Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
recurso aos tribunais como meio para obter o reconhecimento e efetivação prática de um
direito vem igualmente indicado na lei civil substantiva (vide, nomeadamente, os arts.
817.º e ss. para os direitos de crédito e art. 1311.º para o direito real de propriedade),
mas tem o seu lugar próprio na lei processual ou adjetiva.
Todavia, em certas hipóteses em que não é possível acionar em tempo útil os
mecanismos estaduais e, além disso, o particular está em condições de atuar pelos seus
próprios meios para realizar ou salvaguardar o exercício do direito, é consentido o
recurso à garantia privada, desde que respeitados certos limites nessa atuação.
No capítulo I do subtítulo IV (relativo ao exercício e tutela dos direitos) da Parte
Geral da lei civil portuguesa estão previstas três modalidades de autotutela dos direitos,
a saber: a ação direta, no art. 336.º; a legítima defesa, no art. 337.º e o estado de
necessidade, no art. 339.º.
II.O art. 336.º CC permite ao titular de um direito – «é lícito…» começa por
dizer-se no n.º 1 – recorrer à força com o fim de realizar ou assegurar o seu próprio
direito. Esta atuação pode consistir, conforme o n.º 2 da mesma norma, «na apropriação,
destruição ou deterioração de uma coisa, na eliminação da resistência irregularmente
oposta ao exercício do direito, ou noutro acto análogo». Requisito de admissibilidade do
recurso à ação direta é a urgência ou premência da atuação do agente «pela
impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais». É, na verdade,
esta inviabilidade do recurso em tempo útil aos mecanismos públicos de tutela dos
direitos que justifica a garantia privada dos direitos3. Além disso, para que a atuação
seja lícita, isto é, conforme ao ordenamento jurídico, é preciso que sejam respeitados os
seguintes limites: que não se sacrifiquem interesses superiores aos que o agente visa
realizar e que o agente não exceda o necessário para evitar o prejuízo. O agente não
poderá portanto lesar interesses, valorativa ou economicamente, superiores aos que visa
salvaguardar. Quando o agente vá além daquilo que é necessário para assegurar a defesa
do seu direito, a sua atuação torna-se ilícita, podendo ser fundamento de
responsabilidade civil. A atuação do agente é também ilícita quando este procede na
convicção errónea de estarem preenchidos os pressupostos da ação direta. O legislador
do direito ameaçado», a que o titular do direito pode recorrer para salvaguardar o efeito útil da ação
judicial (cfr. os arts. 362.º e ss. CPC).
3
Os tribunais portugueses têm recusado o recurso à ação direta do dono da obra quando, feita a
denúncia de defeitos, o empreiteiro não proceda voluntariamente à eliminação dos defeitos. Com a
ressalva da situação de urgência na realização das obras (para evitar, por exemplo, a ruína do imóvel), o
dono da obra tem de recorrer à via judicial para obter a realização do seu direito. Cfr., entre outros, o
Acórdão STJ de 07.07.2010, e o Acórdão da Relação do Porto de 20.12.2011, ambos inwww.dgsi.pt.
3
4
Esta solução é alvo da crítica de H. HÖRSTER, op. cit., p. 234, por considerar que quem recorre
à ação direta «assume um risco especial, onde todos os cuidados são poucos», devendo ficar obrigado à
reparação dos danos causados independentemente da desculpabilidade do erro.
5
Assim, não são válidas as cláusulas de contrato de locação em que se preveja a possibilidade de
o locador reassumir a detenção da coisa locada pelos seus próprios meios, quando, na sequência do
incumprimento do contrato, o locatário não desocupe imediatamente a coisa locada. Para o contrato de
instalação de lojista em centro comercial, em que frequentemente se prevêem cláusulas de ação direta em
caso de resolução do contrato com fundamento em incumprimento das obrigações contratuais do lojista,
cfr. as seguintes decisões jurisprudenciais: Acórdão do STJ de 30.06.2009; Acórdão do STJ de 1 de Julho
de 2010; Acórdão da Relação de Coimbra de 24.01.2017; Acórdão da Relação de Lisboa de 09.02.2017,
todos in www.dgsi.pt.
4
HIPÓTESES ILUSTRATIVAS:
1) António é proprietário de um terreno agrícola em que explora uma plantação
de milho. Bernardo, seu vizinho, tem um terreno agropecuário. Por diversas vezes, as
galinhas de Bernardo entraram no terreno de António e causaram danos na sua
plantação de milho, tendo António, nessas ocasiões, pedido a Bernardo que controlasse
os seus animais. Cansado de não ser ouvido, António embebeu alguns grãos de milho
em veneno, tendo matado os galináceos que entraram no seu terreno. Teria António
cometido um ilícito?
A admissibilidade do recurso à força própria para salvaguarda de direitos está
limitada às hipóteses excecionalmente reconhecidas pelo legislador. A atuação de
António não seria ilícita se podermos considerar que configura ação direta prevista no
art. 336.º CC. A ação direta consiste no emprego de meios próprios para evitar a
inutilização prática de direito. São requisitos de conformidade jurídica da atuação a
indispensabilidade do recurso à ação e o equilíbrio ou proporcionalidade da atuação: o
agente não pode exceder o necessário para evitar o prejuízo (n.º 1, parte final) e também
não pode sacrificar interesses superiores aos que visa salvaguardar (n.º 3). Estaria
justificada, sendo lícita, a atuação de António para evitar a danificação da sua cultura,
ou seja, para defesa do seu direito de propriedade. A aferição da impossibilidade de
recorrer em tempo útil «aos meios coercivos normais» tem de ser vista em ligação com
o objetivo de evitar a inutilização prática do direito, de modo que julgamos estar
preenchido o pressuposto da necessidade de recurso à ação direta – a decisão de uma
autoridade judicial não permitiria, pela sua demora, evitar o prejuízo da plantação.
Dúbia seria apenas a proporcionalidade da atuação: existiriam outras medidas de que o
agente se pudesse socorrer para evitar o prejuízo, cujas consequências fossem menos
gravosas para Bernardo?