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LÍNGUA, REPRESENTAÇÃO E IMAGINAÇÃO

3ª SÉRIE
22/04/2021

HABILIDADE: Identificar a importância da língua para a produção e a preservação de


saberes coletivos, bem como para representar o real e imaginar diferentes realidades.
CONTEÚDOS: O homem como ser de natureza e linguagem
OBJETIVO:
SUGESTÃO DE ATIVIDADE:
PÁGINA DO LIVRO:
PALAVRAS-CHAVE:
Na aula passada, havíamos passado pela noção de natureza e a linguagem do homem. Hoje
vamos nos aprofundar e esmiuçar a importância dessa linguagem seja para imaginar, seja para representar
realidades.
A aula é sobre linguagem. Parte-se de uma reflexão a respeito de uma palavra que não existe:
“chinforífola”. Chinforífola é uma palavra criada pelo personagem de Chaves. Com isso, somos
remetidos à definição de palavra: articulação de sons e ideias. Paralelo a isso, temos uma definição do que
é existência... Existência é ter um ser.
Diante dessa definição, podemos dizer que uma Chinforífola existe? Algumas respostas: se o
Chaves inventou, existe. Aqui percebemos que a palavra tem uma característica criadora. A narrativa tem
essa característica de criar. A palavra cria. Isso nos remete à querela entre o convencionalismo e o
naturalismo.
O convencionalismo entendia que os vocábulos nada mais são do que acordo entre os indivíduos.
Nesse sentido não existe uma referência engessada entre significante e significado. Os termos são
acordos. Por conta disso, os significantes mudam constantemente. A língua é viva.
Já os naturalistas (ou essencialistas) dizem que os vocábulos captam a essência das coisas. Os
nomes já representam as ideias a que fazem menção. Significado e significante remetem à essência. Por
exemplo, entende-se que o nome dado às pessoas remete à essência das coisas. Nessa visão, entende-se
que as coisas são ligadas aos nomes que essas coisas têm.
Há uma querela entre essas duas visões. Em Crátio, diálogo de Platão, diz-se que a linguagem
está em constante transformação. Portanto, essas transformações fazem com que os significados das
coisas mudem muito constantemente. Por exemplo, a palavra brincar vem do termo vínculo, que tem a ver
com aproximar pessoas. Vejam que interessante: os sentido vão mudando. Assim, a linguagem não teria a
característica de representar a realidade, porque a realidade permanece a mesma, e a linguagem muda. Já
Aristóteles diz outra coisa: a linguagem procede da ordem do mundo. Ao se entender a ordem do mundo,
tem-se a linguagem. Entender a ordem da lógica é entender o mundo.
***
Linguagem, no entanto pode não ser só representação. Pode ser imaginação também, ou seja,
linguagem pode ter a ver com crenças. Mesmo coisas que não têm existência podem influenciar a nossa
vida. Não vemos o estado. Ele é uma crença, uma imaginação, mas, mesmo assim, a crença do estado
molda a nossa vida concreta.
***
Ora, se somos capazes de criar uma realidade com nossa linguagem, é válido perguntar que que a
nossa existência só faz sentido se couber na realidade? As coisas só existem a partir do momento que
houver um nome para essa coisa?
Daí podemos sugerir uma outra pergunta: é possível preservar saberes e cultura sem linguagem?
Qual é a função da língua para essa preservação?
PREPARAÇÃO DA AULA

MATERIAL DE ESTUDO:
YouTube. “Ludwig Wittgenstein (A. C. Grayling)”. 26 de Abril de 2021.

Um dos autores abordados nas duas últimas aulas foi Ludwig Wittgenstein. Nessa aula teremos
uma leitura um pouco mais aprofundada dessa autor. Como de costume, faremos uma primeiro algumas
considerações gerais sobre o autor e, depois, tentaremos estabelecer alguma reflexão mais específica e
pertinente ao nosso dia a dia, com base nesse autor.
