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Rego Cabral
Jamba
A
Orlando Vitorino
Meu perturbante Amigo
Tenho o mais profundo respeito pela sua
inteligência. As pessoas muito inteligentes
perturbam-me. Sinto por elas algo daquilo que os
passaritos sentem pelas najas. Desculpe. Mas é
assim ... Não passo de uma ave ... De uma ave sem
penas!... - Sou um bicho muito estranho ...
Permita-me que o plagie quase na íntegra, e lhe
acrescente dois sublinhados. Não seria capaz de me
exprimir pragmaticamente sem a muleta de tais
recursos. E mesmo assim ... Adiante:
Muitas vezes me acontece fugir da atenção para as
realidades da imediata existência e mergulhar
bruscamente no recolhimento próprio de toda a
meditação e ter de me interrogar se tudo aquilo em
que a filosofia nos abisma não constitui um lúdica e
irreal devaneio em que os homens andam
inutilmente ocupados e consumidos.
E perdoe agora que o transcreva e abuse dos
farolins do sublinhado:
- Logo, porém, refletindo sobre a interrogação, ela se
esvanece, pois isso que por um momento
representou como lúdico devaneio- -é,
precisamente, o que só pode manifestar-se no signo
da necessidade, que é o que está ausente das
representações do ir vivendo, das imagens do ir
agindo, dos símbolos do ir sonhando.-
E deixe-me agora fazer pior: que misture: A filosofia
será, melhor, é uma necessidade. concorda que é ...
E se não concordasse ... continuaria a ser. Mas..., por
via disso, deixa de ser inútil? ... (Inútil no sentido
daquela sua minha inutilidade.) Não será só uma
necessidade? ... Só, mesmo só? ...
A filosofia nem tem objeto... - Não! (dirá), -não
constitui a atividade de um sujeito dirigida a um
objeto que lhe é alheio-, -não terá, pois, objeto no
mesmo sentido em que não suporta um abjeto-, e
até constituiria a negação de si mesma se se
encerrasse nos limites de uma atividade separada.-
Concordo de novo, ai de mim! Não obstante, onde?,
a não inutilidade? ... 0 Todo é inacessível; e o Nada
(fátuo absurdo) - absoluto quimera também ...
Valha-me Deus! Vejo uma crença, inelutável: os
olhos da naia! que, afinal, está a dormir de boca
escancarada ... e me deixa fugir incólume desta vez
ainda ...
A filosofia (replicará) -esta para além da crença-;
onde o conhecimento da realidade tem forma de
uma crença, é aí que também reside dúvida-.
Lá estão os olhos da cobra ... Lembro-me das
experiências anteriores ... Onde? ' dúvida maior?
... A filosofia mesmo filosofia, o pensamento do
pensamento, é dúvida da própria dúvida e do
pensamento também ... Parece-me uma
supercrença!! ... Mas, afinal, como não me sujeita - a
naia dorme... - continuo livre..., e digo a sorrir: não,
é uma subcrença. Porém..., não acredito.
Não sou capaz de romper este ciclo ... Lá está a
cobra, outra vez! ... Não, não, não! ... Não sou livre:
lá vou eu para as suas fauces:
Terrível, pobre filosofia! ... Fé e desfé... que levas a
nade... além daquela experiência Inútil. Olhos de
nale!
Não se ofenda nem desdenhe, Orlando Vitorino.
Você nunca vê a naia? ... Se calhar ri-se dela ... Onde
eu plagiei consumidos, você minimiza com
entretido...
Sou uma triste ave sem penas, incapaz de voar para
Deus. Que n'Ele não crê... mal Ele deixa de ser
Dúvida: Uma nela dormente colossal! ... tão grande!
... que nem posso ter consciência de que é, De que
não dou fé ... De que ...
Valha-me Deus! Contradisse-me mais de três vezes.
Não me chamo Pedro... - Onde?, lugar para a
dúvida de si em si, ao menos? ... Gõdel, Gõdel,
Gõdel! ...
Neste livro Orlando Vitorino, só há aves como eu.
Seja compreensivo! Não podem voar ... Vivem
também agrilhoados ao ciclo irrompível. Não têm
penas. Quem dera ter penas!..., ser águia! ... - Ai
dana
Veio o que velo... O que se vê..., que é visto pelos
mais, visto por mim, visto pelos olhos.
E veio o que não velo ... Que velo sem olhos ... mos e
há.
Quero ver mais!
0 que penumbra do não ver ao ver, do ver ao não
ver, para ser ... que ... mas não há.
