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© 1965 – JOSÉ ALBERTO GUEIROS

Publicado no Brasil pela Editora Monterrey Ltda.


Título original: “Sangue na Grécia”
Capa de Benicio
Digitalizado por Carlos Natali
530221
SETE VÉUS DE BRIGITTE

Brigitte Montfort, personagem central desta aventura que


se inicia agora, é Filha de Giselle, aquela famosa espiã nua
que abalou Paris, ao tempo da ocupação nazista.
O leitor que ainda não leu qualquer das suas histórias
passadas (todas já lançadas no Brasil com o selo da Editora
Monterrey) precisa tomar conhecimento de alguns detalhes
fundamentais de sua personalidade.
Brigitte é uma agente secreta da melhor estirpe, que usa a
profissão de jornalista (repórter do “Morning News”, o
matutino de maior tiragem de Nova Iorque) para abrir
caminho às suas investigações e aventuras. Mas o fato de ser
uma jovem corajosa, sempre pronta a enfrentar o perigo com
decisão, não impede que se mostre, frequentemente, como a
mais sedutora das mulheres. Aliás, nisso repete a glória de
sua mãe, Giselle Montfort, que, em Paris, durante a
ocupação nazista, trabalhou para o grupo da Resistência,
ajudando os maquis e devastando toda a defesa da Gestapo
com a beleza de seu corpo maravilhoso. Giselle desnudava-
se para obter segredos vitais aos planos de invasão da
Normandia. Mais modernamente, sua filha Brigitte, agindo
no cenário da intriga internacional, também se vale de seus
encantos para afrouxar a defesa dos inimigos, espiões e
gangsters da era atômica.
Bela como uma estátua de Praxíteles, esta jovem repórter
do “Morning News” consegue, a cada momento, deslindar
segredos que nem os mais argutos agentes do FBI ou do
Intelligence Service estariam à altura de esclarecer.
Seu “patrão” — mais um amigo e um admirador do que
um chefe, na expressão da palavra — Miky Grogan, diretor
do “Morning News” de Nova Iorque, costuma dizer que “a
beleza de Brigitte vale até o risco da cadeira elétrica”. E a
realidade provou que muitos dos criminosos que a
encontraram sentiram o poder de sua sedução... e perderam a
parada!
A característica principal da repórter Montfort é o bom-
gosto, aliado ao prazer pela proximidade do perigo. Veste-se
nos melhores costureiros de Paris aprecia as melhores
bebidas (Don Perignon 55, Chateau Mouton Rotchild,
Traminer), usa carros de luxo, joias de Vanclef, mas também
adora as coisas simples e os momentos tão frequentemente
críticos da vida de jornalista.
Tendo estudado na Universidade de Colúmbia, é criatura
brilhante, culta, cheia de senso prático, mas absolutamente
feminina e condescendente para com a mediocridade do
mundo contemporâneo. Sente-se tão à vontade num palácio
como num boteco de um país subdesenvolvido.
Mas... vamos à história. Eis aí Brigitte Montfort em ação!
CAPÍTULO PRIMEIRO
Onde o leitor vai encontrar Brigitte Montfort em Atenas, recém-
chegada de uma importante missão no Oriente Médio
A carta de Miky e o convite de Onassis
Cruzeiro grã-fino pelo Mar Egeu

A Grécia de hoje não é, convenhamos, senão uma


apagada lembrança dos tempos de Sócrates e Platão, do
século de Péricles. Civilização medíocre, apenas voltada
para as grandezas do passado.
Mesmo assim, é bonito ver-se Atenas, ainda hoje com sua
Acrópole imponente, seus templos de mármores divinos
talhados por Fídias, Kalikrates, Ictinus e Menesicles, Ainda
hoje, a luz do poente nos macios verões gregos, ilumina e faz
cintilar os tons delicados daquelas pedras seculares. E o Mar
Egeu, em torno, suscitando mistérios, quando não os de
Ulisses, lendários, pelo menos os dos milionários gregos da
atualidade, nos seus iates apinhados de mulheres bonitas e
figuras estranhas do international set buliçoso.
Brigitte Montfort, que estivera em Abadan, na Pérsia,
deslindando o caso das sabotagens fantasmas à Refinaria de
Petróleo da Anglo-Iranian, tomou um avião britânico
(cortesia do Xá) e desembarcou na cidade que os antigos
chamavam “a morada dos deuses”: Atenas, capital da Grécia.
Com essa viagem, Brigitte atendia ao último telegrama de
seu diretor, Miky Grogan, o big-shot do “Morning News”,
que a escalava para nova missão, nem bem havia concluído a
outra. Era assim mesmo seu chefe, o velho Miky: um
implacável farejador de notícias, um sequioso de reportagens
mirabolantes sobre os mistérios do mundo. Mas bom sujeito,
afinal. Generoso e humano. Amigo nas horas difíceis. Só não
admitia a estagnação do noticiário, ou a preguiça de seus
repórteres. E o trabalho de Brigitte era, para ele, uma certeza
de sucesso.
O telegrama tinha sido sucinto:
“Siga Atenas, Hotel Hilton, Procure Carta
Instruções Portaria”.

Já hospedada no “Hilton Palace Hotel”, o mais belo da


Europa, a jovem repórter lia, em seu apartamento de luxo, a
carta recém-chegada de Miky Grogan, obra-prima de
datilografia profissional:
Minha querida Brigitte
Não preciso dizer que seu último trabalho, em
Abadan, teve um sucesso dos diabos. Se eu não
fosse um desalmado redator-chefe, teria dado
instruções para que você regressasse à sua base,
aqui em Nova Iorque, e tomasse umas férias
merecidas. Mas sei que você também não gosta
muito de ficar inativa, fora do seu ritmo de ação e,
férias por férias, a Grécia é um bom lugar para seu
repouso, enquanto carrega pedras...
Fique tranquila. Desta vez, o trabalho será fácil
e até instrutivo. Você sempre me disse que adorava
a Grécia e, mesmo, aprendera um pouco de grego
moderno, para o caso de um dia ter que visitar
essa “morada dos deuses”. Pois aqui está o
assunto: ruínas e tesouros artísticos da velha
Hélade. O negócio é o seguinte: ao fim da última
guerra, as forças americanas, quando construíam
pequeno aeroporto no sopé do Monte Saócio, na
Ilha de Samotrácia, deram com os restos de uma
cidade do tempo de Péricles, soterrada há vinte
séculos. Arqueólogos americanos exploraram
cuidadosamente as ruínas e encontraram boa
quantidade de estátuas, estatuetas, armas. pratos e
jarrões de cerâmica, joias de adorno e outros
objetos pertencentes, sem dúvida, a uma época
anterior à invasão de Dario e ao domínio de
Atenas. Todos esses achados, rigorosamente
catalogados e embalados, foram conduzidos à
cidade marítima de Sabyra, não muito longe de
Piros (que é a localidade mais importante da ilha),
a fim de aguardarem transporte para os Estados
Unidos. Os objetos destinavam-se ao “Art
Museum”, anexo à Universidade de Harvard, em
Boston. À última hora, porém, o Governo grego fez
valer uma lei de 1875, que proíbe a saída de
tesouros artísticos da Grécia. Os arqueólogos não
se conformaram em renunciar aos achados que,
afinal, tinham sido conquistados à terra pelos
soldados ianques. Fizeram longas, mas eficientes,
negociações diplomáticas. Após doze anos de
lengalenga, as autoridades gregas, manifestando
sua gratidão pela ajuda americana, em dólares,
para o seu progresso, decidiram oferecer os
objetos, encontrados nas escavações do Saócio aos
Museus de Harvard e do Louvre, em Paris. Já está
aí, na ilha de Samotrácia, possivelmente, na
cidadezinha de Sabyra, um Professor da
Universidade de Harvard, arqueólogo, chamado
Duff Chandler. Em sua companhia, também se
encontra um cientista francês, sem nenhuma
ligação com o seu amigo Pitzer, chamado Julien
Charcot. Esses dois arqueólogos vão finalizar as
escavações e acondicionar o que já se encontra a
descoberto, para o embarque. Tome nota do nome
do nosso homem; Duff Chandler. Procure-o
imediatamente. Os leitores do ‘Morning News”
gostarão de saber, em primeira mão, detalhes
sobre esses tesouros, destinados ao nosso ainda tão
pobre patrimônio artístico. E gostarão de saber,
igualmente, por que há um arqueólogo francês na
expedição, representando o Museu de Louvre...
Eis, minha cara Brigitte, o motivo de sua
missão. Falar disso tudo em linguagem viva,
interessante, acessível a qualquer americano
vacinado. Entrevistar os dois arqueólogos
associados (que devem ser dois chatos) para que
eles lhe facilitem o trabalho. Não se esqueça de
que foi na ilha de Samotrácia que apareceu a
célebre estátua da Vitória, hoje no Museu do
Louvre.
Como vê, uma reportagem simples. Quase uma
laranjada. Creio que, com isto, lhe proporcionarei
umas boas férias. Mas, por favor, não se meta em
encrencas! Você tem o micróbio do perigo nas
veias! Veja se, desta vez, faz tudo com calma e
saúde. Divirta-se! Anexo, vai um cheque com erva
bastante para todo o seu trabalho. O pessoal aqui
da redação anda danado comigo porque a
mantenho longe tanto tempo. Você precisava ouvir
os protestos de Frank Minello! Eu também acho
que a sua ausência é um pecado, mas sei que você
gosta de viajar, ver mundos e caras novas. Boa
sorte e um beijo na testa do seu
Miky Grogan.
P.S. — O Inspetor Pitzer manda lembranças.
Brigitte saiu rodopiando pelo quarto, feliz como uma
adolescente. Seu chefe era mesmo “um pão”, pensou, no
auge do entusiasmo. Dava-lhe uma simples missão de
“correspondente artístico” para justificar o prêmio de uma
viagem à Grécia, por conta do seu jornal.
Pegou no telefone e chamou a portaria:
— Quero alugar um barco para levar-me, amanhã, à
cidade de Sabyra, na Ilha de Samotrácia. Há alguma linha
regular de lanchas?
O funcionário, todo gentil, não achou graça.
— A senhorita sabe onde fica a ilha?
— No Mar Egeu, é claro. Ainda não houve nenhum
terremoto que a mudasse de lugar.
— Fica a quinhentos quilômetros daqui! Não, não há
nenhuma linha de “hovercrafts” entre Athinai e Samothrake.
Mas não se aborreça, miss Montfort. Recebemos ordens, de
Nova Iorque, para fornecer-lhe um helicóptero de aluguel. A
embaixada americana também já nos avisou e pôs em ação
os seus contatos na Grécia.
Brigitte, surpresa com a organização do hotel e com o
prestígio de seu chefe Miky Grogan que, a cinco mil
quilômetros de distância, lograva lhe conseguir o fretamento
de um helicóptero, falou toda contente:
— Pode marcar a viagem para amanhã, às nove horas! E
muitíssimo obrigada pela excelência do serviço!
O funcionário da portaria aproveitou para engrandecer a
raça:
— Miss Montfort, os gregos ainda sabem ser exatos. E,
para uma hóspede de sua qualidade, não há limites! Nossa
agência também atua na Grécia!
Ao ouvir falar em “agência”, Brigitte franziu o narizinho,
desconfiada. Depois, resolveu esquecer. Deixou-se ficar no
banho quase uma hora. A beleza de seu corpo, entre
espumas, teria suscitado a presença dos escultores gregos da
antiguidade clássica. Faltava ali um cinzel de Fídias, para
imortalizar a jovem deusa moderna.
Estava ainda se enxugando, quando o telefone tocou.
O conselheiro da embaixada americana convidava a
ilustre jornalista para uma noite ateniense. Queria ela subir à
Acropole, para se extasiar diante das ruínas do Templo de
Palas Atenéia, do Hecatompedon (cuja construção nunca foi
terminada), do Erectejon e o Partenon).
Brigitte teria preferido mergulhar, sozinha, no mistério da
cidade desconhecida, beber um copo de rakki1 ou uma xícara
de salva2, num lugar típico, talvez um pouco de vinho com
gosto de resina (famoso pelo seu compromisso com a cirrose
hepática), enfim, andar pelas ruas boemiamente, sem
etiquetas nem protocolos, flertar com um tocador de santuri3.
Mas um convite da sua embaixada não podia ser
desprezado. Foi... e foi deslumbrante, num vestido de gaze
de Jean Dessès, tão grego no seu talhe simples quanto uma
túnica inconsútil.
Estiveram na Acrópole, no antigo bairro de Plaka (abaixo
da colina, cheio de restaurantes e cabarés pitorescos) e
noutros lugares mais reservados. Ao finai da noite, um
jovem secretário de olhar e gestos lânguidos foi levá-la ao
hotel. Era um rapaz alto, louro, de grandes olhos sonhadores
sob as sobrancelhas quase brancas. Brigitte permitiu que ele
subisse ao seu apartamento. Mas, depois que a porta se
1
Bebida quente, uma espécie de ponche.
2
Infusão de ervas bebida quente ou fria.
3
Instrumento de cordas, variedade de cítara ou címbalo, normalmente
tocado por um pequeno martelo chamado plectro.
fechou, o rapaz mudou de atitude. Tirou o paletó e sentou-se,
esticando as pernas em cima de uma mesinha.
— Okay, Brigitte! Meu nome de código é Erwin Colbert!
A repórter franziu o narizinho. Tal como esperava, seu
chefe no FBI, o inspetor Charles Alan Pitzer, também estava
mexendo os barbantes!
— FBI? — perguntou, suspirando.
— Não. CIA. Um simples contato itinerante, a serviço na
embaixada. Não sou agente residencial. Mas recebi um
comunicado do inspetor Pitzer a respeito de sua viagem à
ilha de Samotrácia. Você deverá estabelecer contato com
Duff Chandler, arqueólogo de Massachusetts.
— Já sei.
— Não, não sabe. Duff Chandler é um dos nossos
homens, na Grécia.
— Já sei. Quando Miky Grogan me escreveu, dizendo
que o arqueólogo francês Julien Charcot não era dos nossos,
logo percebi que Duff era. Elementar, como diria Sherlock
Holmes...
— Ele estava encarregado do caso dos guerrilheiros na
Macedônia — continuou Colbert. — Mas pediu para ser
enviado às minas da Samotrácia. É arqueólogo, sem dúvida,
e ninguém sabe que pertence à agência. Você deve entrar em
contato com ele, em Sabyra, e ajudá-lo no que for preciso.
Ao mesmo tempo, obtenha dados sobre os motivos que o
levaram a juntar-se ao francês Charcot, nas escavações da
ilha. Há qualquer mistério na união desses dois cientistas! A
impressão que se tem é de que eles estão procurando algo
mais valioso, nas montanhas. Você dirá do que se trata, pois
Chandler ainda não nos disse nada.
— Há um pequeno detalhe — acudiu Brigitte, sorrindo.
— Eu trabalho para o FBI e não para a CIA. Sou espiã local
e...
O secretário acenou, interrompendo-a.
— A partir daquele caso dos discos voadores, que a levou
à Baviera, você passou a ser agente internacional. E a
trabalhar, também, para a CIA. Seus papéis, para a admissão
oficial na agência, estão preparados e devem ser assinados
logo que você voltar aos Estados Unidos. Quem se mete em
espionagem, minha querida, tem que ir até o fim, seguindo
os trâmites competentes e subindo os escalões do ofício —
Se quer uma notícia confidencial, posso lhe assegurar que
seu chefe no FBI, o inspetor Pitzer, acaba de ser transferido
para a CIA. Agora, dê-me um beijo. Só tenho olhares e
gestos lânguidos na embaixada; fora dela, sou um assanhado.
E sinto que morrerei se você não me beijar!
***
No dia seguinte, Brigitte foi despertada pela melodiosa
campainha do telefone. Era uma voz de mulher, falando
inglês com sotaque grego:
— Bom-dia, miss Montfort. São oito horas da manha e o
dia está lindo. Continua interessada em partir para a Ilha de
Samotrácia?
Brigitte bocejou.
— Sim, claro. Já aprontaram o helicóptero?
— O aparelho poderá partir do heliporto anexo ao
Aeroporto Central no horário previsto. Por outro lado, acaba
de chegar uma mensagem urgente, que talvez lhe interesse.
Posso mandar levá-la ao seu apartamento?
— Faça isso, por obséquio.
A mensagem era assinada por um conhecido astro do
cinema italiano e dizia:
Adorável Brigitte,
Logo que soube que você estava na Grécia,
apresei-me a levar a notícia ao nosso amigo
Aristóteles Onassis e ele me autorizou a convidá-la
para participar de nosso atual cruzeiro turístico
pelo Mediterrâneo. Sua presença será uma honra
para todos nós, seus humildes admiradores. Saímos
da ilha de Scórpio há uma semana, minha mulher
ficou em Rodes e eu não tenho com quem
conversar de madrugada. O “Cristina” está
ancorado no Pireu, à sua espera. Dependendo de
você, sairemos às nove para Creta.

Brigitte ficou um minuto pensativa com o bilhete na mão.


Depois, decidiu-se. Poderia reunir o útil ao agradável,
viajando para a ilha de Samotrácia a bordo do luxuoso iate
do multimilionário grego, na companhia das mais
encantadoras personalidades do show business e da política
internacional, batendo memoráveis “papos”, cintilantes de
malícia e inteligência! Sempre seria mais agradável do que
atravessar o Mar Egeu num helicóptero alugado...
Fez a sua toilette em tempo recorde, telefonou para a
portaria pedindo que enviassem o helicóptero, vazio, para a
Samotrácia e lhe arranjassem um táxi que a levasse ao pôrto
e, às oito e meia, desceu, acompanhada por um groom, que
levava as suas malas.
O Pireu, que já foi uma cidade independente, hoje é o
bairro portuário de Atenas; o táxi (alemão) de Brigitte seguiu
pelas longas e belas avenidas da cidade nova, cruzou a
Agora, a Platéia Syntagmatos e a Platéia Omonia, circundou
a colina onde se erguia a Acrópole e, depois de atravessar as
ruelas da cidade velha, seguiu para o sudoeste, rumo ao
Golfo do Pireu.
Já eram quase dez horas quando ela embarcou na lancha
branca que a levou para bordo do magnífico iate “Cristina”,
ancorado ao largo, à sua espera. A chegada da bela repórter
foi um acontecimento! Havia cerca de vinte convidados a
bordo, todos ansiosos por uma novidade que lhes sacudisse
os nervos. Mulheres displicentes e homens cansados do
supérfluo. Brigitte, com sua presença cheia de charme e
mistério, afastou o spleen dos ternos bocejadores
insatisfeitos. Mas a primeira providência da linda jornalista
foi entrevistar-se com o proprietário do iate e pedir-lhe que,
antes de descer para Creta e entrar no Mediterrâneo, desse
uma voltinha pelo norte do Mar Egeu, a fim de deixá-la na
Ilha de Samotrácia... Gentil como sempre, o famoso armador
Aristóteles Onassis concordou, depois de um rápido
entendimento com a famosa cantora Maria Callas. E Brigitte,
feliz da vida, pôde distribuir os seus sorrisos cativantes pelos
convidados que mais necessitavam deles... Entre outros
artistas de fama internacional, estavam a bordo Anthony
Quinn (protagonista de “Zorba, o Grego”), Paul Newman e
Omar Sharif.
O iate levantou âncora às dez e meia, navegando numa
média de menos de quatorze nós por hora ao longo da costa
sul da Grécia, rumo à ilha de Réa. Brigitte permaneceu no
salão (bebendo champanha Don Perignon com cerejas
frescas, entre quadros legítimos de El Grecco) até à uma
hora da tarde; a essa altura, visivelmente afogueada, sugeriu
um mergulho geral na piscina de mosaicos antigos. O banho
também foi uma apoteose de beleza paga. A filha de Giselle,
vestindo um reduzido biquíni azul (da cor exata de seus
olhos) abriu o apetite de todos os seus fanáticos admiradores.
Um gongo tocou, uma hora depois, interrompendo as
massagens na piscina. Almoçaram à vista da ilha de Réa,
onde fundearam para apreciar a paisagem. As cinco da tarde,
nova partida, para a ilha seguinte do arquipélago. Chegaram
a Andros a tempo de jantar e descer para um passeio
pitoresco.
Passaram a noite ao largo de Andros e, às nove da manhã
seguinte, o agradável cruzeiro continuou, rumo às ilhas de
Sarakenikon e Skyros, e daí rumo a Lemnos, já em águas
territoriais turcas. Aí também passaram a noite, comendo
ostras e caviar, No dia seguinte, o iate largou de Lamnos e
voltou às águas gregas, seguindo para a Ilha de Samotrácia,
oitenta quilômetros ao norte. Era o ponto final da viagem de
Brigitte e seu adeus aos refinados confortos do iate de seu
amigo Onassis.
As quatro horas da tarde, o “Cristina” fundeou em frente
à cidade de Pyros. E, apesar dos protestos de todos os
homens válidos de bordo, Brigitte despediu-se beijando as
mulheres nas duas faces com o risco de levar uma dentada,
tomou a lancha e desembarcou com suas malas azuis.
Quando o iate voltou ao mar, duas horas depois, a vida a
bordo tinha perdido metade do seu encanto. Ainda havia
champanha e caviar, mas já não havia Brigitte. E nenhuma
das famosas estreias de cinema presentes poderia substituir
em beleza, charme e inteligência a extraordinária repórter
americana. Nenhuma, realmente.
Agora, ali estava ela, no modesto cais de Pyros, com as
duas malas aos pés e a câmara fotográfica pendurada no
pescoço, olhando ao redor com ar de curiosidade. Mas não
ficou sozinha por muito tempo. Súbito, um homem alto e
magro apareceu na entrada do cais e avançou para ela, a boca
aberta e o cavanhaque espetado para frente. Usava um terno
de casimira bege, com colete de fantasia, e portava uma
bengala na mão grande e calosa.
— Mon Dieut — exclamou ele, contemplando a recém-
chegada com os olhos arregalados por trás das lunetas. — É i
própria Níké! É a cabeça da Vitória! C'est mervelleux,
épatant, admirable!
E pôs-se a dar gritos de entusiasmo, Dissimuladamente,
Brigitte apanhou uma de suas malas e protegeu-se com ela.
O homem parecia alucinado e ameaçava beijá-la; depois de
ter sido cultuada pelos maiores galãs cinematográficos do
mundo, a bordo do “Cristina”, ela não queria acabar nas
mãos de um maluco, na Ilha de Samotrácia.