WITTGENSTEIN E SUA FILOSOFIA
Wittgenstein é um filósofo austríaco do século XX que se preocupou com a questão da
linguagem. Aqui poderíamos colocar um possível primeira dúvida: por que a filosofia, que normalmente
se ocupa com questões sobre ética, epistemologia, estética etc. deve se preocupar com linguagem? Para
entendermos isso, temos que recorrer às origens do pensamento Wittgenstein, que se encontram em um de
seus tutores/orientadores: Bertrand Russell.
Nossa aula não é sobre Russell, mas não nos será inútil dizer algumas coisas sobre esse filósofo:
Russell, de modo muito audacioso, tentou encontrar as fundações lógicas da matemática no seu trabalho
Principia Mathematica. Esse livro de Russell não teve grande impacto na comunidade filosófica de sua
época, mas o processo de feitura desse trabalho trouxe muitas coisas importantes para a filosofia
contemporânea. Por causa dessas descobertas “laterais, Russell pode ser considerado o “pano de fundo”
de toda a “filosofia analítica” contemporânea.
Mais precisamente, o ponto da filosofia de Russell que seria, depois, importante para
Wittgenstein é a questão sobre a necessidade de explicarmos como é possível conectar 1) o que dizemos
com 2) aquilo de que estamos falando, o que é o mesmo que perguntar sobre o que é que liga linguagem
e mundo.
Um dos problemas internos a essa questão é o chamado problema da “denotação”. Algumas
teorias no final do século XIX davam conta de que a língua tem um caráter denotativo, o que significa
dizer que para essa coisa que eu coloco ao redor do meu pulso esquerdo há um nome: “relógio de pulso”;
para aquela água que cai do céu de vez em quando, dou o nome de “chuva”, e assim por diante, ou seja,
tudo no mundo corresponderia a um nome e vice-versa. O problema dessa noção é que claramente há
nomes que não designam nada que existe no espaço e no tempo: “unicórnios”, por exemplo. A conclusão
que se costumava tirar disso é que deve haver alguma “subsistência” a termos como “unicórnios”,
metafísica que seja. O problema disso é que a língua passa a ter, nessa concepção, um caráter muito
arbitrário: poderíamos criar nomes o quanto quiséssemos, e, por essa teoria, seríamos obrigados a assumir
alguma existência relativa a esses nomes. Diante dessa dificuldade, Russell postula que as únicas palavras
que efetivamente poderiam ser consideradas “denotativas” de verdade são “este/esse” e “aquele”: sempre
que usamos esses pronomes demonstrativos é garantido que há uma relação de denotação. E quanto às
outras palavras?: as outras palavras são todas não-denotativas. Na verdade, todas essas outras palavras
são descrições disfarçadas. Para provar que as palavras são descritivas e não denotativas, Russell precisa
analisar a própria estrutura da linguagem.
Um exemplo de como se dá essa análise poderia ser encontrado no seguinte exemplo:
suponhamos que se nos fosse colocado o seguinte problema: “O atual rei do Brasil é inteligente”. Diante
disso, estaríamos inclinados a dizer que essa afirmação é falsa, mas não porque haja um rei do Brasil que
não é sábio, mas porque não há um rei do Brasil. Ou seja, o significativo disso é que eu nego a frase
sem precisar averiguar se a descrição da frase encaixa-se com o objeto descrito na frase. A falsidade
pode ser aferida ao olharmos para a estrutura da frase: se representarmos essa frase em termos puramente
lógicos, veremos que o que está sendo dito de fato é: “Há um senhor” e “Esse senhor tem a propriedade
de ser o rei do Brasil” e “esse senhor que tem a propriedade de ser rei do Brasil tem também a
propriedade de ser sábio”. Assim, fica mais claro que temos, na verdade, duas maneiras de tornar falsa
essa proposição: ou bem dizemos que o rei não é sábio ou bem dizemos que não há um rei do Brasil.
