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O rapto

Alcides, luso-brasileiro residente em Portugal, desesperado com a urgência na obtenção


de uma avultada quantia em dinheiro destinada à cirurgia necessária a salvar a vida da
sua filha Beatriz, decide raptar Carlos, presidente do Conselho de Administração de uma
conhecida instituição de crédito, sediada em Espanha. Para tal, no dia 26 de Dezembro de
2014, pelas 14 horas, quando Carlos saía de um restaurante em Madrid, Alcides
interceptou-o e conduziu-o, sob ameaça de uma pistola, até junto da sua viatura. Aí,
entraram para o banco de trás, tendo Dalila, sudanesa, mulher de Alcides e mãe de
Beatriz, arrancado, prontamente, até uma casa isolada nos arredores de Bilbao, onde
Carlos foi aprisionado. Na manhã seguinte, é feito o pedido de resgate: € 300.000 contra
a entrega, são e salvo, de Carlos.

Após alguma hesitação, os administradores do Banco, assessorados pela polícia,


acabaram por aceder ao pedido e, em 3 de Janeiro de 2015, deixaram o dinheiro no local
acordado (próximo do Museu do Prado).

No dia 5 de Janeiro, Alcides, que vigiara Carlos todo este tempo, libertou-o em Badajoz.

A 7 de Janeiro, Alcides e Dalila regressaram a Portugal, onde ultimam os preparativos


para a deslocação a Londres, onde se realizará a intervenção cirúrgica da pequena Beatriz.

Sabendo que:

i) Dalila foi cúmplice no crime de rapto de Alcides e que a sua actuação se


circunscreveu à condução da viatura de Alcides no dia 26 de Dezembro;

E supondo que:

i) Em 30 de Dezembro de 2014, entrou em vigor uma Lei, que aditou ao Código


Penal o artigo 161.º-A, que pune o rapto qualificado que perdure por mais de sete
dias com uma pena de prisão de 6 a 16 anos;
ii) Em 31 de Dezembro de 2014, entrou em vigor uma Lei, que modificou a punição
do rapto qualificado previsto na alínea a) do número 2 do artigo 161.º do Código
Penal para uma pena de prisão de 5 a 15 anos;
iii) Em 1 de Janeiro de 2015, foi publicada uma Lei, que modificou a punição do rapto
qualificado previsto na alínea a) do número 2 do artigo 161.º do Código Penal
para uma pena de prisão de 6 a 15 anos;

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iv) Em 7 de Janeiro de 2015, entrou em vigor um Decreto-Lei não autorizado, que
modificou a punição do rapto qualificado previsto na alínea a) do número 2 do
artigo 161.º do Código Penal para uma pena de prisão de 3 a 12 anos;
v) No Sudão, o rapto pode ser punido com pena de morte;
vi) Em 8 de Janeiro de 2015, o Estado espanhol requisitou a extradição de Alcides e
o Estado sudanês a extradição de Dalila, comprometendo-se o seu embaixador em
Lisboa, com a sua palavra de honra, em como a pena de morte estaria, neste caso,
fora de cogitação;
vii) Em 9 de Janeiro de 2015, Alcides renunciou à nacionalidade portuguesa,
solicitando, de imediato, o registo da sua declaração, o que viria a ocorrer dois
dias depois; e
viii) Em 13 de Junho de 2015, um tribunal de Lisboa condenará Alcides e Dalila “na
pena máxima prevista na lei” (sic) pelo rapto contra Carlos, “atendendo à
ignomínia que representou a deslocação física imposta à vítima e a inerente
privação da sua liberdade, inaceitável num Estado de Direito, como decorre,
desde logo, do artigo 27.º da CRP” (sic);

Responda, fundamentadamente, às questões que se seguem:

1) Determine a competência espacial da lei penal portuguesa, relativamente


ao crime de rapto, quanto a Alcides e a Dalila.

