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A.

Rego Cabral
Jamba

A
Orlando Vitorino
Meu perturbante Amigo
Tenho o mais profundo respeito pela sua
inteligência. As pessoas muito inteligentes
perturbam-me. Sinto por elas algo daquilo que os
passaritos sentem pelas najas. Desculpe. Mas é
assim ... Não passo de uma ave ... De uma ave sem
penas!... - Sou um bicho muito estranho ...
Permita-me que o plagie quase na íntegra, e lhe
acrescente dois sublinhados. Não seria capaz de me
exprimir pragmaticamente sem a muleta de tais
recursos. E mesmo assim ... Adiante:
Muitas vezes me acontece fugir da atenção para as
realidades da imediata existência e mergulhar
bruscamente no recolhimento próprio de toda a
meditação e ter de me interrogar se tudo aquilo em
que a filosofia nos abisma não constitui um lúdica e
irreal devaneio em que os homens andam
inutilmente ocupados e consumidos.
E perdoe agora que o transcreva e abuse dos
farolins do sublinhado:
- Logo, porém, refletindo sobre a interrogação, ela se
esvanece, pois isso que por um momento
representou como lúdico devaneio- -é,
precisamente, o que só pode manifestar-se no signo
da necessidade, que é o que está ausente das
representações do ir vivendo, das imagens do ir
agindo, dos símbolos do ir sonhando.-
E deixe-me agora fazer pior: que misture: A filosofia
será, melhor, é uma necessidade. concorda que é ...
E se não concordasse ... continuaria a ser. Mas..., por
via disso, deixa de ser inútil? ... (Inútil no sentido
daquela sua minha inutilidade.) Não será só uma
necessidade? ... Só, mesmo só? ...
A filosofia nem tem objeto... - Não! (dirá), -não
constitui a atividade de um sujeito dirigida a um
objeto que lhe é alheio-, -não terá, pois, objeto no
mesmo sentido em que não suporta um abjeto-, e
até constituiria a negação de si mesma se se
encerrasse nos limites de uma atividade separada.-
Concordo de novo, ai de mim! Não obstante, onde?,
a não inutilidade? ... 0 Todo é inacessível; e o Nada
(fátuo absurdo) - absoluto quimera também ...
Valha-me Deus! Vejo uma crença, inelutável: os
olhos da naia! que, afinal, está a dormir de boca
escancarada ... e me deixa fugir incólume desta vez
ainda ...
A filosofia (replicará) -esta para além da crença-;
onde o conhecimento da realidade tem forma de
uma crença, é aí que também reside dúvida-.
Lá estão os olhos da cobra ... Lembro-me das
experiências anteriores ... Onde? ' dúvida maior?
... A filosofia mesmo filosofia, o pensamento do
pensamento, é dúvida da própria dúvida e do
pensamento também ... Parece-me uma
supercrença!! ... Mas, afinal, como não me sujeita - a
naia dorme... - continuo livre..., e digo a sorrir: não,
é uma subcrença. Porém..., não acredito.
Não sou capaz de romper este ciclo ... Lá está a
cobra, outra vez! ... Não, não, não! ... Não sou livre:
lá vou eu para as suas fauces:
Terrível, pobre filosofia! ... Fé e desfé... que levas a
nade... além daquela experiência Inútil. Olhos de
nale!
Não se ofenda nem desdenhe, Orlando Vitorino.
Você nunca vê a naia? ... Se calhar ri-se dela ... Onde
eu plagiei consumidos, você minimiza com
entretido...
Sou uma triste ave sem penas, incapaz de voar para
Deus. Que n'Ele não crê... mal Ele deixa de ser
Dúvida: Uma nela dormente colossal! ... tão grande!
... que nem posso ter consciência de que é, De que
não dou fé ... De que ...
Valha-me Deus! Contradisse-me mais de três vezes.
Não me chamo Pedro... - Onde?, lugar para a
dúvida de si em si, ao menos? ... Gõdel, Gõdel,
Gõdel! ...
Neste livro Orlando Vitorino, só há aves como eu.
Seja compreensivo! Não podem voar ... Vivem
também agrilhoados ao ciclo irrompível. Não têm
penas. Quem dera ter penas!..., ser águia! ... - Ai
dana
Veio o que velo... O que se vê..., que é visto pelos
mais, visto por mim, visto pelos olhos.
E veio o que não velo ... Que velo sem olhos ... mos e
há.
Quero ver mais!
0 que penumbra do não ver ao ver, do ver ao não
ver, para ser ... que ... mas não há.
Tundava-la, 10 de Maio de 1970.
Corre corre, meu carro de pau pináculo das minhas
mãos, prodígio do meu saber ...
Aos tropeções, ladeira abaixo, carnes ao vento! ... e a
minha alma em festa, com asas de luz, a correr, a
correr, a correr ...
CORRE CORRE, MEU CARRO DE PAU ...
0 -tê-éme-nove- - (TM-9) - um motorscraper gigante,
acavalou a torva norte de recepção da imponente
lavaria das minas da Jamba e desbarrigou a carga
em menos de dez segundos. Nada de catedral ...
Apesar de se tratar de um minério terroso de
aluvião, por vezes muito barrento (hematites
secundárias), enquanto não estivesse encharcado
laborava-se bem. Depois ... era quase uma argila
magra - ou saibro gordo com grânulos lamelares: -
pequenas plaquetas com poucos milímetros de
espessura. Dir-se-ia pois que os motorscrapers (ou
secreipares, se me dão licença) andavam
empenhados numa terraplanagem comum: num
desaterro tipiquíssimo a favor da lavaria. - A
atulhar o -mastodonte- com terra vermelha!
Ainda o TM-9 mal tinha esvurmado, já ia de volta,
roncando a 30 quilômetros por hora, rumo ao bloco-
215, de onde se estava a extrair minério
excepcionalmente puro e rico em èfié (ferro na gíria
dos clãs), para compensar deficiências do bloco-104,
onde o teor não satisfazia e o fósforo era excessivo.
(Um -bloco- era apenas uma das muitas células em
que o jazigo fora tipograficamente retalhado, para
efeitos de estudo e exploração - (lavra - no dialeto
mineiro). Isto é, cada uma das malhas de uma
quadrícula arbitrária de 100 por 100 metros de lado,
no centro da qual se cavara um pequeno poço para
amontar da espessura da camada ferrosa, sua
profundidade concomitantes características físicas,
químicas tecnológicas - jazigo além).
0 ritmo da exploração, naquela hora - e naqueles
dias - era de 4 carradas do bloco-104 contra 1 do
215, por cada 7 .... 8 minutos. Qualquer coisa para
além das 1500 toneladas por hora, ou 25 000 por dia
- e mais de oito milhões por ano. Isto, de minério
bruto! Minério tal qual Deus no-lo deu. Depois de
lavado, isto é, limpo de terra, cascalhos e mais
-porcarias-, sofria uma redução oscilando entre
menos de 30, até ligeiramente mais de 40 por cento:
- Passava sob jatos de água por uns crivos de vai e
vem muito sui generis, e por uma série de
-geringonças- arrevesadas, até ficar ao -gosto- de
cada cliente. Quer dizer: nos tamanhos e nas
constituições prescritas nos vários contratos de
venda. E tudo isto, claro está, sem ninguém lhe pôr
a mão.
(De resto, que diabo se pode hoje validamente fazer
à mão, além de obras de arte, vestidos de senhora e
colheres de pau? ... ) João Correia, o operador do
TM-9, olhou para o relógio e sorriu. Esperava que
aquela viagem fosse a última da sua jorna. Faltavam
12 minutos para as 5 da tarde: 2,5 minutos para ir, 1
para manobra e carga (visto o buldozer de apoio ao
carregamento estar folgado) e 3, ou pouco mais,
para o regresso. -Se o Ilídio já lá estiver em cima,
antes das 5 estou livre-, pensou, enquanto corria,
desenhando o caminho bem trilhado com nuvens de
poeira cor de fogo. Mal avistou o buldozer a
ruminar à espera dele, mediu o terreno com os
olhos, e num só golpe de volante alinhou 20 metros
à frente do monstro, de, lâmina em terra, pronto
para a carga. 0 aguardante bramiu e cresceu ...
Depois encostou: um baque no tardoz. Motores a
fundo .... desencosto .... e de caixa a transbordar, eis
o TM-9, outra vez aos galões ... carreando terra
vermelha há milênios esquecida, condenada a
refazer-se, depois de contrafeita e plasmada em
tratores, bisturis, armas, berços e charruas.
Quando subia de novo para a tremonha da
recepção, João Correia avistou Ilídio Soareso
camarada que o ia render. -Porreiro!-, exclamou em
voz alta. -Se o Freixo não demorar, quando ela bater
à porta já eu lá estou-, deduziu, em seqüência, de si
para si.
Fez a manobra de aproximação e descarregou. Em
seguida saiu da -entrega-, deu vez ao TM-12 (que
vinha do 104), arrumou 30 metros à frente, reduziu
o motor, freou..., e depois desceu.
- Hé! ... - baliu na direção do camarada, erguendo
um braço à laia de saudação.
- Hé ... -devolveu Ilídio Soares, avançando a passo
mole. - Caramba, parece que estás com pressa!
- Estou mesmo, pá. Inda bem que chegaste
adiantado. 0 Freixo disse que passava ali, por volta
das 5, e que me levava - e apontou para o lanço
imediatamente inferior da lavaria. - Convinha-me
estar lá em baixo o mais cedo possível.
- 0 Freixo?! ... Então ele não anda a tratar da
instalação dos quartos do hospital?
-Anda. Mas houve para aí uma avaria qualquer nas
separadoras; parece que um curto-circuito; o
eletricista de serviço, pelos vistos, ainda não mata
bem aquilo e não foi capaz de se bater com a
encrenca. Como tinham pressa, foram por -ele.
Parece que foi o Engenheiro quem o mandou
chamar! ... Como ele está muito calhado nas
separadoras ... É assim ...- e encolheu os ombros,
como a dar a entender que não havia outro remédio.
-Bem .... vou à vida. Até logo. -Até logo - respondeu
João Correia, fazendo meia volta, pronto para
descer. Não deu porém mais de três passos. Algo
lhe acudiu de repente e voltou-se:
- Ilídio!
0 outro parou:
-Que é?
- Já se sabe quem vai pra cama do Júlio Pinto?
- Parece que é um mestre-de-obras. Vem para
encarregado-geral. Disse-me o Rodrigues. Chama-se
Miranda. Qualquer coisa ... Miranda. Vamos a ver
como é ... Uma boa chatice! ...
- Pode ser que seja um tipo fixe... - animou Correia,
predisposto para o pior.
- Oxalá ... Fizeram um pequeno aceno e
prosseguiram, cada um vivendo para si.
Ilídio Soares repôs o M9 em serviço e João Correia
desceu para a passagem onde ficara de esperar pelo
amigo - o alentado e sempre bem disposto Freixo -
um eletricista que viera das minas de Cuima (uns
centos de quilômetros para norte) onde
principiaram as atividades industriais da empresa.
Freixo era um profissional muito competente,
apesar de relativamente novo. Ele, João Correia e
Ilídio- Soares constituíam um miniclã bastante
unido, de que fora clarim Júlio Pinto - um monitor
que se despedira na antevéspera. Isto é: findou o
contrato de um ano e não quis renová-lo. Preferiu a
falsa continuidade de um empreiteiro de estradas,
onde não ganharia mais e era preciso morar em
barracas provisórias, de obra em obra, mas - dizia
ele - o trabalho nunca findava e havia boas
gratificações no fim do ano para quem fizesse por
elas.
Júlio Pinto fora e era um manobrador insuperável.
Dizia-se que -brincava- com todas as máquinas.
Transformara-se por isso num monitor excepcional,
cuja substituição havia de ser muito difícil. Mas o
seu caso não diferia de muitos outros, em todos os
sectores da empresa, onde nevoava um bafo de
insatisfação, cujos males se traduziam em perdas
constantes de elementos qualificados e perturbações
de mil ordens - com ameaça direta à estabilidade, ao
futuro, à fé no empreendimento. E tudo, afinal,
devido à falsa honradez dos honorários
estratificados. Às remunerações com castal ... (Para
se ganhar mais que um dado tanto ... só noutra
função! ... - por melhor que se fosse naquela em que
se atingira o bom). E a agravar este quadro: nenhum
incentivo de prêmios, regalias apetecidas,
continuidade de emprego - e carência asfixiante de
comunicações rodoviárias dignas de tal nome, a
alongar desmoralizadoramente as lonjuras dos
centros urbanos mais desenvolvidos, e, sobretudo,
do litoral.
João Correia e os amigos andavam preocupados
com a identidade e, principalmente, o modo de ser
do novo companheiro de habitação. Embora se
tratasse de um problema não-básico
(empresarialmente nulo 'ou secundário) para eles
era fundamental, pois não é fácil ajustar criaturas
humanas sem afinidades miscíveis a um recinto
comum durante períodos de vida significantes.
Ansiavam, por isso, saber do sucessor de Júlio Pinto
- como companheiro de camarata. 0 que ele fizesse
ou valesse profissionalmente, para eles não tinha
grande significado. 0 que lhes interessava era o que
ele fosse ou pudesse vir a ser como companheiro.
Como camarada. Como amigo.
Mercê de um temperamento diferente (porventura
dos seus antecedentes também) João Correia não
media como Júlio Pinto. Dava-se bem na Jamba e
acreditava no futuro das minas, sobretudo após ter
ouvido, semanas atrás, dois engenheiros novatos
dizer que dali a cem anos ainda se havia de extrair
minérios dos jazigos de Cassinga. Para ele, -aquilo-
não era, pois, como tantos balofavam, -negócio para
meia dúzia de anos apenas, ou pouco mais-. Era
-coisa- para sempre! Portanto ... ia ficar. Mas, ao
contrário da maior parte, não estava interessado
numa habitação definitiva da Companhia, e muito
menos em fazer por si, como tantos outros, uma
casa dentro dos planos de construção da empresa
-aproveitando as facilidades de fornecimento
gratuito dos materiais. Não. Pelo menos por ora,
isso não lhe quadrava. Tão-pouco porém havia -de
ficar muito mais tempo na camarata. Na aldeia
natal, na falda norte da Serra da Estrela, fora pastor
de ovelhas e agostara-se ao ar livre, ao isolamento, e
a dormir em choupanas, junto do gado. -Era melhor
que na camarata. Muito menos peado! Mais à feição!
--apesar de sem camas, nem móveis, nem balneário,
ou quem lhe tratasse da roupa e do mais! ...
Fizera a tropa e regressara à Metrópole; mas estava
desafeito: não se resignara e conseguiu voltar.
Sofrera, contudo, imenso! ... Em Luanda até fome
tivera. Arrependeu-se mil vezes. Depois de
sacrifícios e humilhações sem conta, adregara um
dia, graças a Deus!, ser admitido na Junta das
Estradas, como simples ajudante, e partira de novo
para o Norte com uma -brigada, de conservação-.
Começou então a treinar-se nas máquinas, e subiu.
Um pedido do abade para o presidente da Junta
permitiu-lhe fazer a -escola de tratores- -e hoje era
um homem. Viera depois para ali, onde ganhava
mais ... e tudo parecia seguro. Antes queria ajeitar-
se numa casa de pau-a-pique do lado de lá do
Cului, abaixo da Senzala ... Era o que lhe convinha.
Ficava independente. Se não fosse por vergonha até
já se teria mudado para uma palhota. Além disso, se
a Alzira quisesse juntar-se a mais ele ... estava
governado. Aquilo não era vida. Uma preta de cada
vez não tinha jeito. Bem ... de começo até gostara.
Mas começava a estar farto. E depois aquele cheiro
das unturas já lhe fazia nojo. A Alzira era diferente.
Já nem se lhe podia chamar uma preta! ... Sabia de
cozinha, de casa, da roupa ... Até se lhe afigurava
que sabia ler ...
0 pai educara-a por casas de engenheiros e tipos
assim... Esteve até uns dois para três anos como
criada de dentro dum guarda-livros-principal ...
Viera também de Cuima, como o Freixo. Pelos
vistos ... era viúva. Viúva dum mulato que morrera
há coisa dum ano, segundo dissera, num desmonte
de minério. Parece que da explosão dum tiro
retardado. Mas era uma mulher a sério: capaz de
ajudar um homem a fazer casa e trepar!
Olhou para o relógio e viu que já tinham decorrido
mais de dez minutos. Retomou o fio das cogitações:
Com o que forrava ... havia de comprar gado. Daqui
a um par de anos podia ter uma boa manada.
Quanto forrasse, quanto havia de meter em bois ...
Mais e mais cabeças, até fazer um -rebanho- maior
do que o das ovelhas que levava pra Serra! E eram
uns bons centos delas! ... Mas tinham dono ... Ainda
chegara a ter umas cabras ... Aquilo não era governo
de vida. Agora, sim!, ia ser gente. E então se o
negócio das minas era mesmo coisa de dura ... até
havia de ter uma fazenda! Coisa que se visse! ...
Onde coubessem todas as quintas do conselho! ...
- Hé! ... 0 João! -chamou Freixo do outro lado, com a
porta da carrinha toda aberta, farto já de lhe fazer
sinais.
Apesar de voltado para o amigo, João Correia não o
via.
- João! ... 0 João Correia! -insistiu o eletricista, cheio
de pressa, batendo na porta, disposto a abalar
sozinho.
- EM Espera aí! ... - gritou Correia aflito, acordando
e correndo para a viatura.
- Estavas a dormir? Vamos! ... Passam vinte das
cinco ... Deixei a corrente desligada, lá em baixo, e
daqui por uma hora já mal se vê ... Para onde
estavas a olhar? Fartei-me de te fazer sinais ...
- Pra nenhures ... Estava a pensar cá numas coisas ...
Demoráste-te! ? ... Houve mais alguma encrenca?
-Aquilo estava feio! ... Mas ficou bom. Pra próxima
o Almeida já sabe como é; ah, ah, ah ...- e riu, no seu
rir sem-jeito, muito característico.
Foram até ao fundo dos parques e junto à estação de
carregamento mecânico dos vagões enfiaram para a
vila.
-Sempre arranjaste lavadeira? -quis saber o
eletricista.
- 0 que há de melhor! Tanto pra lavar, como
engomar, e mesmo coser! Ficou de ir lá hoje. Sempre
queres que lhe dê a tua roupa?
- A minha e a do Ilídio. Ele não te disse? Também
quer mudar. A que tem, diz que dá cabo das
camisas. Dizes que é uma branca?