Esse problema está por trás do clássico exemplo da frase: “Você já parou de bater em sua
esposa?” Não é possível dizer sim, porque isso implicará dizer que batia antes; e também não é possível
dizer não, porque isso implicará que você batia e continua batendo em sua mulher. Uma resposta
diferente seria: Há uma suposição nisso que você está perguntando de que eu batia ou alguma vez bati em
minha mulher, e essa pressuposição não é verdadeira, de modo que eu não posso responder a essa
pergunta. Essa é um dos problemas que estavam no horizonte de Wittgenstein.
***
Entre outras coisas, foi a respeito desse problema que Wittgenstein escreveu o seu “Tractatus
logico-philosophicus”.
Wittgensein cresceu em uma família muito rica e influente de Viena (Áustria) na virada do
século XIX para o XX. Seu pai era um dono de indústria, um homem muito rico, que tentou educar seus
filhos em casa, o que comprovou ser um fiasco, porque Ludwig, quando saiu da escola não conseguiu ser
aprovado em nenhuma universidade importante. Por isso ele foi enviado para Linz para estudar em uma
escola técnica da em Berlin, onde ele viria a estudar aeronáutica. Em seguida, ainda com o desejo de
estudar aeronáutica, foi para a Universidade de Manchester, onde, pela primeira vez, deparou-se com
complexos problemas matemáticos de engenharia. Isso o remeteu ao estuda da matemática pura. Com
esses estudos, ele redigiu um artigo sobre os princípios da matemática e o enviou para o professor Frege,
em Jena. Frege, por sua vez, sugeriu que ele deveria aprofundar os seus estudos no assunto com Russell.
Assim, Wittgenstein finalmente foi a Cambridge procurar por Russell, de quem recebeu tutoria por 5
semestres.
Russell, nessa tutoria, despertou no jovem Wittgenstein o problema da linguagem, mas
especificamente, a pergunta: como é que a linguagem tem sentido? E qual é a lógica da língua?
Todo esse esforço, no entanto, é bruscamente interrompido pela irrupção da I Guerra Mundial
(1913), que levou Ludwig a alistar-se no exército, onde ele trabalhou como mecânico no front italiano.
Com a rendição da Áustria ao final da guerra, ficou preso por um tempo. Durante esse tempo, preso,
voltou-se à redação do Tractatus.
Esse livro, de uma maneira muito austera e econômica, colocou uma visão a respeito de como
linguagem e mundo podem se conectar e, assim, como linguagem pode ter sentido. Em termos muito
resumidos, o que Wittgenstein diz é o seguinte: tanto o mundo quanto a linguagem são coisas
complexas, e tudo que é complexo tem uma estrutura, e se olharmos para a estrutura, se a analisarmos até
os seus elementos, é possível ver como essas duas estruturas estão em paralelo uma com a outra.
Assim, de um lado temos o mundo e do outro, a linguagem. No mundo há fatos (que não se confundem
com coisas), que dão conta de como as coisas são arranjadas no mundo. Do outro lado, temos a
linguagem, que é composta de proposições (a expressão de um pensamento). A pergunta-chave, aqui,
é: como essas proposições se relacionam com os fatos do mundo? Para responder a isso, Wittgenstein
propunha que recorrêssemos aos elementos estruturais de cada uma dessas dimensões: fatos são
compostos de “estados de coisas”, que são feitos de “objetos”. Do outro lado, paralela a essa estrutura do
mundo, há a estrutura da linguagem: linguagem é feita de “proposições”, que são feitas de “proposições
elementares”, que são feitas de “nomes”. Assim: proposições descrevem fatos; proposições elementares
descrevem estado de coisas; e nomes denotam objetos. É nesse nível mais analisado que finalmente a
linguagem se conecta com o mundo. É assim porque, segundo Wittgenstein, o arranjo dos nomes nas
proposições são como uma “imagem” do arranjo dos objetos que constituem o estado de coisas.
Esse ideia da “imagem” é muito importante aqui. Imagem é algo com um sentido muito literal, porque
uma imagem captura o modo como diferentes estruturas podem ser representadas.
