Você está na página 1de 96

Polônia

Por
Lucas Milhomem

lucasmilhomem@gmail.com
ALE: +49 174 6936630
BRA: +55 61 35412644
NOTA: Qualquer língua usada nos diálogos que não seja o
Português não deverá ser subtitulada ou dublada. De forma
que o roteiro emule a experiência da personagem principal,
Maria, os diálogos em polonês e inglês foram escritos nestas
línguas.
FADE IN:
INT. FUNDO PRETO

Ao som de uma simples melodia de um nostálgico sintetizador


panos de seda vermelhos e brancos cintilam em um fundo preto
lentamente como se estivessem debaixo d’água.
INT. CARRO DE JOÃO - DIA

CARTELA: Polônia, Abril de 1999.


O carro percorre a estrada por uma paisagem rural que vemos
pelo vidro do banco traseiro aonde MARIA dorme com sua
cabeça recostada. 10 anos, seus cabelos loiros contrastam
com a pele branca levemente bronzeada. Vestindo jeans e
camiseta, seu corpo descansa desajeitado sustentado pelo
cinto de segurança. Em seu colo um guia de viagens com a
bandeira da Polônia na capa. Maria abre os olhos e analisa o
seu arredor sem mexer a cabeça, ao se situar ela se debruça
sobre a janela, observando o passar vagaroso das plantações
e do horizonte ensolarado.
JOÃO (O.S.)
Olha quem acordou!
JOÃO, 33 anos, evidenciados pelo seu look casual, barba de 5
dias por fazer e cabelo encaracolado curto, que em toda a
vida só foi penteado pelas próprias mãos. Ele foi o primeiro
dos amigos a se tornar pai e o único que está solteiro até
hoje. Enquanto dirige, João ajusta o retrovisor e espia
Maria, que observa a paisagem com olhos ainda semiabertos.

MARIA
Tamo chegando?
JOÃO
Adivinha...

Maria se joga para trás no banco, bufando de decepção. Ao


seu lado diversos livros infantis de contos-de-fada e
fábulas estão espalhados junto com desenhos de lápis de cor
e um boneco de pelúcia de um monstrinho rosa sorridente.
Maria abre o guia de viagens em seu colo numa página que se
desdobra até abrir um mapa mundi.
João liga o rádio e zapeia entre as estações.
2.

Maria coloca o dedo sobre a cidade do Rio De Janeiro e,


fazendo um barulho de avião, o arrasta até Frankfurt na
Alemanha que está circulada em vermelho. Ela continua
arrastando o dedo seguindo uma linha vermelha que liga
Frankfurt à Cracóvia na Polônia, agora fazendo um barulho de
carro. João desiste de achar alguma coisa específica e deixa
em uma estação que toca um animado comercial cheio de
efeitos sonoros.
MARIA
Ah não pai, essa rádio da
Alemanha de novo? Desliga.
JOÃO
A gente não tá mais na
Alemanha. Aqui já é a Polônia.

Maria levanta a cabeça bruscamente.


JOÃO
Mas pelo visto aqui no é
muito melhor. Melhor desligar
mesmo.

MARIA
Não! Deixa aí.
Maria olha com novo fascínio para a paisagem.

MARIA
Polônia....
Maria tira o cinto e vai até o banco do meio para olhar a
paisagem pelo para-brisas. João sorri com o entusiasmo de
Maria.
O comercial que tocava no rádio acaba e a vinheta de um
programa toca. O DJ anuncia a música Chłopcy da banda
polonesa Myslovitz.

EXT. CARRO DE JOÃO/ RODOVIA - DIA - MONTAGEM


A música, um pop rock animado, passa a ser não diegética e
toca durante toda a sequência.
A. Seguimos o carro de João que dirige pelas planícies do
oeste polonês.
B. O carro passa por plantações amarelas de canola.
C. Um trator faz a colheita de plantações verdes de soja.

D. Vacas ruminam pelo pasto na beira da estrada.


3.

E. Alguns carros ultrapassam o de João que acelera nos


deixando com a imagem de uma pequena vila no horizonte.
FIM DA MONTAGEM
INT./ EXT. CARRO DE JOÃO/ BEIRA DA ESTRADA - DIA

Um talk-show toca baixinho no rádio.


João dirige concentrado e Maria balança seu monstro de
pelúcia com uma mão e usa a outra para atacá-lo, impedindo
que ele chegue até a princesa na capa de um livro de
contos-de-fada apoiado contra a porta de trás do carro.
MARIA
(Para o monstro de pelúcia)
Você nunca vai chegar à
princesa, seu monstro. Eu "Sir
Maria" jurei protegê-la com a minha
própria vida.
O monstro ataca seu rosto e ela o afasta em meio a grunhidos
com sua mão livre. O monstro domina a mão de Maria contra o
banco. O monstro se move por entre os livros e canetinhas
espalhados pelo banco e se aproxima lentamente da princesa.
MARIA
(Derrotada)
Não... Eu... Nunca... Vou...
Deixar!
Maria levanta sua mão novamente e soca o monstro
derrubando-o no assoalho do carro. Maria pega o livro da
princesa.

MARIA
(Ofegante)
Pronto princesa. Este monstro
nunca mais tentará te matar.

Maria pega um desenho que ela fez de um príncipe que está


entre os livros jogados no banco. O desenho se assemelha a
João.
MARIA
Agora você e o príncipe podem viver
felizes para sempre.
Maria junta a capa do livro com o desenho, fazendo o
príncipe e a princesa se beijarem. Ela imita o som de um
beijo e depois os joga no chão.
4.

Maria procura algo novo para fazer entre os livros jogando


um por um no assoalho até o banco ficar vazio. Ela suspira
entediada.
MARIA
Pai, tamo chegando?
JOÃO
Adivinha...
MARIA
(Frustrada)
Sério?
O carro vai parando no acostamento.
MARIA
(Animada)
Chegamos já?
Maria abre um sorriso, coloca a cara na janela e vê apenas
plantações e algumas poucas árvores em uma espécie de bosque
à beira da estrada.
MARIA
Hã?
JOÃO
Parada estratégica pro xixi.
MARIA
Ah não pai, não quero! Vamos logo.
JOÃO
Ué mas eu quero, dona Maria. E
você vai também porque eu sei que
daqui meia hora você vai tá pedindo
pra parar pra fazer xixi e eu não
vou parar de novo não.

MARIA
Eu não quero pai.
JOÃO
Você que sabe. Mas eu não vou
parar de novo.

Maria dá de ombros. João sai do carro e Maria assiste pela


janela os carros que passam rapidamente.
João bate na janela do passageiro de trás. Maria só olha
para ele sem se mexer. João acena para que Maria vá para
fora também.
5.

MARIA
Vai logo!
João gesticula ansiosamente para que Maria venha. Ele aponta
para algo no bosque.

MARIA
Já falei que não quero fazer
xixi! Vai logo!
João abre a porta do carro.

JOÃO
(Cochichando)
Vem aqui fora ver um negócio.
MARIA
Ver o que?
JOÃO
Shh...

João pega Maria e a puxa para fora do carro.


EXT. BEIRA DA ESTRADA/ BOSQUE - DIA
Maria e João estão em pé ao lado do carro entre o
acostamento e o bosque. João se agacha e aponta para um
ponto entre as árvores. Uma RAPOSA vaga curiosa cheirando o
chão. Maria olha boquiaberta.
MARIA
Uma raposa de verdade!

JOÃO
Pega a câmera na minha mochila.
Maria se vira e coloca metade do corpo para dentro do carro
e de lá tira a câmera fotográfica, uma POINT AND SHOOT DE
FILME. Ela anda sorrateiramente em direção ao animal.

JOÃO
Ei, não!
Maria ignora e segue lentamente na direção do bosque.

JOÃO
Não chega muito perto!
Maria sinaliza silêncio ao pai. Com o olho no viewfinder ela
se aproxima bastante da raposa, que a ignora e tira uma
foto. O flash brilha, assustando o animal que sai correndo,
sumindo entre as árvores.
6.

MARIA
Droga de flash.
João ri, acende um cigarro, anda até uma das árvores e
começa a urinar. Maria vai até o pai completamente
indiferente ao fato dele estar urinando.

MARIA
O flash assustou ela.
JOÃO
Ah foi o flash? Achei que
tinha sido a sua cara feia.
MARIA
Ha ha. Só se foi a sua.

João termina de urinar e fecha o zíper da calça.


JOÃO
Então, certeza que não vai
fazer xixi agora mesmo? Eu não vou
parar depois.

MARIA
Pai, deixa eu ir na frente agora?
JOÃO
Que que tem a ver, Maria? Claro
que não.
MARIA
Se você deixar eu faço xixi agora.
JOÃO
Não é assim que funciona. Você
não pode ir na frente. Não tem
negociação. E eu já vou avisando
que eu não vou parar até a gente
abastecer de novo.

MARIA
Então eu vou fazer xixi no carro.
JOÃO
Pode fazer. O carro é
alugado mesmo.
MARIA
Mas se você deixar eu faço xixi
agora.
7.

JOÃO
Não Maria, faz xixi logo.
MARIA
Só até a próxima parada e eu paro
de perguntar se tá chegando.

João dá uma longa tragada considerando a proposta.


JOÃO
Tentador. Mas não é não.

João vai em direção ao carro e Maria fica parada.


MARIA
Só até a próxima parada, eu
faço xixi agora, paro de perguntar
se tá chegando e você ainda pode
fumar no carro.
JOÃO
Você sabe que no carro eu não fumo.

MARIA
Ah, mas deixa, vai...
João se aproxima do carro, coloca a mão na maçaneta, ele
olha para Maria que sorri dissimulada. João dá uma longa
tragada no cigarro e o joga no chão apagando-o com o pé.

JOÃO
Tá bom, mas só até a próxima
parada.
MARIA
Jura? Yes!!
JOÃO
Ai dona Maria, o que você não me
pede rindo que eu não te faço
chorando?

Enquanto João fala Maria vai para trás da árvore e nós a


ouvimos urinar.
MARIA (O.S.)
Nossa, eu tava muito apertada.
8.

INT. CARRO DE JOÃO - DIA


O talk-show polonês continua a tocar. O carro acelera pelas
paisagens de planícies. Maria está no banco da frente
apoiada no painel, seus olhos esbugalhados tentam olhar para
tudo ao mesmo tempo. João dirige atento ao talk-show.

JOÃO
Caramba, não dá pra entender
nada. Nem uma palavra sequer que
eles falam.

João tenta imitar a fala do apresentador com diversos


chiados indistintos.
JOÃO
Maria... (chiados em entonação
de pergunta)
MARIA
Ah João... (responde a pergunta
com chiados)

JOA[PLEASEINSERT\PRERENDERUNICODE{ÌČ}INTOPREAMBLE]O
Mm... (nova pergunta em chiado)
Os dois começam um diálogo em linguagem de CHIADO. Maria
responde com mais chiados. João reage surpreso com a
resposta e pergunta outra coisa. A nova resposta de Maria o
deixa mais surpreso ainda. Maria esclarece algo que não
estava claro e João responde que agora sim ele entendeu. Os
dois riem juntos.
Silêncio entre os dois. No rádio o talk show continua.

MARIA
Você nunca aprendeu polonês?
JOÃO
Não.
MARIA
Por quê?
JOÃO
Sua mãe não queria falar de jeito
nenhum. Ela queria aprender
português.
MARIA
E ela aprendeu né?
9.

JOÃO
Sim. No começo era bem difícil, mas
ela pegou o jeito rápido e depois
já tava falando quase fluentemente.

MARIA
Ah, aprendendo com professor de
português fica fácil.
João ri.

JOA[PLEASEINSERT\PRERENDERUNICODE{ÌČ}INTOPREAMBLE]O
Na e´poca eu na˜o sabia ainda que
ia virar professor. Mas eu ensinei
quase tudo pra ela.

MARIA
Como?
JOA˜O
Falando, repetindo, mímica. Mas
era mais fácil do que dar aula pra
adolescente. O problema é que no
começo ela tinha vergonha de falar
com outras pessoas.
MARIA
E como ela fazia?
JOÃO
Era quase sempre com mímica.
João imita alguém com fome. Ele aponta para a boca aberta e
passa a mão na barriga. Maria ri. João faz uma mímica de
quem está cansado, boceja e espreguiça. Maria ri mais.
MARIA
E quando ela queria ir para
a praia?

JOÃO
Essa foi uma das primeiras palavras
que ela aprendeu. Praia.(imitando o
sotaque polonês) João, praia, por
favor.

MARIA
(Imitando a imitação de João)
João, praia, por favor.
Os dois riem
10.

JOÃO
Mas aí quando não dava mesmo
ela tentava juntar o português com
o inglês e com o polonês. (beat) Eu
lembro que tinham algumas palavras
que em polonês eram iguais ao
português.
MARIA
Tipo quais?

JOÃO
Mm... Deixa eu ver. Tinham algumas
mas eu so´ lembro de ’presente’
e... (tenta se lembrar) Acho que
’cebola’ era igual também.

MARIA
Hahaha Cebola? Legal! (para si
mesma) Presente e cebola.
Os dois voltam a atenção para o talk-show que continua ao
fundo.

JOÃO
Da próxima vez que você quiser
reclamar que português é díficil...
João aponta para o rádio.

JOÃO
...pensa que pelo menos você não
tem que aprender polonês.

MARIA
Mas eu quero aprender polonês
também.
JOÃO
Ha ha, boa sorte.

MARIA
Já sei falar presente e cebola!
Os dois voltam a atenção para o rádio novamente. O talk-show
vai para o comercial.

JOÃO
Não aguento mais ouvir isso.
João desliga o rádio.
11.

MARIA
Pai, eu tô com fome.

João estica o braço para o banco de trás, pega dois


sanduíches embrulhados e os entrega para Maria.
JOÃO
Abre um pra mim também, por favor.

Maria faz cara de nojo ao abrir um dos sanduíches, só pão


com uma fatia de presunto. Ela dá uma mordida e o mastiga
como se fosse isopor.
MARIA
Eco, toma.

Maria entrega o sanduíche para João que dá uma mordida, faz


a mesma cara de nojo e o devolve para Maria.
JOÃO
Que sanduíche horrível. Achei que
comida de posto na Europa ia ser
melhorzinha. (beat) Faltam umas
três horas pra gente chegar ainda.
MARIA
Três horas?!

JOÃO
Ei, lembra do nosso acordo?
MARIA
Eu não perguntei. Você que falou.
JOÃO
Mas não reclama também. Enfim,
vamos parar numa dessas vilas no
caminho e comer comida de verdade.
Depois a gente segue viagem. E aí o
nosso acordo acaba também.
MARIA
Ah não pai, pode deixar. O
sanduíche nem tá tão ruim assim,
olha...
Maria morde o sanduíche com sofrimento, forçando um sorriso
enquanto mastiga.
JOÃO
Aiai dona Maria, você é uma figura
mesmo, viu? Pega o mapa e olha qual
a cidade mais perto.
12.

MARIA
Ah não pai.
JOÃO
Ué, se quiser sentar na frente tem
que ser copiloto então.

Maria dá uma bufada.


MARIA
Ai tá bom... Que que você não me
pede rindo que eu não te faço
chorando.
João olha para a Maria com orgulho de sua ironia e faz um
cafuné nela. Maria se estica e pega o mapa que está no banco
de trás. Maria lê complicados nomes de cidades polonesas da
forma que acha ser a certa.
EXT. VILA #1/ PRAÇA/ BARRACA DE FRUTAS - DIA
A praça é arborizada. Pequenos prédios coloridos, renovados
após a guerra, dão uma elegância artificial ao lugar.

Maria e João andam de mão dadas pela praça. As poucas


pessoas que passam olham discretamente para os dois
forasteiros. João fuma seu cigarro enquanto lê em voz alta
os diversos letreiros de prédios e as placas ao redor. Maria
solta a mão de João e anda até uma pequena barraca de
frutas. Ela observa uma JOVEM MÃE apontar maçãs para sua
FILHA, mais ou menos a mesma idade de Maria. A Filha pega as
maçãs e as coloca em uma sacola. A Jovem Mãe paga uma
SENHORA do outro lado da barraca com algumas moedas. A Filha
nota Maria e elas se encaram enquanto a menina vai embora de
mãos dadas com a Jovem Mãe.

JOÃO (O.S.)
Res-tau-raque-ja. Isso só pode ser
restaurante né?

Maria se vira para o pai que anda em direção a uma placa


escrita "Restauracja".
JOÃO
Vem filha. Vamos ver se é
restaurante mesmo.
13.

