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PARÁGRAFO 39

É evidente que o conhecimento a partir da ideia do Ser mais perfeito será o


conhecimento mais extenso. No Tratado Teológico Politico (IV e VI) e na Ética (V, 24),
será formulada uma declaração similar a partir do conhecimento do finito: “quanto mais
entendemos a coisas singulares, mais nós entendemos Deus”; então percebemos o
conteúdo do conhecimento do último gênero: aqui, não é necessário demonstrar isso,
obviamente.
No entanto, é preciso tirar as consequências deste fato; nós sabemos desde o
parágrafo 31, que cada conhecimento é imediatamente um instrumento para um outro,
no progresso da afirmação de nossa força nativa; agora, vemos em que isso consiste: o
primeiro instrumento inato é a primeira ideia verdadeira dada, a ideia do Ser mais
perfeito, cujo desenvolvimento sempre produz novos conhecimentos, que são novos
instrumentos, como vemos na própria progressão da Ética. E o primeiro conhecimento,
ou o primeiro instrumento produzido a partir do primeiro instrumento inato, não é nada
outro do que a intelecção da diferença entre uma percepção verdadeira e as outras, que
permite à primeira ideia verdadeira ser tomada como um padrão: essa será a primeira
parte do Método na segunda metade do Tratado. Vemos que a ideia do Ser mais perfeito
tem uma função metodológica, normativa, “o que é compreendido”, a ideia verdadeira
deve necessariamente nos livrar de toda ideia parcial e errônea do Ser, constitutiva dos
nossos preconceitos, como Espinosa explicará no parágrafo 46, em resposta à uma
objeção eventual; é assim que a Ética deve garantir a eliminação de tudo denunciado no
Teológico-Político, e é assim que este procederá, por exemplo, confiando na análise
filosófica da lei divina com o propósito de refutar nossas superstições.
É evidente que, graças a isso, “a mente se entende melhor sozinha”. O que deve
ser entendido em dois sentidos: do ponto de vista da ciência, por um lado, quanto mais
eu conheço o mundo e as coisas, mais e melhor sei o que sou no mundo, entre as coisas
e como as coisas no mundo; e, por outro lado, quanto mais eu me conheço, mais e
melhor eu conheço o mundo; essa é a tarefa confiada à Ética. Note que Espinosa insiste
na natureza reflexiva desse conhecimento, então ele escreve: “attendit, sive reflectit”.

PARÁGRAFO 40
Por outro lado, do ponto de vista do Método e, portanto, dos instrumentos
adquiridos, quanto mais e melhor eu sei qualquer coisa que seja, mais e melhor eu tenho
instrumentos para conhecer e mais e melhor eu sei os instrumentos para conhecer,
minha força, meu poder: em outras palavras, tenho mais e melhor conhecimento, ou
melhor, na terminologia espinosana, consciência do que sou e do que posso; essa é a
conclusão da Ética: “por uma certa necessidade eterna”, o que define o conhecimento do
terceiro gênero, “o sábio é consciente de si mesmo, de Deus e das coisas” (V, 42, Sc). O
Tratado, que deve lidar com o Método, leva tempo para detalhar o que está envolvido,
tomando os pontos que foram indicados no plano de trabalho dos parágrafos 14-16 e o
programa fixado nos parágrafos 35-37, com as preocupações que serão exprimidas,
segunda a mesma ordem, no seguinte:
a) “Ouvir a si mesmo”, como acabamos de ver;
b) “Dirigir a si mesmo e propor regras”, como veremos na segunda parte da
segunda metade do Tratado;
c) “Manter-se longe das coisas inúteis”, de acordo com o propósito ético
atribuído à filosofia desde o final da primeira parte na primeira metade do
Tratado. Pode-se perguntar quais são essas “coisas inúteis”, e Espinosa dirá,
com insistência, que é preciso evita-las: isso poderia ser um “divertimento
espinosano”? Não podemos pensar nas coisas de que devemos desviar, de
acordo com as primeiras páginas, bens incertos e perigosos, ou crenças ou
afirmações decorrentes dos primeiros modos de percepção, que devemos
descartar simplesmente por serem falsas; só pode ser o que, sendo
possivelmente verdadeiro e perfeitamente deduzível de acordo com a norma
da ideia verdadeira, não tem importância para nosso propósito, tal verdade
científica particular, por exemplo, como as que podem muito bem ser
deduzidas das leis de movimento e repouso, inseridas como anexo no corpo
da demonstração da segunda parte da Ética; ou mesmo a natureza física,
mecânica ou dinâmica, etc., da matéria, desde que a verdade seja respeitada,
de forma alguma é inútil para o nosso fim, da doutrina dos atributos, como a
carta LXXXIII afirma claramente: é nesse sentido que o espinosismo pode
fazer a diferença, na perspectiva de uma Ética, entre a filosofia e as ciências,
no interior mesmo de uma filosofia da natureza; vemos de que maneira essa
"inutilidade" das ciências, mesmo dentro da utilidade salutar da filosofia de
espírito científico, é diferente da inutilidade de Pascal, para a salvação, da
filosofia em face da fé: se Espinosa não é inteiramente cartesiano, ele não é
pascaliano.
Está lá, não mais parte, mas, diz Epinosa, "todo o Método".
Deve-se ressaltar em que medida há regras que são de sua própria
autonomia, que serão enfatizadas precisamente pelo uso da palavra
"consciência", a última palavra da filosofia.

