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RETRATOS LITERÁRIOS: O DISCURSO CIENTÍFICO NA

OBRA DE JULES VERNE

Edmar Guirra dos Santos

Dissertação de Mestrado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em Letras
Neolatinas da Universidade Federal do Rio de
Janeiro como quesito para a obtenção do título
de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos
Literários Neolatinos – Opção: Literaturas de
Língua Francesa)
Orientador: Professor Doutor Pedro Paulo
Garcia Ferreira Catharina

RIO DE JANEIRO
OUTUBRO DE 2010
RETRATOS LITERÁRIOS: O DISCURSO CIENTÍFICO NA OBRA DE
JULES VERNE
Edmar Guirra dos Santos
Orientador: Professor Doutor Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras


Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos
requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas
(Estudos Literários Neolatinos – Opção: Literaturas de Língua Francesa)

Banca examinadora:

________________________________________________________________
Presidente, Professor Doutor Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina - UFRJ

________________________________________________________________
Professora Doutora Celina Maria Moreira de Mello - UFRJ

________________________________________________________________
Professora Doutora Rosa Maria de Carvalho Gens – UFRJ

________________________________________________________________
Professora Doutora Maria Mercedes Riveiro Quintans Sebold, Suplente - UFRJ

_______________________________________________________________
Professora Doutora Lúcia Teixeira de Siqueira e Oliveira, Suplente – UFF

Rio de Janeiro
Outubro de 2010
À Lúcia, Gil, Taís e Milca
AGRADECIMENTOS
Ao final de mais de quatro anos de trabalho, mesmo que seja difícil fazer uma lista

exaustiva de todas as pessoas que me ajudaram diretamente ou indiretamente nesta pesquisa,

gostaria de expressar os meus mais sinceros e cordiais agradecimentos ao Professor Pedro

Paulo Garcia Ferreira Catharina, não só pela orientação dessa dissertação, mas pelo incentivo,

preocupação, paciência e pela confiança em querer me acompanhar nessa etapa dos estudos

acadêmicos que, espero, seja seguido de novos estudos sob sua orientação.

Que seja igualmente agradecido à Professora Celina Maria Moreira de Mello por despertar

em mim o gosto pela literatura francesa, pelos ensinamentos e pelas indicações mais do que

precisas e enriquecedoras. Agradeço também as professoras Rosa Maria de Carvalho Gens,

Maria Mercedes Riveiro Quintans Sebold e Lúcia Teixeira de Siqueira e Oliveira por

aceitarem muito gentilmente fazer parte da banca examinadora desta dissertação.

Esse trabalho universitário pôde ser realizado graças a diversas ajudas, pontuais ou regulares,

que gostaria de destacar. Primeiramente, a ajuda financeira do CNPq que me permitiu

dedicação à pesquisa desde a época da iniciação científica.

A ajuda de Irineu Corrêa pelo tempo despendido nas pesquisas a materiais das

bibliotecas nacional da França e do Rio de Janeiro. Obrigado pela preciosa ajuda! Agradeço

ao Professor Dominique Maingueneau que aceitou me receber na Universidade Paris XII e

discutir meu trabalho. Os resultados desses encontros, que ultrapassaram o restrito quadro da

leitura da sua obra, me servirão, inclusive, em trabalhos futuros. Meus agradecimentos

também à Adriana e Alban, à Hélène e Didier que muito me ajudaram em terras francesas.

Jules Verne não teria desprezado, na minha opinião, a nova tecnologia que é a Internet.

Graças a esse novo meio de comunicação pude conhecer Carlos Patrício e Frederico Jácome,

caros amigos vernianos a quem endereço meus agradecimentos pela ajuda e incentivo.

Obrigado também ao verniano Alexandre Tarrieu por me abrir as portas de sua biblioteca.

Destaco a importância da Internet, pois dois sites me permitiram avançar nas

pesquisas e me corresponder com o mundo verniano: o Forum Jules Verne de Zvi Har’El
(jv.gilead.org.il/forum) e o Portal Jules Verne de Frédéric Viron (www.fredericviron.com).

Agradeço também a todos os amigos brasileiros, franceses ou americanos e aos meus

familiares, pela presença, pela palavra amiga e estímulo, e por entenderem minha ausência em

alguns momentos.

Peço desculpas de antemão às pessoas que não citei, mas que contribuíram igualmente

para a elaboração desse trabalho.

SANTOS, Edmar Guirra dos. Retratos literários: o discurso científico na obra de Jules
Verne. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2010. Dissertação de Mestrado.
Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas - Opção: Literaturas de Língua
Francesa. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/UFRJ, 2010.

RESUMO

Estudo contrastivo dos retratos literários de brancos e


“selvagens” nos romances Cinq semaines en ballon
(1863), Les enfants du capitaine Grant (1867) e Le
Chancellor (1875), de Jules Verne. Apresentação das
afinidades entre os romances de Jules Verne e as
teorias de Lavater, Gall, Gobineau, Darwin e textos e
iconografia veiculados no magazine Le Tour du
monde, destacando as relações intertextuais e
interdiscursivas entre o discurso literário e o
científico. Reconstrução da cenografia enunciativa
dos romances, visando estabelecer seu ethos
enunciativo através da análise dos retratos dos
personagens, vistos como construções determinadas
por um habitus que se desejava perpetuar.
SANTOS, Edmar Guirra dos. Retratos literários: o discurso científico na obra de Jules
Verne. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2010. Dissertação de Mestrado.
Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas - Opção: Literaturas de Língua
Francesa. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/UFRJ, 2010.
RÉSUMÉ

Étude contrastive des portraits littéraires des blancs et


des « sauvages » des romans Cinq semaines en ballon
(1863), Les enfants du capitaine Grant (1867) et Le
Chancellor (1875), de Jules Verne. Présentation des
affinités entre les romans de Jules Verne et les
théories de Lavater, Gall, Gobineau, Darwin et les
textes et l’iconographie véhiculés dans le magazine
Le Tour du monde, mettant en relief les rapports
intertextuels et interdiscursifs entre le discours
littéraire et le discours scientifique. Reconstruction de
la scénographie énonciative des romans, afin d’en
établir l’éthos énonciatif à travers l’analyse des
portraits des personnages, vus comme des
constructions déterminées par un habitus que l’on
souhaitait perpétuer.
SUMÁRIO

1. AS VIAGENS EXTRAORDINÁRIAS DE JULES VERNE .............................. 1


2. RETRATOS ................................................................................................................... 15

2.1 Retrato: interface literária ........................................................................................ 15

2.2 Retrato: interface pictural ........................................................................................ 29

2.3 Interseção entre as interfaces literária e pictural do retrato ..................................... 39

3. A PESQUISA VERNIANA PARA A COMPOSIÇÃO DOS RETRATOS... 42

3.1 Intertexto e interdiscurso: o trabalho da citação e a questão documental ................ 43

3.2 Das relações intertextuais com o magazine Le Tour du monde ............................... 57

3.3 Das relações interdiscursivas com as teorias de Lavater e Gall .............................. 78

3.4 Dos diálogos com Gobineau e Darwin .................................................................... 97

4. BRANCOS VERSUS SELVAGENS: AS ANÁLISES DOS RETRATOS ...113


4.1 O sistema descritivo e o retrato ..............................................................................114

4.2 Cinq semaines en ballon: colonialismo justificado ................................................122

4.3 Les enfants du capitaine Grant: do bom selvagem ao racismo avant la lettre........131

4.4 Le Chancellor: regressão do homem ao estado bestial ...........................................152

5. A CENOGRAFIA ENUNCIATIVA DOS ROMANCES ..............................173

5.1 O ethos do enunciador: a legitimação da cenografia enunciativa em Verne .........174

5.2 Magasin d’éducation et de récréation: a vitrine da editora Hetzel ........................180

5.3 Do habitus e da perpetuação de ideias ....................................................................198

5.4 Os personagens e a legitimação discursiva .............................................................201

6. CONCLUSÃO ...................................................................................................207

7. REFERÊNCIAS ................................................................................................213

8. ANEXOS ............................................................................................................220

1 - AS VIAGENS EXTRAORDINÁRIAS DE JULES VERNE

Jules Verne (1828-1905) é o autor mais traduzido no mundo, talvez o mais lido.

Joëlle Dusseau afirma na biografia do escritor que “pelo número de exemplares

vendidos, Jules Verne é o quarto autor no mundo, o primeiro francês e o campeão

dos autores traduzidos todos os anos”.1 No entanto, em 1893, Verne declara numa

entrevista: “Le plus grand regret de ma vie est que je n’ai jamais compté dans la

littérature française”.2 De onde vem esse paradoxo que parece confirmar a máxima

francesa nul n’est prophète en son pays? Os motivos para tais constatações são

múltiplos.

A infância de Jules Verne em Nantes marca profundamente o autor das

“Viagens extraordinárias”. O próprio escritor o reconhece, no final de sua vida, nos

seus “Souvenirs d’enfance et de jeunesse”:

Et d’abord, ai-je toujours eu du goût pour les récits dans lesquels


l’imagination se donne libre carrière? Oui, sans doute, et ma famille a tenu
en grand honneur les lettres et les arts – d’où je conclus que l’atavisme
entre pour une forte part dans mes instincts. Puis, il y a cette circonstance
que je suis né à Nantes, où mon enfance s’est tout entière écoulée. Fils d’un
père à demi-parisien et d’une mère tout à fait bretonne, j’ai vécu dans le
mouvement maritime d’une grande ville de commerce, point de départ et
d’arrivée de nombreux voyages au long cours.3

Para compreendermos as “Viagens extraordinárias” é fundamental saber como

Jules Verne se tornou escritor. Por mais decisivo que seja, o encontro entre Verne e

Hetzel é igualmente o resultado de um longo caminho pessoal e intelectual em que

Verne sempre manifestou seu desejo de tornar-se escritor. O itinerário verniano, de

seu nascimento em

1
“[...] au nombre d’exemplaires vendus, Jules Verne est le quatrième auteur mondial, le premier
français et le champion des auteurs traduits chaque année”. In: DUSSEAU, Joëlle. Jules Verne. Paris:
Perrin, 2005, p. 9. 2 Citado por Lucien Boia em: BOIA, Lucien. Jules Verne - les paradoxes d’un mythe.
Paris: Les belles lettres, 2005, p. 11. A entrevista original e integral apareceu com o título “Jules Verne
at home: his own account of his life and work”, in McClures Magazine, vol. 11, N° 2, jan. 1894.
Traduzido do inglês por Sylvie Malbraneq, foi publicada no Magazine Littéraire, Nº 281, em outubro de
1990, e se encontra disponível em: http://jv.gilead.org.il/butcher/sherard.html Última consulta:
20/09/2008.
3
VERNE, Jules. “Souvenirs d’enfance et de jeunesse”. In: Jules Verne. Paris: L’Herne, 1974, p. 58.
2

Nantes até sua instalação em Paris, mostra algumas incertezas e hesitações que

marcaram seu percurso antes de obter sucesso em 1860.4

Filho de Pierre Verne (1799-1881), procurador judicial em Nantes, e de Sophie

Allotte de la Fuÿe (1801-1887), de origem de nobre família de armadores e

navegadores escoceses, Jules Verne se juntava a mais um irmão e três irmãs para

compor uma família católica praticante. De 1833 a 1846, Verne e seu irmão Paul

estiveram em período escolar, tendo aprendido a ler com uma professora particular;

em seguida Verne entra para a escola Saint

Stanislas, parte para o seminário Saint-Donatien e, enfim, para o Lycée Royal, onde
obteve seu baccalauréat em filosofia e retórica.5 Depois desse exame, Verne aceita

estudar Direito para atender ao desejo de seu pai, que se oferece para pagar seus

estudos.

Já em Paris, em 1847, cursando Direito, Jules Verne se mostra inclinado para

o teatro e escreve dois dramas românticos: Alexandre VI e Un drame sous Louis XV.

Nesta mesma época, participa de jantares semanais organizados pelos

Onze-sans-femme, grupo de homens solteiros composto por escritores e músicos.6

Em 1848, durante o período atribulado da Revolução, Verne, ainda inclinado

para a literatura e para o teatro, continua seus estudos de Direito, mesmo sem muita

convicção. Em 1850, anuncia a seus pais que não deseja tornar-se advogado e se

dedica à escrita de peças e operetas com a colaboração de Aristide Hignard, seu

vizinho. De 1851 a 1855, o escritor ocupa o posto de secretário particular do diretor

do Théâtre Lyrique, Jules Seveste. Neste teatro, tem pela primeira vez encenada

uma de suas peças: Les pailles rompues, escrita em colaboração com Alexandre

Dumas Filho, amigo de Verne na época, peça que não obteve sucesso.

Paralelamente ao emprego de secretário, Verne publica algumas novelas no

periódico Musée des Familles, dentre as quais Amérique du Sud, étude historique.

Les Premiers Navires

de la marine mexicaine (1851); La Science en famille. Un voyage en ballon (1851);


Martin
4
As informações biográficas de que trataremos foram extraídas da biografia de Joëlle Dusseau, que
citamos acima, do livro Jules Verne - Une vie, une époque, une oeuvre, da mesma autora, ou ainda da
biografia que Willian Butcher escreveu em 2006.
5
VIERNE, Simone. Jules Verne. Une vie, une époque, une oeuvre. Paris: Balland,
1986, p. 13. 6 A autora não cita os nomes dos componentes do grupo. Cf. DUSSEAU,
2005, p. 102.
3

Paz, L’Amérique du Sud, moeurs péruviennes (1852); Maître Zacharius ou l’horloger

qui avait perdu son âme (1854); Un Hivernage dans les glaces (1855).

Em 1856 conhece Honorine Devianne, com quem se casaria um ano depois.


Dessa relação nasce seu único filho, Michel Verne. Em 1857, adentra no mundo da

crítica de arte participando do Salão para o qual redige oito artigos, publicados na

Revue des beaux-arts. Esses artigos são considerados por Butcher como o primeiro

livro verniano, dada sua extensão: 32.000 palavras.7 A divulgação recente desse

episódio da carreira de Jules Verne é particularmente fecunda para futuros estudos.

Em 1858, Jules Verne, voltado para a literatura, o teatro, as artes e a cultura,

termina uma opereta que Jacques Offenbach, diretor de Bouffes-Parisiens, aceita

montar em fevereiro de 1858. Monsieur de Chimpanzé coloca em cena um

personagem na pele de um macaco. O assunto da origem símia do homem estava

em voga. Os trabalhos dos naturalistas seriam em breve renovados pelas teorias de

Darwin.8

De 1858 a 1861 Jules Verne faz algumas viagens com seu amigo Aristide

Hignard: Inglaterra, Escócia, Noruega. Em agosto de 1861, tenta voltar da

Escandinávia para participar do nascimento de seu primeiro e único filho, mas

Honorine dá a luz a Michel sem a presença de seu marido.

Nessa época, Baudelaire traduz para o francês textos do escritor Edgar Allan

Poe. Jules Verne, que não lê nenhuma língua estrangeira, fascina-se pelo universo

estranho do

7
“Sem nenhum esforço aparente, ele publicou oito longos artigos relativos ao “Salon de 1857”
resultando num total de surpreendentes 32.000 palavras. Levando em conta a extensão e, sobretudo,
a unidade do tema, podemos legitimamente considerar esses estudos coletivamente como um livro. O
Salon de 1857 representa, assim, o primeiro grande trabalho verniano em prosa terminado sem
grandes esforços [...] O livro foi publicado sob a forma de artigos na Revue des beaux-arts: La tribune
des artistes.” In: BUTCHER, William. Jules Verne. The Definitive Biography. New York: Thunder’s
Mouth Press, 2006, p. 129-130. A tradução é relativa à passagem seguinte: “With no apparent effort
he published eight long review articles of the 1857 Salon, an amazing total of 32,000 words. Given
their scope and unity of theme, we should undoubtedly consider the articles collectively to be a book.
The Salon 1857 thus constitutes Verne’s first completed prose endeavor of any length. […] Verne’s
book appeared as individual articles in the Revue beaux-arts: Tribune des artistes […]”
8
Charles Darwin (1809-1882) só publicará A origem das espécies, com base nas teorias da seleção
natural, um ano depois, em 1859. Retomaremos esse assunto mais longamente no capítulo sobre o
interdiscurso em Jules Verne. A opereta, com música de Aristide Hignard, não obteve sucesso e saiu
de cartaz quinze dias depois da estreia. Cf. DUSSEAU, 2005, p. 121.
4
escritor americano, a quem dedica um estudo, em 1862: Edgard Poe et ses oeuvres.

Ele começa seu texto da seguinte maneira:

Voici, mes chers lecteurs, un romancier américain de haute réputation;


vous connaissez son nom, beaucoup sans doute, mais peu ses ouvrages.
Permettez-moi donc de vous raconter l’homme et son oeuvre; ils occupent
tous les deux une place importante dans l’histoire de l’imagination, car Poë
a créé un genre à part, ne procédant que de lui-même, et dont il me paraît
avoir emporté le secret; on peut le dire chef de l’École de l’étrange ; il a
reculé les limites de l’impossible; il aura des imitateurs. Ceux-ci tenteront
d’aller au-delà, d’exagérer sa manière; mais plus d’un croira le surpasser,
qui ne l’égalera même pas.9

Tendo analisado o escritor e sua obra ao longo de quatro longos capítulos,

Verne desejou, alguns anos depois, escrever a continuação e o fim de um chef

d’oeuvre da literatura de Poe, As aventuras d’Arthur Gordon Pym (1838), objetivando

rematar a obra do mestre da literatura fantástica. Se existe um romance atípico entre

as “Viagens extraordinárias” de Jules Verne, este é Le sphynx des glaces (1897).

Trata-se de um romance fantástico que nasceu da proposta de continuação do

romance de Poe. Em outra ocasião, pudemos analisar esta obra com base no

princípio da intertextualidade e constatamos que esta aventura verniana se inscreve

numa longa linha de romances bem sucedidos que permitiu que Verne dispusesse de

um suporte (escrito) a partir do qual pôde se legitimar e se lançar numa veia literária

que não constitui o essencial de sua obra.10 Na verdade, desde então, a escrita de

Edgar Poe sempre servirá de molde para a escrita verniana: as Histórias

extraordinárias de Poe precedem as Viagens extraordinárias de Jules Verne.

Impregnado das narrativas fantásticas de Poe, Verne pode construir as suas com o

aval do seu futuro editor, Jules Hetzel. O encontro entre eles acontece em 1862,

graças a Alexandre Dumas ou Alexandre Dumas Filho.11 Graças a esse encontro

surgem as “Viagens extraordinárias” que levarão Verne a obter sucesso junto ao

público-leitor.

9
Esse artigo foi publicado no periódico Musée des Familles e se encontra disponível em:
http://jv.gilead.org.il/almasty/aepoe/ Última consuta : 12/03/2009.
10
GUIRRA, Edmar. “Da intertextualidade entre Jules Verne e Edgar Allan Poe” In. Anais do I Colóquio
Vertentes do fantástico na literatura. São Paulo: Faculdade de Letras UNESP-Araraquara, 2009.
Versão em cd rom ISSN: 2175-7933.
11
William Butcher menciona que não se sabe se o encontro foi feito por intermédio de Dumas pai ou
filho. Há ainda a hipótese que Jules Verne tenha conhecido Hetzel através de Félix Nadar. Cf.
BUTCHER, 2006, p. 146.
5

Depois de muitas decepções – literárias, artísticas, profissionais –, Jules Verne

parece alcançar seu objetivo: legitimar-se como escritor. Em 1862, ele apresenta a

Hetzel o manuscrito de um romance intitulado Voyage en l’air - une découverte de

l’Afrique inconnue, survolée par un ballon manoeuvrable. Escrito como um autêntico

relato de viagem, o texto leva Hetzel a pensar ter encontrado o escritor para seu

futuro projeto pedagógico-editorial. O editor aceita publicá-lo e a obra aparece em

1863 com o título Cinq semaines en ballon - Voyage de découvertes en Afrique par

trois anglais. Devido ao sucesso de vendas do romance, um contrato é assinado e

Jules Verne pode, finalmente, começar a viver da sua literatura. Depois desse

episódio, Verne é encorajado pelo editor a continuar escrevendo na via da viagem

imaginária, trazendo uma dimensão épica em que o extraordinário se apoie sobre as

descobertas da época. Isso resumirá a ambição que construirá as “Viagens

extraordinárias”.

No entanto, os objetivos de Hetzel não se restringiam somente em publicar

este romance de Jules Verne. Hetzel tinha o desejo de criar “uma biblioteca

associando educação e recreação”.12 Assim, cria, em março de 1864, com Jean

Macé, o Magasin d’Éducation et de Récréation, cujo objetivo era “constituir um

ensino de família no verdadeiro sentido da palavra, um ensino sério e atraente ao

mesmo tempo, que agrade aos pais e seja proveitoso para as crianças.”13 Verne é

então convidado a se associar a este projeto lúdico-instrutivo destinado, em geral, à

leitura infanto-juvenil. Desta maneira, renova seu contrato com Hetzel pelo qual fica

incumbido de entregar ao editor três volumes por ano. Depois desse contrato, Jules

Verne publicará, em formato de folhetim e só depois em volume, diversos de seus


romances no Magasin d’Éducation et de Récréation, dentre os quais destacamos

nesta dissertação Les enfants du capitaine Grant (1867-1868), primeira viagem a um

“mundo

primitivo” publicada na revista. Pode-se dizer que a vasta obra literária de Jules
Verne foi
12
Cf. COMPÈRE, Daniel. Jules Verne. Parcours d’une oeuvre. Amiens: Encrage, 1996, p. 15. 13
“Constituer un enseignement de famille dans le vrai sens du mot, un enseignement sérieux et attrayant
à la fois, qui plaise aux parents et profite aux enfants.” MACÉ, Jean & STHAL, P.-J. Magasin
d’Éducation et de Récréation, Paris: Hetzel, Mar/1864, p. 1. Citaremos mais longamente informações
editoriais sobre a revista e outras vias de publicação dos romances de Jules Verne, no quinto capítulo
desta dissertação.
6

quase inteiramente um trabalho de encomenda e que o Magasin servia de vitrine

para que a editora de Hetzel expusesse os romances de Jules Verne, antes de

publicá-los em volume. Efetivamente, com a revista, Hetzel deu a Verne a

oportunidade do sucesso. Mas não devemos, entretanto, reduzir a obra de Jules

Verne a esse registro. As amizades e relações de Hetzel no mercado editorial,

público e político atestam isso. Através desses conhecimentos, Jules Verne também

publicará alguns romances na área destinada aos folhetins de diários

político-literários, notadamente em Le temps. É neste diário que encontramos o

folhetim de Le Chancellor (1875), primeiro de Verne a ser publicado no jornal, cuja

história e análise trazemos para integrar o corpus da pesquisa.