- É. Quer dizer ... é como se fosse. Mas uma branca
esmerada! Costura e tudo! Fez umas calças ao
Filinto que são um luxo!
-Ao Filinto?! ... Quem é o Filinto? -Aquele tipo
russo, com quem me viste no domingo passado.
Trabalha no açude. É o mestre daquilo do ferro. Um
tipo fixe. Mora do lado de lá do rio. Costumamos
jogar à bisca no tasco da outra banda.
- No tasco!? Ah, ah, ah ... Aquilo é lá um tasco !
Vende vinho e mistelas à sucapa! Não há-de tardar
que o Comandante Serrão lhe limpe o sebo ...
Bem..., aquilo não é um tascol A gente chama-lhe
assim .... mas é uma casa particular! Um sítio onde
fazem uns petiscos e a gente se ajunta. Mas olha que
ela é que nos faz favor! E não entra lá quem quer! ...
Tem uns garrafões de reserva e dispensa-nos uns
copos ... Só nos faz jeito. E olha que não leva muito
mais do que a cantina!
-Mesmo descontando a água? -Ela pouca lhe põe ...
Lá nisso é a BaIbina séria! ... E até no mais! Ela no
fim de contas só tem um homem ...
- Ah, ah, ah ... Ela pouca lhe põe! ... Sempre me
saíste um ponto! João, João, João! Aí anda coisa! ...
Foi lá que tu arranjaste a lavadeira que fez as calças
ao Filinto?
- Não! Essa não vai lá. É uma mulher séria! É viúva.
Andam mais de quantos atrás dela, e olha que não
liga meia a nenhum!
-Nem a ti, meu maráu? -insinuou Freixo com ar
brejeiro.
- Já te disse que é uma mulher séria! - repontou João
Correia abespinhado, encarando o amigo com
dureza.
- Está bem, pá. Não vale a pena zangares-te. Se ela é
séria, tanto melhor. 0 que me interessa é que trate
bem da roupa! Que não me dê cabo das camisas,
sobretudo ... E que lhes dê os pontos que elas
precisarem, como tu dizes. – Vais ver. É por isso que
leva mais caro. Mas a roupa, por as mãos dela, dura
dois dobros! E olha que não aceita avios dum
qualquer. Ou que é que tu pensas? ... Eu é que estive
a queixar-me do que nos tem sucedido, e vai daí
perguntei-lhe se quando tivesse folgas não se
importava de ficar com a nossa ... Ela disse-me que
no fim do mês talvez pudesse ... Logo que se fossem
embora aqueles tipos do empreiteiro do açude, que
vieram só por seis meses. Ontem foram dois.
Amanhã vão os outros. São uns cinco ou seis. É a
altura! ... Se não quiseres, pra ela vale o mesmo.
Freguesia não lhe falta ...
-Quero, pá! Já te disse que sim. Tanto mais que
trago a roupa toda a pedir agulhas e botões.
Calaram-se e foram rolando em silêncio. Chegados
ao hospital, Freixo afrouxou e despediu assim o
colega:
- Bem ... agora tens de ir a pé. Tenho de acabar isto
enquanto não se faz noite... -e apontou para o topo
norte do edifício, pensando nos quartos
hospitalares. -Tem paciência. Chegam amanhã os
Administradores ... Tem de estar tudo a ponto ... .
- Está bem. Daqui lá é um pulo. -Fixe. Então até
logo.
Até logo. Freixo bateu a porta da carrinha e enfiou
pelo -banco-. João Correia não olhou sequer para
trás: abriu o passo e desceu para a camarata - uns
centos largos de metros mais à frente -procurando
com os olhos o vulto da Alzira. Ela dissera que tinha
de ir à cantina e que depois passava pelo
apartamento: -Das cinco e meia para as seis passo
por lá e trago a roupa-. Eram cinco e trinta e oito ...
Mal avistou. o alpendre que protegia as entradas,
sossegou. -Inda não veio-, concluiu com satisfação.
-Hoje vou falar-lhe de vez. Ela- já percebeu ... Pode
ser até ... Como não está mais ninguém ... Que
diabo!, fechávamos a porta ... Mas se ela não
quiser..., não senhor! Será para outra vez.
0 ponto é a gente chegar a acordo ... E chegando a
acordo ... Que ela sempre é uma mulher! -Alzira!,
isto é pra sério! Se a gente se der bem até nos
podemos casar! 0 ponto é a gente dar-se bem! ... Ou
ter filhos ... Se tivermos filhos tem de ser! ... - É uma
sorte não lhe ter vingado nenhum, dos dois que teve
do outro. Era uma chatice ... Até talvez nem a
quisesse ... Mas era uma pena! Aquilo é que é uma
mulher! Aviada! ... É mesmo branca! Mas uma
branca das boas! Trabalhadeira! ... -
Meteu a chave na porta e entrou. As trouxas da
roupa dos camaradas jaziam sobre as camas de cada
um. Fez a dele no mesmo estilo e dispô-Ia como as
mais: a meio do leito - também. Segundos depois,
contudo, engodado por esperanças mais risonhas,
pegou nela outra vez e depô-la no chão, junto à
parede onde abria a porta para a casa-de-banho.
Mediu em seguida o quarto de ponta a ponta. E
parecendo-lhe que algo nele não estaria lá muito
bem, foi-se às outras trouxas e arrumou-as a par da
sua. Deu uns passos atrás e à frente ... e decidiu
tomar uma ducha. Abriu o armário que lhe
pertencia, serviu-se de roupa lavada, e segundos
depois estava debaixo do chuveiro. Cinco, seis
minutos mais tarde era outro. Fresco e limpo,
decidiu ficar em pijama -indumentária para ele
ainda com -ar- e -cheiro- de luxo. Estirou-se depois
no leito. De repente, porém, ergueu-se e foi buscar
uma caixa alongada ao roupeiro. Abriu-a e tirou
dela uma flauta com toda a aparência de nova,
pondo-se a remirá-Ia embevecido. (Era a sua maior
extravagância de sempre). Sentou-se na beira da
cama, levou-a aos lábios, e deu início a uma canção
pastoril. Via-se que não estava calhado com o
-brinquedo-: enganava-se a par e passo; não extraía
do instrumento os efeitos que desejava: -aquela
-maravilha- reluzente não obedecia às suas técnicas.
Repetiu no entanto a balada ..., mas continuou
insatisfeito. Pousou então a flauta e foi buscar outra
muito rude; velha; obra porventura das suas
próprias mãos, esmurrada até, e com aspecto de
muito uso. Sentou-se de novo e repetiu a melodia.
Era uma ária de amor, dulcíssima, amargurada, em
queixumes, sugerindo verdes sem fim, céu distante,
ribeiros cristalinos ... e uma brisa mansa afagando
quebradas e planuras. Apesar da sua rusticidade, o
instrumento possuía um timbre admirável, duma
frescura cortante -e ele tocava com um sentido
profundo, de todo inesperado. Repetiu a canção e
depois derivou para um silvar aberto, repleto de
alegria. Um sopro de alvorada: o milagre da luz! ...,
a benção do ser! .. . -a força da própria vida: lutas,
frêmitos ..., amor!
Alguém batia à porta pela terceira vez. João Correia,
porém, não ouvia. Esquecera-se da Alzira, da roupa,
dos bois, da fazenda que havia de possuir ... Mas o
bater cresceu e desterrou-o de novo para o -reino
dos mortais-. Mal reentrou em si desfez-se da flauta
e correu para a entrada -o coração em alvoroço, a
alma em nova festa!
Uma rapariga dos seus dezoito anos aguardava no
patamar: esbelta - preta-fula! - ataviada e vestida
com o esmero de uma costureirinha lisboeta (um ar
doméstico pelo todo, e um capricho, um sorriso a
rescender ... ) e aquela graça, aquela beleza muito
própria que só -algumas pretas exaltam -e
impressiona européias e asiáticas.
-Custou! ...
- Desculpe ... Que quer?... - inquiriu João Correia
atarantado!
- A roupa ... - Havia mofa na sua voz; quase riso, no
olhar da rapariga.
- A roupa?! ...
- Sim! ... Ou mudou de idéias? -Mas... Como... Foi a
Alzira que ... ? -Foi. Pediu-me que passasse por cá e
lha levasse. A sua e a dos seus colegas. Já a tem à
feição?
-Mas a Alzira não vem? ...
- Não. Já lhe disse que me pediu para vir na vez
dela.
-Bem ... Entre, faça favor. A rapariga avançou dois
ou três passos e ele foi buscar as trouxas -que o
esperavam no outro extremo do apartamento,
irônicas, juntinhas, deitadas lado a lado,
humilhadas no chão.
- Pronto ...
- Está marcada?
- Está. -Fez os roles?
- Não. Isto é ... eu não fiz. Não sei se os outros ...
-Então é melhor fazer. Tem papel? -Tenho -e
encaminhou-se para o armário-roupeiro donde
retirara as flautas, que dormiam esquecidas,
juntinhas também, na cama onde ele sonhara ver a
Alzira naquela tarde.
Não levou muito a encontrar o que buscava: um
bloco de papel de carta de formato normal, próprio
para avião. Parecia intacto. Aproximou-se de novo
da rapariga e ficou a olhar para ela, que nunca
deixara de sorrir. Como ele não se desatasse,
baixou-se, pegou nas trouxas e depô-las em cima,da
cama de Freixo, logo à entrada. Em seguida abriu
uma delas, apartou as várias peças, e depois
interrogou:
-Esta de quem é? -Do Ilídio. -Tome nota: 4 camisas,
4 cuecas ... -Espere! Não tenho com que escrever! –e
correu de novo para o armário, regressando com
uma caneta de tinta permanente. Sentou-se na cama
a seguir, e apoiando o bloco na mesinha de
cabeceira, voltado para a rapariga, foi espremendo
na sua caligrafia trôpega, de mal digerida instrução
primária, aquilo que ela lhe foi ditando.
Embora a Alzira não lhe saísse do pensamento e as
dificuldades da redação exigissem dele enorme
esforço -visto só na tropa haver consolidado a arte
de figurar a palavra em símbolos gráficos - não
pôde impedir-se de ir admirando a desenvoltura, a
beleza e a própria sedução da moça, que parecia
divertida com o embaraço dele.
Quando principiou a refazer as trouxas, perguntou-
lhe sem se interromper:
- Que músicas eram aquelas que estava a tocar na
flauta.
Foi como se lhe dessem uma alma nova. Sorriu, e
respondeu com o rosto já iluminado, ufano! - certo
de ter acendido o interesse dela, porventura a
própria admiração:
- Umas modas lá dos meus sítios.
- Modas?
- Sim. Cantigas.
- A primeira era muito bonita.
- Pois era... Quer dizer, é! Tem muita pausa ... A
duas vozes é um luxo!
Ela não disse mais nada. Prosseguiu na tarefa como
quem quer despachar-se quanto antes.
- Contava que a Alzira viesse... -adiantou ele, quase
a medo.
-Não pôde. -Precisava de lhe falar ... -Ficou de volta
da roupa daqueles homens que vão embora
amanhã. Mas diga-me o que é ... que eu digo-lhe.
- Bem ... É que eu... queria que ela me fizesse umas
calças como as que fez ao Filinto.
0 encarregado que trabalha no açude. Queria que
ela me tirasse as medidas ...
-Mas ela não sabe fazer calças -desiludiu a moça,
afirmando-se nele meio séria, como a procurar para
além das palavras o sentido exato das intenções.
- Ai isso sabe! Então eu não vi as que ela fez ao
Filinto?!
-Essas fi-las eu ...
- Fê-las você? Então ele não me disse que foi a
Alzira!?
- Não lhe teria dito que foi na Alzira? ... João Correia
ficou desbaratado: Como se, no auge de uma
refrega, lhe manietassem as próprias mãos:
- Talvez ... Não sei ... Mas parece-me que ele disse
que foi a Alzira ...
-A minha irmã não sabe fazer calças. Não sabe fazer
calças nem sabe talhar. Tem jeito e prática. Mas
falta-lhe o melhor... -e encarou-o como quem diz:
-Falta-lhe aquilo que eu tenho. A teoria!-
-Você é irmã dela? ...
-Sou. Mas se quer fazer as calças não é preciso tirar
medidas. Empreste-me umas que lhe estejam bem, e
pode ficar descansado que aquelas que eu lhe fizer
não hão-de ficar a dever ao modelo. Já tem pano?
-Não, ainda não tenho... Julguei que a sua irmã ...
-Não, a gente não tem panos. E como as trouxas
ficassem completas, foi à porta e gritou:
- Luzia! Uma preta ainda tribal, mas já com ares de
emancipação, aproximou-se da porta a correr.
-Pega naquela roupa e leva-a. Amanhã de manhã
distribúis uma trouxa dessas a cada mulher, de
modo a ficar tudo pronto antes do meio-dia.
Percebeste?
- Percebeu. -Olha que é serviço de pressa.
- Sim. Percebeu, menina. - E desandou com a roupa
à cabeça.
João Correia estava abismado. Perplexo. A Alzira,
afinal, era muito mais -branca- do que ele
imaginava! Encarou de novo a calceira e perguntou-
lhe com transparente respeito, e cômica, ingênua
admiração:
-Você é mesmo irmã da Alzira?!...
-Sou. Porquê? Então já não lhe disse que era.
Hesitou um bom par de segundos, e por fim
respondeu:
- É que não me lembro ... de a ter visto.
- Não me admira nada... - comentou a rapariga de
novo a sorrir, quase a mofar, encaminhando-se para
a porta.
-Não lhe admira nada, porquê? ... Parou e voltou-se.
E encarando-o bem de face, abriu de todo o sorriso e
esclareceu:
-Porque você só tem olhos pra minha irmã! E
desandou pela varanda fora, a rir e a mofar.
Sonhar é fácil ... quando o peito é mar, A alma é
vento, A mão é vela, A amor é onda! ...
Mão altaneira! ... que trabalha, que fere, que rouba,
que mata ... Sob o céu do sonho, mão padroeira! ...
que afaga ... semeia ... exalta ... resgata!
SONHAR É FÁCIL ...

0 Sul-Poente, em Angola, é sobretudo miragem:


vazio seco da terra escutando silêncios do mar. E
oásis ... Oásis em formação: searas de cristandade!
...
Caseada na bainha do deserto - esse esquecido
encantado - Moçâmedes é um grito ao porvir - ara
de sabedoria, alvor de amanhecer!
Onde tudo foi já vazio sem alma, desolação, só
aridez!, enfeita-se uma cidadezinha caseira - colméia
familiar - ufana do seu pescado, das suas hortas, das
promessas do Namibe, das certezas do seu porto: -
baía reluzente, verde-cristal, talhada a cinzél. Mansa
como as sestas, é um plano de águas generoso,
longo e ovóide, embutido no Continente: ao sul o
cais comercial, seus mil afins... - e depois o deserto
amarelo, e a poente o mar; ao norte o majestoso
porto mineiro, seus apêndices... - e depois o deserto
amarelo, e a poente o mar; a leste, cerzida ao topo
de uma praia dourada, arco de três léguas!, o burgo
reticulado... - e depois o deserto amarelo, ele só,
terra além ... até às raízes da Chela, cento e muitos,
muitos quilômetros de sono; e a oeste o mar... -só
mar! ... - águas sem termo, moendo moendo, dia
após dia ... E na terra o mesmo insistir: ondas
paralelas de casario multicolor, certas - muito
alinhadas! - de crista vermelha encardida,
avançando pelo Namibe empurradas por aquele
moer.
Aqui, ali, além... - mimos de verdura, asseios de
arvoredo. Mais sobre a borda... - galas de cafés,
lojas, hotéis, esplanadas. De ponta a ponta... - gente,
viaturas e animais. Vida. E luz. Muita luz! E cor
também:
Um oásis na fímbria do deserto! ... Uma ilha fora do
mar!
Quem chega de barco e nada viu de semelhante,
perturba-se. A maioria fecha-se. Muitos, porém,
sentem ... e expandem-se: largueza dourada na
terra, azul no céu, verde no mar - glabra! - rubra,
rosa na alma!
Um paquete no porto. Homens pingam do portaló:
um deles, atarracado, com o à-vontade, a quase
indiferença do muito-ver, grisalho, bigode e pêra
quase brancos, seguro nos passos e nos modos;
outro, logo atrás, jovem, face rapada, os olhos
chispando em tudo, um pasmo curioso nos gestos e
um temor indecifrável no descer. São companheiros.
Vê-se ... 0 mais novo - ora atrás ora a par - exala
saúde e possança; o outro, sobretudo experiência.
Abordam um funcionário do porto: -Pode dizer-me
para que lados fica o escritório da Companhia das
minas de ferro? - indaga o mais idoso.
-Das minas de Cassinga?
- Dessas mesmo.
0 funcionário informa. (Numa terra caseira todos
sabem de tudo - quanto mais de uma Companhia
assim!).
Horas mais tarde sobem para o aeródromo local, no
exterior amarelo: - uma tira de asfalto, um hangar
velho, três barracas e lagedos toscos em pleno
deserto. Cães, moscas e galinhas prospectando o
chão, frente à casota do vigilante.
Um aero-táxi de -estirpe-, ultracivilizado, avia-se
para largar. 0 piloto (Comandante! - se me dão
licença) vigia o abastecimento e um quarentão de
calções, forte e direito, pinha pré-calva ao sol,
aguarda impaciente: mãos atrás das costas (cigarro a
arder! ... ) dali para acolá, de acolá para ali. A dada
altura pára:
- Corte Real!, tenho de estar na Jamba antes das
cinco!
- Não me parece que seja às de hoje, senhor
Engenheiro - desanima o piloto, mirando a rodovia
do acesso. - São quase três e meia ... Mas por que
raio de carga de água esses tipos ... Olhe! Devem
vir acolá... - e apontou um jipe que um
apendiculado à empresa do ferro impelia a toda a
força para o aeródromo.
Alívio ... Vibrações de octanas cantando vitória,
engolindo o espaço ...
Uma travagem brusca. Os recém-desembarcados do
paquete saltam quase a par. Abrindo-se para o
Engenheiro, o mandante da viatura advogou-se:
- Impossível vir mais cedo, senhor Engenheiro.
Estes senhores são as pessoas a que se referia o
rádio de ontem à tarde. A bagagem pesada vai de
comboio. Amanhã está lá. Desculpe ... Convinha
que fossem neste avião ... Os Administradores não
chegam à Jamba antes das seis. Há tempo. E estes
senhores ...