Com o intuito de determinar a competência espacial da lei portuguesa no


contexto da situação descrita, importa ponderar a questão relativamente a
Alcides e Dalila.
No que respeita a Alcides, haverá que estabelecer, num primeiro momento, o
local da prática do facto. Para esse efeito, compete considerar o disposto no
artigo 7.º/1 do CP, que prevê um critério misto ou plurilateral de conduta e
resultado. De acordo com este critério, entende-se que a conduta terá sido
praticada tanto no local onde o agente actuou, como no local onde se produziu
o resultado típico. Analisando o texto da hipótese, conclui-se que estará em
causa a prática de um crime de rapto, consagrado no artigo 161.º/1c) do CP.
A este propósito, cumpre desde já sublinhar que o crime de rapto surge como
um crime duradouro, o que significa que a respectiva consumação é

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susceptível de se prolongar no tempo. Por esse motivo, será adequado afirmar
que desde que Alcides intercepta Carlos, até ao momento em que o liberta,
consuma a prática de um crime de rapto.
Assim, no que concerne a este agente, dir-se-á que o lugar da prática do facto
se reconduz a Espanha, já que tanto a actuação de Alcides como a produção
do resultado típico se verificaram nesse país. Consequentemente, haverá que
excluir a aplicação do artigo 4.º do CP, bem como o recurso ao critério da
territorialidade. Com efeito, a prática do facto ocorreu num país estrangeiro.
Deste modo, impõe-se atentar ao artigo 5.º do CP, que se refere à competência
da lei penal portuguesa no caso de os factos terem sido praticados fora do
território nacional.
Desde logo, haverá que excluir as alíneas a) e b) do número 1 desta norma,
visto que, por um lado, o crime em causa não se reconduz a nenhum dos tipos
consagrados na alínea a); e, por outro, não se trata de um crime praticado por
um português, contra um português. Assim, urge atender à alínea c) da
mencionada disposição – que consagra o critério da universalidade – na qual
se inclui o crime de rapto, previsto no artigo 161.º do CP.
A possibilidade de concluir pela competência da lei portuguesa à luz desta
alínea depende da verificação cumulativa de três pressupostos: (i) tratar-se de
um crime p.e.p. num dos artigos indicados; (ii) o agente ser encontrado em
Portugal; (iii) o agente não poder ser extraditado ou entregue em resultado de
execução de mandado de detenção europeu ou de outro instrumento de
cooperação internacional que vincule o Estado Português.
Quanto aos dois primeiros requisitos, verificámos anteriormente que se
encontram observados. De facto, está em causa um crime de rapto, punível
nos termos de um dos preceitos indicados nesta alínea c), e o agente foi
encontrado em Portugal.
Desta maneira, resta apenas aferir do cumprimento da terceira condição
mencionada, relativa à extradição ou entrega de Alcides. Neste contexto,
releva sublinhar que se dará este pressuposto por cumprido caso Alcides não
possa ser extraditado ou entregue. Na eventualidade de se concluir pela
viabilidade dessa entrega, haverá que excluir a aplicabilidade da lei
portuguesa, nos termos do artigo 5.º/1c) do CP.