INT. RESTAURANTE - DIA


O pequeno estabelecimento mal comporta as seis mesas que
possui. Uma SENHORA ACIMA DO PESO está sentada atrás de um
balcão contando notas de dinheiro e colocando-as na caixa
registradora. Um CASAL DE IDOSOS come a lentas garfadas à
única mesa ocupada. Uma jovem GARÇONETE de pele muito branca
e cabelos loiros se apressa para receber os novos clientes
apontando-lhes uma mesa.
GARÇONETE
Dzień dobry!
Maria e João sentam-se à mesa e a Garçonete lhes entrega
DOIS CARDÁPIOS.
JOÃO
Hello, do you speak English?
A Garçonete cora encabulada e balança a cabeça
negativamente.
GARÇONETE
(Insegura)
No English. Mówi˛
e tylko polsku.
Silêncio constrangedor.
João dá um sorriso galanteador para a garçonete que cora
ainda mais e sai em ligeiros passos até a Senhora Acima do
Peso. A Garçonete aponta para a mesa de Maria e João. Os
dois se olham confusos e abrem os cardápios. Eles inclinam
as cabeças em todas as direções tentando ler. Maria traz o
cardápio bem perto do nariz e depois estica o braço tentando
lê-lo de longe.

JOÃO
Eu já me decidi.
Maria olha incrédula para João.

JOÃO
Eu vou querer um delicioso (lendo
como se fosse em português) Barszcz
czerwony z kołdunami.

Maria ri e lê a primeira coisa que vê no cardápio.


MARIA
E para mim um (lendo como se fosse
em português) Biała kiełbasa
smażona z Pieczarkami i Żółtym
Serem.
14.

Eles riem alto. O Casal de Idosos continuam comendo sem se


importar. A Garçonete volta com um bloco de anotações e uma
caneta em mãos, pronta para anotar o pedido.

GARÇONETE
Czego by pan si˛
e napił?
Maria e João apenas olham para Garçonete como se a qualquer
momento ela fosse traduzir. A Garçonete os olha como se a
qualquer momento eles a entederão.
Silêncio constrangedor.
A garçonete volta rapidamente até o balcão, conversa algo
com a Senhora Acima do Peso e volta a curtos passos
apressados.
GARÇONETE
Drink?
JOÃO
Ah sim! Bebida. Que que você vai
querer filha?
MARIA
(Para a Garçonete)
Um suco de laranja, por favor.

Sem graça, a Garçonete levanta os ombros indicando que não


entendeu.
JOÃO
Ah, filha pede uma coisa mais fácil
tipo (lentamente para a Garçonete)
coca-cola.
GARÇONETE
Aha, Cola!

A Garc¸onete começa a anotar e em seguida indica com os dois


dedos perguntando se vão ser duas. João afirma com a cabeça.
E ela começa a anotar novamente.
MARIA
(Levantando a voz)
Não!
A Garçonete para de escrever e olha para a menina. Maria
começa uma mímica. Ela levanta o dedão fazendo uma garrafa
com a mão. Ela inclina a cabeça para trás e bebe da garrafa.
Ela faz uma esfera com as mãos, segura a esfera invisível
com uma das mãos e com a outra ela a corta no meio com uma
faca invisível. Ela pega a "metade cortada" e espreme em um
espremedor de laranjas invisível.
15.

GARÇONETE
Ah, sok pomarańczowy.
MARIA
Isso. (Repetindo com sotaque
brasileiro) Sok pomarańczowy. Por
favor.
A Garçonete anota e vai até o balcão passando o pedido para
dona que faz sinal de negativo com o dedo. A Garçonete volta
rápido à mesa.

GARÇONETE
Nie ma soku pomarańczowego. Przykro
mi!
A garçonete imita a mímica de Maria bebendo e depois acena
negativamente com o dedo indicador.
GARÇONETE
Cola?
MARIA
(Desapontada)
Sim.
GARÇONETE
Tak?

MARIA
(Confusa)
Tak?
A Garçonete faz positivo com o dedão e aponta para ele com a
outra mão.
GARÇONETE
Tak.
A garçonete vira o dedão para baixo e aponta novamente com a
outra mão.
GARÇONETE
Nie.
Ela gira o punho de negativo para positivo e vice-versa.

GARÇONETE
Tak. Nie.
Maria imita o movimento.
16.

MARIA
Tak. Nie.
João também imita.
JOÃO
Tak. Nie.
A Garçonete se retira tímida por sua momentânea
espontaneidade.

JOÃO
Eu até me lembro da sua mãe falando
tak toda hora.
A Garçonete volta com duas LATAS DE COCA-COLA e dois COPOS.
Ela as abre, serve dois copos e os coloca sobre a mesa.

GARÇONETE
Co życza˛ sobie Państwo do jedzenia?
A garçonete faz uma mímica dando uma garfada e colocando na
boca.

JOÃO
Maria, o que que aquele casal ali
tá comendo?
Maria se ajoelha na cadeira e espicha o pescoço para espiar
o prato do Casal de Idosos.
MARIA
É uma carne com... eu acho que
batatas e um troço estranho roxo.

João também espia os pratos discretamente.


JOÃO
É vamos nesse aí também então.

MARIA
Eco, mas eu nem sei que que é esse
roxo.
João aponta para os pratos do Casal e depois repete a mímica
de comer que a garçonete havia feito.

GARÇONETE
Kotlet schabowy z ziemniakami i
czerwona˛ kapusta.
˛
17.

JOÃO
(Tentando repetir)
Kotlet schabowy z ziemniakami i
czerwona˛ kapusta.
˛

A Garçonete, já menos constrangida faz cara de que está uma


delicia seguido pelo internacionalmente conhecido "MMMM...".
JOÃO
(Animado)
"Tik"

A Garçonete ri discretamente.
MARIA
É Tak, Pai.

JOÃO
Então tá decidido.
João olha para Maria esperando sua aprovação. A menina só
mostra a língua com cara de nojo e dá de ombros. João dá um
sorriso e lança uma piscadela para a Garçonete que ignora a
tentativa de flerte de João e anota os pedidos. Maria abaixa
a cabeça envergonhada e a Garçonete sai sem levantar os
olhos do bloquinho.
EXT. VILA #1/ PARQUE - DIA

Os pássaros cantam no arborizado parque. João está de olhos


fechados sentado encostado em uma árvore e Maria anda ao
redor dela brincando com um graveto.
MARIA
Ei, não tá na hora de dormir.
JOÃO
Nossa, depois dessa comida eu vou é
tirar meu cochilo e a gente só
segue viagem amanhã.

João abre um olho para espiar a reação de Maria.


MARIA
Não pai, para!

João fecha o olho.


JOÃO
Tô brincando.
Maria bate com o graveto na árvore e o larga no chão.
18.

MARIA
Aquela garçonete era parecida com a
mamãe, né?
JOÃO
Não muito.
MARIA
Mas era loira igual a mamãe.
JOÃO
Sim, mas diferente. Sua mãe era bem
mais alta e o sorriso era
completamente diferente também.
MARIA
Mas ela era bonita né?

JOÃO
Quem? A garçonete ou a sua mãe?
MARIA
Minha mãe.

Maria começa a arrancar grama do chão e guardar na mão.


JOÃO
Uai filha, você já viu foto dela.

MARIA
Mas só dela grávida.
Maria joga a grama coletada pra cima fazendo chover sobre
sua própria cabeça.

JOÃO
Sua mãe era muito bonita. (beat)
Linda. De verdade. Sorriso
inconfundível igualzinho ao seu.
Todo mundo olhava pra ela.

MARIA
E ela foi casar logo com um ogro
feioso.
Maria ri. João abre os olhos.

JOÃO
(Sério)
Filha...
19.

MARIA
Tô brincando pai, você é lindo.
(beat) Tá bom, tudo isso também
não. Você é bonitinho.

Maria começa a bagunçar o cabelo de João.


JOÃO
Filha... Eu e sua mãe... nunca
fomos casados.

Maria para de mexer no cabelo de João e foca seu olhar no


dele.
MARIA
Como assim?

JOÃO
Ué, a gente nunca casou.
MARIA
Vocês iam casar depois que eu
nascesse então?

João tira um maço de cigarro do bolso e tira um cigarro.


JOÃO
Nem todo mundo quer casar.

João devolve o maço pro bolso e acende o cigarro.


MARIA
Você não amava ela?
João aproveita a primeira tragada do cigarro.

JOÃO
Eu gostava muito dela.
MARIA
Mas não amava?
JOÃO
Eu amo você. Com ela era diferente.
MARIA
Mas eu gostaria que meus pais
fossem casados igual os dos meus
amigos.
JOÃO
Mas os pais dos seus amigos às
vezes se separam e isso pode ser
20.

JOÃO
muito ruim. Para os filhos e para
os pais.

Maria bagunça o cabelo de João de novo e pega o galho que


ela deixou no chão. Maria levanta o galho como uma espada e
se vira em direção a João distraída.
MARIA
E quando que vocês decidiram me
ter?
João abaixa o galho que está quase encostando em seu nariz e
se levanta. Ele se alonga.
JOÃO
Ah Maria, não lembro exatamente.
Foi tudo muito rápido. Eu já te
disse. Mas eu estive com sua mãe
por pelo menos um ano até você
nascer.

João joga o cigarro no chão e apaga com o pé. Ele pega a mão
de Maria.
JOÃO
Vem, vamos pegar a estrada de novo.

Maria olha para o cigarro esmagado e solta a mão de João.


MARIA
Você é nojento.

JOÃO
Ué, que que você quer que eu faça?
Tá vendo alguma lata de lixo por
aqui?
Eles olham ao redor e notam a Garçonete passando de
bicicleta. Ela acena para os dois. João acena de volta e
Maria apenas olha. João pega a mão de Maria e os dois vão
andando na direção oposta. Maria se vira e acena para a
Garçonete que vai se distanciando e já não a vê.
INT. CARRO DE JOÃO - DIA

Maria vai sentada no banco da frente brincando entediada com


o monstro de pelúcia rosa. João dirige atento.
MARIA
Falta muito?
21.

JOÃO
Maria, eu só tô fingindo que essa
não foi a nossa parada. Mas você
também tem que fingir que nosso
acordo ainda tá valendo.

MARIA
Você é muito chato.
João desacelera o carro no acostamento até parar mas não
desliga o motor. Com uma expressão séria e sem tirar os
olhos da rua ele aponta para o banco de trás.
MARIA
Ah não pai, por favor.
JOÃO
Agora!
Maria joga o monstro de pelúcia no painel, tira o cinto e
passa para o banco de trás por entre os bancos da frente.
MARIA
Me dá o monstrengo.
João pega o monstro do painel e dá para Maria.
JOÃO
Coloca o cinto.

Maria coloca o cinto e João volta para a estrada.


MARIA
Paiê...

JOÃO
Fala Maria.
MARIA
Falta muito?

João tenta segurar o sorriso que espreita o canto da boca.


JOÃO
Aiai dona Maria, não tem jeito, né?
Você sempre ganha.
22.

EXT. PAISAGENS DO SUL DA POLÔNIA - DIA - MONTAGEM


As paisagens das serras ao sul da Polônia são bem diferentes
das planícies ao oeste, onde começamos.
A. Vemos diversas imagens das estradas que serpenteiam pela
paisagem acidentada das serras entre as cidade de Breslau e
Cracóvia.
B. Uma parte da estrada é quase encoberta por árvores que
arqueiam de ambos os lados da pista.

C. Densas florestas de pinheiro ao longo do caminho.


FIM DA MONTAGEM
INT. CARRO DE JOÃO - DIA

João dirige concentrado e Maria está quase em pé entre os


bancos da frente. Eles jogam adedonha, o jogo de citar
países.
MARIA E JOÃO
Adedoooooonha.
Maria mostra os dez dedos e João levanta a mão direita
mostrando cinco segurando o volante só com a mão esquerda.
MARIA
(Rápido)
A, b, c, d, e, f, g, h, i, j, k, l,
m, n, o. Deu "O" pai.
JOÃO
Você contou a minha outra mão
também?
Maria nota o dedo indicador de João levantado enquanto
segura o volante.

MARIA
Então depois de "O" e´ "P".
JOÃO
Polônia.

MARIA
Ei, não vale. Eu ia falar Polônia.
JOÃO
Então fala outro.
23.

MARIA
Mas com "P" eu não sei.
JOÃO
Portugal.

MARIA
Ei, para!
Uma ambulância ultrapassa o carro deles em alta velocidade
com a sirene ligada. João se ajeita no banco aumentando a
atenção. Maria assiste a ambulância se distanciando junto
com o som da sirene distorcido pelo efeito doppler.
JOÃO
Você tá de cinto né?

Maria volta senta-se rapidamente no banco e coloca o cinto.


MARIA
Tô, pai.
Silêncio. João olha para trás rapidamente conferindo.

JOÃO
Então vai lá, fala algum país com a
letra "P".
MARIA
Mas eu quero falar Polônia.
João ri.
JOÃO
Então tá bom.

MARIA
Eba! Sua vez então.
JOÃO
Mm... deixa eu ver. Peru, Paraguai,
Porto Rico...
MARIA
Ei, não vale!

INT. CARRO DE JOÃO - DIA


O carro está estacionado em algum lugar que não é possível
distinguir pela Janela. Maria folheia um livro de contos dos
irmãos Grimm. Uma ambulância passa pelo carro com apenas a
luz da sirene ligada. Maria larga o livro e gruda a cara na
janela vendo a ambulância passar.
24.

EXT. VILA DE ANASTAZJA/ MERCADINHO/ BANCA DE FLORES - DIA


João está na frente de um mercadinho falando com JANUSZ, que
apesar de ser quase um senhor tem um corpo musculoso e
trejeitos rurais. A ambulância passa atrás de João, que nem
nota. Ele aponta para um endereço marcado de marca-texto no
meio de uma carta "Ul. Miodowa 7". Janusz lê e começa a
apontar direções para João.
JANUSZ
Ulica Miodowa siedem. Prosto do
końca, potem w lewo i pierwsza w
prawo, aż do ulicy "Zachodniej".
Dwie przecznice dalej b˛ edzie ulica
"Ślaska",
˛ tam skr˛eć w prawo i idź
do końca, aż dojdziesz do tej
ulicy.

Maria sai do carro, estacionado atrás de João e vai na


direção dos dois.
JOA˜O
Pera aí meu senhor, muito
rápido. Vamo lá. (Apontando as
direções enquanto fala) Primeiro
reto até a primeira esquerda né?
Maria para ao lado de João e Janusz sorri para ela. Maria
sorri de volta e Janusz a encara como se ela lhe fosse
familiar. Maria pega na mão de João e ele cutuca Janusz, que
volta a sua atenção a João.
MARIA
A gente chegou já, pai?

JOÃO
(Sem olhar para Maria.)
Peraí, Maria. Então primeiro reto e
depois esquerda. E daí?

JANUSZ
Tak, w lewo, w prawo. (apontando
para a esquerda depois para a
direita)
João suspira confuso.

JOÃO
Então esquerda primeiro depois
direita?
Maria solta a mão de João e anda até uma loja de flores ao
lado do mercadinho. Um senhor está podando uma rosa. Ele é
25.

IGNACY, 70 anos, muito magro, cabelos brancos despenteados e


óculos de grau redondo tipo John Lennon. Ele veste um
avental sobre roupas hippies. Ao notar Maria se aproximando
ele para o que está fazendo e vai atendê-la.
IGNACY
Dzień dobry!
Maria não responde e começa a mexer nas folhas de uma flor.
Ignacy chega perto da flor.
IGNACY
To jest pi˛
enkny kwiat.
Maria apenas sorri. Ignacy olha em volta tentando achar o
responsável por ela. João e Janusz apertam as mãos.
JOÃO
(Para Maria)
Vem Maria! Antes que eu esqueça o
caminho. Eu acho que ele falou que
dá pra ir andando.
Os olhos de Ignacy se esbugalham ao ouvir português e ele
olha para Maria como se ele a reconhecesse agora. Maria
corre até João e abraça suas pernas.

MARIA
A gente chegou, né pai? Aqui que é
a cidade da mamãe.
JOÃO
Bem, é uma vila né. Mas sim,
chegamos. Agora a gente tem que
achar a casa.
Ignacy os observa a distância.

EXT. RUAS DA VILA DE ANASTAZJA - DIA - MONTAGEM


A vila é muito arborizada. É o ápice das flores na
primavera. As casas são pequenas e na maioria cinzas ou
marrons. Elas ficam distantes umas das outras e não há muros
entre elas.

A. Uma senhora está apoiada na janela de sua casa como quem


vigia a rua e observa Maria e João andando perdidos.
B. A cada esquina João olha para a carta e em seguida lê em
sua mente as placas das ruas. Maria está contida e anda
perto do pai, mas observa tudo com genuína curiosidade. Eles
param em uma esquina.
FIM DA MONTAGEM
26.

EXT. VILA DE ANASTAZJA/ ESQUINA DE UMA RUA - DIA


Ola e Mariusz, um casal de gêmeos um pouco mais velhos que
Maria estão conversando em frente a uma das casas na
esquina.
João gira em seu próprio eixo, lê o endereço na carta, lê os
nomes das ruas, ele não se acha e repete tudo. Maria solta a
mão dele e vai até os gêmeos.

MARIUSZ
(Amistosamente)
Cześć!
OLA
(Amistosamente)
Cześć!
Maria os encara confusa. Os gêmeos dão risadinhas.
OLA
Cześć!
MARIA
(Insegura)
Cześć...