CAPÍTULO SEGUNDO
Chegada a Sabyra
Ligeira palestra com um negociante turco
A cabeça da Vitória
Um estranho acidente

Mas o francês não era um louco; depois daquelas


manifestações de entusiasmo, caiu em si e tirou o chapéu-
coco, desculpando-se:
— Pardon, mademoiselle. Não se assuste, peço-lhe! Eu
devia ser mais reservado, mas... a semelhança é
extraordinária! Estava longe de supor que iria encontrar Niké
revivida! C’est admirable!
— Nike? — fez Brigitte, desconfiada, sem largar a mala
com que se defendia.
— Mais oui! Niké é o nome, em grego, da Vitória. Você
se parece extraordinariamente com a Nike encontrada na
Samotrácia!
— Isso é muito esquisito — tomou Brigitte. — A estátua
da Vitória, descoberta nesta ilha, não tem cabeça! Como é
que o senhor sabe...?
— Pois é isso — atalhou o homem, de olhos arregalados.
— Ê isso, exatamente, o que toma a parecença tão
extraordinária! — Mudou de atitude. — Suponho que
mademoiselle seja a famosa repórter Brigitte Montfort,
correspondente do “Morning News”?
— Sim, sou eu. E o senhor, quem é?
— Pardon — volveu o homem, empertigando-se. — Sou
Julien Charcot, Professor de Arqueologia da Universidade de
Paris e correspondente do Museu do Louvre nas ruínas de
Sabyra. Desculpe o meu arrebatamento — prosseguiu,
sacudindo a cabeça. — Estou desolado! Dê-me as suas
malas, por favor.
Tranquilizada, Brigitte entregou-lhe a bagagem.
O francês agarrou nas duas malas e pôs-se a andar,
lepidamente, a caminho da saída do cais. A linda repórter
acompanhou-o, observando-o de soslaio. O arqueólogo
aparentava quarenta anos de idade e era uma figura bizarra,
com seu chapéu-coco preto, sua barbicha em ponta e suas
polainas de camurça cinzenta. Um parisiense de refinada
elegância, que parecia deslocado na paisagem rústica de uma
ilha grega.
— Seu helicóptero chegou ontem — continuou ele,
encaminhando Brigitte para uma praça, em frente ao cais. —
Soubemos, então, que mademoiselle viria no iate de recreio
de seu amigo Onassis. Meu colega Duff Chandler não pôde
vir a Pyros, mas vim eu. É um prazer conhecê-la. Como foi
de viagem?
— Bem, obrigada. Estamos indo para onde?
Julien Charcot sorriu; seus olhos, através das lunetas,
também sorriram.
— Para o seu helicóptero, é claro. Ele nos levará a
Sabyra. Ou mademoiselle prefere jantar e passar a noite em
Pyros?
— Não, não. Preciso me entrevistar com Mr. Duff
Chandler. E, se ele ficou em Sabyra, é para lá que quero ir!
— Oui, ele ficou em Sabyra — disse o francês
lentamente. — Foi lá que montamos o nosso quartel-general.
Seu quarto já está reservado, na melhor hospedaria da
localidade. É a primeira vez que vem a Samotrácia,
mademoiselle?
— Sim, a primeira vez. Mas conheço esta ilha de nome.
Já sei que terei muitos objetivos para fotografar. Dizem que
cada metro quadrado desta terra privilegiada guarda
vestígios de uma civilização perdida.
— Sem dúvida, mademoiselle. A Grécia ainda nos
reserva muitas e agradáveis surpresas. Agora mesmo, no
sopé do Saócio, tivemos uma dessas surpresas, com o
encontro dos restos de um templo edificado na época de
Dario e destruído no ano 160 antes de Cristo, depois que
Perseu, vencido, aqui se refugiou. Os objetos de arte
recolhidos, tal como a célebre estátua de Niké, pertencem à
escola de Scopas de Paros. Isso é muito interessante, não
acha?
— Acho. Fotografarei tudo, ao chegar, e farei uma
reportagem exclusiva. Espero que o senhor e Mr. Chandler
me deem informações detalhadas sobre cada objeto
encontrado nas escavações.
— Conte comigo — disse o francês, olhando-a
embevecidamente. — É a própria Niké! Se ela tivesse os
olhos azuis... Extraordinaire!
Incomodada com aquele olhar ardente, Brigitte não sabia
o que dizer. Atravessaram a praça e logo viram o helicóptero
(um Hawkins-Eight de quatro lugares) parado numa pequena
elevação de pedra — talvez novas ruínas de um templo
macedônio. O piloto do aparelho, que tinha ordens de servir
a Brigitte sem fazer perguntas, era um jovem ateniense de
bigode fino e olhos negros, chamado Atanásios. Parecia um
rapaz culto e inteligente.
— Leve-nos para Sabyra — ordenou a repórter, depois
que Julien Charcot suspendeu as malas para bordo. — Você
conhece o caminho?
O piloto acenou e ajudou-os a embarcar na cabina
envidraçada. Uma vez fechada a portinhola, a grande hélice
aumentou as rotações e o helicóptero elevou-se
majestosamente no ar, tomando o rumo leste.
— A antiga Samotrácia — informou o francês,
inclinando-se para a sua companheira — fica a noroeste da
ilha e continua sendo um amontoado de ruínas. Sabyra fica a
nordeste, à beira do mar, embora não muito longe do sopé da
montanha. É curioso como as novas escavações de Sabyra
puseram a descoberto objetos de arte indiscutivelmente
ligados ao templo dórico encontrado, em 1860, do outro lado
da ilha.
Brigitte sorriu.
— É provável que houvesse dois templos semelhantes,
um a leste e outro a oeste. E os sacerdotes deviam usar os
mesmos apetrechos.
— Oui, é provável — disse o francês, olhando-a de
esguelha. — Mas não definitivo. As coisas, quando se
partem, não se espalham tanto...
Depois desta tirada enigmática, ficaram em silêncio,
apreciando a paisagem, que parecia escorrer por baixo do
helicóptero. Viajaram o tempo todo por cima da ilha,
cruzando um solo rochoso e pouco fértil, onde se viam raras
oliveiras, figueiras e vinhedos. O monte Saócio também foi
transposto, ao longo de sua vertente nordeste.
— Este é o ponto mais alto do arquipélago grego —
informou Julien Charcot, apontando para o lado, — Tem
cerca de mil e setecentos metros de altura. De cima deste
monte, segundo a Ilíada, Poseidon presenciou os combates
que se deram em volta de Tróia.
— Poseidon — comentou Brigitte — devia usar um
excelente binóculo...
Numa das escarpas da montanha de pedra, mais para
leste, havia dois ou três pontos cobertos de fumaça.
— Estarão fazendo fogueiras? — perguntou Brigitte.
— Mais non — respondeu gravemente o francês. — São
“fumarolas”. Ainda há algumas fontes de gás natural, em
combustão, nos locais onde se praticavam antigamente os
Mistérios dos Sabyros e se ouvia o Oráculo de Samos. As
escavações ficam deste lado, aqui embaixo. E assim
chegamos a Sabyra!
Pouco depois, o helicóptero desceu numa praça de uma
cidadezinha medíocre, entre o mar e a montanha. Todas as
casas eram iguais, baixas e velhas, e tinham um pequeno
quintal cercado por um muro de pedra. Brigitte e seu
cicerone francês desceram e despediram-se do piloto. Êste
curvou-se respeitosamente.
— Estarei sempre ao seu dispor, miss Montfort. O
aparelho ficará aqui. Quando precisar de mim, bastará me
procurar na taberna do compadre Alexandrócolos. Que tenha
muita sorte, miss Montfort!
Julien Charcot apanhou as malas e Brigitte foi atrás dele.
Do outro lado da pracinha, havia uma estalagem com uma
tabuleta que a identificava como “O Lar de Gregórios”. Seu
proprietário, que veio receber os viajantes no alpendre, era
um grego de meia-idade, gordo, bigodudo, cor de azeitona.
Usava umas calças muito folgadas e sem vinco, um blusão
azul encardido e tinha uma faixa vermelha na cintura
volumosa.
— Salve! — bradou ele, correndo a apanhar as malas.
— Salve, Gregórios! — respondeu Julien, indicando
Brigitte. — Aqui temos mademoiselle Montfort, a célebre
jornalista franco-americana. Mister Chandler ainda não
voltou da montanha?
— Ainda não, professor. Mas o dia está acabando e ele
não deve demorar. Manolakas é um excelente guia, eu sei,
mas é sempre perigoso descer o Saócio com noite fechada.
Os deuses já moraram lá, mas foram substituídos pelos
demônios. Muito prazer em conhecê-la, miss Montfort —
continuou, sorrindo para a repórter. — Espero que goste de
minha modesta pousada. Amanhã, conhecerá os pratos da
casa. Somos especialistas em miúdos de porco.
— Amanhã? — Brigitte olhou, desolada, para Julien. —
Não vamos jantar aqui? Estou morrendo de fome!
O francês deu uma risada.
— Não se assuste, mademoiselle. É um costume loca1.
Todos os turistas de certo prestígio têm que fazer a sua
primeira refeição na casa do Prefeito. Monsieur Alexandros
Esganademos, o prefeito de Sabyra, é um excelente anfitrião.
Ele nos espera às nove, para o jantar. A verdade —
acrescentou, piscando um olho — é que monsieur
Alexandros está doido por nos ver pelas costas. A mim e a
Duff.
— É mesmo? — fez Brigitte, abrindo muito os olhos
azuis.
— É. O gordo Prefeito é um nacionalista doente e está
furioso porque as autoridades federais permitiram que os
objetos de arte de Sabyra fossem levados para o estrangeiro.
Mas, como não pode evitar o embarque, quer se ver livre de
nós o mais depressa possível. Contudo, monsieur Alexandros
é um cavalheiro e certamente terá preparado um excelente
jantar para nós. Tem uma hora inteira para se preparar,
mademoiselle. Quando estiver pronta, procure-me no bar da
hospedaria, para tomarmos uns aperitivos e comermos uns
hors-d’oeuvres.
O próprio estalajadeiro levou a nova hóspede para um
quarto dos fundos, pequeno, mas asseado, onde depositou as
malas. Mostrou-lhe o banheiro, ensinou-a a acender a
lamparina de azeite e foi-se embora. Brigitte fechou a porta,
despiu-se, lavou o rosto numa bacia e vestiu uma roupa
típica grega, que trazia numa das malas. Ficou menos
elegante com os de calções fofos e túnica larga, mas muito
mais identificada com a ilha. Quinze minutos depois, surgiu
no bar da hospedaria, que era também O refeitório. Julien
Charcot estava encostado ao balcão, conversando com um
sujeito alto e forte, muito moreno, que usava um barrete
vermelho com uma borla preta. Um turco, sem dúvida; havia
muitos deles na ilha. O arqueólogo fez as apresentações.
— Monsieur Mustafá Beysehir, comerciante em Sabyra e
dono de uma frota de barcos de pesca... Mademoiselle
Brigitte Montfort, correspondente especial do “Morning
News” de Nova Iorque...
O homem moreno beijou a mão da jovem, causando-lhe
um curioso arrepio, uma espécie de alergia instantânea. Seus
beiços eram carnudos e molhados. E sua voz, rouca e
desagradável:
— Muito prazer, encantadora. Sabyra está aos seus pés!
Já tinham me dito que uma nova deusa nasceria das ruínas...
Vão jantar na Prefeitura?
— Oui — disse Julien. — Logo que meu companheiro
voltar da montanha.
O turco apertou os olhos negros.
— Com que então, Mr. Chandler voltou ao monte, hem?
Não sabia disso. Esperemos que ele regresse antes do
anoitecer. Muitas coisas funestas podem acontecer aos
turistas que se aventuram, sozinhos, no Saócio... O monte
ainda guarda alguns segredos milenares...
Brigitte achou o sujeito tremendamente antipático, sujo e
agourento. Mas sorriu para ele como se o considerasse um
êmulo de Omar Sharif.
— O senhor é muito gentil, Mr. Mustafá...
Sentaram-se numa mesinha, ao fundo da sala, e o velho
Gregórios serviu-lhes cálices de rakki e ouzo, uma espécie de
anis aguado. Julien Charcot também pediu caroços de
abóbora torrados e espetinhos de carne grelhada, chamados
souvlákias.
A conversa girou em torno das novas ruínas, encontradas
ao nordeste de Sabyfa, e do embarque dos achados para
Atenas. Era um barco da frota do negociante turco que ia
fazer o transporte.
— Quando aluguei o “Denizi Palas” — disse o otomano,
sem tirar os olhos de Brigitte —, não sabia que era para levar
preciosidades para fora da Grécia. Agora, está feito e
cumprirei a minha palavra. Mas também acho que a arte
grega não devia sair daqui! Atualmente, há mais
antiguidades helênicas no estrangeiro do que na própria
Grécia! Isso é muito desagradável!
— Tem razão — disse Brigitte. — Os turcos também
surripiaram muitas antiguidades gregas, para os seus
museus... Isso, quando não as destruir em suas campanhas
bélicas.
Mustafá Beysehir sorriu, mostrando uns dentes brancos e
pontudos.
— Certo. Mas isso pertence ao passado, encantadora.
Vejo que não simpatiza muito com a política de meu país...
— Não estou falando de política — contrapôs a repórter.
— Sou uma jornalista e limito-me a descrever fatos e a
fotografar objetivos. Nunca faço comentários. As mulheres
detestam discutir política.
— Mas devem ter uma opinião — insistiu o turco. —
Imagino que não viria à Grécia se não soubesse de que lado
deveria ficar... É claro que, como cidadã americana, apoia o
governo atual, não é verdade? E condena os guerrilheiros do
norte, insuflados por Moscou...
Brigite foi enérgica:
— Desconheço a existência de guerrilheiros no norte, Sr.
Mustafá! Vim aqui para fazer a cobertura jornalística da
Expedição Chandler! Sinceramente, nada entendo de política
partidária. Não sou da direita nem da esquerda!
Julien Charcot acudiu:
— Mademoiselle Montfort acaba de chegar à Grécia.
Mas, dentro de alguns dias, aposto que já terá tomado um
partido. Terá muito por onde escolher, entre tantas correntes
políticas. Os gregos formam o povo mais dividido do
mundo.
— O senhor é EDES? — perguntou o turco, à queima-
roupa.
O francês encolheu-se todo.
— Não. Sou arqueólogo. Ainda não tomei nenhuma
posição, diante da confusão reinante. Mas é possível que
minhas simpatias pendam para a liga Democrática Nacional.
Não tolero extremismos.
— Temos, atualmente, apenas cinco partidos na Grécia
— tomou Mustafá, voltando-se para Brigitte. — A Frente de
Libertação Nacional, a EAM, foi posta fora da lei. Temos a
EDES, de tendência conservadora; a EKKA, nacionalista; a
ESS, democrática; a ÁSPIDA, socialista, e a ELAS,
comunista. Qual é a sua miss Montfort?
— Não sei — respondeu Brigitte, irritada. — É proibido
ser neutra?
O turco voltou a sorrir como um lobo.
— Não. Claro que não. Certamente pode se omitir,
encantadora. Mas é perigoso viver na Grécia sem uma
definição política. Eu, por exemplo, sou simpático aos
conservadores da EDES, que agora estão no poder. Eles
favorecem uma política de amizade com a Turquia e eu, que
nasci em Ancara, tenho a obrigação de apoiá-los. Nosso
prefeito, Alexandros Enganademos, é um dos líderes da
EKKA, o partido da Reconstrução Nacional. A EDES e a
EKKA leem pela mesma cartilha... Por isso, também sou
bem recebido em casa de Alexandros. Havemos de nos
encontrar lá, na hora do jantar.
O agressivo indivíduo ainda os incomodou, por mais
alguns minutos; depois, despediu-se bruscamente. Brigitte e
Julien viram-no partir, soltando um suspiro de alívio. Era,
então, sete horas de uma noite quente e bonita. Gregórios
Metastaxas tinha acendido os lampiões da hospedaria e
estava muito ocupado, servindo meia dúzia de fregueses, no
bar. Ao se verem sozinhos, no fundo do salão, Brigitte e o
francês disseram ao mesmo tempo:
— Agora, nós! Eu gostaria de saber...
Interromperam-se e riram-se. A repórter voltou a falar:
— Faça a sua pergunta, Mr. Charcot A minha talvez exija
uma resposta mais demorada.
— Bem, mademoiselle... — O arqueólogo tirou as lunetas
e limpou-as na toalha quadriculada da mesa. — Eu gostaria
de saber se você já conhecia meu amigo Duff Chandler,
desde suas atuações nos Estados Unidos...
A pergunta era uma insinuação. Sem dúvida, o francês
sabia que seu companheiro era um agente secreto.
— Não — respondeu Brigitte. — Nunca vi Mr. Chandler.
Mas isso não quer dizer que não o conheça de fama. Temos
alguns amigos em comum.
Essa resposta era sincera e conclusiva, para quem
soubesse traduzir o seu sentido. Julien assentiu com a cabeça
e cofiou a barbicha. Tinha posto, outra vez, as lunetas em
cima do nariz de águia.
— Agradeço-lhe a confiança, mademoiselle. E, em paga,
lhe direi que também tenho alguns amigos no Deuxième
Bureau. Todavia, não estou aqui exercendo nenhuma
função... diplomática. Qual era a pergunta que pretendia me
fazer?
Brigitte encarou-o de fito.
— Monsieur Charcot, o senhor conhece a cabeça da
Vitória de Samotrácia?
Uma pausa. O francês engoliu em seco e baixou a voz:
— Oui. Você deduziu tudo, com muita perspicácia.
Evidentemente! Se eu achei seu rosto parecido com o de
Niké, era porque conhecia o rosto dela... Pois é verdade,
mademoiselle! Eu vi a face da Vitória!
Brigitte sentiu um arrepio. Aquilo era surpreendente.
— Como é possível, Mr. Charcot? A estátua da Vitória,
que se encontra no Museu do Louvre, não tem cabeça! E já
foi encontrada assim!
O francês assentiu gravemente. Depois, olhou ao redor e
baixou ainda mais a voz:
— Mademoiselle conhece a história da estátua de Niké,
encontrada em Samotrácia? Saiba que eu sou um dos mais
fanáticos admiradores dessa magnífica obra de arte! A Niké
foi descoberta, em 1863, quando alguns arqueólogos
desobstruíram as ruínas de um templo dórico, na antiga
cidade de Samotrácia. Por essa época, era cônsul da França,
em Andrinopla, monsieur Champoiseau, que logo enviou a
estátua para Paris. Hoje, ela adorna o alto da grande
escadaria Daru, no Louvre. Mas faltam-lhe os braços e a
cabeça. Apesar dessas mutilações, sabemos que a obra
pertence à escola de Scopas de Paios e fazia parte de uma
monumento erigido por Demétrio Polioceta, entre os anos de
306 e 294, em comemoração de uma batalha, ao largo da
Ilha de Chipre, ganha pelos macedônios sobre o egípcios
comandados por Ptolomeu, filho de Lagos. Mas a estátua
não tinha cabeça, mademoiselle! E, desde que eu lhe pus os
olhos em cima, no Louvre, jurei a mim mesmo que não
haveria de morrer sem ver a face da Vitória!
— Foi um juramento muito precipitado, monsieur...
— Eu sei. Mas eu tinha uma grande fé, mademoiselle!
Sentia uma esperança magnífica! E, há dez anos, vim para
Samotrácia e aqui tenho vivido, a escavar o terreno de um
lado e do outro, em busca dos restos da maravilhosa Niké! A
cabeça da Vitória, pensava eu, tinha que ser algo espantoso,
divino, inexplicável! Estaria ela sorrindo, pelo triunfo? Ou
chorando, pelos mortos? De qualquer maneira, eu supunha
que fosse de uma beleza sem par! E não me enganei!
— Então, conseguiu mesmo encontrar...?
— Fale baixo, mademoiselle. No princípio deste ano,
quando escavava as ruínas, ao sul de Pyroe, fui informado de
que havia aparecido uma cabeça de pedra, sem corpo, no
sopé do Saócio, perto de Sabyra. Os camponeses locais são
muito supersticiosos e têm um grande respeito pela lenda da
cabeça de Niké. Acham eles que a bela face da Vitória não
deve ser contemplada por olhares humanos, para não ser
profanada em sua imortalidade. Dizem, mesmo, que quem
contemplar o rosto de Niké está condenado a morrer
prematuramente. Mas, ao mesmo tempo, também dizem que,
se algum mortal possuir esse talismã, terá muita sorte em
todas as suas empresas, desde que o possua sem olhar para
ele.
— Um pouco contraditório, não acha? Como se pode
possuir algo tão belo sem arriscar um olho?
— Há muitas superstições contraditórias na Grécia,
mademoiselle! O fato é que me informaram que havia uma
cabeça de mulher em Sabyra e seu proprietário não queria se
desfazer dela. A obra de arte fora encontrada numa gruta do
Saócio, muito distante da antiga Samotrácia, onde apareceu o
corpo de Niké. Vim para aqui, mademoiselle, e entrevistei o
dono do tesouro. Era um camponês bruto e ignorante, mas
muito rico e respeitado. Sua fortuna lhe caíra do céu, por
assim dizer, ao encontrar uma mina de cobre em suas terras.
E ele possuía, realmente, a cabeça que faltava à estátua da
Vitória!
— O senhor a viu?
— Eu a roubei!
— Oh!
— Mas só fiquei com ela uma noite. O camponês, que se
chamava Vulgaris, guardava a relíquia num galpão fechado a
cadeado. Arrombei a porta e roubei-a, numa noite de
tempestade, fugindo para a montanha. A cabeça, envolta
num saco de estopa, tinha quase meio metro de diâmetro e
devia pesar oitenta quilos. Eu e meu guia Apolonikos só a
conseguimos carregar depois de amarrá-la com cordas.
Fomos perseguidos pelos criados de Vulgaris e encurralados
no alto do monte. Meu guia defendeu-se a tiros e foi
fuzilado. E eu... eu perdi a cabeça!
— Como?
— Estávamos à beira de um precipício. No calor da
refrega, a cabeça rolou pelo despenhadeiro e desapareceu,
muitos metros abaixo. Fui aprisionado, mas nenhum dos
guardas de Vulgaris conseguiu recuperar o talismã. E,
quando voltamos à casa do camponês, tivemos uma surpresa.
Ele estava morto!
— Morto?
— Oui, mademoiselle. Com um tiro no ouvido. Cometera
o suicídio, na suposição de ter perdido a relíquia e, com ela,
a sorte que o vinha bafejando. Não houve polícia, nem
julgamento. Deixaram-me livre e abafaram o escândalo. Mas
a cabeça de Niké nunca mais apareceu! Nunca mais,
mademoiselle! Voltei repetidas vezes ao Saócio, àquele lugar
amaldiçoado, por cima das “fumarolas” do Oráculo de
Samos, mas nunca, mais pude contemplar as feições
maravilhosas dá minha querida Niké! Não encontrei nada,
mademoiselle! Riett de tout!
— E o senhor chegou a ver suas feições?
— Oui, mademoiselle. Eu as vi, no alto do monte,
naquela noite de tempestade! Eu as vi, ao fulgor dos
relâmpagos! Ela não está sorrindo, nem chorando, porque
suas bochechas estão infladas, soprando uma trombeta. Mas
nenhuma mulher de carne e osso pode ter um rosto tão puro,
tão belo, tão suave, tão expressivo, tão feiticeiro quanto o de
Niké! Eu julgava que não houvesse outras feições tão belas,
na natureza... até que encontrei você!
Brigitte recuou um pouco, na cadeira.
— Quer dizer que... eu me pareço com ela?
— Oui, mademoiselle! Seu rosto admirável tem as linhas
divinas do mármore talhado por Pernus de Samos! Sim,
Pernus de Samos! Depois que vi a cabeça de Niké, não tenho
dúvida de que a obra pertence a esse escultor da escola de
Scopas de Paras, filho de Presepius e amante de Skyropoula!
Você é a própria Niké revivida! Mas é uma pena,
mademoiselle! C’est dommage! Apesar de muito bonita,
você não tem a beleza serena do verdadeiro mármore! Niké é
muito mais sedutora do que você! Je vous demande pardon!
— Obrigada — disse Brigitte, com um certo despeito. —
Então, o senhor prefere a cabeça de pedra?
— Oui, mademoiselle! Eu daria a própria vida para
recuperar a minha Niké! Você não pode compreender isso,
porque não é arqueóloga e não sabe o que sente um homem
apaixonado pela beleza eterna do mármore divino! Oh, que
momentos de gozo passei eu, beijando a cabeça de Niké! É
uma pena que você não seja feita de pedra!
Brigitte suspirou e concluiu:
— Então, é por isso que o senhor se encontra em Sabyra,
ajudando Duff Chandler a recolher os objetos de arte
encontrados no sopé da montanha?
— Oui — disse o francês, abatido. — Mas tudo é inútil!
Reuni-me aos americanos e, como sou residente na
Samotrácia, fui recebido com alegria. Fui eu quem conseguiu
a licença do governo para a retirada do material. Contudo,
nada daquilo que Duff Chandler reuniu, e catalogou me
interessa. Rien de tout! A cabeça de Niké não apareceu! E é
só a cabeça de Niké que me interessa levar para o Louvre!
Continuo à procura dela, mademoiselle, mas já sem grandes
esperanças de encontrá-la. E você, gentil amiga... você não é
feita de pedra! Infelizmente, você é de carne e osso! E eu
não aceito imitações!
Houve uma pausa e dois suspiros. Um grupo alegre de
pescadores entrou na estalagem e pediu salva quente. Mesas
e cadeiras foram arrastadas, entre gritos de júbilo. Brigitte
olhou para o relógio de pulso e viu que já eram sete e meia.
— Tão tarde! E Mr. Chandler não veio!
O francês despertou de seu letargo.
— Como? É estranho! Já era tempo de Duff ter descido!
— Que é que ele foi fazer no Saócio?
— O mesmo de sempre. Duff acha que pode haver novos
fragmentos de estátuas no alto do morro. Seriam uma espécie
de guardiões do Oráculo de Samos...! Mas, até agora, não
encontramos nada, além das peças que estão guardadas no
depósito da Prefeitura. Devemos sair da ilha na próxima
segunda-feira. E eu perdi, outra vez, a cabeça da Vitória!
Brigitte arriscou:
— Não acha que é hora de irmos indo para o tal jantar na
casa do prefeito?
— Oui — assentiu o arqueólogo, sem grande entusiasmo.
— Vamos esperar apenas mais alguns minutos. Duff ficou de
regressar ao entardecer. Deve ter acontecido algum
imprevisto. Voilà!
Tinha entrado na sala um rapazinho de seus dezoito anos,
magro e desengonçado, que se dirigiu diretamente a Julien
Charcot.
— Salve, monsieur le professeur!
— Salve, Manolakas! — o francês pôs-se de pé, afobado.
— Mister Chandler não voltou com você?
O guia abriu os braços, num gesto de desalento.
— Não, monsieur. Trago uma triste notícia. Convém
prevenir o brigadeiro Kanellodos. Mister Chandler sofreu
um acidente, na altura do Oráculo de Samos, e morreu. Foi
envenenado pelos gases da terra, monsieur!
No silêncio que se seguiu, Brigitte e Julien se
entreolharam horrorizados. E desconfiados. Aquele era um
acidente muito estranho! São sempre muito estranhos os
acidentes ocorridos com os agentes da CIA.