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Aqui chegados, impõe-se determinar, numa primeira fase, a que título e para
que fins poderia Alcides ser extraditado ou entregue. Isto é, cumpre aferir se
estaremos perante uma situação enquadrável no âmbito da Lei n.º 144/99 de
31 de Agosto (LCJMP) ou reconduzível ao regime do Mandado de Detenção
Europeu, regulado na Lei n.º 65/2003 de 23 de Agosto (LMDE).
Concomitantemente, releva definir se Alcides seria entregue para efeitos de
procedimento criminal ou para execução/ cumprimento de pena.
Quanto ao primeiro aspecto, não parecem restar dúvidas que estaremos
perante uma hipótese integrada na LMDE. Conforme resulta da análise do
caso, o país de emissão é Espanha, um Estado-Membro da União Europeia.
Com efeito, considerando o disposto no artigo 1.º do mencionado diploma, o
mandado de detenção europeu é executado com base no princípio do
reconhecimento mútuo e em conformidade com a Decisão Quadro n.º
2002/584/JAI, do Conselho de 13 de Junho. Em paralelo, a LCJMP determina,
no respectivo artigo 3.º/1, a prevalência dos tratados, convenções e acordos
internacionais. Ademais, cumpre aludir ao disposto no número 1 do artigo 2
da LMDE, que refere que a emissão do mandado de detenção europeu só será
admissível se os factos em causa forem puníveis com uma pena não inferior a
12 meses, ou, quando a finalidade se reconduzir ao cumprimento de pena, a
sanção aplicada tenha duração não inferior a 4 meses. Neste contexto, parece
verosímil concluir que o crime de rapto seria punível com uma pena de prisão
superior a 12 meses.
Ainda a propósito do âmbito de aplicação do diploma, parece relevante
considerar o número 2 do artigo 2.º, que trata das situações em que a entrega
será possível sem controlo da dupla incriminação. Conforme mencionado, o
tipo de ilícito reconduz-se ao rapto. Ora, esta infracção consta da alínea q) do
artigo 2.º/2 da LMDE. Equivale isto a afirmar que, no presente caso, a entrega
de Alcides não estaria dependente do controlo da dupla incriminação, se o
crime de rapto fosse punido em Espanha com uma pena de prisão de duração
máxima não inferior três anos.
Sobre o segundo ponto, afigura-se claro e inequívoco que Alcides será
entregue para efeitos de promoção da acção penal, pela prática de um crime
de rapto.

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Isto dito, haverá que destacar a circunstância de Alcides ser um cidadão
nacional, o que poderia constituir um obstáculo à sua entrega. Nos termos do
disposto no artigo 33.º/3 da CRP, a extradição de cidadãos portugueses do
território nacional só é admitida em certas condições. Aqui, impõe-se recordar
que, segundo o descrito no ponto vii), Alcides renunciou à nacionalidade
portuguesa em 9 de Janeiro de 2015, tendo essa renúncia produzido efeitos a
11 de Janeiro.
Como se intui, este facto poderá revelar-se importante se o pedido de entrega
for avaliado em data posterior a 11 de Janeiro de 2015. De facto, aludindo ao
disposto no artigo 32.º/6 da LCJMP – a que aqui se recorre, exclusivamente
por ausência de previsão idêntica da LMDE – a qualidade de nacional é aferida
no momento em que seja tomada a decisão sobre a extradição. Assim, se o
pedido de Espanha for analisado depois de 11 de Janeiro de 2015, Alcides já
não será considerado um cidadão nacional, e as restrições impostas em
situações de entrega de cidadãos nacionais não se lhe aplicarão. Caso
contrário, Alcides conservará ainda a qualidade de nacional.
Em qualquer cenário, urge atentar ao artigo 11.º da LMDE, que prevê causas
de recusa de execução do mandado de detenção europeu. Em rigor, apenas
nestas hipóteses será inviabilizada a entrega de Alcides, pelo que não haverá
que atentar a qualquer outro normativo. Tanto quanto resulta do descrito na
hipótese, não estamos perante nenhum dos cenários previstos nesta norma, o
que significa que Alcides poderá ser entregue a Espanha.
De todo o modo, haverá que destacar o disposto no artigo 13.º/1b) da LMDE,
aplicável ao caso sub judice. De acordo com esta alínea, quando a pessoa
procurada para efeitos de procedimento criminal for nacional ou residente no
Estado Membro de execução, a decisão de entrega pode ficar sujeita à
condição de que a pessoa procurada, após ter sido ouvida, seja devolvida ao
Estado Membro de execução para nele cumprir a pena a que tenha sido
condenada no Estado Membro de emissão. Neste sentido, Portugal poderia
entregar Alcides e solicitar que este viesse, ulteriormente, cumprir pena em
território nacional.
Assim, impunha-se concluir pela possibilidade de entregar Alcides, o que
significa que o terceiro requisito elencado na alínea c) do número 1 do artigo