Em suma, se Jules Verne não obteve sucesso na sua carreira de juventude, Cinq

semaines en ballon será um divisor de águas. As viagens literárias do romancista,

sobretudo as seis primeiras, permitem-nos ver como o seu desejo de se tornar

escritor se coaduna com o projeto do seu editor, permitindo-lhe amadurecer o gênero

a partir do qual escreverá. É interessante verificar que até mesmo os títulos desses

seis primeiros romances definem claramente a futura “cosmogonia” das “Viagens

extraordinárias”, para retomar a expressão de Roland Barthes.14 Nós os

apresentamos aqui em ordem de publicação pela editora Hetzel: Cinq semaines en

ballon - Voyage de découvertes en Afrique par trois anglais (1863); Voyage au centre
de la Terre (1864); De la Terre à la Lune - Trajet direct en 97 heures et 20 minutes

(1865) ; Voyages et aventures du capitaine Hatteras. Les Anglais au pôle nord - Le

Désert de glace (1866); Les Enfants du capitaine Grant - Voyage autour du monde

(1867-1868) ; e Vingt mille lieues sous les mers - Tour du monde sous-marin

(1869-1870).

Esses primeiros romances nos permitem definir os dois primeiros eixos

fundamentais das “Viagens extraordinárias”: o espaço e o tempo, a geografia e a

história, ambos marcados pela ciência. Do âmago da Terra ao fundo submarino e

aos continentes, por ar, mar ou terra,

passando pelos pólos e pela Lua, a ambição das “Viagens extraordinárias” se define:
trata-se

14
BARTHES, Roland. Mythologies. Paris: Seuil, 2001 (1957), p. 75.
7

de percorrer o espaço geográfico, descrever o planeta e interrogar o homem diante

de um mundo em evolução.

Assim, Jules Verne é editado e seus esforços são, finalmente,

recompensados. Ele deve esse novo status a Hetzel. Em 1867, Verne reconhece o

papel que seu editor representou na sua vida, despedindo-se e assinando uma das

cartas que trocam entre si, dessa maneira: “votre Verne, celui que vous avez

inventé.”15

Nos primeiros romances de Jules Verne, a geografia constitui a pedra

fundamental das “Viagens extraordinárias.” Ela é o cimento do edifício que o autor

construirá ao longo de mais de quarenta anos. Muitos estudiosos de Verne afirmam

que a geografia é para ele o que a História foi para Alexandre Dumas. Certamente,

este é um dos pontos originais da ficção verniana. Claude Roy afirma que “O mundo

tem seis continentes: a Europa, a África, a Ásia, a América, a Austrália e Jules

Verne.”16 A geografia se faz tão presente nos romances do escritor que estudiosos
aplicam, com frequência, o rótulo de “romances geográficos”, defendendo, assim,

não só uma originalidade para Verne, mas definindo uma espécie de gênero para o

qual o autor escrevia.

Investigando a fortuna crítica do autor, podemos dizer, em resumo, que a

obra verniana nasce do cruzamento de três gêneros, todos três pertencentes –

para utilizar uma terminologia ulterior – à paraliteratura. Trata-se de uma mistura

que reúne vulgarização científica, romance popular e literatura para crianças. Estes

gêneros são frequentemente caracterizados como gêneros bastardos e destinados

a veicular mensagens não literárias. Os escritores que os praticavam tinham pouca

possibilidade de reivindicar sua excelência literária, uma vez que teriam

abandonado ideais estéticos na intenção de obter a consideração de um vasto

público.

15
DELLA RIVA, Piero Gondolo; DEHS, Volker & DUMAS, Olivier; Correspondance inédite de Jules
Verne et de Pierre-Jules Hetzel (1863-1886). Genebra: Slatkine, 1999, p. 73.
16
ROY, Claude. Le commerce des Classiques. Paris: Gallimard, 1953, p. 258.
8

Desde 1971, com a publicação de Jules Verne – une lecture politique, de

Jean Chesneaux (1922-2007), os esforços têm sido constantes para a

“reabilitação” da obra do escritor. Chesneaux propôs uma leitura evidenciando o

caráter engajado da obra de Verne. Desde então, o prestígio literário de Verne

continuou aumentando, culminando, em 2005, com as comemorações pelos cem

anos da sua morte. Muitos estudos sobre a obra verniana têm sido publicados e,

com o relançamento de diversas de suas obras, corroboram a tendência de

considerar Jules Verne como um autor sério, multifacetado, possuidor de uma obra

original e instigante, criador de mistérios e enigmas.

No entanto, mesmo na segunda metade do século XIX, encontramos diversos


artigos ou notas, suficientemente elogiosos e publicados em vias reconhecidas.

Depois do lançamento e do sucesso imediato de Cinq semaines en ballon, em 1863,

no mês de fevereiro do mesmo ano, o jornal Le Temps congratula “um nome até

agora desconhecido de que não temos que predizer o sucesso porque esse sucesso

já está feito”; o livro “é um resumo rápido e interessante das descobertas feitas pelos

mais célebres viajantes.”17 No ano seguinte, afirma: “Verne é o criador de um gênero

na nossa literatura.”18 Seria esse novo gênero o do romance geográfico ou do

romance científico? Diríamos, ao menos, que a geografia e a ciência foram as fontes

das quais Jules Verne usou e abusou para a criação de sua obra. Mais tarde,

Thomas Grimm – pseudônimo d’Amedée Escoffier – qualifica Verne no Le Petit

Journal, em agosto de 1875, como “o criador de um gênero novo em literatura, o

ensino geográfico pela ficção”.19

17
“Un nom jusqu’ici inconnu, dont nous n’avons pas à prédire le succès, car ce succès est déjà fait”; “
[...] est un résumé rapide et intéressant des découvertes faites par les plus célèbres voyageurs”. Le
Temps, le 17 février 1863. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k2214461 Última consulta:
23/10/2008. 18 “Verne est le créateur d’un genre de notre littérature.” Le Temps, le 19 décembre 1864.
Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k222240d Última consulta: 23/10/2008.
19
“[...] créateur d’un nouveau genre en littérature, l’enseignement géographique par la fiction” Le petit
Journal, le 3 août 1875. In: Bulletin de la société Jules Verne (BSJV), nº 141, 1er trimestre, 2002.
9

Como o romance histórico, o romance geográfico, na segunda metade do

século XIX, desfruta de um grande prestígio.20 O desenvolvimento da escolaridade,

na França, e retomada das viagens extracontinentais que marcaram a segunda onda

da colonização permitiram aguçar uma maior curiosidade sobre partes do planeta

ainda pouco conhecidas, ou mesmo desconhecidas. Além disso, desde o início, a

dimensão científica das “Viagens extraordinárias” é colocada em evidência. Hetzel

escreve em 1867 que seu “objetivo é, de fato, resumir todos os conhecimentos [...] e
refazer, na forma atraente e pitoresca que lhe é própria, a história do universo.”21

Sublinhando o caráter didático da obra de Verne, Émile Zola, num curto texto

publicado em 12 de maio de 1866 em l’Événement, deixa transparecer a satisfação

de ver as crianças da França “em boas mãos”:

O senhor Jules Verne é o artista da ciência. Ele coloca toda sua


imaginação a serviço de deduções matemáticas, pega as teorias e extrai
delas fatos verossímeis, senão práticos. Não é o pesadelo de Edgar Poe, é
uma imaginação amável e instrutiva, são relatos escritos para crianças e
pessoas do mundo, cheios de interesse dramático e de ensinamentos úteis.
[...] É uma excelente ideia dramatizar a ciência para torná-la acessível aos
neófitos.22

Em razão do caráter fantástico e visionário dos seus romances, Jules Verne

tem sua obra recomendada e renomeada “viagens imaginárias” pelo escritor e crítico

Théophile Gautier. Em 1849, o poeta de Albertus e romancista do Capitaine

Fracasse e Mademoiselle de Maupin conheceu Jules Verne e, assim como Zola, foi

um dos importantes críticos

20
Cf. CHARTIER, Roger & MARTIN, Henri-Jean. Histoire de l’édition française; le temps des éditeurs.
Paris : Fayard, 1985, p. 190.
21
“Son but est, en effet, de résumer toutes les connaissances [...] et de refaire, sous la forme attrayante
et pittoresque qui lui est propre, l’histoire de l’univers.” MACÉ, Jean & STHAL, P.-J “Avertissement de
l’éditeur” In: Magasin d’éducation et de récréation. Tome II, 1867, p. 1-2. Retomaremos integralmente
essa citação no quinto capítulo desta dissertação.
22
« M. Jules Verne est le fantaisiste de la science. Il met toute son imagination au service de
déductions mathématiques, il prend les théories et en tire des faits vraisemblables, sinon pratiques. Ce
n’est pas le cauchemar d’Edgar Poe, c’est une fantaisie aimable et instructive, ce sont des récits écrits
pour les enfants et les gens du monde, pleins d’intérêt dramatique et d’enseignements utiles. […] C’est
une excellente idée que de dramatiser la science pour la rendre accessible aux profanes. » Cf. ZOLA,
Émile apud MARGOT, Jean-Michel (dir.). Cahier Jules Verne. Jules Verne en son temps vu par ses
contemporains (1863-1905). Vol 2. Paris: Les Belles Lettres, 2004, p. 21-22.
10

literários que dedicou uma crítica às “Viagens extraordinárias”. Num artigo publicado

no Moniteur Universel, em Julho de 1886, Gautier afirma:

O melhor a se fazer em tal situação é fechar tudo, persianas,


venezianas e cortinas, estender-se numa poltrona de moleskine,
enrolado num albornoz argelino, e ler à meia-luz, à qual o olho se
adapta rapidamente, algum livro
agradável e refrescante, as viagens imaginárias do senhor Jules Verne, por
exemplo, cujos títulos, apenas, já fazem correr um leve frisson sobre
a pele: Les anglais au Pôle Nord; Le désert de glace; Cinq semaines
en ballon; Voyage au centre de la Terre; De la Terre à la lune. Eles
oferecem a mais
rigorosa possibilidade científica de ocorrer. A quimera é, aqui,
montada e guiada por um espírito matemático. 23

Na época da morte de Jules Verne, em 1905, o jornal Le Temps publica que


Verne

foi um dos apóstolos mais fervorosos da ciência. Seus romances guardarão


o valor mais alto, aquele de ter adivinhado todos os últimos e mais
impressionantes progressos da ciência moderna. Previstas, estabelecidas
em equações e em fórmulas, as invenções que serão a glória do século
que acabou de findar e desse que começa.24

Como podemos constatar, para vários críticos, Jules Verne uniu, no gênero

romanesco, o extraordinário da ciência e a geografia. O pesquisador verniano Olivier

Renaud integra-se a esse coro: “É um mago, e sua magia é a ciência. Tínhamos

antes dele o romance histórico, o romance analítico, o romance íntimo, o romance

de capa e espada – ele cria o romance eletro

geográfico. Chamavam-no, outro dia, de Joanne-Hoffmann”25, associação do nome

do criador dos guias de viagem na França (Les Guides Joanne), Adolphe Joanne,

com aquele do escritor, compositor e pintor alemão Ernst Theodor Amadeus Wilhelm

Hoffmann, mestre da narrativa fantástica.

23
“Ce qu’il y a de mieux à faire en pareil cas, c’est de fermer tout, persiennes, stores, rideaux, de
s’allonger sur un fauteuil de moleskine, enveloppé d’un burnous algérien, et de lire dans la
demi-obscurité à laquelle l’oeil se fait bien vite, quelque livre agréable et rafraîchissant, les voyages
imaginaires de M. Jules Verne par exemple, dont les titres seuls vous font courir sur la peau un léger
frisson: Les anglais au Pôle Nord ; Le désert de glace ; Cinq semaines en ballon ; Voyage au centre de
la Terre ; De la Terre à la lune. [...] ils offrent la plus rigoureuse possibilité scientifique d’arriver. La
chimère est ici chevauchée et dirigée par un esprit mathématique.” Texto de Théophile Gautier
publicado no Moniteur Universel, nº 197, Julho/1886, apud TOUTTAIN, Pierre-André (dir.). Jules
Verne. Paris : nº 25, L’Herne, 1974, p. 85.
24
“[...] un des apôtres de la science les plus fervents. Ces ouvrages garderont une valeur plus haute,
celle d’avoir déviné tous les derniers et le plus saisissants progrès de la science moderne. On trouve
prévues, fixées en équations et en formules, les inventions qui seront la gloire du siècle qui vient de
finir et de celui qui commence.” Le Temps, le 26 mars 1905. Disponível em:
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/ bpt6k238197c Última consulta: 24/10/2008.
25
“C’est un magicien, et sa magie à lui, c’est la science. Nous avions avant lui le roman historique, le
roman analytique, le roman intime, le roman de cape et épée – il crée le roman électro-géographique.
On l’appelait, l’autre jour, un Joanne-Hofmann.” BSJV, N° 139, 3e trimestre, 2001.
11
Para a presente dissertação, acreditamos que as informações acima, biográficas ou

contextuais, mostram a complexidade em que se inscrevem as “Viagens” de Jules

Verne. Ao mesmo tempo, são informações que elucidam e nos ajudam a reconstruir

o universo verniano, que pretendemos estudar.

Em aspectos gerais, nos três romances que citamos e que compõem o foco da

presente pesquisa – Cinq semaines en ballon, Les enfants du capitaine Grant e Le

Chancellor –, Jules Verne se vale do tema de viagem para estruturar as diversas

tramas. Este aspecto, que agrupa os romances num conjunto, evidencia o caráter

geográfico das obras, visto termos o norte da África como cenário para Cinq

semaines en ballon; o Chile, a Austrália e a Nova Zelândia como cenário para Les

enfants du capitaine Grant e o Oceano Atlântico para Le Chancellor. Estas “Viagens

extraordinárias” servem como pretexto para que Jules Verne apresente aos jovens

leitores europeus partes do globo terrestre ainda pouco conhecidas, salientando não

só sua geografia, mas também seu relevo, sua fauna e flora, seus habitantes, bem

como seus costumes.

As viagens interrogam também os mistérios que dizem respeito ao homem e

sua evolução, numa época em que diversas teorias surgiam para uma possível

explicação de suas origens, das quais se destacam aquela do naturalista inglês

Charles Darwin (1809-1882), exposta no célebre estudo A origem das espécies, de

1859, e aquela de Joseph Arthur Gobineau (1816-1882), diplomata e escritor francês

que escreveu o Essai sur l’inégalité des races humaines, em 1853-1855. Verne, com

seu conhecimento enciclopédico, vale-se de uma prática corrente no século XIX que

consistia em descrever os homens a partir de sua aparência física e, mais


particularmente, analisando-lhes os traços faciais. Estes parâmetros eram

provenientes da Fisiognomonia – ciência elaborada pelo filósofo e teólogo protestante

suíço Johann Kaspar Lavater (1741-1801), que propunha conhecer os homens pelo

estudo da sua

12

fisionomia – e pela Frenologia – estudo das características e das funções intelectuais

do homem através da conformação externa do crânio, elaborado pelo médico

alemão Franz Josef Gall (1758-1828). Assim, Jules Verne apresenta aos leitores os

povos que habitam nestes “mundos primitivos”, ou os que de lá vieram, através de

descrições baseadas em conhecimentos “científicos”, que realizará ao longo dos

romances.

Definimos como foco da pesquisa empreendida o cotejo das descrições

prosopográficas dos romances mencionados, visando estabelecer uma linha de

coerência com o ethos do enunciador e a cenografia enunciativa na qual se

inscreve, tendo como base as teorias de análise do discurso propostas por

Dominique Maingueneau, a conceituação do Descritivo de Philippe Hamon e o

conceito de habitus, tal como é elaborado pelo sociólogo Pierre Bourdieu.

Para problematizar, tendo como ponto de partida a recorrência de descrições

prosopográficas dos “selvagens”, nos romances abordados, procuramos identificar a

função de tais imagens dentro destas narrativas, e saber em que medida, para criar

seus personagens, Jules Verne dialoga com os discursos científicos ou

pseudocientíficos de sua época e relatos de viajantes, onde se incluem imagens

pictóricas. Buscamos entender como o autor se vale desses discursos para

corroborar o fortalecimento de um habitus dominante e, por conseguinte, legitimar

sua cenografia enunciativa. Tendo como ponto de partida o romance Cinq semaines

en ballon, primeiro romance verniano que não conheceu nenhuma via de publicação
folhetinesca, um outro problema que investigamos nesta dissertação, e o que

justifica a escolha dos romances do corpus, consiste em verificar se o ethos do

enunciador dos romances se reconfiguraria ao associar-se ao projeto editorial do

Magasin d’éducation et de récréation ou do diário Le Temps.

Com base no projeto da editora de Hetzel – divertir e instruir –, pode-se inferir

que os retratos literários nestas obras de Jules Verne exerceriam a função de

apresentar os habitantes dos “mundos primitivos” aos leitores, em contraste com a

representação do homem branco

13

europeu. A maneira pela qual esses personagens são descritos indicar-nos-ia que o

autor efetuou e incorporou leituras de Lavater, Gall e Darwin, por exemplo, e teve

igualmente como fonte bibliográfica e iconográfica certos relatos de viajantes do

século XVIII e XIX, elaborando, portanto, um ethos enunciativo responsável pela

perpetuação de um habitus dominante e legitimando seu discurso na cena

enunciativa em que se insere. No que tange também a esse tipo de ethos

enunciativo, aventa-se que ele estaria presente no primeiro romance de Jules Verne

(Cinq semaines en ballon) e se modificaria significativamente quando associado ao

projeto editorial da revista ou do jornal sendo, portanto, um instrumento de reiteração

de pressupostos e crenças coletivas.

No segundo capítulo dessa dissertação, intitulado “Retratos”, definimos as

interfaces literária e pictórica do retrato, bem como estabelecemos uma breve

interseção entre os elementos que podem aproximar uma da outra. Nesse capítulo,

apresentamos a pesquisa de base que nos ajudou a compreender, sobretudo, a

construção e a função do nosso objeto de pesquisa.


O terceiro capítulo, intitulado “A pesquisa verniana para a composição dos

retratos”, é dividido em sub-itens em que discutimos a presença do discurso

científico e histórico na obra de Jules Verne, em especial nos retratos dos romances

do corpus que analisamos. Nesse capítulo, mostramos que Jules Verne se serviu da

revista Le Tour du monde como fonte primária para a construção dos retratos e,

ainda, que mantém diálogo interdiscursivo com a ciência de Lavater e Gall. Visto que

alguns dados das correntes naturalistas, da crescente noção de “racismo” e da

literatura de Jules Verne mantêm pontos em comum, aproximamos os textos de

Verne daqueles de Darwin e Gobineau. Abordamos teoricamente este capítulo

14

usando as noções de relações transtextuais de Gérard Genette e de intertexto e

interdiscurso, renovadas pela Análise do Discurso por Dominique Maingueneau e

Patrick Charaudeau. No quarto capítulo, intitulado “Brancos versus selvagens: a

análise dos retratos”, analisamos contrastivamente os retratos dos personagens

brancos e selvagens dos romances do corpus prevendo que o contraste entre os

retratos, para cada romance, converge para uma noção geral. Aqui, abordamos os

retratos à luz da teoria do descritivo de Philippe Hamon e, eventualmente, das

noções propostas por Adam & Petitjean.

No quinto e último capítulo, abordamos sócio-discursivamente o corpus

trabalhado. Usando a noção de ethos, do ponto de vista da Análise do Discurso de

Maingueneau, e sua função na cenografia enunciativa em que os romances se

inscrevem, perfilamos os enunciadores dos romances, acreditando que estes estão

ligados a visões de mundo bem definidas, em outras palavras, a um habitus que se

desejava perpetuar através da leitura.

Nesta dissertação, trabalharemos com as edições princeps dos romances.

Publicadas em 1975 pela editora Michel de l’Ormeraie, as edições compostas pelos


textos integrais de Jules Verne reconstituem a forma material das edições originais

publicadas no século XIX por Jules Hetzel. Quando se fizer necessário ao longo da

dissertação, lançaremos mão das ilustrações e das legendas originais que as

acompanham. Estas podem ser consultadas no site de referência

jv.gilead.org.il/forum, bem como as versões originais dos romances.

Em se tratando das citações que se encontram no presente trabalho,

preservamos, para o caso dos textos de Jules Verne e os pequenos contos do

Magasin d’éducation et récréation, o original, em francês. Qualquer outro tipo de

citação, não existindo uma versão para o português, foi traduzida por nós,

mantendo-se em nota de pé de página a versão original.