JOÃO (O.S.)
Vem filha, acho que é por aqui.
Maria acena um adeus aos dois irmãos que acenam de volta
entre risadinhas.

OLA E MARIUSZ
Pa!
Maria vai correndo até o pai que já vai descendo a rua.

MARIA
(Para si mesma)
Cześć e Pa.
EXT. RUA "UL. MIODOWA"/ CASA DE ANASTAZJA - DIA

Maria e João andam pela silenciosa rua de mãos dadas.


JOÃO
Então aquela foi a número seis. É a
próxima então.

Eles se aproximam da entrada da casa 7. A casa é branca e


possui um jardim muito bem cuidado na entrada. Maria para de
repente.
27.

MARIA
Espera aí pai.
JOÃO
Que foi Maria?

Maria encara os próprios pés.


JOÃO
Fala filha, que que foi?

Maria balança a cabeça se recusando a falar. João se agacha


para ficar da altura dela. Ele levanta o queixo dela
delicadamente e ela o encara.
JOÃO
Tá com vergonha é?

Maria faz que sim com a cabeça. João abre um sorriso terno.
JOÃO
Eu também. (beat) É normal. Mas
você queria vir, não é?

Maria faz que sim com a cabeça novamente.


MARIA
Muito.

João beija a testa de Maria e a abraça. Maria o abraça


forte.
JOÃO
Eu te amo, minha filha.

MARIA
Eu também te amo, pai.
João se levanta e Maria toma a frente andando em direção a
porta. João aponta para a campainha e Maria a aperta. O som
da campainha ecoa pela casa e Maria chega bem perto das
pernas de João. Maria levanta a mão para apertar o botão
novamente e João segura o braço dele. João coloca o ouvido
contra a porta. Maria solta o braço que João está segurando
e toca a campainha de novo.

Eles esperam em silêncio.


João bate à porta devagar. Maria bate à porta impaciente com
toda força.
28.

JOÃO
Calma aí! Deixa eu pensar aqui.
(beat) Vamos perguntar no vizinho
se eles sabem cadê ela.
Os dois andam até a casa vizinha.
EXT. RUA "UL. MIODOWA"/ CASA DE ANNA - DIA

Eles estão em frente a casa vizinha e João toca a campainha.


Logo ouvimos movimento na casa.
ANNA, 90 anos, abre a porta apenas o suficiente para que
coloque sua cara pouco amistosa e enrugada para fora. Ela
aperta os olhos atrás dos óculos fundo de garrafa tentando
reconhecer os visitantes.
ANNA
(Desconfiada)
Dzień dobry.

JOÃO
(Improvisando)
Ah... Hello... Excuse me... Your
neighbor from house seven.
Anastazja.

ANNA
(Bem alto)
Przepraszam, czy mógłby Pan mówić
głośniej? Jestem już stara i prawie
głucha.

Anna vira o ouvido para João, fazendo uma concha com a mão
ao redor e chegando desconfortavelmente perto de seu rosto.
JOÃO
(Quase gritando)
Anastazja. Sua vizinha.
A-NAS-TA-SI-A (ênfase em AnastaSIa)
Anna olha para Maria que força um sorriso educado. Algo
estala em Anna, talvez ela tenha reconhecido o sorriso de
Maria ou talvez entendido João.

ANNA
Ahh! Anastazja (ênfase em
AnastAHzja) Prosz˛
e wejść.
Anna abre a porta completamente e entra em casa convidando
Maria e João com um aceno. Os dois se olham em dúvida. João
aponta para que Maria entre primeiro, Maria balança a cabeça
e aponta para que João vá primeiro. Ele hesita mas dá o
primeiro passo. Maria segue colada em sua perna.
29.

INT. CASA DE ANNA/ SALA DE ESTAR - DIA


A simples casa é mobiliada com móveis quadrados surrados de
madeira do tempo do comunismo.
Anna anda pela casa contando algum tipo de história e rindo
consigo mesma. Maria e João esperam no meio da sala.
MARIA
Que que essa velha quer.

João leva o dedo indicador em frente aos lábios.


JOÃO
Shh!
Os dois se viram num susto quando Anna entra na sala rindo
sozinha carregando uma cesta de madeira vazia. Ela pede que
Maria e João a sigam e eles seguem hesitantes.
EXT. CASA DE ANNA/ QUINTAL - DIA
O quintal é grande e mal cuidado. Há uma horta cercada com
algumas frutas e verduras crescendo e um galinheiro
improvisado ao fundo com galinhas ciscando.
Maria e João estão observando da porta enquanto Anna rega a
horta e depois segue para o galinheiro. Ela abre o
portãozinho do galinheiro e entra chutando as galinhas que
pulam cacarejando para todos os lados. João começa a andar
em direção ao galinheiro. Maria tenta segurá-lo mas ele olha
para ela e acena como quem diz "é tranquilo". Maria segue
eles param no cercado do galinheiro. Anna cata ovos de um
ninho ao fundo colocando-os no cesto. Maria nota uma galinha
morta e depenada pendurada na entrada da parte coberto do
galinheiro. Ela dá um pulo pra trás e volta correndo até a
entrada do quintal. Anna sai do galinheiro e entrega a cesta
para João.
ANNA
Dla Anastazji.
Ele vai em direção a casa, João segue atrás. Maria desvia de
Anna para que esta entre em casa. Maria segura na mão de
João e eles entram na casa.

INT. CASA DE ANNA/ SALA DE ESTAR - DIA


Anna está sentado no sofá ofegante. Ela acena adeus a Maria
e João que a olham com caras confusas.
30.

JOÃO
Então, tchau e...
Ele olha para o cesto.
JOÃO (CONT.)
Obrigado.
MARIA
(Apressada e dissimulada)
Sim. Muito obrigada. Pa.

Anna ri como uma bruxa.


ANNA
(Em meio a risada)
Pa!

João acena e Maria vai saindo apressada puxando o pai.


EXT. RUA "UL. MIODOWA - FIM DE TARDE
Maria e João descem a rua. Maria olha para a cesta que João
segura.
JOÃO
Bem, pelo menos o café da manhã a
gente já garantiu.

Maria pega a cesta da mão de João e a coloca no chão. Ela


analisa os ovos que estão sujos de terra e possuem algumas
penas presas.
MARIA
Esses ovos devem estar
amaldiçoados.
JOÃO
Filha, a gente vai ter que voltar
amanhã. O hotel que eu reservei pra
gente fica em Cracóvia que era a
cidade mais perto daqui que tinha
hotel no guia de viagens. A gente
descansa hoje, amanhã a gente dá
uma volta na cidade e volta pra cá.

Maria dá de ombros fingindo interesse nos ovos.


MARIA
Eu não tô nem aí.
31.

JOÃO
É vem, você tá cansada e eu também.
João pega Maria no colo e ela automaticamente coloca os
braços em volta do pescoço do pai. João se agacha, pega a
cesta com os ovos e segue descendo a rua.

INT. CARRO DE JOÃO - FIM DE TARDE


João dirige com uma mão no volante e a outra apoiando sua
cabeça contra a janela. A cesta com os ovos vai no banco do
passageiro presa com o cinto de segurança. Maria vai no
banco de trás olhando a bucólica vila passar pela janela,
lutando para não dormir. De repente seus olhos se arregalam.
MARIA
Pai, que que aquilo?

João olha pela janela do passageiro e vê um cemitério.


JOÃO
Parece um cemitério.

João espia Maria pelo retrovisor enquanto ela vira a cabeça


seguindo o cemitério que vai distanciando.
MARIA
Então para o carro.

JOÃO
Mas a gente não sabe se esse é o
cemitério que ela tá.
MARIA
Mas e se for?

JOÃO
Ainda assim a gente não sabe onde
tá o túmulo dela.

MARIA
Mas a gente pode procurar.
João para o carro, deixando o motor ligado. Ele se vira para
o banco de trás. Maria olha pela janela mas seus olhos não
estão focados em nada.

JOÃO
Maria, a gente ainda vai ter tempo.
A gente vai voltar amanhã e
conhecer a Anastazja.
32.

MARIA
Mas a gente veio pra conhecer a
mãe.
JOÃO
Você sabe que é só o corpo dela que
tá ali. E não é isso que importa.
MARIA
Eu não tô nem aí. Eu só quero
conhecer ela. Não importa aonde.

JOÃO
E você vai filha. Só que amanhã. Eu
prometo.
João acelera o carro. Maria se joga pra trás no banco com a
cara emburrada.
INT. CARRO DE JOÃO - NOITE
Maria vai no banco de trás com a cabeça recostada na porta.
João se vira pra trás e olha para Maria rapidamente
esperando que ela o note mas a menina o ignora e ele volta a
olhar para a estrada. João estica o braço até o banco de
trás e tateia pelo banco sem desviar a atenção da estrada.
No meio dos livros e desenhos de Maria ele pega o CD "A Arca
de Noé" de Vinícius de Moraes e o coloca no CD player do
carro. A música "Menininha" toca. João estica o braço pra
trás e faz carinho no tornozelo da filha. Maria olha para a
mão do pai e volta o rosto para a janela. João abaixa a
música.
MARIA
Por que você abaixou?
JOÃO
Por que você tá brava?
MARIA
Eu não tô brava.
João se vira pra trás e encara Maria com uma cara de quem
diz "Ah, sério?"
MARIA
Ei, olha pra frente se não a gente
pode morrer.
João se vira pra frente rapidamente e segura firme o
volante.
33.

JOÃO
Então para de ficar brava comigo.
MARIA
(Irritada)
Já disse que eu não tô brava!

JOÃO
Agora tá.
MARIA
Ai que saco você! Agora eu tô
brava.
Maria se debruça na janela enquanto a música continua ao
fundo.

MARIA
Eu não tava brava. Eu tava triste.
JOÃO
E qual a diferença de brava pra
triste?

MARIA
(Como se fosse óbvio)
Ué, brava é quando a cabeça fica
quente.

Maria põe uma mão na parte de trás da cabeça.


JOÃO
E triste?
MARIA
Triste é quando dá vontade de
chorar. O coração fica frio.
Maria leva a mão de trás da cabeça para o lado esquerdo do
peito.

JOA˜O
Mas dá pra chorar de alegria
também, né?
MARIA
Eu nunca chorei de alegria. Isso
deve ser coisa de adulto.
Pausa enquanto a música toca ao fundo.
João volta a esticar o braço para fazer carinho em Maria.
Ela tira o cinto, levanta e desvia da mão dele. Maria se
34.

estica até o painel do carro, aumenta o volume da música e


se senta de novo. Ela pega a mão de João e coloca no
tornozelo dela. Os olhos de João se enchem de lágrimas e ele
intensifica o carinho na filha.

EXT. CARRO DE JOÃO/ RODOVIA - NOITE


Ouvimos apenas canção de Vinicius de Moraes tocar.
O carro de João, distinguível apenas pelos faróis ligados,
acelera pela escuridão da estrada.

FIM DA MÚSICA
INT. QUARTO DE HOTEL - NOITE
João entra no quarto com Maria dormindo agarrada ao seu
pescoço. Duas malas em uma mão, a cesta com ovos e o monstro
de pelúcia rosa na outra.
JUMP CUT
Maria está sentada meio dormindo na beira da cama de casal,
a única do quarto. João veste o pijama nela e ela rasteja
para debaixo do cobertor se deixando adormecer logo em
seguida.
EXT. CASA DE ANNA/ QUINTAL - DIA

O quintal parece igual antes, portanto agora não há nenhuma


planta e o galinheiro está vazio, há apenas terra. Maria,
Ola e Mariusz rolam pela terra, brincando como porcos. Ola
se levanta e corre até o galinheiro. Mariusz segura na mão
de Maria e os dois correm atrás de Ola.

Ola anda pelo galinheiro como se estivesse procurando as


galinhas. Mariusz entra no galinheiro e começa a ajudar Ola
a procurar. Eles cavam buracos com as mãos. Maria entra pelo
portãozinho do galinheiro e vai até o fundo aonde estão os
ninhos. Há um OVO solitário que Maria pega. Ela se vira para
mostrá-lo para os gêmeos e vê a GALINHA MORTA DEPENADA
pendurada. Ela se assusta e derruba o ovo que se quebra na
queda. Maria encara o ovo esparramado e os gêmeos olham para
ela assustados.
MARIA
Nie, nie, nie...
35.

INT. QUARTO DE HOTEL - DIA


Maria abre os olhos deitada na cama. Ao seu lado João dorme
profundamente. Ela se levanta e começa a andar pelo quarto
como que inspecionando-o.

INT. QUARTO DE HOTEL/ BANHEIRO - DIA


Maria toma um banho escaldante em meio ao nevoeiro formado
no pequeno banheiro.

EXT. QUARTO DE HOTEL - DIA


Maria, já vestida para sair, arrasta os dedos pela barba por
fazer de João que ainda dorme. Ele se vira para o outro lado
na cama e coça o rosto.

MARIA
Tá na hora de acordar.
João apenas murmura. Maria sobe na cama e começa a pular.
EXT. CRACÓVIA/ PRAÇA CENTRAL - DIA

A praça central da cidade antiga é rodeada de prédios


coloridos reformados após a guerra. Maria corre no meio de
um bando de pombos que saem em revoada. João lê o guia de
viagens da Polônia e olha ao seu redor. Ele tira um PACOTE
DE BISCOITOS da MOCHILA e come um. Uma ARTISTA DE RUA faz
bolhas de sabão gigantes com uma corda amarrada entre dois
gravetos e um balde de água e sabão. Maria estoura as
bolhas. A artista mostra para Maria como fazer uma bolha.
Maria levanta os gravetos e os movimenta, a bolha começa a
se formar mas estoura antes de sair voando. Maria devolve os
gravetos para a artista e a observa intensamente enquanto
ela faz uma enorme bolha, que sai flutuando pela praça.
EXT. CRACÓVIA/ MERCADO DE RUA - DIA
Maria e João passam pelas barracas do mercado central de
Cracóvia olhando os diversos produtos: Souvenires, roupas,
iguarias, chocolates, frutas.
MARIA
Pai, que que minha mãe fazia?

JOÃO
Você diz trabalho? Eu não sei o que
ela fazia na Polônia, filha. Mas no
Brasil ela tomava conta de você.
João acaricia a barriga como se estivesse "grávido".
36.

MARIA
Mas o que que ela queria ser,
então? Atriz? Motorista de
caminhão? Professora, igual você?

JOÃO
(Rindo)
Eu não acho que ser professora de
português era o sonho da vida dela
não.

Maria o encara séria e João para de rir imediatamente.


JOÃO
Tô brincando. Eu não sei filha.
Desculpa.

MARIA
Vocês não conversavam nunca?
JOÃO
Sim, conversávamos. Mas por algum
motivo, sobre esse assunto
específico a gente nunca falou.
MARIA
Mm Hm... E você também nunca me
falou por que que ela foi pro
Brasil.

João para em uma das bancas do mercado que vende cartões


postais. Ele pega um e finge interesse. João devolve o
cartão ao seu lugar e continua andando. Ele come um biscoito
do pacote.

MARIA
Que que ela foi fazer lá no Rio,
pai?
João passa os dedos entre os cabelos.

JOÃO
Filha, a gente também não falou
muito sobre isso.
MARIA
Então sobre o QUE que vocês
falavam?
JOÃO
(Pressionado)
Ah... Eu não sei Maria. Sobre você,
sobre o presente, sobre as coisas
37.

JOÃO
que ela via no Rio, sobre a vida
dela lá. Das comidas, das praias.

MARIA
Qual era a praia preferida dela?
JOÃO
Ela sempre queria ir
pra Copacabana. Mas so´ quando tava
cheio. Se tivesse vazia ela so´ ia
colocar o pe´ na a´gua e ia embora,
nunca entendi.
MARIA
E a comida favorita dela era açaí,
igual eu!
JOÃO
Sim, ela comia açaí o tempo todo
durante a gravidez.

MARIA
E qual a bebida favorita dela?
JOÃO
Bebida favorita? Deixa eu pensar...

MARIA
Aposto que era suco de maracujá,
igual eu também, né?
João acena positivamente com a cabeça e sorri. Ele mostra o
pacote de biscoitos para Maria.
JOÃO
Quer um?
MARIA
Não, brigada. Mas agora eu fiquei
com vontade de ir pra praia tomar
açaí.
JOÃO
Ixe filha, açaí por aqui vai ser
difícil, praia então... nem se
fala. Mas eu tenho uma surpresa pra
você. Vem.
38.

EXT. CRACÓVIA/ CASTELO DE WAWEL - DIA


João conduz Maria tapando os olhos dela. Eles param em
frente ao muro do castelo.
MARIA
Vai pai, mostra logo.
JOÃO
Você tá pronta?

MARIA
Sim!
JOÃO
De verdade?

MARIA
De verdade!
JOÃO
Verdade verdadeira ou verdade
mentirosa?

