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objetos do desejo.1
Resumo
Este trabalho, em certo sentido, trata da compatibilidade entre o Direito Eleitoral brasileiro e a
Constituição. Pretende-se analisar o problema da existência de normas incompatíveis com o
padrão constitucional. De um modo mais específico, preocupa-se com o que a doutrina e os
tribunais chamam de condições de registrabilidade e de condições implícitas de elegibilidade.
Em relação às primeiras, estabelece-se a distinção entre condições procedimentais e
condições materiais de registrabilidade, postulando ser estas inconstitucionais. Em relação às
segundas, sustenta-se sua inexistência no ordenamento jurídico-constitucional brasileiro.
Palavras-chave
Abstract
This paper deals, in certain sense, with the compatibility between the Brazilian electoral law
and the Constitution. It aims the problem of existing norms that fail the constitutional test. In
a specific way, the paper is concerned about what is called by the doctrine and the Courts the
registration conditions and also the implicit eligibility conditions. It is assumed that the first
ones are split between procedural registration conditions and material registration
conditions, those been unconstitutional. Regarding the second ones, it is argued they don’t
exist in Brazilian constitutional law.
1
Artigo originariamente publicado como PEREIRA, Rodolfo Viana. Condições de Registrabilidade e
Condições Implícitas de Elegibilidade: esses obscuros objetos do desejo. In SANTANO, Ana Cláudia e
SALGADO, Eneida Desiree (orgs.). Direito Eleitoral: debates ibero-americanos. Curitiba: Ithala, 2014, ps. 275-
286.
2
Professor da Faculdade de Direito da UFMG. Coordenador Acadêmico do IDDE – Instituto para o
Desenvolvimento Democrático. Coordenador-Geral da ABRADEP – Academia Brasileira de Direito Eleitoral e
Político. Doutor em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Coimbra. Mestre em Direito Constitucional
pela UFMG. Especialista em Direito Eleitoral pela Universidade de Paris II. Membro da Comissão Nacional de
Direito Eleitoral da OAB. Advogado.
1
Key-words
a) Superioridade hierárquica
A fórmula tradicional encontrada pelo constitucionalismo para dar conta desse dilema foi o
princípio da rigidez constitucional que prevê graus distintos de proteção às normas
constitucionais quando comparadas com a legislação infraconstitucional. A constituição passa
a ter, em regra, o seguinte arranjo normativo: normas sujeitas à alteração mediante processos
legislativos árduos (quórum qualificado e tramitação complexa) e normas protegidas pela
cláusula do não retrocesso (chamadas cláusulas pétreas).
3
Ver, p. ex., SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem Constitucional – construindo uma nova dogmática jurídica.
Porto Alegre: Safe, 1999.
4
MAIER, Hans. Grundwerte und Grundrechte. In PAUS, Ansgar (org.). Werte, Rechte, Normen. Wien; Köln:
Butzon & Bercker Kevelaer; Styria Graz, 1979.
2
Ainda no aspecto formal, a Constituição diferencia-se também da legislação comum pelo fato
de ser a norma das normas (norma normarum5), isto é, a norma que, procedimentalmente,
habilita o processo de criação e alteração de todas as demais normas do sistema jurídico. Por
outras palavras, todas as normas vigentes encontram seu processo de validação no texto
constitucional6.
5
O termo é bastante usado na doutrina. Inspira-se na famosa 'teoria da construção escalonada das normas
jurídicas' (Stufenbautheorie) de Hans Kelsen. Ver KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins
Fontes, 1985.
6
Veja-se, por exemplo, as regras pertinentes ao Processo Legislativo (Título IV, Capítulo I, Seção VIII), bem
como artigos 25, 29, 30 e 32, todos da CR/88.
7
GREY, Thomas C. The Constitution as Scripture. Stanford Law Review, n. 1, v. 37, nov., 1984.
8
LUHMANN, Niklas. La Costituzione come Acquisizione Evolutiva. In ZAGREBELSKY, Gustavo;
PORTINARO, Pier Paolo e LUTHER, Jörg (orgs.). Il futuro della costituzione. Torino: Einaudi, 1996.
9
Expressão retirada de HORTA, Raul Machado. Estudos de Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey,
1995, p. 106.