CAPÍTULO TERCEIRO
Um triste jantar
Três sacerdotes com pistolas na cintura
O rádio e a cabeça de pedra
Volta ao Templo de Samos

Brigitte e Julien Charcot queriam prevenir o chefe de


polícia de Sabyra para que providenciasse a busca ao corpo
de Duff Chandler, mas souberam que o brigadeiro Georg
Kanellodos, que comandava um modesto contingente de
cinco gendarmes, também tinha ido jantar na Prefeitura. Em
vista disso, a repórter e o arqueólogo levaram o guia
Manolakas com eles e dirigiram-se à residência oficial do
prefeito, na Platéia Pélagos, em frente ao cais. Era um prédio
branco, baixo e comprido, circundado por um belo muro de
pedras. Na entrada, sobre um portão gradeado, via-se um
nome pomposo: “ACROPOLIS”. Não havia qualquer
relação entre a Prefeitura e os templos Partenon e Erectéion
da famosa colina ateniense; aquilo não passava de uma
vaidade do prefeito.
O mandachuva municipal, Alexandros Enganademos,
estava à espera dos turistas, em companhia do brigadeiro
Kanellodos e do negociante turco Mustafá Beysehir. O
prefeito, grande e gordo, dono de um bigode mongol e uma
enorme papada, vestia uma espécie de farda azul, cheia de
medalhas no peito. O chefe de polícia, alto e forte, também
estava fardado de azul, com dragonas e alamares amarelos.
Logo depois que um criado introduziu os convidados na sala
de jantar, e depois das apresentações protocolares, Brigitte
explicou que o guia nativo ficara no jardim e que seu patrício
Duff Chandler sofrerá um acidente na montanha, sendo
necessário irem buscá-lo para ver se estava realmente morto.
— Isso é muito desagradável — comentou o prefeito,
trocando um olhar de apreensão com o brigadeiro. — Mr.
Chandler não devia ter subido o Saócio depois das seis
horas! Sim, temos que mandar buscar o cadáver, mas só
depois do jantar. O brigadeiro e seus valentes soldados se
encarregarão disso. Se Manolakas disse que Mr. Chandler
morreu, nenhum de nós poderá ressuscitá-lo. Sugiro que
jantemos primeiro; depois, organizaremos um grupo para
recolher o corpo. Cada coisa a seu tempo. E teremos
kokoretsi no jantar.
Brigitte e Julien ficaram estarrecidos diante de tanta
frieza. A repórter ainda protestou, mas teve que se submeter
aos desejos de seu anfitrião. Diante da ansiedade dos dois
convidados, sentaram-se à mesa e deram início a uma
refeição que mais parecia um velório. Havia kokoretsi e
vinho grego em jarrões de cobre, mas não havia alegria.
Debalde o prefeito e o hercúleo chefe de polícia tentaram
animar a palestra; Brigitte e o arqueólogo estavam
simplesmente revoltados.
— Miss Montfort desceu do Olimpo — exclamou o gordo
Alexandros, em dado momento. — Parece uma deusa, Palas
Atenea ou Minerva, descendo ao convívio dos mortais! É
uma grande honra vê-la comer em Sabyra!
— Miss Montfort! — aparteou o turco Mustafá — parece,
antes, a Vitória!
Brigitte apenas beliscava os alimentos, pensando no
acidente que vitimara o agente da CIA.
— Quando pretendem embarcar os objetos de arte para
Atenas? — volveu o gordo prefeito, espetando o garfo na
direção do arqueólogo francês. — Creio que já está tudo no
depósito, não?
Julien Charcot soltou um suspiro e pousou o copo de
vinho.
— Oui, monsieur le maire. Esperávamos embarcar na
segunda-feira. Mas, agora, não sei...
— Eu lhes facilitarei a remoção, utilizando alguns
funcionários da Prefeitura. Vocês não gastarão muitos
dólares. E não acredito que Mr. Chandler esteja morto. Não
pensem nisso. Manolakas é um grande mentiroso. Seu amigo
voltará, o senhor vai ver! E, segunda-feira, poderão ir
embora em paz!
— Deus o ouça, monsieur le maire. Mas, por que tem
assim tanta pressa em nos ver pelas costas?
— Não diga isso! — explodiu o grande homem, dando
uma risada. — Por mim, os senhores nunca sairiam da
Grécia! Vou falar claramente, professor. Houve tempo em
que acreditei poder reter aqui essas relíquias. Como bom
grego, não queria vê-las longe do meu país. A Grécia tem
sido despojada dos seus melhores tesouros artísticas, das
suas melhores obras de arte. Metade do Partenon está em
Londres, levada por Lord Elgin. O grosso do que é, hoje, o
montante das antiguidades do Museu Britânico composto de
tesouros “encontrados”, por C. T. Newton, em Halicanarso
Onido, e por J. J. Wood no Templo de Diana em Éfeso. O
altar de Zeus, em Pérgamo, foi levado para Berlim! A
Vitória de Samotrácia e a Vênus de Milo estão no Museu do
Louvre! Tudo nos foi roubado! Se houvesse justiça no
mundo, deveriam nos devolver tudo isso!
Brigitte interveio:
— Acha que o Louvre estaria disposto a renunciar à
Vitória ou à Vênus?
— Sei que não — admitiu o prefeito, erguendo o copo de
vinho. — Mas, já que não podemos recuperar o que se foi,
nossa obrigação seria impedir que continuem nos
despojando!
— Compreendo os seus sentimentos — suspirou Julien
Charcot. — Mas não lhe parece que agora o senhor mesmo
cai em contradição, querendo que embarquemos tudo
depressa?
Alexandros Enganademos explicou que desistia de lutar,
uma vez que as próprias autoridades gregas haviam atendido
aos apelos de Harvard. E, já que perdera a parada, preferia
ver as relíquias viajando o mais depressa possível, para não
sofrer com a sua| contemplação. Além do que precisava
desocupar o depósito para usá-lo com material da
municipalidade.
Julien Charcot olhou de maneira estranha para Brigitte.
Ele não se deixava convencer tão facilmente pelos
argumentos do prefeito. Antes, o gordo Alexandros fora
contra; agora, concordava com tudo. E falava no depósito.
Para que desejaria o depósito desocupado? Teria certamente,
alguma intenção oculta! Mas, afinal, que lhe importava?
Bebeu um gole de vinho e prosseguiu:
— Monsieur le maire estaria disposto a dar-nos alguma
colaboração no serviço de embalagem?
O prefeito foi gentil:
— Toda a colaboração, professor! De quantos homens
precisam? Conseguirei até uma dúzia, contanto que me deixe
livre o depósito. Na terça-feira, espero receber um
carregamento de instrumentos agrícolas.
— Pás e enxadas — acrescentou Mustafá Beysehir, que
se mantivera calado. — Meu barco “Aman” deve chegar na
segunda-feira, à noite, com uma partido de pás e enxadas.
— Espero que meu colega não tenha, realmente, sofrido
esse acidente — retrucou o arqueólogo. — Duff é o
encarregado de tudo. Ao contrário do que foi anunciado, o
Museu do Louvre não está interessado em nenhuma das
peças. Eu só assumirei a responsabilidade pelo embarque no
caso dessa desgraça se positivar. Creio que meia dúzia de
homens nos bastará para as embalagens e o carregamento.
Hoje é quinta-feira; trabalhando no sábado e domingo,
teremos tudo pronto na segunda-feira pela manhã.
— O “Denizi Palas” pode partir ao meio-dia — informou
Mustafá Beysehir. — Assim, está tudo combinado. Eu
também ajudarei no carregamento, com alguns dos meus
pescadores. São, todos, homens de confiança.
— Resta saber — intercalou Brigitte — se Mr. Chandler
não está morto! Ou se não vai morrer, por falta de socorros!
Depois de uma sobremesa de lukuns, o jantar tinha
chegado ao fim. Ninguém mais conseguia amimar a palestra.
Tomaram café turco e acenderam cigarros. Afinal, o gordo
prefeito pôs-se de pé e suspirou:
— Bem... Uma vez que miss Montfort parece tão
preocupada com a saúde de Mr. Chandler, só me resta
solicitar ao brigadeiro que suba ao Saócio, seguindo as
indicações de Manolakas, e veja se o simpático arqueólogo
americano necessita realmente de cuidados. Esperemos que
tudo não passe de um mal-entendido.
O chefe de polícia bateu continência e dispôs-se a sair.
— Espere — pediu Brigitte. — Se não achar
inconveniente, irei com o senhor. Tenho curiosidade em
conhecer o local onde, antigamente, era ouvido o Oráculo de
Samos. Prometo que só tirarei meia dúzia de fotografias.
O brigadeiro e o prefeito trocaram um olhar de
entendimento. Depois, o gordo fez um aceno e voltou a
suspirar.
— Atenda à solicitação de miss Montfort, brigadeiro. Era
minha intenção conversar um pouco com ela, nesta noite tão
agradável... Mas, na suposição de que algo tenha ocorrido a
Mr. Chandler, será melhor aquietar a nossa consciência.
Subam ao monte e procurem aquele imprudente cientista.
Manolakas, o guia, ainda estava no jardim, pronto para a
excursão. O brigadeiro Kanellodos reuniu os seus gendarmes
(cinco soldados de má catadura, com espingardas penduradas
nas Costas) e disse que estava pronto para partir. Brigitte
também estava pronta, a máquina fotográfica a tiracolo.
Eram dez horas da noite. Noite calma e bonita. O luar
salpicava de branco os caminhos que iam dar no sopé do
Saócio. O grupo embarcou em dois jipes americanos e
afastou-se da Cidadezinha de Sabyra. Manolakas, o
brigadeiro e três soldados iam no primeiro veículo; Brigitte,
Julien Charcot e os outros gendarmes, no segundo. Durante a
viagem, o brigadeiro interrogou Manolakas, interessado em
conhecer detalhes do acidente. O rapazinho estava
apavorado.
— Não sei como foi, senhor! Subimos normalmente e
Mr. Chandler afastou-se de mim, na altura de um poço de
fumaça. Ele estava procurando alguma coisa especial.
Esperei na entrada da gruta do Oráculo. Esperei até o
entardecer e ele não voltou! Não apareceu ninguém, senhor!
Saí para procurar Mr. Chandler e vi o seu corpo, caído ao
lado do poço de fumaça. O lugar é muito inclinado e não
pude descer para ver de perto. Mas tenho certeza de que o
pobre senhor está morto! Ele não poderia espirar tanto gás
sem morrer!
Depois de uma hora de corrida, chegaram ao sopé
nordeste da colina e saltaram o resto do percurso tinha que
ser feito a pé. Os dois jipes ficaram na estrada, sob a guarda
de um camponês da vizinhança.
— Tem ânimo para subir? — perguntou o brigadeiro,
encarando Brigitte. — Talvez seja melhor ficar aqui
embaixo, enquanto recolhemos o corpo. É muito perigoso!
Um escorregão de mau jeito e...
— Não se preocupe comigo — retrucou a repórter,
confiante. — Vamos, todos, atrás de Manolakas!
O guia estava cada vez mais nervoso. Mas, ao receber
uma ordem do brigadeiro, pôs-se a escalar agilmente a
montanha. Os outros foram atrás dele, Subindo com
dificuldade. O brigadeiro levava uma lanterna elétrica, de
pilha, e Brigitte estava armada, penas, com a sua câmara
Speedflash. As veredas que levavam ao alto da colina eram
muito íngremes; em alguns lugares, tinham que rastejar, para
não perder o equilíbrio. Mas foram subindo.
Brigitte deixou-se ficar para trás, admirando a paisagem
banhada pelo luar que se descortinava d arquei a altura. Em
dado momento, não pôde se conter e bateu uma fotografia da
costa. Lá longe, alguns pingos de luz trêmula assinalavam o
local onde jazia a localidade de Sabyra. E, em cima, quase
no pico da elevação que eles escalavam, um penacho de
fumaça anunciava a proximidade do Oráculo de Samos.
Enquanto subia, Brigitte procurava se lembrar de tudo o que
lera a respeito dos Oráculos da Velha Grécia. Se não lhe
falhava a memória, o Oráculo de Samos era semelhante ao
de Apolo, onde a sacerdotisa Pythia recebia mensagens dos
deuses, traduzidas pelos seus profetas. Pythia agia
estimulada pelas emanações gasosas de Delfos, que lhe
produziam um delírio momentâneo. Ali, no Saócio, também
havia uma fonte de gás, perpetuamente em combustão. O
processo devia ser o mesmo. Mas talvez o gás do Saócio,
respirado em excesso, se tomasse letal... Sim, devia ser isso.
Cautelosamente, Brigitte pôs um lenço no nariz. O cheiro
de enxofre das emanações subterrâneas vinha até ela,
produzindo-lhe um ligeiro mal-estar. Conseguiu controlar-se.
Mas, quando olhou ao redor, já não viu o resto do grupo de
alpinistas. Até Julien Charcot tinha desaparecido nas brumas.
Brigitte parou, na entrada de uma caverna, ao lado do
poço de onde saía a fumaça malcheirosa, A abertura do poço,
numa das, “prateleiras” do monte de pedra, media cerca de
dois metros de comprimento por um metro de largura e era
coroada por uma fumaça acre e irritante. Aquilo que os
antigos supunham ser a “terra quente e sagrada” não passava
de uma fonte subterrânea de pirita gerando enxofre. Sim, era
uma terra quente e fumacenta, mas não tinha nada de
sagrada...
Nisso, houve um brusco movimento em tomo da repórter
e ela viu-se cercada por três homens de aspecto ameaçador.
Usavam longas túnicas brancas, como os antigos gregos, mas
tinham máscaras coloridas no rosto e pistolas carregadas nos
cintos. Brigitte ergueu a máquina fotográfica, porém, não
teve tempo de apertar o obturador; um dos mascarados deu
um safanão na câmara, arrancando-a da correia e jogando-a
no fundo do precipício. Depois, antes que ela reagisse, os
três a envolveram, imobilizaram e arrastaram para a caverna.
Estava escuro lá dentro. Um corredor sombrio, de paredes
de pedra cinzenta, comunicava com outros dois, mais
estreitos, na entrada dos quais os homens pararam. Todas as
paredes estavam cobertas de inscrições.
— Nada tema — disse um dos homens, tirando a mão da
boca de Brigitte. — Somos sacerdotes de Samos e queremos,
apenas, defender os lugares sagrados da curiosidade dos
mortais. Se você não reagir e responder honestamente às
nossas perguntas, nada de mal lhe acontecerá. Será libertada
e poderá regressar a Sabyra.
A voz do homem, abafada pela máscara de papelão
(semelhante às máscaras da Tragédia do antigo teatro grego),
tinha um timbre estranho, forçado; evidentemente, ele
procurava disfarçá-la. Mas falava inglês muito bem.
— Não pretendo reagir — respondeu Brigitte, mais
curiosa do que assustada. — Não era minha intenção
perturbar o vosso repouso, levando-os a se levantarem no
meio da noite. Vim aqui apenas em busca de um compatriota
que sofreu um acidente. Mas não sabia que ainda existiam
profetas no Oráculo de Samos. Segundo a história, este
Oráculo desapareceu no tempo de Cristo.
Os homens de branco entreolharam-se e silenciaram. Ela
foi empurrada para um dos estreitos corredores e atravessou-
o de lado a lado, desembocando numa ampla caverna que
também cheirava a enxofre. Uma tocha e um lampião de
querosene, acesos e pendurados na parede, espalhavam pelo
recinto uma luz pálida e triste. Havia uma mesa de pedra e
um banco redondo no meio da caverna; em cima da mesa
via-se o corpo de um homem, completamente nu, estendido
em decúbito dorsal. Mesmo sem olhá-lo bem, Brigitte
percebeu que se tratava do cadáver de Duff Chandler.
— Sente-se! — ordenou o mascarado que falara antes, e
que parecia ser o único que tinha o dom da palavra. — Você
está no Templo de Samos!
Brigitte olhou ao redor e foi se sentar no banquinho
redondo, coberto por um saco de estopa. Com o canto do
olho, acabara de constatar que também havia outros dois
objetos estranhos no recinto: um binóculo de longo alcance e
um pequeno rádio-emissor de cem quilowatts, com antena
parabólica. Não teve tempo para fazer nenhuma observação;
os três sacerdotes cercaram-na, procurando intimidá-la com a
exibição de suas máscaras, diabólicas.
— Quem é você? — tomou o homem da voz de falsete.
Ela soltou um suspiro de impaciência.
— Brigitte Montfort, repórter do “Morning News” de
Nova Iorque. Se vocês fossem bons profetas já saberiam
disso! Vim à Grécia fazer uma reportagem sobre as novas
ruínas de Sabyra.
— E veio de onde?
— Do Oriente Médio, onde estava passando férias.
— Correto, Já conhecia Mr. Duff Chandler?
— Ainda não. Também não conhecia, Mr. Julien Charcot,
o outro arqueólogo.
— Mr. Charcot não nos interessa — disse o mascarado,
friamente. — Queremos saber de coisas sobre o cientista
americano. Ele se revelou muito curioso e ameaçou perturbar
os deuses que ainda moram nesta colina. Por isso, foi
envenenado pelas emanações letais. Você também é muito
curiosa, menina...
— Nem por isso — disse Brigitte, forçando um sorriso.
— Mas, como boa jornalista, estou vendo que terei um
grande assunto, no Oráculo de Samos. O mundo inteiro
pensa que já não existem deuses, nem sacerdotes de Samos,
na Grécia de Paulo I. Quem vai me pagar a câmara que
vocês quebraram?
— Esqueça-se disso — retrucou o mascarado, ameaçador.
— Esqueça-se de tudo o que viu! Os curiosos sempre têm
vida breve! Nós somos protegidos pelos deuses e aqueles
que nos enfrentam acabam sendo vítimas de sua
imprudência! Não queremos fotografias, nem reportagens,
sobre os Mistérios dos Sabyros! Este local é sagrado e
ninguém deve se aproximar dele! Os camponeses sabem
disso e evitam a montanha. Mas você ousou enfrentar o
poder dos deuses. Por quê?
— Não fiz nada de mais — protestou Brigitte. — Quero
apenas cumprir minha missão jornalística! E recuperar o
corpo de meu patrício Duff Chandler, que morreu
acidentalmente. Ele ficou me devendo uma entrevista
exclusiva. Se os senhores me proíbem de conhecer os seus
ritos, recebo a proibição com humildade. E nunca mais
voltarei ao Templo de Samos. Há outros assuntos curiosos na
Grécia. Posso ir embora?
— Nosso Grande Profeta decidirá da sua sorte —
retrucou o mascarado, com voz mais suave. — Mas, até que
ele se pronuncie, você será nossa prisioneira! Esperemos que
a polícia volte a Sabyra, sem descobrir o nosso esconderijo.
Depois, se você jurar que guardará silêncio, poderá regressar
também à sua terra. Agora, tire a roupa!
— Como?
— Dispa-se! — ordenou o mascarado secamente. —
Fique nua!
Brigitte piscou os olhos, desconfiada.
— Para quê? Vocês estão pensando em me submeter a
algum sacrifício?
— Não faça perguntas! Queremos apenas nos certificar
de que você é uma simples repórter e não uma enviada do
demônio! Dispa-se!
Ajudada pelos outros dois mascarados, que pareciam
muito felizes com a empresa, ela tirou as roupas e voltou a
sentar-se, tremendo de frio. Tentava, com as mãos
espalmadas, cobrir-se da melhor forma que podia. Os três
sacerdotes deram início, então, a uma busca minuciosa nos
seus trajos gregos. Não se esqueceram, sequer, de cortar um
pedaço das sandálias; Também revisaram, cuidadosamente, o
corpo desnudo da bela repórter. Não encontraram nada
suspeito. Por sorte, Brigitte não trouxera a sua pistolinha
colada à coxa com esparadrapo.
— Muito bem — rosnou o sacerdote falador. —
Aparentemente, você não tem ligações com o morto e não
parece ter sido enviada pelo demônio. Talvez seja o que diz.
Mas temos que ouvir a palavra final do nosso Grande
Profeta.
Brigitte voltou a envergar as suas roupas, agora rasgadas,
o manteve-se quieta, sentada no banco de pedra, que media
apenas quarenta centímetros de diâmetro. Enquanto
mantinha o corpo ereto e imóvel, sua mão esquerda descia ao
longo do banco e tateava, disfarçadamente, a superfície
ondulosa da enorme bola de pedra, coberta pelo saco de
aniagem. Sentiu um sobressalto. Estada sentada sobre uma
escultura! Uma cabeça de mulher, talhada no mármore, com
alguma coisa espetada na boca! A cabeça da Vitória de
Samotrácia! Não havia dúvidas! Ali estava a relíquia tão
afanosamente procurada por Julien Charcot! Brigitte
lembrou-se de que a célebre estátua de Niké fora
representada sobre uma base em forma de proa de galera, de
onde se projetava com as asas abertas e uma trombeta na
boca! Agora, só restava o bocal dessa trombeta, entre os
lábios de Pedra! Mas era a cabeça da Vitória!
Tratou de dissimular a emoção. Os três sacerdotes tinham
as máscaras de papelão voltadas para ela. Esquadrinhavam
atentamente o seu rosto. Já deviam ter percebido que ela se
parecia extraordinariamente com a Niké.
— Talvez seja melhor vocês irem buscar o Grande
Profeta — disse, de repente, o falador, acenando para os seus
companheiros.
Os outros dois homens de branco fizeram “Puah!” e
saíram da caverna. Brigitte olhou ao redor, à procura de um
buraco. Talvez o brigadeiro Kanellodos não estivesse longe,
com seus gendarmes; se ela conseguisse escapar dali e trazer
a polícia... Mas o sacerdote mascarado tinha se sentado à
frente do rádio portátil, que tapava com as costas largas,
vigiando a entrada do corredor, uma pistola na mão.
Surpreendentemente, sua arma era tcheca, igual às que
usavam os guerrilheiros da Áspida. Brigitte desviou os olhos
para o outro lado da gruta e viu uma espécie de chaminé, por
onde saía a fumaça do archote. O buraco tinha apenas meio
metro de diâmetro, mas suas paredes eram rugosas e cheias
de fendas. Se a fumaça era aspirada por ali, não havia
dúvidas de que a chaminé comunicava diretamente com o ar
livre.
Passaram-se alguns minutos. O sacerdote de guarda pôs
um cigarro na boca, através do buraco da máscara, e puxou
um isqueiro de tripa e pederneira. Tentou acendê-lo e não
conseguiu. Então, depositou a pistola no chão e começou a
examinar o pavio do histórico acendedor. Brigitte aproveitou
a ocasião; enquanto o guarda estava entretido com o
isqueiro, levantou-se, deu um salto de atleta e pendurou-se
no buraco da chaminé. Antes que o sacerdote agarrasse a
pistola, ela já tinha desaparecido pela abertura, marinhando
por ali acima, agarrada às saliências das pedras. Felizmente,
a chaminé dava uma volta, nas entranhas da terra, antes de se
abrir ao ar livre. Brigitte ouviu um tiro retumbante e a bala
ricocheteou, pouco abaixo de seus pés. Continuou a subida,
quase entalada entre as paredes ásperas do túnel, até sentir o
vento da noite lhe acariciar as faces afogueadas. Mais um
pouco e saía do buraco, como um tatu da cova, sentando-se
no solo para descansar. Estava em uma das vertentes do
Saócio, uma das “prateleiras” orientais. Pouco abaixo dela,
na escuridão, brilhava uma lanterna elétrica. Depois de
alguns minutos de descanso, pôs-se de pé e começou a
descer a escarpa. Não podia miar, para não alertar os
sacerdotes armados. Mas tinha quase a certeza de que aquela
lanterna era manejada pelo brigadeiro Kanellodos.
Não se enganara. Logo adiante, viu a silhueta dos
soldados de Sabyra, caminhando cautelosamente atrás de
outra silhueta menor, que pertencia ao guia Manolakas. Só
então Brigitte chamou:
— Brigadeiro! Pessoal! Estou aqui! Esperem por mim!
O chefe de polícia e seus gendarmes acorreram, de
espingardas nas mãos. Julien Charcot também ali estava,
muito nervoso.
— Que aconteceu? — perguntou ele. — Como sumiu,
mademoiselle! Pensávamos que tivesse resvalado e caído no
precipício!
Rapidamente, Brigitte narrou a sua aventura. O brigadeiro
Kanellodos meneou a cabeça, sacudindo o chapéu de
plumas.
— Estranho, isso! Não terá respirado os gases da terra,
que provocam alucinações? Não existem mais kalogerontes4
no Saócio! E o Oráculo de Samos não funciona há dois mil
anos! No entanto, não sei... Talvez seja melhor descermos,
para evitar a cólera dos deuses...
— Não, senhor! — protestou Brigitte. — Eu vi os três
homens armados, com máscaras gregas! Vi o cadáver de
Duff Chandler, em cima da mesa! Vi o binóculo e o rádio
portátil! E vi a cabeça da Vitória!
— O quê?! — exclamou Julien Charcot, arrepiando a
barbicha. — Onde? Onde está ela? Depressa! Quero a cabeça
da minha Niké! Onde foi que você viu?
— Está bem — condescendeu o brigadeiro. — Vamos
investigar esses fatos absurdos. Pode ser que haja algum
fundo de verdade. Mas duvido muito que ainda encontremos
pitonisas e profetas no monte! E muito menos rádios
portáteis! Naturalmente ela teve uma alucinação!
Seguindo as indicações da jornalista, voltaram ao ponto
em que ela fora agarrada pelos homens de branco e logo
viram a entrada da caverna. O chefe de policia e seus
soldados cercaram o lugar, as espingardas em riste. Não
viram nada de anormal. Tudo estava quieto, escuro e
silencioso.
— Vamos entrar — propôs Brigitte. — Mantenham as
armas engatilhadas. Eu os levarei ao templo dos sacerdotes
de Samos. Mas eles são muito jovens, e ativos, para serem
simples kalogerontes...
Os soldados entraram na caverna, logo atrás de Brigitte e
Julien Charcot, e seguiram pelo corredor subterrâneo que ela
lhes indicou. Tudo continuava quieto e silencioso. Nem sinal