Um exemplo do que Wittgenstein queria dizer com essa ideia de “imagem” está na notação
musical que corresponderia às ondas musicais que afetam os nervos dos ouvintes em uma sala de
concerto. Da notação musical, podemos deduzir o que será escutado e vice-versa. Alguém bem treinado,
poderia escutar uma música e a transcrever. Isso é possível porque tanto a escrita musical quanto as ondas
compartilham uma imagem da música. A notação musical, então seria uma imagem da música
ouvida. Esse seria um exemplo da correspondência entre os nomes das proposições e os objetos.
Uma das consequência disso é que, no fim das contas, a linguagem pode ter sentido: desde que, pelo
menos em seu estrato mais básico tenha uma correspondência como imagem de um objeto do mundo real.
No entanto, há algo no Tractatus que vai além disso: segundo o próprio Wittgenstein, a tese mais
importante do Tractatus é relativa à segunda parte do livro, que não pôde ser escrita (voltaremos a
esse ponto depois).
Uma das consequências extraídas do Tractatus pelo próprio Wittgenstein é que, se uma
proposição é uma imagem, uma foto de um fato possível, então é dessa maneira que a linguagem tem
sentido, e se não há a imagem de um possível fato, então a linguagem NÃO TEM SENTIDO, É
VAZIA, É SEM SENTIDO. A consequência disso é que as únicas proposições possíveis são as
proposições da ciência ou do “senso comum”. Só a ciência e o “senso comum” usaria a língua de um
modo significativo. Mas e a respeito de todas as coisas que poderíamos dizer a respeito da ética, da
estética e da religião? Ora, as proposições desses campos não são imagens. Por isso, no sentido literal,
essas proposições seriam vazias de sentido. Wittgenstein, no entanto separa as coisas aqui: não ter
sentido não significa não ser importante. É essa a segunda parte "não escrita do Tractatus”: as coisas mais
importantes não podem ser ditas, porque suas proposições não são imagens de fatos possíveis
(votaremos a isso).
De todo modo, W. acha que resolveu todos os problemas da filosofia: só posso usar a linguagem
como “imagem”. A filosofia não trata de imagens, então não usa a linguagem de uma maneira
significativa (ética, estética etc. não tratam de imagens).
Durante algum tempo, depois de ter publicado o Tractatus, Wittgenstein não continuou seu
trabalho de pesquisa, até que esse seu livro passou a ganhar notoriedade por razões com as quais ele
próprio não concordava. Mais especificamente, os lógico-positivistas do Círculo de Viena, que
propunham que só as sentenças empiricamente verificáveis tinham sentido (e que, portanto, não havia
possibilidade uma ética etc.), pensaram que o Tractatus corroborava sua visão. Wittgenstein recusou-se a
fazer parte desse grupo, mas a leitura que se fez dele serviu para mostrar que ele, de fato, não tinha
resolvido todos os problemas da filosofia.
Isso serviu como incentivo para que Wittgenstein continuasse sua pesquisa sobre a linguagem na
Inglaterra a partir de 1929. Os resultados dessa pesquisa foram cursos que ele ministrou na Inglaterra.
Esses cursos foram agrupados em um livro que só viria a ser publicado depois da morte de Wittgenstein
com o nome “Investigações Filosóficas”. É nesse texto que encontramos o conceito de “jogos”.
Esse é um conceito central nessa nova fase do pensamento de Wittgenstein. Trata-se de uma
espécie de retratação a respeito das consideração do Tractatus. Trata-se de uma reformulação a respeito
da natureza da língua, de como a língua funciona. Seja como for, ele continua pensando que os
problemas filosóficos são problemas espúrios: eles surgem porque nós não entendemos o modo
como a língua funciona. A diferença é que agora temos uma visão totalmente diferente a respeito de
como a língua funciona. Agora, não se trata de dizer que a língua tem uma relação com o mundo. Ao
contrário, o sentido da língua surge dos usos que temos da língua. Agora, podemos ver que o Tractatus
nos dava uma visão muito empobrecido do que é a língua, porque lá, é como se só pudéssemos dizer: Isso
é uma mesa, Isso é um relógio, e assim por diante. Ou seja, como se a língua fosse só uma coleção de
proposições.
