Andrea Dworkin - Nosso Sangue

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9. The Root Cause


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Capítulo I

Feminismo, Arte e Minha Mãe Sylvia.

Eu estou muito feliz por estar aqui hoje, porque isto não é irrisório para mim, mesmo
havendo muitos outros lugares onde eu poderia estar. Isto não é o que minha mãe
planejou para mim.

Eu quero lhes dizer algo sobre minha mãe. Seu nome é Sylvia, o nome de seu pai é
Spiegel, o nome de seu marido é Dworkin. Minha mãe tem 59 anos e há alguns meses
ela teve um sério ataque cardíaco. Ela já se recuperou e já está de volta no seu
emprego. Ela é secretária numa escola. Ela tem sido uma paciente cardíaca a maior
parte da sua vida e por toda a minha. Quando criança, ela teve uma febre reumática,
mas ela diz que seu real problema começou quando ela engravidou do meu irmão
Mark e teve pneumonia. Depois disso, sua vida foi uma miséria de doenças. Após
anos de doenças debilitantes – falhas cardíacas, reações tóxicas às drogas que a
mantinham vida – ela se submeteu a uma cirurgia no coração, então teve um coágulo
no cérebro, um acidente vascular cerebral, que a impediu de falar por muito tempo.
Ela se recuperou da cirurgia no coração e do seu acidente vascular, embora ela ainda
fale bem mais devagar do que ela imagina. Então, há aproximadamente oito anos
atrás, ela teve um ataque cardíaco. Ela se recuperou. Então, há alguns meses atrás,
ela teve outro ataque cardíaco. E se recuperou.

Minha mãe nasceu em Jersey City, New Jersey. É a segunda mais velha de sete
irmãos, dois garotos e cinco garotas. Seus pais, Sadie e Edward, que eram primos,
vieram de algum lugar da Hungria. Seu pai morreu antes de eu nascer e sua mãe tem
agora oitenta anos. Não há como saber com certeza se o coração da minha mãe teria
sido intensamente machucado se ela tivesse nascido em uma família rica. Eu suspeito
que não, mas eu não sei. Também não há como saber com certeza se ela teria
recebido um tratamento médico diferente se ela não fosse uma garota. Entretanto,
tudo aconteceu como aconteceu e então, ela esteve doente boa parte de sua vida.
Como ela era uma garota, ninguém nunca a encorajou a ler livros (embora ela me
diga que amava ler e que não se lembra de quando ou porque ela parou); ninguém a
encorajou a ir para a faculdade ou pediu-lhe para considerar os problemas do mundo
onde ela vive. Ela teve que começar a trabalhar assim que terminou a escola porque
sua família era pobre. Ela trabalhava em tempo integral como secretária e aos
sábados e em algumas noites ela trabalhava como “vendedora” numa loja de
departamento. Então ela se casou com meu pai.

Meu pai era professor e também trabalhava as noites nos correios porque ele tinha
contas médicas para pagar. Ele precisava manter minha mãe viva e também tinha
duas crianças para sustentar. Eu reafirmo o que Joseph Chaikin diz em The Presence
of The Actor: “A realidade médico-econômica neste país é um emblema do Sistema,
que literalmente escolhe quem deve sobreviver. Eu renuncio a meu governo devido a
seu sistema econômico desigual”. Outros, eu devo pontuar a vocês, tiveram e têm
menos que nós. Outros, que não são minha mãe, mas que estiveram em sua situação,
morreram. Eu também renuncio este governo que mata os pobres, e eles não são
somente vítimas de doenças cardíacas, ou dos rins, ou de câncer – eles são vítimas de
um sistema onde uma consulta médica custa $25 e uma cirurgia custa $5000.

Quando eu tinha doze anos, minha mãe voltou da sua cirurgia cardíaca e do seu
acidente vascular cerebral que a impediu de falar. Lá estava ela, uma mãe, em pé e
dando ordens. Nós duas tivemos tempos bem difíceis uma com a outra. Eu não sabia
quem ela era ou o que ela queria de mim. Ela não sabia quem eu era, mas ela
definitivamente tinha ideias sobre quem eu deveria ser. Eu acredito que ela tinha
uma atitude boba, quase estúpida, com o mundo. Aos doze anos eu sabia que queria
ser uma escritora ou uma advogada. Eu realmente fui criada sem uma mãe, então,
certas ideias não me atingiram. Eu não queria ser uma esposa e eu não queria ser
mãe.

Meu pai foi quem realmente me criou, embora eu não o visse muito. Ele valorizava os
livros e os diálogos intelectuais. Ele era filho de imigrantes russos e eles queriam que
ele fosse médico, este era o sonho deles. Ele era um filho devotado e então, apesar
dele querer estudar história, ele fez um curso pré-médico na faculdade. Mas ele era
muito melindroso para passar por tudo isso. O sangue o deixava enjoado. Então,
depois desse curso, ele se encontrou ensinando ciências, que ele detestava, por quase
vinte anos, em vez de ensinar história, que ele amava. Durante os anos de trabalho
que ele detestava, ele jurou que seus filhos seriam educados o máximo possível, não
importando o que custaria a ele, não importando qual tipo de comprometimento,
trabalho ou dinheiro necessário, seus filhos iriam se tornar o que eles quisessem.
Meu pai fez de seus filhos a sua arte e se devotou a nutri-los para que eles se
tornassem o que pudessem. Eu não sei por que ele não fez uma distinção entre sua
filha e seu filho, mas ele não fez. Eu não sei por que desde o começo ele me deu livros
para ler, conversou comigo sobre todas as suas ideias e regou todas as minhas
ambições para que elas sobrevivessem, fossem nutridas e crescessem – mas ele fez.

Assim, em nossa casa, minha mãe estava fora de questão de ser uma influência. Meu
pai, cujo maior amor era pela história, cujo comprometimento era com a educação e
com o diálogo intelectual, ensinou a mim e meu irmão que o nosso próprio
engajamento deveria ser com o mundo. Ele tinha todo um conjunto de ideias e
princípios que nos ensinou, em palavras, por exemplo. Ele acreditava, por exemplo,
em igualdade racial e integração quando essas crenças eram vistas como absolutas
aberrações por todos os seus vizinhos, família e colegas. Quando eu, aos quinze anos,
declarei em uma reunião de família que se eu quisesse casar, eu me casaria com
quem eu quisesse independentemente de cor, a resposta do meu pai, antes que
aquela família enfurecida pudesse falar, foi que ele não esperaria menos. Ele era um
libertário civil. Ele acreditava em sindicatos e lutou para sindicalizar os professores –
uma noção impopular naqueles dias desde que os professores queriam se ver como
profissionais. Ele nos ensinou os princípios da Declaração de Direitos, que agora não
é vista com os melhores olhos pela a maioria dos Americanos – um
comprometimento absoluto com a liberdade de expressão em todas as suas formas,
igualdade perante a lei e igualdade racial.

Eu adorava meu pai, mas eu não tinha nenhuma simpatia pela minha mãe. Eu sabia
que fisicamente, ela era corajosa – meu pai me falou isso diversas vezes – mas eu não
a via como um Hércules. Nenhuma mulher jamais havia sido, até onde eu sabia. Sua
mente era desinteressante, ela parecia pequena e provincial. Eu lembro que uma vez
no meio de uma terrível discussão, ela me disse de uma forma bem dura: “você pensa
que eu sou estúpida.” Eu neguei na hora, mas hoje eu sei que ela estava certa. E de
fato, o que mais alguém poderia pensar de uma pessoa cuja única preocupação fosse
que eu limpasse meu quarto, usasse certo tipo de roupas ou penteasse meu cabelo de
outra forma. Eu certamente tinha boas razões para achar que ela fosse estúpida,
horrível, insignificante e até desprezível: Edward Albee, Philip Wylie e aquele grande
artista Sigmund Freud me disseram. Parecia para mim que as mães eram as pessoas
mais dispensáveis – ninguém tinha uma boa opinião sobre elas, certamente não os
grandes escritores do passado e certamente também não os emocionantes escritores
do presente. E mesmo assim, esta mulher, minha mãe, presente ou ausente, era o
centro da minha vida de tantas formas inexplicáveis, poderosas e não palpáveis, eu a
via apenas como uma ignorante irritante, alguém sem graça, paixão ou sabedoria.
Quando eu me casei em 1969 eu me senti livre – livre da minha mãe, de seus
preconceitos e suas exigências ignorantes.

Eu estou contanto a vocês isto porque esta história tem, possivelmente pela primeira
vez na história, uma resolução bem mais feliz do que se podia esperar.

Vocês se lembram em Por Quem os Sinos Dobram de Hemingway quando Maria é


questionada se sua vida amorosa com Robert fez a terra se mover? A terra se moveu
para mim também algumas vezes na minha vida. A primeira vez aconteceu quando
eu tinha dez anos. Eu estava indo para a escola hebraica, mas ela estava fechada em
um dia de luto pelos seis milhões de mortos pelos nazistas. Então eu fui ver minha
prima que morava por perto e me deparei com ela tremendo, chorando, gritando e
vomitando. Ela me disse que era Abril e neste mês a sua irmã mais nova tinha sido
assassinada na frente dela, outra irmã mais nova teve uma morte horrível, as suas
cabeças tinham sido raspadas… – digamos apenas que ela contou o que aconteceu a
ela em um campo de concentração. Ela disse que todo mês de Abril ela se lembrava
com pesadelos e terror do que aconteceu neste mês muitos anos atrás e que em todo
Abril ela tremia, chorava, gritava e vomitava. A terra se moveu para mim, então.

A segunda vez que a terra se moveu para mim foi quando eu tinha dezoito anos e
passei quatro dias na Casa de Detenção para Mulheres de Nova York. Eu havia sido
presa num ato contra o genocídio na Indochina. Eu passei quatro dias e quatro noites
na sujeira e no terror daquela cela. Enquanto eu estava lá, dois médicos fizeram um
brutal exame interno em mim, eu fiquei com hemorragia por quinze dias depois
disso. A terra havia se movido para mim de novo.

A terceira vez que a terra se moveu para mim foi quando eu me tornei feminista. Não
foi em um dia em particular ou através de uma experiência. Teve haver com aquela
tarde quando tinha dez anos e minha prima pôs a tristeza da sua vida em minhas
mãos; teve haver com aquela cela feminina, e com três anos de um casamento que
começou com uma amizade e terminou em desespero. Aconteceu um tempo depois
de deixar meu marido, quando eu estava vivendo na miséria e com uma grande
aflição emocional. Aconteceu vagarosamente, de pouco em pouco. Uma semana
depois de eu largar meu marido, eu comecei meu livro, que agora se chama Woman
Hating. Eu queria descobrir o que havia acontecido comigo no meu casamento e nas
mil e uma situações cotidianas onde parecia que eu estava sendo tratada como
sub-humana. Eu sentia que eu era profundamente masoquista, mas aquele
masoquismo não era pessoal – toda mulher que eu conhecia vivia em um
masoquismo profundo. Eu queria descobrir o porque. Eu sabia que meu pai não
havia me ensinado aquele masoquismo e que minha mãe não foi minha professora
imediata. Então eu comecei no que parecia ser o único lugar aparente – com a Story
of O, um livro que me tocou profundamente. Desde este começo eu procurei na
pornografia, nos contos de fadas, nos mil anos de enfaixamento dos pés de mulheres
na China e no assassinato de nove milhões de bruxas. Eu aprendi algo sobre a
natureza do mundo que foi escondida de mim antes – eu vi um desprezo pelas
mulheres que permeava em cada instituição da sociedade, cada órgão cultural, cada
expressão do ser humano. E eu percebi que eu era uma mulher, uma pessoa que
conheceu esse desprezo sistemático em cada esquina, em cada sala de estar, em cada
interação humana. Pelo fato de eu ter me tornado uma mulher que sabia que era
mulher, isto é, pelo fato de eu ter me tornado uma feminista, eu comecei a falar com
mulheres pela primeira vez na minha vida e uma delas foi a minha mãe. Eu fui até a
sua vida através do longo túnel escuro da minha própria vida. Eu comecei a ver quem
ela era quando eu comecei a ver o mundo que a formou. Eu fui a ela não mais me
apiedando da pobreza do seu intelecto, mas surpresa pela qualidade da sua
inteligência. Eu fui a ela não mais convencida da sua estupidez e trivialidade, mas
surpresa pela qualidade da sua força. Eu fui a ela não mais me sentindo a dona da
verdade ou superior, mas como uma irmã, como outra mulher, cuja vida teria
repetido a dela – e quando eu digo “repetido a dela” eu quero dizer que teria sido
pré-determinada como foi a dela -, não fosse a graça de ter um pai feminista e pela
nova luta em comum das minhas irmãs feministas. Eu fui a ela não mais
envergonhada do que lhe faltava, mas profundamente orgulhosa do que ela
conquistou – de fato, eu percebi que minha mãe era uma mulher orgulhosa, forte e
honesta. Na época eu tinha 26 anos, eu já havia visto o suficiente do mundo e de seus
problemas para saber que orgulho, força e integridade eram virtudes para serem
honradas. E por começar a vê-la de uma nova forma, ela pôde me conhecer, e agora,
quaisquer que sejam as nossas dificuldades, e elas não são muitas, ela é minha mãe e
eu sou sua filha. E nós somos irmãs.

Vocês me pediram para falar sobre arte feminista, se ela existe, e se sim, o que ela é.
O que os escritores têm feito até hoje é uma arte masculinista – a arte que serve ao
homem em um mundo criado por homens. Essa arte tem degradado mulheres. Ela
tem, quase sem exceções, nos caracterizado como seres aleijados de sensibilidades,
empobrecidos, pessoas superficiais com preocupações triviais. Quase sem exceção,
ela tem sido saturada com uma misoginia tão profunda, uma misoginia que na
verdade é uma visão de mundo que até hoje a maioria de nós acredita que é como o
mundo é, que é como as mulheres são.

Eu me pergunto: o que eu aprendi com todos estes livros que eu li enquanto crescia?
Será se eu aprendi alguma coisa real ou verdadeira sobre mulheres? Será se eu
aprendi algo real ou verdadeiro sobre séculos de história das mulheres e sobre como
elas viveram? Será se estes livros iluminaram a minha vida, ou a própria vida, de
qualquer forma útil, profunda, generosa, rica ou real? Eu acredito que não. Eu
acredito que esta arte, estes livros, me roubaram da minha vida assim como o mundo
ao qual eles servem roubou a vida da minha mãe dela.

Theodore Roethke, um grande poeta, conforme nos disseram. Um poeta da condição


masculina, eu digo, escreveu:

Duas das acusações mais frequentes levantadas contra a poesia de mulheres são a
falta de variedade – no assunto, em tom emocional – e a falta de senso de humor. E
alguém poderia, em instâncias individuais entre escritores de real talento,
acrescentar outras deficiências estéticas e morais: o prolongamento, o
adornamento de temas triviais, a preocupação com as meras superficialidades da
vida – aquela competência especial do talento feminino na prosa – escondidas das
verdadeiras agonias do espírito, a recusa de encarar o que a existência é; as
posturas líricas ou religiosas; a corrida entre o boudoir e o altar, marcando um
pequeno pé contra Deus; ou a queda em uma moralidade que implica que o autor
tenha reinventado a integridade; a excessiva preocupação com o Destino, o tempo;
a lamentação da sorte de uma mulher… E assim por diante.

O que caracteriza a arte masculinista e os homens que a fazem é a misoginia – e em


face desta misoginia, alguém reinventou melhor a integridade.

Eles, os masculinistas, nos disseram que eles escrevem sobre a condição humana,
sobre os grandes temas – amor, morte, heroísmo, sofrimento e a própria história.
Eles nos disseram que os nossos temas – amor, morte, heroísmo, sofrimento e a
própria história – são triviais porque assim nós somos pela nossa própria natureza.

Eu renuncio a arte masculinista. Não é uma arte que ilumina a condição humana –
para a vergonha final e eterna dos homens, ela ilumina apenas ao mundo
masculinista – e olhando a nossa volta percebemos que não há nada para se orgulhar
deste mundo. A arte masculinista, a arte de séculos de homens, não é universal ou a
explicação final do que é ser no mundo. No final, ela é apenas a descrição de um
mundo onde mulheres são subjugadas, submissas, escravizadas, impedidas de se
tornarem seres completos, distinguidas apenas pela carnalidade, humilhadas. Eu
digo: minha vida não é trivial; minha sensibilidade não é trivial; minha força não é
trivial, assim como não foi a da minha mãe ou a da mãe dela. Eu renuncio aqueles
que odeiam mulheres, que desprezam, ridicularizam e humilham mulheres, e quando
eu faço isso, eu renuncio boa parte de toda arte feita, a arte masculinista.

Enquanto feministas, nós habitamos o mundo de uma nova forma. Nós vemos o
mundo de uma nova forma. Nós ameaçamos deixá-lo de cabeça para baixo e de
dentro para fora. Nós queremos mudá-lo tão profundamente que algum dia os textos
dos escritores masculinistas vão ser curiosidades antropológicas. Nossos
descendentes perguntarão sobre o que Mailer estava falando e eles verão seu
trabalho em algum arquivo escuro. E eles irão se questionar – desnorteados, tristes –
sobre a glorificação masculinista da guerra, as mistificações masculinistas sobre
matar, mutilação, violência e dor; as máscaras torturadas do heroísmo fálico; a inútil
arrogância da supremacia fálica; as representações empobrecidas de mães e filhas,
assim como da própria vida. Eles perguntarão: essas pessoas realmente acreditavam
nestes deuses?

A arte feminista não é um pequeno riacho que saiu do grande rio da arte real. Não é
alguma rachadura em uma pedra impecável. Bem espetacularmente, eu acredito, ela
é a arte que não é baseada na subjugação da metade da espécie. É a arte que vai
abranger os grandes temas humanos – amor, morte, heroísmo, sofrimento e a
própria história – e torná-los completamente humanos. Apesar de que talvez nossas
imaginações estejam já tão mutiladas que sejamos incapazes até da ambição, nós
podemos também introduzir um novo tema, um tão grande e rico quanto os outros –
deveríamos chamá-lo de “alegria”?

Nós não podemos imaginar um mundo onde mulheres não são representadas como
triviais e desprezíveis, onde mulheres não são humilhadas, abusadas, exploradas,
estupradas, diminuídas antes mesmo de nós nascermos – e então, nós não podemos
saber qual tipo de arte será feita nesse novo mundo. Nosso trabalho, que honra
completamente aqueles séculos de irmãs que vieram antes de nós, é parir esse novo
mundo. Ele será deixado para nossas crianças e para as crianças delas viverem nele.
Capítulo 2

A Renúncia da “Igualdade” Sexual

Em 1970, Kate Millet publicou Sexual Politics. Neste livro, ela provou para muitos de
nós – que apostariam a vida em negação – que as relações sexuais, a literatura que as
retrata, a postura psicológica que as explica, os sistemas econômicos que fixam as
necessidades dessas relações, os sistemas religiosos que buscam controlá-las, são
políticas. Ela nos mostrou que tudo que acontece a uma mulher em sua vida, tudo
que a toca ou a forma, é político.

Mulheres feministas, isto é, mulheres que captaram sua análise e viram que ela
explicava muito da real existência em suas vidas, tem tentado entender, lutar contra
e transformar o sistema político chamado patriarcado que explora nosso trabalho,
predetermina a posse de nossos corpos e nos diminui desde o dia que nascemos. Essa
luta não tem a dimensão desse sistema, que é abstrato: ele tem nos tocado em cada
parte das nossas vidas. Mas não tocou mais vividamente ou dolorosamente em lugar
nenhum que nesta parte da nossa vida que chamamos de “amor” e “sexo”. No curso
da nossa luta para nos libertarmos dessa opressão sistemática, um sério argumento
tem se desenvolvido entre nós e eu quero trazê-lo para cá.

Alguns de nós tem se comprometido em todas as áreas, incluindo aquelas chamadas


“amor” e “sexo”, com o objetivo de alcançar a igualdade, isto é, o estado de ser igual;
a correspondência em quantidade, grau, valor, classificação, habilidade; personagens
uniformes¹. Outros de nós, e eu concordo com estes, não vemos a igualdade como
um objetivo final próprio, suficiente, moral ou nobre. Nós acreditamos que ser igual
onde justiça ou liberdade não são universais é simplesmente ser o mesmo que o
opressor. É ter alcançando o estado de “personagens uniformes”.

Em local algum isto é tão claro quanto na sexualidade. O modelo sexual masculino é
baseado na polarização da humanidade em homem/mulher, mestre/escravo,
agressor/vítima, ativo/passivo. Este modelo sexual tem agora milhares de anos. Toda
identidade masculina, seu poder econômico e civil, as formas de governo que eles
desenvolveram, as guerras que eles conduzem, tudo isso está irrevogavelmente
ligado. Todas as formas de dominação e submissão, seja de homens sobre mulheres,
brancos sobre negros, chefes sobre trabalhadores, ricos sobre pobres, todas estão
irrevogavelmente ligadas às identidades sexuais masculinas e derivam do modelo
sexual masculino. Uma vez que entendemos isso, se torna claro que na verdade
homens tem posse do ato sexual, da linguagem que descreve o sexo, as mulheres que
eles objetificam. Homens escreveram o cenário de toda fantasia sexual que vocês já
tiveram ou cada ato sexual que vocês já participaram.

Não há liberdade ou justiça em trocar o papel feminino pelo papel masculino. Há


igualdade, sem dúvidas. Não há liberdade ou justiça em usar a linguagem masculina,
a linguagem do nosso opressor, para descrever sexualidade. Não há liberdade ou
justiça ou mesmo senso comum em desenvolver uma sensibilidade sexual masculina
– uma sensibilidade sexual que é agressiva, competitiva, objetificadora, orientada
pela quantidade. Há apenas igualdade. Acreditar que a liberdade ou justiça para
mulheres, ou para alguma mulher em particular, pode ser encontrada na imitação da
sexualidade masculina é se iludir e contribuir para a opressão de nossas irmãs.

Muitos de nós gostaríamos de acreditar que nos últimos quatro ou dez anos nós
revertemos, ou ao menos impedimos, aqueles hábitos e costumes de milhares de
anos atrás – os hábitos e costumes da dominação masculina. Não há fato para
suportar isso. Você pode se sentir melhor, ou não, mas as estatísticas mostram que as
mulheres estão mais pobres que nunca, que as mulheres estão sendo mais estupradas
e mais assassinadas. Eu quero sugerir a vocês que um compromisso de igualdade
sexual com homens, isto é, uniformizar os personagens, é um compromisso de se
tornar o rico em vez do pobre, o estuprador em vez da estuprada, o assassino em vez
da assassinada. Eu quero lhes pedir para fazerem um compromisso diferente – um
compromisso de abolir a pobreza, o estupro e o assassinato; isto é, um compromisso
para acabar com esse sistema de opressão chamado patriarcado; acabar com o
modelo sexual masculino por si mesmo.

O verdadeiro âmago da visão feminista, o núcleo revolucionário, se quiserem, tem


haver com a abolição dos papéis de gênero – isto é, uma absoluta transformação da
sexualidade humana e das instituições derivadas dela. Neste trabalho, nenhuma
parte do modelo sexual masculino deve ser posto em prática. Igualdade com a
estrutura do modelo sexual masculino, mesmo que ele tenha sido reformado ou
modificado, apenas irá perpetuar o modelo por si mesmo e a injustiça e servidão que
são suas consequências intrínsecas.

Eu digo a vocês que a transformação do modelo sexual masculino sob todo trabalho e
“amor” começa onde há uma congruência, não uma separação, uma congruência de
sentimentos e interesse erótico; começa no que nós sabemos sobre a sexualidade
feminina distinta da masculina – toque e sensibilidade clitorial, orgasmos múltiplos,
sensibilidade erótica por todo o corpo (que não precisa – e não devia – ser localizada
ou contida genitalmente) -, na ternura, no respeito próprio e absoluto respeito
mútuo. Para os homens, eu suspeito que a sua transformação começa onde eles mais
temem – isto é, num pênis flácido. Eu acredito que homens terão que abrir mão das
suas preciosas ereções e começar a fazer amor como mulheres. Eu estou dizendo que
homens terão que renunciar as suas personalidades falocêntricas e os seus privilégios
e os poderes recebidos no nascimento devido a sua anatomia, que eles terão que
cortar tudo neles que eles agora valorizam como distintamente “masculino”.
Nenhuma reforma ou harmonização de orgasmos vai conseguir isso.

Eu li excertos do diário de Sophie Tolstoy que eu encontrei em um lindo livro


chamado Revelations: Diaries of Women, editado por Mary Jane Moffat e Charlotte
Painter. Sophie Tolstoy escreveu:

E o essencial não é amar. Veja o que eu fiz por amá-lo tão profundamente! É tão
doloroso e humilhante; mas ele pensa que isso é idiotice. “Você diz uma coisa e
sempre faz outra”. Mas o que é o bom de argumentar nesta forma superior, quando
eu não tenho nada em mim além deste amor humilhante e um mau temperamento; e
estas duas coisas tem sido a causa de todas as minhas infelicidades, porque meu
temperamento tem sempre interferido no meu amor. Eu não quero nada além do seu
amor e simpatia e ele não me dará isto; e todo meu orgulho está esmagado na lama;
Eu não sou nada além de um miserável verme esmagado, que ninguém quer, que
ninguém ama, uma criatura inútil com enjoo matinal, uma grande barriga, dois
dentes podres, um mau temperamento, um senso de dignidade esmagado e um amor
que ninguém quer e que frequentemente me deixa louca.

Alguém realmente acredita que as coisas mudaram muito desde que Sophie Tolstoy
escreveu isto no seu diário em 25 de Outubro de 1886? E o que vocês diriam a ela se
ela viesse hoje aqui, a suas irmãs? Vocês dariam a ela um vibrador e a ensinariam
como usá-lo? Vocês a ensinariam técnicas de boquete que talvez agradassem o
senhor Tolstoy? Vocês a diriam que a sua salvação seria se tornar uma “atleta
sexual”? Aprender a excursionar? Ter o mesmo tanto de amantes que o Leon teve?
Vocês diriam a ela para começar a pensar em si mesma como uma “pessoa” e não
como uma mulher?

Ou talvez vocês tenham encontrado a coragem, a determinação, a convicção para


serem suas verdadeiras irmãs – para ajudá-la a livrar-se da longa escuridão da
sombra do Leon; para unir-se a ela na mudança de toda organização desse mundo,
ainda construído em 1974 para servi-lo, para forçá-la a servi-lo? Eu digo a vocês que
Sophie Tolstoy está aqui hoje nos corpos e vidas e muitas irmãs. Não falhem com ela.

¹ No original “uniform character, as of motion or surface” (non soube traduzir isso,


gente, ajuda).
Capítulo 3

Lembrando as Bruxas

Eu dedico essa conversa à Elizabeth Gould Davis, autora de The First Sex, que se
suicidou há vários meses e que foi uma vítima de estupro até o fim da sua vida; à
Anne Sexton, poetisa que se suicidou em 4 de outubro de 1974; à Inez García, mãe e
esposa de 30 anos que há poucas semanas foi sentenciada na Califórnia a 5 anos de
prisão por matar o homem de 300 quilos que a segurava enquanto outro a estuprava;
e à Eva Diamond, de 26 anos, cujo filho lhe foi tirado há cinco anos quando foi
declarada uma mãe ruim por ter sido condenada por fraude de bem estar e que há
alguns meses foi sentenciada a 15 anos de prisão em Minnesota por matar seu
marido enquanto ele a espancava até quase matá-la.

Estamos aqui hoje para falar sobre genocídio. Genocídio é o aleijamento, estupro
e/ou assassinato de mulheres por homens. Genocídio é a palavra que designa a
violência implacável perpetuada pela classe masculina contra a classe feminina.

Por exemplo, o enfaixamento dos pés de mulheres na China é uma forma de


genocídio. Por mil anos na China todas as mulheres eram sistematicamente aleijadas
para que assim elas fossem passivas e objetos eróticos para os homens; para que elas
fossem propriedades carnais; para que elas fossem totalmente dependes dos homens
para terem comida, água, abrigo e roupas; para que elas não pudessem andar, ou
fugirem, ou se unirem contra o sadismo dos seus opressores.

Outro exemplo de genocídio é o estupro sistemático de mulheres em Bangladesh. Lá,


o estupro de mulheres fazia parte da estratégia militar dos exércitos invasores. Como
muitos de vocês sabem, é estimado que entre 200,000 e 400,000 mulheres foram
estupradas pelos soldados invasores e quando a guerra chegou ao fim, essas
mulheres foram consideradas impuras por seus maridos, irmãos e pais e foram
abandonadas para se prostituirem e morrerem de fome. O genocídio de Bangladesh
foi primeiro perpetuado pelos homens invasores e depois pelos homens que lá viviam
– os maridos, irmãos, pais: foi perpetuado pela classe masculina contra a classe
feminina.

Hoje à noite, no Halloween, iremos nos lembrar de outro genocídio: o assassinato em


massa de nove milhões de mulheres que foram chamadas de bruxas. Essas mulheres,
nossas irmãs, foram mortas em um período de 300 anos na Alemanha, Espanha,
Itália, França, Holanda, Suíça, Inglaterra, País de Gales, Irlanda, Escócia e América.
Elas foram mortas em nome de Deus, o Pai e Seu único Filho, Jesus Cristo.