MARIA
Verdade verdadeira. Vai logo!
Maria tira as mãos de João da frente de seus olhos e o que
está diante de seus olhos lhe deixa boquiaberta.

MARIA
Um castelo? De verdade?
JOÃO
Verdade verdadeira. Chama castelo
de Wawel.
Maria e João encaram diminutos o imponente castelo.
MARIA
A gente pode entrar?

JOÃO
Me digais vós, majestade.
Maria entra correndo pelo portão.
39.

INT. CRACÓVIA/ CASTELO DE WAWEL/ DIVERSOS SALÕES - DIA -


MONTAGEM
Maria e João andam pelos diversos salões e quartos do
castelo.

A. No SALÃO DE ARMADURAS Maria luta contra armaduras vazias


com sua espada invisível. João pega um biscoito no pacote e
um segurança chega para ele e aponta uma placa com o símbolo
de proibido alimentos. João se desculpa e guarda o pacote na
mochila.

B. Ainda no salão de armaduras Maria se ajoelha em frente a


João que finge dar-lhe o título de cavaleira.
C. No SALÃO DE ROUPAS Maria olha maravilhada os enormes
vestido da era medieval e sai girando pelo salão dançando
uma valsa imaginária.
FIM DA MONTAGEM
EXT. CRACÓVIA/ CASTELO DE WAWEL/ PÁTIO - DIA

Maria corre pelo pátio cheio de energia. João anda


contemplando os detalhes da curiosa construção. Maria se
aproxima de João ofegante.
MARIA
Ser a princesa no castelo devia até
ser legal mas ficar aqui a vida
inteira esperando o príncipe
encantado chegar devia ser muito
chato. Se eu fosse a princesa eu ia
embora lutar eu mesma contra os
dragões!
JOÃO
Fácil falar. Queria ver você de
frente com um dragão.

MARIA
Eu não tenho medo de dragão nenhum.
JOÃO
Que bom, porque eu tenho!

João aponta para a entrada do castelo aonde a estátua do


dragão de Wawel cospe fogo. Maria solta um grito de guerra e
saca sua espada invisível. Ela corre até a estátua e a ataca
com golpes invisíveis. João tira a câmera do bolso e tira
uma foto de Maria brincando.
40.

EXT. PAISAGENS DO SUL POLONÊS - DIA


Vemos diversas imagens da paisagens montanhosas do sul da
Polônia com diferentes vilazinhas no horizonte.
EXT. RUA "UL. MIODOWA"/ CASA DE ANASTAZJA - DIA

O carro alugado de João estaciona na frente da casa. Maria


desce do carro com o pacote de biscoitos. João desce do
carro.

JOÃO
Deixa o biscoito no carro. Tá quase
na hora do almoço.
MARIA
Último.

Maria tira um biscoito e joga o pacote no banco de trás,


fechando a porta em seguida. Vemos a cesta com os ovos no
banco do passageiro. João tranca o carro, pega a mão de
Maria e os dois andam em direção a porta.

MARIA
Pai, espera.
Eles param no meio do caminho.
JOÃO
Que foi, Maria?
Maria chama João para perto com o dedo indicador e João
chega perto.
JOÃO
Fala.
Maria puxa a camisa de João para baixo e ele se agacha.
MARIA
Pai, vamos voltar lá praquela
cidade e passar a páscoa lá? Lá era
mais legal. Aqui é chato. Eu não
quero ficar só brincando com
galinha.

JOÃO
Que história é essa Maria? A gente
não veio aqui pra brincar né?
Silêncio.
41.

MARIA
E se ela não quiser me conhecer?
JOÃO
Claro que quer, Maria. Você leu a
carta.

MARIA
E se o moço que traduziu a carta,
traduziu ela errado e ela
disse "Por favor, NÃO venha para
ca´".
JOÃO
Qual o sentido disso, Maria?
Maria dá de ombros.

JOÃO
Uma menina maravilhosa, amável,
inteligente, linda. Quem não ia
querer conhecer?

MARIA
Não é verdade.
JOÃO
O que?

MARIA
Eu sou má. É por isso que ela não
quer me conhecer.
JOÃO
Como assim? Má?

MARIA
Eu matei a minha mãe, pai. Eu matei
a filha dela.

Maria aponta pra casa com a mão que está segurando o


biscoito deixando ele cair. Ela começa a chorar.
JOÃO
O que? Do que que você tá falando,
Maria? Quem te falou isso?

MARIA
Desculpa pai. Eu sou má.
Neste momento ANASTAZJA, 70 anos, desce a rua arrastando os
pés o mais rápido que pode carregando sacolas de papel
cheias de compras. Ela está vestida como se fosse a um
42.

jantar chique com roupas antiquadas. Seus cabelos grisalhos


estão amarrados em um coque sobre a cabeça. Ela se move como
alguém que não aceita a chegada da idade avançada.
Ao notá-la João se levanta e vai rapidamente até ela. Antes
que ele possa estender os braços para pegar as compras,
Anastazja já está lhe entregando as sacolas.
ANASTAZJA
(Ofegante)
Dzi˛
ekuj˛
e.

Ela sorri para João enquanto tenta recuperar o fôlego.


Anastazja nota Maria limpando as lágrimas em frente a casa e
rapidamente tira um LENÇO da BOLSA e vai até Maria. Ela
começa a limpar as lágrimas de Maria sem cerimonia. Maria
olha para o chão envergonhada. Anastazja se levanta de
repente, como quem acaba de se lembrar de algo importante e
vai até a porta de casa procurando as chaves na bolsa. Ela
as encontra e abre a porta da casa balançando a mão para que
Maria e João entrem.
João entra rapidamente com as compras e Maria olha
hesitante. Anastazja sorri e entra na casa deixando a porta
aberta. Maria entra na casa e fecha a porta atrás de si.
Um passarinho pousa e começa a bicar o biscoito que Maria
deixou cair em frente a casa.

INT. CASA DE ANASTAZJA/ SALA DE ESTAR - DIA


A casa, assim como a de Anna, é antiga mas espaçosa e também
é mobiliada com antigos móveis comunistas porém em tons
claros. A sala é bem iluminada. Tem um piano em um canto e
uma TV em frente ao sofá no outro. Na mesa de centro há um
bule e uma xícara meio cheia de chá. Do lado do sofá um
telefone está fora do gancho pendurado em uma mesinha.
Anastazja cata uma almofada que está no chão, dá uns tapas
para tirar poeira e a joga no sofá. Em seguida ela coloca o
telefone de volta no gancho. Maria apenas observa tudo em
frente a porta de entrada. Anastazja vai até ela, aponta
para os sapatos da menina, pega um par de pantufas de um
móvel para sapatos ao lado da entrada e as entrega para
Maria. Anastazja recolhe o bule e a xícara de chá e se
retira de cena.
43.

INT. CASA DE ANASTAZJA/ COZINHA - DIA


João tira as compras da sacola e as coloca sobre o balcão da
cozinha. Anastazja entra na cozinha com as louças de chá.
Ela faz tudo em ritmo frenético colocando João em um estado
de urgência. Anastazja cutuca João para que ele deixe as
compras para ela. João se nega e continua a desempacotá-las.
INT. CASA DE ANASTAZJA/ SALA DE ESTAR/ COZINHA - DIA
Maria está tirando seus tênis e colocando as pantufas que
lhe servem perfeitamente. Ela anda pela sala olhando cada
detalhe. Ela para em frente a um aparador com diversas
fotos. Ela olha uma foto P&B da uma jovem Anastazja com um
jovem rapaz de terno, ambos olham para a câmera em poses
desconfortavelmente formais. Ao lado dessa foto Maria vê a
foto do mesmo rapaz agora sozinho, porém na mesma pose e ao
lado desta foto a foto do Papa João Paulo II. Mas a foto que
faz Maria estacionar o olhar é a de uma menina, mais ou
menos da sua mesma idade, em sua primeira comunhão sorrindo
para a câmera. O sorriso é inconfundivelmente igual ao de
Maria.

JOÃO (O.S.)
Nossa, o sorriso era igual mesmo.
Maria se assusta com a chegada repentina de João. Ela
continua andando pela sala fingindo desinteresse no pai. Ela
levanta a tampa do piano e toca uma nota.

Anastazja entra na sala vestindo um avental e carregando o


bule de chá com duas xícaras. Ela os coloca na mesa de
centro, limpa as mãos no avental e vai até João,
estendendo-lhe a mão.

ANASTAZJA
Anastazja.
João aperta a mão dela.

JOÃO
João.
Anastazja vai até Maria que olha o piano fingindo interesse.
ANASTAZJA
Cześć, Maria (pronunciando mÁria)
MARIA
Maria. (ênfase em marÍa)
44.

ANASTAZJA
(Desculpando-se)
Przepraszam. Maria. (ênfase em
marÍa)

Anastazja aponta para si mesma.


ANASTAZJA
Babcia Anastazja.
Maria apenas balança a cabeça evitando encará-la. Anastazja,
novamente como se houvesse lembrado de algo importante, vai
até a mesa de centro e serve as duas xícaras. Ela aponta
para as xícaras e depois ao sofá.
ANASTAZJA
Maria, João, prosz˛
e.

Os dois sentam-se afastados no sofá. Anastazja serve as


xícaras com chá e em seguida vai até a cozinha trazendo um
vidro com mel e alguns biscoitos em um prato. Ela os coloca
sobre a mesa, e serve uma colher de mel em cada xícara.
Maria olha o chá com estranhamento. Anastazja aponta para a
xícara.
ANASTAZJA
Herbata.
Anastazja volta para a cozinha.

MARIA
Herbata? Que que é isso?
JOÃO
Chá.
MARIA
Eco. Não vou beber não.
JOÃO
Prova pelo menos, ué.
Maria balança a cabec¸a negativamente. João pega um biscoito,
molha no chá e come.
JOÃO
Mm... que delícia. Prova.
Ele molha outro biscoito e coloca na boca de Maria que
hesita mas dá uma mordida.
45.

JOÃO
Gostou?
Maria estica o braço e pega mais um biscoito, molha-o no chá
e come. Ela se ajeita mais confortavelmente no sofá enquanto
come. Um som na cozinha. Maria olha para a cozinha.

Maria se levanta do sofá e vai até a porta da cozinha. Ela


vê Anastazja cortando batatas. Anastazja nota estar sendo
vigiada e se vira para ver quem é. Maria fica vermelha de
vergonha e se vira para a sala de novo rapidamente. Maria
anda em direção ao resto da casa.
JOÃO
Tá indo aonde?
MARIA
Ver o resto da casa.
JOA˜O
Termina o chá primeiro.
Tarde demais. Maria já adentra o corredor.

INT. CASA DE ANASTAZJA/ CORREDOR- DIA


O estreito corredor leva ao banheiro e outros 3 quartos.
Maria passa pela primeira porta que está aberta e vê um
quarto de hóspedes. Em seguida o banheiro. Ela segue até uma
porta fechada. Maria abre a porta e encontra um quarto
arrumado e decorado como que para uma menina. Ela entra no
quarto.
INT. CASA DE ANASTAZJA/ QUARTO DE NATASZA - DIA

O quarto tem apenas um pequeno armário de madeira, a cama,


que está arrumada com um jogo de cama branco e uma
penteadeira. Maria senta-se na cadeira em frente a
penteadeira e se olha no espelho tentando imitar a pose e o
sorriso da menina da foto na primeira comunhão. Ela se
levanta e deita-se na cama. Ela olha ao seu redor por alguns
instantes até que seus olhos vão se fechando. Maria
adormece.
FADE OUT

INT. CASA DE ANASTAZJA/ QUARTO DE NATASZA - DIA


João está sentado na beira da cama acariciando os cabelos de
Maria. Maria abre os olhos e como quem acaba de acordar de
um transe ela olha ao seu redor buscando se localizar.
46.

JOÃO
Achei que você tinha dormido bem
naquela camona de hotel.
Maria apenas suspira profundamente, ainda acordando.

JOÃO
Mas vem, vamos comer. Ela fez um
verdadeiro banquete pra gente.
João se levanta e vai saindo do quarto...

MARIA
Pai, eu não queria matar minha mãe.
Eu juro.
João se vira de volta pra Maria em um susto.

JOÃO
De onde você tirou essa besteira?
Como que você ia matar alguém?
MARIA
Mas ela morreu quando eu nasci e
vocês nem queriam me ter. Você nem
amava ela.
João senta-se na cama.

JOÃO
Maria, isso não teve nada a ver com
você. Eu te amei desde o primeiro
segundo quando eu soube que você
viria ao mundo e eu vou te amar pra
sempre. (beat) E eu tenho certeza
que a sua mãe também amaria.
MARIA
Como você sabe? Você não sabia nada
dela. É por isso que você nunca me
contou nada dela, é porque você não
sabe nada.
Maria se levanta da cama e sai do quarto, deixando João
sentado na cama sem reação.

INT. CASA DE ANASTAZJA/ COZINHA - DIA


A mesa está posta como que para uma ocasião especial. Os
talheres são prateados, daqueles que só se usa em ocasiões
especiais. Anastazja está polindo uma FACA com um PANO.
Maria entra na cozinha e Anastazja deixa a faca sobre o
balcão. Ela limpa as mãos em seu avental e puxa uma cadeira
47.

para Maria. Maria olha curiosa para as diversas travessas


fumegantes sobre a mesa.
ANASTAZJA
(Apontando cada travessa)
Pierogi. Sałatka. Zupa dyniowa.

Maria se ajoelha na cadeira e aponta para uma pequena tigela


com cebolas fritas.
MARIA
Cebola.
ANASTAZJA
Tak! Cebula.
Anastazja se apressa em servir o prato de Maria com pequenos
pasteis cozidos (pierogis) colocando um pouco de cebola em
cima. Ela pega uma pequena tigela e comec¸a servir sopa de
abóbora (zupa dyniowa). Maria tem calafrios e faz cara de
nojo olhando para o creme alaranjado.
MARIA
Nie!
Anastazja para de servir.
ANASTAZJA
Nie?

MARIA
Nie.
Anastazja seve a tigela mesmo assim e a coloca em frente a
Maria que cheira a sopa. Anastazja pega uma travessa com uma
espécie de maionese (sałatka) e serve o prato de Maria que
coloca o Nariz bem perto cheirando-a também. Anastazja
observa a neta com um sorriso, limpa as mãos no avental, o
pendura atrás da porta e se senta.

ANASTAZJA
Smacznego!
Maria só olha confusa.
ANASTAZJA
Bon appétit.
A palavra mágica. Maria avança na comida. Uma garfada na
salada, depois já corta o pierogi enquanto mastiga,
enfiando-o na boca em seguida.
48.

MARIA
(De boca cheia)
Mm... Delícia.
ANASTAZJA
(Fazendo positivo com o dedão)
Dobre?
MARIA
Tak!

Anastazja ri surpresa com a curta mas clara comunicação


entre as duas. Maria continua comendo e a avó só assiste.
Maria para por um momento.
MARIA
(Olhando o prato)
Desculpa.
Maria coloca os talheres na mesa. Anastazja entende que
Maria quer mais e serve mais um pierogi em seu prato.

MARIA
Voceˆ deve achar que e´ minha culpa
que minha ma˜e morreu. Mas eu juro
que na˜o e´. Eu nem pedi para
nascer.

Maria olha temerosa para avó que só a encara sorrindo.


Anastazja começa a servir mais salada para Maria.
MARIA
DES-CUL-PA. Entendeu?

Anastazja ri como se Maria estivesse contando alguma


história fofa.
JOÃO
Ah legal que vocês começaram sem
mim.

Maria toma um susto, pega os talheres e volta a comer


fingindo que não estava dizendo nada. Anastazja começa a
servir o prato de João que tenta impedi-la delicadamente mas
ela só o ignora. João se senta, aceitando a cortesia e
Anastazja coloca o prato servido a sua frente. Anastazja se
senta novamente.
ANASTAZJA
Smacznego!

João apenas sorri educadamente tentando parecer que


entendeu.
49.

MARIA
Siginifica bom apetite.
JOÃO
Aha... Smacznego. (terrível
pronúncia)

MARIA
É smacznego. (pronúnica quase
perfeita)

Anastazja ri empolgada com a sagacidade de Maria.


JUMP CUT
Anastazja está com o avental lavando as louças. João leva
seu prato até a pia e tenta lavá-lo mas Anastazja o tira de
sua mão. Ele coloca as mãos juntas como quem diz "Por favor"
mas ela manda ele sair da cozinha.
INT. CASA DE ANASTAZJA/ SALA DE ESTAR - DIA
Maria está novamente em frente ao aparador com as fotos. Ela
pega a foto da primeira comunhão e vai até a cozinha.
INT. CASA DE ANASTAZJA/ COZINHA - DIA
Maria entra com o porta-retratos em ma˜os e mostra para
Anastazja que para de lavar a louc¸a e limpa as ma˜os em seu
avental. Anastazja pega o porta-retratos. Ela se agacha e o
coloca perto do rosto de Maria comparando os dois. João
assiste tomando um chá à mesa.
ANASTAZJA
Moje ksi˛
eżniczki.