15

2 - RETRATOS

“Seres de papel”26. Tal é a designação que Roland Barthes dá aos

personagens. Para este autor, eles se constituem como uma categoria narrativa,

elementos textuais que imitam e representam as pessoas.

O escritor, para identificar seus personagens, dá-lhes traços de humanidade,

fator indispensável à verossimilhança. Com frequência, essa identidade e esse traço

de humanidade são conferidos aos personagens através da descrição de um “corpo”

que é dotado de movimento, de um rosto, de qualidades físicas e também morais.

Esses traços, que constituem o retrato de um personagem, visam dar vida, no

universo da escrita, a um ser fictício que terá um papel de maior ou menor relevância

em um texto.

Como toda noção ligada à criação literária, o retrato suscita algumas questões

teóricas relativas à composição e à elaboração do personagem, à função que ele

ocupa na economia geral do texto e às concepções de mundo que o autor apresenta

e que deseja transmitir através dele. Porém, para inscrevê-lo em condições


específicas, abordaremos suas concepções tal como foram descritas desde o

período clássico, quando funcionava como gênero - usando uma terminologia

ulterior-, até o século XIX, em que aparecerá como figura de pensamento no interior

de uma trama.

2.1 - Interface literária

A Antiguidade já conhecia o retrato literário cujos exemplos mais célebres

estão em Os caracteres de Teofrasto (372 a.C. - 287 a.C.), traduzidos do grego para

a língua francesa em 1688 pelo ensaísta e moralista francês Jean de La Bruyère.

Nesta obra, Teofrasto tinha o projeto de tratar de todas as virtudes e de todos os

defeitos humanos. Afirmava: “[...] detenho

me somente na ciência que descreve os costumes, que examina os homens e que


revela sua

26
BARTHES, Roland. Introduction à l’analyse structurale des récits. In: Oeuvres Complètes. Paris:
Seuil, 1994, p. 95.
16

personalidade”27. Em sua obra, Teofrasto visava caracterizar um tipo – como por

exemplo, um dissimulado, um insolente, um covarde, um estúpido - através de seus

comportamentos em diferentes situações. Para esboçar o retrato de um homem

dissimulado, por exemplo, afirma:

A dissimulação não se deixa bem definir; se nos contentarmos em fazer dela


uma simples descrição, podemos dizer que é certa arte de compor as palavras
e as ações com uma má finalidade. Um homem dissimulado se comporta
dessa maneira; ele aborda seus inimigos, fala com eles e os faz crer desse
modo que ele não os odeia; diante deles, elogia abertamente aqueles para os
quais prepara secretos embustes.28

Apesar de sua importância para a tradição do retrato em literatura, os retratos

contidos em Os Caracteres não constituem um sentido moral como em uma fábula –

são somente evocações de cenas contínuas que salientam os traços mais


característicos de um tipo humano. Estes retratos mostram um tipo, através de suas

palavras, suas reações, seus atos mais significativos em apresentação dinâmica,

ressaltando o que é particular num fenômeno mais ou menos geral. Por outro lado,

em As vidas dos homens ilustres, escrito alguns séculos depois dos Caracteres,

Plutarco (46-120 dC.) emprega o mesmo procedimento, porém aplicado à

caracterização de um indivíduo, de uma personalidade em particular.

Conscientemente, Plutarco renunciou à apresentação exaustiva do retratado para

evocar gestos, palavras e detalhes mais significativos que lhe permitiriam definir

aquilo que constitui a verdadeira natureza da pessoa representada. Seguindo o

método de traçar o retrato de um grego e em seguida o de um romano, a fim de

compará-los, declara:

Não escrevo histórias, mas vidas; aliás, não é sempre nas ações mais
magníficas que se mostram mais as virtudes ou os vícios dos homens. Um problema
cotidiano, uma palavra, uma brincadeira dão melhor a conhecer o caráter do homem do que
batalhas sangrentas e ações memoráveis. Os pintores extraem a semelhança de seus
retratos nos olhos e nos traços do rosto, onde o natural e os modos aparecem mais
sensivelmente:
27
«[...] je me renferme seulement dans cette science qui décrit les moeurs, qui examine les hommes et
qui développe leurs caractères.» THÉOPHRASTE. Les Caractères de Théophraste. Traduits du grec.
Paris : Estienne Michallet, 1688, p. 3. Disponível em :
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k105077m.r=Th%C3%A9ophraste.langEN
Última consulta: 20/03/2009.
28
«La dissimulation n’est pas laissée à bien définir; si l’on se contente d’en faire une simple description,
l’on peut dire que c’est un certain art de composer ses paroles et ses actions pour une mauvaise fin.
Un homme dissimulé se comporte de cette manière; il aborde ses ennemis, leur parle et leur fait croire
par cette démarche qu’il ne les hait point; il loue ouvertement et en leur présence ceux à qui il dresse
de secrètes embûches.» THÉOPHRASTE, 1688, p. 58.
17

eles tratam bem menos outras partes do corpo. Que me seja assim também
permitido penetrar nos recônditos mais secretos da alma, a fim de extrair os
traços mais marcantes da personalidade e de pintar, de acordo com esses
indícios, a vida desses dois grandes homens, deixando para outros o detalhe
dos combates e das ações mais brilhantes29.

Os filósofos e historiadores da Antiguidade, portanto, reconheciam a

representação como a função primeira do retrato. Contudo, a arte do retrato literário

evoluiu através dos séculos e é a esse título que a utilização do verbo pintar, na

explicação de Plutarco, não é gratuita. “Pintar um personagem”, que nos remete à


pintura, revela-se, assim, através da qualificação do gênero da pintura. Daniel

Bergez em seu livro Littérature et peinture30 destaca que o surgimento da noção de

indivíduo, favorecido pelo espírito renascentista, época em que o retrato pictural

conhece um sucesso sem precedentes, poderia ter ajudado o desenvolvimento da

arte literária do retrato.31 No entanto, para que o retrato literário ganhasse impulso,

foi necessário aguardar os meados do século XVII, quando começou a se definir

como uma “arte mundana feita de inteligência e sofisticação estilística.”32 Graças à

ação social inovadora da Préciosité, movimento cultural e literário do século XVII,

marcada pelas obras de Madeleine de Scudéry (1607-1701) que reunia em seus

Salões os hommes des Lettres, o retrato foi transformado em “divertimento da

sociedade” e seu escritor em um historiador de seu tempo33. Na época desses

Salões, o retrato literário retomava o estatuto genérico difundido por Plutarco e

coadunava-se às regras estéticas do retrato pictural, isto é, descrevia fielmente o

indivíduo (modelo) a fim de distingui-lo como um tipo à parte. No caso

de Madeleine de Scudéry, que transpunha o que assistia nos Salões para suas obras,
essa

29
« Je n’écris pas des histoires, mais des vies; d’ailleurs ce n’est pas toujours dans les actions les plus
éclatantes que se montrent davantage les vertus et les vices des hommes. Une question ordinaire,
une parole, un badinage, font souvent mieux connaître le caractère d’un homme que des batailles
sanglantes et des actions mémorables. Les peintres prennent la ressemblance de leurs portraits dans
les yeux et les traits du visage, où le naturel et les moeurs éclatent plus sensiblement : ils soignent
beaucoup moins les autres parties du corps. Qu’il me soit de même permis de pénétrer dans les plus
secrets réplis de l’âme, afin d’y saisir les traits les plus marqués du caractère, et de peindre d’après
ces signes la vie de ces deux grands hommes en laissant à d’autres le détail des combats et des
actions les plus éclatantes. » PLUTARQUE. Les vies des hommes illustres. T.II. Trad. Jacques Amyot ;
sous la resp. de Gérard Walter. Paris: Gallimard, 1951, p. 299.
30
Cf. BERGEZ, Daniel. Littérature et peinture. Paris: Armand Colin, 2004, p. 87.
31
Mais adiante trataremos de alguns critérios que permitem a inserção de uma obra no gênero pictural
retrato e dos dados relevantes para essa discussão, que podem aproximar o retrato literário da sua
interface pictórica. 32 BERGEZ, 2004, p. 87.
33
Cf. NIDERST, Alain. Madeleine de Scudéry; construction et dépassement du portrait romanesque. In:
DEBREUILLE, Jean-Yves et alii. Le Portrait littéraire. Lyon: PUL, 1988, p. 107-112.
18

fidelidade descritiva era garantida por uma descrição de nuanças anatômicas, como

vemos no retrato de Cléomire em Le Grand Cyrus:

Cléomire é grande e bem feita: todos os traços do seu rosto são


admiráveis; não se pode exprimir a delicadeza da sua tez; a majestade
de toda sua pessoa é digna de admiração, sai dos seus olhos um brilho
indescritível que imprime respeito na alma de todos aqueles que a
olham; para mim, confesso que nunca pude me aproximar de Cléomire
sem sentir no coração um certo temor respeitoso que me obrigou a
pensar mais em mim, estando perto dela, do que em nenhum outro lugar
do mundo onde eu já tenha estado. Os olhos de Cléomire são tão
admiravelmente belos que nunca se pôde representá-los bem. [...] Sua
fisionomia é a mais bela e a mais nobre que jamais vi; e deixa
transparecer uma tranquilidade no seu rosto que permite ver claramente
qual é a de sua alma. Enfim, se se quisesse dar um corpo à Castidade
para ser adorada por toda a terra, eu gostaria de representar Cléomire;
se se quisesse dar um outro à Glória para ser amada por todo mundo,
gostaria ainda de fazer sua pintura; e se se desse um à Virtude, eu
gostaria também de representá-la.34

Esse retrato tinha a função de evidenciar os traços físicos e morais da

personagem, diferentemente do que vemos nos Caractères de La Bruyère

(1645-1696), cujos retratos literários operavam-se por camadas de descrições

sucessivas que são somente frases distintas que descrevem atemporalmente os

traços de um arquétipo.

No prefácio dos Caractères, La Bruyère descreve suas intenções para com o


público:

Restituo ao público o que ele me cedeu: tomei dele emprestado a matéria desta
obra; é justo que, tendo concluído com toda atenção pela verdade de que sou
capaz e que ele merece de mim, eu lhe retribua. Ele pode olhar à vontade esse
retrato que faço dele segundo sua natureza e, se ele reconhecer em si alguns
dos defeitos em que toco, corrigir-se.35

34
« Cléomire est grande et bien faite : tous les traits de son visage sont admirables ; la délicatesse de
son teint ne se peut exprimer ; la majesté de toute sa personne est digne d’admiration, et il sort je ne
sais quel éclat de ses yeux qui imprime le respect dans l’âme de tous ceux qui la regardent ; pour moi,
je vous avoue que je n’ai jamais pu approcher Cléomire, sans sentir dans mon coeur je ne sais quelle
crainte respectueuse qui m’a obligé de songer plus à moi, étant auprès d’elle, qu’en nul autre lieu du
monde où j’aie jamais été. Les yeux de Cléomire sont si admirablement beaux, qu’on ne les ai jamais
pu bien représenter. [...] Sa physionomie est la plus belle et la plus noble que je vis jamais, et il paraît
une tranquilité sur son visage qui fait voir clairement quelle est celle de son âme. Enfin, si on voulait
donner un corps à la Chasteté pour la faire adorer par toute la terre, je voudrais représenter Cléomire ;
si on en voulait donner un à la Gloire pour la faire aimer par tout le monde, je voudrais encore faire sa
peinture ; et si l’on en donnait un à la Vertu, je voudrais aussi la représenter. » SCUDÉRY, Madeleine
apud COUSIN, Victor. La société française au XVIIe siècle d’après Le Grand Cyrus de Mlle de Scudéry.
Paris : Didier, 1858, p. 277-278. Disponível em :
httpgallica.bnf.frark12148bpt6k2014489.r=%22le+grand+cyrus%22.langPT Última consulta:
02/10/2009. 35 « Je rends au public ce qu’il m’a prêté: j’ai emprunté de lui la matière de cet ouvrage ; il
est juste que l’ayant achevé avec toute l’attention pour la vérité dont je suis capable, et qu’il en mérite
de moi, je lui en fasse la restitution. Il peut regarder avec loisir ce portrait que j’ai fait de lui d’après
nature, et s’il se connaît quelques-uns des défauts que je touche, s’en corriger. » LA BRUYÈRE, Jean
de. Les Caractères. Paris : Imprimerie Nationale, 1998, p. 129.
19

Notamos que os Caractères de La Bruyère, publicados no final do século XVII,

seguem nitidamente objetivos moralistas e pedagógicos, oferecendo uma visão

panorâmica da sociedade de sua época. La Bruyère, como um emulador de

Teofrasto, mostra-se impregnado do seu método e princípio minuciosos em realizar

recortes na coletividade dos homens. Assim, para um “homem de mérito” ele

esboça:

Um homem de mérito, que ocupa esse lugar, nunca é importunado por sua
vaidade, ele se incomoda mais pelo lugar de destaque que não ocupa, e do
qual acredita ser digno, do que pelo lugar que ele ocupa: mais capaz de
apreensão do que de orgulho ou de desprezo pelos outros, ele só se importa
consigo mesmo.36

Embora sejam contemporâneos, La Bruyère não é, na composição dos seus

retratos, um anatomista como Madeleine de Scudéry; apresenta-se, sobretudo,

guiado pelos princípios da moralidade pública.

A noção de retrato literário continuou a adquirir outras nuanças a partir da

intervenção de críticos, como por exemplo, Charles Augustin Sainte-Beuve

(1804-1869) com seus Portraits Littéraires, Portraits contemporains e Portraits de

femmes. Com estes estudos críticos, publicados a partir de 1844, Sainte-Beuve

inaugura o retrato enquanto crítica literária. Ele se auto-definia desse modo:

“Comparo-me algumas vezes a um gravador (a mais triste das especialidades dos

artistas) que passa seus dias diante da prancha de cobre, que se esforça para deixar

mais exata e mais fiel: assim faço eu com essas imagens literárias que se

sucedem”.37 Seu método era o de biografar personalidades da literatura, visando

“compor uma galeria um pouco irregular, porém completa, própria a dar uma ideia

dinâmica da poesia e da literatura contemporânea”.38 Ao longo dos oitocentos artigos

que constituem a obra, ele nos


36
« Un homme de mérite, et qui est en place, n’est jamais incommodé par sa vanité, il s’étourdit moins
du poste qu’il occupe, qu’il n’est humilié par un plus grand qu’il ne remplit pas, et dont il se croit digne :
plus capable d’inquiétude que de fierté ou de mépris pour les autres, il ne pèse qu’à soi-même. » LA
BRUYÈRE, 1998, p. 160.
37
« Je me compare quelquefois à un graveur (le plus triste des métiers de l’artiste) qui passe ses
journées devant la planche de cuivre qu’il s’applique à rendre plus exacte et plus fidèle : ainsi fais-je
pour ces images littéraires qui se succèdent ». SAINTE-BEUVE, Charles Augustin. Oeuvres
Complètes. T.1. Paris : Galllimard, 1956, p. 647.
38
« [...] former une galerie un peu irrégulière, assez complète toutefois, et propre à donner une idée
animée de la poésie et de la littérature contemporaine. » SAINTE-BEUVE, 1956, p. 649.
20

apresenta, em textos curtos, cerca de trezentos retratos de autores diversos. Assim

fazendo, efetua ao mesmo tempo uma pintura histórica e social da época.

Segundo o modelo da biografia, assim como o praticava Sainte-Beuve, Jules

Verne também se aplicou em escrever um retrato. Seu modelo foi o compositor e

dramaturgo francês Victor Massé (1822-1884). O artigo, que apareceu com o título

de Portraits d’artistes – XVIII, foi publicado na Revue des Beaux-Arts, vol. 8, 6a

tiragem, nas páginas 115 e 116, em 15 de março de 1857. O texto, encontrado

somente em 2006 por William Butcher, especialista na obra de Jules Verne,

permaneceu inédito até o ano de 2008 quando foi publicado em Jules Verne - Salon

de 1857.39 Neste livro, figuram também os sete artigos de crítica de arte escritos por

Verne, na idade de vinte e nove anos.

No artigo destinado ao compositor bretão, Jules Verne afirma: “Estas poucas

linhas não têm a pretensão de apreciar a fundo seu talento de compositor; escrevo

mais uma biografia do que uma crítica; dedico-me mais ao homem do que ao

artista”.40 No entanto, Jules Verne apresenta a carreira de Victor Massé, ressaltando

o sucesso de suas operetas cômicas e exaltando suas qualidades de compositor.

No século XIX, o retrato encontrará seu verdadeiro “espaço” no romance,

gênero no qual representará não somente personalidades da vida social, mas

também seres fictícios. Daniel Bergez observa que é com Honoré de Balzac que a
estética, a técnica e mesmo a ideologia do retrato vão se fixar de modo durável. A

partir da posição de onisciência que o narrador ocupa em relação ao personagem,

este é situado num conjunto de tipos, o que permite inscrever sua singularidade

numa generalidade inteligível. Bergez salienta que, no caso dos retratos

balzaquianos, o efeito de coerência é assegurado por duas grandes determinações:

a fisiognomonia, que estabelece um sistema de correspondência entre o caráter do

personagem e seu aspecto físico; e a relação de implicação recíproca entre o

39
BUTCHER, William. Jules Verne – Salon de 1857. Paris : Acadien, 2008, p. 30-35 40« Ces quelques
lignes n’ont pas la prétention d’apprécier à fond son talent de compositeur; je fais plutôt de la
biographie que de la critique ; je m’adresse peut-être plus à l’homme qu’à l’artiste.» VERNE, Jules.
Portraits d’artistes XVIII. In: Revue des Beaux-Arts, vol. 8, 6e livraison, 1857, p. 115-116.
21

personagem e o meio em que ele vive; um bom exemplo dessa técnica está na

descrição da Maison Vauquer e de seus pensionistas, no início de Le père Goriot41.

Ambas as determinações, somadas ainda à frenologia, ciência que tenta explicar o

caráter do indivíduo através das conformações do crânio, estarão igualmente

presentes nos retratos descritos na obra de Jules Verne.

No percurso feito acima, nota-se que, desde meados do século XVII, o retrato

já apresentava um enfraquecimento no que diz respeito ao seu caráter “genérico”,

como o que se apresenta em Plutarco, por exemplo. Paulatinamente, constitui-se

sobretudo como uma figura de pensamento situada no interior de uma descrição.

Édouard Pommier, em seu livro Théories du Portrait42, elucida-nos a respeito

da figura retrato, buscando definições nos dicionários que, segundo o autor,

começam a multiplicar-se no século XVII. Pommier, retomando Edmond Hugnet,

chama a atenção para o uso do verbo portraire, que tem o sentido de traçar e

desenhar:

É o traço que se desenha para formar o contorno de alguma coisa; desse


sentido geral deriva aquele de “representar”, “pintar”; o substantivo retrato
possui os sentidos, que se sobrepõem de alguma forma, de traçado e figura de
geometria, de forma, de figura, plano e disposição, de plano e projeto, de
imagem e representação, de imagem como semelhança43.

Detendo-se ainda ao século XVII, Pommier menciona que houve uma

especialização definitiva do termo, que se fixou pelo substantivo sobre a

representação da figura humana. Este fenômeno foi também observado na Espanha

onde a palavra retrato era definida como “a imagem imitada de uma personagem”44,

e na Itália, onde rittrato era “a figura extraída do natural”45.