10
PEREIRA, Rodolfo Viana. Hermenêutica Filosófica e Constitucional. 2. ed., Belo Horizonte: Del Rey,
2007.
11
Ver, por exemplo, o clássico WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Trad. Marcos G.
Montagnoli. Petrópolis: Vozes, 1994.
12
Veja a descrição original efetuada por Konrad Hesse em HESSE, Konrad. Elementos de Direito
Constitucional da República Federal da Alemanha. Trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Fabris, 1998, p.
70.
3
e adotar o sentido compatível, inclusive elucidando-o, se for o caso13. Na prática, isso implica
que as leis infraconstitucionais para serem válidas precisam ser juridicamente e
semanticamente conformes à Constituição. A Constituição firma não apenas o parâmetro de
validade jurídica do texto legal, mas também o do seu sentido normativo.
c) Caráter adstringente
O primeiro destaca a força cogente dos direitos fundamentais nas relações privadas, rompendo
com o paradigma privatista clássico que blindava o negócio jurídico e a autonomia individual
da influência direta daqueles. A liberdade contratual e a autonomia de vontade, pilares do
Direito Privado, passaram a ser conformadas não apenas pelas regras civilistas clássicas
pertinentes à validade do negócio jurídico, mas se sujeitaram igualmente à adequação aos
mandamentos jusfundamentais da carta constitucional. Por derivação, a Constituição sofre
importante metamorfose, passando de norma fundamental do Estado a norma fundamental da
comunidade política, aí incluída a sociedade civil14.
13
Ver, a título de exemplo, a decisão do STF na ADI 3324/DF (Relator Min. Marco Aurélio, DJ 05.08.2005)
14
Ver, p. ex., SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos
direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011 e
SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora,
2006.
15
Para conhecer a decisão original, acessar: http://www.conseil-constitutionnel.fr/conseil-
constitutionnel/francais/les-decisions/acces-par-date/decisions-depuis-1959/1971/71-44-dc/decision-n-71-44-dc-
du-16-juillet-1971.7217.html. O trabalho original a propósito do tema é FAVOREU, Louis e PHILIP, Loïc. Les
Grandes Décisions du Conseil Constitutionnel. 11. ed., Paris: Dalloz, 2001.
4
constitucionais, formando, assim, um diploma constitucional próprio, como é o caso da
Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto 6.949/09).
Essas, portanto, algumas das razões a justificar, na linguagem jurídica contemporânea, a ideia
de supremacia constitucional que implica, necessariamente, o efeito irradiador
16
(Ausstrahlungswirkung) da Constituição: a imperativa reordenação dos ramos jurídicos
parciais aos ditames constitucionais.
Não é assim, contudo. Ou melhor, o que deve ser não o é necessariamente. Isso aprendemos
logo com a prática e com o mundo concreto. Apesar de a legislação infraconstitucional dever
ser compatível com a carta superior, há vários institutos, em vários ramos do Direito, que,
caso olhados de perto, não passam pelo filtro.
Nesse contexto, algo de curioso acontece com o Direito Eleitoral brasileiro. Não que a
doutrina ou a jurisprudência deixem de considerar sua filiação à Constituição, mas alguma
síndrome insiste em afastar, por momentos, a paternidade. Não pretendo fazer a anamnese da
patologia, todavia, arrisco sugerir alguns indícios.
O terceiro indício aponta para a dispersão legislativa peculiar à matéria e a mania das
reformas legislativas em patchwork, retalhadas e sensíveis a interesses momentâneos.
Ocupados com reformas no varejo da propaganda eleitoral, da arrecadação e dos gastos de
campanha e das inelegibilidades, perde-se o foco na reforma estrutural, orgânica do Direito
Eleitoral.
16
MAIER, Grundwerte..., ob. cit., p. 111
17
Ver, p. ex., PEREIRA, Rodolfo Viana. Tutela Coletiva no Direito Eleitoral: controle e fiscalização das
eleições. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, ps. 15 e ss.
5
O quarto ponto está na tecnicidade própria do ramo que estimula uma visão enclausurada,
como se os institutos jurídicos bastassem a si mesmos. Os temas eleitorais estariam no
universo operacional das fases e dos procedimentos direcionados à organização do pleito, o
que dá a ilusão de se tratar de algo, digamos, de menor envergadura teórica. Assuntos de
caráter técnico para atores também de perfil técnico.