MARIA
Você tem outras fotos da minha mãe?
Anastazja olha para ela sem entender.

MARIA
OU-TRAS-FO-TOS.
Maria aponta para o retrato.

MARIA
DA-MI-NHA-MÃE?
Anastazja pensa por um instante, ela olha para o relógio na
parede e parece se lembrar algo. Ela se levanta e sai da
cozinha.
50.

JOÃO
O que aconteceu?

MARIA
Não sei.
Anastazja volta com sua bolsa e o avental em mãos,
pendurando-o em seguida atrás da porta e chamando Maria e
João para ir com ela. Anastazja sai da cozinha apressada.
Maria e João se olham e a seguem em seguida.
EXT. RUA "UL. MIODOWA"/ CASA DE ANASTAZJA - DIA
Anastazja sai da casa seguida por Maria e João. Enquanto ela
tranca a porta de casa João vai até o carro e o destranca.
Anastazja vai descendo a rua ignorando o carro. Maria corre
para alcançar a avó. João tranca o carro e vai até elas.
EXT. ESCOLA/ PÁTIO - DIA
Maria, Anastazja e João chegam aos portões do terreno de uma
pequena escolinha amarela. Crianças correm e brincam de
futebol, pular corda, pega-pega.
ANASTAZJA
To szkoła Nataszy.

Maria levanta as sobrancelhas ao ouvir o nome de NATASZA.


MARIA
Natasza?
ANASTAZJA
Tak. Mama.
O muro que rodeia a escola é bem baixo. Maria se aproxima e
observa as crianças brincando. Alguém cutuca suas costas.
Ela se vira e vê Ola sorrindo também do lado de fora da
escola.
MARIA
Cześć!
OLA
Cześć!
Mariusz vem correndo pelo portão da escola e toca o ombro de
Ola. Mariusz pula por cima do muro e volta correndo para a
escola. Eles brincam de pega-pega. Ola dá dois passos para
começar a seguir Mariusz mas desiste, volta e toca em Maria,
tornando-a "o pêgo". Ola sai correndo e entra na escola pelo
portão. Maria pula o muro e corre atrás dos gêmeos pelo
pátio.
51.

Mariusz é o mais lento dos três e é facilmente alcançado por


Maria que desaparece em seguida em meio as outras crianças.
Maria vê Ola se escondendo atrás do prédio da escola,
acenando para Maria. Maria vai até ela. Mariusz está
procurando as duas do lado oposto do pátio. Ola pega na mão
de Maria e elas andam sorrateiras para dentro da escola.
INT. ESCOLA/ CORREDORES - DIA
Maria e Ola correm pelo corredor dando risadas. Maria
tropec¸a e cai. Ola não percebe e some de vista no corredor
seguinte. Maria se levanta rapidamente e olha para o
cotovelo que se ralou na queda. Ela apenas passa a mão como
quem tira a poeira e anda até o corredor seguinte mas não vê
ninguém. Ela olha para todos os lados. Os corredores estão
vazios e todas as portas estão fechadas exceto uma. Maria
vai até a porta e vê uma sala de aula vazia.

INT. ESCOLA/ SALA DE AULA - DIA


Maria entra na sala. Ao lado de cada carteira há uma mochila
e em cima livros, cadernos e lápis. Maria pega um dos lápis
e começa a fingir estar anotando algo escrito no quadro.

JOÃO (O.S.)
Como que você veio parar aqui?
João está à porta. Maria larga o lápis imediatamente e olha
para o pai com um sorriso de quem esconde que estava
aprontando. João vai até ela desconfiado e vê o cotovelo
machucado de Maria.
JOÃO
É, tava demorando já né?

João pega o brac¸o de Maria e examina o cotovelo ralado.


MARIA
Nem doeu.

JOÃO
Eu sei que não.
João lança um piscadela sarcástica de quem diz "claro que
não".

JOÃO
Mas agora vamos ali. A Anastazja
quer mostrar alguma coisa.
52.

INT. ESCOLA/ CORREDORES/ MURAL DE FOTOS - DIA


Anastazja olha as fotos e troféus expostos em uma vitrine no
corredor. Ela aponta para uma foto do grupo de coral. Maria
e João procuram Natasza. Maria aponta para uma das meninas
da ponta. Anastazja confirma com a cabeça. Anastazja aponta
para um troféu com um piano dourado e depois para uma foto
em cima dele. Maria se aproxima ainda mais da foto que
mostra Natasza tocando um piano de calda em um palco quando
criança.

MARIA
Uaaau!
Maria olha empolgada para Anastazja. Anastazja sorri mas
logo em seguida fecha os olhos e respira fundo. Ela perde o
equilíbrio e João a segura. Ele olha confuso para o corredor
vazio.
JOÃO
Vai chamar alguém, Maria!
Anastazja abre os olhos. Maria olha para os lados e corre.

ANASTAZJA
(Sem fôlego)
Maria, nie!
Anastazja acena para que Maria volte. Maria sem saber o que
fazer. Anastazja se equilibra e dá dois passos sozinha
abrindo um sorriso com dificuldades.
ANASTAZJA
Wszystko dobrze.

INT. CASA DE ANASTAZJA/ SALA DE ESTAR - NOITE


Anastazja entra em casa tira os sapatos, calça pantufas e
vai direto para a cozinha. Maria e João entram em seguida e
tiram os sapatos.

INT. CASA DE ANASTAZJA/ COZINHA - NOITE


Anastazja coloca água para ferver em uma chaleira. Joa˜o
entra na cozinha e tenta levá-la para a sala. Ela reluta mas
João insiste e vence. Os dois saem da cozinha.
53.

INT. CASA DE ANASTAZJA/ SALA DE ESTAR - NOITE


João conduz Anastazja até o sofá. Ela se senta pega uma
almofada, a coloca sobre o colo e a acaricia como um bicho
de estimação. Maria chega perto e começa a acariciar a
almofada também.

JOÃO
Pergunta se ela precisa de remédio.
MARIA
Eu?
JOÃO
É, vocÊ é melhor em mímica.
Maria abre uma mão e com a outra pega um comprimido
imaginário, coloca-o na boca, toma um copo de água
imaginário, faz uma cara de que o gosto era ruim e depois
abre um sorriso dizendo "ta dan". Anastazja força um sorriso
em meio ao desconforto.
ANASTAZJA
Nie, herbat˛
e poprosz˛
e.
Anastazja finge beber um chá de uma xícara invisível. Em
seguida ela diz "ta dan" e abre um sorriso.
MARIA
Eu acho que ela só quer um chá
mesmo.
INT. CASA DE ANASTAZJA/ COZINHA - NOITE
A chaleira assobia no fogo alto. João entra e desliga o
fogão. Maria vem logo atrás.
JOÃO
Procura o chá no armário.

Maria abre o armário e procura o chá.


INT. CASA DE ANASTAZJA/ SALA DE ESTAR - NOITE
Maria entra na sala com uma xícara fumegante e João com os
biscoitos. Anastazja não está lá. Os dois colocam os
biscoitos e o chá na mesa e vão procurá-la.
54.

INT. CASA DE ANASTAZJA/ QUARTO DE NATASZA - NOITE


Anastazja está colocando um travesseiro na fronha. Ela
coloca o travesseiro em cima da cama que agora está com
lençóis novos. Maria e João entram no quarto. Anastazja
aponta orgulhosa para a cama feita.
INT. CASA DE ANASTAZJA/ QUARTO DE ANASTAZJA - NOITE

Anastazja dorme respirando profundamente. Maria segura a mão


da avó.
MARIA
Ela tá bem, pai?

JOÃO
Eu acho que foi um dia longo pra
ela. Se eu já tô cansado imagina
ela.
João se agacha de frente para Maria.

JOÃO
Você viu o quanto ela tava animada
por você estar aqui?
Maria balança a cabeça positivamente.

MARIA
Ela é legal.
JOÃO
É sim.
João beija a cabec¸a de Maria e levanta. Os dois saem do
quarto e Maria fecha a porta.
INT. CASA DE ANASTAZJA/ QUARTO DE NATASZA - NOITE

Maria está debaixo das cobertas. João as ajeita mais


confortavelmente.
JOÃO
Tá gostando daqui.

MARIA
Talvez.
João se senta na beira da cama.

JOÃO
Passou a ansiedade?
Maria dá de ombros e olha para o teto.
55.

MARIA
(Mais para si do que para
João)
Minha mãe tocava piano. Que legal.
E ela podia ir andando pra escola
todo dia.
JOÃO
É, isso deve ser legal mesmo.
Silêncio.

JOÃO
Maria, olha pra mim.
Maria olha nos olhos de João.

JOÃO
Me promete que nunca mais fala
aquilo?
MARIA
Falar o que?

JOÃO
Que você matou a sua mãe. Você tem
razão, eu não conheci ela tão bem.
Mas eu tenho certeza que ela te
amava desde o começo.

Maria só acena com a cabeça envergonhada.


JOÃO
E eu te amo.

MARIA
Também te amo.
JOÃO
Boa noite.

João beija a testa da filha e se levanta.


MARIA
Pai!

JOÃO
Que foi?
MARIA
E os ovos?
56.

JOÃO
Eita, é verdade. Quase esqueci.
Pode deixar que eu pego eles agora
e deixo na cozinha.
MARIA
Tá bom. Cuidado pra não quebrar.
JOÃO
Pode deixar. Boa noite.
MARIA
Boa noite.
João sai do quarto e Maria fica olhando para o teto. O
quarto está em completo silêncio mas é possível ouvir o
vento que chacoalha as árvores do lado de fora. Maria se
vira para a porta e a encara. Maria luta para não fechar os
olhos, mas logo adormece.
INT. TEATRO

Um pequeno teatro. Não há ninguém na audiência. No palco um


piano de calda é iluminado por um forte spot de luz. Maria
entra no palco trajando um fraque e começa a tocar uma
complexa peça no piano. Maria olha para a plateia vazia
procurando alguém. Ela para de tocar mas a música continua
saindo do piano. Ela se levanta e vai até a fileira do meio
do teatro, se senta em uma poltrona e assiste ao concerto do
piano vazio. Ela vira a cabeça para ver se ninguém entrou no
teatro que continua vazio e volta a assistir o concerto.

INT. CASA DE ANASTAZJA/ QUARTO DE NATASZA - DIA


O canto do galo da casa da vizinha, Anna preenche o quarto.
Maria abre os olhos preguic¸osamente na cama e se espreguiça.
INT. CASA DE ANASTAZJA/ COZINHA - DIA

Anastazja aparenta estar bem e prepara panquecas na


frigideira. Maria entra na cozinha descabelada e coçando os
olhos de sono. Anastazja nota a neta, limpa as ma˜os no
avental e rapidamente coloca uma pilha de panquecas prontas
em um prato sobre a mesa posta.

ANASTAZJA
Dzień dobry, kochana.
MARIA
Bom dia.

Maria senta-se à mesa e Anastazja coloca duas panquecas da


pilha no prato de Maria e passa geléia de morango sobre
elas. Ela pega um bule e serve chá em uma xícara para Maria.
57.

MARIA
Chá de novo?
Anastazja para de servir e aponta para o bule.
ANASTAZJA
Co? Nie?
Maria pensa.
MARIA
Ok, tak!
Anastazja volta a servir e aponta para o líquido.
ANASTAZJA
Herbata.

MARIA
Herbata. (quase sem acento)
ANASTAZJA
Dobrze! Herbata.

Após terminar de servir Anastazja corre até o fogão e vira


uma panqueca na frigideira. Ela desliga o fogão e coloca a
panqueca na pilha sobre a mesa. Ela vai à geladeira e pega
um prato com fatias de presunto e queijo e também os coloca
na mesa ao lado de um cesto de pães.

MARIA
Cadê meu pai?
Anastazja olha Maria sem entender.

MARIA
Meu. Pai. Papai. João.
ANASTAZJA
Aha! João.

Anastazja faz uma mímica de alguém dormindo.


ANASTAZJA
Spi.

MARIA
Spi? Mm... claro que ele ainda tá
dormindo.
Anastazja aponta para Maria.
58.

ANASTAZJA
A ty? Dobrze spałaś?
MARIA
O que?

Anastazja repete a mímica de alguém dormindo, aponta para


Maria e depois faz o sinal de positivo com o dedão.
ANASTAZJA
Dobrze?

Anastazja vira o dedão pra baixo.


ANASTAZJA
Niedobrze?

MARIA
(Quase fluente)
Dobrze.
Anastazja ri da esperteza da neta e Maria come a panqueca.

INT. CASA DE ANASTAZJA/ SALA DE ESTAR - DIA


Maria está sentada no sofá vendo televisão. Anastazja vem da
cozinha trazendo a cesta com ovos.
MARIA
Ah, os ovos!
Anastazja coloca a cesta na mesa de centro. E sai da sala.
Maria confere se Anastazja já saiu da sala e olha cada um
dos ovos na cesta para ver se na˜o quebraram. Anastazja
volta com um jornal e uma caixa de sapato. Ela levanta a
cesta e cobre a mesa com jornal. Anastazja coloca o cesto e
a caixa de sapato sobre a mesa. Maria abre a caixa de sapato
e encontra potes de tinta e pincéis. Anastazja pinta um dos
ovos mostrando para Maria como fazer. Maria pega um ovo e as
duas pintam os ovos juntas.

INT. CASA DE ANASTAZJA/ COZINHA - DIA - MONTAGEM


A. Maria está usando um pequeno avental puído. Ela está em
pé em uma cadeira perto da bancada da cozinha e se esforça
em meio a grunhidos para amassar uma massa branca em uma
travessa. Anastazja fatia um repolho roxo em uma tábua de
madeira enquanto ri do esforço de Maria.
B. Maria achata a massa com o rolo de massa. Anastazja mexe
batatas que flutuam em uma panela com água fervendo no
fogão.
59.

C. Maria tenta fazer um pastel com um círculo de massa e


recheio de purê de batatas. Ela faz com muito cuidado mas o
resultado não e´ muito bonito. Anastazja também faz um
pastel mas o seu sai uma perfeita meia-lua. Maria faz uma
cara de desapontada, Anastazja sorri e pega na mão de Maria
conduzindo ela por todo o processo novamente. Maria olha os
detalhes da mão enrugada da avó. Maria tenta novamente
sozinha e faz bem melhor.

D. Anastazja despeja uma massa de bolo em uma travessa e


Maria assiste. Em seguida Anastazja leva a travessa ao
forno.
E. Anastazja segura um embrulho de papel amarrado com uma
corda. Ela o abre o embrulho. Dentro há salsichas e um naco
de presunto. Maria os cutuca com certo nojo. Anastazja corta
um pedaço do presunto rindo e o dá para Maria que come com
cautela. Ela sorri, não contendo a surpresa por ter gostado.
F. Várias travessas de comida estão sobre a mesa, junto com
a cesta com os ovos pintados. Anastazja tira os ovos do
cesto, deixando apenas três. Ela forra a cesta com um
elegante guardanapo dourado, em seguida pega um pedaço de
presunto, uma salsicha, um pedaço de bolo, uma fatia de pão
e os organiza no cesto. Maria muda a organização da cesta ao
seu gosto. Anastazja cobre a cesta com um pano.

FIM DA MONTAGEM
João entra na cozinha ainda meio dormindo, cego pela luz.
Anastazja está lavando as louças e passando para Maria que
as enxuga com um pano e as guarda no armário.

ANASTAZJA
Dzień dobry.
MARIA
Dzień dobry.

JOA˜O
Bom dia.
João se espreguiça e coça os olhos. Ele fica boquiaberto com
a quantidade de comida sobre a mesa.

JOÃO
Quantas pessoas vem comer aqui
hoje?
MARIA
Não sei.
A campainha toca.
60.

JOÃO
Vamos descobrir agora então.
Anastazja se vira surpresa, limpa as mãos no avental e vai a
sala ver quem é.

MARIA
Quem é?
JOÃO
Ué, não sei.

Maria e João saem da cozinha atrás de Anastazja.


INT./EXT. CASA DE ANASTAZJA/ SALA DE ESTAR - DIA
Anastazja olha pela janela e dá um longo suspiro ao ver o
DR. SIERAKOWSKI, um elegante médico já depois dos quarenta
mas de feições joviais. Ele está à porta segurando uma
MALETA DE COURO. Atrás dele uma AMBULÂNCIA está estacionada
na rua com dois paramédicos do lado de fora. Anastazja abre
a porta.

ANASTAZJA
Dzień dobry, Panie Sierakowski.
DR. SIERAKOWSKI
Dzień dobry, Pani Wachowska.

Eles se encaram em silêncio. O médico limpa o suor da testa


com a manga da camisa e dá um passo à frente, se convidando
para entrar mas Anastazja não se move. Dr. Sierakowski força
uma tosse, limpando a garganta. Anastazja se vira para a
sala e vê Maria observando tudo curiosa. Anastazja se vira
novamente para o médico que limpa a garganta novamente,
dessa vez bem menos discreto. Anastazja abre a porta
completamente e abre caminho para o médico entrar. Dr.
Sierakowski para diante da inesperada presença de Maria e
João ainda em seus pijamas. Ele estica a mão para João.