Com efeito, agora se reconhece, há uma infinidade de coisas que podemos fazer com a língua:
fazemos perguntas, damos ordens, expressamos nossos desejos, fazemos poesia etc.: fazemos muitos usos
da linguagem. Há, portanto, muitas áreas da linguagem.
O problema da filosofia, então, estaria no fato de assimilarmos os termos de uma área da
filosofia em outra área. O problema disso é que confundimos o uso de uma área com o uso que se faz em
outra área. A diferença de usos de termos em diferentes áreas é o que Wittgenstein chamava de jogo
de linguagens. Jogo, aqui, não deve ser entendido como algo sem importância. Jogo é um conjunto de
regras. O que devemos entender com o uso de uma peça de um jogo, por exemplo, é algo que é posto pela
tradição. Essas regras são formadas pela “forma da vida”: a forma como usamos a língua constitui o
sentido das expressões: o sentido de uma expressão é o uso que essa expressão tem em uma área da
linguagem1. Com isso vai-se a ideia de que é possível ligar a linguagem com algo que está além da
própria linguagem, porque o que funda a língua é o jogo da própria língua no uso que se faz dele
nas diferentes áreas geográficas, do conhecimento, nas diferentes classes sociais, nos diferentes
contextos, nas diferentes épocas. A língua é o que se faz da língua no seu uso. A língua é auto
constituída.
O significativo disso é que, se usamos uma expressão linguística em um jogo onde ele não
pertence, se você a tira do contexto, então você estará usando a expressão de modo equivocado,
porque você estará não entendendo o que aquilo quer dizer. Para Wittgenstein, essa é a origem dos
dilemas filosóficos: os dilemas filosóficos surgem do uso equivocado de termos, em contextos
equivocados. Se pudéssemos entender o uso correto, em seu contexto correto, em seu jogo correto, o
termo sobre o qual se montam os dilemas não seria problemático e, portanto, não haveria dilema.
Isso resolveria os problemas da filosofia.
Outra implicação dessa visão da linguagem como jogo tem a ver com o que ele chama de
“semelhança familiar” entre os jogos, ou seja: do mesmo jeito que os membros de uma família podem ter
algo que os identifique de modo similar (o tom de voz, a cor do cabelo, a espessura dos lábios, a altura),
também alguns jogos de linguagem podem parecer outros jogos de linguagem, mas, mesmo que
consideremos essas semelhanças, não há nenhum jogo que se confunda com outro jogo. Isso está já
pressuposto no uso da palavra “jogo”: por mais que xadrez e damas usem um tabuleiro parecido,
não são o mesmo jogo; por mais que truco e caxeta usem o mesmo baralho, não são o mesmo jogo;
por mais vôlei e basquete sejam jogados com as mão, não são o mesmo jogo.
A consequência disso é que não há nada de comum entre os jogos e, assim, não podemos
definir o que sejam os jogos.

1
Um exemplo interessante de como isso funciona, ou seja, de como o sentido é algo forjado no uso,
está nas diferenças interessantes que há entre o uso do idioma português (uma mesma língua) em
várias regiões do mundo diferentes: a respeito disso, seria interessante que os alunos vissem o pequeno
documentário da Folha de São Paulo a respeito das diferenças entre o português do Brasil e de outros
países: https://www.youtube.com/watch?v=qiHNYOnA0PY.
Nesse pequeno documentário, de modo muito didático e interessante, fala-se sobre a língua
portuguesa em termos históricos, sociológicos e, o que mais nos interessa: filosóficos. Por exemplo, em
3:06, um estudioso da língua pergunta: hoje, o galego e o português são a mesma língua? O estudioso
deixa a pergunta em aberto, mas nós, estudiosos de Wittgenstein já podemos dar alguma resposta,
não? Ora, se diferentes áreas da língua configuram esferas que não se conversam por formarem jogos
diferentes, então, se a diferença é de área geográfica, então o juízo continua valendo: de fato são
línguas diferentes pelo menos em alguma medida.
