomate e queijo. E balas, muitas
balas. Sílvia ficou nervosa, pela primeira vez receberia amiguinhas em
casa, colocou flores nas jarras. Fiz balas de chocolate, de café, de
coco. Isabel começou a estender a toalha bordada na mesa da sala de
jantar, pôs os pratinhos, quantas colegas viriam? Sílvia com os olhos
brilhantes afobada, impaciente de aflição, respondeu dez, dez colegas.
Eduardo e Carlos enceraram toda a casa, terminaram a limpeza do
jardim, espremeram limões, tudo quase pronto. O dia estava bonito,
um domingo dourado de sol muito claro, cintilante.
- Por que veio comer pastéis? Não vê que estão prontos para ir
para a mesa? Não pode esperar? Você é gulosa, menina sem
educação.
- Foi um só. Não comi mais que um, tirei para experimentar,
papai, só para experimentar.
136
Enrolando as últimas balas, expliquei que aquilo não tinha
importância, que falta fazia um pastel? Havia um prato cheio. Êle
irritou-se mais; com todo O racionamento que havia, a menina vinha
comer antes das visitas, por isso não havia O que chegasse naquela
casa, era um gasto extraordinário; uma falta de ordem, de educação,
de tudo. Não havia quem controlasse desse ordem, tudo na casa era
isso - desorganização. Crianças comiam antes da hora, não falava
respeito era preciso ordem, ORDEM.
Veio Isabel, mas Felício… Zangou-se com todos, foi para O quarto,
bateu a porta.
- Mas minha filha, seu pai é assim mesmo, deixe que venham as
colegas, as velinhas já estão no bolo., vamos festejar.
137
Eram vinte e duas horas e meia quando Felício saiu do quarto e
perguntou pela festa: - As amiguinhas de Sílvia já foram embora? Está
tudo tão quieto…
Isabel explicou, não houve nada, Sílvia chorou muito, foi dormir
cedo, as amigas não vieram. Por quê? Por que não se festejava O
aniversário de Sílvia? Onde ela está? Dormindo?
- Sílvia, venha cá
Êle não quis ouvir, puxou-a para fora da cama e gritou forte:
138
velas da caixa, colocou-as no bolo com todo cuidado, olhava Sílvia, ria
e repetia:
Ria, oferecia balas, por que não comem? Fêz Sílvia tomar refresco,
comer pastéis, ela não queria, teve que comer e beber. Estava
engasgada, os olhos vermelhos, empurrava pedaços de pastéis na
boca, ficava mastigando com vontade de chorar. A cena era tristíssima
assim à luz fraca da lâmpada da sala, os enfeites da mesa como que
abandonados, a menina lacrimosa e aquele fingimento, aquela alegria
falsa bailando nas sombras.
139
E se êle ordenasse: agora dancem. Dançariam. E se êle dissesse:
agora chorem. Chorariam.
- A senhora?
140
uma maçã para Lena. A quem perguntar? Ao fruteiro? Embrulhou a
fruta com pouco caso. E se eu perguntasse? O senhor pode me
informar etc, etc? Êle deu um grito e chamou O jornaleiro que ia
passando, começaram a conversar sobre a Itália Viu as notícias?
Falaram em bombas, no frio, na neve Fui indo devagar, a maçã entre
os dedos; passei por um café parei. Rapazes e velhos, senhores e
mocinhos tomavam café, apressados. A quem perguntar Ao dono?
Havia um senhor gordo em mangas de camisa atrás da caixa,
empregados lavavam xícaras, serviam pãezinhos; um menino varria O
chão onde havia tocos de cigarros, papel, sujeira. Fiquei parada
olhando uma vitrina com empadinhas; uma lampadazinha brilhava
frouxamente aquecendo os comestíveis Pensam que eu estou com
fome; não, não estou, quero apenas um endereço.
Senti-o amargo, era como a dúvida que eu tinha era mente. Que
fazer? Amargura. Caminhei pelo Largo da Sé sempre indecisa. Não
seria melhor viver ignorando? Não poderia estar procurando minha
desgraça? Passei lentamente pela Rua Direita, parei diante de cada
vitrina, me interessei pelos mínimos objetos querendo esquecer O que
tinha na cabeça. Será seda? Quanto custara O metro? Continuei a
andar, deram-me encontrões, quanta gente na cidade a essa hora.
Desci a Rua S. Bento; fui descendo, olhando, não estaria procurando
minha desgraça Não seria melhor viver como vivera até então? No
escuro? Pode fazer O favor de informar etc, etc? E depois? Esse futuro
vinha carregado de incertezas, de dores, quem sabe de luto. Era tão
bom como tinha vivido até agora. Como vai seu filho Alfredo?
141
Ultimamente não tenho recebido noticias, mas creio que vai bem A
última carta que recebi dizia Sue estava bem. Aonde? No Pacífico. Ah!
Era tão bom viver sem saber, sem procurar. Perguntavam baixinho
como se êle tivesse morrido: Tem tido noticias de Alfredo? A última
carta dizia que ia bem, combatendo pela democracia pela liberdade.
Combatendo para melhorar O mundo.
Que bom, ela não sabe, ninguém sabe; fiz O que pude, não
consegui descobrir. Me aconselharam a procurar na lista telefônica,
sorri outra vez, estava livre daquilo, não tinha lista telefônica, muito
obrigada.
Bussi, Buzi… Estou fingindo, não quero saber. Para quê? Levantei
a cabeça, as moças estavam ocupadas, ninguém reparava em mim.
Caixa registradora…, Calçados… Caldeiraria .. Calvoso… Camassa,..
142
Casa… Casa… Virei páginas. Camisaria… Comissária… Quanta
Companhia… Páginas de Companhias.. Domingos… Elevadores…
Embalagem..
143
sede. A moça repetia: sede… sede… corria O dedo pelas sedes, os
cabelos dependurados nos ombros.
- Está aqui.
Sua voz era nítida, clara; falou alto, todos da loja ouviram, a Rua
S. Bento inteira deve ter ouvido. Nossa Senhora do Carmo.
Repetiu:
144
dolorida. E acabei escrevendo-o num papelzinho, que
guardei na bolsa.