DR. SIERAKOWSKI
Dzień dobry.
João aperta a mão do médico e acena com a cabeça.
DR. SIERAKOWSKI
(Para Maria)
Dzień dobry.
MARIA
Dzień dobry.
61.

Maria abre um sorriso educado que pega Dr. Sierakowski de


surpresa. Ele esbugalha os olhos e se vira para Anastazja
sem mudar a expressão de surpresa.
ANASTAZJA
(Apontando para Maria)
Maria.
Dr. Sierakowski se vira novamente para Maria, sua expressão
inalterada.

JUMP CUT
Maria está sentada na poltrona assistindo TV enquanto João e
o Dr. Sierakowski estão sentados lado a lado no sofá. João
está completamente à vontade como se estivesse em casa e o
médico completamente rígido com sua maleta no colo. Os olhos
do Dr. Sierakowski vão e voltam da foto da primeira comunhão
para Maria.
Anastazja entra na sala com o bule e o coloca sobre a mesa
de centro, já com as xícaras e pires.

JUMP CUT
Anastazja está sentada no sofá com um ESFIGMOMANÔMETRO
inflando em seu braço. Dr. Sierakowski está sentado em uma
cadeira da cozinha a sua frente com um ESTETOSCÓPIO em volta
do pescoço. Eles conversam enquanto o médico infla ar com
uma bombinha no esfigmomanômetro. O médico em tom de
reprovação e Anastazja responde como uma criança se
explicando. Maria observa o procedimento médico enquanto
João, sentado na poltrona com Maria em seu colo, tenta
entender a conversa.

O Dr. Sierakowski abre a válvula da bomba de ar. O som do ar


esvaziando preenche a sala. O médico coloca o estetoscópio
ouvido e escuta o intervalo do fluxo sanguíneo no brac¸o de
Anastazja. Ele balança a cabeça em desapontamento. Ele
coloca sua mão na testa de Anastazja para sentir sua
temperatura. Em seguida ele pede que ela respire fundo,
segure e solte o ar. Anastazja segue as instruções.
O Dr. Sierakowski pergunta alguma coisa para Anastazja que
se levanta sai da sala e volta com uma caixa de remédio. O
médico analisa a embalagem e faz novamente o sinal de
desapontamento com a cabeça. Ele se levanta e diz algo em
tom sério para Anastazja. Anastazja vai até a cozinha e o
médico a segue. Os dois começam um diálogo acalorado.
Maria e João só escutam sentados na sala. O Dr. Sierakowski
volta e guarda o aparelho em sua maleta Anastazja espera na
porta da cozinha. O Dr. Sierakowski fala algo bem devagar,
62.

vai até Anastazja e dá o braço para que ela o acompanhe.


Anastazja olha para Maria que observa tudo sem entender.
Anastazja segura no braço do médico. Eles começam a andar
até a porta.

Maria se levanta e vai até a avó. Ao chegarem na porta o


médico a abre e os paramédicos que reclinam relaxados contra
a ambulância ficam em prontidão. Anastazja solta o braço do
Dr. Sierakowski. Ela puxa Maria para perto e seus olhos se
enchem de la´grimas. Anastazja diz algo para o médico que
olha para Maria e depois para Anastazja. Ele respira fundo,
abre sua maleta e tira um frasco de remédio. Ele o entrega
para Anastazja e dá instruções de como usá-lo.
ANASTAZJA
Dzi˛
ekuj˛
e. Do widzenia.

Dr. Sierakowski acena a cabeça, inseguro de sua decisão.


DR. SIERAKOWSKI
Do widzenia.
Ele se agacha e olha Maria nos olhos.

MARIA
Pa.
DR. SIERAKOWSKI
Pa.

Ele se levanta, acena adeus para João e volta para a


ambulância. Anastazja fecha a porta e começa a tossir sem
parar, a tosse que havia segurado até agora. Ela se senta no
sofá. João vai até a cozinha e volta com um copo d’água. Ele
o entrega para Anastazja e ela toma alguns goles entre
tossidas. Ela toma uma pílula do frasco que Dr. Sierakowski
a entregou.
MARIA
Pai, que que aquele médico tava
fazendo aqui? Ela tá doente?
JOÃO
Eu não sei, filha.
Anastazja para de tossir e sorri tentando parecer bem. Ela
se levanta, João tenta fazer com que ela se sente de novo
mas ela se nega com um sorriso no rosto.
ANASTAZJA
Wszystko dobrze.

Anastazja anda até a cozinha.


63.

INT. CASA DE ANASTAZJA/ COZINHA - DIA


Maria, João e Anastazja sentam-se à mesa. Anastazja serve um
prato para Maria. João tenta tirar a colher dela para servir
o prato mas Anastazja balança a cabeça como quem diz "Não
precisa". Ela coloca o prato em frente a Maria.

MARIA
Smacznego.
ANASTAZJA
Smacznego.
JOÃO
(Com péssima pronúncia)
Smacznego.

Maria e João comem vorazes.


MARIA
Então, amanhã já é páscoa?
JOÃO
É sim, mas já vou avisando que o
coelhinho da páscoa não vem até a
Polônia.
MARIA
Pai, eu sei que é você que compra
os ovos e esconde. Ainda dá tempo
de comprar hoje, não dá?
JOÃO
(Rindo)
Comprar aonde? Só se a galinha da
vizinha botar ovo de chocolate
agora.
MARIA
Ué aqui não tem shopping ou
supermercado?
JOÃO
A gente teria que voltar para
Cracóvia. (beat) Maria a gente já
deu a volta nessa vila inteira umas
três vezes. O máximo que tem aqui é
aquele mercadinho. Não tem nada pra
fazer aqui que você já não tenha
visto.
64.

MARIA
Sério? Não tem cinema aqui?
JOÃO
(Rindo)
Filha, a vida aqui é isso.

MARIA
Todo dia casa e escola?
JOÃO
E brincar na rua. Não tem video
game, cinema ou praia. Comprar
brinquedo novo no shopping todo fim
de semana nem pensar.
MARIA
Que chato. Por isso que minha mãe
foi pro Rio.
João olha para Anastazja e sua expressão descontraída muda
para preocupada.

JOÃO
Maria...
João aponta para Anastazja que está olhando distraída para o
prato com a comida que mal foi tocada.

JUMP CUT
Apenas Maria e João na cozinha. Maria está em pé em uma
cadeira perto da pia lavando as louças usando o pequeno
avental puído e João está recolhendo os pratos de cima da
mesa. Ele pega o de Anastazja que ainda está com toda a
comida. Anastazja entra na cozinha carregando a sua bolsa.
Ela desligada a pia e pede que Maria venha com ela. Maria
limpa as mãos no avental e pula da cadeira. Anastazja chama
João também. Maria tira o avental e o deixa em cima do
balcão. Os três saem da cozinha.

EXT. BOSQUE/ CLAREIRA - DIA


Maria, Anastazja e João andam pelo bosque até uma clareira.
Dezenas de pássaros cantam por todos os lados. No meio há um
BANCO DE MADEIRA e ao lado um BALANÇO QUEBRADO pendurado em
uma árvore. Maria e Anastazja andam de braços dados.
Anastazja anda devagar e ofegante, Maria a ajuda a se sentar
no banco e se senta ao lado dela. João se encosta em uma
árvore e acende um cigarro. Anastazja aponta para o balanço
quebrado.
65.

ANASTAZJA
Twoja mama, Natasza, bardzo cz˛esto
bujała si˛e na tej
huśtawce... (Anastazja descreve
como Natasza costumava balanc¸ar no
balanc¸o. Ela chamava por Anastazja
para que ela a visse pular. Natasza
pulava do banco e ia correndo
sentar ao lado dela no banco.)
Anastazja aponta como se estivesse seguindo os movimentos
que descreve. Ela balança o dedo de um lado para o outro
apontando para o balanço, faz um arco do balanço até o chão,
segue do balanço até o banco e termina aonde Maria está
sentada. Maria sorri como se tivesse entendido tudo.
Uma FORMIGA começa a subir na mão de Maria que está apoiada
no banco. Maria se assusta e sua primeira reação é levantar
a outra mão como se fosse esmagar a formiga. Maria para em
meio ao movimento e observa a formiga se mexendo desesperada
de um lado para o outro em sua mão. Ela desce do banco e
coloca sua mão na grama. A confusa formiga desce e segue seu
caminho pela grama. Maria olha para cima e vê Anastazja
sorrindo para ela. Maria sorri de volta.
INT. CASA DE ANASTAZJA/ QUARTO DE NATASZA - NOITE
Maria está debaixo dos cobertores, João lhe beija a testa.

JOÃO
Boa noite.
MARIA
Boa noite, pai.

João desliga as luzes e sai fechando a porta.


Maria olha pela janela e observa as árvores que são
chacoalhadas pelo vento do lado de fora. A maçaneta da porta
é virada com cuidado. Maria olha assustada. A porta do
quarto se abre lentamente. Maria fecha os olhos e finge
dormir. É possível ver a silhueta de Anastazja entrando e
sentando-se na cama. Ela canta uma melancólica canção de
ninar sobre uma boneca de porcelana.
EXT. BOSQUE/ CLAREIRA - DIA

Maria está com uma fantasia de raposa e com a cara pintada


respectivamente. Ela anda pela clareira cheirando as árvores
seguindo um caminho olfativo. Ela vai pela grama até chegar
no banco no meio da clareira. Ela o cheira completamente e
continua seguindo o caminho olfativo até chegar ao balanço
pendurado na árvore inteiro como novo. Ela o cheira
66.

intensamente. Depois de cheirá-lo ela se senta nele e


balança.
EXT. VILA DE ANASTAZJA/ PRAÇA - ALVORADA
A praça principal da vila é florida e está em total
silêncio.
EXT. VILA DE ANASTAZJA/ IGREJA - MANHÃ
A rua em frente a igreja está vazia.

INT. IGREJA - MANHÃ


O PADRE e duas BEATAS varrem o chão da igreja.
JUMP CUT

As beatas estendem uma enorme toalha de mesa branca sobre


uma enorme mesa de madeira perto do altar.
EXT. CASA DE ANNA/ QUINTAL - DIA

As galinhas ciscam soltas pelo quintal. Um coelho saltita


pela horta cercada.
INT. CASA DE ANNA/ SALA DE ESTAR - DIA
Anna está sentada no sofá assistindo televisão na maior
altura. Um programa jornalístico especial sobre o papa João
Paulo II mostra diversas missas e carreatas do pontífice
pelo mundo. O narrador do programa traduz a fala do papa
quando esta é em outras línguas. Uma das imagens é o papa em
1997 no Brasil dizendo "Se Deus é brasileiro o papa é
carioca". Após a tradução do narrador Anna solta um grunhido
rabugento e acena em desaprovação para a TV.
INT. CASA DE ANASTAZJA/ SALA DE ESTAR - DIA
João está roncando no sofá com a televisão ligada no mudo. O
mesmo programa sobre o papa está passando.

Maria entra na sala descabelada e de pijamas. Ela vai até


João e coloca a cara tão próxima da dele que seus narizes
quase se tocam.

JOÃO
(Ameaçador de brincadeira)
Maria...
Maria chega pra trás rindo.
67.

MARIA
Tava com saudade de dormir na
frente da TV né?
João murmura e se vira para o outro lado. Maria vê o Papa na
TV, depois olha para a foto dele no aparador e depois de
novo para a TV.
MARIA
Eu achava que esse padre era o vô
da minha mãe.

Maria ri de si mesma e vai para a cozinha. João ronca.


INT. CASA DE ANASTAZJA/ COZINHA - DIA
Maria entra na cozinha vazia. Ela olha ao redor e sai.

INT. CASA DE ANASTAZJA/ CORREDOR- DIA


Maria anda na ponta dos pés até a porta do quarto de
Anastazja, que está fechada e coloca o ouvido. Ela não
escuta nada.

INT. CASA DE ANASTAZJA/ COZINHA - DIA


Maria arrasta uma cadeira até o fogão e pega a chaleira que
está em cima. Ela desce da cadeira, a arrasta até a pia e
sobe nela de novo. Maria enche a chaleira com água. Ela
desce da cadeira e a arrasta de volta até o fogão. Maria
sobe na cadeira, coloca a chaleira no fogão e liga uma das
bocas.
INT. CASA DE ANASTAZJA/ QUARTO DE ANASTAZJA - DIA

Maria entra no quarto com uma xícara de chá. Anastazja está


sentada em uma banqueta em frente ao espelho de sua
penteadeira se maquiando. Maria para no meio do quarto
maravilhada com todas as maquiagens. Anastazja olha para a
neta enquanto passa o delineador.

ANASTAZJA
Dzień dobry.
Maria não consegue tirar os olhos do delineador. Ela coloca
a xícara sobre o criado-mudo.

ANASTAZJA
Dzi˛
ekuj˛
e.
Anastazja chega para o lado na banqueta dando espac¸o para
Maria sentar. Maria senta-se ao lado da avó que continua se
maquiando. Maria pega uma embalagem com pó de base bem clara
68.

e passa o dedo. Ela passa um pouco na bochecha e vê o


contraste com sua pele mais escura. Anastazja ri e espalha o
pó com um pincel.
MARIA
Eu nunca usei maquiagem. Só batom
mesmo.
Anastazja termina de pincelar as bochechas de Maria a
maquiagem é quase imperceptível. Anastazja pede que Maria
vire de costas para ela e Maria obedece. Anastazja pega uma
escova na penteadeira e comec¸a a escovar com carinho os
lisos cabelos da neta. Anastazja termina e as duas se olham
no espelho. O cabelo de Maria parece seda dourada e é um
pouco ondulado nas pontas.
ANASTAZJA
Wow! Bardzo ladnie.
Maria está estática ao se ver maquiada pela primeira vez. A
avó tira a franja de Maria delicadamente da frente da testa,
Maria não tira os olhos do reflexo.

INT. CASA DE ANASTAZJA/ QUARTO DE NATASZA - DIA


Maria está sentada na beira da cama balançando os pés.
Anastazja está procurando algo em meio a diversas caixas no
armário, que funciona como um depósito. Anastazja tira uma
das caixas e coloca ao lado de Maria na cama. Maria abre a
caixa e vê um vestido dobrado. Anastazja tira o vestido da
caixa e o espana um pouco. Maria se levanta e Anastazja o
coloca contra o torso de Maria. O tamanho é perfeito.
INT. CASA DE ANASTAZJA/ SALA DE ESTAR - DIA

Maria entra na sala tímida com o vestido. Ela cutuca João


que ainda dorme diante da TV ligada. João abre os olhos e
sorri ao ver Maria.
JOÃO
Uau, você tá tão linda, filha.
MARIA
Você achou mesmo?
João puxa a filha para perto e lhe beija a testa.

MARIA
Ei, cuidado com a minha maquiagem.
João ri.
69.

JOÃO
Desculpa madame.
EXT. RUA "UL. MIODOWA"/ CASA DE ANASTAZJA - DIA
Anastazja está bem arrumada e maquiada, exatamente como
quando a vimos pela primeira vez. Ela tranca a porta de
casa. Maria faz várias poses com o cesto de comidas
preparadas por ela e por Anastazja no dia anterior, João
tira fotos dela.

MARIA
Vem vó!
Maria puxa Anastazja que fica tímida em frente a câmera.
JOÃO
Sorriam!
Anastazja tenta posar em algumas posições mas não fica
confortável em nenhuma. Ela para em uma posição séria. Maria
olha para ela e puxa os cantos da boca.

MARIA
Sorri assim ó.
Anastazja olha para neta e sorri naturalmente. Ela se vira
para câmera com o sorriso ainda no rosto e João faz a foto.

EXT. VILA DE ANASTAZJA/ IGREJA - DIA


Várias famílias conversam do lado de fora da igreja, são
pessoas simples mas se vestem com o melhor que têm. Cada
família tem uma cesta de madeira com comida como a de Maria.
O Dr. Sierakowski conversa descontraído com uma família. Ele
segura duas cestas. O Dr. Sierakowski vê Anastazja se
aproximar com Maria e João. Ele se despede da família e vai
até Anastazja.
DR. SIERAKOWSKI
Wesołych Świat.
˛
Ele não parece preocupado com ela.
ANASTAZJA
Wesołych Świat.
˛

Ola e Mariusz chegam e vão até o Dr. Sierakowski. Ele


entrega as cestas paras os gêmeos e dá um beijo em cada um.
OLA E MARIUSZ
Wesołych Świat.
˛
70.

MARIA
(Bem devagar mas sem sotaque)
Wesołych Świat.
˛
João olha surpreso para Maria.

JOÃO
Eu nem vou tentar falar isso.
Ola e Mariusz pegam Maria pela mão e a levam até a igreja.