4
Bons Anciãos. Monges gregos ainda hoje existentes nos
Montes Altos. Pertencem à Ordem de São Basílio
de vida. Prosseguiram na marcha por um dos corredores
internos e desembocaram na gruta. Escura e deserta. Não
havia mais nenhuma tocha, nem lampião de querosene, na
parede cinzenta. Também não havia mais nenhum banco
redondo, junto à mesa de pedra, nem nenhum rádio portátil
ou binóculo no canto da gruta! Mas a mesa ali estava, com o
cadáver em cima. Um cadáver vestido com túnica, culotes e
botinas de tachas.
Julien Charcot precipitou-se para o corpo e examinou-o, à
luz da lanterna do brigadeiro. Era, realmente, o seu colega
americano.
— Pobre Duff! — gemeu o francês. — Está morto! Deve
ter respirado os gases letais! E a cabeça da Vitória? Onde
está a cabeça da minha Niké?
Brigitte lançou um olhar circular pela gruta, mas não viu
mais nada. O sacerdote mascarado tinha desaparecido,
levando o archote, o lampião, o binóculo, o rádio e a cabeça
de pedra enrolada no saco de aniagem. Evidentemente, não
fugira sozinho; seus dois companheiros deviam ter voltado,
ao ouvirem o tiro, ajudando-o a fazer o transporte.
— Miss Montfort teve um delírio — asseverou o
brigadeiro Kanellodos. — Não há sacerdotes, nem rádios,
nem cabeças de Niké! Mas, de qualquer maneira,
encontramos o corpo de Mr. Chandler e vamos levá-lo para
Sabyra. O Dr. Miquelis nos dirá de que morreu o imprudente
rapaz. Foi um acidente, é claro. E agora, com o encontro do
corpo estão encerradas as diligências! A polícia de
Samotrake sempre cumpre o seu dever!
Brigitte encarou os olhos negros do militar e
compreendeu que não adiantava discutir. Não adiantava,
sequer, reclamar uma indenização pela sua máquina
fotográfica, que lhe custara duzentos dólares...
Mas havia um grande mistério na morte de Duff
Chandler! E ela não estava disposta a sair de Sabyra sem
descobrir tudo! Os sacerdotes de Samos nunca tinham usado
máscaras teatrais, nem pistolas, nem binóculos, nem rádios
de pilha! E, ali de cima, descortinava-se maravilhosamente a
entrada do porto, por onde transitavam os barcos de pesca de
Mustafá Beysehir. E por coincidência, a voz do sacerdote
falador era muito parecida com a do negociante turco!

CAPÍTULO QUARTO
Milagrosa ressurreição da carne
O amigo do inspetor Pitzer
Só se morre duas vezes
Fala o guia Manolakas
O brigadeiro e o prefeito tomam providências

Depois de procurarem inutilmente a câmara fotográfica


de Brigitte, o brigadeiro Kanellodos deu ordens para
abandonarem o local. A descida não ofereceu dificuldades;
antes do raiar do dia, o grupo estava de volta a Saibyra,
transportando o corpo de Duff Chandler. Como ainda era
muito cedo, não foram acordar o médico da localidade, que
fazia as vezes de legista.
— O cadáver pode ficar numa das salas da Delegacia —
sugeriu o chefe de polícia. — E, logo que o Dr. Miquelis
abrir o consultório, mandarei chamá-lo, para que faça a
autópsia e preencha o testado de óbito.
O guia Manolakas foi dispensado e tratou de ir embora
correndo. Sua atitude também causou fortes suspeitas em
Brigitte. Por que o rapazinho estaria tão assustado? Era
evidente que não tinha a consciência tranquila...
A bela repórter e o arqueólogo francês despediram-se do
brigadeiro e foram para a hospedaria de Gregório
Metastaxas. Aí, Brigitte redigiu um relatório destinado ao
FBI (ou à CIA) e uma reportagem sobre a expedição
arqueológica americana às novas ruínas de Sabyra. Apenas
uma primeira impressão, pois ainda não visitara as ruínas,
não vira as antiguidades, nem entrevistara Duff Chandler.
Enquanto escrevia, procurava descobrir a origem do
pressentimento que lhe assaltava o espírito. Não sabia
explicar do que se tratava, mas tinha a impressão de que
assistira a alguma coisa extraordinária, durante a trasladação
do corpo do arqueólogo para uma das salas da Delegacia. O
que seria? Duff Chandler estava morto, pois não se movia,
nem respirava; contudo, Brigitte começava a ter dúvidas
sobre essa morte aparente. Agora, ela se lembrava: o jovem
cientista, alto, louro e robusto, tinha os olhos fechados, com
pestanas muito longas e negras, e, diante a remoção do
corpo, essas pestanas tremiam visivelmente! Ora, um morto
não mexe os olhos!
Brigitte guardou as folhas de papel nas quais escrevera o
relatório, tirou a sua pistolinha da mala, colocando-a com
esparadrapo à coxa esquerda, e deixou o quarto. Eram seis
horas da manhã. Todos, na estalagem, ainda dormiam. Saiu
do prédio e caminhou, rapidamente, pela calçada deserta. A
Delegacia não ficava longe. Lá chegando, encontrou apenas
um gendarme de guarda, armado com uma espingarda. Um
grego sorridente e gentil.
— Quero ver, outra vez, o cadáver de meu patrício —
disse a linda jornalista, hipnotizando-o com seu olhar azul.
— O brigadeiro deu-me permissão para isso. Depois,
chamaremos o Dr. Miquelis. Entende?
Embora não entendesse, o soldado franqueou-lhe a
entrada. Ela foi até a sala dos fundos, onde estava o corpo, e
fechou a porta à chave. Duff Chandler jazia estirado sobre
uma mesa, em decúbito dorsal. Suas pestanas, longas como
patas de aranha, continuavam a tremer. Mas era o único sinal
de vida naquele rapaz esbelto e simpático, agora frio e
inanimado. Vagarosamente, a filha de Giselle subiu sobre a
mesa e estendeu-se junto ao corpo hirto do rapaz, aplicando-
lhe os lábios quentes e rubros sobre a boca gelada. Tinha
prática de respiração artificial; enquanto aspirava o ar
envenenado dos pulmões da vítima, pressionava-lhe
suavemente o peito. Repetiu a operação várias vezes, até
sentir que o corpo do homem começava a reagir ao
tratamento. O rosto do “morto” ia recobrando a cor rosada e,
subitamente, seus olhos azuis se abriram, enquanto um
suspiro saía de sua garganta contraída. O coração voltava a
bater; a paciente estava salvo! Emitindo um longo suspiro,
ele olhou assombrado para Brigitte e perguntou:
— Que aconteceu?
— Você não estava morto — explicou ela, com um
luminoso sorriso. — Estava apenas intoxicado pelas
emanações dos gases. Agora, fale! Tem alguma instrução a
dar-me? Você é o amigo do inspetor Pitzer, não é?
— Sim — confirmou ele, sorrindo também. — Você não
precisa se apresentar. Não pode deixar de ser Brigitte
Montfort... Eu estava à sua espera. Tenho muita coisa para
lhe contar! E vou precisar de seu auxílio, para destruir a
quadrilha de guerrilheiros que se instalou em Samotrácia!
— Guerrilheiros?
— Gente da Áspida, da ELAS ou da EAM. Seja quem
for, trata-se de inimigos do atual Governo grego. Ora, nós
temos ordens para colaborar com os homens que estão por
cima, pois eles protegem os interesses norte-americanos na
Grécia.
— Eu só tenho ordens para fazer uma reportagem sobre
as escavações e as obras de arte encontradas em Sabyra.
— Isso é o que você pensa. Faça a sua reportagem para o
“Morning News”, mas dê-me a sua ajuda neste caso dos
guerrilheiros. Depois que desmascararmos os chefões,
poderemos entregá-los às autoridades locais... e você estará
livre. O inspetor Pitzer ficou muito satisfeito quando soube
que você viria à Grécia. Eu teria que fazer tudo sozinho.
— Você tem certeza de que o inspetor quer que eu o
ajude?
— É uma ordem, Brigitte! Você, como repórter, está livre
de suspeitas e poderá investigar melhor os fatos. A pista das
armas tchecas me trouxe até Sabyra, passando por
Alexandrópolis, mas ainda não descobri quem está por trás
dos guerrilheiros, fornecendo-lhes o equipamento. Talvez
você acabe fazendo uma ideia.
Ela fez que sim com a cabeça.
— Já tenho uma teoria, Duff. E desconfio que conheço
um dos chefões. Que foi que você descobriu no alto do
morro? Deve ter sido algo muito sério, para merecer o seu
sacrifício. Eles tentaram matá-lo.
— Sim, descobri algo sério. Há uma caverna secreta na
colina, onde entram certos sujeitos misteriosos. Essa caverna
abre para o nordeste, justamente por cima do cais. Dali de
cima, não é difícil fazer sinais luminosos para um barco de
contrabandistas. Eu aproveitei o interesse que meu colega
Julien Charcot tem pela legendária cabeça da Vitória e subi a
colina, para dar uma espiada na tal caverna. Mas creio que os
guerrilheiros já estavam prevenidos e esperavam por mim.
Eram três camaradas altos, vestidos com túnicas brancas e
armados com pistolas tchecas. Tinham o rosto coberto por
máscaras de papelão pintado, semelhantes àquelas usadas no
antigo teatro grego. Quando dei pela coisa, era tarde. Meu
guia Manolakas fugiu correndo e os três bandidos me
derrubaram com golpes na cabeça! Tentei reagir, mas não fui
feliz. Enfiaram-me a cabeça no poço dos gases e perdi os
sentidos. Não me lembro de mais nada.
— Há um binóculo e um transmissor de rádio, portátil, na
gruta. Eu vi. Logo, você está certo, Duff. É dali que eles
controlam a entrada e saída dos barcos. Provavelmente, esses
barcos vêm da vizinha Turquia, disfarçados de pesqueiros.,
Tenho uma teoria, sim. Você conhece Mustafá Beysehir?
— Conheço. É um negociante turco muito antipático.
— É dono de uma frota de barcos de pesca. E, nas horas
vagas, creio que também se dedica a brincar de sacerdote de
Samos. Mas não é ele o chefão.
O chefão usa o título de Grande Profeta.
— Já ouvi falar nesses sacerdotes — disse Duff Chandler,
pensativamente. — Toda a ilha fala neles, com temor e
respeito. Por isso, nenhum camponês sobe ao Saócio depois
do cair da noite. Eles têm medo dos demônios da colina.
— Compreendeu agora, Duff? Os guerrilheiros lançam
mão desse expediente para afastar os curiosos. Inventaram
um novo Mistério dos Sabyros, que mantém a população
longe da gruta. E você quase foi morto porque estava no
caminho certo! A estas horas, eles já sabem que você
pertence à CIA. E suspeitam que eu também seja amiga do
inspetor Pitzer.
— Você acha?
— Claro. Interrogaram-me e tentaram ligar-me às suas
atividades, mas não conseguiram nada. Nunca poderão
provar que eu seja uma espiã. A menos que me apanhem
conversando com você...
— Tem razão — disse o rapaz, preocupado. — Vamos
dar o fora daqui! Precisamos descobrir outro lugar, mais
seguro, para nos encontrarmos.
Mal ele acabara de falar, ouviram o ruído de uma
discussão, na sala da frente da Delegacia. Depois, soaram
passadas pesadas e alguém sacudiu violentamente a porta.
— Você tem alguma arma? — soprou Duff.
A repórter tirou a pistolinha da coxa e empunhou-a com
decisão. Entretanto, o jovem arqueólogo correu à janela e
abriu-a. Não havia ninguém de guarda, nos fundos. Os dois
pularam para o peitoril, no momento em que a porta era
arrombada. No limiar, surgiram três homens altos, vestidos
como camponeses, todos com pistolas na mão. Um deles era
o turco Mustafá Beysehir.
— Salte! — gritou Brigitte, pulando para fora.
Duff Chandler ia segui-la, porém hesitou. Apenas pela
fração de um segundo. Mas foi o bastante para que os três
homens disparassem as armas contra ele. O rapaz saltou e
caiu nos braços de Brigitte. Recebera dois balaços nas
costas. Ainda tentou fugir, cambaleando, e tombou de
joelhos, contorcendo-se em dores. Felizmente, estavam atrás
de uma moita de capim e os atacantes não os podiam ver da
janela.
— Fuja! — murmurou o arqueólogo, estirado no chão. —
Siga as instruções e mande seu relatório à agência! Você já
sabe o que deve procurar!
Brigitte ainda tentou arrastá-lo, mas não tinha forças para
tanto. Debruçou-se sobre ele, disposta a não se arredar dali.
O jovem arqueólogo ainda arquejou alguns segundos;
depois, expeliu uma golfada de sangue e ficou imóvel, a
cabeça no colo de sua companheira. Dessa vez, estava morto.
— Pobre Duff! — gemeu Brigitte, fechando-lhe
piedosamente os olhos. — Infelizmente, só se morre duas
vezes. Três vezes, seria absurdo!
Estouraram outros tiros, na janela dos fundos da
Delegacia, e as balas assobiaram por cima da moita.
Agachada contra o solo pedregoso, a repórter afastou-se dali,
ganhando uma rua próxima. Ninguém foi em sua
perseguição. Ela voltou a guardar a pistolinha na coxa,
ajeitou as saias e regressou, rapidamente, à hospedaria de
Gregórios. O gordo estalajadeiro estava varrendo o salão.
— Salve, Gregórios!
— Salve, miss Montfort!
— Ninguém me procurou?
— Ninguém, miss, Ainda é muito cedo. Julguei que
estivesse deitada.
— Não me deitei esta noite. E, agora, sei que não vão me
deixar dormir! Você conhece o endereço de Manolakas?
— Quem?
— Manolakas, aquele garoto que serve de guia aos
turistas.
— Ah, sim! Ele mora, com a mãe viúva, numa casinha
verde, do outro lado da Platéia Skapirosi Não é longe daqui.
A mãe dele chama-se Sra. Marúlia.
— Obrigada. Preciso falar com Manolakas. Antes disso,
porém, vou comer alguma coisa. O jantar do prefeito estava
muito bom, mas não dura a vida toda...
Gregórios serviu-lhe um pequeno almoço composto de
souvlákias, ovos, pão de centeio com sementes de papoula e
uma taça de café turco, feito num bule de ferro.
Reconfortada pela refeição, Brigitte saiu em busca da casa de
Manolakas. Embora não fosse de confiança, o guia nativo
era a única pessoa que poderia ajudá-la a vingar a morte de
Duff.
Não teve dificuldades em localizar a casa verde. Ficava
do outro lado de uma praça, ainda deserta àquela hora da
manhã. Bateu palmas, no portão, e um cachorro latiu. Em
seguida, apareceu uma velha esgrouviada, limpando as mãos
no avental.
— Salvei Em que posso servi-la?
— Salve, Sra. Marúlia! É a mãe de Manolakas, não é?
Felizmente, a mulher entendia o inglês.
— Sim, miss. Meu filho, agora, está dormindo. Precisa de
um guia?
— Preciso. E pago bem. É melhor acordar seu filho.
— Pois não, miss. Ele já está acordado.
O rapaz não tardou a aparecer à porta, piscando os olhos
de sono.
— Salve, Manolakas!
— Miss Montfort! Eu... eu não esperava...
Quando ele tentou correr para o quintal, Brigitte cortou-
lhe a retirada, agarrando-o pelo blusão. O rapaz gritou, mas
não conseguiu escapar.
— Não me faça mal! — choramingou ele. — Não tive
culpa! Se eu não fizesse o que fiz, eles me matavam! São
homens muito maus, miss!
— Quem é muito mau? O turco Mustafá?
— Todos os homens da montanha! Eu não queria levar
Mr. Chandler lá em cima, mas ele mesmo insistiu. Então, eu
o encaminhei à gruta, como me ordenaram, e eles o
mataram! Eu não podia dizer que não. Mas foi contra a
minha vontade, miss! Também fiquei tonto, com aquele
cheiro de enxofre! Foi castigo! Eu não queria trair Xênia
Zeus!
— Quem é esse?
O guia ergueu os olhos para o céu.
— Xênia Zeus é o deus protetor dos viajantes, miss. Ele
toma sagrados os turistas da Grécia. Eu não queria servir aos
homens maus do Saócio, mas fiquei com medo! Perdoe-me,
miss! Nunca mais desrespeitarei Xênia Zeus!
E o rapaz caiu de joelhos, chorando e lamentando-se. Mas
Brigitte não teve pena dele; agora, sabia que Manolakas era
cúmplice dos guerrilheiros.
— Muito bem, moleque! Já vi que você também trabalha
para os homens maus. Para se reabilitar aos olhos de Xênia
Zeus, você deve me dizer quem é o chefe dos sacerdotes
mascarados! Quem é o Grande Profeta?
— Não sei, miss.
— Sabe, sim! Ê melhor falar ou eu o entregarei ao
brigadeiro Kanellodos. E você será metido no xadrez!
— Vá-se embora daqui — retrucou o rapaz,
arregalando os olhos. — Não deve enfrentar os demônios
da colina, miss! Esqueça-se disso! Assim como
envenenaram Mr. Chandler, eles são capazes de matá-la
também! Eles são muito poderosos, miss!
— Todo o mal tem limites. Responda! Quem é o Grande
Profeta?
— Não sei! Juro que não sei! Nem os próprios sacerdotes
conhecem o seu rosto. Só sei que ele é o chefe da seita dos
sâmios. E foi ele quem me pagou para levar o americano ao
poço da fumaça.
— Se foi ele, você o viu!
— Mas estava mascarado, miss! Ele está sempre
mascarado, como os outros. Ninguém conhece o verdadeiro
rosto do Grande Profeta.
Brigitte puxou-o pelos cabelos, obrigando-o a levantar-se.
À porta da casa, a senhora Marúlia olhava para eles,
alarmada. A repórter insistiu:
— Mr. Chandler estava na pista de um grupo de
guerrilheiros, inimigos do Governo de sua pátria. O que é
que esses terroristas fazem naquela caverna?
— Não sei, miss. Nenhum de nós quer negócios com os
homens maus da montanha. Somos gente simples e só
queremos que nos deixem viver em paz.
Mas Brigitte não o largou.
— O turco Mustafá é um dos guerrilheiros, não é?
— Acho que é. Pelo menos, ele também costuma subir ao
Saócio. Mas não sei o que eles fazem, miss! Acredite-me!
Sou inocente! Apenas recebi cem dracmas para levar Mr.
Chandler ao poço da fumaça. Não sei de mais nada. E lhe
aconselho a ir embora daqui, se quiser conservar a cabeça
em cima dos ombros.
— Que é que tem a minha cabeça? — Brigitte piscou os
olhos, surpreendida.
— Não posso dizer mais nada, miss.
— Pode, sim! E vai dizer! — Irritada, ela deu um safanão
no rapazinho.
— A sua cabeça é muito parecida com a de Niké, que o
Grande Profeta encontrou numa fenda do monte. Dizem que
aquela cabeça de pedra dá sorte e, por isso, os homens maus
nunca são castigados pelos deuses. Talvez eles não gostem
de encontrar a cabeça de Niké no corpo de uma americana. ..
Talvez considerem isso um sacrilégio. Portanto, é melhor
que vá embora daqui! Não é bom a gente ser parecida com
Niké!
Brigitte largou-o e deu-lhe uma nota de cinco dólares,
que ele se apressou a fazer desaparecer no bolso; no minuto
seguinte, tinha sumido no interior da casa. A porta se fechou,
com estrépito, impulsionada pela Sra. Marúlia.
“Já sei o bastante, pensou Brigitte. Se a policia agarrar
Mustafá Beysehir, fará com que ele fale e denuncie os seus
cúmplices. Não tenho outros recursos, em Sabyra; só me
resta apelar para as autoridades”.
Deu meia volta e regressou ao centro da cidadezinha. A
manhã tinha nascido de todo e já havia muitos transeuntes
pelas ruas. Eram oito horas, quando a bela repórter chegou à
Delegacia e teve a satisfação de encontrar o brigadeiro
Kanellodos nos seu posto.
— Por Zeus! — exclamou o hercúleo policial. —
Estávamos apreensivos a seu respeito, miss Montfort! Um de
meus soldados me disse que esteve aqui à procura do
cadáver de seu patrício e foi agredida a tiros por três
assaltantes, que escaparam! Isso é verdade?
— É verdade, brigadeiro. E um desses “assaltantes” era
Mr. Mustafá Beysehir. O mesmo negociante turco que jantou
conosco na casa do prefeito!
O chefe de policia empalideceu.
— Tem certeza?
— Absoluta. Reconheci a voz dele, no Saócio, e vi o seu
rosto, aqui na Delegacia. Mas não sei por que esses homens
me perseguem!
— Se Mustafá é um agressor — retrucou o brigadeiro
com voz grave —, será preso e responderá pelo crime!
Somos muito severos, miss, e cumpridores do nosso dever!
Tem certeza de que não sabe por que foi atacada? Talvez
tenha descoberto alguma coisa que...
— Não, não descobri mais nada. Provavelmente, esses
bandidos se assustaram, porque eu demonstrei interesse em
conhecer Mr. Chandler. Julgaram, com certeza, que eu tinha
outros planos, além de entrevistar os arqueólogos. Mas eu
sou uma simples jornalista, brigadeiro, e não entendo nada
de política! Queria entrevistar Mr. Chandler sobre as obras
de arte e...
— Tudo isto é muito confuso — confessou o chefe de
polícia, coçando a cabeça, — Agora, o cadáver de Mr.
Chandler tem dois buracos nas costas! Por que atiraram
nele? Não entendo mais nada! Seu patrício terá ressuscitado?
— Não — respondeu Brigitte, com firmeza. — Eu é que
o arrastei pela janela dos fundos, numa tentativa de fazê-lo
falar. Mas o pobre rapaz estava bem morto. Depois,
apareceram os atacantes e atiraram em cima de nós.
O policial encarou-a, perplexo, sem saber o que pensar.
Foi ela quem retomou a palavra: — Sugiro-lhe que dê voz de
prisão ao turco Mustafá, brigadeiro. Pode acusá-lo de
agressão, a mão armada, contra uma turista americana. Estou
disposta a fazer carga contra ele. Fui alvejada a tiros, sem
mais nem menos, quando exercia as minhas funções de
jornalista! Acho que isso merece uma séria investigação!
— Sem dúvida — apoiou o brigadeiro, pondo na cabeça o
chapéu emplumado. — Vá para o “Lar de Gregórios”, miss,
e aguarde notícias minhas! Tomarei providências!
Dito isto, saiu estabanadamente. Brigitte ainda pensou em
ir atrás dele, mas decidiu seguir o seu conselho. E foi para a
hospedaria, ao encontro de Julien Charcot, que já devia ter
acordado.
Entretanto, o brigadeiro Kanellodos, com o rosto
retorcido pela apreensão, fazia-se anunciar ao prefeito
Alexandros Enganademos, no seu gabinete da Acrópole.
Num canto da sala modesta, já estava sentado Mustafá
Beysehir. O chefe de polícia entrou, tirando o chapéu, e o
prefeito fechou a porta. Ninguém mais podia ouvi-los,
— Que tem você? — perguntou o gordo.
— A americana já sabe de tudo — respondeu o
brigadeiro, deixando-se cair sentado numa cadeira. —
Acusou Mustafá de ser um dos falsos sacerdotes e tentou
ressuscitar o agente da CIA! Se ele voltou a si ou não, isso
não sei. Mas, agora, miss Montfort queria que eu prendesse
Mustafá!
O prefeito deu uma risada, que fez tremer os seus dois
queixos. Simultaneamente, o turco encheu um copo com
vinho resina e ergueu-o contra a luz.
— Bem, camaradas — disse ele, com voz áspera. —
Chegou o momento da decisão! Qual de nós matará essa
repórter americana?
CAPITULO QUINTO
Compasso de espera
A fraude da cabeça de Niké
Outro acidente nas montanhas
Começa o embarque