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5.º do CP não se encontrava observado. Consequentemente, a lei portuguesa
não seria, nestes termos, aplicável.
“Apesar de se tratar de um crime previsto na alínea c) do número 1 do artigo
5.º do CP, o critério da universalidade ou da tutela transnacional de
determinados crimes, considerados pela comunidade internacional, como
lesivos de bens jurídicos supranacionais, não se pode aplicar a qualquer
conduta que seja subsumível a um dos tipos aí elencados. É possível defender-
se que, para que se possa aplicar a alínea c) é necessário, para além de se
tratar de um dos crimes aí previstos, que se trate de um crime que coloque em
causa bens jurídicos supranacionais (crimes contra a humanidade ou
condutas integradas na prática de tais crimes, como pode ocorrer com as
condutas associadas ao terrorismo internacional: rapto por motivos políticos,
por exemplo), ou de um crime de execução internacional (no que respeita ao
tráfico de pessoas, tráfico de crianças e às redes internacionais de pedofilia).
Consequentemente, a alínea c) não seria aplicável a este caso, pois trata-se
de uma infracção comum. Aplicar-se-ia então a alínea e) do número 1 do
artigo 5.º do CP. Para que, por esta alínea, os tribunais portugueses
possuíssem competência internacional penal, seria necessário que: (i) o
agente fosse encontrado em Portugal (o que se verifica); (ii) que a infracção
seja punível pela lei espanhola (o que também se verifica, como resulta da
apresentação de um requerimento de extradição); (iii) que a extradição não
possa ser concedida. Ora, como já vimos, Alcides poderia ser extraditado
para Espanha, pelo que não haveria competência dos tribunais nacionais”(1).

Ocupando-nos agora da situação de Dalila, releva sublinhar, desde já, que


estamos perante um caso de cumplicidade material (artigo 27.º/1 do CP), visto
que Dalila se limitou a conduzir o veículo usado para transportar a vítima.
Desta forma, apesar de estar em causa a cumplicidade na prática de um crime
duradouro, a infracção cometida por Dalila assume carácter instantâneo. Isto
dito, haverá que determinar o local da prática do facto, com recurso ao critério
misto ou plurilateral da conduta e do resultado, consagrado no artigo 7.º do
CP.

(1)
Resolução alternativa, constante da proposta de correcção deste teste de avaliação contínua, desenvolvida
pela Professora Inês Ferreira Leite.

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Como é óbvio, a actuação e o resultado do ilícito praticado por Dalila
verificaram-se integralmente em Espanha, pelo que será este o lugar da prática
do facto. Uma vez mais se afasta o disposto no artigo 4.º do CP, e a
competência dos tribunais portuguesa por efeitos do princípio da
territorialidade.
Assim sendo, cumpre aludir novamente à previsão do artigo 5.º/1 do CP. Nos
termos explicitados anteriormente, exclui-se a aplicação das alíneas a) e b)
deste preceito, visto que o crime de rapto não conta do elenco referido na
primeira, e não foi praticado nem por um português, nem contra um português.
Consideremos, por isso, a alínea c).
Conforme explanado, para que se afirme a competência da lei portuguesa ao
abrigo desta disposição exige-se o cumprimento de três requisitos: (i) que se
trate de um crime aí mencionado; (ii) que o agente seja encontrado em
Portugal; e (iii) que a extradição não possa ser concedida. Os pressupostos
elencados em (i) e (ii) acham-se verificados, pelo que falta aferir da
possibilidade de extraditar Dalila.
Nesta situação, dúvidas não subsistem que estamos perante uma questão
reconduzível à LCJMP, uma vez que o Estado requisitante não é um Estado
Membro da União Europeia, e inexiste qualquer indicação quanto à vigência
de tratado ou acordo internacional entre os dois países (artigo 3.º da LCJMP).
Deste modo, diremos que o pedido de extradição deduzido pelo Sudão destina-
se a que se seja movido, contra Dalila, o competente procedimento criminal,
pela prática de um crime de rapto.
Neste contexto, assume inegável importância a circunstância de, no Sudão, o
crime de rapto poder ser punido com pena de morte. De facto, atendendo ao
disposto no artigo 33.º/6 da CRP, não é admitida a extradição por crimes a que
corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena de morte.
Previsão idêntica se encontra no artigo 6.º/e) da LCJMP, excepcionada,
todavia, pela alínea a) do número 2 da mesma norma.
Nos termos desta excepção, o pedido de extradição poderá ser deferido se o
Estado requisitante tiver previamente comutado a pena de morte, por acto
irrevogável e vinculativo para os seus tribunais. Na hipótese em análise, o
embaixador sudanês em Lisboa ter-se-ia comprometido, com a sua palavra de
honra, que a pena de morte estaria fora de cogitação. Todavia, este