Pacífico é imenso, em que ponto êle está? Isso eu não sei. Não
sabe? Hão de rir, de ridicularizar. Imagine, esta velha quer que a Cruz
Vermelha procure O filho que está no Pacífico e há três anos não dá
notícias. Ah, ah, ah. Uns contariam aos outros, me apontariam com
O dedo: Aquela ali.
Mas Julinho disse que a Cruz Vermelha tem auxiliado muita gente,
famílias inteiras. Eu sentia aflição, era como se me torturassem. Ponha
a velha na tortura. Que tortura? A de procurar O filho em vão. Ótimo.
Os dedinhos de Sílvia batiam as teclas, ela vai ser pianista, vai dar
concertos, toda a gente irá ouvir e eu direi: é minha neta. A sarabanda
continuava.
145
dependuradas na corda. Lá está O canteiro de Sílvia, O de Carlos,
aquele mais longe é de Eduardo. As flores brilham ao sol; algumas são
coloridas, pétalas que parecem seda. Papoulas vermelhas, côr-de-rosa,
listadinhas, margaridas brancas, verbenas rajadas de roxo, todas
bonitas e tranqüilas; O vento passa devagarinho, agita-as de leve e elas
dão a impressão de que estão contentes. Contentes com O vento.
E eu contaria tudo, acha que devo ir à Rua Libero, etc, etc? Pedir
notícias? Acha que me receberão? Tio Damião havia de coçar O
queixo, refletir seriamente sobre O caso Depois havia de rir seu riso
bom e doce por causa da idéia luminosa, e diria: - E eu vou escrever
uma valsa para tocar no dia da chegada, para O dia da chegada. O
nome… O nome… espere um pouco: “A volta de Alfredo.” Que tal?
Qualquer dia falará tudo e dará saltos como Pour Élise, como a
Carranquinha. Os exercícios se sucedem e as mãozinhas de Sílvia
parecem crescer sobre O teclado: dó-ré-mifá-sol-lá-si . Dó-ré-mi-fá-sol-
lá-si. Do grave ao agudo em escalas intermináveis e rápidas, Sílvia está
contente, já alcança as oitavas.
146
uma secura na boca, vontade de levantar, ir embora cedo, procurar
meu filho no Pacífico. Que pena essa lonjura sem fim.
Este? Do exército inteiro. Não é este, nem este nem este. Onde
estará?
Fui me aprontar, disse a Isabel que ia fazer uma visita há que anos
não visito ninguém. Saí, bati a porta, resoluta; andei apressada O
mesmo caminho que percorria nas madrugadas atrás das filas. Parei
no ponto do ônibus, pouca gente, vou no primeiro. Enquanto O
ônibus trepidava naquelas ruas, mudei de idéia, iria ver D. Genu,
contaria tudo antes de ir à Cruz Vermelha, quem sabe até ela iria
comigo, seria melhor irmos juntas. Duas têm mais força, ninguém riria
de nós.
147
- Mas que selvagens. Isso é selvageria, bem se vê que estamos
vivendo em época diferente, de guerras e loucuras.
. .
- Os moços eram tão delicados que até punham lenço para segurar
a cintura da gente. Hoje jogam as moças para O ar como se fossem
de borracha. Tempo bom aquele, nem havia guerras…
Outra cotovelada:
148
Conheço perfeitamente, pensei que estivesse falando de outra
pessoa. Conheço muito bem, qual delas? Pois não, conheço todas.
149
Capítulo IX
150
AMANHECEU um dia frio e úmido, um sol amarelo, pálido. Firme
na minha resolução, disse a Isabel que ia fazer outra visita. Meu
coração batia com pressa, por que tanta emoção? Tomei O ônibus e
desci no Largo da Sé. Vagarosamente enveredei pela Rua Direita,
olhando para os lados, indiferente; era como se estivesse sòzinha,
ninguém na rua. Atravessei a Praça do Patriarca, cheguei à Rua
Libero, de que lado seria O número 595? E se perguntasse ao guarda?
Não, tinha que descobrir sòzinha.
151
esperando? Havia mais gente amontoada diante de uma porta, seria
ali? Todas aquelas pessoas procuravam a mesma coifai que eu? Fiquei
com mais coragem.
.” Olhei para trás, muito bem, onde está a fila? Na escada? Pois
não. Comecei a descer um andar, dois, três, havia gente parada em
todos os degraus; uns conversavam, outros encostados na parede
pareciam dormitar, de olhos fechados. Estariam procurando os filhos?
Isso foi O toque que uniu a fila inteira, foi O traço de união.
Começaram a trocar idéias, falar, sussurrar umas nos ouvidos das
outras; a velha à minha ff ente tinha os olhos esgazeados, aterrorizada
com O que vira, tocou-me O braço, falou numa língua estrangeirada: -
Está esperando notícias dos parentes?
152
Sua voz era rouca e trêmula, tinha medo; todos pareciam ter
medo. Contei em voz baixa, ia pedir um favor à Cruz Vermelha, será
que ela poderia me auxiliar? Haviam me aconselhado, sabe? Era ali
mesmo, não era? Ia pedir que procurasse meu filho Alfredo, um rapaz
que tem ideal, sabe? Foi lutar pela democracia, para um mundo
melhor.
- Tive três filhos homens. Esse foi sempre diferente dos outros,
desde pequeno. Tinha um ideal. Foi correr mundo, realizar O ideal de
lutar pela liberdade dos povos.
Era a moça que perguntava; humilde, contei que sim. Era pena eu
não ter um retrato ali para mostrar, um mocetão.
153
Pessoas passavam por nós; a velha fixou O chão, obstinada; a fila
foi mais para cima, um homem gemeu: “Ai meu Deus.” O dia
definhava rapidamente, um homem esperava notícias da irmã, havia
passado um telegrama, até agora nenhuma notícia. A velha contou
que esperava resposta de um telegrama, não sabia que fim levara a
família; com a boca quase fechada, os olhos esgazeados, imaginando
tragédias, explicou: - Morava no sul da Bélgica.
154
- A quem hei de falar?
- A senhora?