A perseguição organizada das bruxas começou oficialmente em 9 de Dezembro de


1484. O Papa Inocêncio VIII nomeou dois monges dominicanos, Heinrich Kramer e
James Sprenger, como inquisidores e pediu aos bons padres para definirem a
bruxaria, isolar o modus operandi das bruxas e padronizar os procedimentos de
julgamento e condenação. Kramer e Sprenger escreveram um texto chamado Malleus
Maleficarum. Esse texto era a alta teologia Católica e trabalhava com a
jurisprudência Católica. Ele pode ser comparado com a constituição americana. Era a
lei. Qualquer um que o desafiasse, contestasse sua autoridade ou questionasse sua
credibilidade em qualquer nível era culpado de heresia, um crime capital.

Antes de discutir o conteúdo do Malleus Maleficarum, eu quero ser clara sobre as


informações estatísticas que nós temos sobre as bruxas. O valor total de nove milhões
de mulheres assassinadas é um valor moderado. É o número usado mais
frequentemente por estudiosos do campo. A proporção de mulheres queimadas para
homens é variadamente estimada em 20-1 e 100-1.

A bruxaria era um crime feminino e boa parte do texto do Malleus explica o porque.
Primeiro, Jesus Cristo nasceu, sofreu e morreu para salvar os homens, não as
mulheres. Portanto, as mulheres eram mais vulneráveis as tentações de Satã. Em
segundo, uma mulher é “mais carnal que um homem, como resultado das suas
muitas abominações carnais”. Esse excesso de carnalidade se originou na criação de
Eva: ela foi formada de uma costela torta. Por causa desse defeito, as mulheres são
sempre enganadoras. Em terceiro, por definição as mulheres são perversas,
maliciosas, falsas, estúpidas e irremediavelmente más: “Eu prefiro morar com um
leão e um dragão que habitar uma casa com uma mulher perversa… Toda
perversidade é pequena comparada à perversidade de uma mulher… Quando uma
mulher pensa sozinha, ela pensa no mal”. Quarto, mulheres são mais fracas que os
homens física e mentalmente e intelectualmente são como crianças. Quinto, as
mulheres são “mais amargas que a morte” porque todos os pecados se originaram
das mulheres, e porque mulheres são “aduladoras e inimigas secretas”. Finalmente, a
bruxaria era um crime feminino porque “toda bruxaria se origina do desejo sexual, o
qual para a mulher é insaciável”.

Eu quero que você se lembre de que estas não são as polêmicas de aberrantes; essas
são as convicções de estudiosos, advogados e juízes. Eu quero que você se lembre de
que nove milhões de mulheres foram queimadas vivas.
As bruxas foram acusadas de voarem, terem relações carnais com Satã, ferirem o
gado, causarem chuvas de granizo e tempestades, causarem doenças e epidemias,
seduzirem homens, transformarem homens e si mesmas em animais, transformarem
animais em pessoas, cometerem atos de canibalismo e assassinato, roubarem
genitais masculinos e causarem o desaparecimento de genitais masculinos. Na
verdade, este último – o desaparecimento de genitais masculinos – era motivo para
se ter direito ao divórcio nas leis católicas. Se o genital de um homem ficasse invisível
por mais de três anos, sua esposa tinha direito ao divórcio.

Seria difícil localizar na gigantesca massa de misoginia do texto de Sprenger e


Kramer a acusação mais odiosa, inacreditável e ridícula, mas eu acredito que a
encontrei. Eles escreveram:

E então, o que é para ser pensado dessas bruxas que […] coletam genitais masculinos
em grandes números, uns vinte ou trinta membros juntos, e os botam em um ninho
ou em uma caixa, onde eles se movem como membros vivos e comem aveia e milho,
como já foi testemunhado por muitos e são comuns os relatos?

O que, então? O que devemos pensar? O que devem pensar aqueles de nós que
cresceram católicos, por exemplo? Quando vemos que padres estão fazendo
exorcismos nos subúrbios americanos, que a crença na bruxaria ainda é um
fundamento na teologia católica, o que devemos pensar? Quando descobrimos que
Lutero revigorou este genocídio através de suas muitas confrontações com Satã, o
que devemos pensar? Quando descobrimos que o próprio Calvin queimou bruxas e
que ele pessoalmente supervisionou a caça às bruxas em Zurique, o que devemos
pensar? Quando descobrimos que o medo e o nojo da carnalidade feminina está
codificado nas leis judaicas, o que devemos pensar?

Algumas de nós têm uma visão de mundo bem pessoal. Nós dizemos que o que
acontece conosco em nossas vidas como mulheres, acontece conosco como
indivíduos. Nós dizemos até que qualquer violência que passamos em nossas vidas
como mulheres – por exemplo, estupros ou agressões por maridos, amantes ou
estranhos – aconteceu entre dois indivíduos. Algumas de nós ainda se desculpam
pelo agressor – nós sentimos pena dele; nós dizemos que ele tem distúrbios pessoais,
ou que ele foi provocado de uma dada forma, em um dado momento, por uma
mulher em particular.

Homens nos dizem que eles também são “oprimidos”. Eles nos dizem que em suas
vidas individuais eles frequentemente são vitimizados por mulheres – pelas mães,
esposas e “namoradas”. Eles nos dizem que mulheres provocam atos de violência
através da nossa carnalidade, malicia, avareza, vaidade ou estupidez. Eles nos dizem
que a sua violência se origina em nós e que nós somos responsáveis por ela. Eles nos
dizem que as suas vidas são cheias de dor e que nós somos a fonte dela. Eles nos
dizem que como mães nós os ferimos irreparavelmente, que como esposas nós os
castramos, que como amantes nós roubamos o seu sêmen, sua juventude e
masculinidade – e nunca, nunca, como mães, esposas ou amantes nós damos o
suficiente.

E o que devemos pensar? Porque se nós começarmos a juntar todos os exemplos de


violência – os estupros, as agressões, os aleijamentos, os assassinatos, as chacinas; se
nós lermos suas novelas, poemas, tratos políticos e filosóficos e percebermos que o
que eles pensam de nós hoje era o que os Inquisidores pensavam de nós ontem; se
percebermos que historicamente o genocídio não é algum erro, um excesso acidental,
um terrível acaso, mas em vez disso, é a consequência lógica do que eles acreditam
ser a nossa natureza dada por Deus ou biológica; então, nós finalmente iremos
entender que embaixo do genocídio patriarcal está a realidade contínua das vidas das
mulheres. E então, nós devemos olhar para cada uma – pela coragem de suportar
isso e pela coragem de mudar.

A luta das mulheres, a luta feminista, não é uma luta por mais dinheiro por hora, por
direitos iguais sob as leis masculinas ou por mais mulheres legisladoras que irão
operar dentro dos limites das leis masculinas. Estas são todas medidas emergenciais
designadas para salvar a vida de mulheres, quantas forem possíveis, hoje e agora.
Mas estas reformas não vão conter o genocídio; estas reformas não vão acabar com a
violência implacável da classe masculina contra a classe feminina. Estas reformas
não vão parar a crescente epidemia de estupros neste país ou a epidêmica violência
doméstica na Inglaterra. Elas não vão parar com as esterilizações de mulheres pobres
negras e brancas que são vítimas de médicos que odeiam a carnalidade feminina.
Estas reformas não vão esvaziar as instituições mentais cheias de mulheres que
foram colocadas por parentes que as odeiam por se rebelarem contra os limites dos
papéis femininos ou contra as condições da servidão feminina. Elas não vão esvaziar
as prisões cheias de mulheres que para sobreviverem se prostituiram; ou que após
terem sido estupradas, mataram seu estuprador; ou que enquanto eram espancadas,
mataram o homem que as estava matando. Essas reformas não vão impedir homens
de se aproveitarem do trabalho doméstico feminino, e nem vão impedir homens de
reforçarem a identidade masculina vitimizando psicologicamente mulheres nos
chamados relacionamentos “amorosos”.

E nenhuma acomodação pessoal com o sistema patriarcal vai parar com esse
genocídio implacável. Sob o patriarcado, nenhuma mulher está segura para viver sua
vida, para amar ou ser mãe. Sob o patriarcado, cada mulher é uma vítima, no
passado, presente e futuro. Sob o patriarcado, cada filha de uma mulher é uma
vítima, no passado, presente e futuro. Sob o patriarcado, cada filho de uma mulher é
seu potencial traidor e inevitavelmente também o estuprador ou explorador de outra
mulher.

Antes que pudermos viver e amar, nós teremos que nos aprimorar numa irmandade
revolucionária. Isso significa que nós devemos parar de defender os homens que nos
oprimem; que devemos nos recusar a alimentar, vestir e limpar após eles; que nós
devemos impedir que eles tirem o seu sustento das nossas vidas. Significa que nós
teremos que nos despir da identidade feminina que nos foi forçada – que nós
teremos que nos despir de todos os traços do masoquismo que nos disseram que é
sinônimo de ser mulher. Significa que teremos que atacar e destruir cada instituição,
lei, filosofia, religião, costume e hábito deste patriarcado – que se alimenta do nosso
sangue “sujo”, que é construído sobre o nosso trabalho “insignificante”.

O Halloween é a época apropriada para nos comprometermos com essa irmandade


revolucionária. Nesta noite nos lembraremos de nossa morte. Nesta noite nos
lembraremos de que nove milhões de mulheres foram mortas porque homens
disseram que elas eram carnais, maliciosas e perversas. Nesta noite saberemos que
hoje elas vivem através de nós.

Permita-nos renomear esta noite de Bruxas de Eva. Permita-nos fazer um minuto de


silêncio: por todas as mulheres que foram vítimas do genocídio, da morte, que estão
nas cadeias, em instituições mentais, que foram estupradas, esterilizadas contra suas
vontades, brutalizadas. E permita-nos, nesta noite, consagrar nossas vidas para
desenvolvermos esta irmandade revolucionária – as estratégias políticas, as ações
feministas – que vai parar de uma vez por todas a violência devastadora contra nós.
Capítulo 4

A atrocidade do estupro e o vizinho do lado

Entregue na Universidade Estadual de Nova York em Stony Brook, em 1º de março


de 1975; Universidade da Pensilvânia, 25 de abril de 1975; Faculdade da
Universidade Estadual de Nova York em Old Westbury, 10 de maio de 1975;
Womanbooks, Nova York, 1 de julho de 1975; Woodstock Women’s Center,
Woodstock, Nova Iorque, 3 de julho de 1975; Colégio Comunitário do Condado de
Suffolk, 9 de outubro de 1975; Queens College, Universidade da Cidade de Nova
York, 2 de abril de 1976.

Eu quero falar com você sobre estupro — estupro — o que é, quem faz, a quem é
feito, como é feito, por que é feito e o que fazer a respeito para que não seja feito
mais.

Primeiro, porém, quero fazer algumas observações introdutórias​[1]​. De 1964 a 1965 e


de 1966 a 1968, eu fui para o Bennington College, em Vermont. Bennington naquela
época ainda era uma escola para mulheres ou, como as pessoas diziam na época, uma
escola para meninas. Era um lugar muito isolado — totalmente isolado da
comunidade de Vermont em que estava situado, exclusivo, caro. Havia um pequeno
corpo estudantil altamente concentrado nas artes, uma baixa proporção de alunos e
uma tradição apócrifa de “liberdade” intelectual e sexual…. Em geral, Bennington era
um tipo de berço muito penoso onde jovens ricas eram educadas a várias realizações
que assegurariam bons casamentos para os respeitáveis e bons negócios para os
boêmios. Naquela época, havia mais liberdade efetiva para as mulheres em
Bennington do que na maioria das escolas — em geral, podíamos ir e vir como
quiséssemos, enquanto a maioria das outras escolas tinha toque de recolher e
controles rígidos; e, em geral, poderíamos usar o que queríamos, enquanto na
maioria das outras escolas, as mulheres ainda tinham que obedecer a rígidos códigos
de vestimenta. Nós fomos encorajadas a ler e escrever e, em geral, a nos levar a sério,
mesmo que a faculdade não nos levasse a sério. Sendo melhor educadas para a
realidade do que nós, eles, os professores, sabiam o que não imaginávamos — que a
maioria de nós levaria nossas ideias pretenciosas sobre James, Joyce e Homer e os
investiria em casamentos e trabalho voluntário. A maioria de nós, como a maioria
dos professores homens sabia, cairia no silêncio e todas as nossas boas intenções e
grandes entusiasmos não tinham nada a ver com o que aconteceria conosco quando
deixássemos aquele cercadinho isolado. Na época em que fui a Bennington, não
havia consciência feminista lá ou em nenhum outro lugar. AMística Feminina de
Betty Friedan dizia respeito a donas de casa — nós pensamos que não tinha nada a
ver conosco. A política sexual de Kate Millett ainda não tinha sido publicada. A
Dialética do Sexo, de Shulamith Firestone, ainda não tinha sido publicada. Nós
estávamos no processo de nos tornar mulheres muito bem-educadas — já éramos
mulheres muito privilegiadas — e, no entanto, muitos de nós nunca ouvimos a
história do movimento pelo sufrágio feminino neste país ou na Europa. Nos cursos
de história da Amerika, o sufrágio das mulheres não foi mencionado. Os nomes de
Angelina e Sarah Grimke ou Susan B. Anthony ou Elizabeth Cady Stanton nunca
foram mencionados. Nossa ignorância era tão completa que não sabíamos que
havíamos sido consignadas desde o nascimento àquela morte legal e social viva
chamada casamento. Imaginamos, em nossa ignorância, que poderíamos ser
romancistas e filósofas. Algumas dentre nós até aspiravam ser matemáticas e
biólogas. Nós não sabíamos que nossos professores tinham um sistema de crenças e
convicções que nos designavam como uma classe de gênero inferior e que esse
sistema de crenças e convicções era virtualmente universal — a estimada suposição
da maioria dos escritores, filósofos e historiadores que nós tão ardentemente
estávamos estudando. Nós não sabíamos, por exemplo, escolher um exemplo óbvio,
que nosso professor de psicologia freudiana acreditava junto com Freud que “o efeito
da inveja do pênis tem uma parte… na vaidade física das mulheres, já que elas estão
fadadas a valorizar seus encantos mais altamente como uma compensação tardia
para sua inferioridade sexual original”​[2]​. Em cada campo de estudo, tais convicções
eram centrais, subjacentes, cruciais. E, no entanto, não sabíamos que elas se referiam
a nós. Isso era verdade em todos os lugares onde as mulheres estavam sendo
educadas.

Como resultado, as mulheres da minha idade deixaram as faculdades e universidades


completamente ignorantes do que se poderia chamar de “vida real”. Nós não
sabíamos que nos reuniríamos em qualquer lugar com um desprezo sistemático de
nossa inteligência, criatividade e força. Nós não conhecíamos nossa história como
uma classe de gênero. Nós não sabíamos que éramos uma classe de gênero, inferior
por lei e por costume a homens que foram definidos, por si mesmos e por todos os
órgãos de sua cultura, como supremos. Nós não sabíamos que tínhamos sido
treinadas durante toda a nossa vida para sermos vítimas — objetos inferiores,
submissas e passivas que não podiam reivindicar uma identidade individual discreta.
Nós não sabíamos que, porque éramos mulheres, nosso trabalho seria explorado
onde quer que trabalhássemos — em empregos, em movimentos políticos — por
homens para o seu próprio engrandecimento. Nós não sabíamos que todo o nosso
trabalho árduo em quaisquer empregos ou movimentos políticos nunca progrediria
nossas responsabilidades ou nossas recompensas. Nós não sabíamos que estávamos
lá, onde quer que fossemos para cozinhar, fazer trabalho braçal, ser fodida.

Eu lhes digo isso agora, porque é disso que eu me lembrava quando sabia que viria
aqui para falar esta noite. Eu imagino que, de certa forma, é diferente para você. Há
uma literatura feminista surpreendente para educá-la, mesmo que seus professores
não o façam. Existem filósofas, poetas, comediantes, herstoriadoras​[3] e políticas
feministas que estão criando a cultura feminista. Existe a sua própria consciência
feminista, que você deve nutrir, expandir e aprofundar em todas as oportunidades.

A partir de agora, no entanto, não há programa de estudo para mulheres aqui. O


desenvolvimento de tal programa é essencial para você como mulher. O estudo
sistemático e rigoroso do lugar da mulher nessa cultura possibilitará que você
entenda o mundo como ele age e afeta você. Sem esse estudo, você sairá daqui da
mesma forma que eu saí de Bennington — ignorante do que significa ser uma
mulher em uma sociedade patriarcal — isto é, em uma sociedade onde as mulheres
são sistematicamente definidas como inferiores, onde as mulheres são
sistematicamente desprezadas.

Eu estou aqui esta noite para tentar dizer-lhe o máximo que puder sobre o que você
está enfrentando como mulheres em seus esforços para viver vidas humanas
decentes, valiosas e produtivas. E é por isso que escolhi esta noite falar sobre estupro,
que, embora nenhum escritor amerikano contemporâneo lhe diga, é a palavra de sete
letras mais suja do idioma. Depois de entender o que é estupro, você entenderá as
forças que sistematicamente a oprimem como mulheres. Uma vez que você entenda o
que é estupro, você será capaz de começar o trabalho de mudar os valores e
instituições desta sociedade patriarcal para que você não seja mais oprimida. Uma
vez que você entenda o que é estupro, você será capaz de resistir a todas as tentativas
de mistificá-lo e levá-la a acreditar que os crimes cometidos contra você como
mulheres são triviais, cômicos, irrelevantes. Uma vez que você entenda o que é
estupro, você encontrará os recursos para levar a sério a sua vida como mulher e
organizar-se como mulher contra as pessoas e instituições que a degradam e violam.

A palavra estupro vem da palavra latina rapere, que significa “roubar, apreender ou
levar”.

A primeira definição de estupro no The Random House Dictionary ainda é “o ato de


apreender e ganhar​[4]​ pela força.”

A segunda definição, com a qual você provavelmente está familiarizado, define o


estupro como “o ato de forçar fisicamente uma mulher a ter relações sexuais.”

Por ora, vou me referir exclusivamente à primeira definição de estupro, isto é, “o ato
de apreender e ganhar pela força.”
O estupro precede o casamento, o compromisso, o noivado e o namoro como
comportamento social sancionado. Nos velhos e maus dias, quando um homem
queria uma mulher, ele simplesmente a pegava — isto é, ele a sequestrava e a fodia.
O rapto, que sempre foi para fins sexuais, foi o estupro. Se a mulher estuprada
agradou ao estuprador, ele a manteve. Se não, ele a descartou.

As mulheres, naqueles velhos e maus dias, eram bens móveis. Ou seja, as mulheres
eram objetos de propriedade, objetos possuídos, para serem compradas, vendidas,
usadas e roubadas — isto é, estupradas. Uma mulher pertencia primeiro a seu pai,
que era seu patriarca, seu mestre, seu senhor. A própria derivação da palavra
patriarcado é instrutiva. Pater significa proprietário, possuidor ou mestre. A unidade
social básica do patriarcado é a família. A palavra família vem da famel Oscan, que
significa servo, escravo ou possessão. Paterfamilias significa dono de escravos. O
estuprador que sequestrou uma mulher tomou o lugar de seu pai como dono,
possuidor ou senhor.

O Antigo Testamento é eloquente e preciso ao delinear o direito de um homem


estuprar. Aqui, por exemplo, está a lei do Antigo Testamento sobre o estupro de
mulheres inimigas. Deuteronômio, capítulo 21, versículos 10 a 15 —

Quando você vai para a guerra contra seus inimigos e Yahweh seu Deus os entrega em
seu poder e você faz prisioneiros, se você vê uma mulher bonita entre os prisioneiros e a
acha desejável, você pode fazê-la sua esposa e trazê-la para sua casa. Ela deve raspar a
cabeça, cortar as unhas e tirar a roupa do prisioneiro; ela deve ficar dentro de casa e
deve chorar seu pai e sua mãe por um mês inteiro. Então você pode ir até ela e ser um
marido para ela e ela será sua esposa. Se ela deixar de te agradar, você a deixará ir onde
ela quiser, não a vendendo por dinheiro; você não deve tirar nenhum proveito dela,
desde que você teve o uso dela​[5]​.

Uma mulher descartada, evidentemente, era uma pária ou uma prostituta.


O estupro, então, é o primeiro modelo para o casamento. As leis do casamento
sancionaram o estupro, reiterando o direito do estuprador à propriedade da
estuprada. As leis sobre casamento protegiam os direitos de propriedade do primeiro
estuprador ao designar um segundo estuprador como adúltero, isto é, ladrão. As leis
de casamento também protegiam a propriedade da filha pelo pai. As leis do
casamento garantiam o direito do pai de vender uma filha para o casamento, para
vendê-la a outro homem. Quaisquer restrições iniciais contra o estupro eram
restrições ao roubo — contra o roubo de propriedade. É neste contexto, e apenas
neste contexto, que podemos entender o estupro como um crime capital. Este é o
texto do Antigo Testamento sobre o roubo de mulheres como um crime capital.
Deuteronômio 22: 22 a 23: 1 —

Se um homem for pego dormindo com a esposa de outro homem, ambos devem morrer,
o homem que dormiu com ela e a própria mulher. Você deve banir este mal de Israel.
Se uma virgem está prometida e um homem a encontra na cidade e dorme com ela, você
deve levá-los ao portão da cidade e apedrejá-los até a morte; a menina, porque ela não
chorou por ajuda na cidade; o homem, porque ele violou a esposa de seu companheiro.
Você deve banir este mal do seu meio. Mas se o homem encontrou a moça prometida em
campo aberto e a tomou à força e deitou-se com ela, somente o homem que estava com
ela deve morrer; você não deve fazer nada para a garota, pois a dela não é um crime
capital. O caso é como o de um homem que ataca e mata seu companheiro; porque ele se
deparou com ela no campo aberto e a garota prometida poderia ter gritado sem que
ninguém viesse em seu socorro.
Se um homem encontra uma virgem que não está noiva e a agarra e se deita com ela e é
pego em flagrante, o homem que se deitou com ela deve dar ao pai da menina cinquenta
siclos de prata; ela será sua esposa desde que ele a violou e, enquanto viver, não poderá
repudiá-la Um homem não deve tomar a esposa de seu pai e não deve retirar a saia do
manto de seu pai dela​[6]​.
As mulheres pertenciam a homens; as leis do casamento santificaram essa
propriedade; estupro foi o roubo de uma mulher de seu dono. Essas leis bíblicas são a
base da ordem social como a conhecemos. Eles não foram até hoje repudiados.

Com o avanço da história, os homens intensificaram seus atos de agressão contra as


mulheres e inventaram muitos mitos sobre nós para assegurar tanto a posse como o
acesso sexual fácil. Em 500, a.C. Heródoto, o chamado Pai da História, escreveu: “Na
verdade, raptar mulheres jovens não é um ato legal; mas é estúpido depois do evento
fazer um rebuliço sobre isso. A única coisa sensata é não fazer nenhum tipo de
notícia sobre; pois é óbvio que nenhuma jovem se permite ser abduzida se não deseja
ser abduzida.”​[7]​[8] Ovídio no Ars amatoria escreveu: “As mulheres muitas vezes
desejam dar a contragosto o que realmente gostam de dar”​[9]​. E assim, tornou-se
oficial: as mulheres querem ser estupradas.

A primeira lei inglesa sobre estupro foi um testemunho do sistema de classes


inglesas. Uma mulher que não era casada pertencia legalmente ao rei. Seu estuprador
teve que pagar ao rei cinquenta xelins como multa, mas se ela era uma “escrava
triturada”, a multa era reduzida a vinte e cinco xelins. O estupro da criada de um
nobre custava doze xelins. O estupro da criada de um plebeu custa cinco xelins. Mas
se um escravo violou a criada de um plebeu, ele era castrado. E se ele estuprou
qualquer mulher de nível superior, ele era morto​[10]​. Aqui também o estupro era um
crime contra o homem que possuía a mulher.

Mesmo que o estupro seja sancionado na Bíblia, mesmo que os gregos tenham
glorificado o estupro — lembre-se das intermináveis aventuras de Zeus — e apesar
de Ovídio ter ficado eufórico em relação ao estupro, foi deixado para Sir Thomas
Malory popularizar o estupro para nós do povo de língua inglesa. Le Morte d’Arthur é
o trabalho clássico sobre o amor cortês. É uma romantização poderosa do estupro.
Malory é o ancestral literário direto daqueles modernos escritores americanos de
Amerika que postulam o estupro como um amor mítico. Uma boa mulher deve ser
tomada, possuída por um galante cavaleiro, sexualmente forçada a uma paixão
submissa que, por definição masculina, se tornaria seu deleite. Aqui o estupro é
transformado, ou mistificado, em amor romântico. Aqui o estupro se torna a marca
do amor romântico. Aqui encontramos a primeira versão realmente moderna de
estupro: às vezes uma mulher é presa e levada; às vezes ela é sexualmente forçada e
abandonada, deixada loucamente apaixonada pelo estuprador, que é, em virtude de
um excelente estupro, seu dono, seu amor. (Malory, a propósito, foi preso e acusado
de estuprar, em duas ocasiões separadas, uma mulher casada, Joan Smyth.​[11]​) Em
seu trabalho, o estupro não é mais sinônimo de rapto — agora se tornou sinônimo
de amor. A questão, claro, ainda é a propriedade masculina — o estuprador é dono
da mulher; mas agora ela o ama também.

Esse tema de relacionamento sexual — isto é, estupro — continua sendo nosso


modelo primário de relacionamento heterossexual. O dicionário define estupro como
“o ato de forçar fisicamente uma mulher a ter relações sexuais”. Mas, na verdade, o
estupro, em nosso sistema de leis masculinistas, continua sendo um direito do
casamento. Um homem não pode ser condenado por estuprar sua própria esposa.
Em todos os cinquenta estados, o estupro é definido legalmente como penetração
forçada por um homem de uma mulher “que não seja sua esposa”​[12]​. Quando um
homem penetra à força em sua própria esposa, ele não cometeu um crime de roubo
contra outro homem. Portanto, de acordo com a lei masculinista, ele não estuprou. E,
é claro, um homem não pode raptar sua própria esposa desde que ela seja obrigada
por lei a habitar seu domicílio e se submeter sexualmente a ele. O casamento
permanece, em nosso tempo, o domínio carnal às mulheres. Um homem não pode
ser processado por usar sua propriedade como achar melhor.

Além disso, o estupro é o principal emblema do amor romântico. Nossos escritores


modernos, de D. H. Lawrence a Henry Miller, a Norman Mailer e Ayn Rand,
consistentemente apresentam o estupro como um meio de apresentar uma mulher à
sua própria carnalidade. Uma mulher é tomada, possuída, conquistada pela força
bruta — e é o próprio estupro que a transforma em uma criatura carnal. É o próprio
estupro que define tanto sua identidade quanto sua função: ela é uma mulher e,
como mulher, existe para ser fodida. Em termos masculinistas, uma mulher nunca
pode ser estuprada contra sua vontade, já que a noção é de que, se ela não quiser ser
estuprada, ela não conhece sua vontade.

O estupro, em nossa sociedade, ainda não é visto como um crime contra as mulheres.
Em “Forcible and Statutory Rape: An Exploration of the Operation and Objectives of
the Consent Standard” [“Estupro Forçado e Estatutário: Uma Exploração da
Operação e Objetivos do Padrão de Consentimento”], The Yale Law Journal, 1952,
um artigo que é um compêndio implacável de difamação misógina, a intenção da
moderna jurisprudência masculina na área de estupro criminoso é claramente
articulada: as leis existem para proteger os homens (1) da falsa acusação de estupro
(que é considerada o mais provável tipo de acusação) e (2) do roubo da propriedade
feminina ou sua contaminação por outro homem​[13]​. A noção de consentimento
para a relação sexual como o direito humano inalienável de uma mulher não existe
na jurisprudência masculina; a retenção de consentimento de uma mulher é vista
apenas como uma forma de permuta socialmente apropriada e a noção de
consentimento é honrada apenas na medida em que protege os direitos de
propriedade do homem ao seu corpo:

O padrão de consentimento em nossa sociedade faz mais do que proteger um item


significativo da moeda social para as mulheres; promove e é, por sua vez, reforçado por
um orgulho masculino em posse exclusiva de um objeto sexual. O consentimento de
uma mulher para a relação sexual concede ao homem um privilégio de acesso físico, um
“prêmio” pessoal cujo valor é aumentado pela propriedade exclusiva… Uma razão
adicional para a condenação do homem ao estupro pode ser encontrada na ameaça ao
seu status de uma diminuição no “valor” de sua “posse” sexual que resultaria de violação
forçada​[14]​.
Esta continua a ser a articulação básica do estupro como um crime social: é um crime
contra os homens, uma violação do direito masculino à posse pessoal e exclusiva de
uma mulher como um objeto sexual.

É de admirar, então, que quando Andra Medea e Kathleen Thompson, as autoras de


Against Rape [Contra o Estupro], tenham feito um estudo sobre mulheres e estupros,
um grande número de mulheres, quando perguntado: “Você já foi estuprada?”
Respondeu: “Eu não sei”.

O que é estupro?