41
Cf. BERGEZ, 2006, p. 88.
42
POMMIER, Édouard. Théories du portrait. De la Renaissance aux Lumières. Paris: Gallimard-NRF,
1998, p. 15.
43
«C’est le trait qu’on tire pour former le contour de quelque chose ; de ce sens général dérive celui de
représenter, peindre ; le substantif portrait a les sens, qui se superposent en quelque sorte, de tracé et
figure de géométrie, de forme, figure, plan et disposition, de plan et projet, d’image et représentation,
d’image comme ressemblance.» HUGNET, Edmond. Dictionnaire de la langue française du XVIe
siècle, Paris, 1965, p. 88-89 apud POMMIER, 1998, p. 15.
44
POMMIER, 1998, p. 16.
45
POMMIER, 1998, p. 16.
22

Na França, constata-se o mesmo tratamento. O dicionário de André Félibien,

cuja primeira edição data de 1676, parte também do verbo portraire:

O verbo portraire é uma palavra geral que se estende a tudo o que se faz
quando se deseja obter a semelhança de alguma coisa. Entretanto, não se
emprega indiferentemente a qualquer tipo de assunto. Diz-se o retrato de um
homem, ou de uma mulher, mas não se diz o retrato de um cavalo, de uma
casa ou de uma árvore.46

Pommier observa que o retrato é, desde então, e definitivamente, reservado à

imagem do homem representado tal como é, pois os dicionários que aparecerão vão

sancionar a opção de Félibien, a começar, em 1680, por aquele de Richelet, que

privilegia somente o gênero pictural: “Retrato. Esta palavra se diz dos homens

somente e falando-se de pintura. É tudo o que representa uma pessoa segundo sua

natureza com cores”.47 No Dictionnaire Universel, de Antoine Furétière, de 1690,

temos aproximadamente a mesma definição para o retrato: “representação feita de

uma pessoa tal como ela é ao natural”.48 Enfim, a Academia Francesa, no seu

primeiro dicionário, em 1694, ratifica o uso estabelecido e diferencia o retrato pictural


do retrato literário, dando ênfase à interface pictórica, visto ser a primeira entrada:

“Imagem, semelhança de uma pessoa que tenha existido, através do pincel, do buril,

do lápis etc.”49 Numa segunda entrada, define o retrato literário como se derivasse do

pictórico: “Retrato significa também a descrição que se faz de uma pessoa, tanto do

corpo como do espírito. Diz se também da descrição de todo gênero de coisas.”50

Não se deve perder de vista que o retrato

46
«Le mot portraire est un mot général qui s’étend à tout ce qu’on fait lorsqu’on veut tirer la
ressemblance de quelque chose; néanmoins on ne l’emploie pas indifférement à toutes sortes de
sujets. On dit le portrait d’un homme, ou d’une femme, mais on ne dit pas le portrait d’un cheval, d’une
maison ou d’un arbre». FÉLIBIEN, André. Des principes de l’Architecture, de la Sculpture, de la
peinture et des autres arts qui en dépendent. Avec un dictionnaire des termes propres à chacun de
ses arts. Paris: [s.éd.], 1676, p. 721-722. Disponível em http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k856621
(Última consulta 10/07/2008).
47
«Portrait. Ce mot se dit des hommes seulement et en parlant de peinture. C’est tout ce qui
représente une personne d’après nature avec des couleurs.» RICHELET, Pierre. Dictionnaire Français.
Genève : [s.éd.], 1680, p.194. Disponível em: Http://gallica.bnf.fr/ ark:/12148/bpt6k509323 Última
consulta 10/07/2008. 48 «Représentation faite d’une personne tel qu’elle est au naturel.» FURETIÈRE,
Antoine. Dictionnaire Universel. T. I, Paris : [s.éd.], 1690. Disponível em:
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/CadresFenetre?O=NUMM 50614&M=chemindefer Última consulta
10/07/2008.
49
«Image, ressemblance d’une personne ayant existé, par le moyen du pinceau, du burin, du crayon
etc.» ACADÉMIE FRANÇAISE. Le Dictionnaire de l'Académie françoise, dédié au Roy. T. 2. L-Z. Paris
: Vve J. B. Coignard et J. B. Coignard, 1694. p. 282. Disponível em:
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k50398c.image.f283.langFR# Última consulta:
02/04/2009. 50 ACADÉMIE FRANÇAISE, 1694, p. 282.
23

é feito à imagem e semelhança do modelo, como pretendem Furetière e Richelet,

mas também se constitui enquanto figura de pensamento no interior de um texto.

Para o estudo acerca da figura de pensamento retrato e dos termos correlatos,

como a charge e a caricatura, também cotejamos outros quatro diferentes

dicionários: Dupriez, Morier, Fontanier e Littré. De antemão, podemos afirmar que o

retrato é composto por duas outras figuras de pensamento: a prosopografia – parte

da descrição ligada às características físicas e exteriores do personagem; e a

etopeia – parte da descrição que se atém aos traços morais do personagem. De

acordo com a tradição retórica, estas figuras recebiam o nome de effictio e notatio,

respectivamente, como menciona Kazimierzs Kupisz em seu artigo “Ce don troublant
de la beauté; autour du portrait féminin dans les comptes amoureux”. Kupisz salienta

ainda que entre as duas figuras existe não somente uma oposição, mas

possibilidades de influência, de troca e de fusão.51

Em Les figures du discours, de Pierre Fontanier, retrato é a “descrição tanto

moral quanto física de um ser animado, real ou fictício”52. Fontanier menciona que,

frequentemente, toma-se como retrato seja a etopeia, seja a prosopografia isolada,

mas que a figura será tratada em seu dicionário como sendo a reunião dessas duas

figuras. Em Gradus – les procédés littéraires, de Bernard Dupriez, não há diferença

no que diz respeito às definições de Fontanier, embora sejam feitas observações

importantes que devem ser lembradas. Segundo Gradus, como toda descrição, o

retrato pode ser construído pelo ponto de vista de um personagem, com ou sem

identificação da parte do autor ou do leitor ou, ainda, constituir-se através das

narrações ou dos diálogos.53

Ainda analisando as informações adicionais sobre retrato, em Gradus, temos

como figura análoga a charge ou caricatura, formada quando um retrato é

apresentado sob uma luz

51
Cf. KUPISZ, Kazimierzs. Ce don troublant de la beauté; autour du portrait féminin dans les Comptes
amoureux. In. DEBREUILLE, 1988, p. 67.
52
«On appelle souvent du nom de portrait, soit l’Ethopée, soit la Prosopographie, toute seule; mais le
portrait tel que l’on entend ici, doit les réunir l’une à l’autre. C’est la description tant au moral qu’au
physique d’un être animé, réel ou fictif.» FONTANIER, Pierre. Les figures du discours. Paris:
Flammarion, 1977, p. 428. 53 Cf. DUPRIEZ, Bernard. Gradus; les procédés littéraires. Paris : Union
générale d’éditions, 1984, p. 358.
24

desfavorável, com traços carregados ou exagerados, a fim de parodiar o objeto, a

ideia ou a pessoa que está sendo descrita. Enquanto em Gradus o termo charge é

usado como sinônimo de caricatura54, no dicionário Littré vemos entradas diferentes

para os termos caricatura e charge, porém com o mesmo significado, isto é, ambas

sendo um termo específico da pintura, constituindo uma representação grotesca,


forçada e exagerada de pessoas ou acontecimentos que se quer ridicularizar.55

No que tange à definição de retrato do Dictionnaire de poétique et rhétorique,

de Henri Morier, pode-se dizer que ele somente é citado quando são feitas as

entradas dos termos prosopografia e etopeia: “Prosopografia – num retrato, a parte

da descrição referente às aparências físicas (rosto, forma, proporção do corpo)

assim como à atitude e ao comportamento de um personagem56 e etopeia como

sendo a “figura que consiste em pintar o retrato moral de um personagem histórico

ou imaginário.”57

No que concerne às definições de prosopografia e etopeia nos demais

dicionários (Dupriez, Fontanier e Littré), não há divergências e, por conta disso,

podemos generalizar e afirmar que prosopografia é a parte da descrição que se

atém aos traços físicos e exteriores de um personagem real ou fictício. Já a etopeia

é a figura que consiste em definir as características morais do personagem. O

conjunto dessas duas figuras (ou as duas figuras isoladas) pode ser chamado de

retrato. Se os traços (físicos ou morais) descritos forem exagerados, grotescos e

fugirem do que é comum à natureza daquilo ou daquele que está sendo descrito,

então diremos tratar-se de uma caricatura ou charge.

Num texto literário, a figura de pensamento retrato pode apresentar-se de

várias formas: a forma argumentativa, pode ser puramente narrativa e simplesmente

informar sobre a

existência da personagem. Porém, numa descrição, trata-se de estender, a partir de


um ponto

54
Cf. DUPRIEZ, 1984, p. 103.
55
Cf. LITTRÉ, Émile. Littré – Dictionnaire de la langue française. Paris: Hachette, 2000, p. 218. 56
«Prosopographie – dans un portrait, partie de la description consacrée aux apparences physiques
(visage, forme, proportion du corps) ainsi qu’au maintien et au comportement.» MORIER, Henri.
Dictionnaire de poétique et de réthorique. Paris: PUF, 1988, p. 968.
57
«Ethopée – Figure qui consiste à brosser le portrait moral d’un personnage historique ou imaginaire.»
MORIER, 1988, p. 469.
25
de partida, um bloco descritivo que permite lançar e/ou atualizar a presença de um

personagem, de um indivíduo imaginário que ocupará o espaço literário e agirá no

universo romanesco durante um tempo mais ou menos longo.58 Como escreve

Barthes: “No retrato, os sentidos pululam, lançados desordenadamente através de

uma forma que, no entanto, os disciplinam: essa forma é ao mesmo tempo uma

ordem retórica (o indício e o detalhe) e uma distribuição anatômica (o corpo e o

rosto)”.59 Permitir este efeito de presença implica o emprego de alguns

procedimentos de que trataremos no capítulo das análises dos retratos vernianos

mas, é preciso dizer que, se a descrição de um retrato compõe um texto, ela não é

em si o texto, e que a pausa descritiva destinada à tal personagem se inscreve na

arquitetura complexa de uma narrativa. Como observa Gérard Genette, na tentativa

de distinguir as fronteiras existentes entre a descrição e a narração, “se a descrição

marca uma fronteira da narrativa, esta é uma fronteira interior e, em suma, bastante

indecisa”.60

Todavia, na construção dos retratos, alguns processos podem ser

pontualmente marcados no nível de uma leitura atenta que, como qualquer

descrição, induz uma expectativa no leitor. Para Philippe Hamon, a descrição é o

lugar e o operador da classificação intertextual do personagem nos gêneros, classes,

espécies, família, etc., definidos em outros espaços epistemológicos, por outros

saberes e outros textos; é igualmente operador da classificação do personagem num

espaço intratextual construído no texto; a amplitude quantitativa e qualitativa de uma

descrição serve também para definir o lugar do personagem numa hierarquia, aquela

da obra inteira; personagens principais e secundários, de primeiro ou de segundo

planos, personagens-heróis ou personagens-utilidade, etc61. Hamon observa que,

com frequência, é este coeficiente de esquematização variável na técnica do retrato,

ou da
descrição do meio que, no texto clássico, serve para indicar o lugar funcional do
personagem,

58
Cf. MIRAUX, Jean Philippe. Le portrait littéraire. Paris: Hachette, 2003, p. 47.
59
«Dans le portrait, les sens fourmillent, jetés à la volée à travers une forme qui cependant les
discipline: cette forme est à la fois un ordre réthorique (l’annonce et le détail) et une distribution
anatomique (le corps et le visage).» BARTHES, Roland. S-Z. Paris: Seuil, 1970, p. 67.
60
«Si la description marque une frontière du récit, c’est bien une frontière intérieure et somme toute
assez indécise» GENETTE, Gérard. Figures II. Paris: Seuil, 1969, p. 61.
61
Cf. HAMON, Philippe. Du descriptif. Paris: Hachette, 1993, p. 111.
26

seu estatuto de principal ou secundário; quanto mais o personagem é o motor de

descrições extensas, mais ele é importante na trama.

Philippe Hamon menciona em L’Analyse du descriptif que, no momento em

que o leitor se depara com uma descrição, “ele aguarda a declinação de um estoque

lexical, de um paradigma de palavras latente. Ele espera por termos”. Hamon explica

que “o sistema descritivo é, então, explicação, desdobramento de uma lista na

memória do leitor”.62 Sendo o retrato um desdobramento de itens lexicais que dão a

informar sobre o personagem, devemos nos ater à construção dessa figura e revelar

as bases precisas e o molde suficientemente rígido aos quais ele obedece.

Há, verdadeiramente, um consenso no que diz respeito à carpintaria de um

retrato. A Idade Média herdou da tradição retórica antiga a tendência de classificar

os seres humanos em categorias. O elemento descritivo era conhecido como o

principal da arte da palavra; a estética da construção descritiva de um herói estava

submissa às correntes filosóficas da época. Se a arte era imitação da natureza, o

poeta deveria seguir a ordem natural. E já que Deus, como se acreditava, criou o

homem começando pela cabeça, a descrição deveria seguir a mesma ordem:

começar pela cabeça, passar pelo tronco e terminar pela descrição das pernas.

Hamon menciona que esse molde estereotipado é característico da arquitetura do

retrato literário e que o “efeito-personagem” num texto é uma construção de vários

sistemas descritivos justapostos.63


Primeiramente, há a apreciação da altura e da visão geral do corpo do

indivíduo; os elementos do rosto são em seguida detalhados: os olhos (com muita

frequência), a cor, a tez, os cabelos, o nariz, a boca, descendo metodicamente até

os membros inferiores. Esta técnica de enumeração sistemática das partes do corpo

humano, desde a cabeça até os pés, responde

62
«Il attend la déclinaison d’un stock lexical, d’un paradigme des mots latent. Il attend des termes. Le
système descriptif est alors explication, dépli d’une liste dans la mémoire du lecteur.» HAMON,
Philippe. L’analyse du descriptif. Paris: Hachette, 1981, p. 44.
63
«Autres types d’ordonnancements stéréotypés: du près au lointain (pour les paysages), du dehors au
dedans (pour les bâtiments), du physique au moral, du haut en bas (pour les personnages et pour les
portraits).» Cf. HAMON, 1993, p. 139.
27

aos princípios da retórica epidídica e, mais precisamente, à arte do retrato laudativo.

Krystyna Antkowiak observa, num artigo em que compara dois retratos de François I,

escritos por Anne de Graville (1490-1521) e Marguerite de Navarre (1492-1549) que,

para ser mais completo, o retrato deve ainda ser seguido da descrição das roupas e

assim, carregada de detalhes, a descriptio personae se tornaria estática,

convencional e impessoal.64 As análises de Antkowiak demonstram que no retrato

feito por Anne de Graville, há um interesse maior pelo aspecto exterior; é pelo retrato

físico que ela inicia a apresentação do rei François I. Porém, tal descrição não teria

nada de particular se ela não tivesse evocado um pequeno detalhe que constituiria o

traço individual do rei: o longo nariz. Ao mesmo tempo, este traço de individualidade

no retrato o distancia de uma tradição medieval e o aproxima da tradição antiga,

retomada no Renascimento, que tendia a delimitar a individualidade pela evocação

de detalhes sutis. Contrariamente à Anne de Graville, Marguerite de Navarre

preocupa-se sobretudo com as qualidades morais e espirituais do modelo, exaltando

suas virtudes.

Ora, essa diferença de interpretação se deve à seleção e à escolha dos

elementos julgados mais significativos por cada uma das escritoras. As observações
trazidas por Antkowiak sobre o retrato de François I nos fazem refletir sobre o

enriquecimento que o Renascimento trouxe à tradição do retrato literário. A

Antiguidade, selecionando elementos gerais, visava delimitar o que era essencial no

modelo. A Idade Média, insistindo sobre a completude do retrato, acaba por

caracterizá-lo como convencional e impessoal. O Renascimento, retornando à

tradição antiga do retrato composto por traços selecionados e mais característicos,

enriqueceu-o, fazendo dele um pretexto para apresentar não somente a

personalidade do modelo, mas deixando transparecer também aquela do seu autor,

através das escolhas feitas e trazidas para a descrição.

Portanto, de um modo geral, poderíamos definir o retrato literário como um conjunto

de informações sobre um personagem, real ou fictício. Ele pode moldar-se sob a


forma da

64
Cf. ANTKOWIAK, Krystyna. Portrait de François I er d’après Marguerite de Navarre et Anne de
Graville. In: DEBREUILLE, 1988, p. 78.
28

prosopografia, da etopeia, aparecer num diálogo, num monólogo, numa narração de

ações ou no momento de uma descrição de habitat. O retrato pode aparecer tanto

no discurso de um historiador como naquele de um dramaturgo ou de um

romancista, em textos argumentativos ou literários. Concluímos que o retrato literário

é um texto, ou um lugar do texto caracterizado por uma densidade de informações

que habilitam o leitor a construir mentalmente a imagem de um personagem. Numa

obra romanesca, o retrato pertence, fundamentalmente, à economia geral da obra,

ao espaço em que é inscrito e ligado à intriga, tanto no nível da sua estrutura quanto

no nível das intenções do autor e das concepções de mundo que este deseja

transmitir: a elaboração do retrato implica, sobretudo, dimensões estéticas, mas

também filosóficas, morais e ideológicas.

Será sob esse prisma que o retrato constituirá uma temática preponderante e

recorrente na obra de Jules Verne, que pretende ser uma verdadeira enciclopédia. O
título “Viagens extraordinárias” dado ao conjunto da obra verniana, leva-nos a

pensar no retrato literário inscrito num relato de viagem. Esse dado delimita nossas

análises já que, nesse âmbito, o retrato será o resultado da visão de um explorador

ou cientista que constata por si mesmo aquilo que vê. Assim, o retrato fará parte de

uma espécie de catálogo ordenado, de uma forma de taxonomia de descobertas

efetuadas. Portanto, o retrato deverá ser preciso, claro, bem traçado e, seguindo

objetivos nitidamente pedagógicos, mostrar aquele que está distante do continente

europeu – indivíduos frequentemente caracterizados como selvagens, de culturas e

costumes exóticos – às pessoas que devem aderir à exatidão, à autenticidade, à

realidade quase tangível da descrição feita. Assim, podemos falar de função

etnográfico-pedagógica dos retratos literários presentes em relatos de viagens e nos

romances de Jules Verne.

Além disso, convém considerar que o estudo do retrato só se faz eficaz

quando inscrito no seio de uma obra, considerada como uma totalidade em

funcionamento. Propomo-nos, assim, fundar nossa análise no estudo das funções

dos retratos de brancos e selvagens nos romances de Jules Verne mencionados na

Introdução desse trabalho. Antes, parece-nos

29

significativo refletir sobre o gênero retrato em pintura, a fim de estabelecer relações

com sua vertente literária. Seguindo este caminho, reservamos duas problemáticas

que envolvem o retrato pictural: sua relação com a invenção das artes visuais e a

metonímia rosto/corpo.

2.2 - Interface pictural

Ainda que num sentido moderno a palavra retrato evoque a representação de

uma figura individual ou de um grupo, elaborada a partir de um modelo vivo,


documentos, fotografias, ou com o auxílio da memória, o retrato tem seu sentido

primeiro ligado à ideia de mimese, como atestam todos os dicionaristas

anteriormente citados.

Na pintura, o retrato se afirma como gênero autônomo no século XIV, após ter

sido utilizado no Egito, no mundo grego e na sociedade romana, com finalidades

diversas: comemorativa, religiosa, funerária, etc. Desde então, o retrato passou a

ocupar um lugar de destaque na arte europeia, atravessando diferentes escolas e

estilos artísticos, constituindo-se como um filão fartamente explorado por artistas de

todas as épocas.

Porém, se a vertente literária do retrato não apresenta muitas divergências e

incertezas em sua definição e função, o mesmo não acontece com sua interface em

pintura. Mesmo a criação do retrato pictural é confundida com as origens da pintura.

Plínio, o velho conta que, na origem da pintura, houve circunscrição do corpo. O

homem teria observado sua sombra e teria definido o contorno: a pintura começou

com a observação de um fenômeno natural que o levou a captar sua forma por um

traço:

A questão das origens da pintura é obscura e não entra no plano desta obra. Os
egípcios declaram que ela foi inventada por eles seis mil anos antes de existir
na Grécia: vã pretensão, é óbvio. Quanto aos gregos, uns dizem que o
princípio foi descoberto em Sicião, outros, em Corinto, e todos que ele consistiu
em traçar com linhas o contorno de uma sombra humana: esta foi, portanto, a
primeira etapa.65

65
«La question des origines de la peinture est obscure et n’entre pas dans le plan de cet ouvrage. Les
Égyptiens déclarent qu’elle a été inventée chez eux six mille ans avant de passer en Grèce : vaine
prétention, c’est bien évident. Quant aux Grecs, les uns disent que le principe a été découvert à
Sycione, les autres à Corinthe, et tous qu’il a consisté à tracer grâce à des lignes, le contour d’une
ombre humaine : ce fut donc là la première étape. » PLINE L’ANCIEN. Histoire Naturelle. Livre XXXV;
Ch. XV. trad. M.É. Littré. Paris: Firmin-Didot, 1877, [s.p.]. Disponível em
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k2820810 Última consulta 20/07/2008.
30

No capítulo CLI de sua História Natural, Plínio reporta que, na origem da

modelagem com argila e da escultura, houve retrato:

O oleiro Butades de Sicião foi o primeiro a descobrir a arte de modelar retratos


em argila [...] Isso aconteceu em Corinto e ele deve sua invenção a sua filha
que estava apaixonada por um rapaz; este, partindo para o estrangeiro, teve a
sombra do seu rosto projetada na parede pela luz de uma lamparina e
contornada com uma linha por ela; seu pai aplicou argila sobre o esboço, fez
um relevo que pôs a endurecer no fogo com outros vasos de barro.66

Ora, a partir da lenda contada por Plínio, notamos que o retrato do “noivo” da filha de

Butades parece dar uma identidade à origem anônima da pintura. A dupla função

conferida a esta representação inaugural afeta o objetivo da pintura: na ausência do

ser amado, a filha, graças a seu pai, contemplará o retrato do jovem, sem que

nenhuma fraqueza de memória venha furtá-lo de sua lembrança. No entanto, é

preciso notar que a lenda fala de um retrato fixado a partir da sombra e isso leva a

pensar na precariedade de todo retrato, na sua qualidade imaterial e fugidia, na

ilusão da imagem que o constitui. No artigo “Sou, então, pintura: em torno de

auto-retratos de Iberê Camargo”, Lúcia Teixeira trata dessa precariedade do retrato:

A sombra é já a ausência da forma original, seu reflexo pelo avesso, sua


contraface escura, e é também sua submissão ao tempo e à memória. Se foi
da sombra que se fez o retrato, quem é esse retratado? Que homem pode ter
saído dessa mancha escura na parede, e esse homem que daí sai, como traço
e como modelagem, que poder há de guardar? Acalma o coração solitário da
jovem, perpetua-se como presença, amortece e reacende a um só tempo o
desejo de um corpo, de uma presença? Mas se é só de ilusões que falamos
aqui, como partir da lenda para pensar na concreta existência da pintura, em
seus concretos efeitos de cor e luz, em seus concretos arranjos materiais?67

O retrato se insurge contra a ausência e se afirma como a contraparte do

esquecimento, ganhando poder de evocação. A esse título, diversos

pesquisadores68 mencionam os estudos de Leon Battista Alberti que, desde 1435,

abordando a questão da utilidade da pintura, toma

como exemplo o retrato:

66
«Le potier Butadès de Sycione découvrit le premier l’art de modeler des portraits en argile [...] cela se
passait à Corinthe et il dut son invention à sa fille qui était amoureuse d’un jeune homme; celui-ci
partant pour l’étranger, elle entoura d’une ligne l’ombre de son visage projetée sur le mur par la
lumière d’une lanterne ; son père appliqua de l’argile sur l’esquisse, en fit un relief qu’il mit à durcir au
feu avec le reste de ses poteries. » PLINE L’ANCIEN, 1877, ch. CLI, [s.p.].
67
TEIXEIRA, Lucia. Sou, então, pintura: em torno de auto-retratos de Iberê Camargo. Alea [online].
2005, vol.7, n.1, p. 123-138. Disponível em: http://www.scielo.br Última consulta: 18/10/2009. 68 Cf.
POMMIER, 1998, p. 19.
31
Estas maneiras de estudar poderão, provavelmente, ser muito difíceis para os
jovens; assim, quero demonstrar-lhes que a pintura não é indigna a que nos
dediquemos com todo o nosso zelo e toda nossa paixão. Na verdade, não
possui ela em si mesma um poder divino, esta pintura que, entre amigos, por
assim dizer, torna presente o ausente e, além disso, pode, depois de muitos
séculos, mostrar os mortos aos vivos, de tal forma que eles sejam
reconhecidos, para a grande admiração do homem de arte e deleite dos
espectadores?69

O retrato vem, portanto, legitimar a pintura: retrato do ausente, vivo mostrado a

outros vivos, retrato de um desaparecido, mortos mostrados aos vivos. O retrato

compensa, ao mesmo tempo, a ausência e o esquecimento.