Depois das palavras de Mustafá Beysehir, o silêncio caiu


no gabinete. O brigadeiro moveu-se, inquieto, na cadeira.
Depois, o prefeito tomou a palavra, com voz firme:
— Você está doido, Mustafá? Você e seus homens já
tentaram matar essa moça e não conseguiram! Agora, quer
nos envolver na história? Não, senhor! Nem eu, nem o
brigadeiro, podemos nos arriscar, num complô contra a vida
de uma súdita norte-americana! Temos nossos cargos
públicos, nossas responsabilidades! E um novo acidente com
miss Montfort, depois da morte de Mr. Chandler, daria muito
na vista! Não posso atrair para Sabyra as atenções do
Governo central! Isso seria estragar todos os nossos planos!
Sou contra os atentados à vida de nossos hóspedes!
— Mas eles são espiões — protestou o turco.
— Provamos que o falecido Duff Chandler era ligado à
CIA norte-americana! O senhor pensa que ele estava aqui
por acaso? Não estava! Ele veio da Trácia, seguindo a pista
das armas! Ele estava atrás de nós!
— Mas agora morreu — disse o brigadeiro Kanellodos.
— Vocês o mataram, a tiros, no quintal da Delegacia. Estou
com o prefeito. Também acho que é loucura matar a moça!
Mustafá bebeu um gole de vinho. E encarou o prefeito.
— E se ela falou com o falecido Chandler?
— Ninguém pode falar com um defunto — retrucou
Alexandros Enganademos, impaciente.
— O espião da CIA não estava morto. Eu o vi pular em
cima do peitoril da janela, antes de ser atingido pelas balas.
E miss Montfort teve muito tempo de conversar com ele,
naquela sala dos fundos. Não sei até que ponto ela ficou
inteirada dos fatos.
— Se ficarmos livres dessa americana — volveu o
prefeito, com a mesma voz firme — teremos afastado o
perigo. Mas, ficar livre de uma pessoa não é,
necessariamente, matá-la. Acho que devemos afastar a
repórter por meios menos sanguinolentos. Ou seja: esperar
que ela embarque, em companhia do francês, para Atenas.
— Tolice — resmungou Mustafá. — Ela não embarcará!
Depois de ter visto os sacerdotes de Samos, o rádio e a
cabeça de Niké, ela não irá embora facilmente! Vai querer
ver o resto!
— Nós faremos com que vá embora — disse o
brigadeiro; — Estou de acordo com o prefeito. Podemos dar
corda à jornalista, como se a ajudássemos no seu trabalho
profissional, até deixá-la satisfeita com aquilo que encontrar.
Claro que ela só encontrará o que nós quisermos. Depois de
fazer suas reportagens e tirar suas fotografias, miss Montfort
não terá motivos para permanecer em Sabyra. E irá embora
facilmente.
— Exato — acrescentou o prefeito. — Digo mais: vamos
devolver à garota a sua máquina fotográfica... ou outra
câmara do mesmo tipo... e permitir-lhe fácil acesso às
escavações, na base do Saócio. Só não deixaremos que ela
suba, novamente, à montanha. Miss Montfort não desconfia
de mim, nem do brigadeiro, e fará aquilo que nós quisermos.
Todo o perigo ficará circunscrito a este compasso de espera,
até o embarque das relíquias.
— Ela viu a cabeça de Niké — teimou o turco. — Ela
sabe que eu pertenço aos sacerdotes! Duvido que vá embora
sem fazer novas investigações! Mesmo que não seja uma
espiã dos imperialistas americanos...
— A coisa será feita como eu quero — atalhou
Alexandros, com voz seca. — Arranjaremos, também, uma
cabeça de Niké para contentar os turistas... E você, Mustafá,
fique sumido por alguns dias. Nós diremos a miss Montfort
que você está sendo caçado nas montanhas, ou fugiu para a
Turquia. E, para tornarmos a coisa mais real, o brigadeiro
prenderá Simon e Mercourios, que foram os seus
companheiros no ataque à Delegacia. Hoje é sexta-feira;
depois de amanhã, os engradados com os objetos de arte
estarão prontos e, na segunda-feira, ficaremos livres do
francês e da americana.
Houve outra pausa. Mustafá refletia, degustando um gole
de vinho. Depois:
— E vamos nos privar da cabeça de Niké? Aquela
escultura tem nos dado muita sorte.
O gordo prefeito fez um gesto enérgico.
— Eu encontrei a cabeça no Saócio, depois que o francês
a perdeu. Ela me pertence, mas eu a cedi ao nosso grupo.
Claro que continuaremos com ela. Apresentaremos aos
nossos hóspedes uma falsa cabeça de Niké, feita em
fragmentos. Existem muitas pedras daquele tipo na região.
Sakintos Krétinon, o nosso escultor oficial, cederá a
imitação, que será sacrificada a marteladas.
— Em três dias? — duvidou o turco.
O gordo voltou a sorrir.
— Sakintos já tem uma cópia da cabeça de Niké em seu
atelier. Custará apenas sessenta mil dracmas. Nosso amigo
Julien Charcot pagará isso feliz.
Mustafá olhou para o brigadeiro e viu-o inclinar
aprobativamente a cabeça. O prefeito continuava sorrindo,
mas seus olhos, entre as pálpebras gordas e estufadas, eram
ferozes e autoritários.
— Está bem — concluiu o turco, acabando de beber o
copo de vinho. — Evitaremos chamar a atenção com a morte
da repórter. Eu amargarei, no ostracismo, esse compasso de
espera. O Grande Profeta tem, sempre, a última palavra...
***
Depois de ter trocado algumas palavras com Julien
Charcot, narrando-lhe a dupla morte de Duff Chandler,
Brigitte pediu licença ao francês e foi se deitar. Estava
cansadíssima, depois de tantas aventuras. Dormiu como uma
pedra. Seis horas seguidas.
Gregórios Metastaxas não teve coragem de acordá-la, ao
meio-dia, embora houvesse preparado um excelente almoço.
Julien Charcot comeu, sozinho, os miúdos de porco com
arroz à grega.
Ao bater das duas horas, o brigadeiro Kanellodos
apareceu na hospedaria, acompanhado por dois de seus
gendarmes. Então, Brigitte foi acordada e surgiu na sala,
trajando um perturbador vestido de gaze.
— Trago novidades — anunciou o chefe de polícia,
procurando' mostrar-se insensível aos encantos da jornalista.
— Poderá me acompanhar à Delegacia para fazer um
reconhecimento, miss Montfort? Prendemos dois dos seus
assaltantes. O turco Mustafá Beysehir fugiu para as
montanhas, mas também não tardará a ser apanhado. Agora,
temos certeza de que ele pertence à quadrilha!
Satisfeita, Brigitte acompanhou o policial. Julien Charcot
tinha ido às escavações, de onde estavam retirando o resto do
material que seria embalado no depósito da Prefeitura.
Tomaram um jipe na porta da hospedaria e atravessaram a
praça, rumando para o sul.
— Também reavemos a sua máquina fotográfica —
continuou o brigadeiro, que parecia muito alegre. — Teve
sorte. Nada está quebrado. Também quero que a identifique.
Naturalmente a Speedflash era a mesma que fora
recolhida, no Saócio, pelos falsos sacerdotes de Samos. Por
sorte, não tinha se quebrado, embora estivesse toda
arranhada. Ao chegarem à Delegacia, encontraram dois
homens altos e mal-encarados, num cubículo gradeado.
Brigitte logo os reconheceu.
Eram os dois gregos que, junto com o turco, tinham
assassinado Duff Chandler.
— Já viu estes homens, miss Montfort? — perguntou o
brigadeiro.
— Sim — respondeu ela, admirada. — O senhor
trabalhou rápido, brigadeiro! Parabéns! Onde os apanhou?
— Eu já desconfiava deles, miss. Agarrei-os no boteco do
Papadoupolos. Chamam-se Simon e Mercouris. São velhos
assaltantes de turistas, mas nunca tinham usado armas. Desta
vez, vão se dar mal! A câmara também é essa?
Brigitte examinou a Speedflash, que ele acabara de lhe
devolver.
— Sim, é essa. Estava com eles?
— Exatamente. Recuperamos diversos objetos roubados.
Creio que, assim, não falta nada. Agora já não tem do que se
queixar. O caso está encerrado.
— Um momento, brigadeiro. E a cabeça de Niké? E a
caverna com o binóculo e o rádio portátil?
— Entre outros objetos roubados, encontramos um
binóculo e um rádio japonês. Foram esses os objetos que viu
na gruta, que servia de depósito para a “muamba” desses
marginais. Eles pagarão caro pela sua ousadia! Quanto à
cabeça de Niké, ainda estamos à procura dela. Mas havemos
de encontrá-la.
Brigitte olhou para os dois prisioneiros, que a encaravam
com expressão de ódio, do outro lado das grades, e não disse
nada. Tudo aquilo estava lhe parecendo fácil demais...
Estaria, também, o brigadeiro Kanellodos mancomunado
com os guerrilheiros? Tudo se podia esperar, numa terra
como aquela!
— Está satisfeita, miss Montfort? — tomou o hercúleo
policial, quase com ar ameaçador. — Não tem mais nada a
reclamar?
Brigitte mentiu:
— Mais nada, brigadeiro. Estou satisfeita. Agora, poderei
fotografar os objetos de arte encontrados nas escavações e
prosseguir com as minhas reportagens no alto do Saócio.
Aquela fonte de enxofre, por exemplo...
O brigadeiro deu um salto.
— Lamento, miss, mas não poderá mais subir ao monte!
É uma ordem do nosso prefeito. Depois do acidente ocorrido
com Mr. Chandler, o local foi interditado. Vamos investigar
tudo muito bem. Mas essas coisas sempre demoram... e sei
que vai acompanhar monsieur Charcot, na próxima segunda-
feira...
— Talvez — disse Brigitte, mordendo os lábios. —
Ignoro ainda se irei para Atenas, antes de esclarecer este
caso. A cabeça de Niké...
O chefe de polícia tornou-se francamente ameaçador.
— Eu a aconselho a ir embora, miss! Nunca tivemos
tantas complicações em Sabyra como agora, depois que
apareceu aqui! Por favor, miss Montfort, abandone esta
localidade!
A repórter sorriu e fez um gesto gracioso.
— Está bem, brigadeiro. Atenderei a um pedido tão
gentil. E agora, se me permite, vou fazer uma visita às
escavações de Sabyra, onde monsieur Charcot espera por
mim. O senhor teria a delicadeza de me ceder o seu jipe?
— Com todo o prazer. Mas se esquece de que tem um
helicóptero à sua disposição.
— Prefiro ir de jipe. É mais seguro.
O brigadeiro curvou-se e indicou-lhe a saída. Ao deixar a
Delegacia, ela ainda ouviu os gritos dos dois prisioneiros,
mas não entendeu o que diziam. O chefe de polícia ajudou-a
a subir no jipe e ordenou ao motorista que ficasse à
disposição da famosa correspondente do “Morning News”.
Depois, fez continência e voltou para o seu gabinete. O jipe
partiu. Dez minutos depois, chegava ao local onde os
americanos tinham feito as escavações. Julien Charcot ali
estava, com as botas sujas de barro e um pedaço de pedra nas
mãos. Pouco adiante, um grupo de arqueólogos ainda
escavava o terreno. Brigitte saltou do jipe e reuniu-se ao
francês; levava a máquina fotográfica a tiracolo.
— Não há mais nada aproveitável — disse Julien, com ar
tristonho. — Agora, só nos resta embalar as peças do
depósito e ir embora. O corpo de Duff Chandler deve
embarcar dentro de duas horas para Atenas, de onde será
trasladado para Nova Iorque. O prefeito já lhe falou?
Estamos proibidos de subir ao Saócio para procurar a cabeça
de Niké.
— Eu sei — respondeu Brigitte. — Fui informada pelo
chefe de polícia. Ainda não estive, hoje, com o prefeito.
Escute, monsieur Charcot. Que é que o senhor acha do
brigadeiro?
— Kanellodos? — O francês espetou a barbicha, com ar
perplexo. — Considero-o um excelente policial, cumpridor
dos seus deveres. Ele acabará descobrindo os falsos
sacerdotes de Samos. Espero que também encontre a cabeça
de Niké. Estou disposto a pagar uma fortuna por ela!
Brigitte contou-lhe tudo.
— Como?! — exclamou o arqueólogo, espantado. — Já
prenderam dois bandidos e o terceiro fugiu? Nesse caso, o
brigadeiro é ainda mais ativo do que eu pensava! Você deve
estar feliz por ter reavido a sua máquina fotográfica.
— Sim, estou. Mas achei a solução muito simples, para
um caso tão complicado. Não diga nada a ninguém, meu
caro Julien, mas desconfio que esse brigadeiro também está
envolvido com os homens maus da montanha! Antes de
qualquer coisa, preciso ter outra conversa com Manolakas.
Aquele garoto sabe de muita coisa e tem medo de abrir a
boca. Agora, porém, eu o amaciei com uma nota de cinco
dólares e pode ser que ele se resolva a cooperar. Tenho que
descobrir tudo nestes dois dias, pois na segunda-feira
embarcaremos para Atenas.
— Você irá comigo?
— Não posso deixar de ir. Recebi ordens da polícia para
isso. Essa é outra coisa que me faz desconfiar das atividades
do brigadeiro Kanellodos... Não há dúvidas de que ele quer
me ver pelas costas.
O francês ainda olhou ao redor, para o terreno
esburacado, e mudou de conversa:
— Vamos até o depósito da Prefeitura? Gostaria que
visse o material encontrado nesta localidade. Há algumas
peças interessantes.
— Espere um minuto — pediu a repórter. — Preciso tirar
algumas fotos das escavações, para ilustrar a minha primeira
reportagem para o “Morning News”.
Enquanto ela batia chapas do terreno e da turma de
arqueólogos, Julien Charcot examinava o pedaço de pedra
que tinha na mão. Com um pequeno espanador de pelo de
marta, removeu a camada de terra que cobria a peça e pôs à
mostra um fragmento de um dos métopes já catalogados e
recolhidos ao depósito. O achado deixou-o tão contente que,
por um momento, esqueceu-se da cabeça da Vitória.
Meia hora depois, tomaram o jipe da polícia e
regressaram à cidade. Mais alguns minutos e estavam no
amplo depósito da Prefeitura, onde se amontoavam os mais
estranhos objetos de arte. Meia dúzia de funcionários da
municipalidade, cedidos pelo prefeito, acondicionavam
cuidadosamente as peças em caixotes de ripas. Algumas
eram envoltas em algodão em rama.
— Gostaria de conhecer o montante de nossos achados?
— inquiriu Julien Charcot, sorrindo com ar de triunfo. — O
Museu de Harvard vai ficar enriquecido com tanta coisa
bonita! Vou sugerir que seja criada a “Sala Duff Chandler”,
como homenagem póstuma ao meu colega. Quanto a nós, do
Louvre, ficaremos apenas com uma pequena peça de
esmalte, sem alça, realmente extraordinária. Eu não sabia
que os gregos já a usavam, antes de Cristo. Quer ler a lista
do material?
Brigitte disse que sim e ele lhe passou uma cópia
datilografada, onde se lia:
 Uma estátua de mármore, sem os pés nem a cabeça.
 Duas estatuetas de bronze patinado.
 Dois frontões em ruínas, com baixos-relevos.
 Um afresco (têmpera) sobre argamassa rachada.
 Vários ornatos, esculpidos em alto-relevo.
 Fragmentos de dois métopes representando centauros.
 Duas terracotas pequenas, com miniaturas em baixo-
relevo.
 Um jarrão de bronze com duas alças.
 Três placas de ferro, chanfradas, com inscrições
ideográficas.
 Várias contas pretas (sementes).
 Cinco joias de adorno, com filigranas.
 Um vaso de esmalte branco, sem alça, com cheiro sui-
generis.