Tundava-la, 10 de Maio de 1970.
Corre corre, meu carro de pau pináculo das minhas
mãos, prodígio do meu saber ...
Aos tropeções, ladeira abaixo, carnes ao vento! ... e a
minha alma em festa, com asas de luz, a correr, a
correr, a correr ...
CORRE CORRE, MEU CARRO DE PAU ...
0 -tê-éme-nove- - (TM-9) - um motorscraper gigante,
acavalou a torva norte de recepção da imponente
lavaria das minas da Jamba e desbarrigou a carga
em menos de dez segundos. Nada de catedral ...
Apesar de se tratar de um minério terroso de
aluvião, por vezes muito barrento (hematites
secundárias), enquanto não estivesse encharcado
laborava-se bem. Depois ... era quase uma argila
magra - ou saibro gordo com grânulos lamelares: -
pequenas plaquetas com poucos milímetros de
espessura. Dir-se-ia pois que os motorscrapers (ou
secreipares, se me dão licença) andavam
empenhados numa terraplanagem comum: num
desaterro tipiquíssimo a favor da lavaria. - A
atulhar o -mastodonte- com terra vermelha!
Ainda o TM-9 mal tinha esvurmado, já ia de volta,
roncando a 30 quilômetros por hora, rumo ao bloco-
215, de onde se estava a extrair minério
excepcionalmente puro e rico em èfié (ferro na gíria
dos clãs), para compensar deficiências do bloco-104,
onde o teor não satisfazia e o fósforo era excessivo.
(Um -bloco- era apenas uma das muitas células em
que o jazigo fora tipograficamente retalhado, para
efeitos de estudo e exploração - (lavra - no dialeto
mineiro). Isto é, cada uma das malhas de uma
quadrícula arbitrária de 100 por 100 metros de lado,
no centro da qual se cavara um pequeno poço para
amontar da espessura da camada ferrosa, sua
profundidade concomitantes características físicas,
químicas tecnológicas - jazigo além).
0 ritmo da exploração, naquela hora - e naqueles
dias - era de 4 carradas do bloco-104 contra 1 do
215, por cada 7 .... 8 minutos. Qualquer coisa para
além das 1500 toneladas por hora, ou 25 000 por dia
- e mais de oito milhões por ano. Isto, de minério
bruto! Minério tal qual Deus no-lo deu. Depois de
lavado, isto é, limpo de terra, cascalhos e mais
-porcarias-, sofria uma redução oscilando entre
menos de 30, até ligeiramente mais de 40 por cento:
- Passava sob jatos de água por uns crivos de vai e
vem muito sui generis, e por uma série de
-geringonças- arrevesadas, até ficar ao -gosto- de
cada cliente. Quer dizer: nos tamanhos e nas
constituições prescritas nos vários contratos de
venda. E tudo isto, claro está, sem ninguém lhe pôr
a mão.
(De resto, que diabo se pode hoje validamente fazer
à mão, além de obras de arte, vestidos de senhora e
colheres de pau? ... ) João Correia, o operador do
TM-9, olhou para o relógio e sorriu. Esperava que
aquela viagem fosse a última da sua jorna. Faltavam
12 minutos para as 5 da tarde: 2,5 minutos para ir, 1
para manobra e carga (visto o buldozer de apoio ao
carregamento estar folgado) e 3, ou pouco mais,
para o regresso. -Se o Ilídio já lá estiver em cima,
antes das 5 estou livre-, pensou, enquanto corria,
desenhando o caminho bem trilhado com nuvens de
poeira cor de fogo. Mal avistou o buldozer a
ruminar à espera dele, mediu o terreno com os
olhos, e num só golpe de volante alinhou 20 metros
à frente do monstro, de, lâmina em terra, pronto
para a carga. 0 aguardante bramiu e cresceu ...
Depois encostou: um baque no tardoz. Motores a
fundo .... desencosto .... e de caixa a transbordar, eis
o TM-9, outra vez aos galões ... carreando terra
vermelha há milênios esquecida, condenada a
refazer-se, depois de contrafeita e plasmada em
tratores, bisturis, armas, berços e charruas.
Quando subia de novo para a tremonha da
recepção, João Correia avistou Ilídio Soareso
camarada que o ia render. -Porreiro!-, exclamou em
voz alta. -Se o Freixo não demorar, quando ela bater
à porta já eu lá estou-, deduziu, em seqüência, de si
para si.