Sorri, não encontrei palavras, por que viera? Não seria melhor
viver na ilusão? Está combatendo no Pacífico, sim senhora… Ouvia
sussurros ao meu lado, ah, é muito longe daqui, na Europa? Sim
senhora, não senhora. Sim senhora, não senhora. - Paciência. Meios
para adquiri-la. A moça estava ali na minha frente esperando que eu
falasse senti um suor frio nas minhas costas, rias minhas mãos Era
preciso falar? Por que viera? Por que chegara minha vez Era tão bom
ficar na escada esperando, todos os dias subir mais um degrau,
preferia ficar sempre na escada, um degrau por dia. Não reconheci
minha voz, falei baixo: .
155
disse que estava combatendo por um mundo melhor, foi assim mesmo
que êle escreveu…
163
Êle foi sempre valente, muito corajoso, muito forte, tinha umas
idéias diferentes, sabe? Às vezes eu digo comigo mesma filhos dos
mesmos pais, criados do mesmo jeito, e no entretanto com idéias tão
diferentes uns dos outros, não é mesmo? Era O mais alto O mais
bonito, alourado, dentes fortes, a última vez que me visitou faltava um
dente aqui do lado. Quando perguntei O que tinha acontecido, deu
risada e disse que um marinheiro para ser bom tem que fumar
cachimbo, brigar e… não me lembro a outra coisa que êle disse.
Perdeu O dente numa briga, sempre foi valente, já contei isso para a
senhora? Desculpe sê estou contando essas coisas, mas mãe quando
começa a falar de filho… compreende, não é? Veio a última vez
fumando cachimbo…
- Que êle fuma cachimbo? Não, que êle me visitou? Pensei, fiz a
conta, respondi e ela escreveu. Tornei a explicar:
- Mas quando êle veio, nessa ocasião não havia guerra; O mundo
estava calmo… nada estava caro assim, a vida não era difícil como
agora, toda a gente vivia tranqüila.
156
E a tranqüilidade na vida vale tanto, não é mesmo? Êle me disse
que iria para longe, muito longe; fêz assim com os braços e eu
perguntei: Europa África? Mais longe ainda. , . Então no fim do
mundo… Êle sorriu… Senhora? Pensei que a senhora tinha
perguntado alguma coisa. É alto, alourado, tem uma pintinha aqui do
lado perto da boca, já falei isso para a senhora? Ombros largos, mãos
fortes, me trazia presentes todos os dias: lencinhos, frutas, queijo,
coisinhas assim Muito presenteador.
157
Tomei O elevador um pouco estonteada, havia falado tanto, por
que precisava a moça saber tudo isso? Afinal vou saber notícias de
Alfredo; Santa Rita dos Impossíveis, valei-me. Valei-me, Senhora,
Senhora Santa Rita Tive ímpetos de gritar na porta da rua, em meio à
multidão que passava àquela hora: Preciso de trezentos cruzeiros para
encontrar meu filho, quem pode me emprestar? Quem pode? Quem
pode?
- Sílvia, toque Schumann para sua avó ouvir, sim? No dia seguinte
corri com O dinheiro nas mãos, a escada estava cheia. Todos
esperavam respostas. A velha estrangeira e a mocinha do outro dia
estavam lá, dois degraus aci ma, cumprimentamo-nos como amigas.
Bom dia. Bom dia. Um homem triste estava à minha frente, tinha O
rosto sombreado de barba, perguntou-me num leve cumprimento,
mostrando O espaço: - Tem parentes lá?
158
Falava leve, olhando todos, contente, como se dissesse: Foi ao Rio
de Janeiro dar um passeio. Sim, senhor. Vai bem, obrigada.
- Chamaram O senhor?
159
O tique nervoso continuava se acentuando no rosto dele; a face
azulada estremecia do lado esquerdo. A mocinha que acompanhava a
velha inclinou-se para me perguntar: - E a senhora já passou O
telegrama?
160
As moças estavam ocupadíssimas, iam de um a outro, atendiam as
últimas pessoas. Chamei, faça O favor, eu trouxe O dinheiro para O
telegrama, a senhora quer ver?
Respondeu que não, nunca era tarde, ora esta. Por que tarde? Eu
nem sabia porque. Escreveu num papel, deu-me outro, despediu-me
depois de ter tomado notas, escrito coisas. Alfredo Abílio de Lemos.
161
- Mas elas não têm culpa de nada, estavam visitando parentes,
deve haver algum engano, O senhor vai ver. É engano prender quem
está passeando, visitando parentes.
Tomando café, Felício falou que não acreditava, era difícil, quem
disse que descobriam parentes? Boatos… Falava assim não para eu
perder as esperanças, mas para prevenir-me eu que esperasse O pior.
162
Em todo O caso nada era impossível, por que não haviam de
encontrá-lo?
Clotilde respondeu: “Uma neta que toca Schumann deve dar uma
grande alegria. Quanto à resposta ao telegrama, comecei uma novena
para que seja a mais satisfatória possível. Reze esta jaculatória três
vezes ao dia: “Meu doce Jesus, não sejais para mim juiz, mas
Salvador.” E mais adiante: “Leia “Piedosas Meditações”: Santíssima
Virgem Maria, minha esperança…” Da irmã que muito a quer.
Clotilde.”
- Bem diz, excelentíssima, bem diz. Não foi revolução, foi guerra.
Seu filho foi combater pela nobre Causa. Pela nobre Causa.
163
à tragédia, houve O mais arrebatador dos heroísmos. Nunca mais essa
data se apagará da memória dos paulistas, principalmente daqueles
que a presenciaram. Assim como me vêem, vesti a farda caqui e fui
combater a Ditadura.
164
Enquanto êle falava, eu pensava em Carlos.
- Viva O Ceará!
preciso que O esporte demonstre nesta hora máxima que êle não
só robustece O corpo, mas também dá têmpera às almas.” Dias
depois, partiu O primeiro batalhão esportivo para a frente. Mais de
2.000 esportistas se alistaram e combateram com bravura. A Cruz
Vermelha deu todo O seu apoio; médicos e enfermeiras seguiram nos
primeiros dias para as cidades próximas às divisas do Estado, os
Grupos Escolares e Escolas foram transformados em hospitais.
