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O exército de ya: uma experiência no Ilé À Opó Aganju1

Quando fui confirmada como Ekeji 2 no ano de 2006, nunca imaginei o quanto eu iria aprender
com o Candomblé. Nesses treze anos de confirmada posso afirmar que sou privilegiada ao ser escolhida
para participar da grandiosidade que é ser m rì à3 e fazer parte do Ilé ya4 ou como carinhosamente
a chamamos no Aganju, a casa rosa.
Não fui confirmada neste terreiro, mas os “ventos” de ya e a flecha certeira de
determinaram assim, e desde 2013, quando meu marido fechou seu ciclo de sete anos 5 no Ilé À Opó
Aganju, frequento a “casa” vindo posteriormente entrar definitivamente para o gb .
No dia 04 de dezembro de 2019, em mais um iré ya7 no Ilé À Opó Aganju – ou apenas
Aganju, como irei chama-lo a partir de agora, ao terminar de arrumar o Ilé ya para a festa da noite, tirei
uma foto e enviei a um amigo, iniciado para O ala por um Bàbálórì á da mesma família de à , que me
exclamou: “Mas isto é um exército?!”, ao verificar o tamanho da Casa e a quantidade de igbá9 existentes.
No momento somente sorri, mas fiquei “cozinhando a frase” e agora posso responde-lo: Sim, é
um exército! Não um exército no sentido literal, de pessoas armadas prontas para a guerra, mas um
exército em número, cuja soma é de mais de cem pessoas com certeza, em afinidade de objetivo e
certamente prontas a defender ya e seu culto.
Quem conhece os terreiros sabe que, quando uma casa é muito grande, nem todos do gb
frequentam sempre e ao mesmo tempo; durante um período um grupo é permanente e outro vai e vêm
e isso muda de tempos em tempos, sem contar os que saem definitivamente.
Não é diferente com a Casa de ya ! Desde que participo do iré ya no Aganju há seis anos,
observo um grupo permanente de mulheres e um grupo intermitente, mas que somam, a cada festa,
entre nove a treze mulheres l ya10. Parece um grupo pequeno devido à dimensão da casa rosa e da
quantidade de igbá, talhas e quartinhas que se encontram na casa, mas posso afirmar que todas
representamos bem o exército!
Já afirmei, em outro texto11, que os espaços físicos nos revelam práticas, discursos e negociações
entre as pessoas que os praticam independente de quanto tempo elas os frequentam. Assim, mesmo que
na Grande Festa de ya no Aganju, sempre uma quarta-feira, uma l ya esteja presente durante uns
três dias e por um ano somente, esta presença certamente impactará e modificará discursos.