Fez a manobra de aproximação e descarregou. Em
seguida saiu da -entrega-, deu vez ao TM-12 (que
vinha do 104), arrumou 30 metros à frente, reduziu
o motor, freou..., e depois desceu.
- Hé! ... - baliu na direção do camarada, erguendo
um braço à laia de saudação.
- Hé ... -devolveu Ilídio Soares, avançando a passo
mole. - Caramba, parece que estás com pressa!
- Estou mesmo, pá. Inda bem que chegaste
adiantado. 0 Freixo disse que passava ali, por volta
das 5, e que me levava - e apontou para o lanço
imediatamente inferior da lavaria. - Convinha-me
estar lá em baixo o mais cedo possível.
- 0 Freixo?! ... Então ele não anda a tratar da
instalação dos quartos do hospital?
-Anda. Mas houve para aí uma avaria qualquer nas
separadoras; parece que um curto-circuito; o
eletricista de serviço, pelos vistos, ainda não mata
bem aquilo e não foi capaz de se bater com a
encrenca. Como tinham pressa, foram por -ele.
Parece que foi o Engenheiro quem o mandou
chamar! ... Como ele está muito calhado nas
separadoras ... É assim ...- e encolheu os ombros,
como a dar a entender que não havia outro remédio.
-Bem .... vou à vida. Até logo. -Até logo - respondeu
João Correia, fazendo meia volta, pronto para
descer. Não deu porém mais de três passos. Algo
lhe acudiu de repente e voltou-se:
- Ilídio!
0 outro parou:
-Que é?
- Já se sabe quem vai pra cama do Júlio Pinto?
- Parece que é um mestre-de-obras. Vem para
encarregado-geral. Disse-me o Rodrigues. Chama-se
Miranda. Qualquer coisa ... Miranda. Vamos a ver
como é ... Uma boa chatice! ...
- Pode ser que seja um tipo fixe... - animou Correia,
predisposto para o pior.
- Oxalá ... Fizeram um pequeno aceno e
prosseguiram, cada um vivendo para si.
Ilídio Soares repôs o M9 em serviço e João Correia
desceu para a passagem onde ficara de esperar pelo
amigo - o alentado e sempre bem disposto Freixo -
um eletricista que viera das minas de Cuima (uns
centos de quilômetros para norte) onde
principiaram as atividades industriais da empresa.
Freixo era um profissional muito competente,
apesar de relativamente novo. Ele, João Correia e
Ilídio- Soares constituíam um miniclã bastante
unido, de que fora clarim Júlio Pinto - um monitor
que se despedira na antevéspera. Isto é: findou o
contrato de um ano e não quis renová-lo. Preferiu a
falsa continuidade de um empreiteiro de estradas,
onde não ganharia mais e era preciso morar em
barracas provisórias, de obra em obra, mas - dizia
ele - o trabalho nunca findava e havia boas
gratificações no fim do ano para quem fizesse por
elas.
Júlio Pinto fora e era um manobrador insuperável.
Dizia-se que -brincava- com todas as máquinas.
Transformara-se por isso num monitor excepcional,
cuja substituição havia de ser muito difícil. Mas o
seu caso não diferia de muitos outros, em todos os
sectores da empresa, onde nevoava um bafo de
insatisfação, cujos males se traduziam em perdas
constantes de elementos qualificados e perturbações
de mil ordens - com ameaça direta à estabilidade, ao
futuro, à fé no empreendimento. E tudo, afinal,
devido à falsa honradez dos honorários
estratificados. Às remunerações com castal ... (Para
se ganhar mais que um dado tanto ... só noutra
função! ... - por melhor que se fosse naquela em que
se atingira o bom). E a agravar este quadro: nenhum
incentivo de prêmios, regalias apetecidas,
continuidade de emprego - e carência asfixiante de
comunicações rodoviárias dignas de tal nome, a
alongar desmoralizadoramente as lonjuras dos
centros urbanos mais desenvolvidos, e, sobretudo,
do litoral.
João Correia e os amigos andavam preocupados
com a identidade e, principalmente, o modo de ser
do novo companheiro de habitação. Embora se
tratasse de um problema não-básico
(empresarialmente nulo 'ou secundário) para eles
era fundamental, pois não é fácil ajustar criaturas
humanas sem afinidades miscíveis a um recinto
comum durante períodos de vida significantes.
Ansiavam, por isso, saber do sucessor de Júlio Pinto
- como companheiro de camarata. 0 que ele fizesse
ou valesse profissionalmente, para eles não tinha
grande significado. 0 que lhes interessava era o que
ele fosse ou pudesse vir a ser como companheiro.