Automóveis particulares foram oferecidos, donativos grandes e
pequenos foram feitos. Dinheiro, gêneros, serviços, vidas, foram
dados generosamente incessantemente. Partiam os batalhões
cantando hinos ao Brasil; todos os rapazes vestiram fardas, as
165
negras trabalharam pela Causa.
166
Capítulo X
167
A vida da cidade palpitava de outra forma, escolas twr diversões
foram fechadas; automóveis passavam levando chefes, caminhões
transitavam levando gêneros para as divisas do Estado. Por toda a
cidade grupos de pessoas angariavam donativos; mais de doze mil
senhoras faziam roupas, ataduras, pensos para os hospitais. Centenas
de moças ofereciam seus serviços gratuitamente para substituir nas
caixas, nos balcões, nos escritórios, os que partiam para as linhas de
frente. As mulheres espalharam-se pelos hospitais, sentaram-se nas
máquinas de costura, embrulharam milhares de lanches por dia e, na
retaguarda das trincheiras, cozinharam para os nossos soldados.
168
Grande do Norte, de Mato Grosso, da Legião Negra e muitos, muitos.
Fez uma pausa para perguntar em que batalhão meu filho Carlos se
alistara e quando respondi: “Borba Gato”, êle exclamou: Grande
batalhão. Brava gente. E continuou: - A cavalaria do Rio Pardo,
equipada à custa dos seus organizadores, partiu para a frente onde
prestou relevantes serviços no Setor Sul. Para substituir cada homem
que caía, surgiam legiões de patriotas; morreu em combate um filho
de Piracicaba, imediatamente 55 rapazes daquela cidade alistaram-se
para substituir O que morrera.
169
mesmo. Dia 18 de julho, O Quartel General precisou de motocicletas;
imediatamente apareceram motocicletas de todos os cantos da cidade
à disposição do Q. G. Nessa ocasião, os donativos angariados já
subiam a trezentos mil cruzeiros. Os batalhões de voluntários
continuavam a se formar, a partir.
170
setecentos binóculos. Dia 3 de agosto: “Precisamos de capacetes de
aço para nossos soldados. Cada capacete custa quinze cruzeiros, quem
quer dar?” Em dois dias O povo paulista deu 10.000 capacetes aos
defensores da Lei. No quarto dia, 19.000 capacetes.
171
para dar e milhares de vezes O ruído seco do ouro batendo no ouro
foi ouvido pelos que estavam próximos. Eram pedacinhos de corações
que caíam com as alianças. Escreveram: “Do fundo das velhas arcas,
cofres foram retirados e as relíquias e jóias que continham,
encaminhadas aos Bancos onde se iam formando montões de ouro
para a reserva de que S. Paulo precisava.”
172
força harmonizadora das sociedades civilizadas.”
173
O Posto da Rádio Record enviou 15 milhões de cigarros, além de
milhares de peças de lã e fardas Dia 25 - nossas tropas tomaram Vila
Queimada e tiveram grande vitória em Cunha A notícia alegrou a
cidade. Anéis de médicos, advogados, anéis de brilhantes e pérolas
continuavam a cair nos cofres os bispos entregaram as cruzes peitorais
e O ouro das igrejas. E passou-se O mês de agosto. A luta continuou,
tenaz. Chegavam soldados em licença, olhos cheios de sombras.
Incertezas. Chegavam notícias do Setor Sul: Os batalhões “9 de
Julho”, “14 de Julho”, “Fernão Dias”, “Marcílio Franco” “Borba
Gato” e outros - Exército, Força Pública e voluntáríos estavam sem
munição, sem canhões, sem aviação. Suportaram heroicamente nas
trincheiras um canhoneio que durou horas: mil e quinhentos tiros de
canhão foram disparados pelo inimigo, sem interrupção. Vejam bem:
mil e quinhentos tiros de canhão. Firmes nas trincheiras, sem arredar
pé, cobertos de lama e estilhaços, nossos Soldados tudo suportaram.
Sul, socorriam aqui, ali, sem poder fazer quase nada, eram os
mesmos para todas as frentes, realizando assombros de rapidez e
eficiência. Enquanto isso dezenove fazendeiros ofereceram 700 bois,
outro, antes de partir para a linha de frente, doou O gado de sua
fazenda que atingia centenas de cabeças. E O trem blindado vencia
brilhante mente na frente Sapucaí-Eleutério, lá onde O primeiro
batalhão Esportivo teve O batismo de fogo. E aqui em S. Paulo os
“chapinhas”, nomes conhecidos nas artes, na indústria, no comércio,
nas profissões liberais, na ciência, zelavam pelos moradores da cidade,
vigilantes nas noites frias, nos bairros distantes…
174
estava velho. Fui “chapinha” também. Velei as ruas da Mooca durante
todo esse tempo. Meu turno era da meia-noite às oito da manhã.
Passeava nessas horas da noite
por todas as ruas vigiando bem e durante esses meses nunca houve
um roubo, nunca houve briga. Paz absoluta.
175
lentamente dando apitos estridentes, arfando, gemendo, levando em
seus vagões multidões aterrorizadas. Boiadas levantavam O pó dos
caminhos; carros de todas as espécies, cavaleiros, automóveis
passavam, passavam. Milhares de pessoas iam a pé; famílias levavam
velhos, crianças, animais domésticos, gaiolas com pássaros queridos.
O mugido dos bois, O pranto das crianças, O grito dos homens
enchiam a estrada branca de luar. E durante toda aquela noite e nos
dias consecutivos, multidões passaram, ainda. Lá atrás ficavam pontes
destruídas, cidades silenciosas, onde apenas as casas, como fantasmas
reprovadores e abandonados, esperavam os soldados da ditadura. No
Oeste, na cidade de Ribeirão Preto, seus homens mais ilustres
reuniram-se na Câmara Municipal a fim de deliberarem que atitude
devia ser tomada diante da trágica verdade: os ditatoriais estavam a
três dias apenas da cidade, Ribeirão Preto cairia nas mãos do inimigo.
Como nas grandes ocasiões da vida de um povo, cada cidadão ilustre
deu sua opinião. Reunidos no salão principal, alguns ainda fardados,
recém-chegados das trincheiras, contavam que cidades importantes
como Orlândia, Igarapava, Franca já haviam caído, agora era a vez de
Ribeirão Preto. Um protesto veemente, como um grito de revolta,
partiu de quase todas as bocas. Não, Ribeirão Preto não podia cair.