O estupro é o primeiro modelo para o casamento. Como tal, é sancionada pela Bíblia
e por milhares de anos de lei, costume e hábito.

O estupro é um ato de roubo — um homem assume a propriedade sexual de outro


homem.

O estupro é, por lei e por costume, um crime contra os homens, contra o proprietário
particular de uma mulher em particular.

O estupro é o principal modelo heterossexual de relacionamento sexual.

O estupro é o principal emblema do amor romântico.

O estupro é o meio pelo qual uma mulher é iniciada em sua feminilidade como é
definida pelos homens.
O estupro é o direito de qualquer homem que deseje qualquer mulher, desde que ela
não seja explicitamente possuída por outro homem. Isso explica claramente por que
os advogados de defesa podem fazer perguntas pessoais e íntimas às vítimas de
estupro sobre suas vidas sexuais. Se uma mulher é virgem, ela ainda pertence ao pai
e um crime foi cometido. Se uma mulher não é casada e não é virgem, então ela não
pertence a nenhum homem em particular e um crime não foi cometido.

Estas são as premissas culturais, legais e sociais fundamentais sobre o estupro: (1) as
mulheres querem ser estupradas; de fato, as mulheres precisam ser estupradas; (2)
mulheres provocam estupro; (3) nenhuma mulher pode ser sexualmente forçada
contra sua vontade; (4) as mulheres amam seus estupradores; (5) no ato do estupro,
os homens afirmam sua própria masculinidade e também afirmam a identidade e
função das mulheres — ou seja, as mulheres existem para serem fodidas pelos
homens e, assim, no ato do estupro, os homens realmente afirmam a própria
feminilidade de mulheres. É de admirar, então, que haja uma epidemia de estupro
violento neste país e que a maioria dos estupradores condenados não saiba o que eles
fizeram de errado?

Em Beyond God the Father [Além de Deus, o Pai], Mary Daly diz que, como
mulheres, fomos privadas do poder de nomear​[15]​. Os homens, como engenheiros
dessa cultura, definiram todas as palavras que usamos. Os homens, como criadores
da lei, definiram o que é legal e o que não é. Os homens, como criadores de sistemas
de filosofia e moralidade, definiram o que é certo e o que é errado. Homens, como
escritores, artistas, cineastas, psicólogos e psiquiatras, políticos, líderes religiosos,
profetas e os chamados revolucionários definiram para nós quem somos, quais são
nossos valores, como percebemos o que acontece conosco, como entendemos o que
nos acontece. Na raiz de todas as definições, eles fizeram uma convicção resoluta:
que as mulheres foram colocadas nesta terra para o uso, prazer e gratificação sexual
dos homens.

No caso de estupro, os homens definiram para nós nossa função, nosso valor e os
usos a que nós podemos ser colocadas.

Para as mulheres, como diz Mary Daly, um ato revolucionário fundamental é


recuperar o poder de nomear, definir para nós mesmas o que nossa experiência é e
tem sido. Isso é muito difícil de fazer. Usamos uma linguagem que é sexista em sua
essência: desenvolvida por homens em seus próprios interesses; formada
especificamente para nos excluir; usada especificamente para nos oprimir. O
trabalho, então, de nomear é crucial para a luta das mulheres; o trabalho de nomear
é, de fato, o primeiro trabalho revolucionário que precisamos fazer. Como, então, nós
definimos estupro?

O estupro é um crime contra as mulheres.

O estupro é um ato de agressão contra as mulheres.

O estupro é um ato desdenhoso e hostil contra as mulheres.

O estupro é uma violação do direito da mulher à autodeterminação.

O estupro é uma violação do direito de uma mulher ao controle absoluto de seu


próprio corpo.

O estupro é um ato de dominação sádica.

O estupro é um ato colonialista.


O estupro é uma função do imperialismo masculino contra e contra as mulheres.

O crime de estupro contra uma mulher é um crime cometido contra todas as


mulheres.

Geralmente, reconhecemos que o estupro pode ser dividido em duas categorias


distintas: estupro forçado e estupro presumido. Em um estupro forçado, um homem
agride fisicamente uma mulher e a força, por meio de violência física, ameaça de
violência física ou ameaça de morte, a realizar qualquer ato sexual. Qualquer ato
sexual forçado deve ser considerado estupro — “contato entre a boca e o ânus, a
boca e o pênis, a boca e a vulva, [contato] entre o pênis e a vulva, [entre o] pênis e
ânus ou contato entre o ânus ou a vulva” e qualquer substituto fálico como uma
garrafa, bastão ou dildo​[16]​. Em um estupro presumido, nós temos a garantia de
presumir que um homem teve acesso carnal a uma mulher sem o seu consentimento,
porque definimos o consentimento como “concordância significativa e bem
informada; não mera aquiescência.” ​[17]

Em um estupro presumido, a restrição à vontade da vítima está na própria


circunstância; não houve reciprocidade de escolha e compreensão e, portanto; os
direitos humanos básicos da vítima foram violados e um crime foi cometido contra
ela. Este é um exemplo de estupro presumido, relatado por Medea e Thompson em
Against Rape [Contra o Estupro]:

A mulher tem dezessete anos, uma estudante do ensino médio. São cerca de quatro
horas da tarde. O pai de seu namorado a pegou no carro depois da escola para levá-la
para conhecer seu filho. Ele para em sua casa e diz que ela deve esperar por ele no carro.
Quando ele coloca o carro na garagem, esse pai de seis filhos, de trinta e sete anos, a
estupra​[18]​.
Esse tipo de estupro é comum, é desprezível e, é desnecessário dizer, nunca é
denunciado à polícia.

Quem, então, comete estupro?

O fato é que o estupro não é cometido por psicopatas. O estupro é cometido por
homens normais. Não há nada para distinguir o estuprador do não-estuprador, salvo
uma condenação por estupro que é muito difícil de obter.

O Instituto de Pesquisa de Sexo fez um estudo de estupradores nas décadas de 1940 e


1950. Em parte, os pesquisadores concluíram que “… não há sinais notoriamente
ameaçadores nas histórias de delitos prévios [dos estupradores]; de fato, seu ajuste
heterossexual é quantitativamente bem acima da média”. ​[19]

O Dr. Menachim Amir, um criminologista israelense, fez uma pesquisa intensiva de


646 casos de estupro tratados pelo Departamento de Polícia da Filadélfia de janeiro a
dezembro de 1958 e de janeiro a dezembro de 1960. Em seu estudo, Patterns of
Forcible Rape [Padrões de Estupro Forçado], ele critica as interpretações
psicanalíticas do comportamento dos estupradores ao apontar que os estudos
“indicam que os agressores sexuais não constituem um tipo clínico ou
psicopatológico único; nem são, como grupo, invariavelmente mais perturbados do
que os grupos de controle aos quais são comparados”​[20]​.

Ou, como Allan Taylor, um oficial de liberdade condicional na Califórnia, disse:


“Esses homens [estupradores condenados] eram os homens mais normais [na
prisão]. Eles tinham muitos problemas, mas eram tão tranquilos quanto os homens
que estão andando na rua.”​[21]

No estudo de Amir, a maioria dos estupradores tinha entre quinze e dezenove anos
de idade. Homens de vinte a vinte e quatro constituíam o segundo maior grupo​[22]​.
Em 63,8% dos casos, o agressor e a vítima estavam na mesma faixa etária (± 5 anos);
em 18,6%, a vítima era pelo menos dez anos mais nova que o agressor; em 17,6%, a
vítima era pelo menos dez anos mais velha​[23]​.

O FBI, em seu Relatório Uniforme de Crime, informou que em 1974, 5.510 mulheres
foram estupradas neste país. Isso foi um aumento de 8% em relação a 1973 e um
aumento de 49% em relação a 1969. O FBI observa que o estupro é “provavelmente
um dos crimes mais subnotificados devido principalmente ao medo e/ou
constrangimento por parte de suas vítimas”​[24]​. Carol V. Horos, em seu livro Rape
[Estupro], estima que, para cada estupro denunciado à polícia, dez não são
denunciados​[25]​. Aplicar a estimativa de Horos ao número de estupros reportados
em 1974 eleva a estimativa total de estupros cometidos naquele ano para 607.310. É
importante lembrar que as estatísticas do FBI são baseadas na definição masculina
de estupro e no número de homens presos e condenados por estupro sob essa
definição. Segundo o FBI, de todos os estupros denunciados à polícia em 1974,
apenas 51% resultaram em detenção e, em apenas um dos dez casos, o estuprador foi
finalmente condenado​[26]​.

De acordo com Medea e Thompson, que estudaram vítimas de estupro, 47% de todos
os estupros ocorreram na casa da vítima ou do estuprador; 10% ocorreram em outros
edifícios; 18% ocorreram em carros; 25% ocorreram em ruas, becos, parques e no
país​[27]​. Tanto Amir, que estudou estupradores, quanto Medea e Thompson, que
estudaram vítimas de estupro, concordam que as chances são melhores do que 50%
de que o estuprador será alguém que a vítima conhece — alguém conhecido de
perto, vizinho, colega de trabalho, amigo, um ex-amante, uma paquera​[28]​. Medea e
Thompson também constataram que 42% dos estupradores se comportaram com
calma e que 73% usaram a força​[29]​. Em outras palavras, muitos estupradores são
calmos e usam a força ao mesmo tempo.

Para nós, mulheres, essa informação é devastadora. Mais de meio milhão de


mulheres foram estupradas neste país em 1974 e o estupro está em ascensão.
Estupradores são homens heterossexuais normais. Pelo menos 50% das vítimas de
estupro serão estupradas por homens que elas conhecem. Além disso, de acordo com
Amir, 71% de todos os estupros foram totalmente planejados; 11% foram
parcialmente planejados; e apenas 16% não foram planejados​[30]​.

O estupro tem a menor taxa de condenação que qualquer crime violento. Segundo
Horos, em 1972, apenas 133 de cada 1.000 homens julgados por estupro foram
condenados​[31]​. Medea e Thompson relatam que os jurados absolverão nove vezes
em dez​[32]​. A razão para isso é óbvia: presume-se que a mulher tenha provocado o
estupro e ela seja responsabilizada por isso. Em particular, quando a mulher conhece
o estuprador, em 50% do tempo, não há virtualmente nenhuma possibilidade de
condenação.

Quem são as vítimas do estupro? Mulheres — de todas as classes, raças, de todas as


esferas da vida, de todas as idades. A maioria dos estupros é intraracial — isto é,
homens brancos estupram mulheres brancas e homens negros estupram mulheres
negras. A mais jovem vítima de estupro registrada é uma criança do sexo feminino de
duas semanas de idade​[33]​. A mais antiga vítima de estupro registrada é uma mulher
de noventa e três anos​[34]​. Este é o testemunho de uma mulher que foi estuprada no
final da vida.

O estupro não é uma questão acadêmica com o presente escritor, pois não faz muito
tempo (4 de junho de 1971) que ela, aos cinquenta e poucos anos, se juntou ao crescente
exército de vítimas de estupro. Era um caso de forçar uma janela e entrar na casa, um
ataque forçado com as enormes mãos contundentes do estuprador ao redor do pescoço e
foi acompanhado de roubo.
Todas essas circunstâncias convenceram a polícia imediatamente de que um crime havia
sido cometido. (Ajuda ser idosa e não mais sexualmente atraente também.) …
Foi 2 ou 3 dias antes do choque passar e o impacto total da experiência a atingiu. Ela
ficou muito doente e agora, quase 3 anos depois, não se recuperou. A polícia disse a ela
que ela teve sorte de não ter sido assassinada. Mas isso permanece uma questão não
respondida em sua mente. Um assassinato simples não teria envolvido o horror, a
insultante violação da personalidade, a degradação, a devastadora afronta à dignidade e
a sensação de imundície corporal que o tempo não lavou. Nem levaria a ela anos
acordando assustada, os suores frios em ruídos no escuro, as palpitações do coração ao
som de uma voz masculina profunda, a imagem terrivelmente repetida de duas grandes
mãos musculosas se aproximando de sua garganta, a voz retumbante que prometia
matá-la se ela lutasse ou tentasse gritar, a visão insuportável de ser encontrada no chão
de sua própria casa, deitada seminua e morta com as pernas ridiculamente espalhadas.
O que foi sorte foi que isso aconteceu mais perto do fim de sua vida do que o começo.
Que tortura deve ser para as mulheres jovens que têm que viver com essas memórias por
cinquenta anos! O coração desta mulher mais velha vai por elas​[35]​.

Este foi o testemunho da grande Elizabeth Gould Davis, autora de The First Sex, que
morreu em 30 de julho de 1974, de um ferimento por arma de fogo autoinfligido. Ela
tinha câncer e planejou sua morte com grande dignidade, mas acredito que foi o
estupro, não o câncer, que a afligiu até a morte.

Agora, eu poderia ler seu testemunho depois do testemunho, contar histórias após
histórias — afinal, em 1974 havia 607,310 dessas histórias para contar — mas não
acho que tenho que provar a você que o estupro é um crime de tal violência e que é
tão desenfreado que devemos vê-lo como uma atrocidade em curso contra as
mulheres. Todas as mulheres vivem em constante risco, em estado de sítio virtual.
Isto é simplesmente a verdade. No entanto, quero falar-lhe explicitamente sobre uma
forma particularmente violenta de estupro que está a aumentar rapidamente em
frequência. Isso é um estupro múltiplo — isto é, o estupro de uma mulher por dois
ou mais homens.

No estudo de Amir sobre 646 casos de estupro na Filadélfia em 1958 e 1960, 43% de
todos os estupros foram estupros coletivos (16% de estupros por pares, 27% de
estupros em grupo)​[36]​. Eu quero te falar sobre dois estupros coletivos com algum
detalhe. O primeiro é relatado por Medea e Thompson em Against Rape [Contra o
Estupro]. Uma mulher de vinte e cinco anos, mentalmente retardada, com uma idade
mental de onze anos, morava sozinha em um apartamento em uma cidade
universitária. Ela foi ajudada por alguns homens de uma fraternidade do campus.
Estes homens levaram-na para a casa da fraternidade, depois ela foi estuprada por
aproximadamente quarenta homens. Esses homens também tentaram forçar o
intercurso entre ela e um cachorro. Esses homens também colocam garrafas e outros
objetos em sua vagina. Então, eles a levaram para uma delegacia e a acusaram de
prostituição. Então, eles se ofereceram para abandonar as acusações contra ela se ela
fosse institucionalizada. Ela foi institucionalizada; ela descobriu que estava grávida;
então, ela teve um colapso emocional completo.

Um homem que participou do estupro se gabou para outro homem. Aquele homem,
que ficou horrorizado, contou a um professor. Um grupo do campus confrontou a
fraternidade. No início, os acusados admitiram que haviam cometido todos os atos
praticados, mas negaram que fosse estupro, pois, segundo eles, a mulher havia
consentido em todos os atos sexuais cometidos. Posteriormente, quando a história
foi divulgada, esses mesmos homens negaram completamente a história.

Um grupo de mulheres no campus exigiu que a fraternidade fosse jogada fora do


campus para demonstrar que a universidade não aprovava o estupro coletivo.
Nenhuma ação foi tomada contra a fraternidade por funcionários da universidade ou
pela polícia​[37]​.

A segunda história que eu quero contar foi relatada por Robert Sam Anson em um
artigo chamado “That Championship Season” [A temporada do campeonato] na
revista New Times​[38]​. De acordo com Anson, em 25 de julho de 1974, a
Universidade Notre Dame suspendeu, por pelo menos um ano, seis jogadores de
futebol negros pelo que a universidade chamou de “séria violação dos regulamentos
universitários”. Um estudante de colegial branco de dezoito anos, ao que parece,
tinha denunciado os jogadores de futebol por estupro coletivo.
O advogado da vítima, o procurador da comarca, o repórter local encarregado de
cobrir a história, um curador do jornal local — todos eram ex-alunos da Notre Dame
e todos ajudaram a encobrir a acusação de estupro.

A Universidade de Notre Dame, de acordo com Anson, insistiu que nenhum crime foi
cometido. Foi o consenso dos funcionários da universidade que os jogadores de
futebol estavam semeando sua aveia selvagem em um gang bangantiquado e que a
vítima era uma participante voluntária. Os jogadores de futebol foram suspensos por
fazer sexo em seu dormitório. O Presidente da Notre Dame, Theodore Hesburgh, um
notável liberal e acadêmico, um padre católico, insistiu que não havia estupro e disse
que a universidade produziria, se necessário, “dúzias de testemunhas oculares”. Cito
Anson:

As conclusões de Hesburgh baseiam-se em uma entrevista pessoal de uma hora com os


seis jogadores de futebol, junto com uma investigação conduzida por seu reitor de
estudantes, John Macheca, um anterior homem de relações públicas universitário… O
próprio Macheca não diz nada sobre sua investigação… Várias fontes do campus
próximas ao caso dizem que, durante toda a sua investigação, nenhum funcionário da
universidade falou com a garota ou seus pais. O próprio Hesburgh não professa nem
saber nem se importar. Ele diz irritadamente: “É irrelevante… eu não precisava falar
com a garota. Eu falei com os garotos.”​[39]

De acordo com Anson, se o Dr. Hesburgh tivesse conversado com “a garota”, ele teria
ouvido esta história: depois do trabalho no final de 3 de julho, ela foi a Notre Dame
para ver o jogador de futebol que ela estava namorando; eles fizeram amor duas
vezes em seu dormitório; ele saiu do quarto; ela estava sozinha e despida, envolvida
em um lençol; outro jogador de futebol entrou na sala; ela tinha uma história de
hostilidade e confronto com esse segundo jogador de futebol (ele havia engravidado
uma amiga dela, se recusara a pagar por um aborto, ela o confrontara sobre isso e
finalmente ele pagou parte do dinheiro); esse segundo jogador de futebol e a mulher
começaram a brigar e ele ameaçou que, a menos que ela se submetesse a ele
sexualmente, ele a jogaria para fora da janela do terceiro andar; então ele a estuprou;
outros quatro jogadores de futebol também a estupraram; durante o estupro coletivo,
vários outros jogadores de futebol entraram e saíram da sala; quando a mulher
finalmente conseguiu sair do dormitório, dirigiu-se imediatamente a um hospital.

O investigador da polícia no caso e uma fonte no escritório do promotor acreditam na


história da vítima — que houve um estupro coletivo perpetrado nela pelos seis
jogadores de futebol de Notre Dame.

Todas as autoridades universitárias masculinas que investigaram o suposto estupro


coletivo determinaram que a vítima era uma vadia. Isso eles fizeram, todos eles,
entrevistando os estupradores acusados. Na verdade, a investigação do personagem
do promotor indicou que a mulher era uma boa pessoa. O treinador da equipe de
futebol de Notre Dame responsabilizou-se pelo suposto estupro coletivo sobre o
agravamento da moral das mulheres que assistem às novelas. Hesburgh, um exemplo
moral que ele é, concluiu: “Eu não precisava falar com a garota. Eu falei com os
garotos”. O decano dos estudantes, John Macheca, expulsou os estudantes como
resultado de sua investigação secreta. Hesburgh anulou a expulsão do que ele
chamou de ‘compaixão’ — ele reduziu a expulsão para um ano de suspensão. A
vítima de estupro agora frequenta uma universidade no Centro-Oeste. Sua vida, de
acordo com Anson, foi ameaçada.

O fato é que, como essas duas histórias demonstram conclusivamente, qualquer


mulher pode ser estuprada por qualquer grupo de homens. Sua palavra não será
credível contra seu testemunho coletivo. Uma investigação adequada não será feita.
Lembre-se das boas palavras do padre Hesburgh enquanto viver: “Eu não precisava
falar com a garota. Eu falei com os garotos. Mesmo quando um promotor está
convencido de que o estupro, conforme definido pela lei masculina, ocorreu, os
estupradores não serão processados criminalmente. Oficiais universitários homens
protegerão aquelas instituições masculinas sacrossantas — o time de futebol e a
fraternidade — não importando o custo para as mulheres.

As razões para isso são terríveis e cruéis, mas você deve conhecê-las. Os homens são
uma classe de gênero privilegiada acima e contra as mulheres. Um de seus privilégios
é o direito de estupro — isto é, o direito de acesso carnal a qualquer mulher. Os
homens concordam, por lei, costume e hábito, que as mulheres são vagabundas e
mentirosas. Os homens formarão alianças ou laços para proteger seus interesses de
classe de gênero. Mesmo em uma sociedade racista, o vínculo masculino tem
precedência sobre o vínculo racial.

É muito difícil sempre que as patologias racistas e sexistas coincidam para delinear
de maneira política o que realmente aconteceu. Em 1838, Angelina Grimke,
abolicionista e feminista, descreveu as instituições Amerikanas como “um sistema de
crimes complicados, construído sobre os corações partidos e corpos prostrados de
meus compatriotas acorrentados e cimentados pelo sangue, suor e lágrimas de
minhas irmãs em correntes.​[40]​” O racismo e o sexismo são o empenamento e a
trama dessa sociedade amerikana, o próprio tecido de nossas instituições, leis,
costumes e hábitos — e nós somos os herdeiros desse complicado sistema de crimes.
No caso de Notre Dame, por exemplo, podemos postular que o promotor levou a
sério as acusações de estupro da mulher, porque seus acusados estupradores eram
negros. Isso é racismo e isso é sexismo. Não há dúvida de que a lei masculina branca
é mais favorável ao julgamento de negros pelo estupro de mulheres brancas do que o
contrário. Também podemos postular que, se o caso de Notre Dame tivesse sido
levado ao tribunal, a personagem da vítima de estupro teria sido impugnada
irrevogavelmente porque seu amante era negro. Isso é racismo e isso é sexismo.
Também sabemos que se uma mulher negra tivesse sido estuprada, seja por negros
ou brancos, seu estupro não terá prosseguimento criminal, não será noticiado. Isso é
racismo e isso é sexismo.
Em geral, nós podemos observar que as vidas dos estupradores valem mais do que a
das mulheres que são estupradas. Os estupradores são protegidos pela lei masculina
e as vítimas de estupro são punidas pela lei masculina. Um complexo sistema de
vínculo masculino apoia o direito do estuprador de estuprar, enquanto diminui o
valor da vida da vítima para absolutamente zero. No caso de Notre Dame, o amante
da mulher permitiu que seus companheiros a estuprassem. Isso era um vínculo
masculino. No decorrer do estupro, em um momento em que a mulher foi deixada
sozinha — não há nenhuma indicação de que ela estava consciente até agora — um
jogador de futebol branco entrou na sala e perguntou se ela queria ir embora.
Quando ela não respondeu, ele a deixou lá sem relatar o incidente. Isso era um
vínculo masculino. O acobertamento e a falta de investigação substantiva por parte
das autoridades brancas eram vinculações masculinas. Todas as mulheres de todas as
raças devem reconhecer que o vínculo masculino tem precedência sobre a ligação
racial, salvo em um tipo particular de estupro: isto é, onde a mulher é vista como
propriedade de uma raça, classe ou nacionalidade, e seu estupro é visto como um ato
de agressão contra os machos daquela raça, classe ou nacionalidade. Eldridge Cleaver
em Soul on Ice descreveu esse tipo de estupro:

Eu me tornei um estuprador. Para refinar minha técnica e meu modus operandi,


comecei praticando em garotas negras no gueto… e quando me considerei aprimorado o
suficiente, cruzei os trilhos e procurei uma presa branca. Eu fiz isso conscientemente,
deliberadamente, intencionalmente, metodicamente…
O estupro foi um ato insurrecionário. Satisfazia-me por eu estar desafiando e
atropelando a lei do homem branco, seu sistema de valores e que eu estava
contaminando suas mulheres — e este ponto, creio eu, foi o mais satisfatório para mim
porque eu estava muito ressentido com o histórico fato de como o homem branco usou a
mulher negra. Eu senti que estava me vingando​[41]​.

Nesse tipo de estupro, as mulheres são vistas como propriedade de homens que são,
em virtude de raça, classe ou nacionalidade, inimigos. As mulheres são vistas como
bens móveis dos homens inimigos. Nesta situação, e apenas nesta situação, os laços
de raça ou classe ou nacionalidade terão prioridade sobre o vínculo masculino. Como
o testemunho de Cleaver deixa evidente, as mulheres do próprio grupo também são
vistas como bens, propriedade, para serem usadas à vontade para os próprios fins.
Quando um homem negro estupra uma mulher negra, nenhum ato de agressão
contra um homem branco foi cometido e assim o direito do homem de estuprar será
defendido. É muito importante lembrar que a maioria dos estupros é
intraracial — isto é, homens negros estupram mulheres negras e homens brancos
estupram mulheres brancas — porque o estupro é um crime sexista. Homens
estupram as mulheres a que têm acesso em função de sua masculinidade e como um
sinal de sua propriedade. O ultraje de Cleaver “com o fato histórico de como o
homem branco usou a mulher negra” é a ira sobre o roubo da propriedade que é
justamente dele. Da mesma forma, a raiva clássica do sul em negros que dormem
com mulheres brancas é ira sobre o roubo de propriedade que pertence ao homem
branco. No caso de Notre Dame, podemos dizer que os interesses de classe de gênero
dos homens foram atendidos determinando que o valor dos jogadores de futebol
negros para o orgulho masculino — isto é, para o campeonato de futebol de Notre
Dame — tinha prioridade sobre a reivindicação do pai branco sobre a propriedade
de sua filha. A questão nuncafoi se um crime havia sido cometido contra uma mulher
em particular.

Agora, eu expus as dimensões da atrocidade de estupro. Como mulheres, nós


vivemos no meio de uma sociedade que nos considera desprezível. Somos
desprezadas, como uma classe de gênero, como vagabundas e mentirosas. Somos
vítimas de violência contínua, malévola e sancionada contra nós — contra nossos
corpos e toda a nossa vida. Nossas personagens são difamadas, como uma classe de
gênero, de modo que nenhuma mulher individual tenha qualquer credibilidade
perante a lei ou na sociedade em geral. Nossos inimigos — estupradores e seus
defensores — não só ficam impunes; eles continuam sendo árbitros influentes da
moralidade; eles têm lugares elevados e estimados na sociedade; eles são padres,
advogados, juízes, legisladores, políticos, médicos, artistas, executivos de empresas,
psiquiatras e professores.

O que podemos nós, que somos impotentes por definição e de fato, fazer sobre isso?

Primeiro, devemos nos organizar efetivamente para tratar os sintomas dessa doença
terrível e epidêmica. Centros de crise de estupro são cruciais. Treinamentos de
autodefesa é crucial. Os esquadrões de mulheres policiais formadas para lidar com
todos os casos de estupro são cruciais. Promotoras sobre casos de estupro são
cruciais.

Novas leis de estupro são necessárias. Essas novas leis devem: (1) eliminar a
corroboração como requisito para condenação; (2) eliminar a necessidade de uma
vítima de estupro ser fisicamente ferida para provar o estupro; (3) eliminar a
necessidade de provar falta de consentimento; (4) redefinir o consentimento para
denotar “concordância significativa e bem informada, não mera aquiescência”; (5)
diminuir a idade irreal de consentimento; (6) eliminar como evidência admissível a
atividade sexual anterior da vítima ou sexo consensual prévio com o réu; (7)
assegurar que a relação conjugal entre as partes não é defesa ou impede a acusação;
(8) definir estupro em termos de graus de lesão grave​[42]​. Essas mudanças na lei de
estupro foram propostas pelo Programa Clínico Legal da Universidade de Nova York
em Direitos Legais da Mulher e você pode encontrar toda a sua proposta de modelo
de lei de estupro em um livro chamado Rape: The First Sourcebook for Women, de
New York Radical Feminists. Eu recomendo que você investigue essa proposta e
trabalhe para sua implementação.

Além disso, nós devemos, a fim de nos proteger, recusar-nos a participar do sistema
de namoro que estabelece toda mulher como uma potencial vítima de estupro. No
sistema de namoro, as mulheres são definidas como o agrado passivo de todo e
qualquer homem. O valor de qualquer mulher é medido pela sua capacidade de atrair
e agradar os homens. O objetivo do jogo de encontros para o homem é “fazer
pontos”. Ao jogar este jogo, como mulheres, colocamos a nós mesmas e ao nosso
bem-estar nas mãos de estranhos virtuais ou reais. Como mulheres, nós devemos
analisar esse sistema de namoro para determinar suas definições e valores explícitos
e implícitos. Ao analisá-lo, veremos como nós somos coagidas a nos tornarmos
mercadorias sexuais.

Além disso, devemos procurar ativamente divulgar casos de estupro não processados
criminalmente e devemos divulgar as identidades dos estupradores a outras
mulheres.