Demonstrada a utilidade da pintura, alguns parágrafos adiante, Alberti institui (contra

a lenda de Butades) Narciso como o inventor da pintura: “Tenho o hábito de dizer,

entre meus familiares, que o inventor da pintura deve ser esse Narciso que foi

metamorfoseado em flor. O que é pintar, realmente, se não apreender, com a ajuda

da arte, toda a superfície da água.”70

Refletindo sobre a ideia de Alberti - o reflexo de Narciso se sobrepõe à sombra do

corpo anônimo da lenda de Butades -, diríamos que o retrato é a origem e a

finalidade da prática pictural tendo como objetivo transmitir a imagem de um corpo.

Porém, aceitar o retrato como origem das artes deixa margem para diversas vias de

investigação. Destaca-se o vínculo que une rosto e corpo nessa prática artística: é

através da delineação do corpo que a pintura chega à materialidade do objeto. Essa

reflexão torna-se capital se considerarmos as questões do estatuto da

representação da silhueta, ou seja, do corpo delineado; daquele da representação

do perfil do modelo, ou seja, do rosto delineado. Quais são os fatores que precipitam

a representação do corpo em retrato?

Considerando o retrato em pintura como sendo a representação de uma pessoa que

tenha verdadeiramente existido, para retomar a definição que os dicionários


oferecem, o
69
«Ces moyens d’étudier pourront, sans doute, paraître trop laborieux aux jeunes gens; aussi veux-je
leur démontrer que la peinture n’est pas indigne que nous nous y appliquions avec tout notre zèle et
toute notre ardeur. En effet ne possède-t-elle pas en elle-même comme une force divine, cette peinture
qui, entre amis, rend pour ainsi dire présent l’absent lui-même, et, qui plus est, peut, après bien des
siècles, montrer les morts aux vivants, de telle façon qu’ils sont reconnus, à la grande admiration de
l’homme d’art et au grand plaisir des spectateurs ? » ALBERTI, Leon Battista. De la peinture. Trad.
Claudius Popelin. Paris: A. Lévy, 1869, p. 131.
Disponível em http://gallica.bnf.fr/ark/12148/bptk65009h/f137 Última consulta: 21/07/2008 70 «J’ai
coutume de dire, parmi mes familiers, que l’inventeur de la peinture doit être ce Narcisse qui fut
métamorphosé en fleur. Qu’est-ce qu’est peindre, en effet, si ce n’est saisir, à l’aide de l’art, toute la
surface d’une onde?» ALBERTI, 1869, p. 133.
32

problema da identificação do retratado e os critérios que autorizam essa operação é

fundamental. Para tal fim, alguns pintores inscrevem o nome e a idade do modelo

representado no interior do espaço pintado, como vemos no retrato de grupo Thomas

More e sua família (1527), de Hans Holbein (1497-1543) onde, sobre cada indivíduo

retratado, vemos escrito o nome do membro da família, seguido de sua idade:

Hans Holbein. Thomas More e sua família.


Óleo sobre tela, 1527.
Museu de arte da Basiléia.
(Detalhe)

Esta prática, comum no Renascimento, é um indício que serve para identificar

uma pintura como pertencente ao gênero retrato71. Retomaremos esse dado quando

tratarmos das semelhanças entre as interfaces literária e pictural do retrato. No

entanto, diversos são os quadros identificados como retratos, ainda que pesquisas

históricas não permitam dar certeza

71
Cf. DUBUS, Pascale. L’art en perspective - Qu’est-ce qu’un portrait ? Paris : L’Insolite, 2006, p. 37.
33

acerca da identidade dos retratados. É o caso de Retrato de um cavaleiro (1531), de

Bartholomaüs Bruyn (1493-1555):

Bartholomaüs Bruyn. Retrato de um cavaleiro.


Óleo sobre madeira, 1531.
Museu de Viena.

Contrariamente, algumas obras não são classificadas na categoria “retrato”

mesmo que especialistas tenham identificado os modelos pintados. A criança com

pião (1736), de Chardin (1699-1779) é exemplar a esse respeito. O modelo, que

seria filho do Senhor Godefroy, joalheiro e amador em pintura, figuraria numa tela

classificada como uma cena de gênero72:


Jean-Baptiste S. Chardin. A criança com pião.
Óleo sobre tela, 1736.
Museu do Louvre, Paris.

72
Cf. ROSEMBERG, Pierre (dir.). Chardin. Paris: Éditions de la Réunion de Musées Nationaux, 1999,
[s.p.].
34

Situado no limite entre o retrato e o rosto, O retrato de Denis Diderot (1769)

confeccionado por Fragonard (1732-1806) é peça recorrente no que diz respeito às

reflexões que se fazem sobre retrato em pintura. Ora qualificado como figure de

fantaisie ora como retrato, a obra pertenceria a uma terceira categoria: o retrato

fantasia, uma vez que os olhos castanhos do modelo tornaram-se azuis, segundo as

pinceladas do pintor73. Esta categoria de retrato é definida pelo próprio Diderot na

Encyclopédie: “um pintor faz um retrato de fantasia quando ele não é segundo o

modelo”74:

Jean Honoré Fragonard. Retrato de Denis Diderot.


Óleo sobre tela, 1769.
Museu do Louvre, Paris.
Na esteira dessas observações, duas constatações se impõem. Por um lado,

não podemos nos satisfazer com as definições que dão o retrato como a

representação de alguém que tenha realmente existido. Faz-se necessário, então,

determinar quais são os critérios que nos permitem afirmar, diante de uma produção

artística, que se trata de um retrato. Por outro lado, observa-se a que ponto as

categorias evocadas deixam turva a realidade dos objetos representados: como um

corpo perfeitamente identificado pode transmutar-se em personagem se não pelo

abandono de sua identidade? A perda ou a suspensão da identidade do indivíduo

desembocam, inevitavelmente, numa pesquisa sobre o estatuto do modelo. Não é de

modo inocente que os catálogos consultados apresentam, no caso em que o modelo

foi identificado,

73
Cf. ROSEMBERG, Pierre (dir.). Fragonard. Paris : Éditions de la Réunion de Musées Nationaux,
74
1987, [s.p.]. «Un peintre fait un portrait de fantaisie quand il n’est pas d’après le modèle » Cf.
DIDEROT, Denis. Encyclopédie ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers. Tome
treizième. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k50545b. Última consulta: 27/07/2008.

35

duas entradas: o título da obra e o patrônimo do modelo que posou para o quadro. O

exemplo dos retratos do filho de Édouard Manet é probatório. De A criança com

espada (1861) ao Almoço no atelier (1868), passando por A criança com bolhas de

sabão (1867) os catálogos registram que se trata de Léon Manet, filho do pintor.75
Édouard Manet. A criança com espada.
Óleo sobre tela, 1861.
Museu Metropolitan – Nova Iorque.

Édouard Manet. Almoço no atelier.


Óleo sobre tela, 1868.
Nova Pinacoteca, Munique.

75
Cf. CACHIN, Françoise (dir.). Manet. Paris: Éditions de la Réunion de Musées Nationaux, 1983,
[s.p.].
36
Édouard Manet. A c riança e bolhas de sabão.
Óleo sobre tela, 1867.
Museu Calouste Gulbenkian, Lisboa.

A operação pela qual o singular (a pessoa) passa ao geral (a figura) nos autoriza
a

efetuar uma redefinição do retrato, deduzindo que um retrato é a representação de

uma pessoa cuja identidade é objeto da obra.

Na ausência da inscrição mencionando a identidade do retratado, Pascal Dubus

tenta desenvolver três critérios que nos autorizariam a ver numa obra um retrato76. O

primeiro deles diz respeito ao modelo. Este deve constituir o único objeto da

representação: não se deve perceber nenhum atributo que permita identificar um

personagem mitológico ou bíblico, nenhum elemento que faria do quadro uma

alegoria; o segundo critério trata da postura gestual do modelo: o corpo

representado, seja por um enquadramento específico ou por uma postura que

sugere a pose, mostra que a intenção do artista e do modelo era aquela do retrato; e

o terceiro e último critério fala do rosto: seus traços devem ser bem individualizados,

característicos de uma pessoa singular, opostos a um tipo humano ideal.

Elaborando esses três critérios, Dubus mostra-se consciente da precariedade

em delimitá-los, invalidando-os quando lança as perguntas: o que pensar do retrato


alegórico,

76
Cf. DUBUS, 2006, p. 20.
37

como avaliar a pose gestual e o que fazer dos retratos que desprezam

assemelharem-se ao modelo?77

Constata-se, através dessa tentativa de definição, o quanto os critérios são

complexos. Às vezes, as produções artísticas tendem a escapar das categorias,

sendo-lhes pré-existentes ou não. Retrato de rapaz como São Sebastião (1533), de

Agnolo Bronzino (1503-1572), é um exemplo :

Agnolo Bronzino. Retrato de rapaz como São Sebastião.


Óleo sobre madeira, 1533.
Coleção Thyssen-Bornemisza, Madri.

A tela mostra que o enquadramento do corpo e os atributos deixam supor que

se trata de um São Sebastião. Contudo, o tratamento dos traços do rosto realça a

intenção de retratar um modelo. Talvez, no caso desta tela, o modelo tenha

escolhido ser pintado como São Sebastião e, mesmo assim, o quadro não se deixa

reduzir a um retrato alegórico. A partir desse exemplo, poderíamos afirmar que a

obra não teria mais por missão imitar fielmente o modelo, mas propor uma efígie
exemplar: o retrato em pintura contribuiria para forjar a identidade de um modelo.

Na tentativa de estabelecer uma tipologia do retrato segundo o

enquadramento, como propôs Dubus em um de seus critérios, vemos a dificuldade

do pesquisador diante das

77
Cf. DUBUS, 2006, p. 33.
38

ferramentas colocadas à disposição pelos especialistas do retrato: em geral, somente

o busto e o retrato de corpo inteiro (portrait en pied) são isolados no conjunto de

possibilidades que o retrato oferece. Porém, a gama de retratos existentes

mostra-nos que a grande maioria deles apresenta enquadramentos que vão desde o

retrato cortado na altura dos ombros até aquele cortado na cintura. O corpo do

retratado, apesar de deixar pistas, é escamoteado aos olhos do espectador. O rosto

pintado pertence a um corpo do qual notamos, com frequência, a presença dos

ombros, dos braços. O rosto é, portanto, a parte do corpo que veicula a identidade do

retratado, desde que ele seja quase uma metonímia corporal.

Diante da importância conferida ao rosto, refletimos sobre seu estatuto e sobre

sua fabricação cultural. Falamos do rosto, até agora, como se essa parte do corpo

comportasse um senso comum, fosse algo universal. Este pressuposto pode

produzir efeitos perversos na recepção das obras, conduzindo a uma leitura

anacrônica dos rostos pintados. O rosto representado numa tela é reduzido a uma

imagem tal como vê um espectador, segundo os hábitos visuais ancorados no seu

tempo. O espectador acostumado a interpretar as expressões de seus

contemporâneos, projeta suas experiências sobre as obras do passado. Queremos

dizer que, para uma reflexão sobre retrato, deve-se levar em conta que rosto e corpo

são construções culturais, invenções que se renovam sem cessar.

Se os retratos em busto oferecem poucos indícios da postura gestual do


corpo, em compensação, temos os enquadramentos até a cintura, o quadril, os

joelhos, as coxas, as panturrilhas e o corpo inteiro que se mostram ricos em

informação. Observa-se que, num retrato de corpo inteiro, esteja o modelo sentado

ou de pé, mostram-se as roupas que, portanto, transformam o corpo dos retratados

em corpos sociais. As vestimentas e os objetos representados podem indicar desde

a posição que o modelo ocupa nas diversas hierarquias até sua profissão e

nacionalidade. Quanto mais o corpo é mostrado, graças aos enquadramentos mais

amplos, mais ele é trabalhado pelo social; a representação dos traços singulares do

rosto

39

permitiriam que o corpo não caísse na indistinção: se, em alguns casos, as

vestimentas conduzem à uniformidade dos corpos, o rosto afirma a singularidade do

corpo representado.

2.3 – Interseção entre as interfaces literária e pictural do retrato

Anteriormente, expusemos um percurso da conceituação das interfaces literária e

pictural do retrato. Percebemos que a tentativa de forjar critérios de definição nem

sempre é satisfatória e gera, muitas vezes, mais problemas que soluções.

Nesta dissertação, trata-se de questionarmos a respeito da possível interseção dos

elementos que pertencem simultaneamente aos dois conjuntos, isto é, das

interseções existentes entre as interfaces literária e pictural do retrato. Para isso,

quatro aspectos foram selecionados: dois concernentes à função e outros dois à

construção do retrato.

O primeiro aspecto, que surge da interseção entre esses conjuntos, é a noção

de mimese. Esse conceito que designa a ação ou faculdade de imitar, cópia,

reprodução ou representação da natureza, que constitui, na filosofia aristotélica, o


fundamento de toda a arte, como afirma Louis Marin no capítulo intitulado “Mimésis

et description” do livro De la représentation, está no centro da definição de retrato.78

Como o autor observa, “o misterioso prazer da mimese pictural se realizaria na

representação”.79 Essencialmente, a questão do retrato, pictural ou literário, está

ligada àquela filosófica, da representação.

O segundo aspecto relacionado à função do retrato é derivado da noção da

mimese, mas se atém ao objetivo dessa representação: mostrar aos espectadores

ou leitores o modelo ou personagem reproduzido aproximadamente conforme a

realidade, visando dar presença ao que está ausente. Este segundo ponto da

interseção entre as artes literária e pictórica informa, sobretudo, a função dos

retratos num relato de viagem, como por exemplo nas “Viagens extraordinárias” de

Jules Verne. A escrita do retrato, nesse âmbito, suscita o interesse e faz

surgir diante dos olhos do leitor-espectador indivíduos desconhecidos. Será através


dos

78
Cf. MARIN, Louis. De la représentation. Paris: Seuil-Gallimard, 1994, p. 254.
79
“Le mystérieux plaisir de la mimésis picturale s’accomplirait dans la représentation.” MARIN, 1994, p.
254.
40

retratos dos personagens que Jules Verne, seguindo critérios pedagógicos, diminuirá

a distância entre o leitor europeu e os mundos distantes nos quais os seus

personagens vivem ou transitam; assim como o retrato em pintura, o retrato literário

apresenta-se como a ferramenta capaz de tornar presente o que está ausente.

Numa visada mais prática, o terceiro ponto em comum entre as duas

interfaces diz respeito a elementos que fazem parte da arquitetura do retrato;

trata-se da frequência com que aparecem o nome e a idade do personagem no

interior do bloco descritivo que, num paralelo estabelecido com a pintura, poderia ser

identificado com a tela, o espaço pintado, como mostramos anteriormente. O que na

pintura funcionaria como um dos critérios de reconhecimento de uma obra como


pertencente ao gênero retrato, nos retratos literários dos romances de Jules Verne

será menção recorrente.

O quarto e último aspecto da interseção entre as artes diz respeito à atenção

que se dá ao rosto do modelo ou do personagem. Se um romancista faz de uma

passagem textual o retrato de um de seus personagens ou se o pintor, num quadro

no qual figuram vários modelos em que a representação de cada um é um retrato, é

o indivíduo como tal que aparece, ou, ao menos, indica-se uma tentativa de

individuação de personagens-tipos, como veremos em Jules Verne.

Mesmo que se trate de um personagem-tipo, o foco na descrição do rosto é

temática preponderante. Nos romances de Verne, é no rosto dos personagens que

se cumula um dado importante: a sua essência humana. O retrato deverá refletir o

personagem em si e, por extensão, indicar previamente suas ações, enquanto os

traços do rosto devem permitir observar os reflexos do pensamento e seus

sentimentos. Veremos que Jules Verne, frequentemente fazendo uso da

fisiognomonia, dá-nos respaldo para falar deste quarto elemento da interseção entre

o retrato literário e o pictural.

Os quatro elementos acima descritos aparecerão como dados que

exploraremos ao longo da dissertação, porém, com mais ênfase no capítulo das

análises dos retratos dos

41

personagens brancos e selvagens das obras citadas, sabendo que rosto e corpo são

“objetos” construídos culturalmente e que, forçosamente, Verne manifesta uma

imagem da alteridade nos retratos. No capítulo seguinte trataremos das ferramentas

que o escritor usa para a construção dos retratos nos seus romances. Para essa

discussão, utilizaremos basicamente os conceitos de interdiscurso e intertexto

sintetizados por Dominique Maingueneau e Patrick Charaudeau. Apresentaremos as


fontes textuais e icônicas às quais Verne teria recorrido para construir os retratos de

seus personagens. Estabeleceremos relações do discurso literário com o discurso

científico através de textos que circulavam à época, endossando a hipótese de que

retratos são construções determinadas por uma certa visão de mundo ou, na

terminologia de Pierre Bourdieu, por um habitus.

42

3 - A PESQUISA VERNIANA PARA A COMPOSIÇÃO DOS RETRATOS Mesmo

que se intente clarificar as relações e definições em pintura ou em literatura, os

“objetos” rosto e corpo, cuja importância foi sublinhada no capítulo anterior, ainda

suscitam dúvidas, sobretudo quando se inserem nas tradições ocidentais.

O rosto tem o interior de sua história atravessado por mitos, alegorias e

narrativas que impregnaram a consciência e o imaginário ocidentais. Para citar

apenas alguns: na tradição pagã, os mitos de Narciso e da Medusa evocam o rosto;

na tradição cristã, acredita-se que o santo sudário guarda as impressões do rosto do

Cristo. A passagem bíblica que trata do véu de Verônica também faz alusão a esta

parte do corpo; na tradição literária, tem-se o célebre romance O retrato de Dorian

Gray, de Oscar Wilde. Numa visão mais contemporânea, a importância do rosto,

sobretudo em relação a questões identitárias, é vista em programas de televisão de

raiz americana que tratam, aparentemente com objetivos humanistas, da

reformatação de rostos de pessoas desconhecidas segundo os cânones da beleza

californiana.

Queremos mostrar nessas breves reflexões que, desde os mitos fundadores

que giram em torno da questão à sua remodelagem ideológica, longe de ser um

fator inato, o rosto e, por extensão, o corpo, são pensados como sendo construções

simbólicas e, sobretudo, culturais. No presente capítulo, temos o objetivo de mostrar

como Jules Verne dialoga com discursos, científicos ou não, que circulavam na sua
época, a fim de construir os retratos literários que povoam seus romances.

Utilizaremos os conceitos de relações transtextuais, de Gérard Genette, e de

interdiscurso e intertexto, sintetizados recentemente por Dominique Maingueneau e

Patrick Charaudeau no Dicionário de análise do discurso, para falar do diálogo que

podemos estabelecer entre os textos de Lavater, Gall, Gobineau e Darwin e os

textos veiculados no magazine Le Tour du monde com aqueles de Jules Verne, ou

seja, as relações interdiscursivas entre o discurso literário e o científico.

43

3.1- Intertexto e interdiscurso: o trabalho da citação e a questão

documental Independentemente da questão dos retratos, um aspecto interessante

nos romances de Jules Verne, relativo à utilização e naturalização de documentos e

discursos na mimese, é o que diz respeito à citação de viajantes e dos discursos

científicos que circulavam na sua época. No entanto, antes de entrarmos

efetivamente na questão dos diálogos que podemos estabelecer na leitura dos

retratos literários em Jules Verne, abordaremos o intertexto num sentido mais amplo,

relacionando-o com os romances de Verne, no geral. Sem pretendermos realizar um

resumo do que hoje é a teoria da intertextualidade, antes de tratarmos dos conceitos

de intertexto e interdiscurso, parece-nos importante apresentar alguns traços gerais

do que entendemos pelo conceito da citação e avaliar até que ponto podemos falar

dele na obra verniana. Para uma breve panorâmica da citação, convocamos

algumas elucidações que Gérard Genette nos sugere, tendo no horizonte o corpus

romanesco que nos interessa.