Gritos de raiva e ódio atravessaram O salão, enquanto que alguns
mais velhos e calmos, pedindo silêncio, falaram que nada havia a
fazer. Combater de que modo? Não havia armas, não havia nada. Era
receber pacificamente os soldados da ditadura e aceitar O destino.
Protestaram novamente: não! Deviam abandonar então a cidade,
fazer a população fugir para que, quando os adversários entrassem,
encontrassem uma cidade sem vida. Outros, de ânimo exaltado,
recusaram. Não, deviam reagir, combater de qualquer maneira.
176
- Antes sacrificar vidas do que demonstrar covardia, respondeu um
deles.
177
pode fazer um soldado desarmado? S. Paulo estava cercado, sozinho,
abandonado por todo O Brasil. Foi trágico, muito trágico. Nas ruas,
nos hospitais, nos cafés, nos bondes, nas praças, falavam do mesmo
modo, tinham O mesmo pensamento: São Paulo não seria entregue.
Preferia morrer. Como Sagunto, cercada de todos os lados pelos
cartagineses, esperou em vão O socorro de Roma e sucumbiu lutando
nas portas da cidade, S. Paulo também lutaria até O fim nem que para
isso fosse preciso morrer O último paulista. A cidade seria incendiada
e arrasada para que quando entrassem os vencedores, pisassem uma
cidade morta, em ruínas.
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32”, inspirada nos atos de bravura e na grande abnegação de nossa
gente. Já me ouviram tocar na rabeca.
- Muito obrigada.
Muito bem, iria saber alguma coisa, iria saber hoje mesmo.
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Respondi a tio Damião, obrigada, até logo. Na volta, na volta. Foram
me acompanhando até a porta. Felicidades, felicidades, Isabel gritou
quando eu já estava na rua, tio Damião sacudiu a mão seca.
180
Lembro-me de quando êle era pequeno, menino levado Andava
sempre com canivete no bolso, dizia nomes feios, tinha uns amigos
muito moleques, um terror. Saía cedo de casa, voltava tarde,
respondia vagamente às minhas perguntas, fui não sei onde, fiz isto,
aquilo. Não gostava de estudar, não admiro, eu também não gostava;
fui péssima aluna, uma das piores, nunca sabia nada. Êle também não
sabia, não estudava, tinha idéias diferentes dos irmãos, era diferente
em tudo. Dizia que faria qualquer coisa para melhorar O mundo, havia
muitos erros falava em diferenças de classes, em lutas, coisa assim. Às
vezes brincava: Esta D. Lola… Dava tapinhas no meu ombro, sempre
tão delicado, tão amável, tão bom. Me trazia presentinhos, nunca se
esquecia da velha. Adorei esse filho não sei se porque esse era
diferente, para os diferentes a vida é mais difícil. É verdade, ninguém
compreende os diferentes, mas eu compreendia Alfredo.
181
para melhor.” Ah, meu filho, este mundo não muda, talvez sejam suas
idéias que mudem, que se desmoronem como um castelo de areia.
182
infância, aquelas mesmas que cantaram para mim; e plantei roseiras
no seu túmulo, as rosas são brancas e grandes, as que êle mais
gostava; rego todos os anos com minhas lágrimas para que elas sejam
mais belas e mais viçosas. E não é por isso que poderei perder outro
filho, não Senhor, não é por isso. Apesar de considerá-lo quase
perdido há tanto tempo, há sempre uma esperança no fundo do
coração. Sempre uma esperança. E que desgraça se não fôsse a
esperança. Que desgraça.”
- Não foi encontrado? Falei com voz firme, tirei os óculos da bolsa,
fixei O papel, O nome de meu filho estava ali, inteiro. Com todas as
letras, não faltava nenhuma.
183
Li O nome outra vez, estava direitinho, muito bem. Os violinos
cantavam, todo O ambiente vibrava de entusiasmo. Veio a voz: - Mas
então êle não morreu?
- Meu? Leia.
184
estar bem, do contrário mandavam dizer.
- Quem é D. Leia?
185
Capítulo XI
186
Transcrevi as palavras do telegrama para Itapetininga e para O Rio
de Janeiro. Julinho telegrafou em resposta: “Congratulações cordiais
de toda a família. Lema: não perder as esperanças. Julinho.” Clotilde
me aconselhou fazer duas novenas e me mandou uma oração
milagrosa.
187
O nome de Alfredo estaria na lista do exército norte-americano,
haviam de saber qualquer coisa. Isso é que eu penso.
188
disse - Pois receba meus parabéns. A notícia não dá muita certeza,
mas meu palpite é que Alfredo está bom e ainda vai voltar para contar
quantos inimigos liquidou. Aquele é homem de verdade, nunca teve
medo de nada. Lembra a noite em que foi perseguido? Pensa que êle
estava com medo? Qual, aquele é valente no duro, qualquer dia está aí
fazendo surpresa, contando aventuras. Se os americanos soubessem
alguma coisa ruim mandavam contar, morte anda no ar É porque êle
está bom Exército organizado esse exército norte-americano.
189
Terminou com as garrafas vazias, as visitas ainda concordavam, as
crianças cochilavam, as cabeças na mesa. Isabel levou Lena,
delicadamente êle mandou os filhos para O quarto, abençoou-os,
acompanhou-as com olhar terno. E começou a traçar os planos da
invasão. Explicou que os aliados deviam fazer assim, forçar neste
ponto aqui, a vitória será garantida. E se não fizerem assim, não
conseguem coisa alguma. Concordaram.
Julinho aparecia duas vezes por ano. Vinha para uma visita rápida.
Tomava café, contava casos. Da última vez, ficou muito tempo virando
O telegrama entre as mãos.
Êle ria, Fagundes Vaz e Cia. Limitada? Cada vez melhor, dando
bom lucro, nunca a firma ganhou tanto como nesta guerra. Eu
escutava, essa mesma guerra que pode matar Alfredo. Eu não queria
que êle fosse embora, então continuava a fazer perguntas; queria
prendê-lo, achava que se não fizesse perguntas, êle se despedia, ia
embora.