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compromisso verbal não constitui um acto vinculativo para os tribunais
sudaneses, revelando-se insuficiente à luz dos critérios indicados no número
3 deste artigo 6.º da LCJMP. Em consequência, haverá que concluir pela
impossibilidade de extraditar Dalila, e dar como verificado o terceiro
pressuposto previsto na alínea c) do número 1 do artigo 5.º do CP. Assim,
Dalila será julgada em Portugal, ao abrigo da lei portuguesa, com base nessa
disposição.
“Apesar de se tratar de um crime previsto na alínea c) do número 1 do artigo
5.º do CP, o critério da universalidade ou da tutela transnacional de
determinados crimes, considerados pela comunidade internacional, como
lesivos de bens jurídicos supranacionais, não se pode aplicar a qualquer
conduta que seja subsumível a um dos tipos aí elencados. É possível defender-
se que, para que se possa aplicar a alínea c) é necessário, para além de se
tratar de um dos crimes aí previstos, que se trate de um crime que coloque em
causa bens jurídicos supranacionais (crimes contra a humanidade ou
condutas integradas na prática de tais crimes, como pode ocorrer com as
condutas associadas ao terrorismo internacional: rapto por motivos políticos,
por exemplo), ou de um crime de execução internacional (no que respeita ao
tráfico de pessoas, tráfico de crianças e às redes internacionais de pedofilia).
Neste caso, mais do que a propósito de Alcides, a opção é relevante, pois não
sendo aplicável a alínea c), resta apenas a ponderação da aplicabilidade da
alínea f), já que se trata de crime praticado por estrangeiro, no estrangeiro.
E, para que esta alínea possa conferir competência penal internacional aos
tribunais portugueses, torna-se necessário que a extradição seja
efectivamente requerida, sendo então recusado o pedido. Já na alínea c),
basta que a extradição não seja possível, não sendo necessária a
apresentação de qualquer pedido de extradição. Em qualquer dos casos, a
solução seria a mesma: Dalila não podia ser extraditada para o Sudão,
devendo ser julgada em Portugal, desta feita de acordo com a alínea f) do
número 1 do artigo 5.º”(2).

(2)
Resolução alternativa, constante da proposta de correcção deste teste de avaliação contínua, desenvolvida
pela Professora Inês Ferreira Leite.

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2) Admitindo que a lei penal portuguesa é competente, qual a lei aplicável,
relativamente ao crime de rapto, quanto a Alcides e Dalila?

De forma a averiguar qual a lei aplicável à conduta perpetrada por Alcides,


importa desde logo determinar a lei vigente no momento da prática do facto.
Com efeito, atendendo aos princípios da culpa e da segurança jurídica, o
agente tem que ter a possibilidade de se motivar pelas normas e decidir agir
contra elas (artigos 29.º/1 e 3 da CRP e 2.º/1 do CP). Assim, o artigo 3.º do
CP – ao estabelecer um critério unilateral de conduta – determina que o facto
se considera praticado no momento em que o agente actuou.
A este propósito, cumpre ainda ter em atenção que estamos, no caso, perante
um crime duradouro. Equivale isto a afirmar que a consumação deste crime é
susceptível de se prolongar no tempo, estendendo-se o momento da prática do
facto entre 26/12/2014 e 05/01/2015. Assim, impõe-se, num primeiro
momento, verificar que leis estiveram em vigor entre estas datas e, de entre
elas, determinar a que seria aplicável a Alcides.
Com esse intuito, definiremos como Lei 1 o regime previsto no artigo 161.º/1
c) e número 2 a) do CP, que pune o crime de rapto a título agravado, quando
de duração superior a 2 dias, com uma pena entre 3 e 15 anos de prisão. No
que se refere a esta lei, diremos que os respectivos pressupostos se acham
observados, uma vez que entre 26/12 e 05/01 decorrem mais do que 2 dias.
Deste modo, a L1 constitui uma lei vigente no momento da prática do facto e,
em princípio, aplicável à conduta de Alcides.
A Lei 2, por seu turno, entrou em vigor no dia 30/12, aditando o artigo 161.º-
A ao CP. Segundo este preceito, o rapto que perdure por mais de 7 dias será
punido com uma pena de prisão de 6 a 16 anos. Ao contrário do referido a
propósito da L1, o ilícito típico praticado por Alcides não preenche os
elementos constantes desta nova incriminação. Se bem virmos, entre 30/12 e
05/01 não decorrem mais de 7 dias, o que significa que não estão observadas
as qualidades típicas descritas nesta norma. Por essa razão, haverá que excluir
a aplicabilidade da L2, sob pena de violação do princípio da irretroactividade
da lei penal desfavorável, e dos fundamentos que lhe subjazem, associados à