A última razão e a mais curiosa é a carga moralizadora que recaiu sobre a legislação na última
década. Empreendemos uma cruzada pela moralidade na Política e o Direito Eleitoral foi
eleito a trilha de salvação. Veja: não a educação, não a formação para a cidadania e sim, as
regras sobre propaganda, recursos em campanha e habilitação à candidatura. Ocorre que,
constantemente, os ímpetos higienistas carregam doses importantes de autosuficiência e de
certeza. Reforçados pelo argumento do apoio popular, não costumam ser contidos pelas
barreiras e limites impostos pela Constituição.
O núcleo da resistência
Esse é o exato caso das chamadas condições de registrabilidade. O ponto é tão sintomático
que podemos afirmar se tratar de um instituto jurídico praticamente desconhecido do universo
doutrinário constitucionalista18. Basta dizer que não há qualquer referência a ele na
Constituição brasileira, muito embora trate de algo fundamentalmente constitucional.
18
Confira-se alguns manuais conhecidos e a conclusão será exatamente esta: o assunto sequer é tratado. Ver
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet e MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São
Paulo: Saraiva/IDP, 2014, ps. 723 e ss.; CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. 17ª ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2011, ps. 829 e ss.; FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional.
5. ed., Salvador: Jus Podivm, 2013, ps. 648 e ss.; MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 24. ed. São
Paulo: Atlas, 2009, ps. 232 e ss.; NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Método,
2008, ps. 401 e ss. e TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva,
2009, ps. 780 e ss.
19
A terminologia aqui utilizada atende à dogmática constitucional e à doutrina tradicional, muito embora
existam importantes marcos divergentes. É o caso, por exemplo, da bela construção doutrinária de Adriano
6
As condições de elegibilidade estão descritas no artigo 14, §3º da CR/88 e traduzem
requisitos a serem cumpridos, condições positivas a serem preenchidas. Verbis: “art. 14, § 3º -
São condições de elegibilidade, na forma da lei: [...]”. Albergam, ao todo, seis incisos, a
saber: I - nacionalidade brasileira; II - pleno exercício dos direitos políticos; III - alistamento
eleitoral; IV - domicílio eleitoral na circunscrição; V - filiação partidária; e VI - idade mínima
para os cargos eletivos (18 anos para Vereador e 35 para Presidente da República, p. ex.).
Para o tema debatido neste artigo, é crucial sublinhar que o texto do citado artigo 14, §3º faz
referência a eventual regulação das condições listadas mediante publicação de lei ordinária.
Em conclusão preliminar, as condições de elegibilidade só podem ser criadas por norma
constitucional, cabendo ao legislador ordinário apenas os seu detalhamento20. Como
veremos, boa parte da polêmica reside basicamente nessa delegação constitucional ao
legislador.
Soares da Costa. Ver COSTA, Adriano Soares da. Instituições de Direito Eleitoral. 8. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2009.
20
É o caso, por exemplo, do artigo 18 da Lei 9096/95 e do artigo 9º da Lei 9504/97 que complementam o
supracitado inciso V, do artigo 14, §3º da CR/88 ao definirem, para o candidato, tempo mínimo de 01 (um) ano
de filiação partidária anterior à eleição para fins deferimento do registro de candidatura. Também é o caso dos
artigos 111 e seguintes da Lei 6815/80 que detalham o procedimento para aquisição de nacionalidade brasileira
derivada (naturalização), dando concretude ao inciso I, do artigo 14, §3º, da CR/88.
21
Por esse motivo, Adriano Soares entende que o direito à elegibilidade nasce do fato jurídico do registro de
candidatura, não existindo, em tese e como pressuposto, um direito ao sufrágio passivo, mas apenas como
decorrência do deferimento do registro (COSTA, Instituições..., p. 26). Para os limites deste trabalho, a
discussão não influencia de todo, uma vez que o objetivo não é discutir a teoria da (in)elegibilidade.