Também há trabalho aqui para homens que não endossam o direito dos homens de
estuprar. Na Filadélfia, os homens formaram um grupo chamado Men Organized
Against Rape [Homens Organizados Contra o Estupro]. Eles lidam com parentes do
sexo masculino e amigos de vítimas de estupro, a fim de dissipar a crença no mito da
culpabilidade feminina. Às vezes, os estupradores que sofrem com a agressão
continuada contra as mulheres ligam e pedem ajuda. Existem vastas possibilidades
educativas e de aconselhamento aqui. Além disso, em Lorton, Virgínia, criminosos
sexuais condenados organizaram um grupo chamado Prisoners Against Rape
[Prisioneiros Contra o Estupro]. Eles trabalham com forças-tarefa e indivíduos
feministas para delinear o estupro como um crime político contra as mulheres e para
encontrar estratégias para combatê-lo. É muito importante que os homens que
querem trabalhar contra o estupro, por ignorância, descuido ou malícia, não
reforcem as atitudes sexistas. Declarações como “O estupro é um crime contra os
homens também” ou “Os homens também são vítimas de estupro” fazem mais mal
do que bem. É uma verdade amarga que o estupro se torna um crime visível apenas
quando um homem é forçadamente sodomizado. É uma verdade amarga que a
simpatia dos homens pode ser despertada quando o estupro é visto como “um crime
contra os homens também”. Essas verdades são muito amargas para nós
suportarmos. Os homens que querem trabalhar contra o estupro terão que cultivar
uma rigorosa consciência e disciplina antissexista para que, de fato, não nos tornem
novamente vítimas invisíveis.

É a crença de muitos homens que seu sexismo se manifesta apenas em relação às


mulheres — isto é, que se eles se abstêm de um comportamento flagrantemente
chauvinista na presença de mulheres, então eles não estão envolvidos em crimes
contra as mulheres. Isso não é assim. É no vínculo entre homens que os homens
geralmente colocam em risco a vida das mulheres. É entre os homens, que os homens
mais contribuem para os crimes contra as mulheres. Por exemplo, é hábito e costume
dos homens discutirem uns com os outros, suas intimidades sexuais com mulheres
específicas em termos vívidos e gráficos. Esse tipo de vínculo estabelece uma mulher
em particular como a conquista sexual legítima e inevitável dos amigos homens de
um homem e leva a inúmeros casos de estupro. As mulheres são estupradas
frequentemente pelos amigos homens dos seus amigos. Os homens devem entender
que prejudicam a vida das mulheres participando dos rituais da masculinidade​[43]
privilegiada. O estupro também é efetivamente sancionado por homens que
perseguem mulheres nas ruas e em outros lugares públicos; que descrevem ou
referem-se a mulheres de maneiras objetificantes e degradantes; que agem
agressivamente ou desdenhosamente em relação às mulheres; que contam ou riem
de piadas misóginas; que escrevem histórias ou fazem filmes onde mulheres são
estupradas e amam isso; que consome ou endossa a pornografia; que insultam
mulheres como um grupo ou mulheres específicas; que impedem ou ridicularizam as
mulheres em nossa luta pela dignidade. Homens que fazem ou que endossam esses
comportamentos são os inimigos das mulheres e estão envolvidos no crime de
estupro. Os homens que querem apoiar as mulheres em nossa luta por liberdade e
justiça devem entender que não é terrivelmente importante para nós que eles
aprendam a chorar; é importante para nós que eles parem com os crimes de violência
contra nós.

-
Eu tenho descrito, é claro, medidas de emergência, projetadas para ajudar as
mulheres a sobreviver enquanto a atrocidade está sendo travada contra nós. Como
podemos acabar com a atrocidade em si? Evidentemente, devemos determinar as
causas profundas do estupro e nós devemos trabalhar para eliminar de nosso tecido
social todas as definições, valores e comportamentos que energizam e sancionam o
estupro.

Quais são, então, as causas do estupro?

O estupro é a consequência direta de nossas definições polares de homens e


mulheres. O estupro é congruente com essas definições; o estupro é inerente a essas
definições. Lembre-se, o estupro não é cometido por psicopatas ou desviantes de
nossas normas sociais — o estupro é cometido por exemplares de nossas normas
sociais. Nesta sociedade de supremacia masculina, os homens são definidos como
uma ordem de estar acima e contra as mulheres que são definidas como uma outra
ordem de ser completamente oposta. Homens são definidos como agressivos,
dominantes e poderosos. As mulheres são definidas como passivas, submissas,
impotentes. Dadas essas definições polares de gênero, é da própria natureza dos
homens agredir sexualmente as mulheres. O estupro ocorre quando um homem, que
é dominante por definição, toma uma mulher que, de acordo com os homens e todos
os órgãos de sua cultura, foi colocada nesta terra para seu uso e gratificação. Estupro,
então, é a consequência lógica de um sistema de definições do que é normativo. O
estupro não é excessivo, não é aberração, não é um acidente, não é um
erro — incorpora a sexualidade como a cultura define. Enquanto essas definições
permanecerem intactas — isto é, desde que os homens sejam definidos como
agressores sexuais e as mulheres sejam definidas como receptores passivos sem
integridade -, os homens exemplares da norma irão estuprar as mulheres.

Nesta sociedade, a norma da masculinidade é a agressão fálica. A sexualidade


masculina é, por definição, intensamente e rigidamente fálica. A identidade de um
homem está localizada em sua concepção de si mesmo como possuidor de um falo; o
valor de um homem está localizado em seu orgulho na identidade fálica. A principal
característica da identidade fálica é que o valor depende inteiramente da posse de um
falo. Como os homens não têm outros critérios de valor, nenhuma outra noção de
identidade, aqueles que não têm falos não são reconhecidos como totalmente
humanos.

Ao pensar sobre isso, você deve perceber que isso não é uma questão de ser
heterossexual ou homossexual. A homossexualidade masculina não é uma renúncia à
identidade fálica. Os homens heterossexuais e homossexuais investem igualmente na
identidade fálica. Eles manifestam esse investimento diferentemente em uma
área — a escolha do que os homens chamam de “objeto sexual” -, mas a valorização
comum das mulheres reforça consistentemente seu próprio senso de valor fálico.

É essa identidade falocêntrica dos homens que torna possível — na verdade,


necessário — que os homens vejam as mulheres como uma ordem inferior de
criação. Os homens genuinamente não sabem que as mulheres são pessoas
individuais de valor, vontade e sensibilidade, porque a masculinidade é o símbolo de
todo o valor e a masculinidade é uma função da identidade fálica. As mulheres,
então, por definição, não têm direito aos direitos e responsabilidades da condição de
ser uma pessoa individual. O maravilhoso George Gilder, que sempre pode ser
contado para nos dizer a triste verdade sobre a masculinidade, colocou desta forma:
“… ao contrário da feminilidade, a masculinidade relaxada é no fundo vazia, uma
nulidade flácida… Masculinidade no nível mais básico pode ser validado e expresso
apenas em ação”​[44]​. E então, quais são as ações que validam e expressam essa
masculinidade: estupro, primeiro e acima de tudo, estupro; assassinato, guerra,
saque, luta, imperialismo e colonização — agressão em toda e qualquer forma e em
qualquer grau. Toda dominação pessoal, psicológica, social e institucionalizada nesta
terra pode ser rastreada até a sua origem: as identidades fálicas dos homens.
Como mulheres, é claro, não temos identidades fálicas e, portanto, somos definidas
como opostos e inferiores aos homens. Os homens consideram a força física, por
exemplo, estar implícita e derivada da identidade fálica, e assim, por milhares de
anos, fomos sistematicamente roubadas de nossa força física. Os homens consideram
a realização intelectual uma função da identidade fálica e, portanto, somos
intelectualmente incompetentes por sua definição. Os homens consideram a
acuidade moral como uma função da identidade fálica e, portanto, somos
consistentemente caracterizadas como criaturas vãs, maliciosas e imorais. Mesmo a
noção de que as mulheres precisam ser fodidas — que é a suposição a priori do
estuprador — é derivada diretamente da convicção de que o único valor é o valor
fálico: os homens estão dispostos ou são capazes de nos reconhecer apenas quando
estamos ligadas a um pau no curso de relações sexuais. Então, e só então, somos para
eles mulheres de verdade.

Como seres não fálicos, as mulheres são definidas como submissas, passivas,
virtualmente inertes. Por toda a história patriarcal, nós temos sido definidas por lei,
costumes e hábitos como inferiores por causa de nossos corpos não fálicos. Nossa
definição sexual é de “passividade masoquista”: “masoquista” porque até os homens
reconhecem seu sadismo sistemático contra nós; “passividade” não porque somos
naturalmente passivas, mas porque nossas correntes são muito pesadas e, como
resultado, não podemos nos mover.

O fato é que, a fim de impedir o estupro e todos os outros abusos sistemáticos contra
nós, devemos destruir essas mesmas definições de masculinidade e feminilidade, de
homens e mulheres. Devemos destruir completamente e para sempre as estruturas
da personalidade “dominante-ativa ou masculina” e “submissa-passiva ou feminina”.
Nós devemos extirpá-los do nosso tecido social, destruir todas e quaisquer
instituições baseadas neles, torná-los vestigiais, inúteis. Nós precisamos destruir a
própria estrutura da cultura como a conhecemos, sua arte, suas igrejas, suas leis;
devemos erradicar da consciência e da memória todas as imagens, instituições e
conjuntos mentais estruturais que transformam os homens em estupradores, por
definição, e mulheres em vítimas, por definição. Até nós fazermos isso, o estupro
continuará sendo nosso principal modelo sexual e as mulheres serão estupradas por
homens.

Como mulheres, nós devemos começar este trabalho revolucionário. Quando nós
mudamos, aqueles que se definem acima de nós e contra nós terão que: nos matar,
mudar ou morrer. Para mudar, devemos renunciar a todas as definições masculinas
que aprendemos; devemos renunciar a definições masculinas e descrições de nossas
vidas, nossos corpos, nossas necessidades, nossos desejos, nosso valor — nós
devemos tomar para nós mesmos o poder de nomear. Nós devemos nos recusar a ser
cúmplices de um sistema sexual-social que se baseia em nosso trabalho como uma
classe inferior de escravas. Nós devemos desaprender a passividade a que fomos
treinadas há milhares de anos. Nós devemos desaprender o masoquismo para o qual
fomos treinadas há milhares de anos. E, mais importante, ao nos libertarmos,
devemos nos recusar a imitar as identidades fálicas dos homens. Nós não devemos
internalizar seus valores e não devemos replicar seus crimes.

Em 1870, Susan B. Anthony escreveu para um amigo:

Então, enquanto eu não oro por ninguém ou qualquer partido para cometer ultrajes, eu
ainda rezo, e de forma sincera e constante, por algum choque terrível para assustar as
mulheres desta nação em um auto respeito que irá obrigá-las a ver o abjeto degradação
de sua posição atual; o que as forçará a romper o jugo do cativeiro e a dar-lhes fé em si
mesmas; o que as fará proclamar sua lealdade à mulher primeiro; o que lhes permitirá
ver que o homem não pode mais sentir, falar ou agir por mulher do que o antigo
senhores de escravos para seu escravo. O fato é que as mulheres estão acorrentadas e
sua servidão é ainda mais depreciativa porque elas não percebem isso. O obrigá-las a ver
e sentir e dar-lhes coragem e consciência para falar e agir por sua própria liberdade,
apesar de enfrentarem o desdém e o desprezo de todo o mundo por fazê-lo. ​[45]
Não é estupro a indignação que irá fazer isso, irmãs, e não é a hora para isso?

[1] Estas observações introdutórias foram apresentadas apenas em escolas onde não
havia programas de estudos para mulheres.

[2] Sigmund Freud, “Femininity,” Women and Analysis, ed. Jean Strouse (New York:
Grossman Publishers, 1974), p. 90.

[3] Nota de tradução: a palavra herstory é a história escrita pela perspectiva


feminista, enfatizando o papel da mulher e contado através do ponto de vista dela.
Seu principal objetivo é trazer mulheres à vista, retirando-as do anonimato a qual
constantemente são postas. A palavra nasceu da crítica a história que é marcado pelo
pronome possessivo referente ao homem.

[4] Nota de tradução: no original é utilizado a locução “carry off” que significa transportar, levar para
fora. No entanto, nenhuma dessas traduções literais fazem referência ao contexto do texto. Logo, se
houver uma tradução mais adequada: me comunique!
[5]​ The Jerusalem Bible (Garden City, N. Y.: Doubleday & Company, Inc., 1966), pp. 243–244.
[6]​ Ibid., p. 245.
[7]​ Citado por by Carol V. Horos, Rape (New Canaan, Conn.: Tobey Publishing Co., Inc., 1974), p. 3.
[8]​ Nota de tradução: essa citação foi traduzida livremente.
[9] Citado por Andra Medea and Kathleen Thompson, Against Rape (New York: Farrar, Straus &
Giroux, Inc., 1974), p. 27.
[10]​ Horos, op. cit., p. 6.
[11] William Matthews, The Ill-Framed Knight: A Skeptical Inquiry into the Identity of Sir Thomas
Malory (Berkeley: University of California Press, 1966), p. 17.
[12]​ Medea e Thompson, op. cit., p. 13.
[13] “Forcible and Statutory Rape: An Exploration of the Operation and Objectives of the Consent
Standard” The Yale Law Journal, LXII (December 1952), pp. 52–83.
[14]​ Ibid., pp. 72–73.
[15] Mary Daly, Beyond God the Father: Toward a Philosophy of Women’s Liberation (Boston: Beacon
Press, 1973), pp. 8, 9, 33, 37, 47–49, 100, 106, 167.
[16] New York Radical Feminists, Rape: The First Sourcebook for Women, eds. Noreen Connell and
Cassandra Wilson (New York: New American Library, 1974), p. 165.
[17]​ Ibid.
[18]​ Medea e Thompson, op. cit., p. 16.
[19]​ The Institute for Sex Research, Sex Offenders (New York: Harper & Row, 1965), p. 205.
[20]​ Menachim Amir, Patterns of Forcible Rape (Chicago: University of Chicago Press, 1971), p. 314.
[21]​ Susan Griffin, “Rape: The All-American Crime,” Ramparts, X (September 1971), p. 27.
[22]​ Amir, op. cit., p. 52.
[23]​ Amir, op. cit., p. 57.
[24] Federal Bureau of Investigation, Uniform Crime Reports, 1974 (Washington, D. C.: Government
Printing Office, 1974), p. 22.
[25]​ Horos, op. cit., p. 24.
[26]​ Federal Bureau of Investigation, op. cit., p. 24.
[27]​ Medea e Thompson, op. cit., p. 134.
[28]​ Amir, op. cit., pp. 234–235; Medea and Thompson, op. cit., p. 29.
[29]​ Medea e Thompson, op. cit., p. 135.
[30]​ Amir, op. c/7., p. 142.
[31]​ Horos, loc. cit.
[32]​ Medea e Thompson, op. cit., p. 12.
[33] Sgt. Henry T. O’Reilly, New York City Police Department Sex Crimes Analysis Unit, citado em
Joyce Wadler, “Cop, Students Talk About Rape,” New York Post, CLXXIV (May 10, 1975), p. 7.
[34]​ Horos, op. cit., p. 13.
[35]​ Elizabeth Gould Davis, “Too Terrible for Male Law,” Majority Report, IV (June 27, 1974), p. 6.
[36]​ Amir, op. cit., p. 200.
[37]​ Medea e Thompson, op. cit., pp. 34–35.
[38] Robert Sam Anson, “That Championship Season,” New Times, III (September 20, 1974), pp.
46–51.
[39]​ Ibid., p. 48.
[40] Angelina Grimke, falando perante a Assembleia Legislativa do Estado de Massachusetts, 1838,
citado por Gerda Lerner, The Grimke Sisters from South Carolina: Pioneers for Woman*s Rights and
Abolition (New York: Schocken Books, 1971), p. 8.
[41]​ Eldridge Cleaver, Soul on Ice (New York: Dell Publishing Co., Inc., 1968), p. 26.
[42]​ New York Radical Feminists, op. cit., pp. 164–169.
[43] Nota de tradução: no original, utiliza-se boyhood que implica no período de ser um menino; na
infância e adolescência de um menino; mas por falta de palavra correspondente em português que
marcasse o gênero; traduzi como masculinidade.
[44]​ George Gilder, Sexual Suicide (New York: Quadrangle, 1973), p. 18.
[45] Ida Husted Harper, The Life and Work of Susan B. Anthony: Including Public Addresses, Her
Own Letters and Many from Her Contemporaries During Fifty Years, 3 vols. (Indianapolis and Kansas
City: The Bowen- Merrill Company, 1898), I: 366.
Capítulo 5

A política sexual do medo e da coragem

Discurso realizado no Queens College, Universidade da Cidade de Nova York, 12 de


março de 1975; Fordham University, Nova York, 16 de dezembro de 1975.

(Para minha mãe)

(1)
Quero falar com você sobre o medo e a coragem — o que cada um é, como eles se
relacionam e o lugar que cada um tem na vida de uma mulher.

Quando eu estava tentando pensar sobre o que dizer aqui hoje, pensei que poderia
contar histórias — histórias da vida de mulheres muito corajosas. Há muitas
histórias para contar e eu sempre me inspiro nessas histórias e eu achei que você
também poderia se inspirar com elas. Mas, embora essas histórias sempre nos
permitam sentir um tipo de orgulho coletivo, elas também nos permitem mistificar
atos particulares de coragem e deificar aqueles que as cometeram — nós dizemos,
oh, sim, ela era assim, mas eu não sou assim; dizemos que ela era uma mulher tão
extraordinária, mas eu não sou. Então, decidi tentar pensar no medo e na coragem de
outra maneira — de uma maneira mais analítica e política.

Vou tentar delinear para você as políticas sexuais do medo e da coragem — isto é,


como o medo é aprendido em função da feminilidade; e como a coragem é o
emblema vermelho da masculinidade.

Eu acredito que somos todos produtos da cultura em que vivemos; e para entender o
que pensamos como nossas experiências pessoais, precisamos entender primeiro
como a cultura informa o que vemos e como entendemos. Em outras palavras, a
cultura em que vivemos nos determina em grau surpreendente como nós
percebemos, o que nós percebemos, como nós nomeamos e valorizamos nossas
experiências, como e por que nós agimos.

O primeiro fato desta cultura é que é a supremacia masculina: isto é, os homens são,
por direito de nascimento, lei, costume e hábito, sistemáticos e consistentemente
definidos como superiores às mulheres.

Essa definição, que postula que os homens são uma classe de gênero acima e contra
as mulheres, é inerente a todos os órgãos e instituições dessa cultura. Não há
exceções para essa regra específica.

Em uma cultura supremacista masculina, a condição masculina é considerada a


condição humana, de modo que, quando alguém fala — por exemplo, como artista,
historiador ou filósofo — ele fala objetivamente — isto é, como alguém que tem,
por definição, nenhum osso especial para escolher, nenhum investimento especial
que inclinasse sua visão; ele é de alguma forma uma encarnação da norma. As
mulheres, por outro lado, não são homens. Portanto, as mulheres não são, em
virtude da lógica masculina, a norma; são uma ordem inferior de ser, mais subjetiva
do que objetiva, um amálgama confuso de ossos especiais para escolher que tornam
nossas percepções, julgamentos e decisões não confiáveis, não críveis, caprichosos…
Simone de Beauvoir no prefácio de O Segundo Sexo descreveu assim:

Na verdade, a relação dos dois sexos não é…. como a de dois polos elétricos, pois o
homem representa tanto o positivo quanto o neutro, como é indicado pelo uso comum
de [a palavra] homem para designar os seres humanos em geral; enquanto a mulher
representa apenas o negativo, definido por critérios limitantes, sem reciprocidade… “A
fêmea é uma mulher em virtude de uma certa falta de qualidades”, disse Aristóteles;
“Devemos considerar a natureza feminina como afetada por uma deficiência natural”. E,
por sua vez, São Tomás declarou que a mulher é um “homem imperfeito”, um ser
“incidental”…
Portanto, a humanidade é masculina e o homem define a mulher não em si mesma, mas
como relativa a ele; ela não é considerada um ser autônomo​[1]​.

Nós podemos localizar com facilidade a maneira exata em que nós somos “afligidas
por uma deficiência natural”. Como Freud expressou de forma tão eloquente dois
milênios depois de Aristóteles:

[As mulheres] notam o pênis de um irmão ou companheiro, notavelmente visível e de


grandes proporções [e] o reconhecem imediatamente como contraparte superior de seu
próprio órgão pequeno e imperceptível…
… Depois que uma mulher se conscientizou da ferida ao seu narcisismo, ela desenvolve,
como uma cicatriz, uma sensação de inferioridade. Quando ela ultrapassou sua primeira
tentativa de explicar sua falta de pênis como sendo uma punição pessoal para si mesma
e percebeu que esse caráter sexual é universal, ela começa a compartilhar o desprezo
sentido pelos homens por um sexo que é inferior em tão importante respeito…​[2]

Agora, a terrível verdade é que, em um patriarcado, a posse de um falo é o único sinal


de valor, a pedra de toque da identidade humana. Todos os atributos humanos
positivos são vistos como inerentes e consequências desse único acidente biológico.
Intelecto, discernimento moral, criatividade, imaginação — todas são faculdades
masculinas ou fálicas. Quando qualquer mulher desenvolve qualquer uma dessas
faculdades, é-nos dito que ela está se esforçando para se comportar “como um
homem” ou que ela é “masculina”.

Um atributo particularmente importante da identidade fálica é a coragem. A


masculinidade pode ser funcionalmente descrita como a capacidade de ação corajosa.
Um homem nasce com essa capacidade — isto é, com um falo. Cada pequeno bebê
macho é um herói em potencial. Sua mãe deve criá-lo e nutri-lo para que ele possa
desenvolver essa capacidade inerente. Seu pai, supostamente, deveria incorporar no
mundo essa capacidade plenamente realizada.

Qualquer trabalho ou atividade que um homem faça, ou qualquer talento nascente


que um homem possa ter, tem uma dimensão mítica: ele pode ser reconhecido pela
cultura masculina como heroico e a masculinidade de qualquer homem que a
encarna é assim afirmada.

Os tipos e categorias de heróis masculinos míticos são numerosos. Um homem pode


ser um herói se escalar uma montanha ou jogar futebol ou pilotar um avião. Um
homem pode ser um herói se ele escreve um livro, ou compõe uma peça de música,
ou dirige uma peça. Um homem pode ser um herói se for um cientista, um soldado,
um viciado em drogas, um discotecário ou um político mesquinho medíocre. Um
homem pode ser um herói porque sofre e se desespera; ou porque ele pensa lógica e
analiticamente; ou porque ele é “sensível”; ou porque ele é cruel. A riqueza estabelece
um homem como herói e a pobreza também. Praticamente qualquer circunstância na
vida de um homem fará dele um herói para algum grupo de pessoas e tem uma
interpretação mítica na cultura — na literatura, na arte, no teatro ou nos jornais
diários.

É precisamente essa dimensão mítica de toda atividade masculina que reifica o


sistema de classe de gênero, de modo que a supremacia masculina é incontestável e
imutável. As mulheres nunca são confirmadas como agentes heroicas ou corajosas,
porque a capacidade de ação corajosa é inerente à própria masculinidade — é
identificável e afirmativa apenas como uma capacidade masculina. As mulheres,
lembre-se, são “femininas em virtude de uma certa falta de qualidades”. Uma das
qualidades que nós precisamos não ter para passar como fêmeas é a capacidade de
ação corajosa.
Isso vai direto ao centro da invisibilidade feminina nessa cultura. Não importa o que
fazemos, não somos vistas. Nossos atos não são testemunhados, não são observados,
não são vivenciados, não são registrados, não são afirmados. Nossos atos não têm
uma dimensão mítica em termos masculinos simplesmente porque não somos
homens, não temos falos. Quando os homens não veem um pênis, eles não veem
nada de fato; eles percebem uma falta de qualidades, uma ausência. Eles não veem
nada de valor, pois reconhecem apenas o valor fálico; e eles não podem valorizar o
que eles não veem. Eles podem preencher os espaços vazios, a ausência, com todos os
tipos de fantasias monstruosas — por exemplo, eles podem imaginar que a vagina é
um buraco cheio de dentes — mas eles não podem reconhecer uma mulher por
quem ela é como um discreto ser real; nem podem compreender o que o corpo de
uma mulher é para ela, isto é, que ela experimenta a si mesma como sendo real, e não
como o negativo de um homem; nem podem entender que as mulheres não estão
“vazias” por dentro. Esta última ilusão masculina, ou alucinação, é tão interessante
quanto chocante. Tenho ouvido com frequência que os homens descrevem a vagina
como um “espaço vazio” — a ideia é que a característica definidora das mulheres, do
alto das pernas até a cintura, é o vazio interno. De alguma forma, a ilusão é que as
mulheres contêm um espaço interno que é uma ausência e que deve ser
preenchido — seja por um falo ou por uma criança, que é visto como uma extensão
do falo. A capitulação de Erik Erikson dessa fantasia masculina a santificava para os
psicólogos. Erikson escreveu:

Sem dúvida também, a própria existência do espaço produtivo interno expõe as


mulheres cedo a uma sensação específica de solidão, a um medo de ser deixada vazia ou
privada de tesouros, de não ser realizada e ser seca… na experiência feminina, o “espaço
interno” está no centro do desespero, mesmo sendo o centro da realização potencial. O
vazio é a forma feminina de perdição… é uma experiência padrão para todas as
mulheres. Ser deixada, para ela, significa ficar vazia… Tal mágoa pode ser
reexperimentada em cada menstruação; é um choro para o céu no luto por uma criança;
e se torna uma cicatriz permanente na menopausa​[3]​.
Não é de admirar, portanto, que os homens nos reconheçam apenas quando temos
um falo ligado a nós durante o intercurso sexual ou quando estamos grávidas. Então,
nós somos para eles mulheres reais; então, temos, a seus olhos, uma identidade, uma
função, uma existência verificável; então, e só então, não estamos “vazias”. O
isolamento dessa patologia masculina, a propósito, lança alguma luz sobre a luta do
aborto. Em uma sociedade na qual o único valor reconhecível é fálico, é inconcebível
que uma mulher escolha “ficar vazia por dentro”, escolher ser “privada de tesouros”.
O útero só é digno quando é o repositório de benções divinas — o falo ou, desde que
os homens querem filhos, o filho fetal. Abortar um feto, em termos masculinistas, é
cometer um ato de violência contra o próprio falo. É semelhante a cortar um pênis.
Como o feto é percebido como tendo um caráter fálico, sua assim chamada vida é
altamente valorizada, enquanto a vida real da mulher é inútil e invisível, uma vez que
ela não pode reivindicar a potencialidade fálica.

Pode parecer peculiar, a princípio, falar de medo como ausência de coragem.


Sabemos, todos nós, que o medo é vívido, real, fisiologicamente verificável — mas,
então, a vagina também é. Vivemos em um mundo imaginado por homens e nossas
vidas são circunscritas pelos limites da imaginação masculina. Esses limites são
muito severos.

Como mulheres, aprendemos o medo como uma função da nossa chamada


feminilidade. Somos ensinadas sistematicamente a ter medo e somos ensinadas que
ter medo não é apenas congruente com a feminilidade, mas também inerente a ela.
Somos ensinadas a ter medo de não sermos capazes de agir, de modo que seremos
passivas, de modo que seremos mulheres — de modo que, como Aristóteles disse,
seremos tão encantadoramente “afligidas por uma imperfeição natural”.

Em Woman Hating, eu descrevi como esse processo é incorporado nos contos de


fadas que todos nós aprendemos quando crianças:
As lições são simples e nós as aprendemos bem.
Homens e mulheres são opostos absolutos e diferentes.
O príncipe heroico nunca pode ser confundido com a Cinderela ou a Branca de Neve ou
a Bela Adormecida. Ela nunca poderia fazer o que ele faz, quanto mais fazer melhor…
Onde ele está ereto, ela está inerte.
Onde ele está acordado, ela está dormindo. Onde ele está ativo, ela é passiva. Onde ela
está ereta ou acordada ou ativa, ela é má e deve ser destruída…
Existem duas definições de mulher.
Existe a boa mulher. Ela é uma vítima. Existe a mulher má. Ela deve ser destruída. A boa
mulher deve estar possuída. A mulher má deve ser morta ou punida. Ambas devem ser
anuladas…. Há a boa mulher. Ela é a vítima. A postura de vitimização, a passividade da
vítima exige abuso.
As mulheres procuram arduamente por passividade, porque as mulheres querem ser
boas. O abuso evocado por essa passividade convence as mulheres de que elas são más…
Mesmo uma mulher que se esforça conscientemente pela passividade às vezes faz
alguma coisa. Qualquer ato dela provoca abuso. O abuso provocado por essa atividade a
convence de que ela é má…
A moral da história deveria, alguém poderia pensar, impedir um final feliz. Isso não. A
moral da história é o final feliz. Diz-nos que a felicidade de uma mulher é ser passiva,
vitimizada, destruída ou adormecida. Diz-nos que a felicidade é para a mulher que é
boa — inerte, passiva, vitimizada — e que uma boa mulher é uma mulher feliz. Diz-nos
que o final feliz é quando nós somos terminadas, quando vivemos sem as nossas vidas
ou de nenhuma forma​[4]​.