190
Seus dedos tamborilavam na tábua da mesa.
191
champanha pratos escolhidos, os sogros haviam jantado também, ao
todo quatorze pessoas.
192
Os olhos de Isabel estavam parados, fixos num ponto perdido.
- Quem é?
193
Aqui? Aqui? Felício fingia indiferença, procurava manter-se frio.
194
com coisa alguma, ora esta.
- Hoje deve ser decretado feriado. Puxa, O maior dia do ano, deve
ser feriado.
Havia animação nas ruas, trocavam idéias nas filas de carne e pão,
falava-se com conhecimento nos generais ingleses e americanos.
“Fulano fêz isto ou aquilo.” Fulano era O general, amigo de todos,
conhecidíssimo Os meninos cortavam os retratos dos jornais,
pregavam nas paredes do quarto. Pronuciavam os nomes com
respeito, seguiam O movimento das tropas, dos paraquedistas.
Formidáveis.
195
O povo tinha esperança, os racionamentos vão se acabar, dizem
que logo vamos ter açúcar. Toda a gente sentia mais alívio, O fardo
diminuíra de peso, tornara-se mais leve.
Logo mais, ela veio dos fundos da casa perguntando pelo irmão.
Enrugou a testa: - O quê? Foi embora sem falar comigo? Que ingrato.
Queixou-se. Depois que ficara rico era assim, não se importava com
ela, ela era pobre. Se fosse rica, êle seria capaz de ir embora sem
falar, apertar a mão, dar um abraço? Ricos ingratos, egoístas, só
pensam neles.
196
nomes, não se importariam. Mas era
rico não perdoavam. Que mundo. Seria essa a luta de classes que
eu tanto ouvira falar? A tarde caiu rapidamente. Isabel levantou-se
com a menina nos braços, resmungou ao deixar a sala:
- Sou pobre, por isso sou desprezada. Queria ver se fosse bem
rica, êle havia de me adular.
Espirrou fel. Ódio de classes, a verdade estava ali naquele fel que
esguichava.
E meú tio Inácio? Era tãò avarento que escrevia a data no rolo de
papel higiênico do banheiro. Se acabava logo, discutia com os filhos
porque não sabiam economizar papel. Deus me perdoe, mas era
terrível na ganância. Morreu de doença ruim.
197
couro, folgados. D. Genu foi ao encontro da amiga, exclamando: -
Prudencinha, como vai? Sarou do braço? Procurou abraçá-la. D.
Prudencinha livrou-se do abraço fazendo um gesto de amuo, sorriu
com indiferença e mostrou O braço direito. Mancando, dirigiu-se para
O banco de madeira; sentou-se, puxou a saia para os pés, olhou-nos e
sorriu ternamente, mostrando as gengivas rosadas. Ficou ali quietinha
como uma menina bem-educada, ouvindo a conversa dos grandes. D.
Genu sentou ao seu lado, começou a acariciar-lhe O braço, perguntou
pela segunda vez se estava melhor e não sentia dor. D. Tututa disse
que estava melhor, os remédios haviam feito bem, só que ainda não
podia comer sozinha, era preciso pôr-lhe a comida na boca.
- Dói muito, ela diz que não, mas dói muito. Olhou a irmã, fêz
outra careta. Pacientemente D. Tututa explicou, sabia que doía, como
não havia de saber? Mas D. Prudencinha já não ouvia; levantou-se
manquitolando e foi buscar a gata que apareceu no jardim
acompanhada de dois gatinhos. Pegou um dos gatinhos segurou-o na
mão esquerda veio nos mostrar:
- Esta é Desdêmona.
- Quero ver porque ela não tem leite, olhe como Desdêmona está
magra, está mostrando as costelas.
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- Prudencinha, pare com isso por favor.
- Estou abrasada.
199
- Prudencinha, você quer alguma coisa? Se quiser, fale.
- Ainda não, senhora, quem sabe na semana que vem. Passe por
aqui outra vez.
200
GORDURA DE… RESTAURANTE.. TRIÂNGULO… CAFÉ
Por mais que Felício ganhasse era pouco, não dava, a vida cara,
sempre cara. Quis que Sílvia deixasse os estudos de piano, falou em
mandar O piano de volta. Encontrei a. menina uma noite tocando
Pour Élise e chorando, estava se despedindo.
201
Um dia vestiram-no de escuro, puseram-lhe um lenço preto no
paletó, levaram-no para O hospital, onde viu a mãe pela última vez
num caixão cheio de dourados. Voltou para casa em soluços,
tropeçando, cheio de fome e fraqueza, a tia atrás dizendo-lhe: “Não
sei porque seu nome é Felício. Felício vem de felicidade…” “Hoje não
é domingo”, pensou em suas atribulações. Cresceu faminto e sardento
ao lado da tia áspera que falava pouco e cheirava a terebentina.
202
Tio Damião chegava todos os sábados, a rabeca debaixo do braço.
Tocava Bach, torcia cravelhas, tocava outra vez. Os sons agudos
enchiam a casa, tio Damião sorria, O arco acariciava as cordas.
Não foi encontrado, mas quer dizer que vive, se tivesse morrido
eles saberiam, todos saberiam. A morte é uma coisa que todo mundo
sabe logo, quase que adivinha, vem no ar, tem pressa de chegar. Há
muitos anos em Itapetininga, quando D. Carola me disse - boa noite -
pensei: “Minha mãe morreu.” Morrera mesmo. A morte está na voz,
no olhar, na boca, no gesto dos vivos; não precisa perguntar, a gente
adivinha quando ela chegou, às vezes só pelo olhar. Vem sempre sem
avisar, gosta de fazer surpresa, a miserável. E O exército norte-
americano não havia de saber, se êle tivesse morrido? Exército
organizado estava ali, D. Genu sabia.