7
O caso emblemático é o do artigo 11, §1º da Lei 9504/97 que elenca um conjunto de
documentos cuja apresentação é obrigatória para todo candidato. Alguns exemplos:
fotografia, autorização do candidato, cópia da ata da convenção partidária, declaração de
bens, propostas defendidas pelos candidatos a cargos majoritários, etc22.
Como se percebe, tal norma cria requisitos para a candidatura e, acaso não cumpridos,
implicarão o indeferimento do pedido de registro. Seriam essas exigências, então, causas de
inelegibilidade? Certamente não, pois, tendo sido estabelecidas por lei ordinária, estariam in
totum eivadas de inconstitucionalidade. Seriam, assim, condições de elegibilidade?
Igualmente não, uma vez que essas são previstas constitucionalmente. Seriam, assim,
concretização legal das condições de elegibilidade? Nem todas, uma vez que apenas os
incisos I e III (ata da convenção e prova da filiação partidária) derivam indireta e diretamente
do art. 14, §3º, V, da CR/88 (filiação partidária).
Tão simples quanto isso: tudo o que não é condição de elegibilidade (ou seu detalhamento
infraconstitucional), nem causa de inelegibilidade (constitucional ou infraconstitucional), e
ainda assim for obrigatório para a validade do registro de candidatura, passa a ser enquadrado
no universo tortuoso das condições de registrabilidade.
Se tais condições causam algum estranhamento, o que dizer então da tese das chamadas
condições implícitas de elegibilidade? Segundo seus apoiadores, a delimitação dos requisitos
para o exercício do direito ao sufrágio passivo não está contida apenas no rol das
Independentemente da postura classificatória adotada, a questão continua sendo quais fontes normativas estão
autorizadas a criar condições/impedimentos hábeis a regular o exercício do direito ao registro de candidatura.
22
Veja a lista completa: “§ 1º O pedido de registro deve ser instruído com os seguintes documentos: I - cópia da
ata a que se refere o art. 8º; II - autorização do candidato, por escrito; III - prova de filiação partidária; IV -
declaração de bens, assinada pelo candidato; V - cópia do título eleitoral ou certidão, fornecida pelo cartório
eleitoral, de que o candidato é eleitor a circunscrição ou requereu sua inscrição ou transferência de domicílio no
prazo previsto no art. 9º; VI - certidão de quitação eleitoral; VII - certidões criminais fornecidas pelos órgãos de
distribuição da Justiça Eleitoral, Federal e Estadual; VIII - fotografia do candidato, nas dimensões estabelecidas
em instrução da Justiça Eleitoral, para efeito do disposto no § 1º do art. 59. IX - propostas defendidas pelo
candidato a Prefeito, a Governador de Estado e a Presidente da República.”
23
Ver, p. ex., CASTRO, Edson de Resende. Teoria e Prática do Direito Eleitoral. 5. ed. Belo Horizonte: Del
Rey, 2010, ps. 129 e ss e ZILIO, Rodrigo López. Direito Eleitoral. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2008, ps. 166
e ss.
8
competências constitucionais, podendo ser deduzida pelo intérprete a partir do próprio sistema
jurídico.
Não obstante, a tese restou vencida em razão de o Supremo Tribunal Federal ter julgado
improcedente a ADPF 144, por entender que o requisito da definitividade do julgamento
(trânsito em julgado da decisão), então previsto na LC 64/90 para fins de reconhecimento de
24
DIAS, João Luiz Valente. A Moralidade como Condição Implícita de elegibilidade. Jus Navigandi,
Teresina, ano 16, n. 3051, 8 nov. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/20387>. Acesso
em 29.04.2014.
25
Ver o voto do Ministro na Consulta 1.621/08/TSE e na ADPF 144/2008.
26
Seguem alguns autores que apresentaram análises mais técnicas e menos panfletárias: HORSTH, Lidiane
Duarte. A Vida Pregressa Compatível com a Representação Popular no Sistema Brasileiro de
Inelegibilidades. De Jure: Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, 2012. Disponível
em: <https://aplicacao.mpmg.mp.br/xmlui/handle/123456789/1075>. Acesso em 29.04.2014 e CERQUEIRA,
Thales Tácito Pontes Luz de Pádua Cerqueira. Tratado de Direito Eleitoral. São Paulo: Premier Máxima, 2008,
p. 851. É preciso registrar que também existiram importantes vozes contrárias na doutrina: JORGE, Flávio
Cheim e LACOURT, Bárbara Dalla Bernardina. Considerações sobre a Moralidade Administrativa e as
Causas de Inelegibilidade: um enfoque sobre o art. 14, § 9º da Constituição Federal e a Lei Complementar nº
64/90. In Constituição de 1988: o Brasil 20 anos depois. Volume II. Brasília: Senado Federal, 2008.