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garantia de segurança jurídica em matéria de direitos, liberdades e garantias,
e ao princípio da culpa (artigo 29.º/4, 1.ª parte da CRP e 2.º/1 do CP).
Concentrando-nos por ora na Lei 3 – que entrou em vigor no dia 31 de
Dezembro de 2014, elevando o limite mínimo da respectiva pena de 3 para 5
anos – não parecem existir impedimentos à sua aplicação ao comportamento
de Alcides. Em rigor, trata-se de uma lei vigente no momento da prática do
facto, encontrando-se integralmente satisfeitos os respectivos elementos
típicos. Efectivamente, entre 31/12 e 05/01 decorreram mais do que 2 dias.
Assim sendo, observa-se uma alteração da concepção legislativa quanto à
pena, havendo que atender à expressão mais actual do juízo do legislador
relativamente à dignidade e merecimento punitivo do rapto. Desta forma, e de
acordo com a regra geral de que lei posterior revoga lei anterior,
consideraremos a Lei 3 aplicável a Alcides, incorrendo o agente numa pena
de prisão entre 5 e 15 anos.
Quanto à Lei 4 – publicada em 01/01/2015 – importa recordar que, salvo
indicação em contrário, o seu prazo de vacatio legis será de 5 dias, nos termos
do artigo 2.º/2 da Lei Formulária (Lei n.º 74/98 de 11 de Novembro). Neste
sentido, a sua vigência iniciar-se-á posteriormente à prática do facto, pelo que
deverá ser analisada nessa sede.
Em suma, diremos que a lei vigente no momento da prática do facto era a L3,
que punia o crime de rapto que durasse mais do que 2 dias com uma pena de
prisão entre 5 e 15 anos.
Neste ponto, cumpre indagar da existência de leis posteriores à L3.
Conforme vimos, a L4 entrou em vigor no dia 7 de Janeiro, surgindo como
uma lei posterior à lei vigente no momento da prática do facto. Todavia,
atendendo à proibição de retroactividade in pejus, esta lei não poderá ser
aplicada a Alcides, por se revelar de conteúdo menos favorável. Como se
compreende, razões de igualdade e necessidade da pena impedem que o agente
seja punido ao abrigo de um regime mais gravoso, à luz do qual não poderá
ter motivado a sua actuação (artigos 29.º/4, 1.ª parte da CRP e 2.º/1 do CP).
Afasta-se, assim, a aplicação da L4 ao caso em estudo.
Finalmente, haverá que referir a Lei 5, um Decreto-Lei não autorizado, que
alterou a moldura penal do rapto qualificado, situando-a entre 3 e 12 anos de
prisão. Segundo os dados da hipótese, este diploma padece do vício de