Mas quando O tempo foi quase parando, andando tão devagar que
afligia, não vinha telegrama, nem carta, nem notícia, ah, perdi a
empáfia, fui murchando, encolhendo os ombros, ficando
pequenininha, humilde, corcunda. A. guerra não acabava, contavam
203
da invasão, mortes sem conta, destroços. A Europa morrendo,
agonizando, não ia restar nada, só chão e pedras. Toda a gente
morria, Alfredo não estaria entre os que morriam? Aquele valente
Alfredo que combatia pela Liberdade?
quê? Sentia um suor frio nas mãos, nas costas, acordava de noite
ouvindo gritos, acordava Sílvia: “Você gritou, Sílvia?” Ela não gritara,
não ouvira nada, dormia outra vez. A insônia me ditava frases, frases
sem fim; desenhadas nas paredes do quarto, pairando no ar, flutuando
na minha cabeça: “Por que você se chama Felício?
- Mas quem disse que tinha lagartixas nas paredes e ratos nos
cantos?
204
Quando chegou a notícia de que a guerra havia terminado na
Europa, Eduardo tinha posto calças compridas porque crescera muito
e Lena estava começando a falar, a perguntar, a exigir isto e aquilo.
“Vovó, faça bolinho pá mi. Um dia eu estava fazendo bolinhos e com
as mãos grudentas de massa, quando recebi nova cartinha da Cruz
Vermelha pedindo meu comparecimento no escritório.
205
Capítulo XII
206
Foi como se eu tivesse caminhado durante oito anos ao encontro
do meu filho. Como se êle tivesse morrido. Imaginei-o morto no mar
desde O princípio da guerra; vi-o nos meus sonhos se debatendo entre
ondas pesadas e negras e senti que seu último pensamento foi para
mim. Ouvi sua voz chamando: Mamãe.
207
Muito bem, preciso ser forte. Não tenho sido sempre forte? Vamos
ver O que devo fazer. Preciso ter calma. Tomei O cartão e li; em
palavras lacônicas Julinho contava que Alfredo chegara, estava bem
apesar da magreza, viria logo a S. Paulo. Fossem me prevenindo aos
poucos para recebê-lo.
208
escreveu: “De um lado devemos empregar todos os meios ao nosso
alcance como se nada dependesse de Deus; de outro lado, devemos
rezar e confiar em Deus, como se nada dependesse de nós.”
209
olhos para me lembrar, quando ouvi soluços e O rosto branco de
Julinho no vão da porta O velho abriu-me os braços, então eu
compreendi. Ali eslava O homem que lutara em nome da Liberdade E
no mundo todo, muitos homens continuavam escravos. Dos Regimes
e das Ambições Estendi também os braços:
- Alfredo.
Lembrei-me de súbito que O jantar estava tão fraco esse dia, por
que Julinho não telegrafara? Não avisara a chegada? Julinho
protestou, avisamos, passamos telegrama, não foi, Alfredo? Como
não havíamos de passar? Isabel mostrava Lena ao irmão, perguntava
se não eram parecidas?
Fui à cozinha fazer café, os três irmãos saíram para dar uma volta
pelo jardim, Alfredo entre os dois, sempre apoiado na bengala,
seguidos pela criançada aturdida.
210
pratos que êle mais gostava, espiando através da vidraça os três
parados em frente ao canteiro de margaridas Para O jantar, havia
apenas polenta com feijão e verdura da horta; fiquei aflita, gritei: - O
que estão esperando? Vão comprar alguma coisa…
- E você? Por que não vai colher flores para enfeitar a casa?
Depressa, ponha flores em todos os vasos, na mesa do jantar
também.
211
se, Alfredo, daquela vez que você escondeu O boletim em baixo do
colchão para mamãe não ver Lembra-se de como você gostava de
jogar futebol? E da bicicleta de Carlos?
Insistiram que êle devia dormir cedo, ainda estava fraco, fosse para
O quarto, iríamos conversar lá. Foi para O quarto dos meninos;
Felício e Isabel prepararam tudo num instante, os meninos dormiriam
na sala.
Êle disse que estava bem, não sentia dor, nem sofria. Entraram
todos para ouvi-lo contar como fora ferido e caíra prisioneiro.
212
aprisionados e levados para uma cidade onde havia um hospital
chamado Shangai General Hospital. Ficou hospitalizado porque fora
ferido na perna e O ferimento era grave. Logo que teve uma ligeira
melhora, foi transportado para a prisão de Kiangwan, nos arredores
da cidade; ficou três meses nessa prisão antes de seguir pari uru
campo de concentração. Fazia muito frio quando foi para Kiangwan,
cada cela era feita para vinte prisioneiros, mas eram muito mais,
nunca menos de cinqüenta, apertados noite e dia. Combinaram e
dormiam em turnos, enquanto uns ficavam de pé. Sofreram fome,
frio, sede e imundície; passaram três meses sem fazer barba e sem
tomar banho. Proibidos de falar, sem ter nada para ler, nem se ocupar
esperavam qualquer coisa que os fosse libertar, mesmo a morte seria
bem recebida.
213
nos pés devido à imobilidade; e quando ficavam muitas horas de
cócoras e depois eram chamados para interrogatório, eram arrastados
pelos guardas, não podiam caminhar.
campo de concentração.
214
animal rolava de dor, todo O batalhão de guardas ria às gargalhadas.
- Não entendo.
215
Todas as lágrimas que eu guardava durante anos brotaram-me dos
olhos e rolaram queimando-me as faces. Só pude repetir: - Meu
filhinho, meu querido filhinho… Sentei-me aos pés da cama e cobri O
rosto com as mãos.
Pediu “
Sim, êle estava ali perto, ao alcance de minha mão, seria êle
mesmo? Bem Julinho dissera que os olhos eram os mesmos. Os
olhos. . Estavam secos, parados, como se tivessem febre. Lembrei-me
da noite em que se despediu de mim sufocando soluços, debruçado
sobre O muro. Naquele tempo êle chorava. Agora me olhava
estranhamente, um pouco admirado, envelhecido, quase
irreconhecível. Repetiu:
Estava ali diante de mim. Era Alfredo e não era; não sei O que se
passara; talvez porque sofrera e envelhecera, mudara tanto. O olhar,
as mãos, O modo de falar eram de Alfredo, mas O riso, a boca, O
andar não eram dele. Apoiava-se a uma bengala que Julinho lhe dera
no Rio, andava pela casa estranhamente, não parecia O mesmo de
antes, ágil e bonito. Já não era O mesmo. Só quando estava distraído
sentado ao sol do jardim, O olhar perdido, suave e tranqüilo, eu me
lembrava nitidamente do meu menino que havia partido há tantos
anos. De quando êle me batia no ombro e dizia meu nome, de quando
216
conversava comigo enquanto eu trabalhava: “Olhe, mamãe, quando
eu for rico…” E depois daquela outra vez que viera de longe somente
para me ver e me abraçar, e fumara cachimbo, e contara histórias de
marinheiro, e quase me levantara nos braços ao se despedir, esse era
O meu Alfredo.