Como camarada. Como amigo.
Mercê de um temperamento diferente (porventura
dos seus antecedentes também) João Correia não
media como Júlio Pinto. Dava-se bem na Jamba e
acreditava no futuro das minas, sobretudo após ter
ouvido, semanas atrás, dois engenheiros novatos
dizer que dali a cem anos ainda se havia de extrair
minérios dos jazigos de Cassinga. Para ele, -aquilo-
não era, pois, como tantos balofavam, -negócio para
meia dúzia de anos apenas, ou pouco mais-. Era
-coisa- para sempre! Portanto ... ia ficar. Mas, ao
contrário da maior parte, não estava interessado
numa habitação definitiva da Companhia, e muito
menos em fazer por si, como tantos outros, uma
casa dentro dos planos de construção da empresa
-aproveitando as facilidades de fornecimento
gratuito dos materiais. Não. Pelo menos por ora,
isso não lhe quadrava. Tão-pouco porém havia -de
ficar muito mais tempo na camarata. Na aldeia
natal, na falda norte da Serra da Estrela, fora pastor
de ovelhas e agostara-se ao ar livre, ao isolamento, e
a dormir em choupanas, junto do gado. -Era melhor
que na camarata. Muito menos peado! Mais à feição!
--apesar de sem camas, nem móveis, nem balneário,
ou quem lhe tratasse da roupa e do mais! ...
Fizera a tropa e regressara à Metrópole; mas estava
desafeito: não se resignara e conseguiu voltar.
Sofrera, contudo, imenso! ... Em Luanda até fome
tivera. Arrependeu-se mil vezes. Depois de
sacrifícios e humilhações sem conta, adregara um
dia, graças a Deus!, ser admitido na Junta das
Estradas, como simples ajudante, e partira de novo
para o Norte com uma -brigada, de conservação-.
Começou então a treinar-se nas máquinas, e subiu.
Um pedido do abade para o presidente da Junta
permitiu-lhe fazer a -escola de tratores- -e hoje era
um homem. Viera depois para ali, onde ganhava
mais ... e tudo parecia seguro. Antes queria ajeitar-
se numa casa de pau-a-pique do lado de lá do
Cului, abaixo da Senzala ... Era o que lhe convinha.
Ficava independente. Se não fosse por vergonha até
já se teria mudado para uma palhota. Além disso, se
a Alzira quisesse juntar-se a mais ele ... estava
governado. Aquilo não era vida. Uma preta de cada
vez não tinha jeito. Bem ... de começo até gostara.
Mas começava a estar farto. E depois aquele cheiro
das unturas já lhe fazia nojo. A Alzira era diferente.
Já nem se lhe podia chamar uma preta! ... Sabia de
cozinha, de casa, da roupa ... Até se lhe afigurava
que sabia ler ...
0 pai educara-a por casas de engenheiros e tipos
assim... Esteve até uns dois para três anos como
criada de dentro dum guarda-livros-principal ...
Viera também de Cuima, como o Freixo. Pelos
vistos ... era viúva. Viúva dum mulato que morrera
há coisa dum ano, segundo dissera, num desmonte
de minério. Parece que da explosão dum tiro
retardado. Mas era uma mulher a sério: capaz de
ajudar um homem a fazer casa e trepar!
Olhou para o relógio e viu que já tinham decorrido
mais de dez minutos. Retomou o fio das cogitações:
Com o que forrava ... havia de comprar gado. Daqui
a um par de anos podia ter uma boa manada.
Quanto forrasse, quanto havia de meter em bois ...
Mais e mais cabeças, até fazer um -rebanho- maior
do que o das ovelhas que levava pra Serra! E eram
uns bons centos delas! ... Mas tinham dono ... Ainda
chegara a ter umas cabras ... Aquilo não era governo
de vida. Agora, sim!, ia ser gente. E então se o
negócio das minas era mesmo coisa de dura ... até
havia de ter uma fazenda! Coisa que se visse! ...
Onde coubessem todas as quintas do conselho! ...
- Hé! ... 0 João! -chamou Freixo do outro lado, com a
porta da carrinha toda aberta, farto já de lhe fazer
sinais.
Apesar de voltado para o amigo, João Correia não o
via.
- João! ... 0 João Correia! -insistiu o eletricista, cheio
de pressa, batendo na porta, disposto a abalar
sozinho.
- EM Espera aí! ... - gritou Correia aflito, acordando
e correndo para a viatura.
