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Os cotidianos do terreiro e os cotidianos da vida

Gláucia Gomes de Azevedo1


Quero começar dizendo que nós não nos iniciamos em uma religião, nós
nos iniciamos em uma religiosidade ancestral, com filosofia própria, como bem
nos diz Muniz Sodré2. A religião está ligada à forma europeia de monopolização
de empresarial e universal da fé. (Ibidem,p.204)

O que significa dizer que somos iniciados em uma religiosidade


ancestral? Significa que seguimos um conjunto de tradições ancestrais,
memórias de grupos que são passadas de geração a geração, algumas há
séculos. E mesmo que essas tenham sofrido modificações ou ressignificações,
ainda assim, fazem parte de um legado importante da história das tradições de
diversas nações africanas que são preservadas até hoje dentro dos terreiros de
candomblé Brasil afora.

Eu escolhi três conceitos que aprendemos e usamos nos cotidianos do


terreiro, dentre muitos, os quais considero de extrema relevância porque fazem
parte desse legado africano ancestral:

Comunidade: toda atividade, pensamento e ação é feita em prol da


comunidade do terreiro, da mais simples como varrer um chão, à mais
complexa ação de um ritual por exemplo. Devemos então transferir essa
responsabilidade com o outro, aceitando esse como legítimo outro3, para o
cotidiano fora do terreiro. Por mais difícil que seja ajudar à uma sociedade que
ataca as religiosidades de matriz africana, que pensa diferente, que tem
opiniões diferentes, insisto que devemos honrar nosso legado ancestral e
aprender a difícil lição de “ajudar sem olhar a quem”, numa versão do ditado
popular “fazer o bem sem olhar a quem”.

O segundo conceito é viver sem lamentar! A cultura africana


tradicionalmente tem se descortinado na antropologia, sociologia, história, e em
outras áreas que a estudam como sendo uma cultura de ação, e não de
lamento! Isso significa que o sofrimento é real, os obstáculos são reais mas
lamentar é perder tempo precioso que devemos usar para nos adaptar à
situação e agir. Assim como dentro do terreiro nenhuma atividade deve ser vista
como um castigo, nenhum obstáculo no cotidiano fora do terreiro deve ser

1
Formada em geografia, mestra em educação, professora de sociologia e geografia aposentada,
professora de língua Yoruba, ekeji da casa de e .
2
SODRÉ,Muniz. Pensar nagô. Rio de Janeiro: Vozes, 2017. p. 89
3
MATURANA, Humberto. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: UFMG,
1998. p.31
visto como permanente. Viver sem lamentar é também uma forma de atrair
pessoas que podem ajudar no problema.

O terceiro conceito, Muniz Sodré fala com maestria, é a alegria de viver!


Apesar dos infortúnios que enfrentamos, devemos sempre procurar a alegria da
vida, porque é essa alegria que empodera nossa sobrevivência enquanto
candomblecistas e herdeiros de legados ancestrais tão importantes, que dá
ênfase à felicidade e não à tristeza, à comunidade e não ao individual, à ação ao
invés do lamento.

Finalizando o texto mas sem esgotar o assunto, questões que me


inquietam: de que adianta usarmos branco toda sexta feira se não seguimos a
ética que o branco representa? De que adianta fios de conta e roupas
adequadas para visitar um terreiro se saímos de lá criticando seus rituais sem
conhecermos a ancestralidade que deu origem a eles? De que adianta pedirmos
bênçãos dentro dos terreiros se do lado de fora não reconhecemos nossos
irmãos e mais velhos e dispensamos os rituais de hierarquia que são um
poderoso indicativo da nossa organização e educação? De que adianta tantas
festas pomposas e caras dentro dos terreiros se não ajudamos nossos irmãos
dentro e fora do terreiro que precisa de um emprego, de comida?

Será que estamos honrando nossa ancestralidade nos cotidianos dentro


e fora dos terreiros?

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