— Só falta a cabeça da Vitória — comentou Brigitte,


devolvendo o papel ao arqueólogo. — Mas o brigadeiro
Kanellodos prometeu que a devolvia até segunda-feira.
Esperemos que ele cumpra a sua palavra. Só assim se livrará
de nós.
Julien Charcot ficou de olhos parados, mas não disse
nada. As lágrimas escorriam pelo seu rosto asando e
embaciavam as suas lunetas; ele não podia ouvir falar na
cabeça de Niké.
***
O corpo de Duff Chandler foi embarcado aquela noite e
remetido para Atenas, onde havia autoridades americanas à
sua espera. Brigitte não soube como o Chefe de Polícia de
Sabyra explicou o fato de o cadáver ter duas balas nas costas,
mas imaginou que ele tivesse atribuído o atentado aos dois
gregos que aprisionara. Não se enganava. Simon e
Mercourios iam pagar o pato...
Na mesma noite, a filha de Giselle não encontrou
Manolakas em casa. A Sra. Marúlia explicou que o filho
tinha ido a Pyros, com um casal de turistas alemães. No
sábado pela manhã, ela voltou à casa verde. Manolakas ainda
não estava. Aquilo era estranho! Brigitte revistou a casa e
não o encontrou.
— Sra. Marúlia — disse a repórter, ao se despedir —, seu
filho corre perigo de vida! Diga-me onde ele está escondido.
Eu o protegerei. Tenho certeza de que Manolakas está
fugindo de alguma coisa! Onde se meteu ele?
Como resposta, a viúva apenas desandou a chorar. E
acabou expulsando-a da casa, batendo-lhe com a porta na
cara. Preocupada, Brigitte saiu à procura do guia por toda
parte seguindo várias indicações de Gregórios Metastaxas,
mas não teve êxito. Manolakas desaparecera como se a terra
o tivesse tragado. Não havia nenhum casal de turistas
alemães, nem nenhuma viagem a Pyros. O rapazinho
desaparecera, simplesmente.
Enquanto isso, o trabalho continuava no depósito da
Prefeitura. Julien Charcot achava que tudo ficaria pronto dali
a dois dias. Passou-se o sábado e, no domingo pela manhã, o
brigadeiro Kanellodos voltou a aparecer na hospedaria “O
Lar de Gregorios”. Brigitte estava tomando banho e, dessa
vez, surgiu envolta num roupão felpudo.
— Miss Montfort — disse o chefe de polícia, trago duas
boas notícias. Mustafá Beysehir fugiu para a ilha vizinha de
Imroz, em território turco, e não nos incomodará mais. Seu
sócio, Ibrahim Merkezi, assumiu a direção da empresa de
pesca e continua pondo à sua disposição o barco “Denizi
Palas”, no qual serão embarcados os objetos de arte.
— Essa não é uma boa notícia — replicou Brigitte,
franzindo o narizinho. — Qual é a outra? Talvez seja melhor.
— Encontramos a cabeça de Niké — disse o brigadeiro,
com ar triunfante.
Por essa a repórter não esperava.
— É mesmo? Monsieur Charcot vai ficar muito feliz! A
cabeça estava naquela gruta, não é verdade?
— Não. Estava numa fenda do despenhadeiro, trezentos
metros abaixo da gruta e do poço de fumaça. Monsieur
Charcot não ficará muito feliz, pois a escultura está toda
arrebentada. Contudo, não há dúvida de que se trata da
legítima cabeça da Vitória encontrada em Samothrake em
1863. Desta feita, também foi um camponês quem a
encontrou. E nosso perito de arte, Sakintos Krétinon, está
pronto para atestar a legitimidade da relíquia.
No mesmo instante, Julien Charcot foi mandado chamar
no depósito da Prefeitura e levado até uma velha casa
amarela, no sopé nordeste do Saócio, onde lhe mostraram
diversos fragmentos de pedra trabalhada. O arqueólogo
francês, chorando de emoção, identificou aquelas ruínas
como as da cabeça do Niké. Nenhuma restauração seria
possível, pois faltavam alguns pedaços da escultura. E o
resto, provavelmente esfarelado na queda, estava perdido.
— Quem encontrou isto? — murmurou Julien,
controlando o afluxo das lágrimas. — É doloroso, mas é
verdade! A cabeça de Niké está perdida! No entanto, gostaria
de levar estes pedaços para o Museu do Louvre, para ver se é
passível fazer alguma coisa. Temos técnicos especializados
em restaurações artísticas.
— Esses fragmentos — disse o Brigadeiro Kanellodos,
lambendo os beiços — custam apenas sessenta mil dracmas.
Nós, da Polícia, não cobraremos nada pelo serviço prestado.
Também é nosso dever encontrar tesouros perdidos.
O arqueólogo francês limpou as lunetas na gravata e
preencheu um cheque, no valor de 60 mil dracmas,
entregando-o ao camponês que encontrara as pedras. Este,
que se chamava Basílio Tessandaris, parecia, não entender
nada daquilo, mas ficou firme, emudecido pelo olhar
coruscante do Chefe de Polícia. E o arqueólogo francês,
voltando a chorar de dor, saiu dali carregando os fragmentos
da obra de Sakintos Krétinon num velho saco de estopa.
***
Finalmente chegou a segunda-feira, dia do embarque.
Desde cedo, os funcionários da Prefeitura e alguns
pescadores, orientados por outro turco gigantesco,
começaram a transportar os caixotes do depósito para bordo
do “Denzi Palas”. Este era um belo barco branco, muito
limpo, com amplos porões. Estava atracado ao cais, e em
comunicação com este por meio de uma larga prancha de
madeira. Devido ao valor da mercadoria, não podia ser usado
o único guindaste existente.
— Seu helicóptero viajará no convés — informou o sócio
de Mustafá Beysehir, quando Brigitte apareceu para dar uma
espiada. — Está tudo combinado com Sua Excelência, o
Prefeito. Logo mais, às dez horas da noite, largaremos de
Sabyra.
— O Prefeito, então, combinou tudo? — observou
Brigitte, desconfiada.
Nesse momento, o brigadeiro Kanellodos também
apareceu no cais, a tempo de ouvir a pergunta.
— Sim, miss Montfort — disse ele, gentil. — Nosso
Prefeito quer que leve de Sabyra a melhor impressão; Foi
lamentável tudo o que lhe aconteceu! Resta-nos o consolo, a
nós da autoridade: a consciência de que nada tivemos a ver
com os incidentes. Os ladrões do Saócio foram presos e
serão processados, na forma da lei. Mustafá fugiu, mas será
detido pela polícia turca. E monsieur Charcot levará para o
Louvre a cabeça de Niké. Tudo acabou bem, felizmente.
Antes que, Brigitte protestasse, apareceu um soldado
correndo, puxou o brigadeiro pela manga da túnica, trocou
algumas palavras, em voz baixa, com ele, em grego, no
dialeto katharevoussa, e Brigitte não os entendeu. Mas o
Chefe de Polícia voltou para junto dela e suspirou:
— Agora, também acabei de ter uma triste notícia, miss
Montfort! Seu guia morreu!
— Quem?
— Manolakas. Pobre rapaz! Ele subiu sozinho ao Saócio,
há dois dias, e despencou de cima de uma ribanceira. Um
acidente típico. Ficou gravemente ferido e, quando o
encontraram, já estava morto. Morreu por falta de socorros.
Esse acidente, refletiu Brigitte, também era muito
estranho! Se Manolakas sabia de alguma coisa, os falsos
sacerdotes de Samos tinham-no silenciado. Mas estaria o
rapaz morto, realmente? Ou aquilo seria mais um pretexto
para que ela fosse embora, certa de que não havia mais
nenhuma pista que a levasse aos guerrilheiros?
— A propósito — continuou o Chefe de Polícia, com
volubilidade. — é curioso como miss Montfort se parece
com a Vitória de Samothrake! Cada vez que a contemplo,
sinto um arrepio! É a própria cabeça da Niké!
Então Brigitte teve certeza de que o brigadeiro George
Kanellodos também fazia parte do grupo de guerrilheiros que
tinha assassinado Duff Chandler. Se ele vira a cabeça de
Niké intacta, tinha que ser um dos falsos sacerdotes de
Samos! Os fragmentos da estátua, apresentados a Julien
Charcot pelo camponês Basílio Tessandaris, não permitiam
que se percebessem as suas feições originais.
Ora, se o Chefe de Polícia de Sabyra era um dos
guerrilheiros, não seria absurdo supor que o prefeito
Alexandros Enganademos fosse o Grande Profeta. Era por
isso, então, que eles queriam se ver livres dela!

CAPITULO SEXTO
Jantar de despedida
A partida... e a volta
O depósito das armas
Uma acusação muito grave
Brigitte perde os sentidos

As desconfianças de Brigitte não lhe deram nenhuma


alegria. Se o Chefe de Polícia e o Prefeito fossem os chefes
da gang, não podia contar com o auxílio das autoridades
locais. Nesse caso, só lhe restava ir para Atenas e fazer uma
queixa. Contudo, tinha interesse em positivar as suas
suspeitas, antes de tomar uma decisão. Por isso, ficou muito
contente quando voltou à hospedaria para tratar do embarque
das malas e Gregórios Metastaxas II informou de que o
Prefeito lhe mandara um convite, extensivo a monsieur
Julien Charcot, para jantar na “Acrópolis”. Seria uma
pequena festa de despedida, animada por um conjunto de
amadores que dançaria o sirtaki, ao som dos santuris.
Às oito e meia, a repórter e o arqueólogo francês foram
recebidos na Prefeitura pelo gordo mandachuva municipal,
que se fazia acompanhar pelo hercúleo Chefe de Polícia.
Dessa vez, o turco Mustafá Beysehir estaria ausente. Brigitte
vestira um modelo Dior em branco e ouro, e parecia uma
estátua grega estilizada. O jantar transcorreu normalmente,
num clima bastante agradável. Alexandros Enganademos e
Georg Kanellodos desmancharam-se em gentilezas,
esforçando-se para desfazerem qualquer má impressão que a
jornalista tivesse da hospitalidade grega. Após a refeição,
passaram a uma sala enorme, onde se exibiram os músicos e
os bailarinos, especialmente convidados. Brigitte sentou-se
entre o gordo Prefeito e o robusto Brigadeiro, sentindo-se
pequenina no meio daqueles dois homenzarrões. À frente
deles, seis bailarinos retorciam-se, animados pelo ritmo dos
santuris.
— Acabei de saber o que aconteceu com aquele jovem
Manolakas — disse o Prefeito, em dado momento. — Foi
lamentável! O pobre rapaz caiu num local perigoso do
Saócio e quebrou a espinha. Tivemos que mandá-lo para
Pyros, onde será operado. Mas não creio que escape. Não há
bons cirurgiões em Samotrácia.
— Curioso — murmurou Brigitte. — O brigadeiro me
disse, esta tarde, que Manolakas estava morto. Que tinha
morrido por falta de socorros.
O gordo Prefeito piscou os olhos empapuçados.
— Sim? É verdade. Eu não queria chocá-la com essa
notícia, miss Montfort, Manolakas morreu. Mas nós
cuidaremos para que nada falte à viúva Marúlia.
Brigitte quase achou divertida a confusão do grande
homem. Era agora evidente que eles não tinham combinado
bem os detalhes do plano de despistamento... Aquilo queria
dizer que não houvera nenhum acidente com Manolakas.
— De qualquer maneira — prosseguiu ela, sorrindo —
estou de partida para Atenas. Nada mais me interessa. Já
enviei a primeira reportagem para Os Estados Unidos e vou
levar pessoalmente a segunda. O caso grego, no que me diz
respeito, está encerrado.
— Folgo muito em ouvir isso — retrucou o Prefeito,
trocando um olhar de alívio com o Brigadeiro.
— Nós não queríamos que sofresse qualquer contratempo
em Sabyra. Infelizmente, seu patrício foi morto pelos
ladrões, mas o Brigadeiro conseguiu prender os culpados.
Eles serão julgados e talvez apanhem a pena máxima. Não
gostamos de ladrões, miss Montfort. E gostamos, ainda
menos, de espiões! Calaram-se, ouvindo apenas as pancadas
sonoras dos martelos nos santuris e o arrastar dos pés dos
bailarinos. Parecia uma cena do filme “Zorba, o grego”.
Afinal, Julien Charcot que estava sentado do outro lado do
Chefe de Polícia ergueu a voz esganiçada:
— Há um pequeno ponto, nesta história, que eu gostaria
que fosse esclarecido! Refiro-me à cabeça de Niké!
O Prefeito e o Chefe de Polícia encararam-no, ao mesmo
tempo, com olhares frios e cruéis.
— Sim? — fez o gordo Alexandros. .
— Tenho uma suspeita sobre a autenticidade daquela
cabeça — continuou o arqueólogo, baixando a vista. — Eu a
comprei por sessenta mil dracmas e mereço uma explicação!
Pelo exame dos fragmentos, cheguei à conclusão de que a
escultura não pode ter mais de mil anos de idade. Aquela
pedra me parece mais nova. É claro que só um exame
técnico, feito com aparelhos especiais...
— O senhor é muito desconfiado — atalhou o Prefeito,
ocultando o pânico atrás de um sorriso amarelo. — Aquela é
a cabeça de Niké. Pelo menos, assim o atestou o nosso perito
oficial. E Basílio Tessandaris, o camponês que encontrou as
pedras, é um dos nossos mais honestos cidadãos! Fique
descansado, professor. O senhor está levando para o Museu
do Louvre uma relíquia de incalculável valor! Portanto,
aconselho-o a ir-se embora, sem novas queixas e exigências!
Somos muito hospitaleiros, monsieur, até o ponto em que
isso nos prejudica a existência.
Havia uma ameaça implícita nestas palavras. Depois
daquilo, só uma declaração de guerra. Brigitte deu uma
risada e ergueu o seu copo de vinho. Procurou aliviar a
tensão:
— Monsieur Charcot, como todos os arqueólogos, é
muito desconfiado... Claro que a cabeça da Vitória é legítima
e causará um tremendo impacto em Paris! Eu própria
escreverei uma reportagem sobre ela, logo que chegar a
Atenas. E não me esquecerei de dizer que fomos muito bem
tratados em Sabyra.
— Obrigado, miss Montfort — sorriu o Chefe de Polícia.
— Suas palavras me tomam imensamente feliz! Não fizemos
mais do que cumprir o nosso dever!
A alegre reunião ainda se prolongou até às dez e meia da
noite, que foi quando o turco Ibrahim Merkesi apareceu,
anunciando que o barco estava pronto para partir. As
bagagens dos dois viajantes haviam sido levadas para bordo
e eles embarcaram entre lenços brancos acenando. O “Denizi
Palas” desatracou e afastou-se vagarosamente do cais. No
convés da proa, amarrado com grossos cabos de aço, ia o
helicóptero que o Governo de Atenas emprestara à repórter.
Navegaram cerca de cem quilômetros, numa velocidade
média de dez nós e atingiram a ilha de Lemnos. Eram cinco
e meia da madrugada quando Julien Charcot bateu à porta do
camarote de Brigitte. A bela jornalista acordou, saltou do
beliche e foi abrir. Usava uma camisola transparente, mas
isso não causou maior emoção no francês; ele estava
tremendamente indignado.
— Enganaram-me! — rugiu. — Voltei a examinar os
fragmentos da cabeça de Niké, no porão, e descobri que se
trata de uma cópia! O trabalho foi muito bem feito, mas é
uma mistificação! Aqueles pedaços de pedra não pertencem
à verdadeira cabeça que eu perdi no Saócio!
— Eu sei — sorriu Brigitte. — Mas não podíamos
estrilar... Estávamos na boca do lobo e, se reagíssemos,
seriamos devorados. Também sei que Manolakas não morreu
e o prefeito Enganademos faz parte de um bando de
guerrilheiros. Eles talvez tenham ligações com os turcos. Por
isso, vou voltar à Samotrácia e procurar esclarecer o
mistério. Estou apenas à espera de que este barco faça a
primeira escala, para subir no helicóptero e regressar ao
ponto de partida. Mas o senhor não irá comigo, meu caro
professor. Deste vez, minha missão é muito arriscada. Siga
para Atenas e faça a sua queixa às autoridades. Eu voltarei
sozinha ao Monte Saócio!
— Isso é o que você pensa — retrucou o francês,
energicamente. — Fui ludibriado, mas ainda não é tudo. Se
eles me venderam uma falsa cabeça de Niké, é sinal de que
continuam com a verdadeira! E eu não descansarei enquanto
não a encontrar! Volto com você à ilha, Brigitte! Quero
esquadrinhar aquela caverna, à procura da relíquia! E você
fará bem em me levar, pois eu posso lhe ser de utilidade.
Acabamos de chegar à ilha de Lemnos e o barco não tarda a
fundear. Que estamos esperando para apanhar o helicóptero?
Brigitte sorriu e, sem hesitar, despiu a camisola,
mostrando-se completamente nua. Depois, vestiu uma
espécie de trajo de alpinista. Não se esqueceu de colar a
pistolinha na fabulosa coxa esquerda. Mas Charcot
continuava tão indignado que nem assobiou.
***
O piloto do helicóptero estava dormindo e não ouviu o
ronco do motor. O capitão do barco não entendeu nada, mas
quando quis evitar a partida do aparelho, este já se desfizera
das amarras e subia, verticalmente, para um céu limpo,
iluminado pelos primeiros clarões do amanhecer. A bordo,
Brigitte Montfort e Julien Charcot. A bela repórter era o
piloto. Fizera uma aprendizagem durante o seu curso de
contraespionagem em Fort Holabird e manejava um
helicóptero com a mesma desenvoltura que uma lancha ou
um caminhão.
O rádio de bordo orientou-os, graças ao “sinal” emitido
por uma emissora de Pyros, mas, assim mesmo, perderam
duas horas a procurar a ilha no horizonte. Afinal, às oito da
manhã, viram os rochedos brancos que tinham dado à ilha de
Samotrácia, no passado, o nome de Leucósia. O helicóptero
baixou e percorreu agilmente o terreno estéril que separava
as rochas da vertente norte do Saócio. O monte ficava quase
ao centro da ilha, um pouco mais para nordeste. Pequenas
povoações pareciam deslizar sob a sombra negra do pássaro
metálico, e camponeses alegres gesticulavam para o alto,
saudando a passagem dos turistas. Enfim, o Saócio. Brigitte
manobrou o aparelho por cima do cume principal, a mil e
setecentos metros de altitude, e voltou a descer, agora mais
devagar, à procura da fonte de gás em combustão. Não
tardou a divisar um penacho de fumaça, numa escarpa. Era
ali que ficava a caverna dos falsos sacerdotes de Samos. Não
se via ninguém no monte. Vagarosamente, o helicóptero
sobrevoou a fumaça e desceu sobre uma plataforma de
pedra, à beira de um precipício. Aí se imobilizou, como um
grande gafanhoto cansado.
— Okay — disse Brigitte, desfivelando o cinto de
segurança. — Esperemos que os guerrilheiros não venham à
caverna durante o dia... Mas é possível que tenham deixado
algum contrabandista de guarda.
— Eu estou armado — respondeu o arqueólogo, exibindo
uma Mauser de oito tiros. — Mas só atirarei em legítima
defesa. Deus nos ajude, Brigitte! Tenho muita esperança de
recuperar a cabeça da minha Niké! Cada vez que olho para
você, sinto vontade de chorar! Que pena que você não seja
de pedra!
Saltaram do helicóptero, cuja enorme hélice tinha parado
de girar, e caminharam, agachados, pela vertente dura e
inclinada. A repórter ia à frente, apalpando o terreno.
Nenhum dos dois podia empunhar uma arma, pois
precisavam das duas mãos para se segurarem às pedras, na
beira do abismo. Mas a gruta não ficava longe e logo viram a
sua entrada negra, que parecia uma boca prestes a devorá-
los. Pararam junto da abertura quadrangular e escutaram um
momento, imóveis, procurando abafar as batidas do coração.
Vozes! Vozes retumbantes ecoavam no interior da caverna!
— E agora? — sussurrou Julien Charcot.
Brigitte tirou a pistolinha da coxa e empunhou-a com
decisão. As vozes aumentavam de volume, aproximavam-se!
Não tardaria a aparecer alguém!
— Atrás da rocha — soprou a repórter. — Em cima do
buraco!
E deu o exemplo, trepando pelas pedras, até se encolher
atrás de uma rocha porosa, por cima da entrada da caverna.
O arqueólogo francês imitou-a, a Mauser em punho. Ali
ficaram, imóveis, à espera. Súbito, um homem alto, vestido
de branco, mas sem máscara, saiu da gruta, fazendo largos
gestos. Atrás dele saíram dois outros falsos sacerdotes de
Samos, carregando um enorme caixote nos ombros. Em cima
da caixa lia-se: “FERRAMENTAS AGRÍCOLAS”. O
letreiro estava escrito em grego e turco.
Penosamente, os dois homens desceram a encosta e
sumiram na “prateleira” inferior da colina. Em seguida, mais
dois carregadores saíram da caverna e seguiram o mesmo
destino. Depois, outro caixote passou nos ombros de outros
dois homens, estes vestidos como camponeses gregos. Por
fim, cessou o movimento. Aparentemente, não havia mais
ninguém no interior do monte. Brigitte e Julien esperaram
ainda cinco minutos e desceram até a entrada caverna.
— Vamos entrar — soprou o francês. — A cabeça deve
estar lá dentro!
— Silêncio! — respondeu a repórter, inclinando a cabeça
para ouvir melhor. Ainda havia gente no interior da gruta!
Outras vozes ecoavam no seio da terra!
— Guardas — sussurrou Brigitte. — Só os poderemos
apanhar se conseguirmos reforços das autoridades. Mas o
que eu queria saber, já sei. Vamos embora!
— Embora? — espantou-se Julien. — Sem a cabeça?
— Sim. Depois, voltaremos. Em primeiro lugar, vamos
ver para onde eles estão levando o carregamento de armas.
— Armas?!
Brigitte sorriu.
— Sim, meu caro professor. Ainda não entendeu? Está
tudo claro agora! Esses camaradas são traficantes de armas!
Recebem o armamento da Turquia, embarcado nos barcos de
pesca de Mustafá Beysehir, e depositam-no na caverna. Daí
o binóculo e o rádio-portátil. Os homens da caverna se
comunicam com os barcos, durante a noite, e fazem sinais
com um archote, avisando quando o caminho está livre.
Então, as armas são desembarcadas e trazidas para aqui. E,
daqui, são enviadas aos guerrilheiros da Trácia e da
Macedônia! Duff Chandler estava na pista desses terroristas.
Sim, ele estava na pista certa! Vamos embora! Tenho
curiosidade em saber para onde vão as armas, antes de serem
reembarcadas para a costa da Trácia!
O arqueólogo francês fez uma careta de contrariedade.
Mas correu atrás da jovem, quando viu que ela se afastava da
gruta. Caminharam, quase de rastos, até o helicóptero e
embarcaram. Cinco minutos depois, estavam outra vez no ar.
— Para onde vamos? — quis saber Julien, guardando a
pistola no bolso.
— Para onde eles nos levarem — respondeu Brigitte,
empunhando um binóculo.
Não tardaram a localizar os homens com as caixas de
madeira. Eles tinham descido por uma vereda. Na vertente
nordeste do monte, e embarcavam os caixotes em três jipes,
que esperavam na planície. A distância era muito grande
para que notassem o helicóptero, sobrevoando a área em
círculos. Os jipes partiram no rumo de Sabyra, e o
helicóptero foi atrás, a grande altura, transformado num
pontinho negro e insignificante.
Pouco adiante, Brigitte aumentou a velocidade do
aparelho e sondou a estrada, através do binóculo. Outros três
jipes seguiam para Sabyra, mais à frente, carregados com
grandes caixotes. O helicóptero adiantou-se mais e chegou à
cidadezinha antes dos jipes. Desceram numa praça do
subúrbio, saltaram e encaminharam-se, a pé, para o centro.
— Você já faz alguma ideia...? — começou a dizer
Julien.
— Sim — cortou Brigitte. — Faço uma bela ideia!
Vamos para lá!
Quinze minutos depois, estavam na Plateia Pélagos,
frente ao cais. Diante deles, erguia-se o prédio da
“Acrópolis”, a Prefeitura. Havia um restaurante daquele lado
da praça; Brigitte e seu companheiro entraram e pediram
comida. Tinham escolhido uma mesa próxima da entrada;
através da porta aberta, podiam vigiar o edifício da
municipalidade. Uma sentinela, com uma espingarda no
ombro, andava de um lado para o outro, tomando conta do
portão.
Comeram e beberam, enquanto esperavam. Já era meio-
dia quando chegou o primeiro jipe. Dois gregos vestidos de
camponeses desembarcaram o caixote e entraram, com ele,
pelo portão. Um terceiro grego ficou conversando com a
sentinela.
— O senhor sabe pilotar um helicóptero? — inquiriu
Brigitte, inclinando-se sobre a mesa.
O arqueólogo francês piscou os olhos, por trás das
lunetas.
— Sim. Tenho brevet de piloto amador.
— Ótimo! Aqui nos separamos. Preciso fazer uma visita
ao Prefeito, mas não estou disposta a cair na boca do lobo. O
senhor deverá tomar o helicóptero e rumar para Pyros. Lá
chegando, apresente-se às autoridades militares e peça ajuda.
Conte tudo o que viu. Que os guerrilheiros da Trácia
recebem suas armas por intermédio do prefeito de Sabyra. E
que o próprio Chefe de Polícia pertence ao bando de
traficantes de armamentos. Traga soldados leais para Sabyra
e peça-lhes que controlem a situação. Ainda não sei se as
gendarmes do Brigadeiro também estão no complô, mas, de
qualquer maneira, eles são apenas cinco. Quando espera
trazer os reforços?
— Não sei — confessou o francês, nervoso. — Dê-me,
pelo menos, quatro horas.
— Está bem. Nesse caso, também esperarei quatro horas,
antes de visitar a Prefeitura.
Separaram-se e o arqueólogo correu para o helicóptero.
Brigitte ainda aguardou duas horas, sentada à mesa do
restaurante, e viu chegarem os outros jipes, com as últimas
caixas de armamentos; depois, ficou impaciente, ansiosa por
ação. Tinha quase a certeza de que havia armas nas caixas,
mas a verdade é que não vira nenhuma. Corria o risco de
enganar-se. E, se não houvesse, naqueles caixotes, senão
ferramentas agrícolas? Era preciso uma prova!
Depois que os carregadores saíram da “Acrópolis”, um
dos gregos ainda ficou junto do portão, conversando com a
sentinela. Afinal, também ele se afastou, na direção do
restaurante. Aproximou-se despreocupadamente e entrou,
indo se encostar ao balcão. Aí, acenou para o rapaz que
servia os fregueses do bar.
— Salve, Demókrates! Um copo de rakki!
Brigitte tirou a pistola da coxa e acercou-se do homem.
Quando sentiu a pressão da arma nas costas, o sujeito
empalideceu.
— Não fale — sussurrou a repórter, ao seu ouvido. — Se
fizer um gesto, morrerá! Beba o seu rakki, pague a despesa e
saia com naturalidade!
O homem obedeceu, mas não pôde evitar engasgar-se
com a bebida. Depois, saíram, lado a lado.
— Que é isso? — rosnou o grego. — Um assalto?
— Um assalto — confirmou a jovem, sorrindo friamente.
— Vamos para a Prefeitura! Cumprimente a sentinela e entre
comigo! Se me denunciar, leva bala!
O homem foi muito dócil. Saudou o soldado de guarda à
“Acrópolis” e entrou, tudo com a maior naturalidade.
Brigitte entrou atrás dele. Caminharam pelo jardim, na
direção da casa larga e comprida.
— E então? — fez o grego. Falava na língua popular, a
demótica.
— Continue — respondeu Brigitte, em inglês. — Leve-
me ao depósito!
— Mas...
— Ao depósito, vamos!
A pressão da arma, nas suas costas, convenceu o homem.
Deram volta ao prédio e entraram por uma porta larga, que
estava aberta. Ali ficava o depósito antes ocupado pelos
objetos de arte encontrados em Sabyra. Agora, a ampla
dependência estava cheia de caixotes com letreiros
“FERRAMENTAS AGRÍCOLAS”. Eram muitas
ferramentas para uma terra tão pequena.
Sem perder o homem de vista, Brigitte agarrou num pé-
de-cabra e levantou a tampa de uma das caixas. Pás e
enxadas! Nervosamente, remexeu nos utensílios de metal,
tirando-os para fora. E soltou um suspiro de alívio. Por
baixo, estavam as armas. Fuzis e metralhadoras tchecas, do
último modelo. E, também, revólveres e bombas de napalm.
Mas a sua curiosidade fê-la esquecer-se do homem que a
levara até ali. Aproveitando a ocasião, ele deu um salto e
correu para a saída do depósito. Brigitte, porém, foi mais
rápida. E atirou, no momento exato em que o homem
alcançava a porta. Atingido nas costas, ele cambaleou e foi
cair no jardim.
Agora, ela precisava agir com rapidez. Talvez alguém
tivesse ouvido o tiro. Largou o pé-de-cabra, prendeu a
pistolinha ao esparadrapo da coxa e apanhou um dos
revólveres e uma caixa de balas do caixote. Carregou a arma
e escondeu-a dentro da túnica; depois, subiu correndo uma
escada que ia dar num longo corredor. Não encontrou
ninguém. Orientou-se. O gabinete do Prefeito ficava à
direita. Na antecâmara, um funcionário estava sentado a uma
mesa, lendo uma revista. Ao ver Brigitte, arregalou os olhos.
— Salve! — cumprimentou ela, sorrindo. — Sou Brigitte
Montfort, do “Morning News”, e tenho uma entrevista
marcada com o Sr. Alexandros Enganademos.
O funcionário levantou-se, mas Brigitte antecipando-se,
atravessou a antecâmara e abriu a porta do gabinete. Entrou e
fechou a porta às suas costas. Com a chave.
O gordo Alexandros estava sozinho, sentado à secretária,
e pôs-se de pé, de boca aberta. Seus dois queixos tremiam.
— Que diabo...?
— Sou eu — cortou a repórter, exibindo o revólver
tcheco. — Sente-se, Excelência! Não grite, nem faça
nenhum gesto suspeito! Eu o matarei sem dó nem piedade!
O Prefeito caiu de novo na cadeira. Parecia que estava
vendo um fantasma.
— Você não embarcou no “Denizi Palas”? Voltou para
criar confusão?
— Parti e voltei — respondeu Brigitte, sentando-se e
cruzando as pernas, o revólver no colo. — Eu não podia
deixar de prendê-lo, Alexandros! Você é o chefe de um
perigoso bando de contrabandistas de armas, que fornece os
guerrilheiros da Trácia! Acabei de descobrir tudo. E, agora,
vamos conversar, enquanto esperamos a vinda das
autoridades leais ao Governo. Já mandei um emissário a
Pyros, buscar um contingente militar! Não sairemos deste
gabinete enquanto não chegar o Exército dos Ezvenos!
Para sua surpresa, o gordo sorriu.
— Você é audaciosa, garota! Essa é uma acusação muito
séria! Mas terá que prová-la!
— Posso prová-la. Uma partida de armas está, neste
momento, no depósito da Prefeitura. Era por isso que vocês
queriam o depósito vazio. Você e o brigadeiro Kanellodos
também pertencem aos falsos sacerdotes de Samos... e você
é o Grande Profeta! Posso provar que...
Não conseguiu dizer mais nada. Ela se esquecera de que
havia outra porta, por trás de uma cortina, justamente às suas
costas. E por essa porta acabara de entrar o turco Mustafá
Beysehir. E ele lhe acertara uma cacetada na cabeça! Era por
isso que Alexandros estava sorrindo...
Quando voltou a si, já eram seis horas da tarde.
Continuava no gabinete do Prefeito, estendida num sofá.
Sentados à sua frente, o gordo Alexandros o hercúleo
brigadeiro Kanellodos e o antipático Mustafá Beysehir.
— Voltou a si — preveniu o turco, brincando com o
cassetete que tinha nas mãos fortes e morenas, — Chegou a
hora de falar!
Brigitte piscou os olhos, procurando dominar a dor que
lhe verrumava a cabeça e lhe perturbava o pensamento.
Depois, as ideias ficaram mais claras c ela sorriu. Acabara de
sentir o volume da pistolinha na coxa esquerda, por baixo
dos grosseiros culotes. Devia ter passado algum tempo,
desde que ela perdera os sentidos; Sabyra já devia estar
cercada pelo Exército grego.
— Okay — murmurou, sentando-se no sofá. — Chegou a
hora de falar! Mas vocês é que serão os papagaios! Esta
localidade está sob controle do Exército! Viva a Grécia!
O que ela não sabia era que Julien Charcot tinha
embarcado no helicóptero, mas não fora para Pyros. Naquele
momento, ele se encontrava, sozinho, na gruta do Saócio, à
procura da cabeça da sua Niké.
CAPÍTULO SÉTIMO
A aventura de Monsieur Charcot
Prisioneiros da escuridão
Fuga pela chaminé
O poço dos gases