- Bem bem - cortou o engenheiro.'- Quanto mais
depressa melhor. Claro. Arrume as maletas.
E voltando-se para os recém-vindos, sereno já - o
sorriso em pleno meio-dia - refrescou para o
grisalho:
- É o geólogo Dr. Castro Raposo? ...
- 0 próprio - anuiu o interpelado, resenhando o
aparelho, o aguardante, a afabilidade movediça da
recepção.
-Muito prazer Dr. Raposo. 0 meu nome é Serra de
Oliveira.
- Muito prazer ... engenheiro Serra de Oliveira.
- 0 prazer é todo meu. Estávamos ansiosos pela sua
vinda ...
E voltando-se para o mais novo:
- É o construtor-civil Miranda, não é verdade?
- Exatamente, senhor Engenheiro.
- Ótimo. Muito prazer. Trabalhará comigo.
- Muito prazer, senhor Engenheiro. Chegando-se
depois ao piloto, e em seguida aos outros dois, fez
as apresentações do estilo:
- Comandante Corte Real ... Doutor Castro Raposo
... mestre-de-obras Anacleto Miranda.
Apertos de mãos selaram os conhecimentos.
Minutos depois o avião descolava.
De Moçàmedes para o interior, num táxi-aéreo,
Namibe além, ao assalto da Huíla, o planalto da
Humpata - dois mil e tantos metros de altura - é
uma campina fantasma: uma perfeita miragem
espalmada no céu:
Planura garbosa altíssima, a perder de vista -sul,
norte, leste- interrompida abruptamente, em diedro
reto cortante, ao longo de todo o seu bordo
ocidental. Degrau ciclópico ... cutelo miraculado! ...,
muralha apocalíptica gigante, dominando
montanhas e savanas ... emparedando o deserto -
prolongamento seco do mar.
Chamam-lhe Chela. Serra da Chela! 0 bordo é a
Escarpa - uma vertigem, um vácuo!, uma autêntica
alucinação! ...
Dos vários mirantes confortavelmente acessíveis (ao
alcance -choutado- de rodas e pneus), cutelo fora...,
Leba, Bimbe e Tundavala são os de maior nomeada.
Os mais vistos e discutidos - apesar de igualmente
belos, surpreendentes, colossalmente abissais.
Leba é o mais mulher; Bimbe o mais estentório;
Tundavala o mais monacal. 0 primeiro deslumbra; o
segundo assombra; e o último dilui, converte ... e
por fim redime. Convida à humildade, à renúncia, à
oração. Impõe silêncio. Evoca salmos, hinos,
cânticos ao sublime.
Do ar, contudo, de tão mais alto (daquele fretado
parapeito vibrante, prodígio metálico suspenso)
perde transcendência - proletarizado na igualdade
majestática jacente, esquinada lá em baixo. Deixa de
ser um púlpito ... Um verdadeiro altar!
Um precipício de mil e quinhentos metros ... dois
mil e trezentos acima do mar!
Os motores da avioneta zumbem na imensidão ...
Cruzada a Escarpa, tudo tende a banalizar-se: terras
como outras terras. Sã da Bandeira afirma-se por
fim, Senhora do Monte abaixo, aos pés do Cristo-Rei
- esse onipresente esquecido - cruzeiro
antropomórfico disforme, desterrado, na grimpa do
Lubango.
-Alô Sã da Bandeira, alô Sã da Bandeira, alô Sã da
Bandeira... - clama o piloto, bafejando o microfone. -
Delta Zulo chama, Delta Zulo chama, Delta Zulo
chama.
Escuta uns segundos, repete, e escuta de novo ...
-Delta Zulo, transmita! - ordena a torre do
aeródromo.
-De Moçâmedes para Jamba; pessoas a bordo,
quatro; autonomia três horas ... etc., etc.
E o vôo prossegue mansamente, a cerca de trezentos
quilômetros por hora e dez mil pés de altitude, sob
cúmulos, mil e quinhentos pés mais acima, rareando
para nordeste.
Um bom quarto de hora mais tarde, espantando a
monotonia interior, o piloto alerta e aponta:
Cunene à vista! Só ele o via. Três pares de olhos
mais, contudo, dardejam para vante, decifrando o
horizonte indeciso, azul-fumado, que circunda o
nascente.
- Ótimo - resmunga Serra de Oliveira, fitando o
cronógrafo, como a estimar a chegada.
- Dentro de vinte e seis, vinte e sete minutos
estamos na Jamba, senhor Engenheiro - antecipa
Corte Real sorrindo.
- Não será sem tempo - reponta o outro.
- E que hei-de dizer? ... Já nem sequer poderei
regressar a Moçâmedes! Uma chatice. Tenho de
dormir nas Minas.
-Fica em boa companhia, deixe lá. -0 pior é o resto.
Com um cliente amanhã de manhã para Nova
Lisboa ... Vamos a ver se consigo descolar às seis ...
Se assim não fosse, palavra que até gostava. Gosto
daquilo. Eu cá gosto da Jamba. Não sou dos que
dizem mal.
-Dá-se o mesmo com todos quantos lá vão de visita -
ironizou Serra de Oliveira. E como quem fala só
para si: - Mais ou menos como ... com os jardins
zoológicos ... E os sanatórios ... E certos bairros
nada desejáveis, pitorescos!, tidos por encantadores,
típicos, folclóricos, etc. e tal. A opinião dos que lá
vivem é diferente.
- Não diga isso, senhor Engenheiro. A Jamba está
uma cidade. Olhe, disse-me há dias o Comandante
Serrão, o diretor de lá com quem eu tenho sempre
de me entender, que já é o terceiro centro urbano do
sul da Província. Em gente e até no resto.
-Raciocinando sobre o papel, parece não haver
qualquer dúvida. Será até mais importante que
algumas capitais de distrito. Populacionalmente,
de fato, aqui no Sul, só Moçâmedes e Sã da
Bandeira lhe levam a palma. 0 pior é o resto ...
-E a indústria, não conta? A indústria e o mais!
Tudo aquilo que vai por ali?! ...
-Olhe, Corte Real, admito que debaixo de certos
pontos de vista o conjunto Jamba-Tchamutete
(Cassinga-Norte e Cassinga-Sul) não tenha uma
dezena de centros que o suplantem ...
-Ai isso não tem - cindiu o piloto. - Seis, ou sete, no
máximo, em toda a Província! Conheço Angola de
lés a lés.
-Isso é outra história, Corte Real. Não misture sal
com açúcar. Olhe: o núcleo petrolífero que os
franceses estão a desenvolver no meio do Sara, se
calhar (não faço a menor idéia) é economicamente
mais importante do que a Jamba. Apesar disso,
creio bem que, para viver, será muitíssimo pior.
- Não desfaça. A Jamba está uma vila estupenda.
Tem um riquíssimo clima ... Cinema, futebol ... E já
não se pode considerar uma terra isolada. Então
agora com os aviões a escalarem-na regularmente ...
E tem os comboios. E qualquer dia a estrada.
- Ah! ... a estrada. Diga-me dessas Corte Real.
0 avião dá para o correio, para as emergências, e, vá
lá ... para o pessoal superior. Não todo. Algum. Para
os favorecidos! Depois do correio e das emergências
... serve sobretudo para as deslocações de serviço
que não se compadecem com a ronceirice dos outros
meios de transporte! ... E para a evacuação dos
feridos e doentes, diga-se também ... -E segundos
mais tarde: - Quem ganha para utilizar o avião
como meio corrente de transporte? Enquanto o
asfalto não chegar às Minas, ou passar ao pé, os que
lá vivem hão-de continuar a sentir-se desterrados e
ser pasto, ao fim de maior ou menor número de
meses, ou anos, de jambite crônica, ou mesmo
aguda.
- Jambite?! ... Que diabo é isso? -Olhe, é a psicose
que mais se consola de fazer estragos na Jamba e em
Tchamutete, sobretudo entre os solteiros e as
mulheres dos funcionários não ocupadas nas
atividades da Companhia.
- Percebo ... Jambite! Tem piada ...
- Quem a batizou assim foram os médicos.
É algo de muito característico, e real, portanto,
debaixo do ponto de vista patológico. Ninguém lhe
escapa. É uma questão de tempo. Claro que na
maioria dos casos não vai além do nervosismo,
irritação surda ou aberta, ou tédio. Mas de vez em
quando é pior.
- Se calhar é de serem todos funcionários. Como não
há público para lhes cortar na casaca ... desfazem e
cortam uns nos outros - e desferiu uma risada
magana, piscando atrás e ao lado, como a engajar os
outros dois, recostados nas cadeiras posteriores.
0 geólogo bateu as pálpebras e sorriu, como quem
adere tacitamente. Mas o mestre-de-obras, que até
ali não deixara escapar uma só frase do cavaco,
enrugou um esgar amarelo, rasgando a boca e
fendendo os olhos, pouco antes quase desorbitados.
Serra de Oliveira condescendeu:
-É possível ... Pelo menos em parte. Quem não tem
que fazer faz colheres de pau ... ou tesoura na
vizinha! - e abriu e fechou o index contra o médio,
avançando a mão, como quem corta fazenda num
fanqueiro.
- Se deixassem lá abrir lojas particulares, cafés ... e
outras atividades independentes da Companhia, era
capaz de não ser assim. Há por aí terreolas bem
mais isoladas, praticamente desprovidas de quase
todos os recursos, onde isso não acontece. Ou pelo
menos não se nota. Claro ... é outra gente. São
voluntários! ... É como nos colonatos. É raro o que
presta. Pelo menos de entrada. Medem-se e pintam-
se funcionários! ... Funcionários sem curso. Sem
curso, nem concurso, nem recurso: de discurso! - E
riu de novo, mirando os de trás.
- Essa gente é outra gente. Tipos sólidos. Sólidos e
determinados. Só contam com eles. Têm programas
de vida que chegam de sobra para os atiçar e
encher. Só medem canseiras. Levam uma vida pior
que a dos escravos ... Mas são escravos da própria
independência! ... Quando se sentem em baixo, uma
farra! Ou vão arejar até à cidade mais próxima ...
Mais próxima ou mais afastada. Para onde lhes dá.
-E depois de recauchutados-, como eles dizem,
-amoja outra vez!-. Ali não é assim. Na Jamba, há
que aguentar!
- Com o tempo tudo muda. E as pessoas adaptam-
se. Olhe, senhor Engenheiro, os que lá nascerem ou
forem criados, hão-de gostar daquilo como cada um
de nós gosta da terra onde vingou.
- Grande consolação, não há dúvida. Até cura a
jambite! ...
-Caramba, senhor Engenheiro, há pouco mais de
três anos ainda tudo aquilo era mato!
0 que já lá se fez deixa uma pessoa de boca aberta.
Chiça! ... Ando há mais de vinte anos aqui pelo Sul e
tudo isto, tudo isto senhor Engenheiro - e fez um
gesto largo, circulando o território desde o mar ao
Cuando e aos confins raianos do Cubango e do
Cunene- era mato, praticamente só mato! E tirante a
Matala e as estações ao longo do caminho de ferro, o
resto quase não mudou. Serpa Pinto não era nada.
Começou ontem a fazer-se, por assim dizer. Depois
de a crismarem capital de distrito. E agora? Eu do ar
é que vejo: gado, gente, carros, chitacas a surgir por
todos os lados. E foi com isto do ferro. Assim que
começou o movimento das minas, viu-se tudo a
crescer. Nunca pensei. E então os comboios do
minério? Eh, rapazes, aquilo sempre é cada gibóia!
A semana passada fui com a minha mulher mais o
meu sócio e a mulher dele até ao Giraúl. Levámos
um farnel e tanto. Acampámos num sítio
estupendo, donde se via a ponte e um bom bocado
da linha. Cada vez que passava um comboio punha-
me a contar os vagões. Quer saber que não fui capaz
de dar conta do recado? Enganava-me sempre.
Disse aos outros e pusemo-nos todos a contá-los, a
ver quem acertava. Pois não houve dois que
chegassem ao mesmo número. Ficámos só a saber
que eram para cima de cinquenta!
-Creio que por ora são 53, mais o furgão e as
máquinas. É pelo menos o que tenho ouvido por lá,
aos mineiros e aos ferroviários. Como só trato de
obras e não arranjo tempo sequer para dormir ...
Mas sei que daqui a alguns meses cada composição
há-de integrar mais de 60 unidades de carga.
- É formidável. E então aquilo é cada lontra! ... Sabe
quantas toneladas carrega cada vagão daqueles?
- Penso que perto de 60. Mas andam só com 45. A
linha não dá para mais. É ver os descarrilamentos:
volta meia volta, pum! ... Mesmo assim já estão a
transportar uns 5 milhões de toneladas anuais de
minérios tratados. E vão subir para os 6, segundo
também já ouvi discutir. É bonito!
6 milhões de toneladas por ano, a 600 quilômetros
de distância, é qualquer coisa, seja onde for. Olhe,
em toneladas-quilômetros é capaz de dar mais do
que a soma daquilo que perfazem todos os outros
caminhos-de-ferro portugueses. Metrópole e
Ultramarl
- É formidável. Por esse correr acabam com as minas
em poucos anos, como aconteceu no Cuima, não?,
senhor Engenheiro ...
- Julgo que no ritmo dos 5 milhões de toneladas
anuais de produtos tratados, as reservas conhecidas,
desde que não exploradas ambiciosa. mente, darão
para oito, dez ... doze anos, no máximo, se não
houver surpresas, aliás muito pouco prováveis.
-Então e depois?! ... Os hotéis, os hospitais, as
escolas, as cantinas, os armazéns, as centenas e
centenas de casas dos funcionários, as próprias
chitacas que se estão a desenvolver, as oficinas, as
lavarias ... eu sei lá! ..., tudo quanto por ali vai ... e
de dia para dia parece crescer mais depressa?
Morre? ... Abandona-se? ... Deixa-se apodrecer?
- Tenho feito essas perguntas a mim mesmo, e por
lá, dezenas de vezes. Esperemos que não, Corte
Real. Mesmo que as contas de base do
empreendimento de Cassinga batam certas, e
portanto a exploração dos chamados minérios ricos
(aqueles que se estão a laborar: uns 120 milhões de
toneladas virgens, ao fim e ao cabo) seja negócio
(como dizem ser), isto é, pague tudo quanto se fez e
vai fazer ainda, não só nas Minas como no caminho
de ferro e no porto mineiro do Saco, mesmo que seja
assim, repito, aquilo que mais vale é o resto: o que
vem, o que está vindo já, o que há-de vir,
inevitavelmente, por acréscimo: as chitacas, o gado,
as lojas, as demais indústrias, etc. Numa palavra: as
pessoas; o povoamento! Aquilo que o minério
promove, ou estimula, indiretamente, vale
muitíssimo mais do que tudo quanto dá ou venha a
dar sob formas diretas.
Ora se as minas parassem ... tudo definharia, de
certeza! E a maior parte morria, visto oito, ou
mesmo dez anos, não ser tempo bastante para
consolidar a existência do que vai por aí ... e de dia
para dia parece crescer mais depressa, como você
disse. Há pelo mundo fora exemplos flagrantes do
gênero, mais que elucidativos: cidades fantasmas;
espectros daquilo que o espírito do lucro, por si só,
a cada passo tumuliza. Gera e depois estiola. Não
faz parte da nossa maneira de ser, e muito menos
dos nossos ideais, agir assim. É por isso que
permanecemos em África. De modo algum,
essencialmente, pelo lucro! Não creio que seja em
Cassinga que nos venhamos a retratar ou trair.
Silêncio escutando a prece dos motores ... Na
catedral da imensidão, as nuvens alvas, agora em
cacho, eram como fumo de incenso evolando-se
profeticamente do crisol da Jamba.
Corte Real foi o primeiro a reabrir: -Mas se o
minério acaba ... o futuro de tudo isto... - E estalou a
unha do polegar direito nos incisivos superiores,
rodando a mão para diante, como a profetizar que
tudo aquilo se fanaria em cinzas e ruína.
-Acaba, Corte Real, o chamado minério rico. Só esse!
- E o outro ... presta? Isto é: é bom? ... Eu só cá não
sei ... Diz-se tanta coisa, senhor Engenheiro ...
- Pois claro que é bom. Olhe, é melhor, bastante
melhor!, do que aquele que serviu de base para o
lançamento da siderurgia metropolitana. E
incomparavelmente superior a muitos que se
exploram por esse mundo fora. Mas exige
investimentos de tal vulto, contra margens de lucro
tão baixas, que se tivéssemos principiado por ele
não ganharíamos sequer para os,juros dos
empréstimos. Não será assim Dr. Castro Raposo? ...
- Mais ou menos... - admitiu o geólogo, em tom
incolor.
-E há fartura desse minério? ... Ou ao fim de outros
cinco ou dez anos também acaba? -avançou de novo
o piloto.
-Isso é dos pontos que o Dr. Castro Raposo vem
esclarecer, segundo creio. Será verdade Dr. Raposo.
-Mais ou menos... - repetiu o interpelado, fechando-
se na concha.
Mas em face da expectativa escaldante que emanou
do silêncio em redor, reabriu:
- Pelo que já me foi dado ver, espero que nos Cassin
daqui a cem anos esteja ainda em crescimento, e os
seus minérios de ferro (longe da exaustão)
contribuindo não só para a prosperidade das
populações de todo o sul de Angola mas da
totalidade do território e de milhões de criaturas
mais, por esse mundo além.
Mutismo ativo dilatado. Segundos mais tarde, o
piloto (homem de mil negócios) voltou à carga,
acicatado por temores e anseios menos universais:
-Mas se os encargos da exploração do minério pobre
não cobrem os juros do investimento ...
-Qual não cobrem, qual carapuça - repontou Serra
de Oliveira. - Não cobririam se para ela tivéssemos
de partir do zero. Se tivéssemos de pedir dinheiro
não só para as exigências da respectiva exploração e
consequente tratamento, como também para
construir e equipar o porto mineiro, erguer e
apetrechar as centrais de energia, as oficinas, os
laboratórios, os hotéis, as casas, as escolas, os
hospitais, etc., etc.; e ainda para adquirir as
locomotivas e os vagões que por aí andam, para
melhorar o traçado do caminho de ferro, substituir
as travessas e os carris, balastrar a plataforma,
implantar novos cruzamentos, erguer estações, etc.,
etc.! Percebe? ...