INT. IGREJA - DIA


Ola e Mariusz fazem o sinal da cruz e entram na igreja.
Maria para hesitante e vê que as outras pessoas que entram
também fazem o sinal da cruz, ela imita. Os três vão juntos
até a enorme mesa que vimos ser preparada antes próxima ao
altar. Há várias cestas de comida já e os irmãos colocam
suas respectivas cestas também. Maria os imita em seguida.
Maria, na inocência, pega um pedaço de pão de sua cesta e
come. Mariusz e Ola ficam pasmos.
Mariusz confere se alguém está olhando e também come um
pedaço de pão de sua cesta, Ola também come um pedaço
rapidamente. Os irmãos pegam cada um em uma das mãos de
Maria, vão rindo até um banco e se sentam.
OLA
Jestem Ola, a to Mariusz. A ty?

Maria levanta os ombros como quem diz "não sei".


OLA
(Bem devagar)
Ola. (apontando para si
mesma) Mariusz. (apontando para
Mariusz) Ty? (apontando para Maria)
MARIA
Ah, sim. Ola e Mariusz. Eu sou a
Maria.
As pessoas entram na igreja. Maria procura Anastazja e João.
Ola aponta para a porta da igreja e Maria vê João chegando
de braços dados com Anastazja. João vê a filha e acena para
ela. Anastazja está compenetrada e não tira os olhos do
altar.
O padre começa a missa. Todos de pé.
JUMP CUT
71.

Na parte de cima da igreja um órgão é tocado por uma senhora


e um pequeno coral de crianças acompanha. Os fiéis cantam
juntos de pé. Tudo é novo para Maria e ela olha para tudo
curiosa. Ela vê Janusz, a vizinha Anna, o Dr. Sierakowski,
todos cantando. João está sentado calado. Anastazja está
sentada mas canta com energia. Maria acena para a avó que
está muito focada na canção para notar.
JUMP CUT
Uma fila comec¸a a se formar no altar para receber a hóstia.
Mariusz e Ola chamam Maria para entrar na fila, Maria
hesita. Ela vê que João é o único sentado. Maria acena para
ele e aponta duvidosa para si mesma e depois para a fila,
como que pedindo autorização para o pai. João ri e dá de
ombros. Maria vai até a fila animada. Ela vê o padre
colocando a hóstia na boca das pessoas.

Na vez de Maria ela nota que a hóstia é mergulhada em vinho


antes. Ela faz uma cara de nojo e abre a boca. O padre
coloca a hóstia na boca de Maria, fazendo o sinal da cruz no
ar em seguida. Maria volta ao seu lugar mastigando a hóstia.
Ela se senta ao lado de Olla e Marius que rezam ajoelhados.
Maria se ajoelha mas só fica olhando para o chão. Mariusz e
Ola se sentam novamente no banco e Maria também. Ela olha
pra João que ri. Maria mostra a língua para ele.
JUMP CUT

O padre usa um ramo de uma planta para espalhar gotas de


água sobre as cestas de comida na mesa.
EXT. VILA DE ANASTAZJA/ IGREJA - DIA

As famílias vão saindo com suas cestas e se cumprimentando.


Maria sai junto com Mariusz e Ola, cada um com sua
respectiva cesta. Maria vê João já do lado de fora fumando
um cigarro sozinho. Ela se despede de Mariusz e Ola e vai
correndo até o pai.

JOÃO
Esses seus amiguinhos são os mesmos
que você tava brincando lá na
escola?
MARIA
Sim. Mariusz e Ola.
Maria olha ao redor.
MARIA
Cadê a minha vó?
72.

JOÃO
Não sei. Ela ficou lá dentro
conversando com alguém.
Anastazja sai da igreja conversando de brac¸os dados com o
padre. Eles riem descontraídos até Maria e João.
MARIA
Cześć.
O padre ri amistoso.

PADRE
Cześć.
O padre lança um olhar reprovador ao cigarro de João que não
nota, ou ignora. Os dois apertam as mãos formalmente. Um
casal vai ao padre cumprimentá-lo. O padre se despede de
Anastazja, de Maria e de João e sai andando com o casal.
EXT. RUAS DA VILA DE ANASTAZJA - DIA
Anastazja anda lentamente olhando maravilhada as floridas
árvores com se as estivesse vendo pela primeira vez. João e
Maria andam de mãos dadas atrás.
MARIA
Pai, por que o padre jogou água na
comida?

JOÃO
É água benta. Acho que é para
abençoar a comida.

MARIA
E o que era aquele negócio branco
que eu comi?
JOÃO
Chama hóstia. É um pedaço do corpo
de Cristo.
MARIA
(Espantada)
O quê? E aquele suco de uva?

JOÃO
É o sangue.
MARIA
(Assustada)
Para pai.
73.

JOÃO
(Rindo)
Tô brincando. (beat) Mais ou menos.
MARIA
Como assim?
JOÃO
Ah filha, é difícil explicar. Eu
não entendo também.

MARIA
Mm... E por que que a gente nunca
vai na igreja?
João acende um cigarro.

JOÃO
Porque eu não acredito na igreja.
Mas se você quiser pode ir.
MARIA
Foi ok... Mas ir todo dia deve ser
chato.
JOÃO
(Fazendo graça)
Eu vi você cantando.

MARIA
(Emburrada)
Eu não cantei! Você que cantou!
Anastazja para em frente a uma árvore toda florida e arranca
uma pequena flor rosa. Ela chega perto de Maria e coloca a
flor em sua mão. Maria cheira a flor. Anastazja segue
descendo a rua.
MARIA
Pai, me levanta.

João levanta Maria na altura das flores. Ela puxa uma.


MAIRA
Para a mamãe.

Maria arranca mais uma flor.


MARIA
Para a vovó
Maria procura outra flor.
74.

MARIA
E essa vai para... deixa eu
pensar... será que é para a galinha
da vizinha? Será que é para o
coelhinho da páscoa? Será? Não! É
para o papai.
Ela arranca mais uma flor e João a coloca no chão.
JOÃO
Poxa, eu pensei que você tinha me
esquecido.
MARIA
Esqueci, mas já lembrei.
Maria coloca a flor na mão de João.

MARIA
Pai, você acredita em Deus né?
JOÃO
Ué, filha... (cauteloso) acho que
sim, por que?
MARIA
Porque você falou que minha mãe
tava em um lugar melhor. Com Deus.

Maria sorri e sai correndo para alcanc¸ar a avó que anda mais
a frente. João dá uma longa tragada no cigarro. Maria pega a
ma˜o de Anastazja e coloca a flor. Anastazja se agacha, dá
um beijo na testa de Maria e se levanta com um pequeno
gemido de dor. Anastazja e Maria andam de mãos dadas e João
vai mais atrás fumando seu cigarro.
INT. CASA ANASTAZJA/ COZINHA - DIA
Maria e Joa˜o põem a mesa. Anastazja despeja uma sopa de uma
panela em uma travessa. Anastazja coloca a travessa na mesa
junto com todos os outros pratos do banquete e a cesta com a
comida benzida no meio. Há comida suficiente para 6 pessoas
pelo menos. Maria e João se sentam. Anastazja vai até o
armário pega mais um prato e depois mais talheres em uma
gaveta. Ela os coloca à mesa. Agora há quatro lugares postos
à mesa.

MARIA
Quem mais vem?
João dá de ombros. Anastazja se senta. João e Maria olham
para ela esperando que ela diga algo. Anastazja fecha os
olhos, coloca as duas mãos juntas e começa a rezar em voz
75.

alta. É possível distinguir os nomes de Maria, João e


Natasza em sua fala. Após terminar ela aponta para Maria
como quem diz "sua vez".
MARIA
Mas eu não sei rezar, pai.
JOÃO
Só agradece então.
MARIA
Agradece quem? Deus?
JOÃO
Acho que sim.
MARIA
Então vai você primeiro.
João aponta para si mesmo com cara de "quem? eu?" e
Anastazja aponta para ele animada, fechando os olhos em
seguida. João engole seco. Ele fecha os olhos e junta as
mãos. Maria imita.

JOA˜O
(Inseguro)
Bem... Eu gostaria de dizer
obrigado...

MARIA
(Completando João)
...Deus.
JOÃO
Por essa comida...
MARIA
... deliciosa.
JOÃO
Mm, e por essa viagem a esse lugar
tão interessante...
MARIA
... onde a minha mãe cresceu.

JOÃO
Sim. (pausa) Eu acho que é isso.
MARIA
Obrigada pela vovó, porque ela é
tão legal. (beat) E obrigada por
cuidar da mamãe.
76.

Maria abre os olhos mas Anastazja e João ainda estão de


olhos fechados. Maria olha pros lados sem saber o que fazer
e de repente se lembra. Ela fecha os olhos.
MARIA
Ah sim, Amém.
ANASTAZJA E JOÃO
Amém!
Anastazja levanta, pega o cesto e divide cada um dos itens
que tem dentro em quatro pedac¸os (uma salsicha branca, um
pedac¸o de pa˜o, uma fatia de presunto e uma de bolo)
colocando-os em cada um dos pratos depois. Anastazja pega
tambe´m quatro ovos pintados por Maria e os divide pelos
pratos. Anastazja se senta e aponta aos pratos.

MARIA
Smacznego!
ANASTAZJA
Smacznego!

João pega o ovo de seu prato. Maria enfia um pedaço de


presunto na boca.
JOÃO
Você que pintou, filha?

Maria está de boca cheia e só afirma com a cabeça.


JOÃO
Deixa eu ver o seu.

Maria entrega o ovo de seu prato para João mas o solta antes
de João segurá-lo.
MARIA
Pai, não!

O ovo cai e rola para fora da mesa. João tenta segurá-lo no


ar mais não consegue. O ovo está cozido, por isso a casca
apenas racha. Maria tenta segurar o choro.
MARIA
Eu não podia ter quebrado esse ovo.
Eu sou muito burra.
Anastazja vai até Maria consolá-la.
JOÃO
Calma, Maria. Não aconteceu nada. A
culpa foi minha, eu que não segurei
77.

JOÃO
direito. Mas olha, só rachou um
pouquinho. Eu fico com esse e você
pode ficar com o meu.

João mostra o ovo rachado para Maria. Anastazja pega o ovo


de seu prato e começa a quebrar a casca com um garfo. Maria
se acalma ao ver a avó abrindo o ovo. Maria pega o ovo
rachado da mão de João e termina de rachar a casca com um
garfo. João os imita.
EXT. CASA DE ANASTAZJA/ JARDIM- DIA
O domingo de páscoa é ensolarado. O jardim da casa é florido
e bem cuidado. Maria e João se deixam banhar pelo sol
sentado à uma mesa.
MARIA
Não tem como dizer "não" pra ela.
Ela sempre coloca mais comida.

JOÃO
Pois é. Eu já não aguentava mais
tanta comida. Mas tava tudo ótimo.
Maria chega a alguma conclusão repentina.

MARIA
Pai! Nós somos João e Maria.
JOÃO
Eu sei ué. Que que tem?

MARIA
Não, igual na história. João e
Maria se perdem na floresta e para
na casa de uma senhora bondosa que
cozinha várias guloseimas para eles
engordarem e ela poder cozinhar e
comer eles, porque na verdade ela é
uma bruxa.
Anastazja vem trazendo uma bandeja com chá para eles. Ela
coloca a bandeja na mesa e começa a servir a xícara de João,
ele mostra que não quer, mas Anastazja insiste com um doce
sorriso. João cede e ela serve a xícara. O mesmo com Maria.
JOÃO
É, se ela for uma bruxa mesmo, ela
tá fazendo direitinho.

João estufa a barriga e a acaricia. Maria ri do pai e o


imita. Anastazja faz sinal de aprovação ao ver as barrigas
estufadas dos dois. Anastazja se senta e toma seu chá.
78.

Maria continua acariciando a barriga completamente absorta


no movimento que lembra o de uma grávida acariciando sua
própria barriga.
MARIA
Pai, a gente pode ir no cemitério
hoje?
JOÃO
Você quer ir hoje? Pode ser outro
dia também.

MARIA
Não, eu quero hoje.
JOÃO
Então você tem que perguntar para a
Anastazja. Ela que sabe aonde fica
o túmulo da sua mãe.
MARIA
Como que eu vou perguntar isso?

JOÃO
(Retórico)
Como?
João mexe os braços e faz rostos teatrais.

MARIA
Sim, mas COMO?
JOÃO
Ai eu já não sei. Vai tentando.

Maria pensa por um instante.


MARIA
Tá bom.

Ela pula da cadeira.


MARIA
Natasza.
ANASTAZJA
(Apontando para Maria)
Mama.
MARIA
Tak. Mama.
79.

Maria levanta os braços, com as palmas das mãos para cima


como quem pergunta "cadê?". Anastazja não entende. Maria
reflete novamente.
MARIA
(Bem lentamente)
Mama. Cemitério. Enterrada.
Novamente os braços perguntam "cadê?". Anastazja faz um
sinal de negativo com a cabeça como quem não entendeu.

MARIA
Vai pai, me ajuda aí.
JOÃO
Eu não sei, filha.

Maria corre até uma moita de flores e cata uma. Ela volta
correndo, fecha os olhos e cruza os braços contra o peito
com a flor no meio. A expressão de Anastazja fica séria e
João parece desconfortável na cadeira. Maria abre os olhos e
faz novamente o sinal de "cadê?". Anastazja balança a cabeça
negativamente.

MARIA
(Perdendo a paciência)
Mama.
Maria faz a mímica de estar cavando uma cova. Ela cruza os
braços novamente com a flor e se deita na cova imaginária.
Anastazja respira fundo e continua balançando a cabeça sem
parar. Maria levanta e repete tudo novamente. Anastazja não
consegue encarar a neta mas continua negando. Maria se
levanta e coloca seu rosto bem perto do da avó.

MARIA
Cadê. A minha. Mãe?
JOÃO
Maria, se acalma. Ela não entende.

Os olhos de Anastazja se enchem de lágrimas.


MARIA
Entende sim. Ela só não quer dizer.

Anastazja se levanta com dificuldades e se retira.


JOÃO
Maria, calma!
80.

MARIA
Calma não! A gente veio aqui pra
isso. Ela que chamou a gente para
vir e quando a gente chegou ela nem
tava em casa. Agora ela não quer
que eu veja aonde minha mãe tá. Ela
nem tentou falar nada dela. A única
coisa que ela fez foi levar a gente
naquela escola idiota.
JOÃO
Maria, você já parou pra pensar o
quanto que isso pode ser difícil
pra ela. Quanta falta deve fazer a
filha pra ela.
MARIA
Mas é mais difícil pra mim! Eu
nunca nem conheci ela e ela é a
minha mãe!
Maria sai emburrada do jardim.

INT. CASA DE ANASTAZJA/ QUARTO DE NATASZA - DIA


Maria está deitada na cama chorando com a cara no
travesseiro. Joa˜o entra no quarto e senta na cama.

MARIA
(Voz abafada pelo travesseiro)
Eu quero ir embora da casa dessa
bruxa!
JOÃO
(Reprovador)
Maria.
Maria se vira para ele, o rosto vermelho como um tomate.
MARIA
Eu quero ir embora...
JOÃO
(Delicado)
Você não quer ir no cemitério?

MARIA
Quero. Mas a bruxa não quer me
deixar ir.
JOÃO
Não fala assim dela. Engole o
choro.
81.

Maria passa a mão no rosto e fica fungando.


JOÃO
Então a gente vai no cemitério. Eu
e você.

MARIA
Mas como a gente vai achar ela?
JOÃO
A gente procura até achar.

MARIA
Jura?
JOÃO
Juro.

INT. CASA DE ANASTAZJA/ BANHEIRO - DIA


Maria lava o rosto na pia. Ela enxuga o rosto e sai.
INT. CASA DE ANASTAZJA/ SALA DE ESTAR - DIA

Maria entra na sala. João está sentado no sofá.


MARIA
Vamos?

JOÃO
Senta aqui rapidinho.
Maria se senta ao lado de João.
JOÃO
A Anastazja só nos tratou bem
aqui. Ela fez tudo pela gente. Ela
tá velhinha já. Além disso a gente
não consegue se comunicar, então
tem coisas que a gente não entende
sobre ela e nem ela sobre a gente.

MARIA
E daí?
JOÃO
E daí que eu acho que chamar ela de
bruxa é injusto, não é?
Maria dá de ombros.
82.

JOÃO
Você não acha que ela merece um
pedido de desculpas?
MARIA
Talvez.
JOÃO
Maria...
MARIA
Sim.
JOÃO
Sim o que?
MARIA
Sério?
JOÃO
Sério. Merece o que? Eu quero que
você fale.

MARIA
Um pedido de desculpas.
JOÃO
Ótimo. Então vai lá e eu te espero
aqui.

Maria se levanta.
MARIA
Mas ela nem vai entender.