Mas este aqui, indiferente e mudo, que me olha e não sorri, que
ouve piano muito quietamente, que nunca diz se gostou ou não
gostou, não sei quem será. Na primeira semana contou fatos de
guerra contou como as crianças japonesas começavam O preparo
militar desde que entravam para a escola aos seis anos de idade,
contou que aos quinze anos, todos os meninos tomam parte nas
grandes manobras de inverno, tão pesadas que qualquer outra criança
não suportaria. Contou que os soldados japoneses tinham marchas
forçadas diariamente, nunca menos de quarenta e cinco quilômetros,
tendo como alimento apenas um punhado de arroz. E que eram os
soldados mais resistentes do mundo, e também os mais perigosos.
- É tão horrível, não quero lembrar, não quero falar. Vi-lhe a boca
crispada, O olhar endurecido. Não quero lembrar.
* Ninguém quer que você fale, meu filho. Ninguém quer, esqueça.
Estava ali diante de mim. Era Alfredo e não era; não sei O que se
passara; talvez porque sofrera e envelhecera, mudara tanto. O olhar,
as mãos, O modo de falar eram de Alfredo, mas O riso, a boca, O
andar não eram dele. Apoiava-se a uma bengala que Julinho lhe dera
no Rio, andava pela casa estranhamente, não parecia O mesmo de
antes, ágil e bonito. Já não era ò mesmo. Só quando estava distraído,
sentado ao sol do jardim, O olhar perdido, suave e tranqüilo, eu me
lembrava nitidamente do meu menino que havia partido há tantos
anos. De quando êle me batia no ombro e dizia meu nome, de quando
conversava comigo enquanto eu trabalhava: “Olhe, mamãe, quando
eu for rico…” E depois daquela outra vez que viera de longe somente
para me ver e me abraçar, e fumara cachimbo, e contara histórias de
marinheiro, e quase me levantara nos braços ao se despedir, esse era
O meu Alfredo.
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Mas este aqui, indiferente e mudo, que me olha e não sorri, que
ouve piano muito quietamente, que nunca diz se gostou ou não
gostou, não sei quem será. Na primeira semana contou fatos de
guerra; contou como as crianças japonêsas começavam O preparo
militar desde que entravam para a escola aos seis anos de idade,
contou que aos quinze anos, todos os meninos tomam parte nas
grandes manobras de inverno, tão pesadas que qualquer outra criança
não suportaria. Contou que os soldados japoneses tinham mar chás
forçadas diariamente, nunca menos de quarenta e cinco quilômetros,
tendo como alimento apenas um punhado de arroz. E que eram os
soldados mais resistentes do mundo, e também os mais perigosos.
- É tão horrível, não quero lembrar, não quero falar. Vi-lhe a boca
crispada, O olhar endurecido. Não quero lembrar.
- Ninguém quer que você fale, meu filho. Ninguém quer, esqueça.
- Ouvi sua voz, pensei que quisesse alguma coisa. Quer água?
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Tio Damião veio com a rabeca Gargoyle Mobilou. As crianças liam
enquanto êle afinava: “É um óleo de côr rubi, da mais alta qualidade.”
Fêz versinhos caipiras para distrair Alfredo.
219
conversava, contava todos os fatos de que me lembrava, procurava
prender-lhe a atenção, queria fazê-lo voltar, ter amor à sua cidade, ao
seu país, queria que êle criasse raízes tão fundas que nem a saudade
do mar, nem O amor às aventuras pudesse levá-lo novamente de mim.
220
Eu dizia que não, já tomara, obrigada. Mas êle insistia, ora por que
não? Para me fazer companhia, só um pouco mais… Eu aceitava. Êle
enchia novamente meu copo e ficávamos olhando a espuma quase a
transbordar; enchia O dele, também, depois bebíamos lentamente e
conversávamos sob a lâmpada morrediça da cozinha, diante do fogão
apagado, até êle ter sono e ir para O quarto. Como dois velhos
amigos a recordar.
podem ter a ilusão de que êle seja ainda um rapaz. Tive ímpetos
de gritar: Ele está doente, emagrecido, veio da guerra. Não sabem O
que é guerra?” Na vida pacata de interior, onde tudo era tranqüilo e
lento, haviam se esquecido que o tempo deixa marcas, mesmo na
juventude E Alfredo trouxera cicatrizes da guerra . Diante da carta
fizeram um gesto indeciso, não tinham vontade de ir. Insistí só podia
fazer bem. Fomos num sábado.
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herói era modesto; e que matara um boi para a volta do filho pródigo.
Êle sorria e agradecia; fazia esforço para suportar tudo para êle era
difícil de suportar. Era só olhar; gotas de suor brotavam-lhe na testa,
no pescoço. Mas seu andar claudicante seu rosto abatido, sua magreza
atraíam simpatias, cuidados confortos especiais. A melhor poltrona
era para ele por que não comia mais um pouco?
Olhou rapidamente, fingiu que olhou ah sim, vovó. Como não hei
de lembrar? Pôs O retrato detonem e parou, cansadíssimo. Não queria
222
lembrar. Já se havia se parado do passado há muito tempo. Para que
lembrar?
223
balões, lembrou-se da infância. Querem mais papel de seda? Esperem
que
guerra.
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O corpo estava sarando, a alma continuava enferma, muito enferma.
Por favor, não perguntasse.
Ninguém respondeu.
- Vai para O Rio, Alfredo? Trabalhar com Julinho? Êle havia tirado
a mala velha de sob a cama, havia se ajoelhado, e examinava O fecho
quebrado. Levantou a cabeça, disse:
225
filho? Com Julinho? Fagundes Vaz e Cia. Limitada é uma grande
firma, você não acha?
Se êle vai embora? Será que veio alguma vez? Este homem
* Então, D Lola?…
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