-Caramba, não é caso para se zangar! ... Serra de
Oliveira ignorou o remoque: -0 futuro de Cassinga
depende dos minérios pobres, Corte Real! E não só
o futuro de Cassinga, mas também, em boa parte, o
de todo o Sul de Angola, como há pouco admitiu o
Dr. Castro Raposo. Os minérios ricos devem
considerar-se: uma dádiva de Deus para
principiarmos! Para vencer as mil dificuldades
inerentes ao arranque de um empreendimento desta
grandeza, sem dinheiro, nem amigos, nem ajudas
para tanto!
- Diga-me dessas ... Agora sim. Agora percebo. A
concentração do piloto raiava pelo cômico. Serra de
Oliveira (já refeito) resolveu incendiá-lo mais: atraí-
lo para a sua fé de pioneiro:
- Pois é, Corte Real. Oxalá o Dr. Raposo confirme
tudo quanto já se, apurou, e defina como se deve ir
para diante, em pleno êxito.
- Oxalá, caramba! - suspirou Corte Real com
emoção. - Se isto pára de crescer... é uma desgraçal
- Espero não desiludir ninguém - aqueceu o
geólogo, tocado pelo idealismo do engenheiro, pelo
que interpretou como -sonho de negócios- do piloto.
Um silêncio vibrante encheu o acanhado espaço do
bimotor, dilatando os anseios para além das mais
coloridas aspirações de cada um.
Pouco depois Corte Real explodiu: -Nunca supus,
caramba! Sabe que mais?..., vou comprar outro
avião!
- Sério, Corte Real? - atiçou o engenheiro.
- É o que lhe digo! 0 meu sócio tem andado a moer-
me o juízo para a gente ficar com mais um aparelho
destes (melhor!, do último modelo!) que os
representantes nos querem entregar em condições
estupendas. E eu a dar-lhe para trás: -Não, Pinto, já
temos três unidades. Pensa no dinheiro. Isto das
Minas é capaz de afrouxar ... e depois vemo-nos à
rasca. É melhor ir aguentando ... até acabarmos de
pagar estes-. E ele sempre a moer: -Olha que não,
Corte Real. Deita os olhos ao que por aí vai: está
tudo a crescer. Lembra-te de quando comprámos o
primeiro. Estavas com medo de não termos serviço,
e passados seis meses tivémos de mandar vir outro.
E também não tínhamos as coroas! Aquilo das
Minas é como o resto: há-de ir sempre a mais.
0 Cuima foi o primeiro passo. E atrás das Minas ... o
fim do Mundo! - Caramba!, tal e qual o senhor
Engenheiro e o senhor Doutor pintaram! Vou
comprar o aparelho. 0 Pinto tem razão. Já com os
outros foi assim. E logo um bimotor daqueles ...
Raios me partam! Vou comprá-lo!
-Força! - incitou Serra de Oliveira.
- 0 pior é os pilotos.
- Pague-lhes bem. A mola real de tudo é o dinheiro.
- A dúvida não está no pagar. Se calhar pago-lhes
melhor do que as Minas a alguns funcionários
doutorados. Pago-lhes mais do que o Estado paga
aos engenheiros, aos médicos, aos professores ... e
até aos governadores de distrito!
-Não tenho a menor dúvida. Por isso, nos cargos de
rotina, quase só têm sucata.
-E encontrá-los? Já contratámos dois, mas não
chegam ... Na Aeronáutica só empatam e
complicam. Se tratassem de fazer pilotos em vez de
complicar os exames... Exigências. Só exigências.
Isto sempre está uma gaita! ... Olhe, aqui onde
ninguém nos ouve, se eu tivesse de ir amanhã fazer
exame, ficava chumbado. E já vôo há mais de dez
anos, nunca tive a menor caipora, gozo da fama de
ser um piloto seguro, e até competente!, e desafio o
mais pintado para voar por Angola inteira, com
qualquer tempo, a par de mim. E para descer e sair,
por esse mato fora, das pistecas dum certo número
de fazendas e Postos, como eu faço há uma data de
anos, sei lá quantas vezes por mês. E se fosse a
exame ficava chumbado! Sobretudo em
meteorologia. Como se alguém seja capaz de me
ensinar como é o tempo em Angola! Queria vê-los
era cá em cima! Exigem tanto ... e volta meia volta
um desses novos, que sabem tudo, quina!
-De fato nos últimos tempos tem havido uns
desastres chatos -concordou Serra de Oliveira.
-Tudo com os novos. Os velhos, como eu, sempre
em forma! E se lá fosse, chumbava! Como há-de
haver pilotos? E tanto rapazinho por aí, cheio de
jeito e vontade ... Isto sempre está uma gaita! ...
-Não se impressione, Corte Real. Se eu tivesse de ir
amanhã fazer exame de pesados e ligeiros, também
chumbava. Dois chumbinhos garantidos! E já fui
instrutor e examinador em ambas as modalidades.
Mais: nessa altura era infinitamente menos apto, e
até sabedor, do que sou hoje - tanto nos pesados
como nos ligeiros. Os exames são o que são: a
válvula de escape de um certo número de azémulas
e aleijados, que não foram capazes de vingar na
ação de fato. É o mesmo que nas escolas. Olhe para
os realmente grandes-professores -
simultaneamente grandes na escola e fora dela:
quase não têm, ou não tiveram, de todo,
reprovações! Não se impressione, Corte Real. Os
exames são o que são, como já disse. Valem isso que
se vê! E como não podem ser impugnados, os
funcionários que comandam as alavancas, quer
sejam burros ou inteligentes, honestos ou venais,
são, e serão!, quem decide. Dessoramento e
burocracite! Olhe: a jambite é a peste das minas, por
falta de arejamento e concorrência: mas quanto à
burocracite, peste das pestes nacionais, estou
inteiramente de acordo consigo, e creio, de verdade,
que se nutre, essa sim!, da falta de arejamento e
concorrência válida, dessorando tudo, para glória
da incompetência, e, pior, da irresponsabilidade! Eu
também chumbava, Corte Real. E guio há perto de
30 anos, nunca tive um acidente sério, nem tão-
pouco fui atuado. Note bem: nunca fui atuado!
-Eu não direi outro tanto -galhofou o geólogo.
-Estou farto, refarto!, de ser atuado. E também guio
há bons trinta anos, fui igualmente instrutor e
examinador de ligeiros e pesados, e não tenho a
menor dúvida de que sei e valho hoje, nesses
domínios, bastante mais do que então. Não obstante
(desculpem-me!) custa-me a admitir a hipótese do
chumbo, caso tivesse de fazer hoje os exames da lei.
Se o examinador fosse dos tais ... desconfio que
havia de arranjar forma de o pegar. De fazer com
que o feitiço se voltasse contra o feiticeiro. Quero
com isto dizer que a minha opinião sobre os exames
é mais severa que a vossa: não os tomo a sério. Mas
como são coisas de fato, acho que devemos
enfrentá-los no plano dos fatos, e batê-los nesse
mesmo terreno -e depois rir. Mas enfim..., como a
experiência não está feita, tenho de admitir a
hipótese contrária: a eventualidade de ser
chumbado também.
Foi uma ducha de água fria. 0 piloto e o engenheiro
entupiram. Este não era contendor fácil. Não
obstante, em vez de objetar, como seria mais da sua
veia, escorreu o -banho durante frios segundos, e
em seguida perguntou, rumando noutro sentido -
sem dúvida para não -agredir- o visitante.
-Foi examinador? ...
- Fui. Na Guiné, onde desempenhei com relativo
êxito o cargo de diretor de Obras Públicas e Minas.
-De diretor de Obras Públicas?
- Sim. Antes de me licenciar em Geológicas fui
agente-técnico de obras públicas e minas. Isto é:
engenheiro-auxiliar, como então se dizia, com justa
propriedade. Andei pela Lunda, nos diamantes,
estive depois em Timor e em Moçambique, e
entrementes dediquei-me à geologia ... e cá estou.
-Não fazia a menor idéia. Nesse caso... formou-se
muito tarde, não?
- Nem por isso. Com 18 anos já era engenheiro-
auxiliar. Entrei com 14 para o Instituto e com 9 para
o liceu. Licenciei-me aos 30. Fiz o curso com uma
perna às costas, como se costuma dizer. Pouco nele
aprendi de realmente significativo, em relação ao
que já sabia. Fui sempre um apaixonado pelos
-calhaus-. Pude por isso fazer o curso em 3 anos e
classificar-me particularmente bem, sem qualquer
dificuldade.
- Admira não ter ficado pelo ensino ...
- Não fui nisso..
- Eu queria referir-me ao ensino superior.
- Foi o que eu entendi. Materialmente não me
convinha. (A velha questão do dinheiro!). E
profissionalmente não me agradava. Prezo mais os
fatos do que os livros, que estão sempre um pouco
atrasados para quem deseja andar em dia. E no
entanto ... também já escrevi alguns. Mas fi-lo
sobretudo para me ensinar. É por isso que estou
certo de que este meu jovem amigo, companheiro
de viagem -e olhou para Miranda- vai ser um seu
auxiliar precioso. Posso garantir-lho!
- Sim?... -0 interesse de Serra de Oliveira animou o
geólogo:
-Começou por carpinteiro, subiu a encarregado, e já
era mestre-de-obras prático quando foi tirar o curso
respectivo. Um pouco como eu.
Com a diferença apenas de que a escola, para ele, foi
um verdadeiro manancial de teoria; e para mim,
nesse domínio..., como as fontes da planície no fim
do Verão.
- Folgo imenso ... Isso é realmente estupendo -
confessou Serra de Oliveira voltando-se para
Miranda. - Exatamente aquilo de que eu estava mais
precisado: Um prático a sério, com sólidos
conhecimentos teóricos. Tem experiência de
estruturas e edifícios.
-Julgo que nos edifícios não há segredos para mim.
Quanto às estruturas, como todos os dias aparecem
coisas novas ... é difícil responder. Espero que
aquelas que tiver de executar aqui não me
embaracem. Tive a sorte de uma experiência muito
variada. Creio que só nunca trabalhei em barragens
e aeródromos, de forma significativa.
-Então como veio parar aqui? Se calhar nunca esteve
em África ...
-Nunca tinha saído da Metrópole, realmente.
-Que diabo lhe aconteceu? -Estava a trabalhar por
conta própria e tudo parecia correr sobre esferas, o
que no referente aos trabalhos traduzia de fato a
verdade, mas havia um sócio ... Deixou-me entalado
até ao pescoço. Paguei o que pude ... e -fiquei de
tanga-, como parece se diz por cá. Ainda por cima
estava para casar. Claro, já não-casei -e sorriu com
amargura.
- Mas como foi isso? -0 meu sócio era quem tratava
das compras e dos pagamentos, e até quem fazia a
escrita. Quem lidava na administração. Era guarda-
livros, mas também sabia de obras. Passou-se para a
Argentina praticamente com tudo quanto era nosso,
dos clientes e até dos fornecedores. Um golpe de
mestre. Deixou-me os encargos e as dívidas. Fui a
terra! Não tive coragem para recomeçar, apesar das
ajudas que alguns amigos, e, até clientes, me
ofereceram. Não passaria de mero empregado.
Preferi mudar de ambiente. Foi quando vi o anúncio
da Companhia. Como as condições me pareceram
tentadoras ... cá estou. Coisas da vida ... E verduras
também, pois tinham-me avisado, e eu não
acreditei. Confiei nele como se fosse meu pai ...
Tratante! Se um dia lhe deito as mãos... -e
endureceu repentinamente, assumindo um todo
feroz imprevisível, verdadeiramente chocante, que
impressionou Serra de Oliveira e o piloto.
Decorridos pesados segundos de silêncio
comprimido, Corte Real praguejou:
- Merda! Sempre o dinheiro. A porcaria do dinheiro!
Quando raio se inventará uma forma do trabalho de
cada um deixar de se traduzir em papéis à mercê do
primeiro sacana sem escrúpulos? ... Bem diz o Pinto:
-Não há nada como ter dívidas e trabalhar para elas,
e dessas para outras, e assim por diante-.
Ninguém fez comentários. 0 geólogo, no entanto,
sorriu da ingenuidade. Serra de Oliveira, mais
emotivo, porventura mais temperamental ainda que
o piloto, reagiu nesta feição:
-Quantos anos tem você, Miranda? -32, feitos há
dias. Silêncio outra vez. Com o propósito evidente
de aliviar a atmosfera, o engenheiro abriu-se mais:
-Espero que não se arrependa, Miranda. De acordo
com o meu modo de ver, isto é o que lhe convém.
Adapta-se e depois irradia. Angola é generosa para
quantos se lhe dedicam, ou apenas nela se esforçam.
Entretanto, a Companhia não paga mal. Todos têm
possibilidades de fazer economias. E pelo lado que
me toca, estou certo de que nos vamos entender
muito bem. Você deve justamente ser a pessoa de
quem estava à espera, para me aliviar, a fim de
meter o problema das casas no são. A jambite já me
passou dos nervos para o sangue, e qualquer dia
fura-me os próprios ossos. Estes últimos dois anos
têm sido arrasantes. E ainda não temos sequer
metade das casas indispensáveis! Era por onde se
devia ter começado ... Mas a velha história do
dinheiro, isto é, da falta dele, impôs uma disciplina
diferente. Foi preciso dar prioridade às instalações
industriais para que o minério começasse a sair o
mais cedo possível! Os encargos do capital eram
asfixiantes. Só de juros, por dia, segundo tenho por
lá ouvido aos responsáveis pela administração, o
suficiente para garantir a independência de
qualquer de nós! Ou para comprar dúzia e meia de
bons automóveis! Isto, por dia, como disse, e só de
juros!
-Bolas! ... -exclamou Corte Real.
- É verdade! Cada dia de atraso na produção era um
acréscimo assustador da montanha dos débitos.
Felizmente, o maior perigo passou. A Companhia
está a honrar todos os compromissos, e o futuro do
empreendimento já não oferece dúvidas a ninguém.
Assim haja juízo! Mas o pessoal foi terrivelmente
sacrificado. 0 que nos valeu foi a espantosa
capacidade de sacrifício da nossa gente. Não
acredito que alguém mais, nas nossas condições,
tivesse feito melhor, ou até conseguido vencer.
Oxalá os que vierem sejam continuadores ... pois o
dinheiro é um veneno. Uma arma estuporada. Ai,
pois, de quem não for capaz de o superar! ...
-Olé olá! ... -Olharam uns para os outros, sem atingir
a observação de Corte Real. ' Apertem os cintos!
Vou' iniciar a descida para a aterragem. Estamos na
Jamba.
Obedeceram. Sobre um chão vermelho de cólera,
ora negro ora esbatido, aqui e além sanguíneo
-esfolado! -uma nuvem cor de tijolo asfixiando o
casario.
Diques térreos dos mesmos tons, a norte e a oeste,
represando águas cansadas -lagoas adormecidas
afilando para montante, viçosas, descrevendo vales.
Ao centro, apertada entre dois taludes avantajados,
erguidos a par, outra menor, de risco geométrico,
toda de sangue -rebotalho de uma lavaria
imponente. Verdes sujos em redor, sem fim, da
floresta nativa ofendida. Barracões de onde em
onde. Estaleiros quase ao acaso. Oficinas corridas.
Parques industriais, caminhões, jipes, buldozeres,
secreipares, basculadores gigantes, mastodontes em
ação. No sopé de um jazigo esventrado, para leste,
uma chana repousante cortada a meio por uma
pista carnosa debruada a amarelo-sujo e capim. Era
o aeródromo da Jamba -capital do ferro de Angola.
Três ou quatro jipes, dois pequenos automóveis,
uma ambulância e dúzia e meia de pessoas
aguardando o bimotor. Ainda os passageiros mal
tinham saltado já um sujeito meão, de cabeça
prussiana e ar decidido, abordava o piloto:
-Corte Real, tenho um ferido em estado muito
grave, que tem de ir para Nova Lisboa. 0 nosso
avião foi a Luanda. Não sabemos a que horas chega.
Foi buscar dois administradores da Companhia.
Não podemos chamar outro táxi. É muito tarde. 0
acidente ocorreu há bocado e o homem está em
perigo de vida, Pode levá-lo já? ...
-0h senhor Comandante Serrão! ... podem cancelar-
me a licença de vôo!
- Se o homem não vai, diz o médico que não se salva
...
-Ora a minha vida! ...
- A sua e a minha. Mas a do homem é muito pior. Se
não lhe acudimos, apaga-se! ...
- Só se eu inventar uma aldabrice qualquer ... Mas
arrisco-me de verdade! Bem ... logo que esteja no ar
dou a saída como ainda em tempo, e depois informo
que um dos motores se foi abaixo. Não tenho outra
safa para justificar o atraso à chegada. Vou descer
ainda com dia, mas, pela certa, -com o Sol já no
horizonte. Como sabe, devemos aterrar meia hora
antes do sol-pôr. Seja o que Deus quiser! Lá por
mim não há-de o tipo morrer. Mande avançar a
maca! Um momento, senhor Comandante! Preciso
de auxiliares para desmontar as cadeiras. Não
sendo assim a maca não cabe.
Já ali tenho gente para isso. Obrigado, Corte Real. -E
desandou para a ambulância fazendo avançar os
ajudantes.
Minutos depois o bimotor voltava a subir, agora
com um ferido em coma, um enfermeiro, e o velho
Corte Real -piloto de mil aventuras, antigo chofer de
caminhão, fumante, e até candongueiro. Um fruto
genuíno daquelas terras, daquele viver, daquela
civilização cristianíssima.
A aguardar os recém-vindos, além do Comandante
Serrão (uma espécie de ministro local do interior,
dos abastecimentos e dos transportes -e chefe de
segurança) o engenheiro Falcão Mena, diretor-chefe
das Minas, quatro ou cinco técnicos mais, e pessoal
adestrito ao ministério do Comandante -garboso
oficial da reserva, com longa e muito experiente
carreira africana, desde a guerra no mato às funções
burocráticas e à própria chefia da segurança pública
de Luanda, nos dias sombrios de 61.
Serra de Oliveira fez as apresentações e confiou
Miranda aos cuidados de um colaborador esteta
-meio secretário meio oficial de public relations- que
por sua vez o despachou para outro dependente, a
fim de poder borboletear na atmosfera de três
beldades garridas, uma delas morena de formas
rumorosas, jeitos de embalar e olhos rutilantes -ao
palor de cuja cintilação ele trovava chácaras,
endechas e rimas.
Repartidos os cumprimentos e as frioleiras do bom
uso (câmbio de vacuidades) Falcão Mena, Serra de
Oliveira e o geólogo tomaram lugar na mesma
viatura, rumo à vila, seguidos pelos mais.