PARÁGRAFO 41
Espinosa se baseia na mesma premissa com que termina o parágrafo 38, a
correspondência na relação entre as essências objetivas ou ideias, e a relação entre suas
essências formais ou ideados, mas não mais para explicitar a definição de Método
explicando o conhecimento e a autoconsciência, mas para fundar e ordenar o
conhecimento da natureza, o sistema de conhecimento, a Ética; em certo sentido, é a
maneira de se aproximar e resolver o problema da objetividade da ciência. De fato,
como vimos desde a distinção e avaliação dos modos de percepção, principalmente na
crítica da inferência e da abstração característica do terceiro modo, o conhecimento
verdadeiro, adequado, o que se opõe a eles, é implícito no método verdadeiro, é a
dedução, o que exigirá a determinação das condições nas últimas páginas do Tratado.
Mas esta dedução é realmente possível e vale a pena para o conhecimento da natureza?
Para fazer isso, ele não procede como as várias críticas: ele não parte da natureza
e do vínculo das ideias, de uma subjetividade (na nossa linguagem), mas de um vínculo
efetivo e comprovado, de uma objetividade (na mesma linguagem) entre as coisas, ou
de seus comércios, para empregar um termo que ele cuida de explicar em nota e que
será uma palavra-chave do leibzianismo e não estará ausente no kantismo, em relação
justamente à causalidade; ele toma esse comércio por um fato estabelecido, factum
naturae, poderia dizer um kantiano: é um fato que é efetivamente estabelecido na
primeira parte da Ética, que prova que tudo que é finito pertence à uma substância
infinita, causa de toda essência e existência, e é definido em seu ser finito pela
determinação das outras coisas finitas de acordo com a ordem e conexão ou conexão de
causas; mas o Tratado não tem o ônus desta demonstração direta: ele prossegue
indiretamente.
a) Ele parte do fato do comércio das coisas e, numa argumentação refutativa,
assume como primeira premissa não a falta de comércio entre as coisas, mas
uma hipotética falta de comércio entre certas coisas (“se houvesse na
natureza algo que não tivesse nenhum comércio com outras coisas”) e
assume como segunda premissa a correspondência real, dada pela definição
da ideia, entre a essência objetiva ou ideia e a essência formal ou coisa (“se
existe, portanto, também uma essência objetiva”), como conseqüência dessa
correspondência (“que deveria ser totalmente em conformidade com a
formal”), para deduzir que não haveria comércio entre ideias cujos ideais não
estejam em comércio (“nem teria nada a ver com outras ideias”): nesse caso
a dedução será impossível (“não conseguimos concluir”).

b) “Ao contrário”, para “as coisas que que estão em comércio umas com as
outras”, a dedução é possível e garantida (“as coisas serão entendidas, e suas
essências objetivas também terão o mesmo comércio”); é garantida também
indefinidamente, e a progressão do conhecimento, com seus instrumentos, já
não é um problema (“assim crescerá e avançará”).
b’) Mas o comércio total necessariamente existe (“as coisas que tem comércio com as
outras, como são todas as que existem na natureza”): o progresso da dedução entre todas
as ideias para todas as coisas é assegurado, mesmo que não seja e nunca seja
completado, porque o conhecimento científico do finito como finito, distinto do
conhecimento ontológico como parte do infinito, permanece indefinido
c) ”O que nos esforçamos em demonstrar”: a evidência diz respeito não a
crítica questão da objetividade da dedução, desde que nós temos que explicar
a adequação entre a relação das ideias e seus ideados, nem a questão da sua
primeira possibilidade, já que mostramos a presença da ideia e seu
desenvolvimento na ideia da ideia, mas a questão da possibilidade da
progressão e de sua extensão indefinida, do fato do comércio das coisas,
como dirá a Ética, II, 7, Sc: é assim que está estabelecido, a partir do
comércio das coisas entre elas, de uma maneira que eu diria voluntariamente
dogmática (se essa palavra não tem um uso deliberadamente negativo e
mesmo pejorativo) a dedutibilidade das ideias entre elas, isto é, a
possibilidade de todo o sistema do conhecimento, porque é de fato a
possibilidade da ética que está aqui envolvida e que deve ter sido
demonstrada: como veremos, em particular no parágrafo 46, na tarefa
reservada à essas páginas.

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