Cada órgão dessa cultura supremacista masculina incorpora o complexo e odioso


sistema de recompensas e punições que ensinará a mulher seu lugar apropriado, sua
esfera permissível. Família, escola, igreja; livros, filmes, televisão; jogos, músicas,
brinquedos — todos ensinam uma garota a se submeter e se conformar muito antes
de se tornar uma mulher.
O fato é que uma garota é forçada, através de um efetivo e difundido sistema de
recompensas e punições, a desenvolver precisamente a falta de qualidades que a
certifiquem como mulher. Ao desenvolver essa falta de qualidades, ela é forçada a
aprender a se punir por qualquer violação das regras de comportamento que se
aplicam à sua classe de gênero. Os argumentos dela com as próprias definições de
mulheridade são internalizados de modo que, no final, ela argumenta contra si
mesma — contra a validade de qualquer impulso para ação ou afirmação; contra a
validade de qualquer pretensão de autorespeito e dignidade; contra a validade de
qualquer ambição de realização ou excelência fora de sua esfera permitida. Ela se
policia e se castiga; mas se esse sistema interno de valores falhar por algum motivo,
sempre haverá um psiquiatra, um professor, um ministro, um amante, um pai ou um
filho para forçá-la a voltar ao rebanho feminino.

Agora, todos vocês sabem que outras mulheres também atuam como agentes dessa
imensa repressão. É o primeiro dever das mães sob o patriarcado cultivar filhos
heroicos e fazer com que suas filhas estejam dispostas a se acomodar ao que foi
descrito com precisão como uma “meia vida”. Todas as mulheres devem julgar
qualquer par que se desvie da norma aceita de feminilidade, e a maioria age assim. O
que é notável não é o que a maioria faz, mas que algumas não agem assim.

A posição da mãe, em particular, em uma sociedade supremacista masculina, é


absolutamente insustentável. Freud, em mais uma percepção surpreendente,
afirmou: “Uma mãe só é trazida satisfação ilimitada por sua relação com um filho;
isso é o mais perfeito, o mais livre da ambivalência de todas as relações humanas”​[5]​.
O fato é que é mais fácil para uma mulher criar um filho do que uma filha. Primeiro,
ela é recompensada por ter um filho — esse é o ápice do possível sucesso para ela
em sua vida, visto pela cultura masculina. Poderíamos dizer que, ao dar à luz um
filho, ela teve um falo dentro de seu espaço vazio durante nove meses, e isso lhe
garante uma aprovação que ela não poderia ganhar de outra maneira. Espera-se,
então, que ela invista o resto de sua vida mantendo, alimentando, nutrindo e
consagrando aquele filho. Mas o fato é que esse filho tem um direito ao nascera
identidade a qual é negada a ela. Ele tem o direito de incorporar qualidades reais,
desenvolver talentos, agir, tornar-se — tornar-se quem ou o que ela não poderia se
tornar. É impossível imaginar que essa relação não esteja saturada com ambivalência
para a mãe, com ambivalência e com amargura. Essa ambivalência, essa amargura, é
intrínseca ao relacionamento mãe-filho, porque o filho inevitavelmente trai a mãe ao
se tornar um homem — isto é, ao aceitar seu direito de nascimento ao poder sobre
ela e contra ela e sua espécie​[6]​. Mas, para uma mãe, o projeto de criar um menino é
o projeto mais gratificante que ela pode esperar. Ela pode vê-lo, quando criança,
jogar os jogos que ela não podia jogar; ela pode investir nele suas ideias, aspirações,
ambições e valores — ou o que quer que tenha restado deles; ela pode assistir seu
filho, que veio de sua carne e cuja vida foi sustentada por seu trabalho e devoção,
incorporá-la no mundo.

Então, embora o projeto de criar um menino seja repleto de ambivalência e conduza


inevitavelmente à amargura, é o único projeto que permite que uma mulher
ser — ser através do filho, viver através do filho.

O projeto de criar uma menina, por outro lado, é torturante. A mãe deve ter sucesso
em ensinar a filha a não ser, ela deve forçar a filha a desenvolver a falta de qualidades
que a capacitem a ela passar como mulher. A mãe é a principal agente da cultura
masculina na família e ela deve obrigar a filha a concordar com as exigências dessa
cultura​[7]​. Ela deve fazer a sua filha o que foi feito a ela. O fato de todas sermos
treinadas para sermos mães desde a infância significa que somos todas treinadas
para dedicar nossas vidas aos homens, sejam eles nossos filhos ou não; que somos
todas treinadas para forçar outras mulheres a exemplificar a falta de qualidades que
caracterizam a construção cultural da feminilidade.
O medo cimenta esse sistema juntos. O medo é a cola que mantém cada parte em seu
lugar.

Nós aprendemos a ter medo da punição que é inevitável quando violamos o código da
feminilidade forçada. Nós aprendemos que certos medos são em si mesmos
femininos — por exemplo, as meninas devem ter medo de insetos e ratos. Quando
crianças, somos recompensadas por aprender esses medos. As meninas são
ensinadas a ter medo de todas as atividades que são expressamente designadas como
de terreno masculino — correr, escalar, jogar bola; matemática e ciência; compor
música, ganhar dinheiro, demonstrar liderança. Essa lista poderia
continuar — porque o fato é que as meninas são ensinadas a ter medo de tudo,
exceto do trabalho doméstico e da criação de filhos. Até nos tornarmos mulheres, o
medo é tão familiar como o ar. É o nosso elemento. Nós vivemos nele, o inalamos, o
exalamos e, na maior parte do tempo, nem o percebemos. Em vez de “receio”,
dizemos “não quero” ou “não sei como” ou “não posso”.

O medo, então, é uma resposta aprendida. Não é um instinto humano que se


manifesta de forma diferente nas mulheres e nos homens. Toda a questão do instinto
versus resposta aprendida em seres humanos é uma questão capciosa. Como Evelyn
Reed diz em seu livro, Woman’s Evolution:

A essência da socialização do animal é quebrar o ditame absoluto da natureza e


substituir os instintos puramente animais por respostas condicionadas e
comportamento aprendido. Os humanos hoje perderam seus instintos animais originais
a tal ponto que a maioria desapareceu. Uma criança, por exemplo, deve aprender os
perigos do fogo, algo que os animais fogem instintivamente​[8]​.

Nós somos separadas de nossos instintos, quaisquer que sejam, por milhares de anos
de cultura patriarcal. O que nós sabemos e o que nós fazemos é o que nos foi
ensinado. As mulheres aprenderam o medo como uma função da feminilidade, assim
como os homens aprenderam coragem como uma função da masculinidade.

O que é medo, então? Quais são suas características? O que têm no medo que é tão
eficaz em obrigar as mulheres a serem bons soldados ao lado do inimigo?

O medo, como as mulheres experimentam, tem três características principais: nos


isola; é confuso; e é debilitante.

Quando uma mulher viola uma regra que define seu comportamento adequado como
uma mulher, ela é escolhida pelos homens, seus agentes e sua cultura como
“encrenqueira”. O isolamento da rebelde é real, na medida em que é evitada,
ignorada, castigada ou denunciada. A aceitação de volta à comunidade de homens,
que é a única comunidade viável e sancionada, depende de sua renúncia e repúdio ao
seu comportamento desviante.

Toda garota que está crescendo experimenta essa forma e esse fato de isolamento.
Ela descobre que é uma consequência inevitável de qualquer rebelião, por menor que
seja. No momento em que ela é uma mulher, o medo e o isolamento estão
emaranhados em um nó interno resistente, de modo que ela não pode experimentar
um sem o outro. O terror que atormenta as mulheres até mesmo no pensamento de
estar “sozinha” na vida é diretamente derivado desse condicionamento. Se existe
uma forma de “perdição feminina” sob o patriarcado, certamente é esse pavor do
isolamento — um pavor que se desenvolve a partir dos fatos do caso.

A confusão também é parte integrante do medo. É confuso ser punida por ter
êxito — por escalar uma árvore ou por se destacar em matemática. É impossível
responder à pergunta, “o que fiz de errado?” como resultado da punição, que é
inevitável quando ela tem êxito, uma menina aprende a associar o medo com
confusão e confusão com o medo. No momento em que ela é mulher, o medo e a
confusão são desencadeados simultaneamente pelos mesmos estímulos e não podem
ser separados um do outro.

O medo, para as mulheres, é isolante e confuso. É também sistematicamente e


progressivamente debilitante. Cada ato fora da esfera permitida de uma mulher
provoca punição — e essa punição é tão inevitável quanto o anoitecer. Cada punição
inculca o medo. Como um rato, uma mulher tentará evitar os choques elétricos de
alta voltagem que parecem minar o labirinto. Ela também quer o lendário Grande
Queijo no final. Mas para ela, o labirinto nunca acaba.

A debilidade que é intrínseca ao medo, enquanto as mulheres experimentam é


progressiva. Aumenta não aritmeticamente à medida que envelhece, mas
geometricamente. A primeira vez que uma garota quebra uma regra de classe de
gênero e é punida, ela tem apenas as consequências reais de seu ato com que
contender. Ou seja, ela está isolada, confusa e com medo. Mas, na segunda vez, ela
deve contender contra o ato, as consequências e também com a lembrança de um ato
anterior e de suas consequências anteriores. Esse efeito recíproco da memória da
dor, a antecipação da dor e a realidade da dor em uma determinada circunstância
torna virtualmente impossível para uma mulher perceber as indignidades diárias às
quais ela é submetida, muito menos para se afirmar contra elas ou desenvolver e
defender valores que minam ou se opõem à supremacia masculina. Os efeitos desse
aspecto cumulativo, progressivo e debilitante do medo são mutilantes, e a cultura
masculina fornece apenas uma solução possível: submissão completa e abjeta.

Essa dinâmica do medo, como descrevi, é a fonte do que os homens chamam tão feliz
e alegremente de “masoquismo feminino”.
E, óbvio, quando a identidade de alguém é definida como falta de identidade; quando
a sobrevivência depende de aprender a destruir ou restringir todo impulso à auto
definição; quando alguém é consistentemente e exclusivamente recompensado por se
machucar ao se conformar com regras de comportamento humilhantes ou
degradantes; quando alguém é consistentemente e inevitavelmente punido por
realizar, ou ter sucesso, ou asseverar; quando alguém é agredido e abatido,
fisicamente e/ou emocionalmente, por qualquer ato ou pensamento de rebeldia, e
então aplaudido e aprovado por ceder, retratar-se, desculpar-se; então o masoquismo
de fato se torna a pedra angular da personalidade de uma pessoa. E, como você já
deve saber, é muito difícil para os masoquistas encontrarem o orgulho, a força, a
liberdade interior, a coragem de se organizar contra seus opressores.

A verdade é que esse masoquismo, que se torna o núcleo da personalidade feminina,


é o mecanismo que assegura que o sistema da supremacia masculina continuará a
operar como um todo, mesmo que partes do próprio sistema se rompam ou sejam
reformadas. Por exemplo, se o sistema de supremacia masculina for reformado, para
que a lei exija que não haja discriminação no emprego com base no gênero e que haja
remuneração igual para trabalho igual, o condicionamento masoquista das mulheres
nos fará continuar, apesar da mudança na lei, para replicar os padrões de
inferioridade feminina que nos consignam a empregos subalternos apropriados à
nossa classe de gênero. Essa dinâmica garante que nenhuma série de reformas
econômicas ou jurídicas acabará com a dominação masculina. O mecanismo interno
do masoquismo feminino deve ser erradicado do interior antes que as mulheres
saibam o que é ser livre.

(2)
Agora, o projeto feminista é acabar com a dominação masculina — para extinguí-lo
da face desta terra. Também queremos acabar com essas formas de injustiça social
que derivam do modelo patriarcal de dominação masculina — isto é, imperialismo,
colonialismo, racismo, guerra, pobreza, violência em todas as formas.

Para fazer isso, nós teremos que destruir a estrutura da cultura como a conhecemos,
sua arte, suas igrejas, suas leis; suas famílias nucleares baseadas em pai-justo e
estados-nação; todas as imagens, instituições, costumes e hábitos que definem as
mulheres como vítimas inúteis e invisíveis.

A fim de destruir a estrutura da cultura patriarcal, teremos que destruir as


identidades sexuais masculinas e femininas como as conhecemos — em outras
palavras, teremos que abandonar completamente o valor fálico e o masoquismo
feminino como identidades normativas, sancionadas, como modos de
comportamento erótico, como indicadores básicos de “masculino” e “feminino”.

Como estamos destruindo a estrutura da cultura, teremos que construir uma nova
cultura — não-hierárquica, não-sexista, não-coercitiva, não-exploratória — em
outras palavras, uma cultura que não é baseada em dominação e submissão de
qualquer forma.

Como nós estamos destruindo as identidades fálicas dos homens e as identidades


masoquistas das mulheres, teremos que criar, a partir de nossas próprias cinzas,
novas identidades eróticas. Essas novas identidades eróticas terão que repudiar em
seu núcleo o modelo sexual masculino: isto é, terão que repudiar as estruturas de
personalidade dominante-ativa (“masculina”) e submissa-passiva (“feminina”); terão
que repudiar a sexualidade genital como foco principal e valor da identidade erótica;
terão que repudiar e remover todas as formas de objetificação e alienação erótica que
são inerentes ao modelo sexual masculino​[9]​.
Como podemos nós, mulheres, que fomos ensinadas a ter medo de cada pequeno
barulho à noite, ousar imaginar que poderíamos destruir o mundo que os homens
defendem com seus exércitos e suas vidas? Como nós, mulheres, que não temos
memória vívida de nós mesmas como heróis, imaginamos que poderíamos ter
sucesso na construção de uma comunidade revolucionária? Onde podemos encontrar
a coragem revolucionária para superar nosso medo escravo?

Infelizmente, nós somos tão invisíveis para nós como somos para os homens.
Aprendemos a ver com os olhos deles — e eles estão quase cegos. Nossa primeira
tarefa, como feministas, é aprender a ver com nossos próprios olhos.

Se pudéssemos ver com nossos próprios olhos, eu acredito que veríamos que já
temos, em forma embrionária, as qualidades necessárias para derrubar o sistema
supremacista masculino que nos oprime e que ameaça destruir toda a vida neste
planeta. Veríamos que já temos, em forma embrionária, valores sobre os quais
construir um novo mundo. Veríamos que força e coragem feminina se desenvolveram
nas próprias circunstâncias de nossa opressão, fora de nossas vidas como criadores e
bens móveis domésticos. Até agora, usamos essas qualidades para suportar
condições devastadoras e terríveis. Agora devemos usar as qualidades de força e
coragem feminina que se desenvolveram em nós como mães e esposas para repudiar
as próprias condições escravas das quais são derivadas.

Se nós não fôssemos invisíveis para nós mesmos, veríamos que, desde o início dos
tempos, temos sido os exemplos de coragem física.

Agachadas em campos, isoladas nos quartos, nas favelas, nos barracos ou nos
hospitais, as mulheres suportam a provação de dar à luz. Esse ato físico de dar à luz
requer coragem física da mais alta ordem. É o ato prototípico da coragem física
autêntica. A vida de cada um está na linha. Um enfrenta a morte a cada vez. Se
suporta, se resiste ou é se consumida pela dor. Sobrevivência exige resistência, força,
concentração e força de vontade. Nenhum herói fálico, não importa o que ele faça
para si mesmo ou para outro para provar sua coragem, combina com a coragem
existencial e solitária da mulher que dá à luz. Não precisamos continuar a ter filhos
para reivindicar a dignidade de realizar nossa própria capacidade de coragem física.
Essa capacidade é nossa; pertence a nós e pertence a nós desde o começo dos tempos.
O que nós devemos fazer agora é recuperar essa capacidade — tirá-la do serviço dos
homens; torná-la visível para nós mesmas; e determinar como usá-la a serviço da
revolução feminista. Se não fôssemos invisíveis para nós mesmas, veríamos também
que sempre tivemos um compromisso resoluto e uma fé na vida humana que nos
tornaram heroicas em nossa nutrição e sustento de outras vidas além da nossa. Sob
todas as circunstâncias — na guerra, na doença, na fome, na seca, na pobreza, em
tempos de miséria e desespero incalculáveis — as mulheres fizeram o trabalho
necessário para a sobrevivência da espécie. Nós não apertamos um botão ou
organizamos uma unidade militar para fazer o trabalho de sustentar emocional e
fisicamente a vida. Nós fizemos isso um por um e um para um. Por milhares de anos,
na minha opinião, as mulheres têm sido os únicos exemplos de coragem moral e
espiritual — temos sustentado a vida, enquanto os homens a tomaram. Essa
capacidade de sustentar a vida pertence a nós. Devemos recuperá-la — tirá-lo do
serviço dos homens, para que nunca mais seja usada por eles em seus próprios
interesses criminosos.

Além disso, se nós não fôssemos invisíveis para nós mesmas, nós veríamos que a
maioria das mulheres pode suportar, e tem suportado por séculos, qualquer
angústia — física ou mental — pelo bem daqueles que amam. É hora de recuperar
esse tipo de coragem também e usá-lo para nós mesmas e uns aos outros.

Para nós, historicamente, a coragem sempre foi uma função do nosso


comprometimento resoluto com a vida. A coragem, como sabemos, se desenvolveu a
partir desse compromisso. Nós sempre enfrentamos a morte pelo bem da vida; e
mesmo na amargura de nossa escravidão doméstica, fomos sustentadas pelo
conhecimento de que estávamos sustentando a vida.

Nós enfrentamos, então, dois fatos da existência feminina sob o patriarcado: (1) que
nos ensinam o medo como uma função da feminilidade; e (2) que sob as condições
muito escravas que devemos repudiar, desenvolvemos um compromisso heroico para
sustentar e nutrir a vida.

Em nossas vidas, não seremos capazes de erradicar o primeiro fato da existência


feminina sob o patriarcado: nós continuaremos a ter medo das punições que são
inevitáveis quando desafiamos a supremacia masculina; vamos achar difícil erradicar
o masoquismo que está tão profundamente enraizado em nós; sofreremos
ambivalência e conflito, a maioria de nós, ao longo de nossas vidas, à medida que
avançamos nossa presença feminista revolucionária.

Mas, se nós formos resolutas, também aprofundaremos e expandiremos esse


compromisso heroico de sustentar e nutrir a vida. Vamos aprofundá-lo criando novas
formas visionárias de comunidade humana; vamos expandi-lo incluindo-nos
nele — aprendendo a valorizar e estimar umas as outras como irmãs. Nós
renunciaremos a todas as formas de controle masculino e dominação masculina; nós
destruiremos as instituições e valorações culturais que nos aprisionam na
invisibilidade e na vitimização; mas nós levaremos conosco, do nosso amargo, tão
amargo passado, nossa apaixonada identificação com o valor de outras vidas
humanas.

Quero terminar dizendo que nós nunca devemos trair o compromisso heroico com o
valor da vida humana, que é a fonte de nossa coragem como mulheres. Se nós
trairmos esse compromisso, nós nos encontraremos, com as mãos pingando sangue,
iguais aos heróis dos homens, por fim.
Notas de rodapé:

[1]​ Simone de Beauvoir, The Second Sex (New York: Bantam Books, 1970), pp. xv-xvi.

[2] Sigmund Freud, “Some Psychical Consequences of the Anatomical Distinction Between the Sexes”,
Women and Analysis, ed. Jean Strouse (New York: Grossman Publishers, 1974), pp. 20–21.

[3] Erik Erikson, “Womanhood and Inner Space,” Identity, Youth and Crisis (New York: W. W.
Norton, 1968), pp. 277–278.

[4]​ Andrea Dworkin, Woman Hating (New York: E. P. Dutton & Co., Inc., 1974), pp. 47–49.

[5] Sigmund Freud, “Femininity,” Women and Analysis, ed. Jean Strouse (New York: Grossman
Publishers, 1974), p. 91.

[6] See Shulamith Firestone, The Dialectic of Sex: The Case for Feminist Revolution (New York:
Bantam Books, 1972), pp. 41–71.

[7]​ Veja Dworkin, op. cit., pp. 95–116.

[8]​ Evelyn Reed, Woman’s Evolution (New York: Pathfinder Press, Inc., 1975), p. 48.

[9]​ Dworkin, op. cit., pp. 153–154, 174–193.


Capítulo 6

Redefinindo a não-violência

Discurso realizado em Boston College, em uma conferência sobre Alternativas para o


Sistema Militar-Corporativo, em um painel sobre “Defendendo Valores sem
Violência”, 5 de abril de 1975.

… e finalmente eu torço meu coração de novo, de modo que o mal está do lado de fora e
o bem está do lado de dentro e continuo tentando encontrar uma maneira de me tornar
o que eu gostaria de ser, e poderia ser, se… não houvesse outras pessoas vivendo no
mundo.
Anne Frank, The Diary of a Young Girl,

1 de agosto de 1944, três dias antes de sua apreensão.

(1)
O feminismo, de acordo com o The Random House Dictionary, é definido como “a
doutrina que defende os direitos sociais e políticos das mulheres como iguais aos dos
homens”. Esse é um princípio do feminismo e eu peço que não zombe dele, não o
ridicularize como reformista, não descartá-lo com o que você poderia considerar
como pureza radical de esquerda.

Alguns de vocês lutaram de todo coração e alma pelos direitos civis dos negros. Você
entendeu que sentar em um balcão de almoço sujo e comer um hambúrguer
estragado não tinha nenhuma validade revolucionária — e ainda assim você
também entendia a indignidade, a humilhação indigna de não ser capaz de fazê-lo. E
assim você e outros como você, colocaram suas vidas em risco para que os negros não
fossem forçados a sofrer indignidades sistemáticas diárias de exclusão de instituições
que, na verdade, você não endossou. Em todos os anos do movimento pelos direitos
civis, eu nunca ouvi um homem branco radical dizer a um homem negro: “Por que
você quer comer lá, é muito melhor comer grits​[1] em casa.” Entendia-se que o
racismo era uma patologia putrefata e que essa patologia tinha que ser desafiada
onde quer que seus sintomas pavorosos aparecessem: para verificar o crescimento da
própria patologia; diminuir seus efeitos debilitantes em suas vítimas; tentar salvar
vidas negras, uma a uma, se necessário, da devastação de um sistema racista que
condenava essas vidas a uma amarga miséria.

E, no entanto, quando se trata de suas próprias vidas, você não faz a mesma
afirmação. O sexismo, que é adequadamente definido como a servidão sistemática
cultural, política, social, sexual, psicológica e econômica das mulheres para os
homens e para as instituições patriarcais, também é uma patologia putrefata. Ela se
espalha em todas as casas, em todas as ruas, em todos os tribunais, em todas as
situações de trabalho, em todos os programas de televisão, em todos os filmes.
Apodrece praticamente todas as transações entre um homem e uma mulher. Ela se
manifesta em cada encontro entre uma mulher e as instituições dessa sociedade
dominada por homens. O sexismo putrefaz quando nós somos estupradas ou quando
nós nos casamos. Putrefaz quando nos é negado o controle absoluto sobre nossos
próprios corpos — sempre que o estado ou qualquer homem decidir em nosso lugar
os usos aos quais nossos corpos serão colocados. O sexismo se manifesta quando
somos ensinadas a nos submeter aos homens, sexualmente e/ou intelectualmente.
Putrefaz quando nós somos ensinadas e forçadas a servir os homens em suas
cozinhas, em suas camas, como domésticas, como trabalhadores de merda em suas
múltiplas causas, como discípulas devotadas de seu trabalho, seja qual for esse
trabalho. Putrefaz quando nós somos ensinadas e forçadas a alimentá-los como
esposas, mães, amantes ou filhas. O sexismo putrefaz quando nós somos forçadas a
estudar a cultura masculina, mas não nos é permitido reconhecer ou ter orgulho de
nossa própria cultura. Putrefaz quando nós somos ensinadas a venerar e respeitar as
vozes masculinas, de modo que nós não temos vozes próprias. O sexismo putrefaz
quando, desde a infância, nós somos forçadas a restringir todo impulso à aventura,
toda ambição em direção a conquistas ou grandezas, a cada ato ou ideia arrojada ou
original. O sexismo putrefaz dia e noite, dia após dia, noite após noite.

O sexismo é o fundamento sobre o qual toda tirania é construída. Toda forma social
de hierarquia e abuso é modelada na dominação masculina sobre a mulher.

Eu nunca ouvi um homem branco ridicularizar ou rebaixar radicalmente um homem


negro por exigir que a Lei dos Direitos Civis seja aprovada ou por reconhecer os
valores racistas por trás de qualquer recusa em votar naquela lei. No entanto, muitas
mulheres de esquerda me disseram: “Eu não consigo entender a política da Emenda
dos Direitos Iguais”. Discussões posteriores sempre revelam que essas mulheres
foram criticadas injustamente por homens de esquerda por estarem aflitas porque a
Emenda sobre Direitos Iguais pode não ser aprovada neste ano ou no futuro
próximo. Deixe-me falar sobre “a política da Emenda dos Direitos Iguais” — uma
recusa em passar a lei é uma recusa em reconhecer as mulheres como
suficientemente sadias na mente e no corpo para exercer os direitos de cidadania;
uma recusa em passar a lei condena as mulheres a vidas como insignificante perante
a lei; a recusa em passar a lei é uma afirmação da visão de que as mulheres são
inferiores aos homens em virtude da biologia, como condição de nascimento. Entre
as pessoas políticas, é vergonhoso ser racista ou antissemita. Nenhuma vergonha é
atribuída a desconsideração pelos direitos civis das mulheres.

A meu ver, qualquer homem que realmente reconheça seu direito à dignidade e à
liberdade reconhecerá que os terríveis sintomas do sexismo devem ser questionados
onde quer que apareçam: para conferir o crescimento da própria patologia; diminuir
seus efeitos debilitantes em suas vítimas; tentar salvar a vida das mulheres, uma a
uma, se necessário, da devastação de um sistema sexista que condena essas vidas a
uma amarga miséria. Qualquer homem que seja seu camarada saberá, em seu íntimo,
a indignidade, a indignidade humilhante, a exclusão sistemática dos direitos e
responsabilidades da cidadania. Qualquer homem que seja seu verdadeiro
companheiro estará comprometido em colocar seu corpo, sua vida, na linha, para
que você não seja mais submetida a essa indignidade. Peço-lhe que olhe para os seus
companheiros da esquerda e determine se eles assumiram esse compromisso com
você. Se eles não o fizeram, então eles não levam a vida de vocês a sério e, enquanto,
você trabalha para e com eles, você também não leva sua vida a sério.

(2)
O feminismo é uma exploração que acabou de começar. As mulheres aprenderam
que, para nós, a Terra é plana e, se nos aventurarmos, cairemos da borda. Algumas
de nós já se aventuraram — e até agora não caímos. É minha fé, minha fé feminista,
que nós não vamos cair.

Nossa exploração tem três partes. Primeiro, precisamos descobrir nosso passado. O
caminho de volta é obscuro, difícil de encontrar. Procuramos sinais que nos dizem:
as mulheres viveram aqui. E então tentamos ver como era a vida dessas mulheres. É
uma exploração amarga. Descobrimos que durante séculos, durante todo o tempo
registrado, as mulheres foram violadas, exploradas, humilhadas, sistematicamente e
inconscientemente. Descobrimos que milhões e milhões de mulheres morreram
como vítimas do ginocídio organizado. Nós encontramos atrocidades após
atrocidades, executadas em escala tão vasta que outras atrocidades empalidecem em
comparação. Nós descobrimos que o ginocídio assume muitas formas — massacre,
incapacitação, mutilação, escravidão, estupro. Não é fácil para nós suportar o que nós
vemos.

Segundo, nós devemos examinar o presente: como a sociedade é organizada


atualmente; como as mulheres vivem agora; como funciona — esse sistema global
de opressão baseado no gênero que leva tantas vidas invisíveis; quais são as fontes da
dominação masculina? Como o domínio masculino se perpetua na violência
organizada e nas instituições totalitárias? Isso também é uma exploração amarga.
Nós vemos que em todo o mundo, nossas pessoas, mulheres, estão acorrentadas.
Essas correntes são psicológicas, sociais, sexuais, legais, econômicas. Essas correntes
são pesadas. Essas correntes são bloqueadas por uma violência sistemática
perpetrada contra nós pela classe de gênero dos homens. Não é fácil para nós
suportar o que vemos. Não é fácil para nós abandonarmos essas correntes, para
encontrarmos recursos para retirarmos nosso consentimento da opressão. Não é fácil
para nós determinarmos quais formas nossa resistência deve tomar.

Terceiro, nós devemos imaginar um futuro em que nós seríamos livres. Só a


imaginação deste futuro pode nos energizar para que não permaneçamos vítimas do
nosso passado e do nosso presente. Somente a imaginação desse futuro pode nos dar
força para repudiar nosso comportamento de escravo — para identificá-lo sempre
que o manifestarmos e para extirpá-lo de nossas vidas. Essa exploração não é
amarga, mas é insanamente difícil — porque cada vez que uma mulher renuncia ao
comportamento de escravo, ela encontra toda a força e crueldade de seu opressor de
frente.

Mulheres politicamente comprometidas muitas vezes fazem a pergunta: “Como nós


podemos, como mulheres, apoiar as lutas de outras pessoas?” Essa questão como
base para análise e ação política replica a própria forma de nossa opressão — nos
mantém uma classe de gênero de companheiros de ajuda. Se não fôssemos
mulheres — se fôssemos homens trabalhadores, homens negros ou quaisquer
outros homens — seria suficiente para nós delinearmos os fatos de nossa própria
opressão; só isso daria credibilidade à nossa luta em olhos masculinos radicais.