Julien Charcot tinha brevet de piloto, mas não estava


habituado a manejar um Hawkins-Eight. Por isso, não pôde
fazer tudo o que pretendia, no espaço de tempo de que
dispunha. Sua intenção era dirigir-se ao Saócio, entrar em
entendimentos com os contrabandistas da gruta e comprar-
lhes a cabeça da Vitória de Samotráda. Como não era
político, achava muito fácil resolver o problema por vias
financeiras. Depois de efetuado o negócio, pensava ele,
voltaria ao helicóptero e iria, então, para Pyros. Em toda essa
aventura não gastaria mais do que quatro horas.
Mas não conhecia bem o Hawkins. Ao subir no aparelho,
depois de deixar Brigitte sentada à mesa do restaurante,
tentou decolar na vertical, em linha reta, e não conseguiu. O
rotor inclinou-se e o helicóptero investiu contra o telhado de
uma casa da praça, quase colidindo com ele. O arqueólogo
pisou no pedal de direção e regressou ao centro da praça, a
uma altura de cinco metros. Aí, puxou a alavanca com mais
cuidado. Dessa vez, o aparelho ganhou altura e pôs-se a
sobrevoar a cidadezinha de Sabyra. Percorreu os subúrbios,
voltou ao centro e passou por cima do cais. Debalde, o piloto
tentava enviesá-lo para o sul; ele tendia, sempre, a voltar
para o norte! E dava perigosos sacolejos, que ameaçavam a
sua estabilidade. Afinal, Julien equilibrou o rotor, mudou o
compasso da hélice e pisou, de leve, no pedal da esquerda. O
helicóptero adernou ligeiramente, mas seguiu no rumo do
Monte Saócio.
A viagem podia ser feita em meia hora; todavia, devido à
tendência que o Hawkins tinha de se desviar de sua rota, o
piloto só chegou à colina por volta das quatro horas da tarde.
A descida numa plataforma próxima do poço de fumaça foi
outro drama. Por pouco, o helicóptero batia com a hélice
num talude e se despenhava no abismo. Mas, animado pela
esperança de recuperar a cabeça da Niké, o francês parecia
insensível ao perigo. Conseguiu equilibrar o aparelho na
beira da escarpa, freou-o, desligou o motor e saltou para
terra. Só então suas pernas começaram a tremer. Passado um
minuto, refez-se e recomeçou a marcha, aproximando-se da
boca da caverna. Havia um homem vestido de branco e
armado com uma espingarda, encostado à rocha.
— Amigo! — gritou Julien Charcot, em grego. — Venho
fazer negócios!
O guarda levou a espingarda ao ombro e, sem
comentários, puxou o gatilho. A bala arrancou o chapéu-
coco do francês. Julien cambaleou e escondeu-se atrás de
uma pedra. Outro tiro soou, arrancando fragmentos da rocha,
junto de seu rosto. O arqueólogo piscou nervosamente os
olhos e retrocedeu para lugar mais seguro. Subiu para a
plataforma superior e arriscou um olho. Dois falsos
sacerdotes de Samos estavam, agora, discutindo na entrada
da caverna. Em seguida, apontaram para a direita e
encaminharam-se para o local em que tinha caído o chapéu-
coco. Julien esperou que eles se distanciassem e desceu do
seu esconderijo. Tirou a Mauser do bolso e adiantou-se, pé
ante pé, até a boca da caverna. Ninguém. Silêncio absoluto.
Depois de olhar mais uma vez ao redor, ele mergulhou
decisivamente no seio da terra. Um corredor cinzento levou-
o a outros dois, ainda mais escuros. Elegeu o da direita. Ia
dar no amplo recinto subterrâneo, iluminado por um lampião
de querosene, onde estava a mesa de pedra. Mais nada. Ou
melhor: em cima da mesa, encontrou duas túnicas longas e
brancas, e duas máscaras de papelão, representando a
Tragédia. Julien sorriu para si mesmo e vestiu uma das
túnicas por cima de seu elegante terno de turista parisiense,
afivelando uma das máscaras no rosto. Depois, guardou a
Mauser e pôs-se a pesquisar o interior da caverna. Não havia
mais nada de interesse naquele recinto; O arqueólogo olhou
ao redor, para as paredes cinzentas, e estudou a sua estrutura.
Tinha prática desse tipo de estudo geológico. Não tardou a
descobrir um trecho da parede onde a rocha parecia de outra
idade. Apalpou a pedra e sentiu que era mais fria do que o
resto. Então, certo de que encontrara uma porta secreta, pôs-
se à procura do mecanismo que deveria acioná-la. Não
encontrou nenhuma alavanca, nenhuma chave, nada.
Ainda estava coçando a cabeça, perplexo, no meio do
recinto, quando os dois gregos de branco voltaram. O francês
não teve tempo de se esconder e enfrentou-os, piscando os
olhos por trás dos buracos da máscara.
— Antonikos? — perguntou um dos contrabandistas.
— Sim — respondeu o arqueólogo, engrossando a voz.
— Cheguei!
— E vai levar o rádio?
— Vou.
— Pode entrar.
Julien Charcot encaminhou-se para a parede mais nova e
parou. Um dos homens de branco riu-se e adiantou-se,
calcando uma das arestas da pedra. Ouviu-se um ranger de
metais e um pedaço da parede se moveu, pondo à mostra
uma pequena porta, que dava para a escuridão. Depois de
hesitar um pouco, o francês meteu-se pela abertura. E a porta
se fechou, repentinamente, às suas costas.
Através de uma fresta da parede, ouviu as risadas dos
dois gregos. Correu para a porta, mas não a encontrou. Seus
dedos nervosos tatearam apenas a parede nua. E não
adiantava nada apertar aquelas pedras.
— Quem está aí? — perguntou uma voz, na escuridão.
O pequeno recinto não tinha luz. E o ar era viciado,
cheirando a enxofre. O francês voltou-se, sob ressaltado,
tentando ver na penumbra. Sua voz se elevou, esganiçada:
— Sou Julien Charcot, professor de arqueologia do
Museu do Louvre! Como é que se sai daqui?
— Monsieur Charcot! Que satisfação!
O arqueólogo reconheceu aquela voz juvenil. Pertencia a
Manolakas, o guia de Duff Chandler.
— É você, Manolakas?
— Sim, monsieur le professeur. Estou com os pés e as
mãos amarrados! Eles me prenderam aqui há três dias, mas
deram-me de comer. O Grande Profeta disse que eu seria
libertado logo que o senhor e miss Montfort fossem embora.
— Diable! — praguejou Julien. — Não enxergo nada!
Este buraco não tem saída?
— Não, monsieur. Se não tem medo de uma explosão,
acenda uma luz.
O arqueólogo riscou um fósforo e não aconteceu nenhum
desastre. A luz amarela revelou a figura de Manolakas,
deitado num monte de palha, os braços torcidos para trás das
costas. E revelou, também, outra coisa que fez Julien
Charcot soltar um grito de júbilo:
— La tête! La tête de Niké!
Sim, ali estava ela, no chão úmido, ao lado de um saco de
estopa! Esquecido de tudo, o francês precipitou-se sobre a
enorme esfera de pedra e pôs-se a beijá-la com fervor. O
fósforo apagou-se, mas ele não pensou em acender outro.
Parecia que tinha enlouquecido. Beijava e afagava a cabeça
de pedra, murmurando palavras carinhosas, prometendo que
nunca mais a deixaria; esquecido da vida, pouco se
importava com a morte. Manolakas gemeu, outra vez
mergulhado na escuridão:
— Por favor, monsieur, corte-me estas cordas! Temos
que sair daqui!
O arqueólogo voltou a si e atendeu ao pedido, tateando na
penumbra. Logo, o jovem guia ficou livre e pôs-se de pé.
— Fui muito idiota, monsieur le professeur! Ajudei esses
inimigos da Grécia e eles me prenderam, como se eu fosse
um bicho! E miss Montfort, ao contrário, deu-me cinco
dólares! Agora, quero ajudar miss Montfort!
Julien Charcot não o ouvia, outra vez agarrado à cabeça
de Niké. O rapazinho deu uma busca no cubículo, sem
encontrar nenhuma saída. O ar entrava por uma estreita
abertura do teto. Então, Manolakas agarrou num pedaço de
pau, que encontrou num canto da cela, sentou-se no monte
de palha e resolveu esperar. Tinha que acontecer alguma
coisa.
***
No gabinete do prefeito de Sabyra, Brigitte enfrentava os
seus captores. Estava confiante na ação decisiva dos
militares de Pyros. Eles já deviam ter chegado.
— Ela se enganou — disse o brigadeiro Kanellodos, com
voz fria. — Pensa que monsieur Charcot foi para Pyros, no
helicóptero, mas, na verdade, ele foi para o Saócio. Eu
próprio vi o helicóptero dar uma porção de voltas sobre a
cidade e, depois, encaminhar-se para o sul.
A filha de Giselle estremeceu. Aquilo podia ser verdade!
Julien Charcot estava muito interessado, em encontrar a
cabeça da Vitória!
— Encantadora — disse o turco Mustafá, sacudindo o
cassetete —, você está disposta a falar por bem? Previno-a
de que sei usar este porrete! Se você não nos confessar suas
verdadeiras intenções, ao voltar a Sabyra...
— Sou uma repórter — gemeu Brigitte. — Apenas
encontrei um “furo” de reportagem!
— Não é verdade —- disse o gordo Alexandros, sorrindo,
— Você sabe de muito! E deve ser colega de Duff Chandler!
Sabemos que Mr. Chandler pertencia à CIA norte-americana
e estava em Sabyra para descobrir a pista das armas. Mesmo
que você não seja uma espiã da CIA, não pode continuar
vivendo, depois de saber o que sabe. É lamentável, miss
Montfort, mas vai morrer!
— Vocês não se arriscariam a matar uma jornalista
americana! Estou aqui exercendo honestamente as minhas
funções e...
O cassetete do turco atingiu-a numa fonte, deixando-a
tonta.
— Confesse que é uma agente da CIA! — rosnou
Mustafá, ameaçadoramente. — Já sabemos que é, mas
queremos a sua confissão! Assim, o brigadeiro Kanellodos
não terá mais pesos na consciência... ele é um homem muito
sensível...
— Talvez miss Montfort não seja espiã — obtemperou o
Chefe de Polícia. — Talvez seja uma simples repórter. Mas,
agora, vejo que não podemos deixá-la em liberdade. Sua
reportagem nunca deverá ser publicada!
— Miss Montfort fez-me uma acusação muito séria —
disse o Prefeito. — Acusou-me de ser o chefe das traficantes
de armas. Isso quer dizer que viu o conteúdo dos caixotes.
Não adianta mais nada esoonder-lhe a verdade. Também não
adianta mais nada mandá-la embora. Ela tem que morrer!
Brigitte apalpava a cabeça, fazendo caretas de dor.
— Confessa, então? — perguntou, num fio de voz.
— Você sabe demais, menina! — exalou o gordo, indo se
sentar à secretária. — Sua presença faz perigar o meu posto!
Sugiro que meus camaradas a levem para o poço da fumaça.
Creio que um novo “acidente”, com uma repórter abelhuda,
não causará suspeitas... Sim, você vai morrer! E o Grande
Profeta assistirá à sua agonia!
Fez um sinal aos seus dois cúmplices e desinteressou-se
do caso. O turco e o Chefe de Polícia agarraram Brigitte e
empurraram-na para a porta, coberta pelo reposteiro. Alguns
minutos depois, estavam seguindo num jipe da polícia para o
Saócio. No rumo da fonte de gás letal.
***
Eram, então, nove horas da noite. Noite escura e sem
luar. O jipe parou no sopé do monte e Brigitte foi arrastada
para fora. O turco e o Brigadeiro seguravam-na cada um por
um braço e sacudiam-na como se ela fosse uma pluma. A dor
de cabeça tinha passado, mas ainda se sentia muito fraca.
Contudo, pensava na sua pistolinha grudada à coxa com
esparadrapo; na primeira oportunidade, saberia se servir
dela!
Subiram a colina pela vertente nordeste e, meia hora
depois, atingiram a entrada da caverna. Havia dois falsos
sacerdotes de Samos de sentinelas. Os quatro homens
trocaram saudações em algumas palavras, incompreensíveis
para Brigitte. Mas o Brigadeiro sacudiu-a brutalmente pelo
braço e rosnou:
— Seu colega Julien Charcot é nosso prisioneiro. Tentou
reaver a cabeça de Niké e caiu numa cilada. Você irá fazer
companhia a ele, até que chegue o Grande Profeta!
A repórter não disse nada. Continuava à espera da sua
oportunidade. Entraram na gruta, percorreram os corredores
cinzentos e desembocaram no recinto maior. Mustafá calcou
uma das pedras da parede e fez a porta secreta se abrir. Antes
que Brigitte voltasse a si da surpresa, foi empurrada para o
estreito buraco e engolida pelas trevas. A porta voltou a
fechar-se.
— É você, Brigitte? — soou a voz lamentosa de Julien
Charcot. — Desconfio que cometi uma imprudência! Mas
encontrei a cabeça da minha Niké!
Não se enxergava nada, na escuridão.
— Onde está a cabeça, monsieur?
— Aqui, nos meus braços! É pesada demais! Mas
Manolakas arranjou uma corda e nós a amarramos e fizemos
uma alça. Assim, poderemos transportá-la.
— Manolakas está aqui? — admirou-se Brigitte.
— Sim — respondeu a voz aguda do guia. — Também
me prenderam, miss! Mas pode contar comigo! Eles são uns
bandidos! Falam na independência da Grécia, mas querem
entregá-la a outra potência! Sendo assim, prefiro o nosso
Governo!
Brigitte ficou em silêncio, enquanto baixava o culote e
retirava a pistolinha da coxa. A voz esganiçada de Julien
Charcot voltou a soar:
— Que é que eles pretendem fazer conosco? Será que vão
nos asfixiar com gás, aqui dentro? Estou sentindo um cheiro
esquisito! Deve ser este o cheiro do inferno!
— Talvez — respondeu a repórter. — Talvez nos
asfixiem. Mas só depois que chegar o Grande Profeta. E,
então, eu lhe darei um tiro na cara!
Manolakas moveu-se, na escuridão,
— Está armada, miss?
— Estou! E pronta para enfrentar esses sádicos!
Esperemos, apenas, que eles abram a porta!
Esperaram uma hora, mergulhados num negrume intenso,
sem poderem ver coisa alguma. Brigitte impacientou-se e
pôs-se a percorrer o cubículo, esquadrinhando o alto das
paredes. De repente, soltou um grito de alegria. Acabara de
tatear uma caixa metálica, numa prateleira natural da gruta.
— Que foi? — perguntou a voz de Julien Charcot.
Ela não respondeu. A caixa era um emissor de rádio, de
cem quilowatts! Em silêncio, torceu o botão e esperou. Uma
luzinha se acendeu, no painel do aparelho, iluminando o
covil. Manolakas e o arqueólogo francês aproximaram-se,
também soltando gritos de júbilo. Brigitte ergueu a antena
até o teto, girou o dial (colocando a agulha na faixa dos
quinhentos quilociclos) e empunhou o microfone. Aquela era
a faixa internacional de socorro. Colocando a boca ao
microfone, ela pôs-se a falar com voz clara e pausada:
— Alô, alô, Pyros! Aqui fala Brigitte Montfort, no Monte
Saócio! Atenção, autoridades militares de Pyros! Acabei de
descobrir um reduto de guerrilheiros, em Sabyra! Preciso de
ajuda! Mandem soldados para Sabyra e cerquem a
localidade! O prefeito Alexandros Enganademos e o chefe de
polícia Kanallodos fazem parte do grupo de extremistas!
Alô, Pyros! Mandem soldados para Sabyra! Vou repetir!
Aqui fala Brigitte Montfort, no Monte Saócio! Atenção,
autoridades militares de Pyros! Acabei de descobrir...
Não teve tempo para mais nada. Ouviu-se um ranger de
ferragens e a porta secreta começou a abrir-se. Julien
Charcot precipitou-se para a cabeça da Vitória, agora visível
em toda a sua beleza, e abraçou-a desesperadamente.
Manolakas recuou, assustado. E Brigitte, depois de ter
desligado o rádio, empunhou a pistolinha.
Apenas um homem apareceu na abertura da porta. Um
grego alto e forte, o rosto coberto por uma máscara de
papelão pintado; tinha uma submetralhadora tcheca nas
mãos.
— Venham — disse ele, com voz de falsete. — O Grande
Profeta acaba de chegar! E vocês vão morrer, os três ao
mesmo tempo!
Um tiro seco, que reboou nas paredes de pedra. E o falso
sacerdote de Samos caiu de lado, tentando erguer a
submetralhadora. Outro tiro e ele acabou de cair, de costas,
obstruindo a passagem com seu corpo hercúleo. Tinha sido
atingido no coração por uma balinha de aço. Manolakas
correu para ele e apanhou a submetralhadora, brandindo-a no
ar.
— Vamos! Eu abrirei caminho a tiros!
— Espere! — implorou Julien Charcot. — Ajude-me a
levar a cabeça de Niké! Não sairei daqui sem a cabeça de
Niké!
O guia fez um gesto de contrariedade, mas correu a
ajudá-lo. Os dois agarraram nas cordas que envolviam a
escultura e arrastaram-na para a saída. Enquanto isso,
Brigitte tirava a máscara do cadáver do brigadeiro
Kanellodos, pondo à mostra o seu rosto contorcido pela
morte. Sem comentários, eles afastaram para um lado o
corpo do Chefe de Polida e passaram para o recinto principal
da caverna. Não havia mais ninguém ali.
— Estão à nossa espera na saída da gruta — sussurrou
Brigitte. — Querem nos levar para o poço dos gases! Mas eu
conheço uma saída! Vamos! Só não poderemos levar a
cabeça de Niké!
— Sem a cabeça de Niké — disse o arqueólogo francês,
com ar teimoso — não irei embora daqui! Jamais!
— Mas não é passível içar a escultura! Ela deve pesar
quase cem quilos!
— Sem a cabeça de Niké — repetiu o francês — não irei
embora! Sapristi!
Brigitte e Manolakas se entreolharam, irritados, à luz do
lampião de querosene. O guia nativo fez outro gesto de
contrariedade e foi apanhar um rolo de cordas, que acabara
de ver a um canto do recinto. Amarrou a ponta da corda nas
outras que envolviam a cabeça de pedra e ficou com o rolo
na mão. Brigitte indicou a estreita chaminé, no alto da gruta,
guardou a pistolinha no cinto e pulou para o buraco,
marinhando por ele. Julien e Manolakas pularam atrás dela,
agarrados à corda que ia se desenrolando. Subiram pelo
interior da “chaminé”, apoiados nos degraus de pedra, deram
uma volta e saíram ao ar livre, numa plataforma superior
àquela em que se abria a caverna. Enquanto Brigitte vigiava
as cercanias, o francês e o guia puxaram a corda com
esforço. Era um trabalho de Hércules! Mas, afinal, a cabeça
de pedra apareceu, girando lentamente, na abertura da
chaminé. Tiraram-na e puseram-na no chão. Julien Charcot
voltou a abraçar-se a ela, beijando-a longamente e emitindo
pequenos gritos de gozo.
Nisso, soou um tiro à direita e o arqueólogo estremeceu,
levando a mão ao ombro. Manolakas empunhou a
submetralhadora, que trouxera pendurada ao pescoço e
apontou para o lado de onde partira à detonação. Um falso
sacerdote de Samos saiu de trás de uma pedra, com um fuzil
no ombro. Antes que atirasse outra vez, Manolakas apertou o
gatilho.
Uma rajada de balas cortou o inimigo, fazendo-o soltar
um uivo e despenhar-se no abismo.
— Depressa! — gritou Brigitte. — Eles são muitos!
Vamos descer daqui!
Julien Charcot tinha o braço esquerdo paralisado, pois
fora atingido no ombro, mas não demonstrou sentir a dor.
Com a mão direita, agarrou nas cordas que envolviam a
cabeça de Niké e pôs-se a puxá-la pela escarpa. A cabeça
rolou como uma bola e ele tentou, inutilmente, controlar a
sua queda. Súbito, a esfera de pedra exibiu o seu rosto
maravilhoso (realmente parecido com o de Brigitte
Montfort), deu um salto e precipitou-se sobre a prateleira
inferior do monte. Aí, se encravou numa fenda da rocha.
— Cuidado! — avisou Brigitte.
Abaixo deles, abria-se o poço da fumaça, larga fenda de
matérias ardentes, perpetuamente em ebulição. E agora, à
direita, surgiam muitas figuras brancas, mascaradas,
empunhando fuzis e revólveres tchecos. Reboaram outros
tiros e as balas riscaram as paredes da rocha.
Manolakas plantou-se na beira do abismo e fez funcionar
a submetralhadora. Alguns dos falsos sacerdotes caíram, mas
os restantes esconderam-se atrás das pedras. Brigitte viu um
dos inimigos rastejando, por cima deles, e atirou duas vezes,
com a pistolinha, derrubando o homem.
— Para baixo! — ordenou. — Não podemos enfrentá-los!
Os três saltaram para a plataforma inferior, colados à
parede de pedra, e equilibraram-se, milagrosamente, na beira
do precipício. Novos tiros soaram, acima de suas cabeças. Já
o arqueólogo francês tinha pulado para a cabeça de Niké e
voltara a abraçá-la, beijando-a e puxando-a para fora. Uma
fumaça agridoce os envolveu, quando o vento mudou de
direção. Parecia o cheiro dos infernos! Brigitte sentiu uma
tonteira e agarrou-se desesperadamente à rocha. Por entre as
brumas, viu Julien Charcot erguer penosamente a cabeça de
Niké nos braços, como uma oferenda aos deuses do Saócio.
— Cuidado! — gritou a repórter. — Estamos sobre o
poço dos gases!
Sua advertência chegou tarde. O arqueólogo francês
olhou para ela com expressão de louco, os olhos dilatados
pelo espanto, cambaleou na beira do estreito parapeito e
caiu, de pernas para o ar, na direção da fenda enfumaçada
que se abria a seus pés. No mesmo momento, Manolakas
também cambaleava atingido em cheio por uma rajada de
metralhadora e precipitava-se no vácuo.
Como num pesadelo, Brigitte viu o corpo de Julien
Charcot bater nas pedras, ainda abraçado à cabeça de Niké e
desaparecer nas entranhas da terra ardente, como se fosse
sugado pelo poço dos gases! E um cheiro horrível, de carne
assada, tornou-se mais forte do que o cheiro dos infernos.