9
inelegibilidade, não feria o princípio constitucional da moralidade para o exercício do
mandato, previsto no art. 14, §9º da CR/88.
Após a publicação da Lei da Ficha-Limpa, os ânimos amainaram, uma vez que se tornou
possível reconhecer a inelegibilidade daqueles que forem condenados nos tipos legais por
mero órgão colegiado. Contudo, subsiste latente, algures, o fantasma das tais condições
implícitas.
Por certo, os direitos ao voto e à candidatura não resumem todas as facetas da realização
democrática. As teorias contemporâneas, com maior ou menor acento, postulam a
complementariedade entre participação e representação, ademais de ressaltarem formas outras
de inserção política para além do voto. Um conceito-chave, nesse contexto, é o de esfera
pública, isto é, a realização política na democracia constitucional dá-se na esfera de formação
pública e não coagida da opinião e vontade dos membros de uma comunidade política e
10
democrática sobre a regulação dos assuntos públicos27, o que inclui novas arenas (audiências
públicas e orçamento participativo, p. ex.) e novos atores (terceiro setor, p. ex.)28.
Voltando à questão central, é preciso trazer à consciência a relação íntima entre registro de
candidatura e direitos fundamentais. O discurso normativo em torno das restrições ao registro
são discursos sobre a limitação de direitos fundamentais (ser votado e também votar). Logo,
importa estar alinhado às preocupações da doutrina constitucionalista quando aborda o tema
dos “limites dos limites”29.
Pouco importa, nesse sentido, que a fruição do direito ao sufrágio passivo nasça do
deferimento do registro. O fato é que o arcabouço jurídico que informa a análise e o
(in)deferimento do registro deve derivar da permissão constitucional, sob pena de atentar
contra a Constituição. Isto é, a circunstância de o direito de se candidatar derivar do
deferimento do registro não significa que esta fase procedimental possa ser utilizada pelo
legislador ordinário ou pelo magistrado como momento privilegiado para edificar plataforma
moral não autorizada pela ordem constitucional.
Essa foi uma das bases de fundamentação da afirmação pré-Ficha-Limpa de que os direitos
políticos não teriam o mesmo tratamento constitucional dos direitos individuais, pelo que
estaria justificada a restrição ao registro de candidatura sob o pretexto da moralidade, para o
fim de garantir o bem comum em detrimento do interesse particular do candidato e de seu
eleitor.
27
Expressão de Bernard Peters, em tradução livre. (PETERS, Bernhard. Der Sinn von Öffentlichkeit. In
NEIDHARDT, Friedhelm (org.). Öffentlichkeit, öffentliche Meinung, soziale Bewegungen, Opladen:
Westdeutscher Verlag, 1994, p. 45).
28
Para um maior detalhamento, ver PEREIRA, Rodolfo Viana. Direito Constitucional Democrático: controle
e participação como elementos fundantes e garantidores da constitucionalidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2008, ps. 184 ss.
29
Sobre o ponto, ver CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.
ed. Coimbra: Almedina, 2003, ps. 451 e ss.
11
independentemente de sua conformação e mobilidade no plano da concretude fática. Por essa
vertente30, o direito ao registro de candidatura é a expressão do direito de a sociedade escolher
um bom agente político. Ora, a violação do direito ao registro in concreto importa óbvia
diminuição do patrimônio (em sentido lato) do candidato e do seu eleitor, revestindo-se de
características típicas de lesão a direitos também de cariz individual. Por isso, não há
justificativa para querer desigualar o status constitucional dos direitos políticos dos direitos
individuais, como se aqueles merecessem proteção diminuta em comparação a estes.