Mas nós somos mulheres e o primeiro fato de nossa opressão é que somos invisíveis
para nossos opressores. O segundo fato de nossa opressão é que fomos
treinadas — durante séculos e desde a infância — para ver através de seus olhos, e
por isso nós somos invisíveis para nós mesmas. O terceiro fato de nossa opressão é
que nossos opressores não são apenas homens chefes de Estado, homens capitalistas,
homens militares — mas também nossos pais, filhos, maridos, irmãos e amantes.
Nenhum outro povo é tão completamente capturado, tão inteiramente conquistado,
tão destituído de qualquer lembrança de liberdade, tão terrivelmente privado de
identidade e cultura, tão absolutamente caluniado como um grupo, tão rebaixado e
humilhado em função da vida cotidiana. E, no entanto, continuamos cegas, e
perguntamos repetidas vezes: “O que podemos fazer por eles?” É hora de perguntar:
“O que eles devem fazer agora por nós?” Essa pergunta deve ser a primeira pergunta
em qualquer diálogo político com os homens.

(3)
As mulheres, por todos esses séculos patriarcais, têm sido inflexíveis na defesa de
outras vidas além da nossa. Nós morremos no parto para que outros possam viver.
Nós sustentamos a vida de crianças, maridos, pais e irmãos na guerra, na fome, em
todo tipo de devastação. Nós fizemos isso na amargura da servidão global. O que
quer que seja conhecido sob o patriarcado sobre compromisso com a vida, nós
sabemos disso. O que for preciso para assumir esse compromisso sob o patriarcado,
nós o temos.

Chegou a hora de repudiar o patriarcado, valorizando nossa vida de maneira tão


completa, séria e resoluta quanto valorizamos outras vidas. Agora é hora de nos
comprometermos ao cuidado emocional e físico e a proteção de uma a outra.

Nós precisamos estabelecer valores que se originam na irmandade entre mulheres.


Devemos estabelecer valores que repudiem a supremacia fálica, que repudia a
agressão fálica, que repudia todas as relações e instituições baseadas na dominação
masculina e na submissão feminina.

Não será fácil para nós estabelecermos valores que se originam na irmandade entre
mulheres. Durante séculos, nós tivemos valores masculinos batendo em nossas
gargantas e batendo em nossas bucetas. Nós somos vítimas de uma violência tão
difundida, tão constante, tão implacável e interminável, que não podemos apontar
para ela e dizer: “Lá começa e aí termina.” Todos os valores que podemos defender
como uma consequência de nossa lealdade aos homens e suas ideias estão saturadas
com o fato ou a memória dessa violência. Nós sabemos mais sobre violência do que
qualquer outra pessoa na face da terra. Absorvemos muita quantidade de
violência — como mulheres e judeus, negros, vietnamitas, nativos-americanos,
etc. — que nossos corpos e almas são queimados com os efeitos disso.

Eu sugiro que qualquer compromisso com a não-violência que é real, que é autêntico,
deve começar no reconhecimento das formas e graus de violência perpetrados contra
as mulheres pela classe de gênero dos homens. Eu sugiro que qualquer análise de
violência, ou qualquer compromisso de agir contra ela, que não comece por aí, é
vazia, sem sentido — uma farsa que terá, como consequência direta, a perpetuação
de sua servidão. Eu sugiro a você que qualquer apóstolo homem da chamada
não-violência que não esteja comprometido, corpo e alma, para acabar com a
violência contra você não é digno de confiança. Ele não é seu companheiro, não é seu
irmão, não é seu amigo. Ele é alguém para quem sua vida é invisível.

Como mulheres, a não-violência deve começar por nós na recusa a ser violada, na
recusa de sermos vitimizadas. Precisamos encontrar alternativas para a submissão,
porque nossa submissão — estupro, agressão, servidão doméstica, abuso e
vitimização de todo tipo — perpetua a violência.

A recusa em ser uma vítima não se origina em nenhum ato de resistência como
derivado do homem como assassinato. A recusa de que falo é uma recusa
revolucionária de ser vítima, a qualquer hora, em qualquer lugar, para amigo ou
inimigo. Essa recusa requer o desaprendimento consciente de todas as formas de
submissão masoquista que nos são ensinadas como o próprio conteúdo da
mulheridade. A agressão masculina alimenta-se do masoquismo feminino, quando os
abutres se alimentam de carniça. Nosso projeto não-violento é encontrar as formas
sociais, sexuais, políticas e culturais que repudiam nossos comportamentos
submissos programados, de modo que a agressão masculina não encontre carne
morta para se banquetear.

Quando eu digo que devemos estabelecer valores que se originam na irmandade


entre mulheres, quero dizer que não devemos aceitar, nem por um momento, noções
masculinas do que é a não-violência. Essas noções nunca condenaram a violência
sistemática contra nós. Os homens que possuem essas noções nunca renunciaram
aos comportamentos masculinos, privilégios, valores e conceitos que são, em si
mesmos, atos de violência contra nós.

Nós diminuiremos a violência se recusando a ser violadas.

Repudiaremos todo o sistema patriarcal, com suas instituições sadomasoquistas,


com seus cenários sociais de dominação e submissão, todos baseados no modelo
homem-acima de-mulher, quando nos recusamos conscienciosa, rigorosa e
absolutamente a ser o solo no qual a agressão masculina, orgulho e arrogância
podem crescer como ervas daninhas selvagens.

[1]​ um prato de grãos de milho moídos fervidos com água ou leite.


Capítulo 7

Orgulho Lésbico

Discurso feito em um comício para o Lesbian Pride Week em Central Park, Nova
York, 28 de junho de 1975.

Para mim, ser lésbica significa três coisas –

Primeiro, significa que eu amo, prezo e respeito as mulheres em minha mente, em


meu coração e em minha alma. Esse amor das mulheres é o terreno em que minha
vida se enraizou. É o terreno da nossa vida em comum juntos. Minha vida cresce fora
deste terreno. Em qualquer outro terreno, eu morreria. De qualquer maneira que eu
sou forte, eu sou forte por causa do poder e paixão deste amor carinhoso.

Segundo, ser lésbica significa para mim que existe uma paixão erótica e intimidade
que vem do toque e do gosto, uma ternura selvagem e salgada, um suor doce e
úmido, nossos seios, nossas bocas, nossas bucetas, nossos cabelos entrelaçados,
nossas mãos. Estou falando aqui de uma paixão sensual tão profunda e misteriosa
como o mar, tão forte e imóvel quanto a montanha, tão insistente e mutável quanto o
vento.

Terceiro, ser lésbica significa para mim a memória da mãe, lembrada em meu
próprio corpo, procurada, desejada, encontrada e verdadeiramente honrada.
Significa a lembrança do útero, quando éramos um com nossas mães, até o
nascimento, quando nos separamos. Significa um retorno àquele lugar dentro,
dentro dela, dentro de nós, aos tecidos e membranas, à umidade e ao sangue.

Há um orgulho no amor carinhoso que é nosso terreno comum, e no amor sensual, e


na memória da mãe — e esse orgulho brilha tão brilhante quanto o sol de verão ao
meio-dia. Esse orgulho não pode ser degradado. Aqueles que a degradam estão na
posição de jogar punhados de lama ao sol. Mesmo assim ainda brilha, e aqueles que
jogam lama apenas sujam as próprias mãos.

Às vezes o sol é coberto por densas camadas de nuvens escuras. Uma pessoa que olha
para cima jura que não há sol. Mas ainda assim o sol brilha. À noite, quando não há
luz, o sol ainda brilha. Durante a chuva, granizo, furacão ou tornado, ainda assim o
sol brilha.

O sol se pergunta: “Eu sou bom? Eu valho a pena? Há o suficiente de mim?” Não, o
sol queima e brilha. O sol se pergunta: “O que a lua pensa de mim? Como Marte se
sente em relação a mim hoje?” Não, o sol queima e brilha. O sol se pergunta: “Eu sou
tão grande quanto os outros sóis em outras galáxias?” Não, o sol queima e brilha.

Neste país nos próximos anos, penso que haverá uma tempestade terrível. Eu acho
que os céus vão escurecer além de todo reconhecimento. Aqueles que andam pelas
ruas os caminharão na escuridão. Aqueles que estão em prisões e instituições
mentais não verão o céu, apenas a escuridão das janelas gradeadas. Aqueles que
estão com fome e em desespero podem não ver nada. Eles verão a escuridão no chão
diante de seus pés. Aqueles que são estuprados verão a escuridão enquanto olham
para o rosto do estuprador. Aqueles que são agredidos e brutalizados por loucos
olharão atentamente para a escuridão para discernir quem está se movendo em
direção a eles a cada momento. Será difícil lembrar, como a tempestade está furiosa,
que ainda, embora não possamos vê-lo, o sol brilha. Será difícil lembrar que, mesmo
que não possamos ver, o sol queima. Nós vamos tentar vê-lo e vamos tentar senti-lo,
e esqueceremos que nos aquece ainda, que se não estivesse ali, ardendo, brilhando,
esta terra seria um lugar frio, desolado e árido.
Enquanto tivermos vida e fôlego, não importa quão escura a terra ao nosso redor,
aquele sol ainda queima, ainda brilha. Não há hoje sem isso. Não há amanhã sem
isso. Não houve ontem sem ele. Essa luz está dentro de nós — constante, quente e
curativa. Lembre-se, irmãs, nos tempos sombrios que estão por vir.
Capítulo 8

A escravidão das mulheres na Amerika

Discurso feito para a Organização Nacional para Mulheres, em Washington, D.C., em


23 de agosto de 1975, para comemorar o quinquagésimo quinto aniversário do
sufrágio feminino; A Igreja Comunitária de Boston, 9 de novembro de 1975.
(Em memória de Sarah Grimke, 1792–1873 e Andelina Grimke, 1805–1879)

(1)
Em sua introdução para Felix Holt (1866), George Eliot escreveu:

… há muita dor que é bastante silenciosa; e as vibrações que fazem agonias humanas são
muitas vezes um mero sussurro no rugido da existência apressada. Há olhares de ódio
que esfaqueiam e não geram grito de assassinato; roubos que deixam o homem ou a
mulher para sempre mendigando por paz e alegria, mas mantidos em segredo pelo
sofredor — sem som, exceto os gemidos baixos da noite, vistos em nenhum outro
escrito, exceto aquele feito no rosto pelos meses lentos de angústia suprimida e lágrimas
de manhã cedo. Muitas tristezas herdadas que marcaram uma vida não foram ouvidas
por nenhum ouvido humano​[1]​.

Eu quero falar com vocês esta noite sobre as “tristezas herdadas” das mulheres neste
solo Amerikano, tristezas que marcaram milhões e milhões de vidas humanas,
tristezas que “não foram ouvidas em ouvidos humanos”, ou tristezas que foram
inaladas e então esquecidas. A história desta nação é de sangue derramado. Tudo o
que cresceu aqui cresceu em campos irrigados pelo sangue de povos inteiros.

Esta é uma nação construída sobre a carniça humana das nações indígenas. Esta é
uma nação construída sobre o trabalho escravo, o abate e a tristeza. Esta é uma nação
racista, uma nação sexista, uma nação assassina. Esta é uma nação patologicamente
tomada pela vontade de dominação.

Há cinquenta e cinco anos, nós, mulheres, nos tornamos cidadãos desta nação.
Depois de setenta anos de luta feroz pelo sufrágio, nossos amáveis senhores
decidiram nos dar o voto. Desde aquela época, nós temos sido, pelo menos de um
modo cerimonial, participantes no sangue-derramado de nosso governo; nós fomos
implicadas formal e oficialmente em seus crimes. A esperança dos nossos
antepassados era a seguinte: quando as mulheres tivessem o voto, usaríamo-nos para
impedir os crimes de homens contra homens e de homens contra mulheres. Nossas
antepassadas acreditavam que haviam nos dado a ferramenta que nos permitiria
transformar uma nação corrupta em uma nação de justiça. É uma coisa amarga dizer
que elas estavam iludidas. É uma coisa amarga dizer que o voto se tornou a lápide
sobre suas sepulturas obscuras.

Nós mulheres não temos muitas vitórias para celebrar. Em todo lugar, nossa gente
está acorrentada — designada biologicamente inferior a homens; nossos corpos
controlados por homens e por leis feita por homens; vítimas de crimes violentos e
selvagens; submetidas a leis, costumes e hábitos a servidão sexual e doméstica;
exploradas continuamente em qualquer trabalho pago; roubadas de identidade e
ambição como uma condição de nascimento. Nós queremos reinvidicar o voto como
uma vitória. Nós queremos celebrar. Nós queremos festejar. Mas o fato é que o voto
foi apenas uma mudança estética de nossa condição. O sufrágio foi para nós a ilusão
da participação, sem a realidade da autodeterminação. Nós ainda somos um povo
colonizado, submetido a vontade dos homens. E, de fato, por trás do voto há a
história do movimento que traiu a si mesmo ao abandonar seus pensamentos
visionários e comprometeu seus princípios mais profundos. 26 de agosto de 1920
significa, amargamente, a morte do primeiro movimento feminista na Amérika.
Como nós celebramos essa morte? Como nós festejamos a morte do movimento que
partiu para salvar nossas vidas da destruição e da ruína da dominação patriarcal?
Que vitória há nas cinzas do movimento feminista?

O significado do voto é o seguinte: que é melhor termos nosso passado invisível, para
que possamos entender como e por que acabou tão rapidamente; que é melhor
ressuscitar nossos mortos, estudar como nossos antepassados viveram e por que
morreram; que é melhor encontrarmos uma cura para qualquer doença que os tenha
eliminado, para que não nos dizimar.

Muitas mulheres, eu acho, resistem ao feminismo porque é uma agonia ter plena
consciência da brutal misoginia que permeia a cultura, a sociedade e todos os
relacionamentos pessoais. É como se nossa opressão fosse lançada em lava há
eternidades e agora é granito, e cada mulher individualmente é enterrada dentro da
pedra. As mulheres tentam sobreviver dentro da pedra, enterradas nela. As mulheres
dizem ‘eu gosto dessa pedra, seu peso não é muito pesado para mim’. As mulheres
defendem a pedra dizendo que ela as protege da chuva, do vento e do fogo. As
mulheres dizem ‘tudo que eu já conheci é essa pedra, o que há sem ela?’

Para algumas mulheres, ser enterrada na pedra é insuportável. Elas querem se mover
livremente. Elas exercem toda a sua força para agarrar a pedra que as envolve. Elas
arrancam as unhas, ferem os punhos, rasgam a pele das mãos até ficarem cruas e
sangrando. Elas machucam seus lábios abertos sobre a rocha e quebram seus dentes
e engasgam com o granito quando ele se desintegra em suas bocas. Muitas mulheres
morrem nesta batalha desesperada e solitária contra a pedra.

Mas e se o impulso à liberdade nascesse em todas as mulheres enterradas na pedra?


E se o material da rocha em si tivesse ficado tão saturado com o cheiro fedorento dos
corpos podres das mulheres, o fedor acumulado de milhares de anos de decadência e
morte, que nenhuma mulher pudesse conter sua repulsa? O que aquelas mulheres
fariam se, finalmente, elas quisessem ser livres?

Eu acho que elas estudariam a pedra. Eu acho que elas usariam toda faculdade
mental e física disponível para analisar a pedra, sua estrutura, suas qualidades, sua
natureza, sua composição química, sua densidade, as leis físicas que determinam
suas propriedades. Elas tentariam descobrir onde ela estava erodida, quais
substâncias poderiam se decompor, que tipo de pressão era necessária para
destruí-la.

Esta investigação exigiria rigor absoluto e honestidade. Qualquer mentira que elas
contassem sobre a natureza da pedra impediria sua libertação. Qualquer mentira que
dissessem a si mesmas sobre sua própria condição dentro da pedra perpetuaria a
própria situação que se tornara intolerável para elas.

Eu acho que não queremos mais ser enterradas dentro da pedra. Acho que o fedor de
cadáveres decaídos finalmente se tornou tão vil para nós que estamos prontas para
encarar a verdade — sobre a pedra e sobre nós mesmos dentro dela.

(2)
A escravidão das mulheres tem origem há milhares de anos, numa pré-história da
civilização que permanece inacessível para nós. Como as mulheres vieram a ser
escravas, possuídas por homens, nós não sabemos. Nós sabemos que a escravidão de
mulheres para homens é a mais antiga forma conhecida de escravidão na história do
mundo.

Os primeiros escravos trazidos para este país pelos imperialistas anglo-saxões eram
mulheres — mulheres brancas. Sua escravidão foi santificada pelo direito civil e
religioso, materializada pelo costume e pela tradição e reforçada pelo sadismo
sistemático dos homens como uma classe proprietária de escravos.
Os direitos das mulheres sob o direito inglês durante os séculos XVII e XVIII são
descritos no parágrafo seguinte:

Nesta consolidação, que chamamos de casamento, temos um bloqueio. É verdade que


homem e esposa são uma pessoa; mas entenda de que maneira. Quando uma pequena
brooke ​[2]​ou pequeno Thames incorpora… o Thames, o pobre rapaz afrouxa o nome
dela; é transportado e recarregado com o novo associado; não tem influência; não possui
nada… Uma mulher, assim que é casada, é chamada de covert [coberta]; em latim nupta,
isto é, “coberta por um véu”; por assim dizer, nublado e ofuscado; ela perdeu seu fluxo …
Seu novo eu é seu superior; seu companheiro, seu mestre… Eva, porque ajudou a seduzir
o marido, infligiu-lhe uma pena especial. Veja aqui o motivo… que as mulheres não têm
voz no Parlamento. Elas não fazem leis, não consentem em nada, não anulam nada.
Todos elas são entendidas como casadas, ou a ponto de serem casadas, e seus desejos
são para seus maridos. As leis comuns aqui são dadas com divindade​[3]​.

Lei inglesa obtida nas colônias. Não havia mundo novo aqui para as mulheres.

As mulheres eram vendidas para o casamento nas colônias, primeiro pelo preço da
passagem da Inglaterra; depois, quando os homens começaram a acumular riquezas,
por quantias maiores, pagaram aos comerciantes que vendiam mulheres como se
fossem batatas.

As mulheres foram importadas para as colônias para reproduzir. Assim como um


homem comprou terras para poder cultivar alimentos, comprou uma esposa para
poder gerar filhos.

Um homem era dono de sua esposa e tudo o que ela produzia. Sua colheita veio de
seu ventre e essa colheita foi colhida ano após ano até a sua morte.
De acordo com a lei, um homem até possuía filhos não nascidos de uma mulher. Ele
também possuía qualquer propriedade pessoal que ela pudesse ter — roupas,
escovas de cabelo, todos os objetos pessoais, por mais insignificantes que fossem. Ele
também, é claro, tinha o direito ao seu trabalho doméstico, e possuía tudo o que ela
fazia com as mãos — comida, roupas, tecidos, etc.

Um homem tinha o direito de punição corporal ou “castigo” como era então


chamado. As esposas foram chicoteadas e espancadas por desobediência, ou por
capricho, com a plena sanção da lei e do costume.

Uma esposa que fugia era uma escrava fugitiva. Ela poderia ser caçada, devolvida ao
seu dono e brutalmente punida através da prisão ou chicotadas. Qualquer um que a
ajudasse em sua fuga, ou que lhe desse comida ou abrigo, poderia ser processado por
roubo.

O casamento era um túmulo. Uma vez dentro, uma mulher estava civilmente morta.
Ela não tinha direitos políticos, direitos privados, direitos pessoais. Ela foi possuída,
corpo e alma, pelo marido. Mesmo quando ele morria, ela não pôde herdar os filhos
que ela tinha parido; um marido era obrigado a legar seus filhos a outro homem que
teria então todos os direitos de custódia e tutela.

A maioria das mulheres brancas, é claro, foi levada para as colônias como um bem já
casada. Um grupo menor de mulheres brancas, no entanto, foi trazida como servas.
Teoricamente, as servas eram contratadas em servidão por um determinado período
de tempo, geralmente em troca do preço da passagem. Mas, na verdade, o tempo de
servidão poderia ser facilmente estendido pelo mestre como uma punição por
infração de regras ou leis. Por exemplo, muitas vezes acontecia que uma serva, que
não possuía meios de proteção legais ou econômicos, fosse usada sexualmente por
seu mestre, engravidada, e então era acusada de ter parido um bastardo, o que era
um crime. A punição por este crime seria uma sentença adicional de serviço ao seu
mestre. Um argumento usado para justificar esse abuso foi que a gravidez havia
diminuído a utilidade da mulher, de modo que o mestre havia sido enganado pelo
trabalho de parto. A mulher era obrigada a compensar a perda dele.

A escravidão feminina na Inglaterra, depois na Amérika, não era estruturalmente


diferente da escravidão feminina em nenhum outro lugar do mundo. A opressão
institucional das mulheres não é o produto de um tempo histórico discreto, nem é
derivada de uma circunstância nacional particular, nem é limitada à cultura
ocidental, nem é a consequência de um sistema econômico particular. A escravidão
feminina na Amérika era congruente com o caráter universal da subjugação feminina
abjeta: as mulheres eram bens móveis; seus corpos e toda sua questão biológica eram
propriedade de homens; a dominação dos homens sobre elas era sistemática, sádica
e sexual em suas origens; sua escravidão era a base sobre a qual toda a vida social era
construída e o modelo do qual todas as outras formas de dominação social eram
derivadas.

A atrocidade da dominação masculina sobre as mulheres envenenou o corpo social,


na Amerika e em outros lugares. Os primeiros a morrer desse veneno, claro, eram
mulheres — seu gênio destruído; todo potencial humano diminuído; sua força
devastada; seus corpos saqueados; sua vontade pisoteada pelos seus mestres
masculinos.

Mas a vontade de dominar é uma fera voraz. Nunca há corpos suficientes para saciar
sua fome monstruosa. Uma vez viva, esta fera cresce e cresce, alimentando-se de toda
a vida ao seu redor, vasculhando a terra para encontrar novas fontes de nutrição.
Esta besta vive em cada homem que se opõe à servidão feminina. Todo homem
casado, por mais pobre que fosse, possuía um escravo — sua esposa.

Todos os homens casados, por mais impotentes que fossem os outros homens,
tinham poder absoluto sobre um escravo — sua esposa. Todo homem casado,
independentemente de sua posição no mundo dos homens, era tirano e mestre sobre
uma mulher — sua esposa.

E todo homem, casado ou não, tinha uma consciência de classe de gênero de seu
direito à dominação sobre as mulheres, à autoridade brutal e absoluta sobre os
corpos das mulheres, à tirania implacável e maliciosa sobre os corações, mentes e
destinos das mulheres. Esse direito à dominação sexual era um direito inato, baseado
na vontade de Deus, fixado pelas leis conhecidas da biologia, não sujeito a
modificação ou à restrição da lei ou da razão. Todos os homens, casados ou não,
sabiam que ele não era uma mulher, nem um animal carnal, nem um animal
colocado na terra para ser fodido e se reproduzir. Esse conhecimento era o centro de
sua identidade, a fonte de seu orgulho, o germe de seu poder.

Não era, então, nenhuma contradição ou agonia moral começar a comprar negros
escravos. A vontade de dominação havia se concentrado na carne feminina; seus
músculos haviam se tornado fortes e firmes ao subjugar as mulheres; sua ânsia pelo
poder tornara-se frenética no prazer sádico da supremacia absoluta. Qualquer que
seja a dimensão da consciência humana que deva se atrofiar antes que os homens
possam transformar outros humanos em bens móveis, ela se tornou murcha e inútil
muito antes de os primeiros negros escravos serem importados para as colônias
inglesas. Uma vez que a escravidão feminina é estabelecida como a base doentia de
uma sociedade, racismo e outras patologias hierárquicas inevitavelmente se
desenvolvem a partir dela.

Havia um comércio de escravos dos negros que antecedia a colonização inglesa do


que hoje é o leste dos Estados Unidos. Durante a Idade Média, havia escravos negros
na Europa em números comparativamente pequeno. Foram os portugueses que
primeiro se dedicaram ao sequestro e venda de negros. Eles desenvolveram o
comércio de escravos do Atlântico. Os escravos negros foram importados em grandes
quantidades para as colônias portuguesas, espanholas, francesas, holandesas,
dinamarquesas e suecas.
Nas colônias inglesas, como eu já disse, todo homem casado tinha um escravo, sua
esposa. À medida que os homens acumulavam riqueza, eles compravam mais
escravos, escravos negros, que já estavam sendo trazidos através do Atlântico para
serem vendidos em servidão. A riqueza de um homem sempre foi medida pelo
quanto ele possui. Um homem compra propriedades para aumentar sua riqueza e
demonstrar sua riqueza. Escravos negros foram comprados para esses dois
propósitos.

As leis que fixavam o status de bens móveis das mulheres brancas agora se estendiam
para serem aplicadas ao escravo negro. O direito divino que sancionou a escravidão
das mulheres aos homens foi agora interpretado para fazer da escravidão dos negros
aos homens brancos uma função da vontade de Deus. A noção maliciosa de
inferioridade biológica, que se originou para justificar a subjugação das mulheres aos
homens, foi agora expandida para justificar a subjugação dos negros aos brancos. O
chicote, usado para cortar as costas das mulheres brancas em tiras, agora era
empunhado contra a carne negra também.

Homens e mulheres negros foram sequestrados de suas casas africanas e vendidos


como escravos, mas sua condição de escravos diferia em espécie. O homem branco
perpetuou sua visão da inferioridade feminina na instituição da escravidão negra. O
valor do escravo negro no mercado era o dobro do valor da escrava negra; seu
trabalho no campo ou na casa foi calculado para valer o dobro do dela.

A condição da mulher negra na escravidão foi determinada primeiro por seu sexo,
depois por sua raça. A natureza de sua servidão diferia daquela do homem negro
porque ela era um bem carnal, um bem sexual, sujeito à vontade sexual de seu
mestre branco. No campo ou na casa, ela suportou as mesmas condições que o
escravo do sexo masculino. Ela trabalhou duro; ela trabalhou tanto tempo; sua
comida e roupas eram inadequadas; seus superiores manejavam o chicote contra ela
com tanta frequência. Mas a mulher negra era criada como uma fera de carga, quer o
garanhão que a montasse fosse seu mestre branco ou um escravo negro de escolha
dele. Seu valor econômico, sempre menor que o de um homem negro, era medido
primeiro por sua capacidade como reprodutora de produzir mais riqueza na forma de
mais escravos para o senhor; e então por suas capacidades no campo ou escravo da
casa.

Como escravos negros foram importados para as colônias inglesas, o caráter da


escravidão de mulheres brancas foi alterado de uma maneira muito bizarra. As
esposas permaneceram bens móveis. Seu propósito ainda era produzir filhos ano
após ano até que eles morressem. Mas seus mestres masculinos, num êxtase de
dominação, colocaram seus corpos em um novo uso: deviam ser ornamentos,
totalmente inúteis, totalmente passivos, objetos decorativos mantidos para
demonstrar a riqueza excedente do mestre.

Essa criação da mulher como ornamento pode ser observada em todas as sociedades
baseadas na escravidão feminina, onde os homens acumularam riqueza. Na China,
por exemplo, onde por mil anos os pés das mulheres foram amarrados, os pés da
mulher pobre foram amarrados frouxamente — ela ainda tinha que trabalhar; seus
pés estavam amarrados, os do marido não; isso o fez superior a ela porque ele podia
andar mais rápido que ela; mas ainda assim, ela teve que produzir os filhos e criá-los,
fazer o trabalho doméstico e, muitas vezes, trabalhar nos campos também; ele não
podia se dar ao luxo de aleijá-la completamente porque precisava do trabalho dela.
Mas a mulher que era esposa do homem rico foi imobilizada; seus pés foram
reduzidos a tocos, de modo que ela era totalmente inútil, exceto como uma foda e
como reprodutora. O grau de sua inutilidade significava o grau da riqueza dele. A
incapacidade física absoluta era o auge da moda feminina, o ideal da beleza feminina,
a pedra de toque erótica da identidade feminina.

Na Amérika, como em outros lugares, a servidão física era o verdadeiro propósito da


alta moda feminina. A fantasia da dama era uma invenção sádica projetada para
abusar do corpo dela. Suas costelas foram empurradas para cima e para dentro; sua
cintura foi espremida até o menor tamanho possível, de modo que ela se
assemelhasse a uma ampulheta; suas saias eram largas e muito pesadas. Os
movimentos que ela podia fazer nesse traje constrangedor e muitas vezes doloroso
eram considerados a essência da graça feminina. As damas desmaiavam com tanta
frequência porque não conseguiam respirar. As senhoras eram tão passivas porque
não podiam se mexer.

Além disso, é claro, as damas eram treinadas para a idiotice mental e moral.
Qualquer demonstração de inteligência comprometia o valor de uma dama como um
ornamento. Qualquer afirmação de princípios contraria a definição do mestre como
objeto decorativo. Qualquer rebelião contra a passividade irracional que a classe
proprietária de escravos havia articulado como sua verdadeira natureza poderia
incorrer na ira de seu poderoso dono e provocar sua censura e ruína.

Os vestidos caros que adornavam a dama, seu lazer e seu vazio obscureceram para
muitos a fria e dura realidade de seu status de propriedade carnal. Como sua função
era significar a riqueza masculina, presume-se que ela possuía essa riqueza. Na
verdade, ela era uma criadora e um ornamento, sem direitos privados ou políticos,
sem direito à dignidade ou à liberdade.