À entrada do aglomerado, um pomposo letreiro
garrido, grimpando estes dizeres: VILA DO
JAMBA.
-Porquê, do Jamba? -quis saber Castro Raposo.
-Graves congeminações filológicas dos nossos
técnicos! -ironizou Falcão Mena com um sorriso
dourado. -Como -jamba-, na língua indígena, é
-elefante-, concluiram que a vila devia ser
masculino.
-Não lhes gabo o gosto -castigou o geólogo.
-Aprendi há muito que uma tradução
filologicamente corretíssima é, a cada passo, uma
enormidade filosófica. Isto é: de pensamento
pensado. Numerosos espíritos o salientaram já. Mas
um deles, recente ainda, bem conhecido (dos mais
profundos de todos os tempos) fê-lo de forma tão
definitiva, que a questão ficou arrumada.
Ninguém retorquiu. Dir-se-ia até que um ar de fria
reserva congestionara a viatura. Castro Raposo não
se deixou vencer. Manteve o tom e deu outro passo:
-Na tradução de conceitos, o que está em causa são
os conceitos. Jamais os símbolos, a própria
simbologia da tradução -oral, ou escrita! Jamba,
agora (vocábulo da nossa língua), não quer dizer
elefante. Escreve-se com um jota maiúsculo. É um
substantivo próprio. Traduz tudo isto que os
senhores ergueram, a partir do nada, e de que
devem sentir legítimo orgulho. É uma terra. Uma
vila, pelos vistos. - E sorrindo para os
companheiros: - Esperemos que seja cidade muito
em breve.
- Oxalá! - agradeceu Mena. Serra de Oliveira baixou
a cabeça.
- Como tal - prosseguiu o geólogo - a meu ver, seria
mais comunicativa, mais acolhedora! ... se fosse
feminina. Era mais aliciante! ... Na minha opinião,
ficaria melhor se permanecesse como até aqui tenho
ouvido, e, creio, principiou. Sábia intuição a do
povo, que elegeu o feminino!
Um sorriso de concordância pensada aflorou aos
lábios de Serra de Oliveira.
-De resto -insistiu Castro Raposo, no tom agora de
quem pretende justificar-se .- uma vez que a palavra
faz já parte da nossa expressão ... seria mais natural
que se regesse por ela. E como é de textura feminina
... prefiro-a no gênero que lhe quadra, tanto mais
que em português (como nas restantes línguas)
abundam exemplos deveras edificantes de
vocábulos que mudaram de gênero no processo de
assimilação. Para mim, consequentemente, se não se
importam, continuará sendo: a Jamba. ]É mais
suave ... Mais mulher! Além de (segundo o meu
modo de ver, claro está) mais apropriado, e lógico!,
portanto. -E abriu um -largo sorriso prazenteiro,
carteando para os outros dois, como aliciá-los
desportivamente à controvérsia.
-Bem... -compôs Falcão Mena, a sorrir também,
vencendo a neutralidade, no seu jeito cortês, muito
característico e afável: -Eu, pessoalmente, simpatizo
mais com a Jamba. Não por dela extrair, como
afetou, qualquer sentimento maternal. Porque
penso nela como se de uma filha se tratasse.
Contribuí com o melhor do meu esforço, e até
saúde, para que ascendesse ao ser. Aquilo que é;
que nada tem a ver com elefantes, como muito bem
observou.
-Eu voto pelo feminino: a Jamba! É assim que digo,
e assim direi, pintem por aí o que pintarem -
triunfou Serra de Oliveira, entre sarcástico e
mangão.
- Apoiado! -aplaudiu Castro Raposo a sorrir.
- Para masculino, sobretudo aqui (cá para mim!)
basto eu. Já o tenho dito e redito. E sempre que me
apontam o fato de a cidade do Porto ser masculina,
machona!, nunca deixo de repontar que as exceções
são fraco material para construir regras. E Porto
sugere (de resto com legitimidade) Portugal. Ora
Portugal acho muitíssimo bem que seja, e
permaneça, viril! Masculino, portanto. De resto se,
tirante o Porto, até Castelo Branco (dois nomes
masculinos) por ser cidade, é feminina, porque raio
de carga de água a Jamba há-de virar macho?
- Bem observado - aplaudiu o geólogo outra vez. -
Oxalá pois, Jamba e Cassinga, por bem de todos
nós, apesar deste -atentado-, permaneçam femininas
... a dar frutos por longas décadas! Se virarem
machos ... será uma tragédia. Oxalá não mudem ...
apesar desta inversão postiça.
- Oxalá! - apoiaram Falcão Mena e Serra de Oliveira,
irmanados de todo, por fim.
- A masculinização de Jamba - continuou o geólogo
- é tão artificiosa, além de pedante, que foi preciso
escrever -Vila do Jamba-, em vez de simplesmente
-Jamba-, como seria próprio. Não acudirá a
ninguém gravar na coleira de um canídeo cujo
nome é Gaita -Cão Gaita-, em lugar de -Gaita-
apenas. Se não, à entrada de Lisboa e de Ovar, por
exemplo, teríamos de escrever -Cidade de Lisboa- e
-Vila de Ovar-.
-Bolinhos para os autores! -mangou Serra de
Oliveira. -Estarão eles para desovar?! ... -e despediu
uma risada ratona.
A brejeirice de Serra de Oliveira contagiou os
companheiros. Animado pelo êxito, o quarentão
aproveitou a sota para farpear na garupa:
--Vila Real-, -Vila da Feira- e -Vila Nova de Tazem-
(a minha luminosa parvónia) escrevem-se de tais
jeitos por serem aqueles os seus nomes próprios.
Tanto assim que a primeira é cidade, a segunda vila,
e a terceira aldeia. Bem ... Vila Real já foi vila. Vila
do Rei. Há quem sustente (com Henrique Galvão,
Abel Pratas, etc.) que o elefante é o rei dos animais.
Juro-lhes que não sei se é ou não é! (Não falo a
língua deles). Tenho porém a certeza de que o
cobardíssimo do leão jamais o foi, apesar de no
aplomb se parecer imenso com certos monarcas,
monarquinhas e monarquetas de dois pés. Dar-se-á
o caso dos autores da machificação de Jamba não só
acreditarem em Abel Pratas e Galvão, mas também
nos cafres! .... e quererem restaurar a soberania e o
próprio culto dos trombudos?
0 sarcasmo do engenheiro fez explodir um arrebol
de gargalhadas. Estavam junto do hotel. Castro
Raposo foi conduzido ao apartamento que lhe
estava destinado e os engenheiros abalaram para as
suas obrigações.
]Grandes e pequenos, bons e maus, pretos e
brancos, cães sapos efêmeras ... tudo animais!
Somenos ... Coisas com ser!
Incêndios outonais prestes a falecer.
GRANDES E PEQUENOS ...

Mal se viu só, Castro Raposo desfez a maleta e


enfiou-se debaixo do chuveiro. 0 calor úmido
começou a penetrá-lo ... - e ele foi deixando a água
correr, intensa e mordente, até sentir os nervos e os
músculos renovados.
Como a luz da casa de banho era mortiça, os filetes
do chuveiro (mercê da própria finura e do vapor
que - deles se desprendia) não lhe denunciaram a
nojosa coloração da água, que, longe, muito longe
de ser límpida, era da cor do chá forte, ou mesmo
do café brando. A toalha em que se envolveu, por
ser de tom queimado, contribuiu também para a sua
impercepção daquela bastardia. Mas, quando ia
para vestir-se, notou uma estranha aspereza na pele,
e verteu um pouco de álcool no copo dos dentes,
juntando-lhe água, a fim de se friccionar.
A mistura pareceu-lhe uísque. Convicto de ter
trocado os fracos dos espíritos, sorriu - e o sentido
do humor deu-lhe para se desfrutar com o próprio
engano:
-Vem a propósito ... Deus escreve direito por linhas
tortas! - e levou o copo à boca, ingerindo um trago
generoso.
Ainda tentou sustar a ingestão -porém, sem
resultado. Fez uma careta, cuspiu uma praga e
atirou com o resto da mistura para o chão. Avançou
depois outra vez para o lavatório (com o propósito
de lavar a boca dos efeitos da mistela) e abriu de
novo a torneira fria - agora de olhos já bem abertos:
- Céus! ... Esta gente lava-se com isto?!
0 fluxo era da cor do café. Muitíssimo mais escuro
do que no chuveiro, e, sobretudo, do que pequena
porção de que pouco antes se servira, qual, por ter
decantado, aclarara. Mas atrás dela jorrou um
verdadeiro lamaçal hematítico, negro e espesso,
sugerindo café autêntico.
-Merda! ... -berrou revoltado. Pouco a pouco, no
entanto, à medida que os depósitos da canalização
foram sendo expelidos, o enxurro foi clarificando
até se normalizar no tom do chá, do uísque... - ou
daquilo que de fato era: genuína, autêntica,
honestíssima água suja. Água da lavaria!
0 líquido oficial das canalizações urbanas da Jamba
não era todos os dias assim - é bom salientá-lo. Mas,
de ora em quando ... era pior! Castro Raposo estava
azul. A sua longa e muito variada experiência
africana já o tinha experimentado, e até vacinado,
contra praticamente todas as eventualidades
próprias do mato e dos lugarejos primários do
sertão, neles incluídos os de palhotas e até de
furnas. Mas a Jamba - santo Deus! - era uma vila
hodierna, com mais de seis, sete, ou oito mil
habitantes! ... 0 terceiro núcleo urbano do sul de
Angola! ... Um centro industrial florescentíssimo,
pejado de engenheiros e técnicos de quase todas as
modalidades -além de médicos enfermeiros,
sacerdotes, operários e contabilistas - e um quase-
ministro do interior!
A estupefação do geólogo não tinha limites: raiava
pelo desespero, acidulada até à revolta. Levou
tempo a amornar e diluir. E como era
profundamente humano (dotado de vera
compreensão e raro senso de humor) acudiram-lhe
à mente, um a um, aqueles passos da peroração de
Serra de Oliveira, quando, a bordo da avioneta,
procurara consolar Miranda: -Foi preciso dar
prioridade às instalações industriais para que o
minério começasse a sair o mais cedo possível. Os
encargos do capital eram asfixiantes-. -A
Companhia está a cumprir todos os seus
compromissos e o futuro do empreendimento já não
oferece dúvidas a ninguém-. -Mas o pessoal foi
terrivelmente sacrificado. 0 que nos valeu foi a
espantosa capacidade de sacrifício da nossa gente-.
E a seguir os precedentes comentários do piloto: -A
Jamba está uma cidade-. -... há pouco mais de três
anos ainda tudo aquilo era mato! 0 que já lá se fez
deixa uma pessoa de boca aberta-. E em voz alta
para si mesmo:
-Há pouco mais de três anos tudo isto era mato...,
mas a água era melhor!
Deu volta ao manípulo e sustou o fluxo. Continuava
nu, e, apesar de tudo, sob o domínio de uma
sensação agreste de sujidade.
-E agora?! ... -suspirou desolado. Traçou a toalha
nos rins e voltou à maleta. Abriu um pacote de
algodão em rama, desfê-lo em pedaços, e juntando-
os num maço, como se foram compressas, dirigiu-se
de novo para a casa de banho -sentando-se num
banco esgaIgado, que dormia sob o lavatório.
Ensopou depois as compressas em álcool puro e
pôs-se a -lavar-se-, meticulosamente, centímetro a
centímetro (a pera e o bigode objeto de cuidados
especiais) espalhando a esmo, pelo chão em redor,
pachos acastanhados, até esgotar o suprimento.
Praguejou três ou quatro vezes (sob o ardor das
escorrências por -arrabaldes- mais sensíveis) e por
fim, exausto de todo, enfiou-se na cama e tentou
dormir. Não foi bem sucedido. Desesperado,
ergueu-se de jato e voltou à maleta, virando-a do
avesso - até descobrir um pequeno frasco
paralelepipédico, donde extraiu três cápsulas de
gelatina com um pó amarelo no interior. Juntou-as
na palma da mão esquerda e atirou com elas
violentamente para a garganta, esforçando-se por
assim mesmo (a seco) as deglutir. Uma ou mais, ou
mesmo as três, devem ter-lhe aderido à mucosa,
desesperando-o. Meio sufocado, fez esforços para se
desembaraçar do precalço, mas os frutos foram
medíocres: as cápsulas desceram um pouco,
aliviando-o da aflição, mas sem deixarem de o
incomodar. Irritado, avançou para a porta do
exterior, disposto a reclamar o que quer que fosse
-porventura água bebível. Foi quando viu sobre a
cômoda, logo à entrada, uma bem-aparecida garrafa
de quarto, cheia de água cristalina; a par, um termos
de boca larga - quase um feitiço! - denunciando
gelo. Fez as pazes com a Sorte: a perspectiva do gelo
enterneceu-lhe o coração. Sentiu uma alma nova, e,
quase a sorrir, foi buscar o -patife- do frasco do
uísque: cheirou-o profundamente..., repetiu a
inalação ... e, agora sim! com água, gelo e aquele
-bom-amigo-, absolveu-se apostólicamente:
-Ah! ... Deus sempre escreve direito por linhas
tortas!
Esgotou a poção e meteu-se na cama outra vez. Um
torpor insidioso começou a invadir-lhe o corpo, o
sangue, o próprio pensamento. Estendeu um braço
para a mesinha de cabeceira, como quem vai por
algo, mas o movimento não chegou a completar-se:
a mão descaiu .... e a cabeça tombou. Cassinga-
Norte a nóbil Jamba- quase se despovoou para
receber os nobilíssimos administradores da
empresa:
Quem não estava de turno e tinha automóvel, ou
conseguiu lugar fácil nos caminhões postos ao
serviço dos transportes entre a vila e o aeródromo,
não ficou em casa. Numerosíssimos operários e
trabalhadores - homens e até mulheres - não
obstante, em face do afluxo às viaturas livres da
Companhia (e ao zelo esculcado na defensão das
atribuídas aos dirigentes e funcionários de maior
destaque), meteram-se ao caminho a pé, gozando o
esvair aliciante do entardecer, em grupos e aos
pares, enfeitando os carreiros e a estrada com a
alegria festiva da cor e da vibração das romarias
serranas.
Os casacos e as gravatas - galas de fastos solenes -
desafeitos da vivência, desforravam-se de clausuras
com esgares de pudícia e ressaibos inseticidas, aqui
tesos, além engelhados, anêmicos ou contrafeitos.
Serrão -o Comandante laureado - ativo e fugaz, não
tinha mãos a medir: ordens para aqui, berros para
acolá, raspanete à direita, sorriso à esquerda,
esbanjava táctica nos embarques e estratégia na
recepção - girando a plena potência por todo o
campo de operações.
Na rotina exaustiva do dia a dia, a visita era um
banquete de tranquilizantes e revivificações. Os
jogos, as charlas, os bailinhos e os próprios
namoricos (pratos de múltiplos agrados) desceram
por horas até à insignificância de meros tapa-fomes
de ementas desprezadas.
É bem possível que aos visitantes, por não-dali, toda
aquela euforia rescendesse a vênias e mesmo
estima. É bem possível, é. As galas do céu também
compareceram, feéricas, rubras como na véspera
-mas para os de lá, só naquele dia tiveram tal
riqueza e tais cores.
0 avião surgiu, curvando nas alturas, quando o Sol,
quase a despedir-se, perdeu de todo o brilho e se
recatou num enorme disco de sangue - dessorado -
esfriando sobre as matas de além Cului.
Falcão Mena, Serra de Oliveira, Serrão e demais
pontas-de-lança de todos os naipes da técnica, da
saúde, da administração e do ensino cassinguenses,
em fila aprumada - lustrosa, vénio-opinante -
aguardavam penteadíssimos os mandarins do
Velho Continente.
- Serrão! Você mandou avisar o Dr. Raposo? -
inquiriu preocupado Falcão Mena, soletrando em
redor.
-Três vezes! Bateram, bateram... e nada!, segundo
me comunicaram agora. Até despachei há minutos
(logo que vim!) o meu ajudante para lá! ... Não
percebo. Pode ser que, ainda chegue a tempo ... Já
lhe distribuí uma viatura: o ALA-75-75!
-Terá ficado a dormir? ... -Ora ora... -escarneceu
Serra de Oliveira. -Ele quase que não dorme! Já me
disseram que é capaz de passar semanas a fio só
com duas a três horas de sono por noite, sem perder
a forma.
-Então não sei... -A inquietude de Mena contrastava
com a descontração de Serra de Oliveira, realçando
a segurança de Serrão. - Terá ele ido ver a lavaria e
dar uma espreitadela à mina'> ...
- Certo! - interpretou balisticamente o militar. - Por
isso ninguém respondeu. Bem podiam ficar a bater-
lhe à porta até à meia noite.
-Deve ser isso -aderiu Mena. -Quis dar uma
olhadela sozinho... -e arrepanhou a pálpebra
inferior do olho direito com o indicador da mão
esquerda, inclinando o tronco e a cabeça, numa
atitude por demais sugestiva. - Raposo! ... -
Raposão! ... - rosnou Serra de Oliveira, -Cágado!...
-reforçou Mena.
- Se perguntarem por ele diz-se isso mesmo -
arrumou o estratega Serrão, aderindo à -má-língua-
com espírito conclusivo.
- E o Miranda? - quis saber Mena a seguir.
- Veio com o Rodrigues - informou o Comandante. -
Parece que são conhecidos. Olhe, estão além, ao pé
da Albina e da Clotilde.
- Máu - resmungou Serra de Oliveira. - Se ele se
junta ao Rodrigues, qualquer dia arma para aí em
Casanova, também.
-Ou Pinga-Amor... -contribuiu um ponta-de-lança
afeto à lavaria.
0 avião, cumprido um largo círculo sobre a vila, a
mina e as instalações industriais, apontou por fim à
pista, em vôo suave.
-Aí está o Sete-Meses - avisou Serra de Oliveira.
Sete-Meses era a alcunha da magnífica aeronave da
Companhia. Como se tratava de uma quase-réplica,
em tamanho reduzido, dos bimotores das carreiras
provinciais, diziam que era um fruto de -parto
prematuro-: um Friendship de sete meses.
(Friendship era o nome de catálogo dos aviões
mais evoluídos do organismo responsável pelas
carreiras regulares).
Mal o aparelho estacionou, devidamente orientado
na plataforma do aeródromo, o pequeno grupo dos
responsáveis regionais, com Falcão Mena à frente,
aproximou-se da portinhola de saída a fim de
cumprimentar os visitantes e proceder às
apresentações do programa.