- Estavas a dormir? Vamos! ... Passam vinte das
cinco ... Deixei a corrente desligada, lá em baixo, e
daqui por uma hora já mal se vê ... Para onde
estavas a olhar? Fartei-me de te fazer sinais ...
- Pra nenhures ... Estava a pensar cá numas coisas ...
Demoráste-te! ? ... Houve mais alguma encrenca?
-Aquilo estava feio! ... Mas ficou bom. Pra próxima
o Almeida já sabe como é; ah, ah, ah ...- e riu, no seu
rir sem-jeito, muito característico.
Foram até ao fundo dos parques e junto à estação de
carregamento mecânico dos vagões enfiaram para a
vila.
-Sempre arranjaste lavadeira? -quis saber o
eletricista.
- 0 que há de melhor! Tanto pra lavar, como
engomar, e mesmo coser! Ficou de ir lá hoje. Sempre
queres que lhe dê a tua roupa?
- A minha e a do Ilídio. Ele não te disse? Também
quer mudar. A que tem, diz que dá cabo das
camisas. Dizes que é uma branca?
- É. Quer dizer ... é como se fosse. Mas uma branca
esmerada! Costura e tudo! Fez umas calças ao
Filinto que são um luxo!
-Ao Filinto?! ... Quem é o Filinto? -Aquele tipo
russo, com quem me viste no domingo passado.
Trabalha no açude. É o mestre daquilo do ferro. Um
tipo fixe. Mora do lado de lá do rio. Costumamos
jogar à bisca no tasco da outra banda.
- No tasco!? Ah, ah, ah ... Aquilo é lá um tasco !
Vende vinho e mistelas à sucapa! Não há-de tardar
que o Comandante Serrão lhe limpe o sebo ...
Bem..., aquilo não é um tascol A gente chama-lhe
assim .... mas é uma casa particular! Um sítio onde
fazem uns petiscos e a gente se ajunta. Mas olha que
ela é que nos faz favor! E não entra lá quem quer! ...
Tem uns garrafões de reserva e dispensa-nos uns
copos ... Só nos faz jeito. E olha que não leva muito
mais do que a cantina!
-Mesmo descontando a água? -Ela pouca lhe põe ...
Lá nisso é a BaIbina séria! ... E até no mais! Ela no
fim de contas só tem um homem ...
- Ah, ah, ah ... Ela pouca lhe põe! ... Sempre me
saíste um ponto! João, João, João! Aí anda coisa! ...
Foi lá que tu arranjaste a lavadeira que fez as calças
ao Filinto?
- Não! Essa não vai lá. É uma mulher séria! É viúva.
Andam mais de quantos atrás dela, e olha que não
liga meia a nenhum!
-Nem a ti, meu maráu? -insinuou Freixo com ar
brejeiro.
- Já te disse que é uma mulher séria! - repontou João
Correia abespinhado, encarando o amigo com
dureza.
- Está bem, pá. Não vale a pena zangares-te. Se ela é
séria, tanto melhor. 0 que me interessa é que trate
bem da roupa! Que não me dê cabo das camisas,
sobretudo ... E que lhes dê os pontos que elas
precisarem, como tu dizes. – Vais ver. É por isso que
leva mais caro. Mas a roupa, por as mãos dela, dura
dois dobros! E olha que não aceita avios dum
qualquer. Ou que é que tu pensas? ... Eu é que estive
a queixar-me do que nos tem sucedido, e vai daí
perguntei-lhe se quando tivesse folgas não se
importava de ficar com a nossa ... Ela disse-me que
no fim do mês talvez pudesse ... Logo que se fossem
embora aqueles tipos do empreiteiro do açude, que
vieram só por seis meses. Ontem foram dois.
Amanhã vão os outros. São uns cinco ou seis. É a
altura! ... Se não quiseres, pra ela vale o mesmo.
Freguesia não lhe falta ...
-Quero, pá! Já te disse que sim. Tanto mais que
trago a roupa toda a pedir agulhas e botões.
Calaram-se e foram rolando em silêncio. Chegados
ao hospital, Freixo afrouxou e despediu assim o
colega:
- Bem ... agora tens de ir a pé. Tenho de acabar isto
enquanto não se faz noite... -e apontou para o topo
norte do edifício, pensando nos quartos
hospitalares. -Tem paciência. Chegam amanhã os
Administradores ... Tem de estar tudo a ponto ... .
- Está bem. Daqui lá é um pulo. -Fixe. Então até
logo.