A genialidade de qualquer sistema escravista encontra-se na dinâmica que isola os


escravos uns dos outros, obscurece a realidade de uma condição comum e torna
inconcebível a rebelião unida contra o opressor. O poder do mestre é absoluto e
incontroverso. Sua autoridade é protegida por lei civil, força armada, costumes e
sanção divina e/ou biológica. Os escravos caracteristicamente internalizam a visão do
opressor sobre eles, e essa visão internalizada se congela em um ódio patológico. Os
escravos geralmente aprendem a odiar as qualidades e comportamentos que
caracterizam seu próprio grupo e a identificar seus próprios interesses com o
interesse próprio de seu opressor. A posição do mestre no topo é invulnerável; um
aspira a se tornar o mestre, ou se aproximar do mestre, ou ser reconhecido em
virtude do bom serviço prestado ao mestre. O ressentimento, a raiva e a amargura da
própria impotência não podem ser dirigidos contra ele, por isso tudo é dirigido
contra outros escravos que são a personificação viva da própria degradação.

Entre as mulheres, essa dinâmica funciona no que Phyllis Chesler chamou de


“política do harém”​[4]​. A primeira esposa é tirana com a segunda esposa que é tirana
sobre a terceira esposa, etc.

A autoridade da primeira esposa, ou de qualquer outra mulher do harém que tenha


prerrogativas sobre outras mulheres, é uma função de sua impotência em relação ao
mestre. O trabalho que ela faz como uma foda e como reprodutora pode ser feito por
qualquer outra mulher de sua classe de gênero. Ela, em comum com todas as outras
mulheres de sua classe abusada, é instantaneamente substituível. Isso significa que
quaisquer atos de crueldade que ela cometa contra outras mulheres são feitos como o
agente do mestre. Seu comportamento dentro do harém sob e contra outras
mulheres é do interesse de seu mestre, cujo domínio é determinado pelo ódio das
mulheres umas pelas outras.

Dentro do harém, removida de todo o acesso ao poder real, roubada de qualquer


possibilidade de autodeterminação, todas as mulheres costumam atuar em outras
mulheres sua raiva reprimida contra o mestre; e elas também representam seu ódio
interiorizado de sua própria espécie. Novamente, isso efetivamente protege o
domínio do mestre, já que as mulheres divididas entre si não se unirão contra ele.

No domínio do dono de escravos negros, a mulher branca era a primeira esposa, mas
o senhor tinha muitas outras concubinas, real ou potencialmente — escravas negras.
A esposa branca tornou-se agente do marido contra esses outros bens carnais. Sua
raiva contra seu dono só podia ser retirada deles, o que era, muitas vezes de forma
implacável e brutal. Seu ódio à sua própria espécie era representado naquelas que,
como ela, eram bens carnais, mas que, ao contrário dela, eram negras. Ela também, é
claro, agrediu suas próprias filhas brancas ao amarrá-las e acorrentá-las como
damas, forçando-as a desenvolver a passividade de ornamentos e endossando a
instituição do casamento.

Negras escravas, em cujos corpos a carnificina do domínio dos homens brancos era
visitada com mais selvageria, tinham vidas de amargura sem alívio. Elas trabalhavam
arduamente; seus filhos foram tirados delas e vendidas; elas eram as servas sexuais
de seus senhores; e muitas vezes carregavam a ira das mulheres brancas humilhadas
em crueldade pelas condições de sua própria servidão.

A política do harém, a auto-aversão ao oprimido que provoca a vingança de sua


própria espécie e a tendência do escravo de identificar seu interesse próprio com o
interesse pessoal do mestre — tudo conspirou para tornar impossível para as
mulheres brancas, mulheres negras e homens negros entenderem as semelhanças
surpreendentes em suas condições e se unir contra seu opressor comum.

Agora, há muitos que acreditam que mudanças ocorrem na sociedade por causa de
processos desencarnados: eles descrevem mudanças em termos de avanços
tecnológicos; ou eles pintam imagens gigantescas de forças abstratas colidindo no ar.
Mas acho que nós, como mulheres, sabemos que não há processos desencarnados;
que toda a história se origina em carne humana; que toda opressão é infligida pelo
corpo de um contra o corpo de outro; que toda mudança social é construída sobre os
ossos e músculos, e fora da carne e sangue, dos criadores humanos.

Dois desses criadores foram as irmãs Grimke de Charleston, na Carolina do Sul.


Sarah, nascida em 1792, foi a sexta de catorze filhos; Angelina, nascida em 1805, foi a
última. Seu pai era um advogado rico que possuía numerosos escravos negros.

No início de sua infância, Sarah se rebelou contra sua condição de dama e contra o
sempre presente horror da escravidão negra. Sua primeira ambição era tornar-se
advogada, mas a educação lhe foi negada pelo pai ultrajado que queria que ela
apenas dançasse, flertasse e se casasse. “Comigo aprender era uma paixão”, escreveu
ela mais tarde. “Minha natureza [foi] negada a sua nutrição adequada, seu curso
neutralizado, suas aspirações esmagadas.”​[5]​Em sua adolescência, Sarah
conscientemente desobedeceu a lei sulista que proibia o ensino de escravos para ler.
Ela deu aulas de leitura na escola dominical de escravos até ser descoberta por seu
pai; e mesmo depois disso, ela continuou a orientar sua própria criada. “A luz
apagou-se”, escreveu ela, “a fechadura trancada e plana sobre nossos estômagos,
diante do fogo, com o livro de ortografia sob nossos olhos, desafiamos as leis da
Carolina do Sul.​[6]​” Eventualmente, isso também foi descoberto, e entendendo que a
criada seria chicoteada por novas infrações, Sarah terminou as lições de leitura.

Em 1821, Sarah saiu do sul e foi para a Filadélfia. Ela renunciou a religião episcopal
de sua família e se tornou um Quaker.

Angelina também não podia tolerar a escravidão negra. Em 1829, com a idade de
vinte e quatro anos, ela escreveu em seu diário: “Esse sistema deve estar
radicalmente errado, o que só pode ser apoiado pela transgressão das leis de
Deus.​[7]​” Em 1828, ela também se mudou para a Filadélfia.

Em 1835, Angelina escreveu uma carta pessoal a William Lloyd Garrison, o militante
abolicionista. Ela escreveu: “O chão em que você está é solo sagrado:
nunca — nunca se renda. Se você se entregar, a esperança do escravo se extingue…
É minha convicção profunda, solene e deliberada, que esta é uma causa pela qual
vale a pena morrer.​[8]​” Garrison publicou a carta em seu jornal abolicionista, The
Liberator, com um prefácio identificando Angelina como membro de uma
proeminente família de proprietários de escravos. Ela foi amplamente condenada por
amigos e conhecidos por desonrar sua família, e Sarah também a condenou.

Em 1836, ela selou seu destino como traidora de sua raça e de sua família publicando
um tratado abolicionista chamado “Um Apelo às Mulheres Cristãs do Sul”. Pela
primeira vez, talvez na história do mundo, uma mulher dirigiu-se a outras mulheres e
exigiu que se unissem como uma força revolucionária para derrubar um sistema de
tirania. E pela primeira vez em solo amerikano, uma mulher exigiu que as mulheres
brancas se identificassem com o estado de bem-estar, a liberdade e a dignidade das
mulheres negras:

Que as mulheres se incorporem na sociedade e enviem petições às suas diferentes


legislaturas, suplicando a seus maridos, pais, irmãos e filhos que eliminem a instituição
da escravidão; não mais sujeitar a mulher ao flagelo e à corrente, às trevas mentais e à
degradação moral; não mais para rasgar maridos de suas esposas e filhos de seus pais;
não mais para fazer homens, mulheres e crianças trabalhar sem salário; não mais para
tornar suas vidas amargas em cativeiro rígido; não mais reduzir os cidadãos americanos
à condição desprezível dos escravos, de “bens pessoais”; não mais trocar a imagem de
Deus em confusões humanas por coisas corruptíveis como prata e ouro​[9]​.

Angelina exortou as mulheres sulistas, para o bem de todas as mulheres, a formar


sociedades antiescravistas; para peticionar legislaturas; educar-se para as duras
realidades da escravidão negra; falar contra a escravidão negra à família, amigos e
conhecidos; exigir que os escravos sejam libertados em suas próprias famílias; pagar
salários a quaisquer escravos que não sejam libertados; agir contra a lei, libertando
os escravos sempre que possível; e agir contra a lei ensinando os escravos a ler e a
escrever. Na primeira articulação política da desobediência civil como princípio de
ação, ela escreveu:

Mas alguns de vocês dirão, não podemos libertar nossos escravos nem os ensinar a ler,
pois as leis de nosso estado proíbem isso. Não fique surpreso quando eu digo que essas
leis perversas não devem ser uma barreira no caminho do seu dever… Se uma lei me
ordena pecar, eu a quebrarei; se me chama a sofrer, deixarei que ela siga seu curso sem
resistência. A doutrina da obediência cega e submissão desqualificada a qualquer poder
humano, seja civil ou eclesiástico, é a doutrina do despotismo…​[10]

Este texto foi queimado pelos correios do sul; Angelina foi avisada em editoriais de
jornais para nunca mais voltar ao sul; e ela foi repudiada por sua família. Após a
publicação de seu “Apelo”, ela se tornou uma organizadora abolicionista em tempo
integral.

Também em 1836, em uma série de cartas a Catherine Beecher, Angelina articulou o


primeiro argumento feminista totalmente concebido contra a opressão das mulheres:

Agora, acredito que é direito da mulher ter uma escolha em todas as leis e regulamentos
pelos quais ela deve ser governada, seja na Igreja ou no Estado; e que os atuais arranjos
da sociedade… são uma violação dos direitos humanos, uma usurpação de poder, uma
tomada violenta e confiscação do que é sagrada e inalienavelmente dela — assim
infligindo à mulher erros ultrajantes, trabalhando travessuras incalculáveis no círculo
social e em sua influência sobre o mundo produzindo apenas o mal, e isso
continuamente​[11]​.

Sua consciência feminista tinha crescido fora de seu compromisso abolicionista: “A


investigação dos direitos dos escravos me levou a uma melhor compreensão dos
meus próprios [direitos].​[12]​”

Também em 1836, Sarah Grimke publicou um panfleto chamado “Epístola ao Clero


dos Estados do Sul”. Nela, ela refuta as alegações do clero sulista de que a escravidão
bíblica forneceu uma justificativa para a escravidão norte-americana. A partir de
então, Sarah e Angelina se uniram pública e privadamente em seu trabalho político.

Em 1837, as irmãs Grimke participaram de uma convenção antiescravista em Nova


York. Lá elas afirmaram que as mulheres brancas e negras eram uma irmandade; que
a instituição da escravidão negra foi nutrida pelo preconceito racial do Norte; e que
mulheres brancas e homens negros também compartilhavam uma condição comum:

[As escravas] são nossas compatriotas — elas são nossas irmãs; e para nós, como
mulheres, elas têm o direito de procurar a simpatia com suas tristezas, esforço e oração
para o seu resgate … Nosso povo erigiu um falso padrão pelo qual julgar o caráter do
homem. Porque nos Estados escravistas os homens de cor são saqueados e mantidos em
ignorância desprezível, são tratados com desdém e desprezo, então também aqui, em
profunda deferência ao Sul, nos recusamos a comer, andar, associar ou abrir nossas
instituições de ensino, ou mesmo nossas instituições zoológicas, a pessoas de cor, a
menos que as visitem na qualidade de servos, de servos humildes ao anglo-americano.
Quem já ouviu falar de um absurdo mais perverso em um país republicano?
As mulheres devem sentir uma simpatia peculiar pelas injustiças do homem de cor, pois,
como ele, ela foi acusada de inferioridade mental e negou os privilégios de uma
educação liberal​[13]​.

Em 1837, a reação do público contra as irmãs Grimke tornou-se feroz. O clero de


Massachusetts publicou uma carta pastoral denunciando o ativismo feminino:

Nós convidamos a sua atenção para os perigos que no momento parecem ameaçar o
personagem feminino com lesões extensas e permanentes.
… Nós não podemos…, mas lamentamos a conduta equivocada daqueles que encorajam
as mulheres a ostentar uma parte importante e ostentatória nas medidas de reforma, e
[não podemos] tolerar qualquer um desse sexo que até agora se esquece de viajar no
caráter de professores universitários e professores públicos. Em especial, nós
deploramos o conhecimento íntimo e a conversação promíscua das mulheres em relação
às coisas que não devem ser nomeadas; por que aquela modéstia e delicadeza que é o
encanto da vida doméstica, e que constitui a verdadeira influência da mulher na
sociedade, é consumida, e o caminho aberto, como nós apreendemos, por degeneração e
ruína​[14]​.

Respondendo à carta pastoral, Angelina escreveu: “Estamos inesperadamente em


uma situação muito difícil, na vanguarda de uma competição inteiramente
nova — uma disputa pelos direitos da mulher como um ser moral, inteligente e
responsável​[15]​”. A resposta de Sarah, que foi mais tarde publicada como parte de
uma análise sistemática da opressão das mulheres chamada Cartas sobre a Igualdade
dos Sexos e a Condição da Mulher, é lida em parte como segue:
[A carta pastoral] diz: “Nós convidamos a sua atenção para os perigos que no momento
parecem ameaçar a personagem feminina com lesões generalizadas e permanentes.” Eu
me alegro por eles chamarem a atenção do meu sexo para este assunto, porque acredito
que se a mulher investigar, ela logo descobrirá que o perigo é iminente, embora de uma
fonte totalmente diferente… perigo daqueles que, por muito tempo detiveram o rédeas
da usurpada autoridade, não estão dispostos a permitir-nos preencher a esfera que Deus
nos criou para entrar, e que se uniram para esmagar a mente imortal da mulher. Eu me
alegro, porque estou convencido de que os direitos da mulher, como os direitos dos
escravos, só precisam ser examinados para serem compreendidos e afirmados, mesmo
por alguns que agora estão tentando sufocar o desejo irreprimível de liberdade mental e
espiritual que brilha no peito de muitos, que dificilmente ousam falar seus
sentimentos​[16]​.

Nesse confronto com o clero de Massachusetts, o movimento pelos direitos das


mulheres nasceu nos Estados Unidos. Duas mulheres, falando por todos os
oprimidos de sua espécie, resolveram transformar a sociedade em nome e por causa
das mulheres. O trabalho de Angelina e Sarah Grimke, tão profundo em sua análise
política da tirania, tão visionário em sua urgência revolucionária, tão inflexível em
seu ódio ao cativeiro humano, tão radical em sua percepção da opressão comum de
todas as mulheres e homens negros, foi a fibra da qual o tecido do primeiro
movimento feminista foi tecido. Elizabeth Cady Stanton, Lucretia Mott e Susan B.
Anthony, Lucy Stone — essas eram as filhas das irmãs Grimke, nascidas de seu
trabalho milagroso.

Costuma-se dizer que todos aqueles que defendiam os direitos das mulheres eram
abolicionistas, mas nem todos os abolicionistas defendiam os direitos das mulheres.
A amarga verdade é que a maioria dos homens abolicionistas se opunha aos direitos
das mulheres. Frederick Douglass, um ex-escravo negro que apoiava fortemente os
direitos das mulheres, descreveu essa oposição em 1848, logo após a Convenção de
Seneca Falls:
Uma discussão sobre os direitos dos animais seria considerada com muito mais
complacência por muitos dos que são chamados de sábios e bons de nossa terra, do que
seria uma discussão dos direitos das mulheres. É, na sua opinião, ser culpado de maus
pensamentos, pensar que a mulher tem direitos equivalentes aos de homem. Muitos que
finalmente fizeram a descoberta de que os negros têm alguns direitos, assim como
outros membros da família humana, ainda precisam ser convencidos de que as mulheres
têm direito a… um número de pessoas dessa descrição realmente abandonaram a causa
antiescravista, para que, ao dar sua influência nessa direção, talvez estivessem dando
expressão à perigosa heresia que aquela mulher, em respeito aos seus direitos, está em
pé de igualdade com o homem. No julgamento de tais pessoas, o sistema escravista
americano, com todos os seus horrores concomitantes, é menos para ser deplorado do
que essa ideia perversa​[17]​.

No movimento da abolição, como na maioria dos movimentos pela mudança social,


então e agora, as mulheres estavam comprometidas; as mulheres faziam o trabalho
que precisava ser feito; as mulheres eram a espinha dorsal e o músculo que
sustentava todo o corpo. Mas quando as mulheres reivindicavam seus próprios
direitos, eram desprezadas, ridicularizadas ou informadas de que sua própria luta era
autoindulgente, secundária à verdadeira luta. Como Elizabeth Cady Stanton escreveu
em suas reminiscências:

Durante os seis anos [da Guerra Civil, quando as mulheres] mantiveram suas próprias
reivindicações em suspenso àquelas dos escravos… e trabalharam para inspirar o povo
com entusiasmo por [emancipação] eles foram altamente honrados como “sábios, leais e
míopes”. Mas quando os escravos foram emancipados, e essas mulheres pediram que
fossem reconhecidas na reconstrução como cidadãos da República, iguais perante a lei,
todas essas virtudes transcendentes desapareceram como orvalho antes do sol da
manhã. E assim sempre acontece: enquanto a mulher trabalha para os esforços do
segundo homem e exalta seu sexo acima de si, suas virtudes passam inquestionáveis;
mas quando ela ousa exigir direitos e privilégios para si mesma, seus motivos, maneiras,
roupas, aparência pessoal e caráter são assuntos para ridicularização e difamação​[18]​.

As mulheres tinham, como Stanton apontou, “posicionado-se com o negro, até agora,
em terreno igual ao das classes marginalizadas, fora do paraíso político​[19]​”; mas a
maioria dos homens abolicionistas, e o partido republicano que veio representá-los,
não tinham compromisso com os direitos civis das mulheres, muito menos com a
radical transformação social exigida pelas feministas. Esses homens abolicionistas
tinham, ao contrário, um compromisso com o domínio masculino, um investimento
no privilégio masculino e uma crença sustentada na supremacia masculina.

Em 1868, a décima quarta emenda que emancipa homens negros foi ratificada. Nesta
mesma emenda, a palavra “homem” foi introduzida pela primeira vez na
Constituição dos Estados Unidos — isto para assegurar que a Décima Quarta
Emenda não iria, mesmo acidentalmente, licenciar o sufrágio ou outros direitos
legais para as mulheres.

Essa traição foi desprezível. Homens abolicionistas haviam traído as próprias


mulheres cuja organização, palestras e panfletos haviam efetuado a abolição.
Homens abolicionistas tinham traído metade da população de ex-escravos
negros — mulheres negras que não tinham existência civil sob a Décima Quarta
Emenda. Homens negros juntaram-se a homens brancos para negar aos direitos civis
das mulheres negras. Os abolicionistas se juntaram aos ex-proprietários de escravos;
ex-escravos do sexo masculino juntaram-se a antigos senhores de escravos; homens
brancos e negros se uniram para encerrar a classificação​[20] de homens contra
mulheres brancas e negras. As consequências para a mulher negra foram como a
verdade que Sojourner profetizou em 1867, um ano após a proposta da décima
quarta emenda:

Eu venho de… o país do escravo. Eles tiveram sua liberdade — muita sorte de ter a
escravidão parcialmente destruída; não inteiramente. Eu quero a raiz e os ramos
destruídos. Então todos nós estaremos livres de fato… Há uma grande agitação sobre
homens de cor que obtiveram seus direitos, mas nenhuma palavra sobre as mulheres de
cor; e se os homens de cor adquirem os seus direitos e as suas mulheres de cor não,
vê-se que os homens de cor serão mestres sobre as mulheres e será tão ruim como
antes​[21]​.

Se a escravidão é para ser destruída “da raiz aos ramos”, as mulheres terão que
destruí-lo. Os homens, como atesta a história deles, só arrancarão os brotos e
colherão suas flores.

Eu quero lhe pedir que se comprometam com sua própria liberdade; quero pedir-lhe
que não se contente com menos, não comprometa, não faça permuta, não se deixe
enganar por promessas vazias e mentiras cruéis. Quero lembrá-lo que a escravidão
deve ser destruída “da raiz aos ramos”, ou não foi destruída. Quero lhe pedir que se
lembre de que somos escravos há tanto tempo que às vezes nos esquecemos de que
não somos livres. Quero lembrar que não somos livres. Eu quero pedir a vocês que se
comprometam com a revolução das mulheres — uma revolução de todas as
mulheres, por todas as mulheres e para todas as mulheres; uma Revolução destinada
a escavar as raízes da tirania para que ela não possa mais crescer.
Notas:

[1]​ George Eliot, Felix Holt (Harmondsworth: Penguin Books, 1972), p. 84.

[2]​ BROOKE — é a mulher que além de inteligente, atlética, talentosa e com senso de humor e é fiel e
simpática, além de bela. ​https://www.urbandictionary.com/define.php?term=Brooke

[3]​ George Eliot, Felix Holt (Harmondsworth: Penguin Books, 1972), p. 84.

[4]​ Phyllis Chesler, conversation with the author.

[5]​ Sarah Grimke, “Education of Women, ” essay, Box 21, Weld MSS, cited by Gerda Lemer, The
Grimke Sisters from South Carolina: Pioneers for Woman’s Rights and Abolition (New York: Schocken
Books, 1974) t p. 29.

[6]​ Sarah Grimke, diary, 1827, Weld MSS, cited by Lemer, op. cit., p. 23.
[7]​ Angelina Grimke, diary, 1829, cited by Betty L. Fladeland, “Grimk6, Sarah Moore and Angelina
Emily, ” Notable American Women: A Biographical Dictionary, ed. Edward T. James (Cambridge,
Mass.: The Belknap Press of Harvard University Press, 1974), II: 97.

[8]​ Lemer, op. cit., pp. 123–124.

[9]​ Angelina Grimke, “An Appeal to the Christian Women of the South, ” The Oven Birds: American
Women on Womanhood 1820–1920, ed. Gail Parker (Garden City, N. Y.: Anchor Books, 1972), p. 137.

[10]​ Ibid., pp. 127–129.

[11]​ Angelina Grimke, Letters to Catherine Beecher, in The Feminist Papers: From Adams to de
Beauvoir, ed. Alice S. Rossi (New York: Bantam Books, 1974), p. 322.

[12]​ Ibid., p. 320.

[13]​ A. E. Grimke, “An Appeal to the Women of the Nominally Free States: Issued by an Anti-Slavery
Convention of American Women & Held by Adjournment from the 9th to the 12th of May, 1837, ”
cited by Lemer, op. cit., pp. 162–163.

[14]​ From a pastoral letter, ‘The General Association of Massachusetts (Orthodox) to the Churches
Under Their Care, ” 1837, The Feminist Papers: From Adams to de Beauvoir, ed. Alice S. Rossi (New
York: Bantam Books, 1974), pp. 305–306.

[15]​ Angelina Grimke, Letters of Theodore Dwight Weld, Angelina Grimki Weld and Sarah Grimke,
eds. Gilbert H. Barnes and Dwight L. Dumond, 1934, cited by Fladeland, op. cit., p. 98.

[16]​ Sarah Grimke, Letters on the Equality of the Sexes and the Condition of Women, in The Feminist
Papers: From Adams to de Beauvoir, ed. Alice S. Rossi (New York: Bantam Books, 1974), p. 307.

[17]​ Frederick Douglass, editorial from The North Star, in Feminism: The Essential Historical
Writings, ed. Miriam Schneir (New York: Vintage Books, 1972), pp. 84–85.

[18]​ Elizabeth Cady Stanton, Eighty Years and More: Reminiscences 1815–1897 (New York: Schocken
Books, 1973), pp. 240–241.

[19]​ Ibid., p. 255.

[20]​ No original, estava escrito “to close male ranks”; se houver melhor tradução, me avisa 😉

[21]​ Sojourner Truth, “Keeping the Thing Going While Things Are Stirring, ” speech, 1867, Feminism:
The Essential Historical Writings, ed. Miriam Schneir (New York: Vintage Books, 1972), p. 129.
Capítulo 9

A causa raiz

[Pronunciada no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, Cambridge, 26 de


Setembro, 1975.]

E as coisas a melhor saber são antes de tudo princípios e causas. Por através delas e a
partir delas todas as outras coisas podem ser sabidas…

–Aristóteles, Metafísica, Livro I

Eu quero falar-lhes hoje à noite sobre algumas realidades e algumas possibilidades.


As realidades são brutais e selvagens; as possibilidades podem parecer-lhes, muito
francamente, impossíveis. Eu quero lembrar-lhes que havia uma época em que todo
o mundo acreditava que a terra era plana. Toda a navegação era baseada nesta
crença. Todos os mapas eram delineados às especificações desta crença. Eu chamo-a
de uma crença, mas naquele tempo ela era uma realidade, a única realidade
imaginável. Era uma realidade porque todo o mundo acreditava que era verdade.
Todo o mundo acreditava que era verdade porque parecia ser verdade. A terra
parecia plana; não havia nenhuma circunstância em que ela não tinha extremidades
distantes nas quais alguém poderia cair; as pessoas admitiam que, em algum lugar,
havia a extremidade final além da qual não havia nada. A imaginação era limitada,
como ela é na maioria das vezes, por sentidos físicos inerentemente limitados e
culturalmente condicionados, e esses sentidos determinaram que a terra fosse plana.
Este princípio da realidade não era somente teórico; ele tinha efeitos. Os navios
nunca navegavam muito longe em qualquer direção porque ninguém queria navegar
fora da extremidade da terra; ninguém queria morrer a terrível morte que resultaria
de um ato tão descuidado, estúpido. Nas sociedades em que a navegação era uma
atividade principal, o medo de tal destino era vívido e apavorante.
Agora, conforme consta, de algum modo um homem chamado Cristóvão Colombo
imaginou que a terra era redonda. Ele imaginou que alguém poderia chegar ao
Extremo Oriente navegando para o ocidente. Como ele concebeu esta idéia, nós não
sabemos; mas ele a imaginou, e uma vez que a tinha imaginado, ele não poderia
esquecê-la. Por muito tempo, até que ele encontrou a Rainha Isabella, ninguém o
escutaria ou consideraria sua idéia porque, claramente, ele era um lunático. Se algo
era certo, era que a terra era plana. Agora nós olhamos retratos da terra tirados do
espaço, e nós não lembramos que uma vez havia uma crença universal que a terra era
plana.

Esta história foi repetida muitas vezes. Marie Curie teve a idéia peculiar que havia
um elemento não descoberto que fosse ativo, sempre variável, vivo. Todo o
pensamento científico era baseado na noção que todos os elementos eram inativos,
inertes, estáveis. Ridicularizada, negada um laboratório apropriado pelo
estabelecimento científico, condenada à pobreza e à obscuridade, Marie Curie, com
seu marido, Pierre, trabalhou implacavelmente para isolar o rádio que era, em
primeira instância, uma invenção de sua imaginação. A descoberta do radio destruiu
inteiramente a premissa básica em que a física e a química foram construídas. O que
tinha sido real até sua descoberta já não era mais real.

Os conhecidos princípios provados-e-verdadeiros da realidade, então, acreditados


universalmente e aderidos com ímpeto, são frequentemente formados a partir de
profunda ignorância. Nós não sabemos o que ou quanto nós não sabemos. Ignorando
nossa ignorância, mesmo que ela tenha sido revelada para nós repetidas vezes, nós
acreditamos que a realidade é tudo o que nós sabemos.

Um princípio básico da realidade, acreditado universalmente e aderido com ímpeto,


é que há dois sexos, homem e mulher, e que estes sexos não são somente distintos
um do outro, mas são opostos. O modelo usado frequentemente para descrever a
natureza destes dois sexos é aquele de pólos magnéticos. O sexo masculino é
vinculado ao pólo positivo, e o sexo feminino é vinculado ao pólo negativo. Postos em
proximidade um com o outro, os campos magnéticos destes dois sexos são admitidos
a interagir, trancando os dois pólos juntos em um todo perfeito. Desnecessário dizer,
dois pólos semelhantes postos em proximidade são admitidos a repelirem-se.

O sexo masculino, de acordo com sua designação positiva, tem qualidades positivas;
e o sexo feminino, de acordo com sua designação negativa, não possui qualquer das
qualidades atribuídas ao sexo masculino. Por exemplo, de acordo com este modelo,
os homens são ativos, fortes e corajosos; e as mulheres são passivas, fracas, e
medrosas. Ou seja, o que os homens são, as mulheres não são; o que os homens
podem fazer as mulheres não podem; todas as capacidades que os homens têm as
mulheres não têm. O homem é o positivo e a mulher é seu negativo.

pologistas deste modelo reivindicam que ele é moral porque é inerentemente


igualitário. Cada pólo é admitido ter a dignidade de sua própria identidade separada;
cada pólo é necessário para um todo harmonioso. Esta noção, naturalmente, é
enraizada na convicção que as reivindicações feitas a respeito das características de
cada sexo são verdadeiras, que a essência de cada sexo está corretamente descrita.
Em outras palavras, dizer que o homem é o positivo e a mulher é o negativo é como
dizer que a areia é seca e a água é molhada – a característica que mais descreve a
própria coisa é nomeada de uma maneira verdadeira e nenhum julgamento no valor
destas características de diferenciação é subentendido. Simone de Beauvoir expõe a
falácia desta doutrina de “separado, mas igual” no prefácio de O SEGUNDO SEXO:

Na realidade a relação dos dois sexos não é . . . como aquela de dois pólos elétricos,
porque o homem representa o positivo e o neutro, como é indicado pelo uso comum
de homem para designar seres humanos em geral; enquanto que a mulher representa
somente o negativo, definida por critérios restritivos, sem reciprocidade…. “A fêmea
é uma fêmea em virtude de certa falta de qualidades,” disse Aristóteles; “nós
devemos considerar a natureza feminina como afligida por uma falha natural.” E São
Tomás pelo que lhe diz respeito pronunciou que a mulher é “um homem imperfeito,”
um ser todo “incidental” . . .
Assim, a humanidade é masculina e o homem define a mulher não em si mesma, mas
relativa a ele; ela não é considerada um ser autônomo.