A primeira personagem a assomar foi o Professor
Sereia: um catedrático da plena confiança do
Governo, que (dizia-se) sacrificara a carreira para se
dedicar à Companhia. Era o administrador mais
graduado. Escaparático!, cabelos lisos, fronte
invulgarmente ampla (muito alta e larga -quase
excessiva), olhos negros enormes, nariz romano,
boca rasgada e queixo agudo, era uma figura
imponente. Aceitou os cumprimentos de boas-
vindas com afabilidade, sorrindo, e foi generoso nas
apresentações -talvez por nunca ter estado ali, ou
em África sequer. Apertou quantas mãos lhe
estimaram o alcance (beijando as femininas) e por
sua livre iniciativa viajou pelos vários grupos de
operários e trabalhadores em redor, e repartiu,
universitàriamente, sem discriminações, os favores
da sua presença: mão por mão, olhos nos olhos - o
sorriso a correr e esta tríade a rodar: -Uma honra ...
-, - É um prazer ... -, -Muito feliz ... -
Atrás do Mestre (à saída do Sete-Meses) o mais
recente e mais jovem de todos os membros da
administração superior da empresa: o engenheiro
Eurico Corvo: um sorriso engravatado assistido,
posando em ponto de cruz. (Era recente ... apenas
como administrador! Como engenheiro era dos
mais antigos, se não o mais antigo até, e, sem
sombra de dúvida, dos mais válidos e que mais
contribuíram, ao seu nível -diretor técnico do
Projeto Mineiro de Cassinga- para dar espinha, e
membros, ao empreendimento). Meão, de rosto
impressivo, exprimia-se numa aliciante voz de
baixo, derramando simpatia aprumada -envolvente
e pedante. Era contudo fácil -aberto-. e deveras
vertical. De todos bem conhecido (porventura
amigo) há muito que não vinha a Angola. Talvez
por isso, e apesar da sua magnífica e já extensa folha
de serviços à Província, dir-se-ia reimprimido: algo
mudado. Deixou correr o cerimonial do Professor
Sereia, moderado (sempre composto) tributando
apertos de mão e abraços -contra chistes e farófias.
Como acompanhante dos dois, o médico-chefe da
empresa - Dr. Pinto de Castro-, que foi o último a
sair. Comum ... dissolveu-se quase logo na plebe,
auscultando vísceras e humores. Era um clínico
habilíssimo, poeta de rimas brancas-pediatra por
intuição e psicólogo por rotarismo. Humano e
inteligente, enfim. Chamavam-lhe Doutor Alergia
-por tanto propender para este sortilégio cazumbí-
reino encantado da ignorância médica.
Eurico, o Corvo, era algarvio - e lisboeta por osmose
e liofilização. Tão lisboeta, tão seguro da sua
ulissiponência, que para dar cor e perfume ao
cidadismo que dele rescendia, por tudo e por nada
falava do Algarve e do seu algarvismo - sem a
verborreia mourisca, típica de lá. Pausado e solene
(isto é: pedante), modelando cortesias na sua bela
voz de baixo, pousou a mão no ombro de Serra de
Oliveira e declamou:
- Então? ... - (parecia um acorde). - Que é feito do
Dr. Raposo? ...
- Parece que foi dar uma volta de carro, pela mina, e
ver as instalações. (A mina, como já se viu, era a céu
aberto: um conjunto de colinas capeado -à pele ou
perto dela - por um manto mais ou menos espesso
de plaquetas de hematite aluvionar, de elevado
teor).
-0 quê?! ... Já? ... Quando chegou ele ao Jamba?
(Corvo, o Eurico, muito compreensivelmente, era
dos que aderiram, em Lisboa, à recrismação da
Jamba. Preferia: o Jamba).
Há pouco mais ou menos um a hora - estimou
Serra. E mirando a seguir o cronógrafo,
matematicou: - Há sessenta e oito minutos, para ser
exato. Por acaso fixei. Como foi a hora da chegada
do avião de Moçâmedes e eu também vim nele ...
- Santo Deus! - incendeu Corvo. - Não era caso para
tanto! ... A Administração da Companhia pediu-lhe
de fato a maior urgência na sintetização de um
relatório (que se espera seja um ponto final), sobre o
volume, a qualidade e as perspectivas técnico-
económicas dos jazigos de ferro tanto de Cassinga-
Norte como de Cassinga-Sul ... mas, por amor de
Deus!, nunca esteve no nosso espírito exigir tanto
do senhor Enfim, o melhor é não o contrariar. 0
prestígio da sua indiscutível autoridade, e a própria
força da sua dinâmica, e até do seu caráter, são-nos
de todo indispensáveis, para acabar de vez com os
boatos e a atitude de certas esferas sobre a
hipotética inexistência de ferro em Cassinga. É
verdadeiramente incrível, como, numa altura
destas, em que já estamos a exportar minério a
uma cadência nunca entre nós suspeitada, haja
ainda responsáveis capazes de manter que não
temos ferro, precisamente agora, que estamos
prestes a fechar novos contratos de financiamento,
em condições magníficas de juros e prazo, para
anular os existentes - alguns dos quais (verdade se
diga) são estampas da mais pura agiotagem! Mas,
enfim ... foram aquilo que na altura nos
concederam. Onde?! ... quem faria melhor? ... se hoje
ainda, tantos responsáveis nacionais persistem na
propalação de que não há ferro dentro das nossas
concessões e de que somos um organismo
insolvente?
- Parece que eles agora já não dizem que não há
ferro... - esclareceu Serra de Oliveira.
-Eu sei, eu sei ... Agora, para não se atolarem no
ridículo (em face das exportações) dizem que há;
mas que não presta. Apenas no
Jamba e em Tchamutete haveria de fato umas
ocorrências( descobertas à última hora!) de que nos
estamos a servir para deitar poeira nos olhos do
Governo, que é o avalista dos contratos mais
importantes que firmamos. Porém (dizem eles)
essas ocorrências milagrosas não dão para mais de
três a quatro anos, veja lá!
-Essa é boa ... Mas os tipos dizem isso a sério?
-Serra de Oliveira, meu caro amigo, trata-se de
afirmações escritas, oficiais! Uma delas (já um
pouco ultrapassada, bem sei) em pleno Conselho
Superior de Obras Públicas do ministério, segundo
me garantiu um dos seus membros natos, que
esteve presente. Está escrito em ata. Afirma-se lá
que em Cassinga nada ocorre que permita concluir
da existência de minérios de ferro válidos, em
quantidades industrializáveis!
-Mas então ... -Por amor de Deus, Serra de Oliveira!
As maiores sumidades da Terra não forçaram
Galileu a retratar-se? Não queriam que a Terra
girasse! ... Estes não querem que haja ferro nas
nossas concessões! ... Por isso nos vimos forçados a
recorrer ao Dr. Raposo... É melhor não o contrariar.
Deixemo-lo à vontade. Se ele quer andar sozinho ...
tanto melhor.
-Disse-me o Mena que ele vasculhou tudo sobre a
Companhia, em Luanda.
- Já fez o mesmo em Lisboa, graças a
Deus! ... Estudou todos os relatórios e pareceres dos
nossos técnicos e consultores, tanto nacionais como
estrangeiros, coisa que os nossos simpáticos
inimigos de cá, e de lá, nunca fizeram. Foram
sempre por partes, a fim de inferirem como lhes
quadrava, e depois não terem de dar o dito por não
dito.
- Mas se o Dr. Raposo já viu tudo ...
- Nós também pensamos assim, meu caro Serra de
Oliveira - atalhou Corvo. - Mas quando lhe pedimos
que redigisse o seu parecer, atirou-nos com esta:
-Agora quero ver tudo in loco. Tratem de me
arranjar passagem de avião para Luanda, quanto
antes. Hoje mesmo! Não tenho tempo a perder-.
-Mas ele veio de barco! -Veio de barco, de Luanda
para Moçâmedes. Quis aproveitar estes dois dias de
mar para pôr em ordem a documentação que
recolheu na Província. Olhe, para ele vir, até
protelámos o embarque daquele engenheiro que
você nos pediu, para as obras do Sul. De contrário
nem daqui a duas semanas cá estaria. Os aviões
andam à cunha.
- Pois é; com essas e outras é que a gente se amola.
Então você não sabe que isto aqui está num caos e
eu já não tenho para onde me virar? - repontou
Serra de Oliveira, irritado, ao saber que uma vez
mais o tinham preterido, retardando a vinda do
colaborador que ele tanto reclamara.
- Eu já não aguento mais! Qualquer dia rebento,
Corvo!
- Calma, Serra de Oliveira. Mandamos pelo mesmo
avião o Miranda. Aquilo de que você mais precisa
neste momento é de bons auxiliares ao nível médio.
-Corvo! ... Por amor de Deus, não me chateie!
Aquilo de que eu mais preciso, só eu o sei! Isto já é
demais! ... Sinto-me exausto! Arrombado! ... E você
é talvez o principal responsável, pois sempre que
planeia um trabalho para 10 meses, quando chega a
data do respectivo início, nunca há meios, nem, a
maior parte das vezes, elementos; para começar! E o
tempo vai passando..., eu reclamo, insisto,
barafusto, faço ver as consequências ... e você ou
não responde ou diz que -no próximo correio
seguirão os primeiros desenhos-. Mas isso nunca
acontece. Ou aquilo que vem é insuficiente para se
arrancar. E quando, finalmente, se pode dar o
ponta-pé-de-saída, já lá vão três ou quatro meses do
prazo, ou mesmo cinco! E ainda por cima, um ou
dois dias mais tarde, chega um telegrama do
Coordenador Geral, em estilo de quase ameaça, a
recordar que por isto e mais aquilo - a obra tem de
ficar concluída, impreterivelmente, dentro do prazo
previsto-. Porra! Isto não é método! Estou farto!
Refarto! Merda, merda, merda, merdal
-õ Serra de Oliveira, por favor! ... Você sabe
perfeitamente que não está nas minhas mãos, nem
muitas vezes nas da própria administração da
Companhia, ou até nas do Coordenador Geral,
decidir quando se pode arrancar. Por nós tudo se
processaria de acordo com o que se planeou.
Sabemos o que isso representa. Mas há os ministros,
os bancos, os financiadores, as leis, a burocracia ....
cujas resistências somos nós quem tem de vencer.
Exigem mil explicações, por vezes inconcebíveis,
que temos de minudencíar. Fazem perguntas, as
mais inesperadas, que têm de ser respondidas. E
tudo isso queima tempo. E os juros ... sempre a cair!
E como há contratos firmados .... ai de nós no dia
em que deixarmos de cumprir o primeiro. Falhamos
irremediavelmente! ... De nada nos valerá invocar o
que se passou. Os fornecedores, sendo também
financiadores, se nas datas previstas para as
montagens não têm as obras de base conforme o
ajustado, sobrecarregam-nos com penalidades tais,
que de modo algum sobreviveremos. Leia os
contratos. Chega-se ao ponto de termos de pagar a
quase totalidade das encomendas, perdendo o
direito às mesmas. As fábricas têm também os seus
compromissos. Trabalham dentro de programas
escalonados por vários anos. Qualquer atraso nosso,
determina perturbações, e portanto prejuízos, que
nenhum deles está disposto a suportar.
-E que culpa tenho eu disso, Corvo? -martelou Serra
de Oliveira no mesmo tom agreste.
-Nenhuma, bem sei. Mas a única forma de
compensarmos os desvios provenientes das ...
-E os projetos? -cortou Serra de Oliveira ainda mais
agressivo. -Os desenhos de construção? Por que
merda de merda nunca chegam a tempo Não se
trata do gastar! Trata-se do perder! Do deitar-à-rua!
.... amolando a vida dos que por aqui ...
-Serra de Oliveira! -interrompeu Corvo com secura.
Você sabe muito bem que há uma interdependência
inalienável entre todos os elementos de cada
convenção, os projetos que os objetivam, e, de igual
modo, todos aqueles passos e diligências que já lhe
referi. Fábricas, Governo, bancos, fornecedores ...
-Deixe-se disso! -zurziu, Serra de Oliveira, cortando
sarcàsticamente a explicação do antagonista. -Há
muita coisa que não chega a tempo por culpa sua,
ou da administração, ou dos fazedores' dos projetos,
ou de quem quer que seja, lá, em Lisboa!
-Calma, Serra de Oliveira. Tenha calma! -preveniu
Corvo com azedume. @Calma, calma, calma! Tenho
calma mas é o tanas! Vocês, lá em Lisboa, estão
junto da família, não lhes falta nada, comem a horas,
dormem quando devem, não apanham sol, nem
frio, nem chuva, nem filária, nem paludismo...
-Serra de Oliveira! -urrou Corvo, fora de si também
-Você está a ser faccioso. Faccioso e injusto! É raro o
dia em que eu saio do meu gabinete ou das
dependências da Companhia antes das onze, ou
mesmo da meia-noite! Não pretendo apoucar o
vosso esforço aqui. Mas quanto a horas de comer,
meu caro!, vocês são muito mais felizes do que nós.
Passamos semanas a fio, semanas!, Serra de
Oliveira!, em que nenhum de nós, responsáveis, lá,
em Lisboa!, se pode dar ao luxo de jantar. Passamos
a copos de leite e sandes! É certo que temos o
conforto da família; que não somos forçados a sofrer
as Intempéries nem as patologias daqui; mas vocês
deitam-se, levantam-se e comem com muitíssimo
mais regularidade que nós!
- Coitadinhos! ... Nós levamos vida, de príncipes! ...
- escarneceu Serra de Oliveira, pateticamente,
refletindo sobretudo ofensa.
-Eu não disse isso, Serra de Oliveira! Tão pouco
pretendi diminuir o seu esforço, ou o de qualquer
dos que trabalham aqui! Quis, apenas!, repôr as
coisas nos seus devidos lugares. Essa história de que
em Lisboa todos levamos vida flauteada, para mim,
não pega! Tenho mais experiência de cá, do que de
lá! E olhe, por aquilo que tenho passado, sobretudo
nos últimos tempos, preferiria mil vezes estar em
Angola. De resto, se isto lhe pode servir de conforto,
antecipo-me a participar-lhe aquilo que só amanhã
fazia tenção de lhe dizer: vou ficar consigo, e com os
outros, pois você não é o único sacrificado, quatro,
cinco, seis meses ... 0 tempo que for preciso!, para
vos ajudar! Mas só agora me foi permitido agir
assim.
-Ora aí está uma boa notícia -feriu Serra de Oliveira
sem arrefecer. -Há pelo menos um ano que você
devia ter vindo.
-E quem fazia aquilo que pesava sobre os meus
ombros?
Serra de Oliveira não teve tempo de replicar. 0
engenheiro-chefe de Tchamutete, Agostinho Roxo,
que há um bom pedaço assistia à contenda, ansioso
por uma acalmia e sedento por expor o seu
problema (e até as dificuldades que massacravam
Cassinga-Sul) cansado de esperar; interrompeu a
disputa neste seu jeito característico:
-õ Corvo, dá-me licença? E você, Serra de Oliveira,
desculpe-me também. Eu não posso ficar aqui mais
tempo. Vim à Jamba, de fugida, só para lhe
apresentar cumprimentos, e ao Professor Sereia,
claro está. Não posso demorar-me mais. Creia.
Tenho de partir quanto antes para Tchamutete. Os
trabalhos ...
-Não janta conosco? -cindiu Corvo, já recomposto, o
sorriso logaritmado a afinar pela quinta decimal. -0
Professor vai ficar desolado! E eu também. Como
está a Maria Adelaide? Boas notícias dos filhos?
-Obrigado. Estamos bem. E os filhos, segundo as
últimas notícias, bem igualmente, graças a Deus.
Mas desculpe, tenho de partir já. Temos de acabar
esta noite uma série de montagens na lavaria do
minério maciço, que foram interrompidas a meio da
tarde para se proceder a uma betonagem essencial.
Se não fosse isso eu nem poderia ter vindo. Lá para
as oito ... nove da noite, devem ter tudo em
condições de se prosseguir. Mas, de acordo com as
minhas instruções, enquanto eu lá não estiver não se
retomam as montagens. Tenho de ver se aquilo fica
devidamente afinado. Qualquer pequeno desvio dá
lugar a avarias constantes, logo que se retome a
produção.
-Bem..., se assim é, tenho imensa pena ... Mas
venha conosco até lá cima, à vila. Bebe um uísque,
e explicamos ao Professor a razão da sua não-
comparência à pequena festa que hoje oferecemos
a todo o pessoal. Bem vê que não será muito fácil
convencê-lo de que o engenheiro-diretor de
Cassinga-Sul não assiste à recepção porque os
imperativos do serviço lho impedem.
-Não posso, corvo. Desculpe; mas não posso. E
peço-lhe encarecidamente que explique ao Professor
o que se passa. Quando forem a Tchamutete espero
ter ocasião de lhes mostrar pormenorizadamente
como aquilo funciona, e nessa altura
compreenderão a minha relutância em deixar de
assistir às montagens que estão em curso.
-Tenho imensa pena, Roxo. Mas depois do que me
disse ... faça como entender. Apresente os meus
cumprimentos à Maria Adelaide, e diga-lhe que eu
continuo à espera daquela cachupa genuinamente
cabo-verdiana que ela me prometeu.
-Muito obrigado. Não me esquecerei da
recomendação. Mas não se trata só daquilo que já
lhe expus. Preciso de levar uma viatura daqui.
-Então como veio? -Vim na minha station. Mas à
chegada notei que estava a perder óleo. Devo ter
batido numa pedra, e o carter estalou. Felizmente
quando dei conta o motor ainda não tinha gripado.
Foi uma sorte. Pedi ao engenheiro Daniel que ma
reparasse hoje mesmo, se possível, mas não há
carters sobressalentes. Estão pedidos há mais de três
meses e ainda não chegaram, nem se sabe se já
foram embarcados.
-Fale com o Serrão.
- Já falei. Mas como há imensa falta de carros, ele
descartou-se. Disse que só com uma ordem sua
autorizaria a saída de qualquer viatura daqui. Diabo
... Eu não posso dar uma ordem dessas.
-Bem sei. Ele disse aquilo porque também está
aflito. 0 que ele pretende, segundo suponho, é que
você saiba, duma forma objetiva, que o problema
dos transportes, tanto aqui como lá em baixo, é
desesperado. Suponho que aqui, na Jamba, a
situação é ainda mais grave do que em Tchamutete.