Até logo. Freixo bateu a porta da carrinha e enfiou
pelo -banco-. João Correia não olhou sequer para
trás: abriu o passo e desceu para a camarata - uns
centos largos de metros mais à frente -procurando
com os olhos o vulto da Alzira. Ela dissera que tinha
de ir à cantina e que depois passava pelo
apartamento: -Das cinco e meia para as seis passo
por lá e trago a roupa-. Eram cinco e trinta e oito ...
Mal avistou. o alpendre que protegia as entradas,
sossegou. -Inda não veio-, concluiu com satisfação.
-Hoje vou falar-lhe de vez. Ela- já percebeu ... Pode
ser até ... Como não está mais ninguém ... Que
diabo!, fechávamos a porta ... Mas se ela não
quiser..., não senhor! Será para outra vez.
0 ponto é a gente chegar a acordo ... E chegando a
acordo ... Que ela sempre é uma mulher! -Alzira!,
isto é pra sério! Se a gente se der bem até nos
podemos casar! 0 ponto é a gente dar-se bem! ... Ou
ter filhos ... Se tivermos filhos tem de ser! ... - É uma
sorte não lhe ter vingado nenhum, dos dois que teve
do outro. Era uma chatice ... Até talvez nem a
quisesse ... Mas era uma pena! Aquilo é que é uma
mulher! Aviada! ... É mesmo branca! Mas uma
branca das boas! Trabalhadeira! ... -
Meteu a chave na porta e entrou. As trouxas da
roupa dos camaradas jaziam sobre as camas de cada
um. Fez a dele no mesmo estilo e dispô-Ia como as
mais: a meio do leito - também. Segundos depois,
contudo, engodado por esperanças mais risonhas,
pegou nela outra vez e depô-la no chão, junto à
parede onde abria a porta para a casa-de-banho.
Mediu em seguida o quarto de ponta a ponta. E
parecendo-lhe que algo nele não estaria lá muito
bem, foi-se às outras trouxas e arrumou-as a par da
sua. Deu uns passos atrás e à frente ... e decidiu
tomar uma ducha. Abriu o armário que lhe
pertencia, serviu-se de roupa lavada, e segundos
depois estava debaixo do chuveiro. Cinco, seis
minutos mais tarde era outro. Fresco e limpo,
decidiu ficar em pijama -indumentária para ele
ainda com -ar- e -cheiro- de luxo. Estirou-se depois
no leito. De repente, porém, ergueu-se e foi buscar
uma caixa alongada ao roupeiro. Abriu-a e tirou
dela uma flauta com toda a aparência de nova,
pondo-se a remirá-Ia embevecido. (Era a sua maior
extravagância de sempre). Sentou-se na beira da
cama, levou-a aos lábios, e deu início a uma canção
pastoril. Via-se que não estava calhado com o
-brinquedo-: enganava-se a par e passo; não extraía
do instrumento os efeitos que desejava: -aquela
-maravilha- reluzente não obedecia às suas técnicas.
Repetiu no entanto a balada ..., mas continuou
insatisfeito. Pousou então a flauta e foi buscar outra
muito rude; velha; obra porventura das suas
próprias mãos, esmurrada até, e com aspecto de
muito uso. Sentou-se de novo e repetiu a melodia.
Era uma ária de amor, dulcíssima, amargurada, em
queixumes, sugerindo verdes sem fim, céu distante,
ribeiros cristalinos ... e uma brisa mansa afagando
quebradas e planuras. Apesar da sua rusticidade, o
instrumento possuía um timbre admirável, duma
frescura cortante -e ele tocava com um sentido
profundo, de todo inesperado. Repetiu a canção e
depois derivou para um silvar aberto, repleto de
alegria. Um sopro de alvorada: o milagre da luz! ...,
a benção do ser! .. . -a força da própria vida: lutas,
frêmitos ..., amor!
Alguém batia à porta pela terceira vez. João Correia,
porém, não ouvia. Esquecera-se da Alzira, da roupa,
dos bois, da fazenda que havia de possuir ... Mas o
bater cresceu e desterrou-o de novo para o -reino
dos mortais-. Mal reentrou em si desfez-se da flauta
e correu para a entrada -o coração em alvoroço, a
alma em nova festa!
Uma rapariga dos seus dezoito anos aguardava no
patamar: esbelta - preta-fula! - ataviada e vestida
com o esmero de uma costureirinha lisboeta (um ar
doméstico pelo todo, e um capricho, um sorriso a
rescender ... ) e aquela graça, aquela beleza muito
própria que só -algumas pretas exaltam -e
impressiona européias e asiáticas.
-Custou! ...