Segundo Genette80, os textos podem ser lidos, do ponto de vista dos vários contatos

que eles estabelecem com outros textos, segundo cinco grandes tipos de relações

transtextuais – designação que ele dá ao fenômeno no seu conjunto: 1) a

intertextualidade que é, em última análise, a presença efetiva de um texto em outro,


se subdivide em três ramificações; a sua forma mais explícita e mais literal é a

prática tradicional da citação, com ou sem aspas e tendo ou não referência precisa;

a forma menos precisa e menos canônica dessa modalidade que, de um ponto de

vista valorativo, quase sempre depreciativo, é o plágio, ou seja, um uso literal, mas

não declarado; e a forma menos literal e a mais difusa é a alusão – enunciado cuja

plena compreensão só pode ser atingida quando se entende a sua relação com outro

enunciado; 2) o segundo tipo é constituído pela relação normalmente menos explícita

e mais distante que o texto mantém com seu paratexto, ou seja, os sinais acessórios

que o relacionam com os co-textos e contextos – desde o pacto de leitura à

referência a gêneros: títulos,

80
Cf. GENETTE, Gérard. Palimpsestes. Paris: Seuil, 1982, p. 7-19.
44

subtítulos, prefácios, notas marginais, epígrafes, ilustrações, títulos de capítulos,

comentários de estudiosos ou ainda textos preparatórios do próprio autor; 3) o

terceiro tipo é o da metatextualidade, designação que usa para o caso do

“comentário”, processo de relacionamento textual que une um texto a outro, do qual

fala, sem ter necessariamente que citá-lo ou nomeá-lo; 4) o quarto tipo de

transtextualidade considerada é a de hipertextualidade, que une um texto B,

designado pelo crítico francês hipertexto, a um texto A que ele chama de hipotexto.

Hipertexto, em outras palavras, é todo texto derivado de um texto anterior seja

através de uma transformação simples ou de uma transformação indireta, a imitação.

Não sendo essa relação claramente de comentário, o hipertexto distingue-se do

metatexto pelo fato de o texto B ser uma transformação do texto A81; 5) o último tipo

a considerar nesta perspectiva é a arquitextualidade, ou seja, a relação do texto com

as categorias gerais ou transcendentes que formam modelos dentro dos quais os

textos singulares se inserem.


Genette menciona ainda que, para a abordagem dos cinco tipos de

transtextualidade, duas precisões devem ser feitas. A primeira é que não se deve

considerá-los como classes estanques, sem diálogo entre si. Por exemplo, a

arquitextualidade genérica se constitui historicamente pela imitação e, portanto

hipertextualidade; o pertencimento arquitextual de uma obra é declarado por indícios

paratextuais ou ainda, quando o hipertexto tem valor de comentário (metatexto). A

segunda observação feita por Genette é que a transtextualidade deve ser

considerada, não como classe de textos, mas como aspectos da textualidade. Essas

observações serão produtivas na abordagem do corpus proposto já que, por vezes,

estaremos diante de exemplos que se coadunam com mais de uma categoria

transtextual ou, ao contrário, uma categoria transtextual que não dá conta da

integralidade do exemplo.

81
Genette parece reservar os conceitos de hipotexto e hipertexto apenas às relações entre obras.
Assim considera Ulisses, de Joyce e a Eneida, de Virgílio hipertextos da Odisséia de Homero
(GENETTE, 1982, p.13). As Confissões, de Rousseau, como hipertexto das Confissões de Santo
Agostinho (GENETTE, 1982, p. 18). Para a produtividade desta pesquisa, usamos os dois conceitos
não se referindo a obras como um todo, mas em relação a passagens, excertos, em que
reconhecemos uma transtextualidade que une um texto A a um texto B. Assim, mostraremos que
Jules Verne se apropria de textos de partida efetuando transformações em vários níveis.
45

Numa perspectiva discursiva, Dominique Maingueneau e Patrick Charaudeau

exploram, a partir de outros autores como Kristeva e Genette, a distinção existente

entre intertexto e interdiscurso82. Primando pelo interdiscurso sobre o discurso,

Maingueneau afirma que todo discurso é atravessado pela interdiscursividade e que

tem a propriedade de estar em relação multiforme com outros discursos; este está

para o discurso como o intertexto está para o texto. Restritivamente, Maingueneau

trata do interdiscurso como um espaço discursivo, um conjunto de discursos (de um

mesmo campo discursivo ou de campos distintos) que mantêm relações de

delimitação recíproca uns em relação aos outros. Num sentido mais amplo, chama
de interdiscurso o conjunto das unidades discursivas (que pertencem a discursos

anteriores do mesmo gênero, de discursos contemporâneos de outros gêneros) com

os quais um discurso particular entra em relação implícita ou explícita. Citando

Jean-Michel Adam, Dominique Maingueneau fala de intertexto para os ecos livres de

um (ou de vários) texto(s), independentemente de gênero, e de interdiscurso para o

conjunto dos gêneros que interagem em uma dada conjuntura. Por sua vez,

Charaudeau vê no interdiscurso um jogo de reenvios entre discursos que tiveram um

suporte textual, mas de cuja configuração não se tem memória. Para ele a noção de

intertexto seria um jogo de retomada de textos configurados e ligeiramente

transformados. Maingueneau adiciona a essas ideias a diferença entre intertexto e

intertextualidade: o primeiro sendo um conjunto de fragmentos evocados (citações,

alusões e paráfrases), como já vimos; já a intertextualidade deve ser compreendida

como o sistema de regras implícitas que subtendem esse intertexto; o modo de

citação que é julgado legítimo na formação discursiva; o tipo ou o gênero de

discurso. Assim, Maingueneau exemplifica que a intertextualidade do discurso

científico não é a mesma que aquela do discurso teológico. O linguista ainda

distingue dois tipos de intertextualidade: a interna, entre

82
Cf. CHARAUDEAU, Patrick & MAINGUENEAU, Dominique. Dictionnaire d’analyse du discours.
Paris: Seuil, 2002, p. 324-329.
46

um discurso e aqueles do mesmo campo discursivo e a intertextualidade externa,

com os discursos de campos discursivos diferentes.83

Às definições de Genette no que tange às relações transtextuais e suas

nuanças e aquela de intertextualidade apresentada por Maingueneau e Charaudeau,

acrescentamos a noção de interdiscurso, que também é produtiva nesta dissertação,


para mostrar que na construção dos retratos dos seus personagens, Jules Verne

dialoga com discursos da sua época. Para arquitetar seus romances e, como

veremos, os retratos de seus personagens, notamos que a preocupação de Verne,

diante da realidade de que tinha que dar conta e dos objetivos pedagógicos impostos

pelo contrato editorial, aproxima-se muito da do historiador que tem de recorrer,

muitas vezes, à fontes documentais escritas. Quando trazemos a noção genetiana

de citação, temos a intenção de mostrar que, no caso de Verne, não é apenas uma

atitude de honestidade intelectual: é uma necessidade de obter um mínimo de efeito

de credibilidade perante os leitores. A esse respeito, referimo-nos a Ginzburg que,

num texto publicado em 1989 e intitulado “Ekphrasis e citação”, constata que não é

novidade a aproximação entre as narrativas fictícia e histórica, porque o importante é

indagar de que modo se encaram como reais fatos contidos num texto histórico. Este

efeito é, normalmente, produzido por elementos que podem ser tanto extratextuais

quanto textuais, podendo estes últimos apresentar alguns dispositivos, sugeridos por

convenções literárias, com os quais os historiadores clássicos e os historiadores

modernos procuraram produzir o effet de vérité, encarado como elemento inerente

ao seu trabalho.84

No romance Cinq semaines en ballon temos nitidamente um desses casos de

intertextualidade. Logo no primeiro capítulo, quando o personagem Samuel

Fergusson aceita viajar a bordo do balão Victoria com o objetivo de explorar o norte

africano em busca das fontes do Rio Nilo, brindes são feitos ao futuro viajante que

terá seu nome inscrito ao lado dos

outros célebres viajantes africanos:

83
Cf. CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2002, p. 324-329.
84
Cf. GINZBURG, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1991, p. 217-218.
47

Des toasts nombreux furent portés avec les vins de France aux célèbres
voyageurs qui s’étaient illustrés sur la terre d’Afrique. On but à leur santé et
à leur mémoire, et par ordre alphabétique, ce qui est très anglais: à Abbadie,
Adams, Adamson, Anderson, Arnaud, Baikie, Baldwin, Barth, Batouda,
Beke, Beltrame, du Berba, Bimbachi, Bolognesi, Bolwic, Bolzoni,
Bonnemain, Brisson, Burton, Caillaud, Caillié, Campbell, Chapman,
Clapperton, Clot-Bey, Colomieu, Couval, Cumming, Cuny [...] Saugnier,
Speke, Stneider, Thibaud, Thompson, Thornton, Toole, Vaudey, Veyssière,
Vincent, Vinco, Vogel, Wahlberg, Warington, Washington, Werne, Wild et
enfin au Docteur Fergusson qui, par son incroyable tentative, devait relier
les travaux de ces voyageurs et compléter la série des découvertes
africaines.85

Paralelamente à necessidade de hiperbolizar os feitos dos viajantes como

modelos heróicos que tematizam a viagem cartográfica, geográfica e testemunhal,

enquanto feito épico, narrativo por excelência, a alusão a esses viajantes e seus

trabalhos, na modalidade em que é feita, assegura uma referencialidade, validando

seu discurso ao referir-se às regiões exóticas, à topografia, à cartografia e, o que

nos interessa mais particularmente, à etnografia.

Nesta passagem, a alusão ocorre como menção a nomes próprios. A rigor, o

que quase sempre aparece como alusão é o nome do viajante, autor de relatos de

sua própria viagem. Estes nomes aparecem como elementos textuais, fazendo-se

acompanhar por designações de regiões, de topônimos. Por trás dos nomes dos

viajantes inferem-se seus relatos de viagem.

Em Les enfants du capitaine Grant, a justificativa para a alusão aos nomes de

viajantes e a seus feitos ocorre quando os personagens estão adentrando o Estreito

de Magalhães e o geógrafo Paganel resume as descobertas de Cristóvão Colombo:

- Je veux vous croire, mon cher Paganel, répondit Glenarvan; cependant


vous me permettrez d’être surpris, et de vous demander quels sont les
navigateurs qui ont reconnu la vérité sur les découvertes de Colomb?
- Ses successeurs, Ojeda, qui l’avait déjà accompagné dans ses voyages,
ainsi que Vincent Pinzon, Vespuce, Mendoza, Bastidas, Cabral, Solis,
Balboa. Ces navigateurs longèrent les côtes orientales de l’Amérique; ils les
délimitèrent en descendant vers le sud, emportés, eux aussi, trois cent
soixante ans avant nous, par ce courant qui nous entraîne! Voyez, mes amis,
nous avons coupé l’équateur à l’endroit même où Pinzon le passa dans la
dernière année du quinzième siècle, et nous approchons de ce huitième
degré de latitude australe sous lequel il accosta les terres du Brésil. Un an
après, le Portugais Cabral descendit jusqu’au Port Seguro. Puis Vespuce, en
1502, alla plus loin encore dans le sud. En 1508, Vincent Pinzon et Solis
s’associèrent pour la connaissance des rivages américains, et en 1514, Solis
découvrit l’embouchure du Rio de la Plata, où il fut devoré par les

85
VERNE, Jules. Cinq semaines en ballon. Paris: Michel de l’Ormeraie, 1975a, p. 5-6.
48

indigènes, laissant à Magellan la gloire de contourner le continent. Ce grand


navigateur, en 1519, partit avec cinq bâtiments, suivit les côtes de la
Patagonie, découvrit le port désiré, le port San-Julian, où il fit de longues
relâches, trouva cinquante-deux degrés de latitude ce détroit de Onze
Milles-Vierges qui devait porter son nom, et, le 28 novembre 1520, il
déboucha dans l’Océan Pacifique. Ah! Quelle joie il dut éprouver, et quelle
émotion fit battre son coeur, lorsqu’il vit une mer nouvelle étinceller à
l’horizont sous les rayons du soleil!
- J’aurais voulu être là, s’écria Robert Grant.
- Moi aussi, mon garçon, et je n’aurai pas manqué une occasion pareille, si
le ciel m’eût fait naître trois cents ans plus tôt!
- Ce qui eût été fâcheux pour nous, monsieur Paganel, répondit lady Helena,
car vous ne seriez plus sur la dunette du Duncan à nous raconter cette
histoire.
- Un autre vous l’eût dite à ma place, madame, et il aurait ajouté que la
reconnaissance de la côte occidentale est due aux frères Pizarres. Ces hardis
aventuriers furent de grands fondateurs de villes. Cusco, Quito, Lima,
Santiago, Villarica, Valparaiso et Conception, où le Duncan nous mène,
sont leur ouvrage.86

De fato, os narradores ou heróis-observadores vernianos são descritores que,

documentalmente, se guiam pelas indicações dos viajantes. Ora, os autores citados

transformam-se assim nas autoridades mais importantes no nível do efeito de real da

narrativa – são autores da travessia, do percurso, atores de feitos que servem de

guia, de orientação, como precursores do percurso que os heróis vernianos farão;

através de seus nomes, surgem as evocações das próprias coisas que viram,

tomaram nota, descreveram e tiveram publicadas em boletins de sociedades de

geografia ou em revistas especializadas em relatos de viajantes, como por exemplo

as revistas L’Univers pittoresque e Le Tour du monde que, segundo o inventário feito

por Magda Kiszely e publicado no boletim da Sociedade Jules Verne no segundo

trimestre de 1996, figuravam na biblioteca pessoal do autor.87 Isto constitui um forte

argumento para estabelecermos relações intertextuais e interdiscursivas entre a

literatura de Verne e o discurso cientifico e o histórico, o que será abordado adiante.

Ainda que no escopo do nosso trabalho não possamos confirmar todos como
autênticos viajantes registrados pela história da “expansão científica”, cremos nas

palavras de Carlos J. F. Jorge que afirma que, na primeira lista apresentada em Cinq

semaines en ballon,

86
VERNE, Jules. Les enfants du capitaine Grant. Paris: Michel de l’Ormeraie, 1975b, p. 53. 87 Cf.
KISZELY, Magda. “La bibliothèque de Jules Verne”. Bulletin Société Jules Verne, nº 118, 2e trimestre,
1996, p. 45.
49

contando com um número excessivo de nomes, uma dezena, pelo menos, são

célebres viajantes que muito contribuíram para a penetração colonial no continente

africano, desde finais do século XVIII até meados do século XIX.88 A menção aos

nomes dos viajantes e a exaltação dos seus feitos não devem ser lidas somente

como fazendo parte do objetivo, por parte do escritor, de traçar o trajeto que será

percorrido pelos seus personagens, mas também como um dado da adesão de

Jules Verne às expansões colonialistas. A colonização é considerada como um

fenômeno positivo para o escritor e o argumento do desenvolvimento científico deixa

ainda mais convincente essa ideia: cultivar, fazer um território render frutos e civilizar

são palavras-chave na obra verniana. A importância referencial desses nomes, em

Jules Verne, é enfatizada pelo fato de serem aludidos no primeiro romance que

escreve – e logo no primeiro capítulo. No segundo capítulo, a viabilidade do projeto

de Samuel Fergusson é discutida pelos jornais, fazendo-se uma resenha das

explorações africanas, das quais se destacam as de Livingstone, de Burton e de

Speke. A propósito, uma lista de jornais e revistas geográficas, cuja autenticidade

histórica pode se verificar facilmente, é apresentada no mesmo capítulo. No capítulo

IV, antes da viagem, o narrador afirma que Fergusson, para dar peso e valor ao seu

projeto, traça a rota viável da travessia que fará, numa sinopse, evocando a rota de

viajantes conhecidos:

La ligne aérienne que le docteur Fergusson comptait suivre n’avait pas été
choisie au hasard; son point de départ fut sérieusement étudié, et ce ne fut
pas sans raison qu’il résolut s’élever de l’île de Zanzibar. Cette île, située
près de la côte orientale d’Afrique, se trouve par 6º de latitude australe,
c’est-à-dire à quatre cent trente milles géographiques au-dessous de
l’équateur.
De cette île venait de partir la dernière expédition envoyée par les Grands
Lacs à la découverte des sources du Nil.
Mais il est bon d’indiquer quelles explorations le docteur Fergusson espérait
rattacher entre elles. Il y en a deux principales: celles du docteur Barth en
1849, celle des lieutenants Burton et Speke en 1858.89

Somando-se à discussão das relações intertextuais, cabe-nos mencionar um extenso

trabalho de pesquisa que Verne fez em colaboração com Gabriel Marcel, geógrafo e

88
Cf. JORGE, Carlos J.F. Jules Verne: o espaço africano nas aventuras de travessia. Lisboa: Cosmos,
2000, p. 82.
89
VERNE, 1975a, p. 17.
50

representante da Biblioteca Nacional da França. Esse trabalho fora encomendado

pela editora de Hetzel e intitulou-se Histoire des grands voyages et des grands

voyageurs, publicado em dois volumes em 1878 e 1880, respectivamente. O primeiro

trata das viagens de navegadores feitas no século XVIII e o segundo, de

navegadores do século XIX. O mapa abaixo, publicado no primeiro volume, mostra,

em intenção didática, as regiões do planeta pouco conhecidas ou desconhecidas à

época, como indica a legenda. É curioso notar que serão estes espaços mais

percorridos e explorados nos romances vernianos que, em conjunto, receberam do

editor o nome de Voyages extraordinaires aux mondes connus et inconnus –

informação paratextual que figura na capa das edições originais e nas edições

usadas nesta dissertação.


“Mondes connus et inconnus à la fin do XVIIIe siècle”
VERNE, Histoire des Grands voyages et des grands voyageurs, 1997a, p. 628-629.

Com as Histoire des grands voyages et des grands voyageurs, Verne, dizendo

ter o objetivo “de resumir a história da descoberta da Terra”90 apresenta os percursos

de viajantes de modo muito semelhante ao que utiliza em seus romances: sem fazer

referências bibliográficas, com intromissões paratextuais através de mapas, de

explicações em notas, de referências a artigos de jornais relativos a outras viagens,

com comentário metatextual avaliando os percursos, os erros e atos de heroísmo

dos viajantes. Essa forma de construção

90
“L’Histoire des grands voyages et des grands voyageurs devait avoir pour but de résumer l’histoire de
la découverte de la Terre.” VERNE, Jules. Histoire des Grands voyages et des grands voyageurs.
Paris: Diderot Éditeur, Arts et Sciences, 1997a, p. 3.
51

faz desses relatos de viagem modelos do gênero em que as viagens extraordinárias

se inscrevem. Em suma, a citação evoca a viagem precursora como ato modelo. A

título de exemplo em Cinq semaines en ballon, veja-se como o relato de Speke é

reduzido apenas à fonte de informação, sem referência textual: “Ce lac a été nommé

Nyanza Victoria par le capitaine Speke. En cet endroit, il pouvait mesurer

quatre-vingt dix milles de largeur; à son extrémité méridionale le capitaine trouva un

groupe d’îles qu’il nomma archipel de Bengale.”91 Neste exemplo, o lugar visitado
pelo viajante precursor emerge através das nomeações (do pantônimo - “Le lac

Nyanza Victoria” - como designa Philippe Hamon e veremos mais adiante) e o

potencial hipotexto é notado pelos nomes citados, pela referência aos fenômenos ou

elementos geográficos observados. Nesse processo, Verne se apropria do hipotexto,

condensando as ideias principais do texto de origem, sem citá-lo.

Caso semelhante acontece no romance Les enfants du capitaine Grant quando os

personagens aportam nas Ilhas Madeira e avistam ao longe o pico de Tenerife.

Desejando escalá-lo, Paganel exclama e evoca os nomes de Humboldt e Bonplan:

Oh! Le gravir! le gravir, mon cher capitaine, à quoi bon, je vous prie, après
MM. de Humboldt et Bonplan? Un grand génie, ce Humboldt! Il a fait
l’ascension de cette montagne; il en a donné une description qui ne laisse
rien à désirer; il en a reconnu les cinq zones: la zone des vins, la zone des
lauriers, la zone des pins, la zone des bruyères alpines, et enfin la zone de la
stérilité. C’est au sommet du piton même qu’il a posé le pied, et là, il
n’avait même pas la place de s’asseoir. Du haut de la montagne, sa vue
embrassait un espace égal au quart de l’Espagne. Puis il a visité le volcan
jusque dans ses entrailles, et il a atteint le fond de son cratère éteint. Que
voulez-vous que je fasse après ce grand homme, je vous le demande?92

No caso acima, percebemos que a relação de Verne com os relatos de viagens pode

ser considerada, ao mesmo tempo, como uma atividade de citação sem o uso de

aspas (vejam-se os nomes e os fatos citados) e hipertextual (relação de

transformação textual; tentativa de tornar literário as descobertas dos viajantes), ou,

para usar a nomenclatura de Maingueneau e Charaudeau, como uma relação

intertextual tout court.

91
VERNE, 1975a, p. 101-102.
92
VERNE, 1975b, p. 46.
52

Em relação a textos literários, o respeito pela fonte documental de onde extrai

ideias (mesmo os textos literários que venera, como é o caso que citaremos abaixo),

é, muitas vezes, de quase denegação ou de total reescrita. Como observa

Marie-Hélène Huet sobre o romance verniano Le Sphynx des glaces (1897), num
artigo intitulado “Itinéraires du texte”:

Estranha viagem, surpreendente leitura que segue escrupulosamente o


percurso estabelecido pelo texto de Poe (Gordon Pym), mas que cada etapa
apaga ou desmente o guia, o texto inicial. Nada que os viajantes descobrem,
corresponde às paisagens descritas por Pym, e o percurso só confirma a
veracidade do texto pelos novos textos que ele descobre.93

A observação destes procedimentos, que constituem uma rede de revelações de

fontes de fatos para uma semi-ocultação das fontes textuais não nos deve fazer

minimizar o trabalho de Jules Verne, atribuindo-lhe uma atividade de plágio.