Proposta de atividade: Que se peça aos alunos que vejam o vídeo
https://www.youtube.com/watch?v=4vyTwDaJEpc (continuação do pequeno documentário acima) e
diga o que ele(a) acha que significa, NO SEU CONTEXTO (ou seja, no contexto do interior de São Paulo)
uma das palavras mencionadas pelas testemunhas do documentário (todas elas vivendo e usando a
língua fora do contexto do interior de São Paulo). Mais precisamente: diga o que você acha que
significa “estilar”, “pirangueiro”, “doido”, “baguio”, “feroz”, “bão”, “rapariga”.
É exatamente isso que ocorre com as línguas: pode até haver semelhanças, mas uma não pode ser
entendida como coincidente com a outra, e, segundo Wittgenstein, a história da filosofia é atravessada
de tentativas de, por assim dizer, jogar basquete em uma quadra de vôlei, ou uma tentativa de falar
português em Buenos Aires e assim por diante.
Já no final da vida, Wittgenstein dedicou-se estudar o problema da dúvida e certeza no
conhecimento das coisas. As notas que Wittgenstein fez a respeito desse tema foram coletadas por seus
alunos e foram publicadas no livro “Da certeza” (ou “Sobre a certeza”, dependendo da publicação).
Nesse livro, Wittgenstein aparece investigando algumas proposições de Hume, Kant e outros
filósofos a respeito do que deveríamos assumir como incontornável para ter certeza de algo. O
interessante disso é que, depois de se comprometer com a ideia de que a história da filosofia é um monte
de falta de sentido, Wittgenstein encontra-se finalmente fazendo filosofia.
***
Mas voltemos agora ao Tractatus para resolver uma questão que ficou em aberto: havíamos
lembrado que o mais importante do Tractatus era a metade “que não foi escrita”. A respeito disso, vale a
pena lembrar que uma das últimas coisas que se diz no Tractatus é que, se não podemos falar sobre
algo, então devemos nos manter CALADOS. Isso quer dizer o seguinte: a não ser que haja uma
proposição que seja uma imagem de uma fato, então o tema de que vamos falar é algo de que não
podemos falar. Assim, como a linguagem como imagem só pode ser verificada na ciência e no senso
comum, e como há outras coisas mais importantes que a ciência e o senso comum (como a moral, a arte, a
religião), seguem duas coisas: não podemos falar sobre essas coisas importantes. Só podemos manifestar
as nossas atitudes sobre elas.
É a isso que Wittgenstein se referia quando dizia que “o mundo dos homens felizes é totalmente
diferente do mundo dos homens infelizes.” Significado: o modo como você toma o mundo, sua orientação
no mundo é sempre uma expressão do que você pensa sobre ética, estética, religião etc. Ocorre que esses
temas são tão importantes, que não se deve falar sobre eles. Sua intenção aqui era proteger as questões da
ética etc. das usurpações das ciências naturais e sociais.
Se uma ciência social tentasse explicar por que há um comprometimento das pessoas com
determinada religião, com determinada orientação ética, então o engajamento das pessoas com essas
questões seria reduzida. O que ele tem em mente com isso é “não ver na pérola senão a doença da
ostra”, o que tira todo o valor e beleza das coisas ao se dar uma explicação científica.
Assim, de todas as coisas importantes em nossa vida, entre as quais as questões éticas, religiosas,
estéticas etc., não suportam discussão, ou seja, não sou coisas a que cabe discussão, razão,
significado, exame, pesquisa, porque este exame precisaria se dar através de proposições, e isso as
levaria a uma PERDA DE SENTIDO, porque essas coisas são do tipo sobre as quais não podemos
falar.
***
Sabe-se que Wittgenstein não falava muito sobre suas visões religiosas, nem sobre suas visões
sobre as relações humanas. Sabe-se também que ele tinha um pendor por estar sempre sozinho, o que
provavelmente pode ser explicado pelo fato de que ele era homossexual e, naquela época,
homossexualidade não era muito apreciada.