Esta visão doente da mulher como o negativo do homem, “fêmea em virtude de certa
falta de qualidades,” contamina toda a cultura. É o câncer no intestino de cada
sistema político e econômico, de cada instituição social. É a podridão que estraga
todos os relacionamentos humanos, infesta toda a realidade psicológica humana, e
destrói a verdadeira fibra da identidade humana.

Esta visão patológica da negatividade feminina tem sido forçada em nossa carne por
milhares de anos. A mutilação selvagem do corpo feminino, empreendida para
distinguir-nos absolutamente dos homens, tem ocorrido em uma escala maciça. Por
exemplo, na China, por mil anos, os pés das mulheres foram reduzidos a tocos
através do enfaixamento de pés. Quando uma garota tinha sete ou oito anos, seus pés
eram lavados em alume, uma substância química que causa encolhimento. Então,
todos os dedos dos pés exceto os dedões eram dobrados nas solas de seus pés e
enfaixados tão firmemente quanto possível. Este procedimento era repetido várias
vezes por aproximadamente três anos. A menina, em agonia, era forçada a andar com
os próprios pés. Calos duros se formavam; as unhas dos dedos dos pés cresciam
dentro da pele; os pés se enchiam de pus e sangravam; a circulação era parada
realmente; frequentemente os dedões caiam. O pé ideal era três polegadas de carne
fedorenta, apodrecida. Os homens eram positivos e as mulheres eram negativas
porque os homens podiam andar e as mulheres não podiam. Os homens eram fortes
e as mulheres eram fracas porque os homens podiam andar e as mulheres não
podiam. Os homens eram independentes e as mulheres eram dependentes porque os
homens podiam andar e as mulheres não podiam. Os homens eram viris porque as
mulheres foram aleijadas.

Esta atrocidade cometida contra as mulheres Chinesas é somente um exemplo do


sadismo sistemático expresso nos corpos das mulheres para tornar-nos opostas aos,
e os negativos dos, homens. Nós fomos, e somos, chicoteadas, açoitadas, e agredidas;
nós fomos, e somos, encaixadas em roupas projetadas para distorcer nossos corpos,
para tornar os movimentos e a respiração dolorosos e difíceis; nós fomos, e somos,
transformadas em ornamentos, tão privadas de presença física que nós não podemos
correr ou saltar ou escalar ou mesmo andar com uma postura natural; nós fomos, e
somos, veladas, nossos rostos cobertos por camadas de panos sufocantes ou por
camadas de maquiagem, de modo que até a posse de nossos próprios rostos nos é
negada; nós fomos, e somos, forçadas a remover os pêlos de nossas axilas, pernas,
sobrancelhas, e frequentemente mesmo das nossas regiões pubianas, de modo que os
homens possam afirmar, sem contradição, a positividade de sua própria virilidade
peluda. Nós fomos, e somos, esterilizadas contra nossa vontade; nossos ventres são
removidos por nenhuma razão médica; nossos clitóris são cortados; nossos peitos e
toda a musculatura de nossos tórax são removidos com abandono entusiástico. Este
último procedimento, mastectomia radical, tem oitenta anos de idade. Eu peço que
você considere o desenvolvimento de armamentos nos últimos oitenta anos, bombas
nucleares, gases venenosos, raios laser, bombas de ruídos, e semelhantes, e questione
o desenvolvimento da tecnologia em relação às mulheres. Por que as mulheres ainda
são mutiladas tão promiscuamente na cirurgia de mama; porque esta selvagem
forma de mutilação, mastectomia radical, tem prosperado se não para intensificar a
negatividade das mulheres em relação aos homens? Estas formas de mutilação física
são as marcas que nos designam como fêmeas negando nossos verdadeiros corpos,
destruindo-os.

No mundo grotesco feito por homens, o emblema físico primário da negatividade


feminina é gravidez. As mulheres têm a capacidade de parir; os homens não têm.
Mas desde que os homens são positivos e as mulheres são negativas, a incapacidade
de parir é designada como uma característica positiva, e a capacidade de parir é
designada como uma característica negativa. Já que as mulheres são mais facilmente
distinguidas dos homens em virtude desta capacidade única, e já que a negatividade
das mulheres é sempre estabelecida em oposição à positividade dos homens, a
capacidade reprodutiva da fêmea é primeiro usada para fixar, em seguida para
confirmar, seu status negativo ou inferior. A gravidez se torna uma marca física, um
sinal que designa a grávida como autenticamente fêmea. A gravidez, peculiarmente,
torna-se a forma e a substância da negatividade do sexo feminino.

Novamente, considere a tecnologia em relação às mulheres. Enquanto os homens


andam na lua e um satélite artificial aproxima-se de Marte para uma aterrissagem, a
tecnologia de contracepção permanece criminosamente inadequada. Os dois meios
mais eficazes de contracepção são a pílula e o D.I.U. A pílula é venenosa e o D.I.U. é
sádico. Se uma mulher quiser impedir a concepção, ela deve ou consequentemente
falhar porque usa um método ineficiente de contracepção, neste caso ela se arrisca a
morte com a gravidez; ou ela deve se arriscar a uma doença terrível com a pílula, ou
sofrer a agonia da dor com o D.I.U. – e, naturalmente, com qualquer um destes
métodos, o risco de morte é muito real também. Agora que as técnicas de aborto
foram desenvolvidas que são seguras e fáceis, as mulheres são negadas
resolutamente o acesso livre a elas. Os homens exigem que as mulheres continuem a
ficar grávidas para personificarem a negatividade feminina, confirmando assim a
positividade masculina.

Enquanto as agressões físicas contra a vida feminina são inacreditáveis, os ultrajes


cometidos contra nossas faculdades intelectuais e criativas não têm sido menos
sádicos. Consignadas a uma vida intelectual e criativa negativa, para afirmar estas
capacidades nos homens, as mulheres são consideradas estúpidas; feminilidade é
aproximadamente sinônimo de estupidez. Nós somos femininas à medida que nossas
faculdades mentais são aniquiladas ou repudiadas. Para reforçar esta dimensão da
negatividade feminina, nós somos negadas sistematicamente o acesso ao ensino
convencional, e cada afirmação de inteligência natural é punida até que nós não
ousemos confiar em nossas percepções, até que nós não ousemos honrar nossos
impulsos criativos, até que nós não ousemos exercitar nossas faculdades críticas, até
que nós não ousemos cultivar nossas imaginações, até que nós não ousemos respeitar
nossa própria acuidade mental ou moral. Qualquer trabalho criativo ou intelectual
pelo qual nós somos responsáveis é trivializado, ignorado, ou ridicularizado, de modo
que mesmo aquelas poucas cujas mentes não poderiam ser degradadas são levadas
ao suicídio ou à insanidade, ou de novo ao casamento e à gravidez. Há muito poucas
exceções a esta regra inexorável.

A manifestação literária mais vívida desta patologia da negação feminina é


encontrada na pornografia. A literatura é sempre a expressão mais eloquente de
valores culturais; e a pornografia articula a destilação mais pura desses valores. Na
pornografia literária, onde o sangue feminino pode fluir sem a limitação real da
resistência biológica, o etos desta cultura assassina masculino-positiva é revelado em
sua forma básica: o sadismo masculino se alimenta no masoquismo feminino; o
domínio masculino é nutrido pela submissão feminina.

Na pornografia, o sadismo é o meio pelo qual homens estabelecem seu domínio. O


sadismo é o exercício autêntico de poder que confirma a masculinidade; e a primeira
característica da masculinidade é que sua existência é baseada na negação da fêmea
– a masculinidade pode ser certificada somente pela abjeta degradação feminina,
uma degradação nunca abjeta o bastante até que o corpo e a vontade da vítima
tenham sido destruídos.

Na pornografia literária, o coração das trevas pulsante no centro do sistema


masculino-positivo é exposto em toda sua nudez horripilante. Esse coração das
trevas é este – que o sadismo sexual efetiva a identidade masculina. As mulheres são
torturadas, chicoteadas, e acorrentadas; as mulheres são amarradas e amordaçadas,
marcadas e queimadas, cortadas com facas e fios; as mulheres são urinadas e
defecadas; agulhas em brasa são cravadas nos peitos, ossos são quebrados, retos são
rasgados, bocas são devastadas, bocetas são brutalmente caceteadas por pênis após
pênis, vibrador após vibrador – e tudo isto para estabelecer no macho um sentido
viável de seu próprio valor.

Tipicamente na pornografia, algumas destas crueldades horríveis ocorrem em um


contexto público. Um homem não dominou completamente uma mulher – ele não é
completamente um homem – até que a degradação dela seja publicamente
testemunhada e apreciada. Ou seja, como um homem estabelece o domínio ele deve
também estabelecer publicamente a posse. A posse é provada quando um homem
pode humilhar uma mulher na frente de, e para o prazer de, seus companheiros, e ela
ainda permanece leal a ele. A posse é estabelecida mais adiante quando um homem
pode emprestar uma mulher como um objeto carnal, ou entregá-la como um
presente para um outro homem ou para outros homens. Estas transações fazem a
posse dele uma matéria de registro público e aumentam sua estima aos olhos de
outros homens. Estas transações provam que ele reivindicou não somente a
autoridade absoluta sobre o corpo dela, mas que ele dominou inteiramente a vontade
dela. O que pode ter começado para a mulher como submissão a um homem
particular por “amor” a ele – e o que estava, nesse sentido, congruente com sua
própria integridade tal como ela poderia reconhecê-la – deve terminar na
aniquilação dessa mesma reivindicação à individualidade. A individualidade da posse
– “Eu sou a pessoa que possui” – é reivindicada pelo homem; mas nada deve ser
deixado para a mulher ou na mulher no que ela poderia basear qualquer
reivindicação à dignidade pessoal, mesmo a dignidade miserável de crer, “Eu sou a
propriedade exclusiva do homem que me degrada.” Da mesma maneira, e pelas
mesmas razões, ela é forçada a assistir ao homem que a possui exercendo o sadismo
sexual dele contra outras mulheres. Isto a rouba desse grão interno de dignidade que
vem da crença, “Eu sou a única,” ou “Eu sou percebida e minha identidade singular é
verificada quando ele medegrada,” ou “Eu sou distinta de outras mulheres porque
este homem me escolheu.”

A pornografia do sadismo masculino contém quase sempre uma visão idealizada, ou


irreal, do companheirismo masculino. O conceito masculino utópico que é a
premissa da pornografia é este – já que a masculinidade é estabelecida e confirmada
contra os corpos brutalizados das mulheres, os homens não precisam agredir uns aos
outros; em outras palavras, as mulheres absorvem a agressão masculina de modo que
os homens fiquem a salvo disto. Cada homem, conhecendo seu próprio impulso
profundamente enraizado a selvageria, pressupõe este mesmo impulso em outros
homens e procura proteger-se dele. Os rituais de sadismo masculino contra os corpos
das mulheres são os meios pelos quais a agressão masculina é socializada de modo
que um homem possa associar-se com outros homens sem o perigo iminente de
agressão masculina contra sua própria pessoa. O projeto erótico comum de destruir
mulheres torna possível aos homens se unirem em uma irmandade; este projeto é a
única base firme e confiável para cooperação entre machos e todo laço masculino é
baseado nisto.

Esta visão idealizada do companheirismo masculino expõe o caráter essencialmente


homossexual da sociedade masculina. Os homens usam os corpos das mulheres para
formar alianças ou ligações uns com os outros. Os homens usam os corpos das
mulheres para alcançar o poder reconhecível que certificará a identidade masculina
aos olhos de outros homens. Os homens usam os corpos das mulheres para
permiti-los se engajarem em transações sociais civis e pacíficas uns com os outros.
Nós pensamos que nós vivemos em uma sociedade heterossexual porque a maioria
dos homens está fixada nas mulheres como objetos sexuais; mas, de fato, nós
vivemos em uma sociedade homossexual porque todas as transações críveis de poder,
autoridade, e autenticidade ocorrem entre homens; todas as transações baseadas em
equidade e individualidade ocorrem entre homens. Os homens são reais; portanto,
todo relacionamento real acontece entre homens; toda comunicação real acontece
entre homens; toda reciprocidade real acontece entre homens; toda mutualidade real
acontece entre homens. A heterossexualidade, que pode ser definida como o domínio
sexual dos homens sobre mulheres, é como o fruto do carvalho – dele cresce o
poderoso carvalho da sociedade homossexual masculina, uma sociedade de homens,
por homens, e para homens, uma sociedade na qual a positividade da comunidade
masculina é realizada através da negação da fêmea, através da aniquilação da carne e
da vontade das mulheres.

Na pornografia literária, que é uma destilação da vida como nós a conhecemos, as


mulheres são buracos escancarados, fendas fogosas, tubos de foda, e semelhantes. O
corpo feminino é considerado a constituir-se de três buracos vazios, todos os quais
foram expressamente projetados a serem preenchidos com positividade masculina
ereta.
A própria força-vital feminina é caracterizada como negativa: nós somos definidas
como inerentemente masoquistas; isto é, nós somos impulsionadas para a dor e o
abuso, para a autodestruição, para a aniquilação – e este impulso para nossa própria
negação é precisamente o que nos identifica como mulheres. Em outras palavras, nós
nascemos para que nós possamos ser destruídas. O masoquismo sexual efetiva a
negatividade feminina, exatamente como o sadismo sexual efetiva a positividade
masculina. A feminilidade erótica de uma mulher é medida pelo grau a que ela
precisa ser ferida, precisa ser possuída, precisa ser abusada, precisa se submeter,
precisa ser açoitada, precisa ser humilhada, precisa ser degradada. Qualquer mulher
que resistir a expressar estas assim-chamadas necessidades, ou qualquer mulher que
se rebela contra os valores inerentes nestas necessidades, ou qualquer mulher que se
recusa a aprovar ou participar em sua própria destruição é caracterizada como uma
desviante, uma que nega sua feminilidade, uma megera, uma cadela, etc.
Tipicamente, tais desviantes são trazidas de volta para o rebanho feminino pelo
estupro, estupro em grupo, ou alguma forma de sujeição. A teoria é que uma vez que
tais mulheres tenham provado a doçura intoxicante da submissão elas irão, como
lemingues, correr para sua própria destruição.

O amor romântico, tanto na pornografia como na vida, é a celebração mítica da


negação feminina. Para uma mulher, o amor é definido como sua boa vontade para
submeter-se a sua própria aniquilação. Como diz o ditado, as mulheres são feitas
para o amor – isto é, submissão. O amor, ou a submissão, deve ser a substância e o
propósito da vida de uma mulher. Para a fêmea, a capacidade de amar é exatamente
sinônima à capacidade de suportar o abuso e o apetite por ele. Para a mulher, a prova
de amor é que ela está disposta a ser destruída por aquele que ela ama, por causa
dele. Para a mulher, o amor é sempre auto-sacrifício, o sacrifício de sua identidade,
vontade, e integridade corporal, a fim de satisfazer e redimir a masculinidade de seu
amado.

Na pornografia, nós vemos o amor feminino cru, seu esqueleto erótico exposto; nós
quase podemos tocar nos ossos de nosso cadáver. O amor é o impulso erótico
masoquista; o amor é a paixão frenética que compele uma mulher a se submeter a
uma vida degradante de escravidão; o amor é o devorador impulso sexual em direção
à degradação e ao abuso. A mulher dá a si mesma literalmente ao homem; ele
literalmente a toma e a possui.

A transação principal que expressa esta submissão feminina e esta possessão


masculina, na pornografia assim como na vida, é o ato de foder. Foder é a expressão
física básica da positividade masculina e da negatividade feminina. O relacionamento
do sadista ao masoquista não se origina no ato de foder; mais propriamente, é
expresso e renovado nele.

Para o macho, foder é um ato compulsivo, na pornografia e na vida real. Mas na vida,
e não na pornografia, é um ato perigoso, cheio de temor. Aquele orgão santificado da
positividade masculina, o falo, penetra no vácuo feminino. Durante a penetração,
todo o ser do macho é o seu pênis – ele e sua vontade de dominação são inteiramente
um; o pênis ereto é a sua identidade; toda sensação está localizada no pênis e de fato
o resto de seu corpo é insensível, morto. Durante a penetração, o verdadeiro ser do
macho é uma vez arriscado e afirmado. O vácuo da fêmea o engolirá, o consumirá,
tragará e destruirá seu pênis, seu eu inteiro? O vácuo da fêmea poluirá sua
positividade viril com sua negatividade nociva? O vácuo da fêmea contaminará sua
tênue masculinidade com a toxicidade esmagadora de sua feminilidade? Ou ele
emergirá do vazio apavorante do buraco escancarado anatômico da fêmea intacto –
sua positividade reificada porque, mesmo quando dentro dela, ele conseguiu manter
a polaridade do macho e da fêmea mantendo a distinção e a integridade de sua vara
dura como aço; sua masculinidade se afirmou porque ele não se fundiu de fato com
ela e deste modo não perdendo a si mesmo, ele não se dissolveu nela, ele não se
tornou ela nem se tornou como ela, ele não foi englobado por ela.

Esta viagem perigosa no vácuo feminino deve ser empreendida muitas vezes,
compulsivamente, porque a masculinidade não é nada por si mesma; por si mesma
ela não existe; ela tem realidade somente sobre e contra, ou em contraste, à
negatividade feminina. A masculinidade somente pode ser experimentada,
alcançada, reconhecida, e personificada em oposição à feminilidade. Quando os
homens colocam sexo, violência, e morte como verdades eróticas elementares, eles
pretendem isto – que sexo, ou foder, é o ato que os possibilita experimentar sua
própria realidade, ou identidade, ou masculinidade o mais concretamente; que
violência, ou sadismo, é o meio pelo qual eles efetivam essa realidade, ou identidade,
ou masculinidade; e que a morte, ou a negação, ou o nada, ou a contaminação pela
fêmea é o que eles arriscam cada vez que penetram no que eles imaginam ser o vazio
do buraco da fêmea.

O que então está atrás da reivindicação que foder é agradável para o macho? Como
pode um ato tão saturado com o temor da perda de si mesmo, da perda do pênis, ser
agradável? Como pode um ato tão obsessivo, tão repleto de ansiedade, ser
caracterizado como agradável?

Primeiramente, é necessário compreender que esta é precisamente a dimensão da


fantasia da pornografia. Nos arredores rarefeitos da pornografia, o temor masculino
é extirpado do ato de foder, censurado, editado. O sadismo sexual dos machos
reproduzido tão vividamente na pornografia é real; as mulheres experimentam-no
diariamente. A dominação masculina contra a carne feminina é real; as mulheres
experimentam-na diariamente. As práticas brutais as quais os corpos das mulheres
são forçados na pornografia são reais; as mulheres sofrem estes abusos em uma
escala global, dia após dia, ano após ano, geração após geração. O que não é real, o
que é fantasia, é a reivindicação masculina no coração da pornografia que foder é
para eles uma experiência extática, o prazer final, uma benção pura, um ato natural e
fácil em que não há nenhum terror, nenhum temor, nenhum medo. Nada na
realidade documenta esta reivindicação. Se nós examinarmos a chacina das nove
milhões de bruxas na Europa que foi abastecida pelo temor masculino da carnalidade
feminina, ou examinarmos o fenômeno da violação que expõe a foda como um ato de
hostilidade evidente contra a inimiga fêmea, ou investigarmos a impotência que é a
incapacidade involuntária de entrar no vácuo feminino, ou rastrearmos o mito da
vagina dentata (a vagina cheia de dentes) que é derivado de um medo paralisante da
genitália feminina, ou isolarmos os tabus menstruais como uma expressão do terror
masculino, nós descobrimos que na vida real o macho está obcecado por seu medo da
fêmea, e que este medo é mais vívido a ele no ato de foder.

Em segundo, é necessário compreender que a pornografia é um tipo de propaganda


projetada para convencer o macho que ele não precisa estar receoso, que ele não está
com medo; para sustentá-lo em pé de modo que ele possa foder; para convencê-lo
que foder é uma alegria pura; para obscurecer para ele a realidade de seu próprio
terror fornecendo uma fantasia pornográfica de prazer que ele pode aprender como
um credo e do qual ele pode conduzir-se para dominar mulheres como um homem
real deve. Nós podemos dizer que na pornografia os chicotes, as correntes, e a outra
parafernália de brutalidade são cobertores de segurança que dão a mentira à
reivindicação pornográfica que foder emerge da masculinidade como a luz do sol.
Mas na vida, mesmo o abuso sistematizado e a subjugação global das mulheres aos
homens não são suficientes para enfrentar o terror inerente para o macho no ato de
foder.

Em terceiro lugar, é necessário compreender que o que é experimentado pelo macho


como prazer autêntico é a afirmação de sua própria identidade como um macho.
Cada vez que ele sobrevive ao perigo de entrar no vácuo feminino, sua masculinidade
é reificada. Ele provou que ele não é ela e que ele é como outros eles. Nenhum prazer
na terra iguala-se ao prazer de ter-se provado real, positivo e não negativo, um
homem e não uma mulher, um membro idôneo do grupo que possui o domínio sobre
todas as outras coisas vivas.

Em quarto, é necessário compreender que sob o sistema sexual da positividade


masculina e da negatividade feminina, não há literalmente nada no ato de foder,
exceto fricção clitoral acidental, que reconhece ou efetiva o erotismo real da fêmea,
mesmo tal como ele tem sobrevivido sob condições escravas. Dentro dos limites do
sistema masculino-positivo, este erotismo não existe. Afinal, uma negativa é uma
negativa. Foder é inteiramente um ato masculino projetado para afirmar a realidade
e o poder do falo, da masculinidade. Para mulheres, o prazer de ser fodida é o prazer
masoquista de experimentar a auto-negação. Sob o sistema masculino-positivo, o
prazer masoquista da auto-negação é mitificado e mistificado a fim de compelir
mulheres a acreditarmos que nós experimentamos realização na abnegação, prazer
na dor, validação no auto-sacrifício, feminilidade na submissão à masculinidade.
Treinadas desde o nascimento para conformar-nos às exigências desta visão mundial
peculiar, punidas severamente quando nós não aprendemos a submissão masoquista
suficientemente, encapsuladas inteiramente dentro dos limites do sistema
masculino-positivo, poucas mulheres experimentam alguma vez a si mesmas como
reais por si mesmas. Em vez disso, as mulheres são reais a si mesmas ao grau que
elas identificam-se com e unem elas mesmas à positividade dos machos. Em ser
fodida, uma mulher une-se a alguém que é real para si mesmo e experimenta de
modo vicário a realidade, tal como ela é, através dele; em ser fodida, uma mulher
experimenta o prazer masoquista de sua própria negação que é articulada
perversamente como a realização de sua feminilidade.

Agora, eu quero fazer uma distinção crucial – a distinção entre a verdade e a


realidade. Para seres humanos, a realidade é social; a realidade é o que quer que as
pessoas em um dado momento acreditam que ela seja. Em dizer isso, eu não
pretendo sugerir que a realidade seja caprichosa ou acidental. Em minha visão, a
realidade é sempre uma função da política em geral e especialmente da política
sexual – isto é, ela serve ao poderoso fortificando e justificando seu direito à
dominação sobre o sem poder. A realidade é tudo o que as premissas sociais e as
instituições culturais são construídas sobre. A realidade é também a violação, o
açoite, a foda, a histerectomia, a clitoridectomia, a mastectomia, o enfaixamento de
pés, o sapato de salto alto, o espartilho, a maquiagem, o véu, o ataque e a agressão, a
degradação e a mutilação em suas manifestações concretas. A realidade é forçada por
aqueles a quem ela serve de modo que ela parece ser auto-evidente. A realidade é
auto-perpetuada, visto que as instituições culturais e sociais construídas em suas
premissas também personificam e reforçam essas premissas. Literatura, religião,
psicologia, educação, medicina, a ciência da biologia como compreendida
atualmente, as ciências sociais, a família nuclear, o Estado-nação, a polícia, os
exércitos, e o direito civil – todos personificam a realidade dada e a reforçam em nós.
A realidade dada é, naturalmente, que há dois sexos, macho e fêmea; que estes dois
sexos são opostos um ao outro, polares; que o macho é inerentemente positivo e a
fêmea é inerentemente negativa; e que os pólos positivo e negativo da existência
humana se unem naturalmente em um todo harmonioso.

A verdade, por outro lado, não é de perto tão acessível como a realidade. Em minha
visão, a verdade é absoluta uma vez que ela existe e pode ser encontrada. O rádio, por
exemplo, sempre existiu; sempre foi verdade que o radio existia; mas o rádio não
figurou na noção humana de realidade até que Marie e Pierre Curie o isolaram.
Quando o fizeram, a noção humana de realidade teve que mudar de maneiras
fundamentais para acomodar a verdade do rádio. Similarmente, a terra sempre foi
uma esfera; isto sempre foi verdade; mas até Colombo navegar ao oeste para
encontrar o Leste, isto não era real. Nós podemos dizer que a verdade existe, e que é
o projeto humano encontrá-la de modo que a realidade possa ser baseada nela.

Eu fiz esta distinção entre a verdade e a realidade a fim de permitir-me dizer algo
muito simples: que embora o sistema de polaridade de gênero seja real, ele não é
verdadeiro. Não é verdade que há dois sexos que são distintos e opostos, que são
polares, que se unem naturalmente e auto-evidentemente em um todo harmonioso.
Não é verdade que o macho personifica qualidades e potencialidades humanas
positivas e neutras em contraste à fêmea que é fêmea, de acordo com Aristóteles e
toda a cultura masculina, “em virtude de certa falta de qualidades.” E uma vez que
nós não aceitamos a noção que os homens são positivos e as mulheres são negativas,
nós estamos rejeitamos essencialmente a noção que há homens e mulheres sob
qualquer condição. Em outras palavras, o sistema baseado neste modelo polar da
existência é absolutamente real; mas o modelo ele próprio não é verdadeiro. Nós
estamos vivendo em cárcere dentro de uma ilusão perniciosa, uma ilusão na qual
toda a realidade como nós a conhecemos é predicada. Em minha visão, aquelas de
nós que somos mulheres dentro deste sistema de realidade nunca estaremos livres
até que a ilusão da polaridade sexual esteja destruída e até que o sistema de realidade
baseado nela esteja erradicado inteiramente da sociedade humana e da memória
humana. Esta é a noção da transformação cultural no coração do feminismo. Esta é a
possibilidade revolucionária inerente na luta feminista.

Assim como eu vejo, nossa tarefa revolucionária é destruir a identidade fálica nos
homens e a não identidade masoquista nas mulheres – isto é, destruir as realidades
polares de homens e mulheres como nós as conhecemos agora de modo que esta
divisão da carne humana em dois campos – um campo armado e o outro um campo
de concentração – já não seja possível. A identidade fálica é real e deve ser destruída.
O masoquismo feminino é real e deve ser destruído. As instituições culturais que
personificam e reforçam essas aberrações entrelaçadas – por exemplo, a lei, a arte, a
religião, os estados-nações, a família, a tribo, ou comuna baseada no direito do pai –
estas instituições são reais e elas devem ser destruídas. Se elas não forem, nós
estaremos consignadas como mulheres à inferioridade e subjugação perpétuas.

Eu acredito que a liberdade para as mulheres deve começar no repúdio ao nosso


próprio masoquismo. Eu acredito que nós devemos destruir em nós mesmas o
impulso ao masoquismo em suas raízes sexuais. Eu acredito que nós devemos
estabelecer nossa própria autenticidade, individualmente e entre nós mesmas –
experimentá-la, criar a partir dela, e também privar os homens de ocasiões por
reificarem a mentira da masculinidade contra nós. Eu acredito que nos livrar do
nosso próprio masoquismo profundamente entranhado, que toma tantas formas
torturadas, é a prioridade fundamental; é o primeiro golpe mortal que nós podemos
desferir contra o domínio masculino sistematizado. De fato, quando nós
conseguimos extirpar o masoquismo de nossas próprias personalidades e
constituições, nós estaremos cortando a linha de vida masculina ao poder sobre e
contra nós, ao valor masculino em contraste à degradação feminina, à identidade
masculina colocada sobre a negatividade feminina brutalmente forçada – nós
estaremos cortando a linha de vida masculina para a própria masculinidade.
Somente quando a masculinidade estiver morta – e ela perecerá quando a
feminilidade devastada não mais sustentá-la – somente então nós saberemos o que é
liberdade.

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