1
Opto por utilizar as palavras em Yoruba por entender que é necessário uma reafirmação de identidade candomblecista
fazendo frente ao preconceito permanente à nossa religiosidade, por direito assegurada por Lei Federal nº 10.639/03.
O Ilé À Opó Aganju é da nação de Candomblé Ketu e fica situado na rua Sakete, s/nº, Vila Praiana, Lauro de Freitas,
Bahia, e é liderado pelo Bàbálórì à Obarayi. Sobre nações no candomblé, sugiro a leitura dos artigos Nações do Candomblé
1, 2 e 3 no site ocandomble.com
2
Ekeji, do yoruba, significa segunda/o; no Candomblé se refere a um grupo de mulheres que não incorpora e é escolhido
para ser “mãe” de òrì à e se responsabilizar, entre outras funções, pelos iniciados quando estes estão incorporados
3
Do yoruba, filho/a de òrì à
4
Do yoruba, Casa de ya, a Deusa das tempestades, dos ventos, raios, que sabe defender-se e aos seus também, quem nos
guia ao Orun (espaço sagrado) quando falecemos
5
No candomblé fazemos rituais em ciclos de 1 ano, 3 anos e 7 anos, quando outro ciclo de responsabilidades se inicia
6
= comunidade, sociedade
7
Festa de ya
8
Ser da mesma família de à significa pertencer, de alguma forma, do mesmo Terreiro matriz, nesse caso, do Ilé À Opó
Afonja, Bahia
9
Igbá, do yoruba, cabaça; no Candomblé usamos a palavra para chamar nossos símbolos de representação dos òrì à
10
Do yoruba: filhas de ya ou adeptas/os do culto à ya
11
Dissertação de mestrado no Programa de Educação da UERJ, 2004, A Escola como Espaço Praticado
O que estou tentando dizer é que um espaço físico é praticado12 pelas pessoas e por todos os
espaçostempos13 que ela carrega, a saber suas trajetórias de vida, seus amores, dissabores, amizades,
angústias enfim sua história pessoal, familiar e de outras pessoas também. Somos, a meu ver, muitos
espaçostempos, e quando nos encontramos, multiplicamos essas experiências.
Então, meu caro amigo m àlá14, somos sim um exército! Um exército porque carregamos toda
a energia de ya, o que significa que conseguimos realizar nosso propósito e mobilizar outras pessoas,
iniciadas ou não, que fazem parte ou não de nosso gb , para nos ajudar; energia que os adeptos do
candomblé reconhecem e que os não adeptos só não sabem o nome da tempestade que nos caracteriza,
mas certamente a reconhecem quando lidam conosco.
Esse número reduzido, portanto, em nada atrapalha nossa missão anual de organizar a festa para
ya, para nossos irmãos e irmãs presentes na ocasião e para os visitantes, além de organizar a
manutenção e assegurar o desenvolvimento de à para todo o gb para todas as l ya do Aganju
em menor escala e para todas e todos os protegidos Dela pelo mundo, em maior escala, através dos
rituais sagrados. “Como assim?”, perguntam aqueles que não são adeptos do candomblé; todo ritual no
Candomblé, salvo os individuais, tem como objetivo assegurar o equilíbrio positivo das energias
espirituais da comunidade do Terreiro todo e também do mundo. Não é pretensão, é obrigação! Se há
equilíbrio individual através do culto a orí e equilíbrio mundial através de outros rituais que praticamos,
podemos todos ter um pouco de paz e vivermos felizes, segundo a filosofia africana “eu sou porque
somos”, onde o indivíduo e seu processo de crescimento anda em consonância com o do Outro.
No Candomblé aprendi que o sentido de comunidade é muito maior do que a literatura propõe,
o de pessoas ligadas por interesses comuns. Quando nos reunimos, nosso “pequeno” exército de ya
para a festa, já defendi que carregamos diferentes espaçostempos e assim multiplicamos nossas alegrias
e assim anulamos as tristezas que existem em nossos espaçotempos. Como temos pouco tempo (às vezes
apenas três dias) de convívio, é preciso pensar, o tempo todo, no objetivo da reunião: a eficiência da
organização da Festa e dos rituais sagrados que a antecedem e a procedem. As negociações são
inevitáveis e como diz o dito popular, é necessário “engolir alguns sapos” para que possamos nos
revitalizar como indivíduos mas pertencentes a um grupo maior, do Terreiro, dentro de outro grupo, de
candomblecistas da nação Ketu e pertencentes à religião do Candomblé que por si só já é um conjunto
de espaçostempos antigos preservados através de muita resistência desde seus tempos imemoriais na
África e espaçostempos modernos, onde a internet e as falsas informações vieram para ficar, ora
atrapalhando, ora ajudando na luta dos povos de Terreiro.
Aos olhos dos que visitam os terreiros apenas em dias de festas, fica a impressão da beleza do
barracão enfeitado, das vestes africanas e “de sinhazinha” que os iniciados e confirmados usam nesses
dias, do toque primordial dos atabaques, do canto fundamental da comunidade e, claro, da performance
dos grandes homenageados: nossos queridos e amados òrì à. Mas os que aqueles não vêm e não
participam são as relações entre os filhos/as do terreiro, tanto os permanentes quanto os que vêm e vão
(meu caso), o esforço monumental físico e espiritual desprendidos para que tudo ocorra como os òrì à
querem e não como os seres humanos desejam, apesar de uma tênue linha separe as duas coisas.
Aos olhos de quem não vive o Candomblé parece uma loucura, todo ano, passar por essa tensão,
mas para quem vive a alegria de ser abençoada e escolhida para ser l ya e m rì à, esse encontro de
espaçostempos só nos faz crescer enquanto indivíduos produtivos e defensores de toda Cultura que dá
poder às energias positivas para todos, que tenta, a todo custo, apesar das diferenças, aceitar e conviver
com todas as pessoas, sem julgamentos morais.

12
Sobre os praticantes dos espaços, ver CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano 1. Petrópolis: Vozes, 1994. 7ªed.
13
Esta forma de juntar as palavras é reivindicada, há alguns anos, pela minha orientadora Nilda Alves, e o grupo de
pesquisa sobre o cotidiano escolar que coordena (do qual fiz parte no ano 2000), numa tentativa de mostrar os limites que
herdamos da ciência moderna para as dicotomias.
14
Do yoruba, filho de Ò àlá, outro òrì à do panteão Yoruba

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