***
Wittgenstein, que fora durante toda a vida ajudado por B. Russell, acabou fazendo grandes
contribuições para a Filosofia através de argumentos feitos para contrariar Russel. Um desses argumentos,
é o argumento da “língua privada”. Russell, depois de ser liberado de sua prisão em 1918, deu uma
série de palestras com o nome “Lectures on logical atomism”. Essa era a versão mais ou menos reduzida
de Russell do Tractatus. Com efeito, Russell e Wittgenstein estavam discutindo esses temas antes da
guerra, depois da qual cada um deles seguiu um caminho diferente, embora a ideia que ambos tinham da
língua era mais ou menos a mesma: há estrutura no mundo e na língua, e que a base dessa estrutura
deveria fazer corresponder perfeitamente o mundo com a linguagem.
Apesar das semelhanças com o Tractatus, esse curso de Russell tinha uma pressuposição,
muito comum entre todos os epistemologistas desde Descartes, que partia dos conteúdos de sua
própria consciência: eu seu o que eu sou, eu sou uma coisa pensante etc. Ou seja, desse modo, haveria
uma perspectiva interna através da qual eu poderia constituir um grau de certeza de coisas fora de
mim mesmo. De certo modo, segundo Wittgenstein, isso era precisamente o que Russell estava
fazendo: ele estava partindo de um elemento da consciência, a partir do qual ele inferia uma mundo
externo. Teríamos, dessa maneira, condições de representar perfeitamente o mundo fora de nós.
Para Wittgenstein, isso era um grande problema, porque, se você começasse como uma espécie
de Robinson Crusoe, ou seja, como uma figura totalmente sozinha, ou seja, se você tivesse que dar conta
do mundo totalmente por si mesmo desde o princípio, como você o poderia fazer? Isso é o mesmo que
perguntar: como é que poderia haver uma língua privada para você mesmo para construir o
conhecimento a respeito do mundo externo?
Claro, não há necessidade de uma língua ser pública para existir. Suponhamos que você fosse
colocado em uma ilha deserta por algum motivo, antes que você tivesse a chance de ser exposto a
qualquer tipo de língua. Você tem sorte de sobreviver e, um dia um coco cai sobre sua cabeça e isso lhe
dá uma dor de cabeça. Diante disso, você resolve chamar esse sentimento de “dor de cabeça”. Seis meses
depois, você recebe outro coco na cabeça e, novamente, tem uma dor de cabeça. Você, então, procura
saber como chamou esse sentimento na primeira vez: “dor de cabeça”. Ora, como é que você sabe que
usou esse som para denotar a experiência que teve na última ocasião?: pela memória. E eis que aqui
temos um problema: em termos jocosos, é como se olhássemos para um jornal, víssemos uma
notícia escandalosa e, incrédulos, resolvêssemos comprar outro jornal da mesma marca para nos
certificarmos de que a notícia realmente é aquela que apresentamos. Isso nos mostra que, usando
um língua privada, nunca teríamos certeza de estarmos falando de um mesmo termo com um
mesmo sentido A NÃO SER QUE NOS LEMBRÁSSEMOS DE UMA COMUNIDADE
LINGUÍSTICA QUE PUDESSE CONTROLAR O USO QUE TEMOS DAS EXPRESSÕES.
Portanto uma língua privada é algo impossível para Wittgenstein. Evidentemente, poderia haver
uma língua privada enquanto algo contingente, como, por exemplo, as línguas inventadas, como códigos
(o código morse, por exemplo), mas o ponto é que justamente essas línguas podem ser traduzidas para
uma LÍNGUA PÚBLICA. Assim, mesmo essas línguas inventadas não é logicamente privada.
O ponto desse argumento é que, se não pode haver uma língua privada, então não pode haver
um ponto de partida como aquele de que parte Descartes e tantos outros filósofos que quiseram
basear o conhecimento nesse ponto. Assim, voltamos à conclusão sobre a caracterização dos jogos:
o sentido, a epistemologia é algo que só pode ser dado(a) na medida em que se estiver inserido em
algo público, ou seja, na medida em que se dominar as regras de um certo jogo público.

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