Devemos reconhecer que, antes de tudo, o interesse do autor dos romances é de

caucionar os seus efeitos de real pela alusão ou citação de autoridades que dêem

aos personagens uma autenticidade e, assim, não deixar transparecer para os

leitores as características da sua diferença e do seu exotismo, em outras palavras,

que seja “natural” o encontro entre o leitor e os povos que o escritor deseja

apresentar-lhe. O que Verne pretende na elaboração intertextual ou hipertextual de

romances que tem como hipotextos os relatos autênticos de viajantes é fundamentar

os seres, os objetos representados, dando-lhes o peso da prova, ou da evidência

que foram para os olhos dos que ali passaram.

Outro modelo de fonte intertextual em Jules Verne é proveniente da literatura.

Florent Montaclair, Sylvie Petit e Yves Gilli atribuem o recorrente tema do naufrágio

na obra de Jules Verne à ótica de um outro escritor: Daniel Defoe com seu Robinson

Crusoé.94 Os autores afirmam que são diversos os romances que apresentam

referências explícitas a Defoe e,

portanto, os colocam sob os auspícios do autor inglês. Em Les enfants du capitaine


Grant

93
“Étrange voyage, étonnante lecture qui suit scrupuleusement le parcours établi par le texte de Poe
(Gordon Pym), mais dont chaque étape efface ou dément le guide, le texte initial. Rien de ce que
découvrent les voyageurs ne correspond aux paysages décrits par Pym, et le parcours ne confirme la
véracité du texte que par les nouveaux textes qu’il découvre”. HUET, Marie-Hélène. “Itinéraires du
texte”. In: Jules Verne – Colloque de Cerisy. Paris: UGE, 1979, p. 16.
94
GILLI, Yves; MONTACLAIR, Florent & PETIT, Sylvie. Le naufrage dans l’oeuvre de Jules Verne.
Paris: L’Harmattan, 1998, p. 64.
53
temos, por exemplo, a declaração do herói: “Nous commençâmes, comme le

Robinson de Daniel Defoë, notre modèle, par recueillir dans les épaves du navire,

des outils, un peu de poudre, des armes, un sac de graines précieuses”.95

Já em Le Chancellor, o diálogo intertextual se dá com o romance As aventuras

de Arthur Gordon Pym, de Edgar Allan Poe. Gilli et alii afirmam que nos dois

romances podemos assistir a uma cena de canibalismo semelhante, sobretudo

porque as duas se iniciam com um sorteio a bordo para saber qual dos tripulantes

será morto, a fim de ser comido em seguida.96 No texto de Edgar Allan Poe, Pym e

seus companheiros devoram o marinheiro Parker que “não criou nenhuma

resistência depois do sorteio. Golpeado nas costas por Peters, caiu morto com o

golpe.”97 No romance de Verne, o bosseman, esfomeado, pergunta ao capitão: “Quel

jour tirerons-nous au sort pour dévorer le perdant?”98.

Para o mesmo romance verniano, as ressonâncias intertextuais também se

dão num nível diferente, com fatos históricos. Gilli et alii defendem que Le Chancellor

é uma adaptação verniana de um acontecimento que quase desestabilizou o regime

monárquico durante a Restauração: o naufrágio da fragata Medusa, em 1816,

representado pelo pintor Théodore Géricault (1791-1824).99

95
VERNE, 1975b, p. 538.
96
Cf. GILLI et alii, 1998, p. 62.
97
“Il ne fit aucune résistance après le tirage au sort. Frappé dans le dos par Peters, il tomba mort sur le
coup.” POE, Edgar Allan. Oeuvres en prose (Trad. Charles Baudelaire). Paris: Gallimard, 1951, p. 788.
98
VERNE, 1975c, p. 163.
99
Cf. GILLI et alii, 1998, p. 115.
54

Théodore Géricault. A balsa da Medusa.


Óleo sobre tela, 1819.
Museu do Louvre, Paris.

Os autores resumem a catástrofe dizendo que se trata de uma tragédia que

aconteceu com um navio e seus passageiros ao partirem para reconquistar a região

de Saint-Louis do Senegal, colônia devolvida à França pela Inglaterra graças ao

tratado de Viena. Uma divisão naval composta por quatro navios, entre os quais a

fragata Medusa, estava encarregada de ir cumprir a tarefa de recuperação desta

colônia, porém usando mapas ultrapassados do século XVIII. Somando-se a isso, os

erros do comandante Hugues Duroy de Chaumareys e a falta de controle junto ao

mau tempo, provocam o naufrágio da fragata em 2 de julho de 1816. Uma balsa com

os destroços do navio é construída para abrigar cento e quarenta e sete pessoas. Em

pouco tempo, a coabitação entre soldados, oficiais e alguns civis transforma a

epopéia em tragédia: violência, motins, fome, sede e cenas de canibalismo. Após


treze dias, quinze sobreviventes são recuperados no oceano pela embarcação

Argus, na manhã do 17 de julho de 1816.100

100
Cf. GILLI et alli, 1998, p. 120.
55

A leitura do romance Le Chancellor, publicado em 1875, nos faz enxergar

semelhanças com esse fato catastrófico da história, mas sob uma ótica romanesca

que é própria de Jules Verne. Paradoxalmente, podemos discernir nesse romance

uma grande prudência no tratamento do assunto. Essa reserva junta-se ao problema

de fidelidade ao projeto da obra “Viagens extraordinárias.” Ora, este é um romance

que não traz nenhuma visão sobre o devir científico. Não há nenhum traço da

mecânica “maravilhosa” cara a Jules Verne. Podemos dizer que Le Chancellor mais

se assemelha a uma sócio-ficção, pois a condição humana é o foco. O naufrágio da

Medusa foi o pretexto para Verne tratar do tema da barbárie e da regressão coletiva.

Mas, para a pesquisa, cabe-nos perguntar como o modelo se transforma em obra e

como podemos falar em diálogo intertextual ou interdiscursivo entre o caso real do

naufrágio e o caso do Chancellor?

Quase meio século divide o naufrágio da Medusa e o lançamento do romance.

Nascido em 1828, Verne faz parte da geração seguinte e não sofreu os impactos

emocionais do drama que sensibilizou Théodore Géricault para representar

picturalmente essa catástrofe. Mesmo assim, algumas circunstâncias unem as duas

histórias e podem ser salientadas.

Curiosamente, em correspondência a Jules Hetzel datada do 15 de fevereiro

de 1871, Jules Verne apresenta seu romance como um texto concorrente à

catástrofe da Medusa: “Eu te trarei um volume de um realismo assustador. É

intitulado Os náufragos do Chancellor. Acho que a Balsa da Medusa não produziu

nada de tão terrível. Acho, sobretudo, que isso terá ares verdadeiros a menos que
eu esteja enganado.”101

Com o termo “náufragos” o foco é direcionado para o futuro dos personagens

ao longo de uma catástrofe marítima. Além disso, a importância dada à balsa, mais

do que ao naufrágio, sugere a referência ao mediador Théodore Géricault, pintor do

quadro acima referido. Para Michel Serres, este é um elemento de informação ao

qual não podemos escapar:

101
“Je vous apporterai donc un volume d’un réalisme effrayant. C’est intitulé: Les Naufragés du
Chancellor. Je crois que le Radeau de la Méduse n’a rien produit de si terrible. Je crois surtout que
cela aura l’air vrai à moins que je ne me trompe.” DELLA RIVA; DEHS & DUMAS. 1999, p. 155.
56

“Radeau de la Méduse, 1816. Todo mundo conhece isso, ao menos através de

Géricault.”102 Enfim, podemos falar também da presença de uma estrutura

quiasmática nessa carta: “realismo – assustador – terrível – ar verdadeiro” - que

revela duas orientações estéticas do

escritor para esse romance: por um lado o realismo, por outro, o horror. Ainda que

não se revele nenhuma alusão a Géricault ou ao naufrágio da Medusa neste

romance, a não ser a alusão intertextual através do paratexto da correspondência

mencionada que indica que Verne conhecia o quadro e que mantinha essa imagem

na cabeça ao escrever o romance, a transposição da tragédia poderia ser

considerada mais como um pressuposto. Os dois exemplos que seguem, mostram

que o narrador de Le Chancellor se inscreve numa tradição, numa espécie de

herança transmitida graças a relatórios ou diários de bordo. Quando se trata dos

efeitos da fome sobre os náufragos, o narrador, preparando-se para uma eventual

catástrofe, confirma a validade das observações nesse campo: “Les récits de

naufragés ont souvent constaté des faits qui concordent avec ceux que j’observe ici.

En les lisant, je les trouvais exagérés.”103 Sofrendo mais de sede do que de fome, o

narrador é convencido pelos testemunhos consultados: “Cela a toujours été dit des
naufragés qui se sont trouvés dans les circonstances où nous sommes et cela est

vrai.”104

Também construído a partir do modelo de diário de bordo, o romance Le Chancellor

começa por uma série de catástrofes e termina por uma tragédia, como já

salientamos. A embarcação, que é incumbida de transportar uma carga de algodão

de Charleston, nos Estados Unidos, a Liverpool, na Grã Bretanha, leva o passageiro

J.R. Kazallon, redator do diário contando todos os problemas da viagem. Até o

momento do naufrágio, Kazallon trata da irresponsabilidade do capitão Silas Huntly,

avatar de Chaumareys em Jules Verne, e sua aparente loucura, que aumentam o

perigo a bordo. A razão dessa inclinação à irresponsabilidade é inscrita na

fisionomia do personagem capitão, cujo retrato completo

102
“Radeau de la Méduse, 1816. Tout le monde connaît cela, au moins par Géricault.” SERRES,
Michel. Jouvences sur Jules Verne. Paris: Minuit, 1974, p. 104.
103
VERNE, Jules. Le Chancellor. Paris: Michel de l’Ormeraie, 1975c, p. 130.
104
VERNE, 1975c, p. 179.
57

retomaremos mais adiante, como se o personagem fosse predestinado a uma

maldição: “sa tête est petite et par habitude un peu inclinée à gauche [...] son attitude

est lourde et son corps présente un certain affaisement. Il est nonchallant, et cela se

voit à l’indécision de son regard.”105 Já para o cozinheiro da embarcação, Jynxtrop, o

único personagem negro do romance, embora não tenha a descrição facial

detalhada, o retrato é mais animalesco, avançando, em certa medida, suas ações

que tomarão forma ao longo do romance: “nègre de mauvaise figure, à l’air brutal et

impudent comme d’une bête féroce, qui se mêle aux autres matelots plus qu’il ne

convient.”106 O discurso velado nestas duas amostras de retratos literários não seria

suficiente para explorarmos a questão da construção cultural do rosto e do corpo

assinalada no início deste capítulo. No entanto, introduzem o diálogo intertextual e

interdiscursivo que podemos estabelecer com relatos de viagem veiculados pela


revista Le Tour du monde, onde se incluem gravuras, com os discursos de Lavater e

Gall, e ainda com aqueles de Gobineau e Darwin.

3.2- Das relações intertextuais com o magazine Le Tour du monde

Diversos são os estudos ou análises que mencionam (sem mostrar) a extensa

pesquisa que Jules Verne fez em obras científicas, ou para-científicas, a fim de

escrever seus romances. Através de estudos a respeito das ciências naturais, da

geologia, da geografia, da geografia descritiva e dos relatos de viagens, passando

por atlas e revistas de vulgarização científica, Jules Verne se documentou para

cumprir com o contrato editorial com Hetzel, que lhe exigia resumir o que a ciência

da sua época fizera, transformando esse conhecimento em literatura para jovens.

Trata-se, para nós, nesse item, de explorar uma parte desta lacuna deixada por

diversos estudiosos, tendo como objeto os retratos dos personagens dos romances

do corpus que nos

propomos analisar e suas relações com a revista Le Tour du monde.

105
VERNE, 1975c, p. 3.
106
VERNE, 1975c, p. 58.
58
Publicada semestralmente sob a direção de Édouard Charton entre os anos de 1860

e 1914, esta revista, cujos números encontramos na Fundação Biblioteca Nacional

do Rio de Janeiro, tinha por objetivo “dar a conhecer as viagens feitas naquele

tempo, seja francesa ou estrangeira, as mais dignas de confiança, e que oferecem

maior interesse à imaginação, à curiosidade ou ao estudo.”107

Sem ser destinada a uma classe especial de leitores, a revista se proclama

variada, assim como seu objeto que é “o espetáculo verdadeiro e animado da

natureza e da vida humana sobre toda a superfície da terra.”108 No que tange aos

viajantes que terão publicados seus feitos no magazine, “uns representam a ciência,

outros a arte, outros ainda o comércio ou a indústria, estes se expõem a mil perigos

para propagar sua fé; aqueles são simplesmente

107
“Le Tour du monde a pour but de faire connaître les voyages de notre temps, soit français, soit
étrangers, les plus dignes de confiance, et qui offrent le plus d’intérêt à l’imagination, à la curiosité ou à
l’étude.” CHARTON, Édouard (dir.). Préface. Le Tour du monde. Paris: Hachette, Jan/Juin, 1860.
108
“[son objet] est le spectacle vrai et animé de la nature et de la vie humaine sur toute la surface de la
Terre.” CHARTON, Préface, Jan/Juin, 1860. Cf. Anexo 1 o prefácio completo da revista.
59

observadores, moralistas, ou procuram somente emoções de uma vida errante e

aventureira”.109

Coadunando-se com o programa de difusão e de aproveitamento das técnicas

de ilustração desenvolvidas no século XIX, a revista declara a importância que dará

às gravuras que ilustrarão os relatos de viagens:

Parecerá natural que nossos esforços tendam a dar às gravuras do Tour du


monde importância igual àquela do próprio texto. Se nas obras poéticas ou
romanescas as gravuras são somente um ornamento, nos relatos de viagem
elas são uma necessidade. Muitas coisas, sejam inanimadas ou animadas,
escapam a qualquer descrição. As mais raras habilidades do estilo só
conseguem comunicar à inteligência dos leitores um sentimento vago e
fugidio. Mas quando o viajante deixa a pena, toma o lápis, tão logo, em
alguns traços, faz surgir diante dos olhos a realidade que não se apagará
mais da lembrança.110

Seguindo esses objetivos, a revista publicou o relato da viagem que o inglês Barth

fez ao centro do continente africano e o relato de descoberta da região lacustre da

África Oriental dos também ingleses Burton e Speke. Seguindo as alusões e

citações nos textos de Jules Verne, poderemos falar de relação intertextual, hipo e

hipertexto (Genette), ou de intertextualidade interna e externa (Maingueneau) com

os relatos de viajantes publicados nesta revista.

No romance Cinq semaines en ballon é nítido que o escritor se documentou a partir

das descobertas geográficas que lhe foram contemporâneas para escrever a história.

Depois de ser escolhido pela Sociedade Real Geográfica de Londres para

empreender a viagem que uniria o trajeto feito por Barth ao de Burton e Speke, o

personagem do Doutor Samuel Fergusson é comparado a um Édipo moderno,

capaz de descobrir o enigma há muitos séculos

109
“Parmi les voyageurs, les uns représentent la science, les autres l’art, d’autres le commerce ou
l’industrie; ceux-ci s’exposent à mille périls pour propager leur foi, ceux-là sont simplement des
observateurs, des moralistes, ou ne cherchent que les émotions d’une existence errante et
aventureuse”. CHARTON, Préface, Jan/Juin, 1860.
110
“Il paraîtra naturel que nos efforts tendent à donner aux gravures du Tour du monde une importance
égale à celle du texte même. Si dans les oeuvres poétiques ou romanesques les gravures ne sont
qu’un ornement, dans les relations de voyage elles sont une nécessité. Beaucoup de choses, soit
inanimées, soit animées, échappent à toute description: les plus rares habiletés du style ne
parviennent à communiquer à l’esprit des lecteurs qu’un sentiment vague et fugitif. Mais que le
voyageur laisse la plume, saisisse le crayon, et aussitôt, en quelques traits, il fait apparaître aux yeux
la réalité elle-même qui ne s’effacera plus du souvenir.” CHARTON, Préface, Jan/Juin, 1860.
60

indecifrável: as fontes do rio Nilo. Igualando essa viagem a uma quase irrealizável

quimera, o narrador resume as últimas notícias que se têm dos últimos viajantes que

se aventuraram no norte africano, publicadas no fictício jornal Daily Telegraph, onde

se declarou o plano da viagem de Samuel Fergusson:

Le docteur Barth, en suivant jusqu’au Soudan la route tracée par Denham et


Clapperton; Le docteur Livingstone, en multipliant ses intrépides
investigations depuis le Cap de Bonne-Espérance jusqu’au bassin du
Zambèze; les capitaines Burton et Speke, par la découverte des Grands Lacs
intérieurs, ont ouvert trois chemins à la civilisation moderne; leur point
d’intersection, où nul voyageur n’a encore pu parvenir, est le coeur même
de l’Afrique. C’est là que doivent tendre tous les efforts.
Or, les travaux de ces hardis pionniers de la science vont être renoués par
l’audacieuse tentative du docteur Fergusson, dont nos lecteurs ont souvent
apprécié les belles explorations.
Notre intrépide découvreur (discoverer) se propose de traverser en ballon
toute l’Afrique de l’est à l’ouest. Si nous sommes bien informés, le point de
départ de ce surprenant voyage serait l’île de Zanzibar sur la côte orientale.
Quant au point d’arrivée, à la Providence seule il est réservé de le
connaître.111

O capitulo IV do mesmo romance é reservado a um resumo mais detalhado

das viagens destes exploradores: datas, ponto de partida, direção seguida, número

de viajantes, dados geográficos das regiões exploradas, paradas e retomadas da

viagem etc. Temos, no caso de Burton e Speke, o início deste resumo:

Enfin, en 1857, les lieutenants Burton et Speke, tous deux officiers à


l’armée du Bengale, furent envoyés par la Société Royale Géographique de
Londres pour explorer la région des Grands Lacs africains; le 17 juin, ils
quittèrent Zanzibar et s’enfoncèrent directement dans l’ouest.112

Além da alusão aos nomes dos viajantes indicarem o que Maingueneau

nomeia por intertextualidade externa, já que se dá entre discursos de campos

distintos, podemos falar de interdiscursividade, isto é, do diálogo do discurso literário


com o discurso científico (geográfico descritivo). Porém, tentaremos mostrar que as

relações entre os textos da revista e do romance ultrapassam o quadro de uma

simples coincidência e que, devido ao grande sucesso da revista, o escritor Jules

Verne efetuou leituras nesse magazine a fim de se documentar sobre o que era

corrente na sua época para criar seus romances.

111
VERNE, 1975a, p. 7.
112
VERNE, 1975a, p. 19.
61

Na página 305 da revista Le Tour du monde do segundo semestre de 1860,

temos o início da publicação do relato da viagem de Burton. No avant-propos, vemos

definidos os objetivos da expedição:

Mesmo que a existência de grandes lagos equatoriais na África tivesse sido


conjecturada há dois mil anos, o reverendo Erhardt e o doutor Rebmann
direcionaram a atenção dos geógrafos para a parte leste da África [...] aliás,
o problema sempre corrente das fontes do Nilo e das neves do Kilimandjaro
se ligavam à verificação do relatório dos reverendos. Uma expedição foi
então decidida.
Em 1856, a Sociedade Real Geográfica de Londres confiou ao capitão
Burton a missão de chegar aos Grandes Lagos interiores, de determinar sua
posição, de descrever a região situada entre a costa e os vastos lençóis
d’água, de estudar a etnografia e os recursos comerciais. O capitão, não
escondendo as dificuldades da empreitada, pediu que a ele se juntasse o
capitão Speke, oficial do exército de Bengala. [...] No 17 de junho de 1857,
eles deixaram o porto de Zanzibar. Eis aqui o relato do capitão.113

Vemos neste exemplo, que podemos falar de um possível diálogo intertextual,

na concepção genetiana de hipertextualidade, do texto de Verne com a viagem dos

capitães Burton e Speke pelo norte da África, relatada no magazine Le Tour du

monde. O hipotexto seria o texto da revista e, aquele do romance, o hipertexto. A

modalidade em que os elementos são retomados/aludidos no texto de Verne, como o

nome da sociedade geográfica, a preocupação em descobrir as fontes do rio Nilo, as

datas e o ponto de partida dos viajantes, entre outros, nos asseguram esta relação.

Entre os diversos exemplos que poderíamos evocar para ilustrar a


intertextualidade no mesmo romance, vemos outro semelhante ao descrito acima.

Nos preparativos para a partida do balão, em Zanzibar, o narrador menciona que os

povos habitantes desse local têm o sol e a lua como objetos astrais de veneração.