- Desculpe ... Que quer?... - inquiriu João Correia
atarantado!
- A roupa ... - Havia mofa na sua voz; quase riso, no
olhar da rapariga.
- A roupa?! ...
- Sim! ... Ou mudou de idéias? -Mas... Como... Foi a
Alzira que ... ? -Foi. Pediu-me que passasse por cá e
lha levasse. A sua e a dos seus colegas. Já a tem à
feição?
-Mas a Alzira não vem? ...
- Não. Já lhe disse que me pediu para vir na vez
dela.
-Bem ... Entre, faça favor. A rapariga avançou dois
ou três passos e ele foi buscar as trouxas -que o
esperavam no outro extremo do apartamento,
irônicas, juntinhas, deitadas lado a lado,
humilhadas no chão.
- Pronto ...
- Está marcada?
- Está. -Fez os roles?
- Não. Isto é ... eu não fiz. Não sei se os outros ...
-Então é melhor fazer. Tem papel? -Tenho -e
encaminhou-se para o armário-roupeiro donde
retirara as flautas, que dormiam esquecidas,
juntinhas também, na cama onde ele sonhara ver a
Alzira naquela tarde.
Não levou muito a encontrar o que buscava: um
bloco de papel de carta de formato normal, próprio
para avião. Parecia intacto. Aproximou-se de novo
da rapariga e ficou a olhar para ela, que nunca
deixara de sorrir. Como ele não se desatasse,
baixou-se, pegou nas trouxas e depô-las em cima,da
cama de Freixo, logo à entrada. Em seguida abriu
uma delas, apartou as várias peças, e depois
interrogou:
-Esta de quem é? -Do Ilídio. -Tome nota: 4 camisas,
4 cuecas ... -Espere! Não tenho com que escrever! –e
correu de novo para o armário, regressando com
uma caneta de tinta permanente. Sentou-se na cama
a seguir, e apoiando o bloco na mesinha de
cabeceira, voltado para a rapariga, foi espremendo
na sua caligrafia trôpega, de mal digerida instrução
primária, aquilo que ela lhe foi ditando.
Embora a Alzira não lhe saísse do pensamento e as
dificuldades da redação exigissem dele enorme
esforço -visto só na tropa haver consolidado a arte
de figurar a palavra em símbolos gráficos - não
pôde impedir-se de ir admirando a desenvoltura, a
beleza e a própria sedução da moça, que parecia
divertida com o embaraço dele.
Quando principiou a refazer as trouxas, perguntou-
lhe sem se interromper:
- Que músicas eram aquelas que estava a tocar na
flauta.
Foi como se lhe dessem uma alma nova. Sorriu, e
respondeu com o rosto já iluminado, ufano! - certo
de ter acendido o interesse dela, porventura a
própria admiração:
- Umas modas lá dos meus sítios.
- Modas?
- Sim. Cantigas.
- A primeira era muito bonita.
- Pois era... Quer dizer, é! Tem muita pausa ... A
duas vozes é um luxo!
Ela não disse mais nada. Prosseguiu na tarefa como
quem quer despachar-se quanto antes.
- Contava que a Alzira viesse... -adiantou ele, quase
a medo.
-Não pôde. -Precisava de lhe falar ... -Ficou de volta
da roupa daqueles homens que vão embora
amanhã. Mas diga-me o que é ... que eu digo-lhe.
- Bem ... É que eu... queria que ela me fizesse umas
calças como as que fez ao Filinto.
0 encarregado que trabalha no açude. Queria que
ela me tirasse as medidas ...
-Mas ela não sabe fazer calças -desiludiu a moça,
afirmando-se nele meio séria, como a procurar para
além das palavras o sentido exato das intenções.
- Ai isso sabe! Então eu não vi as que ela fez ao
Filinto?!
-Essas fi-las eu ...
- Fê-las você? Então ele não me disse que foi a
Alzira!?
- Não lhe teria dito que foi na Alzira? ... João Correia
ficou desbaratado: Como se, no auge de uma
refrega, lhe manietassem as próprias mãos:
- Talvez ... Não sei ... Mas parece-me que ele disse
que foi a Alzira ...
-A minha irmã não sabe fazer calças. Não sabe fazer
calças nem sabe talhar. Tem jeito e prática. Mas
falta-lhe o melhor... -e encarou-o como quem diz:
-Falta-lhe aquilo que eu tenho. A teoria!-
-Você é irmã dela? ...