JOÃO
O que vale é a intenção.
João bagunça o cabelo da filha para descontrai-la. Maria
empurra a mão do pai e arruma o cabelo. Ela vai andando
lentamente até o corredor.
INT. CASA DE ANASTAZJA/ CORREDOR- DIA
Maria vai até a porta do quarto de Anastazja que está
fechada. Ela coloca o ouvido e escuta avó chorando. Ela
levanta o braço como se fosse bater à porta mas para na
metade do caminho. Ela se vira e sai.
MARIA
(Para si mesma)
Bruxa...
83.

INT. CASA DE ANASTAZJA/ SALA DE ESTAR - DIA


João está perto da porta da casa e Maria vai correndo até
ele.
MARIA
Pronto, vamos.
JOÃO
Você pediu?
MARIA
Pedi ué. Mas ela tava dormindo.
JOÃO
E ela não acordou?
MARIA
Acordou.
JOÃO
E ela falou alguma coisa?
MARIA
Não, só me deu um abraço e voltou a
dormir.

JOÃO
Então vamos deixar ela descansar
agora.
INT. CARRO DE JOÃO - DIA

Maria está no banco de trás, suas pernas não param de se


mexer, ela brinca um pouco com o monstrinho de pelúcia mas
logo se entedia e o joga no assoalho. Ela olha para janela
depois pega o monstrinho de novo. João dirige.

MARIA
Pai, a flor!
JOÃO
Que flor?

MARIA
A flor que eu peguei para a minha
mãe. Eu esqueci em casa.
JOÃO
Ah não filha, sério? Agora que a
gente tá quase chegando no
cemitério.
Maria afunda triste no banco.
84.

MARIA
Pode deixar então, pai.

JOÃO
Peraí, já sei.
EXT. VILA DE ANASTAZJA/ BANCA DE FLORES - DIA
A vila é completamente vazia na páscoa.

Vemos Inácio entre as flores do lado de fora da banca em


forma de container. Ele veste o avental sobre as roupas
hippies e água um girassol. Ele para ao notar Maria e João
se aproximando.

IGNACY
Dzień dobry.
MARIA
Cześć.

João apenas acena com a cabeça.


JOÃO
Vai lá e escolhe alguma coisa bem
bonita, filha.

Maria anda e analisa cada flor de perto. João fica afastado


fumando seu cigarro. Ignacy se aproxima de Maria e a
observa. Maria pega uma rosa cor de rosa, Ignacy olha para
ela com um sorriso e balança a cabeça como quem diz "essa
não". Maria coloca a flor de volta e pega um crisântemo.
Desta vez ela olha para Ignacy esperando sua reação e ele
novamente balança a cabeça negativamente. Maria aponta para
um buquê de diversas flores do campo e Ignacy repete a
negativa. João fuma olhando para a rua.
JOÃO
E então?
MARIA
Peraí.
Ignacy sinaliza para Maria seguí-lo. Eles vão para o outro
lado da banca e Ignacy aponta para diversas tulipas. Maria
olha com uma cara de quem diz "sério?"
MARIA
Mas essas nem são tão bonitas. Eu
quero outra.

Maria balança a cabeça negativamente e Ignacy pega uma


tulipa rosa e tenta entregar pra ela mas Maria recusa.
85.

MARIA
Eu quero aquela outra que eu vi.
IGNACY
Poczekaj.

Ignacy levanta a mão como quem diz "espera aí". Ele vai para
trás da caixa registradora e traz de volta algumas fotos.
Ele procura alguma específica e Maria observa batendo o pé
impaciente. Ele pega uma foto e a entrega para Maria. É uma
foto de Natasza adolescente na frente da banca de flores
usando o mesmo avental que Ignacy e segurando um buquê de
tulipas rosas. Maria esbugalha os olhos boquiaberta e pega a
foto.
MARIA
Pai... Pai!

JOÃO
(Sem olhar)
Já escolheu?
MARIA
Pai, vem aqui.
João apaga o cigarro e vai até ela. Ele sorri educadamente
para Ignacy que está com um sorriso largo no rosto. Maria
mostra a foto para João. João leva as mão a boca.

JOÃO
Essa é a Natasza. Exatamente como
quando eu conheci ela.
Ignacy tira mais uma foto do monte que trouxe, dessa vez de
Natasza aguando as flores da banca.
MARIA
Uau, ela é tão linda.
IGNACY
(Com forte sotaque)
Muito linda.
Maria e João olham surpresos para Ignacy.
JOÃO
Você fala português?
IGNACY
(Sotaque forte)
Um pouquinho.
86.

Ignacy dá o monte de fotos para Maria e começa a montar um


buquê de tulipas. Maria vai passando as fotos e vê fotos de
Ignacy, jovem, na praia no Rio De Janeiro com uma jovem
mulher. Os dois tem trajes de banho hippies e flores na
cabeça.

MARIA
É o Rio!
IGNACY
(Nostalgico)
Oh Copacabana.
JOÃO
Férias?
IGNACY
Tak.
Ignacy termina o buquê, olha orgulhoso para ele e o entrega
a Maria. A menina cheira as flores. João aponta para a moça
da foto com Ignacy.

JOÃO
É a sua mulher?
A expressão de Ignacy se torna triste.
IGNACY
Tak. Urszula.
Ignacy tem uma idéia repentina e sinaliza para Maria e João
esperarem. Ignacy tira o avental, pega um buquê colorido com
diversas flores e sai andando da banca. Maria olha confusa
para João. Ignacy se vira e sinaliza para que Maria e João o
sigam.
JOÃO
Mas e a loja?

Ignacy balança a mão como quem diz "esquece" e


depois "venham" e continua andando. Maria e João vão atrás
de Ignacy.
EXT. RUAS DA VILA DE ANASTAZJA - DIA

O trio improvável anda apressado pelas ruas vazias.


87.

EXT. CEMITÉRIO - DIA


Eles chegam no cemitério. Não é o mesmo pelo qual eles
passaram no outro dia. Eles entram pelo portão principal.
Algumas famílias estão visitando os túmulos de seus entes
queridos.

JOÃO
Hotéis zero. Mas cemitério dois?
MARIA
A gente ia passar horas procurando
pelo túmulo no cemitério errado.
JOÃO
Pois é...

Ignacy para em um interseção e aponta para um túmulo a


alguns metros para a direita.
IGNACY
Natasza jest tam.

Ele aponta para a esquerda.


IGNACY
Tam jest Urszula.
Ele se agacha em frente a Maria que lhe abre um sorriso.
Ignacy encara o familiar sorriso e depois a abraça.
IGNACY
(Forte sotaque)
Adeus.

MARIA
Pa.
Os olhos de Ignacy se enchem de lágrimas.
IGNACY
Oh, Natasza.
Ele aperta a bochecha de Maria carinhosamente e se levanta.
Ele aperta mãos com João.

JOÃO
Muito obrigado.
IGNACY
(Forte sotaque)
Obrigado você.
88.

Ignacy segue pela esquerda, Maria e João andam para a


direita.
Maria vai lendo os nomes de cada lápide pela qual eles
passam em voz alta. Até que ela lê "Natasza Weronika
Wachowska, vinte de setembro de mil novecentos e setenta,
primeiro de Agosto de mil novecentos e oitenta e nove".
MARIA
É o dia do meu aniversário.

João afirma com a cabeça. Maria se aproxima do túmulo e João


fica alguns passos para trás.
O túmulo tem algumas flores recém trazidas ao redor e alguns
vidros vermelhos com cera de vela em volta. Maria organiza
as flores de modo que elas formam uma cama na caixa de
granito bege. Ela coloca o buquê de tulipas sobre a cama de
flores e encara o nome da mãe. Junto do túmulo de Natasza
Maria vê um túmulo idêntico inscrito "Jarek Konrad Wachowski
- 13/05/1944 - 02/02/1975". O túmulo também possui algumas
flores e vidros de vela ao redor.

MARIA
Quem é esse?
JOÃO
Eu acho que é o pai da Natasza.

MARIA
Meu avô?
JOÃO
Sim.

Maria tira uma tulipa do buquê de Natasza e a coloca sobre o


túmulo do avô.
MARIA
E ali?

Maria aponta para um túmulo ao lado de Jarek que é idêntico


ao dele e ao de Natasza, porém sem flores ou velas e cuja
lápide não está inscrita.
JOÃO
Eu acho que não tem ninguém ali.
MARIA
Por que?
89.

JOÃO
É pra quando a pessoa morrer ela já
ter seu túmulo garantido.
MARIA
Qualquer pessoa?
JOÃO
Não. Deve ser alguém da família da
sua mãe.

MARIA
Da minha vó, então?
João acena positivamente com a cabeça. Maria olha para a
lápide vazia e suspira. Ela pega outra flor do buquê de
tulipas.

MARIA
Pronto. Vamos voltar.
JOÃO
Como assim? Já?

MARIA
Já.
Maria olha para o túmulo da mãe, dá um sorriso e sai
andando. João olha a filha indo e em seguida se aproxima do
túmulo de Natasza. Ele se ajoelha e abaixa a cabeça.
JOÃO
Desculpa. (beat) Eu...
Ele acaricia o granito, olha para Maria já se distanciando,
dá um sorriso, se levanta e corre até Maria.
INT. CASA DE ANASTAZJA/ SALA DE ESTAR - NOITE
Maria, segurando a tulipa rosa, entra em casa junto com
João. Os dois tiram os sapatos e colocam ao lado da porta. A
sala está vazia e em completo silêncio. Anastazja vem
lentamente do corredor e ao ver Maria e João ela aperta o
passo com dificuldade até a cozinha.
INT. CASA DE ANASTAZJA/ COZINHA - NOITE

Anastazja está tirando a louça de chá do armário. Maria


entra com a tulipa.
MARIA
Vó. Presente. Pra você
90.

Anastazja limpa as mãos na roupa e se vira para Maria com o


sorriso de sempre, como se nada tivesse acontecido mais
cedo. Anastazja leva as mãos a boca sinceramente surpresa.
ANASTAZJA
Prezent? Dla mnie?
Anastazja pega tulipa e a cheira. Ela suspira e encara a
flor nostálgica. Maria arrasta uma cadeira até o fogão, sobe
acende o fogo. Anastazja volta a realidade da cozinha,
coloca a flor sobre a mesa e pega o bule no armário.

MARIA
Nie. Deixa que eu faço.
ANASTAZJA
Nie, nie, nie.

Anastazja dá alguns tapinhas nas pernas de Maria apontando


para a porta da cozinha. Maria a encara e avó aponta
novamente para a porta. Maria sai relutante.
INT. CASA DE ANASTAZJA/ SALA DE ESTAR - NOITE

A sala está vazia e Maria procura João.


MARIA
Pai?

INT. CASA DE ANASTAZJA/ QUARTO DE HÓSPEDES - NOITE


Maria entra no quarto e vê a mala de João aberta no chão.
MARIA
Pai? Cadê você?

INT. CASA DE ANASTAZJA/ CORREDOR - NOITE


Maria anda pelo corredor e para diante da porta do quarto de
Natasza fechada.

INT. CASA DE ANASTAZJA/ QUARTO DE NATASZA - NOITE


Maria abre a porta do quarto e coloca a cabeça pra dentro.
MARIA
Paiê...
Não há ninguém no quarto e Maria começa a fechar a porta.
Ela nota algo em cima da cama. Maria vai até a cama. É um
album de fotos. Maria senta na cama e abre o album sobre seu
colo. Maria perde o ar por um segundo. Ela está olhando uma
foto de Anastazja jovem segurando um bebê de cabelos quase
91.

brancos de tão loiros. Maria vira a página e vê uma foto de


Jarek segurando o mesmo bebê. Ela vai virando as páginas e
vendo diversas fotos de Natasza em diferentes idades. As
lágrimas escorrem pelo rosto de Maria ao ver Natasza em
frente ao castelo de Wawel, depois uma foto de Natasza
assustando os pombos na praça central em Cracóvia, Natasza
pintando ovos, abrindo presentes de natal, brincando na
neve, segurando um troféu em frente a um piano.
Anastazja entra no quarto, coloca uma xícara de já sobre a
penteadeira e se senta ao lado de Maria. Maria olha para ela
e abre um sorriso em meio as lágrimas. Anastazja sorri de
volta e limpa o rosto de Maria. Elas olham o album juntas.
Anastazja conta histórias de cada foto e Maria as escuta com
total atenção.

João entra no quarto e para diante das duas. Ele olha


confuso para Maria.
MARIA
Olha pai!

João senta do outro de Maria na cama e olha para as fotos


boquiaberto. Maria e João trocam sorrisos. Maria vira a
página e vê uma foto de Natasza adolescente segurando uma
tulipa em frente aos lábios. João começa a chorar e coloca
um braço em volta de Maria enquanto olhando para a foto.
Maria descansa a cabeça no torso de João e eles passam as
páginas juntos. Anastazja faz carinho na cabeça de Maria.
DISSOLVE PARA:
Maria e João estão deitados frente a frente na cama, os
narizes quase se tocam. Os olhos de João estão quase
fechando de sono. Maria acaricia o rosto do pai.
MARIA
Pai, pra que serve o sonho?
JOÃO
(Sonolento)
Como assim, filha? Não sei se serve
pra alguma coisa.
MARIA
E por que não dá pra controlar o
sonho?
JOÃO
(Sonolento)
Por que o sonho acontece no seu
subconsciente. Você não escolhe,
você só sonha.
92.

MARIA
Mas tem dias que o sonho é bom e
tem dias que é ruim. Eu só queria
ter sonho bom.

JOÃO
(Sonolento)
Mas sonho é só sonho. Assim que
você acorda passa.
Os olhos de João se fecham.

MARIA
É, mas quando eu tenho um pesadelo
eu acordo assustada.
JOÃO
(Com muito sono)
E quando você tem um sonho bom você
acorda feliz?
MARIA
Não.

JOÃO
(Quase dormindo)
Por que não?
MARIA
Porque se eu sonho que tava voando
eu vou acordar querendo voar, eu
não posso voar.
João abre os olhos.

JOÃO
Ué, como não pode?
Maria o encara confusa.

JOÃO
A gente não voou até aqui?
MARIA
Ha ha. Besta.

João fecha os olhos.


Silêncio.
MARIA
Isso tudo parece um sonho.
93.

JOÃO
Bom ou ruim?
MARIA
Não importa, já vai passar.

João sorri.
JOÃO
(Muito sonolento)
E eu achando que você não presta
atenção nas coisas que eu falo.
Maria se vira de costas para João e se aconchega debaixo do
cobertor. Ela olha para a porta fechada do quarto. As
árvores chacoalham do lado de fora. A respiração de João
muda, ele caiu no sono. Os olhos de Maria tentam fechar mas
ela luta contra o sono. Olhar fixo na porta. Os olhos de
Maria se fecham. Ela escuta a mac¸aneta da porta girar e em
seguida se abrir. Ela abre os olhos.
MARIA
(Sussurrando)
Pai...
A respiração ritmada de João não muda. Maria se levanta e
vai hesitante até a porta.
MARIA
Vó?
Maria puxa a porta para abrí-la por completo e coloca a
cabeça para o corredor. Uma luz se esgueira por de baixo da
porta do quarto de Anastazja.

INT. CASA DE ANASTAZJA/ CORREDOR - NOITE


Maria anda na ponta dos pés até o quarto de Anastazja. Maria
empurra a porta. A luz a cega e ela entra no quarto.

INT. CASA DE ANASTAZJA/ QUARTO DE ANASTAZJA - NOITE


Uma xícara de chá ainda fumegante está em cima do
criado-mudo ao lado da cama. Anastazja está de camisola
sentada na cama encarando a porta segurando a tulipa rosa.
Ela respira com dificuldade e a princípio não olha para
Maria.
MARIA
Vó, tá tudo bem?
94.

Anastazja estica o braço para Maria e começa a sufocar. Ela


puxa a gola da camisola como se esta a estivesse sufocando.
Ela deixa o corpo cair na cama e solta grunhidos agonizantes
buscando ar a todo o custo. Maria olha em choque sem
conseguir se mexer.

EXT. RUA "UL. MIODOWA"/ CASA DE ANASTAZJA -MANHÃ


É uma ensolarada manhã de inverno. O sol reflete no branco
cegante da neve que cobre a calçada. Não há folhas nas
árvores.

A porta da casa de Anastazja se abre. NATASZA, 18 anos,


cabelos loiros e a pele branca como a neve, sai de casa e
fecha a porta com todo o cuidado, evitando fazer barulho.
Sua jaqueta rosa e a enorme mochila verde dão cor a paisagem
branca e cinza. Ela anda afundando os pés na neve da
calçada, fazendo ruídos crocantes a cada passo. Ela alcança
a rua enlameada cheia de neve derretida. Natasza limpa a
neve da barra da calça e sobe a rua lentamente. Quanto mais
ela se afasta da casa mais rápido ela anda. Logo Natasza
está trotando e em mais alguns passos ela está correndo a
toda velocidade, se distanciando até virar a esquina. O som
dos passos de Natasza vai se afastando nos deixando no
silêncio matinal da rua vazia.
FADE OUT
THE END

Você também pode gostar