Achando que os personagens europeus que preparavam

sua viagem para os céus intentavam hostilmente contra suas crenças religiosas, os
africanos

113
Bien que l’existence de grands lacs équatoriaux en Afrique eût été soupçonnée depuis deux mille
ans, le révérend Erhardt et le docteur Rebmann reportèrent l’attention des géographes sur la partie est
de l’Afrique. [...] D’ailleurs le problème toujours pendant des sources du Nil et des neiges du
Kilimandjaro se rattachaient à la vérification du rapport des révérends. Une expédition fut donc
résolue. En 1856, la Société Royale Géographique de Londres confia au capitaine Burton la mission
d’atteindre les Grands Lacs intérieurs, d’en relever la position, de décrire le pays situé entre la côte et
les vastes nappes d’eau, d’en étudier l’ethnographie et les ressources commerciales. Le capitaine, ne
se dissimulant pas les difficultés de l’entreprise, demanda qu’on lui adjoignit le capitaine Speke, officier
de l’armée du Bengale. [...] Le 17 juin 1857, ils quittèrent le port de Zanzibar. Voici le récit du capitaine.
CHARTON, Édouard. Le Tour du monde. Paris: Hachette, Jui/Déc 1860, p. 305-306.
62

habitantes da região, a fim de manifestar sua cólera, gritavam, faziam caretas e

contorções e entoavam encantamentos para impedir a partida dos exploradores:

“Alors les sortilèges et les incantations commencèrent; les faiseurs de pluie, qui

prétendent commander aux nuages, appelèrent les ouragans et les ‘averses de

pierres’, (nom que les nègres donnent à la grêle) à leur secours.”114 Nas páginas da

revista Le Tour du monde, lemos no relato de Speke que, depois de um

desentendimento com os escravos na região de Kazeh, uma chuva, a que os

habitantes chamavam de “averse de pierres”, impediu que eles seguissem viagem:

Os escravos, por sua vez, estabeleceram suas pretensões; Ben Sélin et


Kigodo interferiram; competiam para ver quem se mostraria o mais ávido e
o menos submisso. Reuni os árabes para discutir com eles; com a questão
resolvida, aconselharam-me aguardar um tempo. Naquele instante, a chuva
começou com torrentes de água e uma ‘chuva de pedras’, é assim que o
granizo é chamado nessa região. Todos os nossos homens ficaram doentes;
eu mesmo estava mais morto do que vivo e não sabia mais quando
poderíamos ir embora.115

Ainda seguindo os rastros dos viajantes no âmbito das explorações das terras

africanas, os personagens ingleses, guiados pelo doutor Samuel Fergusson, visitam

cidades, povos, dando margem para que o narrador faça descrições etnográficas.
Na região de Kazeh, descrita no capítulo XV de Cinq semaines en ballon, os

personagens fazem uma parada na cidade de Unyamwezy, também chamada de

Terra da Lua, para estabelecer relações comerciais com os Uanyamwezy. Cabe-nos

destacar uma curiosidade hipertextual a respeito dos nomes usados e das diferenças

entre Unyamwesy e Uanyamwesy. Quando os personagens passam pela região de

Uzaramo, o narrador explica brevemente, em nota em pé de página, que U ou OU

são prefixos e significam ‘região’ na língua do país: “U, OU, ces préfixes signifient

contrée dans la langue du pays.”116

114
VERNE, 1975a, p. 51.
115
“Les esclaves, à leur tour établirent leurs prétensions; Ben Sélin et Kidogo s’en mêlèrent; c’était à
qui se montrerait le plus avide et le moins soumis. Je réunis les arabes pour en conférer avec eux;
l’affaire entendue, on me conseilla de temporiser. Sur ces entrefaites, la pluie débuta par des torrents
d’eau et une averse de pierres, c’est ainsi que la grêle est nommée dans cette région. Tous nos
hommes tombèrent malade; j’étais moi-même plus mort que vif, et ne savais plus quand nous
pourrions nous en aller.” CHARTON, Jui/Déc 1860, p. 327.
116
VERNE, 1975a, p. 58.
63

Burton, no relato publicado em Le Tour du monde faz exatamente a mesma

observação, usando o mesmo exemplo e a mesma modalidade de explicação: a nota

em pé de página.117

Sob a sombra de uma vegetação luxuriante, atravessando em ritmo de

procissão, os personagens chegam ao palácio do sultão, na referida região de

Kazeh, e são recebidos na porta pelos guardas, homens da cidade que chamaram a

atenção do doutor Fergusson. Isso é pretexto para o narrador fazer o retrato de um

tipo Uanyamwezy, cuja descrição está arrolada no item 4.2 desta dissertação, p.127.

No relato do viajante Burton publicado na revista Le Tour du monde, vemos o

seguinte texto:

Entre as tribos que ocupam a Terra da Lua, somente duas merecem receber
atenção: os Ouakimbou e os Ouanyamwezy.
[...] Os Ouanyamwezy, proprietários do solo, laboriosos e ativos, têm sobre
seus vizinhos uma superioridade real e formam o tipo de habitantes dessa
região. Sua pele, de um castanho sépia escuro, tem eflúvios que
estabelecem parentalidade com o negro; eles têm os cabelos crespos e os
dividem em numerosos cachos que fazem cair ao redor da cabeça; sua barba
é curta e rala, e a maioria deles tira os cílios. De altura elevada, são bem
constituídos e seus membros anunciam o vigor. Sua marca nacional consiste
numa dupla lista de cicatrizes lineares, indo da borda extrema das
sobrancelhas até o meio das bochechas que, às vezes, descem até o maxilar
inferior. Esta tatuagem é feita em preto nos homens e em azul nas mulheres;
Homens e mulheres distendem as orelhas pelo peso de objetos redondos que
eles colocam aí. Quanto às roupas, os ricos têm vestimentas de tecido,
outros são cobertos de peles. As mulheres às quais o dinheiro permite, usam
a longa túnica da costa, mais frequentemente amarrada à cintura; aquelas de
classes pobres têm sobre o seio um peitilho de couro amaciado, e suas saias,
igualmente de couro, vão à altura do joelho; para as mais jovens, o seio é
sempre descoberto.118
117
“Dans la langue des tribus de la côte de Zanguebar, et dans les idiomes qui s’y rattachent, le nom
éveillant une idée première ne s’emploie qu’avec un préfixe qui en modifie l’acception: U signifie
région, contrée: Uzaramo, région de Zaramo; M indique l’individu: Mzaramo, un habitant de Ouzaramo.
Pour former le pluriel, l’M est remplacé par OUA qui signifie peuple: Ouazaramo, tribu du Zaramo.”
118
CHARTON, Jui/Déc 1860, p. 307. “Parmi les tribus qui occupent la Terre de la Lune deux seulement
méritent de fixer l’attention: les Ouakimbou et les Ouanyamwezy. [...] Les Ouanyamwezy, propriétaires
du sol, industrieux et actifs, ont sur leurs voisins une supériorité réelle et forment les types des
habitants de cette région. Leur peau, d’un brun sépia foncé, a des effluves qui établissent leur parenté
avec le nègre; ils ont des cheveaux crêpus, les divisent en nombreaux tire-bouchons, et les font
retomber autour de la tête. Leur barbe est courte et rare, et la plupart d’entre eux s’arrachent les cils.
D’une taille élevée, ils sont bien faits et leur membre annoncent la vigueur. Leur marque nationnale
consiste en une double rangée de cicatrices linéaires, allant du bord externe des sourcils jusqu’au
milieu des joues, et qui parfois descendent jusqu’à la mâchoire inférieure. Ce tatouage est fait en noir
chez les hommes, en bleue chez les femmes; Hommes et femmes se distendent les oreilles par les
poids des objets ronds qu’ils y insèrent. Quant au costume, les riches ont des vêtements d’étoffe, les
autres sont couverts de pelleteries. Les femmes à qui leur fortune le permet, portent la longue tunique
de la côte, le plus souvent attachée à la taille; celles des classes pauvres ont sur la poitrine un plastron
de cuir assoupli, et leur jupe, également en cuir, s’arrête
64

Apresentamos os dados do relato de viagem do capitão Burton como sendo

hipotextuais para o retrato literário do africano Uanyamwezy. Aqui, mais uma vez,

tratamos do conceito de transtextualidade trazido por Genette já que, na sua

concepção, esta noção alcança tudo o que coloca um texto em relação, manifesta

ou secreta, com outros textos. São diversos os pontos que podem ter servido de

fonte ao escritor. Este se apropriou de alguns detalhes do texto da revista, como da

altura dos indígenas, das especificidades concernentes às tatuagens faciais e dos

acessórios que usam nas orelhas, reconfigurando-os ao gosto do gênero romanesco

e contextualizando-o ao seu romance.


Visto a importância que a revista dava às gravuras, como descrito no seu

prefácio e salientado acima, poderíamos deslocar, sem maiores perdas de sentido,

as gravuras que ilustram o retrato dos Ouanyamwezy para as páginas do romance

Cinq semaines en ballon, reforçando a ideia de intertextualidade:

au-dessus du genou; chez les jeunes filles la poitrine est toujours découverte.” CHARTON, Jui/Déc
1860, p. 331.
65
Indígena de Ounyamuézi – Desenho de Émile Bayard.
Le Tour du Monde, Jui/Déc 1860, p. 332.
Batedores de sorgo, no Ounyamouézi – Desenho de Émile Bayard.
Le Tour du Monde, Jui/Déc 1860, p. 332.
66

Mulheres do Ounyamouézi pilando o sorgo – Desenho de Émile


Bayard. Le Tour du Monde, Jui/Déc 1860, p. 333.

Além da relação intertextual ou hipertextual na concepção de Genette, e da

possível transposição das gravuras dos relatos para o romance, também

poderíamos falar da importância das imagens dos relatos para a descrição que Jules

Verne faz dos Ouanyamwezi. Ora, no relato de Burton, não temos a descrição das

armas que os africanos usam. No entanto, arco e flecha aparecem em uma gravura

da revista e na descrição de Jules Verne. Aqui as relações de transformação

transtextual se dão em outro nível: da gravura para o texto.

67
Habitantes do Ounyamouézi – Desenho de Émile Bayard.
Le Tour du Monde, Jui/Déc 1860, [s.p.]

Entrando no palácio do sultão local, o doutor Fergusson é recebido por um grupo de

mulheres Ouanyamwezy “aux accords harmonieux de ‘l’upatu’, sorte de cymbale faite

avec le fond d’un pot de cuivre, et aux fracas du “kilindo”, tambour de cinq pieds de

haut creusé dans un tronc d’arbre, et contre lequel deux virtuoses s’escrimaient à

coups de poing”. Um retrato de grupo é apresentado em seguida: “La plupart de ces

femmes paraissaient fort jolies, et fumaient en riant le tabac et le thang dans de

grandes pipes noires; elles semblaient bien faites et portaient un ‘kilt’ en fibres de

calebasse, fixe autour de leur ceinture.”119

Este retrato também poderia ser ilustrado no romance com a mesma gravura usada

no relato de Burton, de onde Verne também teria resgatado o hipotexto abaixo:

Todas as mulheres do lugarejo, da mais velha à jovem de doze anos,


sentam-se em roda e pegam seus grandes cachimbos de fornilho negro; elas
parecem extrair dele profundos prazeres; a fumaça que elas aspiram
lentamente, se exala de suas narinas; de vez em quando elas refrescam a

119
VERNE, 1975a, p. 80
68

boca com fatias de mandioca ou uma espiga de milho verde cozida na


brasa.”120

Jovens senhoras em Kazeh – Desenho de Gustave Boulanger


d’après Burton. Le Tour du Monde, Jui/Déc 1860, [s.p.]

Continuando a aventura na região de Kazeh, em Ounyamwezy, Joe, ajudante

do doutor Fergusson, o aguardava do lado de fora do palácio onde era tido como

uma divindade pelos habitantes do lugar. Todos acreditavam que ele era um Filho da

Lua e, portanto, precisavam adorá-lo. Assim, Joe foi o responsável por uma grande

algazarra comparada a uma festa:

Joe, pendant son absence, attendait tranquillement au bas de l’échelle; la


foule lui rendait les plus grands devoirs. En véritable Fils de la Lune, il se
laissait faire. Pour une divinité, il avait l’air d’un assez brave homme, pas
fier, familier même avec les jeunes africaines, qui ne se lassaient pas de le
contempler. Il leur tenait d’ailleurs d’aimables discours.
“Adorez, Mesdemoiselles, adorez, leur disait-il; je suis un bon diable,
quoique fils de déesse!”
[...] Et puis, les jeunes filles, confondant leurs voix dans une mélopée
traînante, exécutèrent une danse grave autour de lui.
“Ah, vous dansez, dit-il, eh bien! Je ne serai pas en reste avec vous, et je

120
“Toutes les femmes du village, depuis l’aïeule jusqu’à la jeune fille de douze ans, s’asseyent en rond
et prennent leurs grandes pipes à foyer noir; elles paraissent y puiser de profondes juissances; la
fumée qu’elles aspirent lentement s’exhale de leurs narines; de temps à autre elles se refraichissent la
bouche avec des tranches de manioc, ou un épi de maïs vert, cuit sous la cendre.” CHARTON, Jui/Déc
1860, p. 327.
69

vais vous montrer une danse de mon pays.”


Et il entama une gigue étourdissante, se contournant, se détirant, se déjetant,
dansant des pieds, dansant des genoux, dansant des mains, se développant
en contorsions extravagantes, en poses incroyables, en grimaces
impossibles, donnant ainsi à ces populations une étrange idée de la manière
dont les dieux dansent dans la Lune.
Or, tous ces Africains, imitateurs comme des singes, eurent bientôt fait de
réproduire ses manières, ses gambades, ses trémoussements, ils ne perdaient
pas un geste, ils n’oubliaient pas une attitude; ce fut alors un tohu-bohu, un
remuement, une agitation, dont il est difficile de donner une idée même
faible. Au plus beau de la fête, Joe aperçu le docteur. 121

A cena descrita acima poderia ser ilustrada por uma gravura do relato dos

capitães Speke e Grant em expedição ao norte africano, em busca das nascentes do

Nilo. Esta gravura, que foi publicada em Le Tour du monde no primeiro semestre de

1862, representa a recepção do Capitão Grant pela rainha Ukulina e, embora não

tenha uma descrição a ela conjugada, mostra semelhanças com o texto verniano

evocados pela algazarra dos habitantes comparada a uma festa e da relação de

contato entre o branco inglês e o negro africano, representado, no canto esquerdo

inferior da imagem, pelo capitão Grant e a rainha local.


Um baile em Ukulina. O capitão Grant dançando com a rainha. Desenho de
Fucns. Le Tour du monde, Jan/Juin 1862, [s.p.]

121
VERNE, 1975a, p. 82.
70

Além da relação de semelhança da cena descrita por Verne no romance Cinq

semaines en ballon com a gravura da revista, podemos também falar da apropriação

que o escritor faz, mais uma vez, do que lhe era contemporâneo para criar seus

romances. O Grant que aparece na gravura, capitão inglês que fizera uma expedição

ao norte da África, entre os anos de 1860 e 1863 na companhia de Speke, tem seu

nome e sua nacionalidade transpostos para o romance Les enfants du capitaine

Grant, de 1867. O nome real do viajante, contemporâneo a Jules Verne, trazido

inclusive pela informação paratextual do título do romance, não só auxilia na

construção da verossimilhança, mas também ajuda na criação de um pacto de

credibilidade do texto junto aos leitores.


A trama de Les enfants du capitaine Grant é baseada num criptograma cuja

interpretação, na aventura, é achar um pai, o Capitão Grant. Para que isso seja

realizado, os diferentes personagens viajarão em torno do globo terrestre a bordo do

navio Duncan. Partindo da costa oeste da Inglaterra, cruzando o Oceano Atlântico

em direção à América do Sul, em seguida, passando pelo extremo sul africano com

o objetivo de chegarem à Oceania, e, por fim, navegando sobre os mares do Oceano

Pacífico para desembocarem na Nova Zelândia, os personagens de Jules Verne

incitam os leitores a conceber, geograficamente, esta “viagem extraordinária”. Num

contexto em que as descrições topográficas são importantíssimas, as descrições

prosopográficas buscam caracterizar os povos que habitam os lugares explorados

pelos personagens vernianos, como por exemplo, os índios habitantes da Patagônia

e os aborígines australianos. Para a construção dos retratos literários destes

personagens também podemos falar em diálogo intertextual com a revista Le Tour du

monde.

Certos de que encontrariam o Capitão Grant nos arredores da Patagônia,

depois de uma suposta compreensão do criptograma, os personagens para lá

navegaram e se depararam com uma terra rica em água doce, de rios abundantes

em peixes, de florestas ricas em animais de caça, mas sem patagão: “-Une

Patagonie sans Patagons, dit le géographe, ce n’est plus une

71

Patagonie.”122 Essa afirmação serviu como justificativa para que os personagens

fizessem elucubrações de como seriam esses indígenas, e através de um diálogo,

deixar transparecer a ideia que faziam desses povos ainda pouco conhecidos. Ideias

que se baseiam naquelas existentes desde os séculos anteriores, discursos de

autoridade que fazem do índio patagão, de modo geral, um homem grande, forte,

robusto, bom e servil:

Enfin, ce nom de Patagons, qui signifie “grands pieds” en espagnol, n’a pas
été donné à des êtres imaginaires.[...] Si Magellan a nommé Patagons les
indigènes de ces contrées, les Fuégiens les appellent Tiremenen, les
Chilliens Caucalhues, les colons du Carmen Tehuelches, les Araucans
Huiliches; Bougainville leur donne le nom de Chaoua, Falkner celui de
Tehuelhets! Eux-mêmes se désignent sous la dénomination de Inaken.
- Mais notre ami Paganel avouera, je pense, que s’il y a doute sur le nom
des patagons, il y a au moins certitude sur leur taille!
- Jamais je n’avouerai une pareille énormité, répondit Paganel.
- Ils sont grands, dit Glenarvan.
- Je l’ignore.
- Petits? demanda lady Helena.
- Personne ne peut l’affirmer.
- Moyens, alors? dit Mac-Nabbs pour tout concilier.
- Je ne le sais pas davantage.
- Cela est un peu fort, s’écria Glenarvan; les voyageurs qui les ont vus...
- Les voyageurs qui les ont vus, répondit le géographe, ne s’entendent en
aucune façon. Magellan dit que sa taille touchait à peine à leur ceinture!
- Eh bien!
- Oui, mais Drake prétend que les Anglais sont plus grands que le plus
grand Patagon!
- Oh des Anglais; c’est possible répliqua dédaigneusement le major; mais
s’il s’agissait des Écossais.
- Cavendish assure qu’ils sont grands et robustes, reprit Paganel. Hawkins
en fait des géants. Lemaire et Shouten leur donne onze pieds de haut.
- Bon, voilà des gens dignes de foi, dit Glenarvan.
- Oui, tout autant que Wood, Narborough et Falkner, qui leur ont trouvé une
taille moyenne. Il est vrai que Byron, la Giraudais, Bougainville, Wallys et
Cateret affirment que les Patagons ont six pieds six pouces, tandis que M.
d’Orbigny, le savant qui connaît mieux ces contrées, leur attribue une taille
moyenne de cinq pieds quatre pouces.
- Mais alors, dit lady Helena, quelle est la vérité au milieu de tant de
contradictions?
- La vérité, madame, répondit Paganel, la voici: c’est que les Patagons ont
les jambes courtes et le tronc développé. On peut donc formuler son opinion
d’une manière plaisante, en disant que ces gens-là ont six pieds quand ils
sont assis, et cinq seulement quand ils sont debout.
- Bravo! mon cher savant, répondit Paganel. Voilà qui est bien dit!123

Para uma melhor visualização das informações sobre a altura dos patagões acima

descritas, resumimos e organizamos no quadro abaixo, o nome do viajante seguido


da data de

122
VERNE, 1975b, p. 55.
123
VERNE, 1975b, p. 55-56.
72

sua expedição, segundo informações do próprio romance (salvo para Wood,

Narborough e Falkner que não têm a menção da data de suas viagens no romance),

e a altura que estes viajantes atribuíram aos patagões (transformadas para a métrica
que nos é conhecida):

Magalhães “Sua cabeça mal


(1520) tocava a cintura do
patagão”

Cavendish “Grandes e robustos”


(1592)

Hawkins “Gigantes”
(1593)

Lemaire e Shouten “Onze pés”


(1615) (3,30 m)

Wood, Naborough e “Altura média”


Falkner (?)

Byron, La Giraudais, “Seis pés e seis


Wallis, Bougainville e polegadas” (1,95m)
Cateret
(1764-1766)

Alcide d’Orbigny “Cinco pés e quatro


(1833) polegadas” (1,60m)

O relato de M. V. de Rochas, cirurgião da marinha imperial francesa e

explorador, que conta sua viagem ao Estreito de Magalhães, será considerado como

hipotexto para o texto de Verne. Publicado na revista Le Tour du monde a partir do

primeiro semestre de 1861, o relato apresenta, em nota de pé de página, dados

sobre a dúvida que se tinha em relação à altura dos patagões e resume, em certa

medida, o que alguns outros viajantes haviam dito sobre o mítico assunto:

Os companheiros de Magalhães fizeram, na sua volta, relatos fabulosos


sobre o estreito que eles tinham descoberto e percorrido através de inúmeros
perigos. Navegadores muito mais modernos, como o comodoro Byron e o
capitão Cateret, ainda exageram muito a altura dos patagões. Os oficiais
franceses da embarcação real Giraudais que visitou o Estreito de Magalhães
aproximadamente na mesma época, ou seja, no início do século XVIII,
admiraram gigantes de mais de sete pés!124

124
“Les compagnons de Magellan firent, à leur retour, des récits fabuleux sur le détroit qu’ils avaient
découvert et parcouru à travers des périls sans nombre. Des navigateurs beaucoup plus modernes,
comme le commodore Byron et le Capitaine Cateret, exagèrent singulièrement encore la taille de
Patagons. Les officiers français de la flûte royale Giraudais, qui visita le Détroit de Magellan à peu près
la même époque, c’est-à-dire au commencement du dix-huitième siècle, ont admiré des géants de plus
de sept pieds!” CHARTON, Édouard. Le Tour du monde. Jan/Jui 1861, p. 210.

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