CAPÍTULO OITO
Uma nova Niké
O Grande Profeta
A batalha da “Acrópolis”
Conclusão

O momento não era próprio para considerações


filosóficas. Nem bem a cabeça de Niké e o corpo de Julien
Charcot tinham desaparecido na fenda fumacenta, Brigitte já
estava apanhando a submetralhadora que Manolakas deixara
cair, ao morrer também. Os homens de branco, todos com
máscaras na cara, cercavam ameaçadoramente a plataforma
em que nossa heroína se encontrava. E o tiroteio continuou!
Rajadas de metralhadora mordiam a pedra, arrancando
faíscas! E, de repente, a arma de Brigitte engasgou, por falta
de munição! Sua pistolinha estava também vazia! Não tinha
mais balas; sua reação chegara ao fim! Não podia descer, por
causa das emanações de enxofre, nem podia subir, para não
se expor aos tiros de seus perseguidores!
Estava sozinha, cercada por todos os lados! Se não
lançasse mão de um expediente desesperado, sua única saída
seria a morte! Acocorada atrás de uma pedra, ela via os
inimigos avançarem, cautelosamente, paulatinamente,
tornando cada vez mais remotas as suas possibilidades de
salvação. Aqueles homens rudes, depois de terem sofrido
tantas perdas, não aceitariam nenhuma espécie de armistício;
estavam ali para matar!
Então Brigitte guardou sua pistolinha inútil, levantou-se e
deu três passos. Ao chegar ao ponto mais alto do rochedo,
ergueu as mãos vazias e defrontou seus inimigos. Iluminada
pelo claro luar, que lhe banhava de luz quase mágica o rosto
admirável, ficou imóvel, como uma aparição fantástica,
criada pela noite pelo mistério milenar da legendária
montanha.
Houve um grande silêncio dentro da noite. Nenhum dos
guerrilheiros teve coragem de atirar. Todos olhavam,
imobilizados pelo espanto, aquela figura inerme e nimbada
de luz, que parecia oferecer-se voluntariamente ao sacrifício.
O assombro dos mascarados prolongou-se.
— Niké! — exclamou subitamente um deles. — Ela tem
a cabeça de Niké!
Nisso, um segundo mascarado, mais gordo do que os
outros, adiantou-se sobre a prateleira superior àquela em que
a bela repórter se encontrava e apontou para ela um dedo
grosso, saído das largas mangas de sua camisola:
— Prendam-na! Ela está desarmada!
Brigitte não precisou ouvir os gritos dos outros
contrabandistas para perceber que aquele era o Grande
Profeta. Esperou que dois guerrilheiros mais afoitos se
aproximassem e, quando eles a seguraram pelos braços
abertos, rodopiou subitamente, usando-os como alavanca. E,
enquanto os homens perdiam o equilíbrio e tombavam no
abismo, ela subia como um pássaro para a plataforma
superior. A cena de acrobacia foi tão surpreendente, que os
outros guerrilheiros ficaram de boca aberta, como crianças
diante de uma função circense. O Grande Profeta, apanhado
de surpresa, também não teve tempo de usar a pistola que
empunhava na mão; Brigitte caiu em cima dele, com a
violência de um ciclone, derrubando-o contra a parede.
Apavorado, o gordo virou-se e tentou correr para lugar
seguro. Tentou, apenas. A esbelta atleta montou nas suas
castas e enlaçou-o pelo pescoço, numa “gravata” de ferro.
Depois, mantendo-o imobilizado e fazendo dele o seu
escudo, gritou para os outros homens atônitos: '
— Baixem as armas! Se atirarem; o chefe de vocês irá ser
profeta nas alturas!
Ela tornara a sacar a pistolinha, que agora encostava ao
ouvido do mascarado. O gordo não sabia que a arma estava
descarregada e foi o primeiro a recomendar a seus asseclas
para que não atirassem. Entre os braços de Brigitte, seu
grande corpo balofo tremia visivelmente.
— Muito bem — disse a repórter, arrancando-lhe a
máscara, — Vamos apresentá-lo aos seus amigos! Aposto
que muitos deles não sabem que são comandados por um
político tão importante!
O rosto branco e gordo de Alexandros Enganademos
estava quase irreconhecível, contorcido num esgar de ódio
mortal, e seus dois queixos tremelicavam.
— Maldita! — rugiu o Prefeito de Sabyra.
Brigitte tirou-lhe a pistola e empurrou-o para frente,
— Vamos! Faça o que eu mandar! Vamos descer a colina
e voltar para Sabyra! Você será meu convidado, Alexandros!
Nenhum dos outros guerrilheiros mexeu um dedo,
temerosos pela sorte do chefe. Sob os empurrões de Brigitte,
o gordo prefeito começou a descer uma vereda, passando por
entre homens de branco, imóveis como estátuas.
Continuaram a descer, vagarosamente, e os outros falsos
sacerdotes foram atrás deles, num silêncio ameaçador.
A descida foi demorada, mas, afinal, chegaram ao sopé
da colina. Havia, ali, três jipes à espera. Brigitte obrigou o
seu prisioneiro a entrar num deles e sentou-se ao volante,
mantendo a pistola na mão esquerda. O gordo Alexandros
suava abundantemente, mas o medo não o deixava reagir.
Não era um herói.
O jipe deu um salto e chispou pela estrada de Sabyra, a
cem quilômetros por hora. Atrás dele, partiram os outros
dois carros, entupidos de guerrilheiros armados. Os
perseguidores ainda não queriam usar as suas
submetralhadoras, com receio de atingir o chefe; limitavam-
se a esperar uma oportunidade de abater a repórter e libertar
o Grande Profeta.
E, desta forma, a descida do Saócio procedeu-se sem
incidentes, embora a alta velocidade.
Em dado momento, Alexandros Enganademos tirou sua
túnica branca de Grande Profeta, ficando novamente vestido
de Prefeito de Sabyra.
Depois de uma vertiginosa corrida, pelo caminho
enluarado, entraram em Sabyra e cruzaram as ruas tortuosas
da pequena comunidade. Os outros carros tinham ficado
muito para trás. A filha de Giselle dirigiu o jipe para a
Plateia Pélagos e freou em frente à Prefeitura.
— Que vai fazer? — perguntou o gordo, alarmado.
— Mantenha-se calmo, Alexandros. Cumprimento a
sentinela e entre com naturalidade. Afinal, é aqui que você
mora, não é?
Ele não respondeu. Saltaram e dirigiram-se para o portão
da “Acrópolis”. Ao reconhecer o Prefeito, á sentinela
apresentou armas. Depois, viu a pistola na mão de Brigitte e
arregalou os olhos.
— Que se passa, Excelência?
— Estou sendo sequestrado — rugiu o gordo, tentando
esconder-se atrás do soldado.
Brigitte manteve-o firme, segurando-o por um braço. E
revelou em rápidas palavras, ao jovem militar, toda a história
do contrabando de armas e dos faltos sacerdotes de Samos.
Tinha que arriscar. Se os gendarmes do brigadeiro
Kanellodos também fossem conspiradores, sua aventura
acabaria ali.
Mas havia uma probabilidade de que os toldados e os
funcionários da Prefeitura não soubessem das atividades
criminosas de Enganademos. E, realmente, não sabiam. Ao
inteirar-se dos fatos, a sentinela arregalou ainda mais os
olhos.
— Um subversivo, hem? Nós já desconfiávamos do
Brigadeiro, mas não podíamos supor que o Prefeito também
fosse um traidor! Então, aqueles caixotes estão cheios de
armas, hem? Sabyra era o centro da distribuição da muamba
aos terroristas da Tricia e da Macedônia!
— Isso mesmo — disse Brigitte. — E, agora, o resto do
bando vem aí, em dois jipes da Prefeitura! Acho melhor você
pedir reforços, para evitar a invasão do prédio!
— Isso é muito grave — gemeu o soldado, engatilhando
o fuzil. — Vou me comunicar imediatamente com o sargento
Karapoulos, na Delegacia!
E, enquanto Brigitte empurrava o gordo indivíduo para a
entrada principal da “Acrópolis”, ele empunhou um “handle-
talkie” e pôs-se a falar nervosamente. Cinco minutos depois,
o prédio estava cercado por toda a milícia de Sabyra, fiel ao
Governo central: quatro gendarmes e um sargento, armados
com fuzis do Século XIX.
Entretanto, Brigitte e Alexandros entravam na
“Acrópolis” e dirigiam-se para o gabinete do Prefeito. Todos
os funcionários da municipalidade tinham ido embora; não
havia mais ninguém no prédio. Sentaram-se em macias
poltronas, no gabinete atapetado, e a repórter estendeu um
papel diante dos olhos empapuçados do prisioneiro.
— Vamos tomar a coisa oficial, Alexandros. Não quero
matá-lo, nem feri-lo gravemente. Redija uma confissão plena
de seus crimes e talvez as autoridades sejam mais
indulgentes para com você. Se você se recusar a fazer isso,
usarei métodos mais drásticos! Certo?
— Certo — murmurou o gordo, limpando o suor da testa.
— Eu assinarei tudo o que você quiser, se me deixar em
liberdade! O “Aman” ainda está no cais. Foi o barco que
trouxe a última remessa de armas. Se você permitir que eu
fuja para a Turquia...
— Okay! Escreva! Não temos tempo a perder!
Durante quinze minutos, ele escreveu, nervosamente,
narrando toda a história do tráfico de armas, do qual era o
principal responsável e o que tirava maiores lucros, enquanto
Brigitte vigiava o jardim através da janela do gabinete.
Quando Alexandros acabou de assinar a confissão, ouviram-
se os primeiros tiros, lá fora. O jardim foi invadido por três
gendarmes, que recuavam, aos tropeções, e por nove ou dez
homens de branco, disparando rajadas de metralhadoras.
Os soldados da guarda não podiam conter os assaltantes.
Era uma batalha desigual. Breve, os três gendarmes se
rendiam e os falsos sacerdotes de Samos entravam na
“Acrópolis”, fazendo tilintar suas armas.
No gabinete do Prefeito, Brigitte armou a pistola tcheca,
encostou-se à janela e preparou-se para resistir. O primeiro
homem que abriu a porta foi o turco Mustafá Beysehir.
Havia tirado a camisola branca e a máscara, e exibia o rosto
moreno, fendido por um sorriso de triunfo.
— Aqui estamos, Excelência!
Brigitte atirou três vezes, em rápida sucessão. Estava tão
indignada com a morte de Duff Chandler e tão ansiosa por
vingar o seu colega da CIA, que ainda achava poucas as três
balas de aço. Atingido no peito, o turco largou a
submetralhadora, rodopiou e caiu de borco, numa poça de
sangue. Pálido e transtornando, Alexandros saltou da
poltrona, sacudindo o papel da confissão como se fosse uma
bandeira branca.
— Não atire! Eu confessei! Eu confessei!
Outros quatro falsos sacerdotes entraram no gabinete,
encarando Brigitte com expressão de ódio. Dois deles eram
Simon e Mercourios. Apesar de reconhecê-los, a repórter
baixou a pistola e sorriu, aliviada. Os quatro bandidos
tinham as mãos no ar e eram seguidos por meia dúzia de
soldados do Exército grego. A tropa leal ao Governo
recebera a mensagem radiofônica, em Pyros, e acabara de
entrar em Sabyra, controlando a situação.
— Que pena! — fez Brigitte, apanhando a confissão
assinada das mãos trêmulas do Grande Profeta. — Lamento
muito, Alexandros. Afinal, você não vai fugir para a
Turquia...
***
Todos os traficantes de armas foram presos, durante as
diligências das autoridades militares que se seguiram à
tomada da “Acrópolis” e o tenente Skalpelos, comandante do
pelotão de socorro, oficiou ao Ministério da Guerra,
ressaltando a participação da repórter americana Brigitte
Montfort no esclarecimento do caso. Infelizmente,
Manolakas e o professor Julien Charcot tinham morrido no
tiroteio do Saócio e nada pôde ser feito por eles; contudo,
Brigitte tinha a convicção de que o guia nativo morrera feliz
com seu próprio heroísmo, e que o arqueólogo francês dera,
de bom grado, a própria vida para entrar na Eternidade com a
cabeça de Niké nos braços. Aliás, o cadáver do cientista foi
encontrado, na fenda do monte, completamente carbonizado.
Mas, até agora, a cabeça de pedra não voltou a aparecer. Há
sempre um fundo de verdade nas lendas da Velha Grécia,
embora nem sempre as coisas corram como querem os
homens. Dizem que quem possua a cabeça de Niké terá
muita sorte; todavia, isso não aconteceu com o Prefeito de
Sabyra. Justiça divina, talvez. A traição nunca será bafejada
pela sorte e sua Vitória será sempre fugaz...
***
Três dias depois, já de volta à sua Manhattan
supercivilizada, Brigitte, na redação do “Morning News”,
ouvia do seu chefe Miky Grogan as recriminações de
sempre:
— Quis lhe dar umas férias tranquilas e você quase pôs
fogo na Grécia, minha querida amiga! Parece que as
complicações andam atrás de você como súditas fiéis!
Brigitte fez uma voz de gata manhosa e ronronou:
— Será que você não gostou da reportagem, Miky?! Não
admirou as fotografias das obras de arte que acabam de
embarcar em Atenas e não tardam a chegar a Nova Iorque?
Dê-se por muito feliz por ter escapado aos sacerdotes de
Samos, impressionados pela minha parecença com Niké!
Miky Grogan desfechou um tremendo murro na mesa e
gritou “Aleluia”, bem alto, para que toda a redação
escutasse. E convidou sua repórter predileta para um jantar
de duzentos dólares, no Colony Club, regado a champanha.
O jantar seria maravilhoso se lá não encontrassem um
homenzinho de expressão sardônica, que se fez assíduo junto
a bela repórter. Mas como não se tratava de Frank Minello, o
cronista esportivo do “Morning News” e assanhadíssimo
perseguidor de Brigitte, o irritável Miky não ficou com
ciúmes. Já conhecia o inspetor Pitzer e sábia que eles
falariam apenas de negócios...

Capa da edição original publicada provavelmente em 1965

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