E como apesar disso eu pretendo levar-lhe uma
unidade ...
-Mas se não há outro remédio! ... Ele que resolva
como entender. Você tem de seguir. Logo, precisa
de uma viatura. 0 Serrão que decida qual a que lhe-
deve ser entregue.
- Eu não posso, de maneira nenhuma, ceder
qualquer das unidades que estão ao meu serviço -
avisou Serra de Oliveira. - Já andamos a fazer turnos
com os carros. E mais dia menos dia, ficamos sem
transportes, e depois não se queixem. Há mais de
um ano que estou à espera das carrinhas que me
pertencem.
- Quando saí de Lisboa tinham embarcado as
primeiras seis, das doze novas que foram pedidas -
informou Corvo. E voltando-se para o colega Roxo:
- 0 Serrão que sacrifique a unidade que fizer menos
falta.
Obrigado. Agostinho Roxo despediu-se e foi
procurar o Comandante, que, muito generalado,
rondava o acompanhamento do Professor. Atraiu-o
e discutiram: aquilo e mais aqueloutro, e Serrão
acabou por ceder. Inspecionou em redor, e resolveu
mobilizar um dos seus guardas-auxiliares. Ao cabo
de uns quantos segundos indecisos optou por um
moço de pera e bigode, atarracado, que, num dos
extremos da platafonna do aeródromo, pingando
sacolas e mais imbambas, dava ao pedal de uma
motoreta, pronto para partir.'
-Salviano! -gritou Serrão com energia.
0 rapaz desmontou. E despindo cansadamente as
encomendas (com o ar de quem espera voz de
prisão -o rabo entre as pernas, bigode murcho e
pera no peito) arrastou-se até junto do superior.
- Para onde ias tu? -Para o Dongo, o senhor
Comandante. Ia ter com a minha mulher. Foi Vossa
Excelência que autorizou. Fazemos hoje um ano de
casados e a minha sogra e a minha irmã chegaram
anteontem, consoante disse ao senhor Comandante.
Era para ter ido às duas, como manda a guia ... mas
por causa do ferido Vossa Excelência mandou-me ...
-Está bem, está bem -travou Serrão, lembrando-se
do romance do rapaz e da licença especial que lhe
havia concedido. - Tem paciência. Não foste às duas
mas irás. Olha, leva o senhor engenheiro.Roxo lá
cima e dá-lhe a chave de uma daquelas carrinhas
que vieram ontem da oficina. Se não estiverem no
Redondo, vai ao Parque, ao Jango, aos hoteis .... e
apanha aquela que primeiro encontrares (desde que
não seja de nenhum dos senhores engenheiros, nem
dos médicos, nem dos encarregados principais)
entrega-a aqui ao senhor engenheiro Roxo. .-E posso
depois seguir para o Dongo?
- Podes. Vê se ajeitas as imbambas de forma a dar
uma boleia ao senhor Engenheiro. Agostinho Roxo
não estava nada satisfeito com o que ouvira. Não
pôde por isso furtar-se à incômoda sensação de que
o amigo estaria apenas a querer descartar-se dele
(apesar de o julgar incapaz disso), pois com a
chegada dos administradores as viaturas possíveis
deviam estar todas no aeródromo. Mas lembrou-se
de que Serrão guardava sempre um ou dois carros
nos seus domínios, como reserva especial de
segurança, para emergências, rondas anómalas A
imprevistos de natureza equivalente. E como A seu
caso era uma emergência ... Além disso, como o
rapaz tinha instruções que lhe permitiam, por assim
dizer, apoderar-se de uma viatura qualquer (desde
que fosse da empresa) não objetou. De mãos nos
bolsos não havia de ficar. Agradeceu:
-Muito obrigado Serrão. Até à vista. -Até à vista.
Boa viagem. Cumprimentos à Esposa. .
-Obrigado. Serão entregues. Não foi difícil
acomodar imbambas, engenheiro e guarda-auxiliar
na motoreta -dado o caminho ser bom, a viagem
curta e a boa-vontade sem reticências. Mal
atingiram o coração do aglomerado avistaram uma
carrinha apetitosa, que luzia perto do Hotel Nf 1. 0
seu número de matrícula era: ALA-75-75.
Salviano não perdeu tempo:
-Quer aquela, senhor Engenheiro? É a 75-75! Veio
ontem da oficina. Está como nova.
-Se puder ser, vinha mesmo a calhar.
- 0 pior é se não tem chaves - agourou Salviano.
-Isso é o menos. Esteja ela em ordem.
- Está. Inté levou um motor novo. É da emergência!
-Vamos vê-Ia. As chaves estavam no devido lugar, o
tanque de combustível cheio, o óleo e a água a nível,
a caixa de ferramentas em ordem, os pneus de
socorro (tinha dois) convenientemente atestados, e,
ainda por cima, num gradeamento da caixa, dois
tamboretes de 20 litros: um com gasóleo e outro
água; e à frente, sobre o para-choques, dois feixes de
molas: um traseiro e outro frontal.
-Caramba! -exultou Agostinho Roxo -só falta a caixa
do farnel e o saco da lona para a água de beber! Até
guincho duplo tem! Salviano, parece que podes ir
ter com a tua mulher. Parabéns pelo aniversário e
felicidades.
Salviano tinha-se acocorado do lado oposto, junto à
roda posterior esquerda. Ergueu-se e preveniu:
- Senhor Engenheiro, este pneu está a vazar ...
Diabo ... Num faz mal. Eu mudo a roda num
estante. Inda fica outra de reserva. - E sem esperar
por mais, deitou mãos à obra.
A noite principiava a adormecer a Terra ... A
solicitude do guarda comoveu Agostinho Roxo.
Sabendo quanto ele devia estar ansioso por se
reunir à família, e que o Dongo ficava a umas três
dezenas de quilômetros por maus caminhos de
matas, esteve para recusar a assistência e desistir até
do regresso a Tchamutete. Mas não podia. Tinha
pela frente cerca de uma centena de quilômetros de
estrada péssima e obrigações inadiáveis à espera.
Não interferiu na atividade do ajudante.
Salviano estava há 5 meses na Companhia. Deixara
pouco antes o serviço militar, onde se distinguira
brilhantemente e fora condecorado com a Cruz de
Guerra de 1.11 classe -por feitos excepcionais em
combate. Quando da desmobilização, não quis
regressar a Trás-os-Montes, onde fora recrutado e
nascera. Inscreveu-se no rol dos que optaram pela
permanência na Província, e calhou-lhe vir para a
Jamba. Fora uma sorte –segundo ele. Como era
trabalhador rural sem qualificações profissionais
dignas de tal crisma, aquilo que aprendera até ir
para a tropa de nada valia: era saber de escravo
-moeda vã, ultrapassada.
Serrão escolhera-o pelo que dele dourava a sua
heróica folha de combatente, e tinha-o no mais
elevado apreço - razão porque, numa altura
daquelas, lhe concedera, a puro título de favor, a
licença invocada. Era em tudo o mais, além de
guarda, um colaborador verdadeiramente exemplar.
Estava por isso proposto para promoção, louvor, e
prêmio de serviço, em cerimônia para dali a dias,
sob a presidência do Professor Sereia.
-Porque não vives na Jamba, Salviano? Isto é,
porque não tens cá a tua mulher? - quis saber
Agostinho Roxo.
- Ela está com uma gente lá dos nossos sítios. Come,
trabalha, e inda lhe pagam dois contos de reis por
mês. E quando entrei era solteiro. Depois ... como
ainda num temos filhos (falta pouco ...) inda num
tivénios vez pra casa. Só daqui a uns seis meses nos
calhá, se as obras adiantarem de modo. Mas o meu
cunhado é estucador. E também se ajeita muito bem
de pedreiro e carpinteiro. É mesmo um artista! Vem
pra cá maila minha sogra e a minha mulher e a
minha irmã. Fui eu que lhes arranjei pra virem.
Quer dizer: foi o senhor Comandante Serrão. Vamos
fazer uma casa. Num mês fica' pronta. A
Companhia adianta os materiais e a gente põe o
trabalho. Já tenho uma data de gente pra ajudar.
Também já ajudei a umas seis! ... Assim, é um
consolo. E se nos quisermos ir embora a Companhia
fica-nos com tudo pelo custo real. Até podemos
passá-la... (Em Tchamutete o problema era
diferente, visto ser um -acampamento-, bastante
mais antigo, que estabilizara. Só naquela altura se
preparava para retomar o crescimento e fazer face
aos múltiplos problemas que caracterizam uma
expansão acelerada).
- Vai ser uma casa que dá para todos continuou
Salviano. - São duas casas juntas: ageminadas! A
minha mulher, a minha cunhada e a minha sogra
lavam e ingomam.
A minha sogra até costura! A dar horas nas casas
dos senhores engenheiros e dos mais, as três vão
forrar tanto como nós. Como eu e o meu cunhado,
queria eu dizer. Num tarda que a gente compre um
bom lameiro lá na terra. Até já falamos ó dono, e ele
espera, pois aquilo que lhe ofereceram é uma dor
d'alma. E ele é um lameiro e tal ... Mas com a crise
da guerra e dos engajamentos pra França e pra
Alemanha, as terras já nem dão senhoria. Só pagam
a pena quando são os próprios a fazerem-nas. Há
delas por lá que já andam a mato! ... Pronto. Já está,
senhor Engenheiro. Pode ir à confiança.
- E pôs-se a firmar o pneu que vazava, no sítio
próprio da caixa.
A noite, prestes a reinar, estrangulava os últimos
suspiros da tarde, abafando incêndios sobre o
poente. Agostinho Roxo contemplava a motorizada,
ponderando sobre a viagem do guarda.
- Ora agora está tudo pronto - concluiu Salviano,
arrumada a tarefa, sacudindo as calças, como a
preparar-se para abraçar a motoreta e largar,
-mailas imbambas-.
- Obrigado Salviano mas o engenheiro não se
decidia a partir.
-Vou meter ao caminho dos parques, atravesso o
dique da lagoa das lamas, e pela picada
da albufeira acima, pranto-me no Dongo num ar
que lhe dá.
-E passas bem -Cum isto?... -e bateu na motoreta
como se afagasse o pescoço de um cavalo ou de um
macho de trote -, cum isto vai-se a toda a parte!
Quando o caminho fica pior, por via dum pego, ou
duma vala( na areia num há azar) agarro nela às
costas, passo-me para o lado de lá ..., e aí vou eu
outra vez.
-Mesmo agora, de noite? ...
Conheço bem o caminho. E tenho uma luz que e um
luxo. Não se incomode senhor Engenheiro. Conheço
estas picadas todas a palmos.
- E fez um gesto largo, como a descrever o território.
Salviano estava cada vez mais ansioso por partir.
Mas Agostinho Roxo, incompreensivelmente, ainda
a retê-lo:
-Bem, se assim é ... Olha, Salviano, não te importas
que eu me associe à vossa festa de hoje ... e
contribuía para ela, pedindo-te que faças um brinde,
por mim, em vossa intenção? ...
SaIviano não atingiu logo o alcance da pergunta.
Mas quando viu Agostinho Roxo de carteira nas
mãos, hesitante, compreendeu o embaraço do
superior:
- Oli ... oh! Não se incomode, senhor Engenheiro ...
Então que lhe fiz eu?! ... -E vendo clarões dos carros
do cortejo dos administradores a deslumbrar na orla
da vila, acelerou, antecipando a despedida com este
comentário sem intenção: - É melhor eu ir já, senhor
Engenheiro; antes que me encarreguem de mais
alguma coisa. -E riu, erguendo o pé do chão, para
dar início ao movimento.
Agostinho Roxo agarrou-lhe no ombro, sustando-o,
e meteu-lhe no bolso da camisa uma lembrança
generosa.
-Faz-me este favor mais, Salviano. Aceita. Deixa-me
participar da vossa festa. Felicidades. -E afastou-se
para a carrinha.
0 rapaz sentiu-se tocado: agradeceu e sorriu. E
fazendo estardalhar a traquitana (como ele em festa)
abalou a todo o gás. Roxo fez girar o motor da 75-75
e meteu para Sul (evitando o cortejo) de luzes
apagadas até sair da vila.
A noite, entretanto, sufocara o dia. As estrelas
furaram a abóbada e a Terra escureceu. 0 vermelho
dos caminhos, das minas, dos terreiros, dos diques,
das próprias coberturas confundiu-se com os verdes
da floresta, o sujo das palhotas, o negrume das
bissapas. Só as águas se enfeitaram. Libertas da
soalheira, despiram-se de molezas para refletir as
estrelas, lavando-se - polindo-se como metal.
Gralheira e trepidante, a motoreta de Salviano
rolava, dominadora, reduzindo ao silêncio, ralos,
sapos, rãs ..., assustando os primeiros aldrabões
pousados de onde em onde - olhos de fogo a balizar
o caminho. Quando atingiu o dique fez uma curva
larga e meteu pelo bordo sul, aproveitando o sulco
virgem de um secreiper. Era um cone-de-luz a
cuspir fogo e trepidações pelo vértice, diluindo a
escuridão, crista além, rumo à outra margem. 0
sulco do secreiper deu volta e regressou. Dois
aldrabões, à frente, junto à borda, engodaram-no... -
e o escape enraiveceu. Súbitol o cone-de-luz traçou
um arco pela imensidão, e o motor praguejou ... Foi
um apelo aflitivo - direto ao Céu. A luz sumiu-se ...
Ruídos abafados de carne, roupas, imbambas e
metais descendo sobre terra. Baques apressados
franzindo as águas. Deus nas alturas! ... E o silêncio
repousou.
Vozes da noite ... - ecos da eternidade. 0 banho das
estrelas, frio e indiferente, enrugado por ondas
concêntricas humildes, não tardou em espelhar
outra vez. 0 cortejo atingiu os hotéis e desfolhou.
Uma hora mais tarde a recepção floria. E a Jamba,
princesa em festa, comendo e bebendo... -
trabalhava e sofria.
A tua beleza não é tua ... É dos meus olhos.
0 brilho das estrelas não é delas ... Deve-se à noite.
Os fortes só são fortes com os fracos. A força é uma
sombra. A tua sombra não é tua!
As estrelas são belas ... Ama a noite!
Pensa em Deus ... n'Ele até! ...
e se ninguém, ninguém 0 adorasse ...
A TUA BELEZA NÃO É TUA ...

Após a aterragem, Serra de Oliveira confiou


Miranda aos cuidados de Rodrigues, que era o
secretário-polimorfo do departamento de obras da
Companhia. Como ' falava inglês e alemão
fluentemente, a cada passo arvorava também em
menager e interpreter. Alto, magro, bem parecido e
solteiro, era um como galã perpétuo (sempre em
leilão) cobiçado e fugidio como os prêmios da
lotaria. Com pouco mais de 30 anos e o curso dos
liceus (ou equivalente) andara pela Alemanha, mas
pouco fizera, vencido por razões de natureza
sobretudo econômica. Alegre por fora, e mesmo
folião, vivia com a mãe - amargurado por não ter
ido mais longe, e mais longe ainda se poder achar
dali.
- Senhor Anacleta Miranda - principiou mal ficaram
sós - vamos ver o que se lhe pode arranjar a respeito
de alojamentos. Estamos bastante mal no capítulo,
não sei se sabe ...
- Já me preveniram em Lisboa de que nas primeiras
semanas teria de me contentar com o que houvesse.
Creio que não haverá novidade. Sou pouco
exigente.
-Semanas ! ... Falaram-lhe em semanas? Ah, ah ...
Isso também eu queria - escarneceu Rodrigues, um
tanto ou quanto decepcionado com a adaptabilidade
do companheiro. - Era bom, era. Meses! Se não for
um ano ... ou mais! Começaram tudo pelo fim. Tudo
quanto se refere a habitações está atrasadíssimo.
Pela sua categoria (já estudei o seu caso) competia-
lhe um apartamento em qualquer dos hotéis, até lhe
distribuírem uma casa. Mas está tudo cheio. Pode
ser que por estes dias vague um quarto numa das
vivendas de três cômodos, onde estão uns
mecânicos de 1.' classe, visto o mais antigo ter já
direito a férias. Resta saber se o engenheiro Daniel o
díspensa. Para hoje, o melhor que se lhe pôde
arranjar foi uma cama num dormitório de operários
classificados.
- Quantos são?
- 0 quê? Os dormitórios?
- Não, os operários. -Naquele que mandei arranjar
para si, são três. Consigo quatro. 0 Comandante
daqui a umas duas semanas pode arranjar-lhe coisa
um pouco -superior-. Mas eu, no seu lugar, não
mudava! É a saIa-comum duma casa de três
cômodos, ocupada por dois agentes-técnicos. Vale
mais estar numa camarata de quatro pessoas, todas
nas mesmas condições, do que numa sala daquelas,
por onde os outros passam, entram e saem. Quando
se trata de família ... vá lá! ... Agora ali! Isto, na
minha opinião ... Cá estamos. Este dormitório, cá
para mim, é muitíssimo melhor. É mesmo dos
melhores.
- Dos melhores porquê?
- Na gente. No resto quase não há diferenças.
Mobílias, banheiros, roupas, etc., é tudo
praticamente igual. Nos desta categoria, bem
entendido!, pois há muito pior: camaratas para seis
pessoas com armários-roupeiros só para três! Um
por cada dois! E sem mesinhas de cabeceira! Tudo
em ferro: feio, mau, e sujo! ... Asqueroso.
- Sujo porquê? -Junte seis pessoas num cubículo e
verá o que acontece.
Entraram. Era uma célula de uma construção
relativamente comprida, térrea, sem jactâncias,
como todas as demais (hotéis incluídos)
assambarcada por uma sala enriquecida com um
aIpendre cimentado. Como instalações sanitárias:
um lavabo completo, com chuveiro. Quatro boas
camas, quatro armários-guarda-fatos, cadeiras e
alguns quadros simples nas paredes, constituíam o
recheio. Miranda esperava pior. Isto é, não esperava
tanto: aquela honestidade, e o próprio asseio.
-Qual é o meu lugar? -0 penúltimo. 0 armário em
frente, pertence-lhe. Além do bom aspecto exterior,
posso garantir-lhe que por dentro está impecável. Já
lhe passei revista. É pena não se encontrar aqui
nenhum dos seus companheiros para eu o
apresentar.
- Não faz mal ...
- Olhe, aqui tem a chave do exterior. As do armário
estão na gaveta de cima. Não valem um caracol.
Entram em quase todas as outras fechaduras, e vice-
versa. Uma vigarice. A maior parte já não funciona.