-Sou. Mas se quer fazer as calças não é preciso tirar
medidas. Empreste-me umas que lhe estejam bem, e
pode ficar descansado que aquelas que eu lhe fizer
não hão-de ficar a dever ao modelo. Já tem pano?
-Não, ainda não tenho... Julguei que a sua irmã ...
-Não, a gente não tem panos. E como as trouxas
ficassem completas, foi à porta e gritou:
- Luzia! Uma preta ainda tribal, mas já com ares de
emancipação, aproximou-se da porta a correr.
-Pega naquela roupa e leva-a. Amanhã de manhã
distribúis uma trouxa dessas a cada mulher, de
modo a ficar tudo pronto antes do meio-dia.
Percebeste?
- Percebeu. -Olha que é serviço de pressa.
- Sim. Percebeu, menina. - E desandou com a roupa
à cabeça.
João Correia estava abismado. Perplexo. A Alzira,
afinal, era muito mais -branca- do que ele
imaginava! Encarou de novo a calceira e perguntou-
lhe com transparente respeito, e cômica, ingênua
admiração:
-Você é mesmo irmã da Alzira?!...
-Sou. Porquê? Então já não lhe disse que era.
Hesitou um bom par de segundos, e por fim
respondeu:
- É que não me lembro ... de a ter visto.
- Não me admira nada... - comentou a rapariga de
novo a sorrir, quase a mofar, encaminhando-se para
a porta.
-Não lhe admira nada, porquê? ... Parou e voltou-se.
E encarando-o bem de face, abriu de todo o sorriso e
esclareceu:
-Porque você só tem olhos pra minha irmã! E
desandou pela varanda fora, a rir e a mofar.
Sonhar é fácil ... quando o peito é mar, A alma é
vento, A mão é vela, A amor é onda! ...
Mão altaneira! ... que trabalha, que fere, que rouba,
que mata ... Sob o céu do sonho, mão padroeira! ...
que afaga ... semeia ... exalta ... resgata!
SONHAR É FÁCIL ...
- Sim! ... Sabe muito bem que era a si que ela estava
a chegar, há bocado, quando disse que há não sei
quanto tempo aguardava que a convidassem ...
- Olhe que não! - desconversou Miranda, fazendo-se
desentendido. - Foi para o Rodrigues que ela disse
isso. Estava quase de costas para mim e a olhar para
ele! ...
-Deixe-se de fitas. Foi para si que ela falou.
E no tom da voz dela havia uma nota severa de
magoada censura.
-Acho a sua conclusão muito audaz - teimou depois,
lúdico ainda. Mas esfriando a seguir a voz,
desarmou, e abriu-se com firmeza: - Enquanto estive
sozinho com ela, não dei conta de que estivesse
interessada, ao de leve sequer, em dançar ... fosse
com quem fosse! E como eu nem nisso pensei, nem
tão-pouco me atreveria a convidá-la (ou a si,
dançando como danço), estou convencido, melhor,
tenho quase a certeza de que a vontade de dançar
lhe veio apenas quando você e o Rodrigues
chegaram ao pé de nós.
Clotilde não respondeu. E segundos depois,
ressabiado ainda, Miranda forçou a nota com este
sarcasmo pouco justo:
- De resto não admira que assim tenha acontecido.
Dançar com o Rodrigues é uma prova de bom
gosto.
-Hum... -fungou Clotilde, cada vez mais séria,
passando por cima das quiromancias dele, rumo ao
seu crisól: -Que diabo disseram vocês um ao outro?
...
- Nada de especial. Menos, vinte vezes menos do
que aquilo que entre nós, você e eu, foi dito já ...
Posso ter alguns -parafusos- desajustados ...
Admito. Ela tem pelo menos o dobro.
-Seja! -cortou Clotilde entre fria e austera, impondo
silêncio.
Só então Miranda principiou a reentrar
verdadeiramente em si. Estava, como não podia
deixar de ser, admirado, espantado até, com a
morena. Pelo que de tarde tinha visto e dela ouvira,
tecera idéias, juízos profundamente errados:
julgara-a frívola; superficial; sexy apenas, ou pouco
mais. Via que se enganara, apesar de Clotilde ser tão
sexy quanto uma rapariga honesta, extrovertida e
muito atraente, pode ser, ou inevitavelmente é -por
natureza.
A austeridade de Clotilde arrefeceu mais, e por fim
cristalizou:
-Miranda!, já lhe disseram que ela sofre de
leucemia?
A sua voz era abafada, claustral, fortemente
impressiva, e, não obstante, quase neutra.
Miranda estava assombrado:
Fim.