As condições de registrabilidade, a exemplo do art. 11, §1º da Lei 9504/97, podem ser tanto
de índole procedimental, quanto de cariz material. As primeiras são todas aquelas voltadas à
operacionalidade do procedimento do registro de candidatura, ou seja, à sua viabilidade
procedimental. É o caso, por exemplo, da autorização do candidato, da entrega da fotografia,
dentre outros.
Não obstante, por vezes, tais condições revestem-se de caráter eminentemente substancial,
material, nada tendo a ver com aquela dimensão operacional. São requisitos voltados a medir
a qualidade da candidatura, a adequação do candidato a princípios e valores pressupostos. É
nitidamente o caso da obrigatoriedade da apresentação tanto da proposta de governo pelos
candidatos a Prefeito, Governador e Presidente, quanto, apesar da polêmica, da certidão de
quitação eleitoral.
Não há dúvidas aqui que o primeiro tipo (condições procedimentais) pode ser disposto pelo
legislador ordinário e até mesmo pelo TSE em sede de Resolução, para fins de organização da
fase processual do registro. A obrigatoriedade da apresentação de foto, p. ex., não viola, por
óbvio, o direito fundamental ao sufrágio passivo por se tratar de mera exigência operacional,
facilitadora do exercício do voto por via eletrônica.
Contudo, as condições materiais de registrabilidade, tal como aqui delimitadas, não podem
ser admitidas, vez que violam o mandamento constitucional por criarem
30
Expressamente sustentada nos referidos votos do Ministro Ayres Britto na Consulta 1.621/08/TSE e na ADPF
144/2008.
12
requisitos/impedimentos novos aos direitos políticos mediante lei ordinária/resolução.
Admitir sua existência equivaleria a destruir o princípio da reserva constitucional em matéria
de elegibilidade31.
As condições de elegibilidade também não convivem com a modalidade implícita. São elas
taxativamente previstas na Constituição, podendo ser detalhadas, pormenorizadas, mediante
lei ordinária. O constituinte originário não deu azo a qualquer entendimento em sentido
diverso, pois implicaria, no mínimo, a pressuposição de que a atividade hermenêutica judicial
estaria apta a produzir limites a direitos fundamentais, interferindo na disputa eleitoral e no
jogo democrático a partir de alicerces erodidos.
Sustentar o contrário apresenta-se equivocado por, pelo menos, dois motivos essenciais:
Não é fácil adotar uma postura menos intervencionista e protetiva no processo eleitoral para
erradicar de vez a tentação de impor condições implícitas de elegibilidade. Também não é
simples reconhecer a inconstitucionalidade das condições materiais de registrabilidade,
sobretudo em face do seu apelo moral. Todavia, a conclusão não pode ser outra, sob pena de
arriscarmos conviver, na democracia constitucional brasileira, com a experiência da
insegurança e do desrespeito aos direitos fundamentais, desestabilizando o processo
democrático e minando a proteção às regras do jogo em termos de definição dos atores
participantes da disputa eleitoral.
31
O desafio é realizar, na sequência, o inventário das condições processuais e das condições materiais de
registrabilidade no Brasil. Não é esse, todavia, o objetivo do trabalho.
13
Referências Bibliográficas
CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. 17ª ed. Belo Horizonte: Del Rey,
2011.
CASTRO, Edson de Resende. Teoria e Prática do Direito Eleitoral. 5. ed. Belo Horizonte:
Del Rey, 2010.
CERQUEIRA, Thales Tácito Pontes Luz de Pádua Cerqueira. Tratado de Direito Eleitoral.
São Paulo: Premier Máxima, 2008.
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Juris, 2009.
DIAS, João Luiz Valente. A Moralidade como Condição Implícita de elegibilidade. Jus
Navigandi, Teresina, ano 16, n. 3051, 8 nov. 2011. Disponível
em: <http://jus.com.br/artigos/20387>. Acesso em 29.04.2014.
FAVOREU, Louis e PHILIP, Loïc. Les Grandes Décisions du Conseil Constitutionnel. 11.
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1984.
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14
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Moralidade Administrativa e as Causas de Inelegibilidade: um enfoque sobre o art. 14,
§ 9º da Constituição Federal e a Lei Complementar nº 64/90. In Constituição de 1988: o
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KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1985.
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direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. Ed. Porto Alegre: Livraria do
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