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inconstitucionalidade orgânica, por violação da reserva de competência
relativa da AR, prevista no artigo 165.º/1c) da CRP. Trata-se, por isso, de uma
lei inconstitucional posterior ao momento da prática do facto, de conteúdo
mais favorável para o agente.
Neste âmbito, confrontam-se duas teses distintas, mas que nem sempre
conduzem a resultados completamente díspares. De acordo com uma
orientação, o princípio da retroactividade in melius, previsto no artigo 29.º/4,
2.ª parte da CRP, prevalece sobre as normas relativas à fiscalização da
constitucionalidade (artigos 204.º e 282.º da CRP), por tratar de matéria
relativa a direitos, liberdades e garantias. Assim, na situação que nos ocupa, a
L5 seria aplicável a Alcides, incorrendo o agente numa pena entre 3 e 12 anos
de prisão.
Para Rui Pereira, ao invés, tal concepção choca directamente com os preceitos
constantes dos artigos 204.º e 282.º da CRP, para além de que o artigo 29.º/4
da CRP supõe a constitucionalidade das normas posteriores aí referidas.
Ademais, sendo a norma inconstitucional posterior ao momento da prática do
facto, não haveria qualquer expectativa a tutelar, ao abrigo do princípio da
culpa. Partido deste entendimento, seria de defender a punição de Alcides ao
abrigo da L3, numa pena entre 5 e 15 anos de prisão.

No que concerne a Dalila, importa recordar que a sua actuação é reconduzível


à figura da cumplicidade material, prevista no artigo 27.º/1 do CP. No entanto,
apesar de Dalila ter sido cúmplice na prática de um crime duradouro, relevante
para efeitos de determinação do tempus deliciti (artigo 3.º do CP) será o
momento da prestação de auxílio. Efectivamente, afigura-se indiferente o
momento em que o autor principal, actuou. Consequentemente, afirmaremos
que no momento da prática do facto estava em vigor a L1, que situava a
moldura penal do crime de rapto qualificado entre 3 e 15 anos de prisão (artigo
29.º/4, 1.ª parte da CRP e artigo 2.º/1 do CP).
Existindo leis posteriores à lei vigente no momento da prática do facto, haverá
que indagar do conteúdo concretamente mais favorável ao agente, das normas
delas constantes. No que concerne às leis 2, 3 e 4, não poderão ser atendidas
visto que se revelam de conteúdo menos favorável para Dalila. Por esse
motivo, o princípio constitucional da proibição da retroactividade in pejus

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veda a punição de Dalila com base nestes diplomas (artigos 29.º/4, 1.ª parte da
CRP e 2.º/1 a contrario do CP). A propósito da L5, valem aqui as
considerações apresentadas anteriormente para o caso de Alcides, que se dão
por reproduzidas.

3) Comente, quanto ao conteúdo, a decisão do tribunal português (ponto


viii).
“A fundamentação utilizada pelo tribunal da condenação de Alcides e Dalila
para sustentar a aplicação da pena máxima para o crime de rapto assenta
unicamente em considerações de prevenção geral, isto é, de necessidade de
tutela de bens jurídicos, no caso concreto, a liberdade pessoal. Desta forma,
o acórdão condenatório incorre numa dupla violação do princípio
constitucional da dignidade da pessoa humana (artigos 1.º e 27.º da CRP), tal
como se encontra densificado, numa perspectiva jurídico-penal, nos artigos
40.º e 71 do CP.
Assim, verifica-se, por um lado, na hipótese sub judice, uma desconsideração
de razões de prevenção especial que implicam o tratamento do condenado
como ser livre, susceptível de escolher o bem e de se recuperar para a vida
em sociedade, o que, na linha da jurisprudência constitucional, proíbe que
fundamentos de prevenção geral imponham uma pena superior à estritamente
necessária para obter a ressocialização do delinquente (artigo 18.º da CRP,
e artigo 40.º/1 in fine, do CP).
Por outro lado, na medida em que ambos os agentes actuam altruisticamente,
numa situação atenuante de “quase estado de necessidade”, visando evitar a
morte da respectiva filha, o grau de censurabilidade do ilícito praticado
encontra-se mais próximo do limite mínimo da pena aplicável, ocorrendo
assim uma ofensa do princípio da culpa, na vertente de limite inultrapassável
da medida da pena, o que conduz a uma instrumentalização da pessoa
humana na obtenção de efeitos sociais úteis (artigo 40.º/2 do CP)(3).

(3)
Resolução constante da proposta de correcção deste teste de avaliação contínua, desenvolvida pela
Professora Helena Morão.

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