A culpa foi de quem fiscalizou isto. 0 construtor
fartou-se de ganhar dinheiro nesta porcaria.
Anacleto Miranda aceitou a chave e agradeceu. De
si para si Rodrigues era uma vítima característica de
-jambite-, porventura crônica, porém benigna. Mas
como não pôde deixar de simpatizar com ele, não
fez qualquer comentário às suas observações
afrivoladas. Arrumou a maleta na parte inferior do
armário-roupeiro e libertou-se do casaco.
-Não sei se sabe que hoje não há jantar! ... ambíguo
Rodrigues, mal o viu livre, jambitando pela
entoação a inocuidade da sentença, a que
pretendera imprimir sabor.
-Não há jantar?! ... -Haver, há. Mas não é no hotel...
Serviço livre: cada um trata de si. Costuma ser bom.
Bebe-se e come-se à discrição. Não há nada como a
vinda dum graúdo. É no Jango.
- Jango?! ...
- Um coberto ao ar livre. Coberto e não coberto.
Hoje funciona por dentro e por fora. Cada qual
onde melhor lhe quadra. É mesmo ao fundo dos
hotéis. Bem ... Quer ficar ou vir comigo? Passo pelo
escritório (só para ver se veio algum rádio) e, sigo
logo para o Campo. Os Administradores não
tardam aí.
-Se não se importa vou consigo. -Só me dá prazer.
Mas lá em baixo tem de passar para a caixa. Fiquei
de levar duas pequenas (por sinal muito giras!) e
mais quatro ou cinco rapazes. Elas têm de ir à frente
...
-Muito bem. Fechou o armário e saíram juntos.
Apesar da água ter entrementes melhorado um
pouco, o Professor Sereia não sofreu qualquer
impregnação, visto haverem-no prevenido (com
desculpas) de que o líquido oficial das canalizações
da vila, naquele dia, jorrava particularmente turvo.
Mas tinha dois garrafões com água potável na casa
de banho, -boa para beber e lavar as mãos-. 0
Professor sorriu: achou piada. (A referência às mãos
era um tranquilizante contra os receios da
bilhargiose, que -diziam- -penetrava só pela pele- e
-só se dava com águas claras, de preferência
correntes-!!!) Como tomara banho de manhã...,
-apenas desejava refrescar o rosto e refazer a barba-.
(A água -boa para beber- ia de Sã da Bandeira, a
longos 300 quilômetros de distância. Era cristalina e
muito gostosa -e volta meia volta, tanto ou mais
inquinada que a honradíssima -putreia- da Jamba.
Como era muito ácida, corrigiam-na com calcáreos
do Namibe, transportados para a Huíla nos vagões
que desciam com suínos vivos -e bois!) '.
Apesar da afluência ao Jango ter começado logo
após a chegada do cortejo, a festa só alvorou depois
da reaparição do Professor (em fato branco -único
porventura em toda a Jamba e arredores) escoltado
pelos engenheiros Corvo e Mena - mais o
Comandante Serrão.
As condições atuais de higiene melhoraram. Depois
dos primeiros drinks, de umas quantas charlas
inofensivas e de alguns petiscos, ereia teceu fartos
elogios ao serviço, ao ambiente, ao próprio conforto
do hotel, e, sobretudo, ao -sentido- da recepção no
aeródromo.
Apesar de ninguém se ter cansado de o ouvir, a
certa altura, lembrando-se do geólogo, ciou sobre
Falcão Mena:
- 0 Dr. Castro Raposo? ... Ainda está em Luanda?! ...
-Não, senhor Professor. Aterrou cerca de uma hora
antes de Vossa Excelência. Foi dar uma volta pela
mina, sozinho, e ver as instalações. Já mandei saber
se tinha regressado, mas disseram-me que ainda
não: que a carrinha dele não estava aí, nem tão
pouco no parque, e que o apartamento onde se
alojou permanecia fechado à chave, não se
encontrando esta por dentro, como parece
verificaram.
- Mas ... disse sozinho?
- Exatamente, senhor Professor... -0 sorriso fisgueiro
de Falcão Mena dizia bastante mais do que as
palavras. -Nada de influências! ...- e o timbre da voz
passou de violino para rabecão.
- Percebo ... Mas de noite, por aí ... sozinho ... Não
será arriscado?
-Não... -tranqüilizou Mena, seguro de si, abrindo o
sorriso. -Os caminhos da mina estão todos em bom
estado, como de resto é vital para a exploração. E
com as luzes da vila, da lavaria, das próprias
máquinas em serviço, não é possível uma pessoa
perder-se. Sobretudo uma pessoa como ele. 0 mato é
o seu elemento.
- Bem ... Eu não queria referir-me a esses aspectos.
Sim... Compreende ...
Mena ficou sem saber onde o Professor queria
chegar:
-Só se teve alguma avaria ... Mas não é crível. 0
Serrão disse-me que lhe tinha distribuído uma
carrinha praticamente nova, apetrechada para todas
as emergências correntes, tanto da estrada como do
mato!
- Não é isso ... - insistiu Sereia. E como ninguém o
entendesse, baixou a voz e purgou-se de vez: - Não
é perigoso andar por aí..., sozinho!, sobretudo de
noite? - Ah! ... - (Mena lobrigou por fim o alvo do
Mestre) - Não ... Isto por aqui ... está tudo ,calmo! A
segurança e a tranquilidade são absolutas. Não é
verdade Serrão?
- Pode-se dormir ao ar livre, em pleno mato!, como
de resto acontece, uma vez por outra, com alguns
dos nossos funcionários, até por recreio - garantiu o
Comandante, atirando para a balança com todo o
peso da sua autoridade, prestígio, e comprovada
experiência anti-bandoleira.
- Bem ... antes assim. No entanto... - Via-se que o
Professor não fora vencido. Mas, claro!, ao notar a
poeira, reabriu asas e trocou o terreno pela
atmosfera, reassumindo a altura pomposa da sua
elevada hierarquia: - Informaram-no de que eu e o
senhor engenheiro Corvo chegávamos hoje? ...
- Informamos, sim, senhor Professor - reverenciou
Mena, de novo em fase com a emissão. -Mas ele já
sabia. Como veio de Moçâmedes com o engenheiro
Serra de Oliveira, este pô-lo A par do programa.
0 Professor não teve élan para ir mais longe ... A
desistiu do -filão-. No espírito de Mena e -dos
restantes instalou-se a dúvida sobre qual o -minério-
que de fato preocupava o Mestre: a segurança física
do geólogo? ... ou a sua herética não-comparência
ao rendez-vous?! ...
Sereia fez no entanto a conversa por fim cintilar, à
máxima grandeza, por latos domínios intelectuais
-seu foro dileto: escopo verdadeiro do
academicismo que o enobrecia! Foi uma delícia:
todos se concentraram nos prazeres da audição ... A
dada altura, porém, Serra de Oliveira e Pinto de
Castro, até ali arredios, engrossaram a audiência. 0
Mestre perorava sobre os autóctones nómadas mais
atrasados, nomeadamente Mucancalas, Mucuísses,
Mucubais, etc. Rematou a tirada com este exórdio: .
-Visitar Angola foi desde sempre uma das minhas
mais ardentes aspirações. Gostaria, por isso, de
poder ficar largos meses ... Contactar ínflimamente
as variadíssimas tribus do território, em especial as
daqui, do Sul e Sueste, por serem, como salientei,
aquelas que menos influências estranhas têm
sofrido. Quem dirá que estamos nas -terras do fim
do mundo-? ... Sou, de fato, um apaixonado
fervoroso da etnografia. 0 homem primitivo, então,
seduz-me ... Mas falta-me o tempo. Aquela vida de
Lisboa esgota-nos ... E como, ainda por cima, ando
às voltas com o problema da moral, esse fruto
transmutável das civilizações ... (Pinto de Castro
deu uma cotovelada em Serra de Oliveira e
segredou: -É altura de você defender o que prega:
que a moral enraíza naquilo que em nós é primário
e age por adenda, ou complemento. Que o
altruísmo se adita ao egoísmo. Que os atos morais
vêm depois dos outros terem vindo!-. -Cale a boca!-,
rosnou Serra de Oliveira. -0 tipo não está a falar
para nós. É só para a gente ouvir-). _... Como sabem
- ensinou o Professor, passos adiante-, aquilo que
sentimos, que designamos por senso moral,
começou por não existir. Primitivamente não
nutríamos, não sentíamos!, obrigações para com o
que quer que fosse ... exterior ao nosso limitado
âmbito individual, sem reserva para os nossos
próprios semelhantes! E, seguidamente, para com o
que quer que fosse ... exterior ao nosso grupo
familiar ... Ao clã! Matar, ferir, destruir, roubar ...
fora do grupo, não só fornecia proveito e grangeava
honras, como comprazia aos poderes sobrenaturais!
... Ora hoje, para nós, criaturas civilizadas, já não é
assim. Bem ... não é assim, definitivamente, nos
domínios do consenso individual e familiar, e ao
nível do clã. Clã, para nós, é Pátria. Nação! Mas fora
daí, à escala dos grandes-grupos, ainda não mudou
de todo, como as guerras que ardem por esse
Mundo fora, e aquela que nos movem,
insofismavelmente demonstram, apesar de todos os
rebuços; de todos os seus disfarces!, a denunciar o
fundo primevo real de quantos pretendem ser
civilizados, não o sendo!
0 meu vizinho lisboeta, do rés-do-chão, tem dois
frigoríficos e três automóveis, e suponho que até se
formou. É no entanto um autêntico selvagem! Um
hiato de apoteose. Serra de Oliveira aproveitou a
maré para formular a seguinte pergunta:
-Vossa Excelência, senhor Professor, está realmente
seguro de que o senso moral é um ganho da
civilização?
- Seguríssimo. A moral e a própria felicidade:
Aquilo que nós concebemos como implícito nestes
vocábulos. -E logo a seguir, como quem esclarece
um aluno do liceu, diretamente para o interpelante:
-0 conceito de felicidade das criaturas humanas
começou por se resumir à plena satisfação dos
desejos e impulsos naturais, apesar de desde o
princípio só fug@Idiamente ser alcançada. Foi a
nossa primeira quimera! ...
-Mas os que já fartaram aqueles desejos e impulsos
continuam ...
-Eu sei. Eu explico: As nossas primeiras
interpretações da Natureza, engenheiro Serra de
Oliveira, arrastaram-nos, pela força das evidências
(pela razão!) para o pluralismo cósmico: múltiplos
poderes, numerosos deuses (um para cada fim, por
assim dizer), em oposição ao Deus universal das
chamadas religiões civilizadas, que são recentes,
como sabe. Têm escassos milênios! Ora para os
nossos antepassados (tal como nas tribus a que me
referi) aquilo que designamos por alma, ou espírito,
era algo que eles cedo associaram com um duplo
sobrenatural de natureza quase-física,
intrinsecamente relacionado com o corpo, a vida e a
morte da cada um: com necessidades, hábitos e
tendências de natureza corporal! ... Sabemos que
não é como eles pensavam.
-Mas não sabemos de fato muito mais, não lhe
parece senhor Professor? -alvitrou Serra de Oliveira,
pisando com força o pé do médico-chefe.
-Como assim? -Ainda não deixamos de crer, e de
descrer, nas interpretações, e mesmo revelações, dos
que julgamos mais esclarecidos ...
-Não será por isso, senhor Professor - interveio
Pinto de Castro sem dar tempo ao Mestre para
replicar- que tantos espíritos, dos mais eminentes,
sustentam que -saber que não sabemos- é sabedoria,
e -saber do que não sabemos- filosofia? ...
0 Professor não gostou. Mas como todos sorriram e
o médico não perdeu a compostura muito própria
do seu humor, sorriu também, e farpeou sem
enfado:
-E o que é ciência, meu caro Doutor? ... -A nossa
interpretação daquilo que pensamos que sabemos,
por se ajustar à natureza dos fatos, tal como hoje os
aceitamos.
-Perdão! -acudiu Serra de Oliveira. - Estamos a
desviar-nos das proposições em causa: das teses do
senhor Professor Sereia. - E diretamente para este: -
Os nossos presentes conceitos de felicidade (nossos,
de pessoas civilizadas) segundo depreendi, não
sendo já o que foram, identificam-se com algo que
nos transcende. Algo que está para além das nossas
necessidades e tendências primárias, e que,
portanto, consagraria obrigações entre os -grandes-
grupos-, usando a terminologia de Vossa
Excelência. Pergunto: harmonizam-se tais quids,
chamemos-lhes assim, com o princípio universal da
responsabilidade em relação a todos os homens pelo
simples fato de serem homens? ...
- Mas sem dúvida. São a própria substância daquilo
que em todas as religiões evoluídas exprime a
universalidade comum dos seus conceitos morais
-brindou o Mestre, sem no entanto ter deixado
escapar a manobra do engenheiro para calar Pinto
de Castro.
- Traduz-se pois, nas várias fórmulas de sintetização
dos vários credos, a mais bela das quais seria -amai-
vos uns aos outros-, e a mais lúcida e humana,
porventura, -sede compreensivos?- ...
- Sim ...
- Mas como Vossa Excelência afirmou que as nossas
determinantes primitivas ainda nos comandam, isto
é, que à escala dos -grandes-grupos- as coisas ainda
não mudaram, de fato (apesar de todos se
arrougarem defensores, ou, pelo menos, adeptos da
lei moral universal), as nossas raízes ancestrais não
foram extirpadas. Julga-as Vossa Excelência
passíveis de extirpação ...
-Sim. Embora não faça idéia de quando. -As
próprias grandes religiões civilizadas, ou evoluídas,
conforme prefira -continuou Serra de Oliveira-
como é do conhecimento comum, só muito
recentemente iniciaram os primeiros passos, tímidos
quiçá .... no sentido do seu entendimento facial,
pondo termo às guerras mútuas e exautorando os
ódios que as opunham, apesar da sua milenária
moralidade equivalente, isto é, concordante. Será
isto sinal de um verdadeiro progresso nosso, como
homens? ...
-Mas sem a menor dúvida, meu caro engenheiro
Serra de Oliveira. (Via-se que o Mestre estava
impressionado. Mas como podia ele adivinhar que
um -pobre-diabo- de um engenheiro que gasta o
melhor da sua vida no mato não é necessariamente
um matumbo?)
-Oxalá Vossa Excelência tenha razão. É que eu,
sinceramente, só vejo progresso facial. Receio que se
trate de uma simples revisão de interesses. De modo
algum de uma vitória de nós mesmos sobre eles, ou.
seja, sobre nós próprios. Como somos, no Globo,
quase já um só clã ... serra de Oliveira sabia
perfeitamente que deitara por terra a teoria do
Professor. Mas fizera-o de forma tão sutil que ele
não poderia sequer ofender-se. Dir-se-ia que o fato
passara desapercebido. 0 Mestre, contudo, sentira-o
bem. Mas não acreditou que os demais o tivessem
alcançado. Para ele, Serra de Oliveira seria uma
exceção. -Há exceções por toda a parte-, disse para
si mesmo. -Paciência. Como ele fechou pelo
equacionamento de uma dúvida, deixemo-la
pairar-. E voltando-se para o engenheiro, comentou:
- É uma posição filosófica bastante curiosa... Pinto
de Castro, porém, não estava satisfeito. Franco-
atirador da pele até à medula, abriu outra vez fogo,
por conta própria:
- Senhor Professor, se bem entendi, Vossa
Excelência crê firmemente na ascensão (não sei qual
seja o termo adequado) da própria natureza
espiritual (chamemos-lhe assim) do homem como
homem. Isto é, daquilo que em nós supera os
demais seres da Criação ... ?
- Exatamente. Duvida que nós, como homens,
tenhamos de fato progredido? ...
-Debaixo do ponto de vista moral ... Façamos uma
pausa. Nos mais aspectos, tem dúvidas?... -A
pergunta de Sereia revestiu aquele tom de subtileza
agudíssima, própria dos mestres completos.
- Não ... Não tenho -admitiu Pinto de Castro,
alongando os lábios num jeito muito seu.
- Não posso deixar de reconhecer que o mais genial
dos médicos de há um século atrás, ou até
menos,'pouco valia ao pé de mim, que não passo de
um clínico como tantos outros ...
-Muito bem. - (- Parece a táctica do Serra de
Oliveira-, segredou Serrão para Eurico, o Corvo
-sagazmente recatado no seu poleiro de
neutralidade). -Muito bem- repetiu o Mestre. -0
simples fato de termos passado, como referi, dos
estreitíssimos interesses do indivíduo para os da
família; e depois do clã; e de, a seguir, nos havermos
aproximado do estádio vizinho de um só clã
universal (como disse, e muito bem!, o engenheiro
Serra de Oliveira) não traduz um alargamento
enorme das nossas obrigações? Um progresso
indiscutível? ...
-De ordem espiritual e moral? -insistiu o médico.
- E porque não ... Se é de ordem sócio-política,
racional!, e mesmo religiosa? ...
- Vossa Excelência está a confundir ...
- Perdão, senhor Dr. Pinto de Castro! - cortou o
Professor com secura. - Eu ainda não concluí! ...
0 médico baixou a cabeça, abrindo um pouco os
braços, numa cortesia simpática, própria de quem
pede desculpa e confessa uma falta.
- Como ia dizendo - continuou o professor - se o
indiscutível progresso verificado é de ordem sócio-
política (racional, portanto!) e também religiosa (um
só Deus, em lugar dos sem conta primitivos!) o dito
progresso é, conseqüentemente, de ordem racional e
moral!
Serra de Oliveira fez um gesto vago (porventura
apenas de assombro) e o Mestre voltou a erguer as
mãos, prosseguindo com firme professorança:
-0 Sol, a Terra, os elementos, os animais ferozes, os
próprios répteis deixaram de ser temidos e
reverenciados, e até de fazerem parte das nossas
preocupações dominantes. Porquê?... Graças aos
progressos da nossa crescente compreensão a partir
da tomada de conhecimento da nossa fragilidade
primária. Da nossa dependência terrífica das forças
e dos poderes exteriores. Compreendendo
sucessivamente melhor os condicionalismos que nos
subordinavam, conseguimos líbertar-nos da maioria
deles e minorar substancialmente o furor dos
restantes. Que significa isto, meus caros senhores? ...
Sereia voltara ao princípio: ao canto por onde
começara! 0 exemplo de Corvo alastrava... Mena,
contudo, incapaz da menor irreverência, gostaria de
aplaudir. Mas o médico, não querendo talvez ficar
atrás de Serra de Oliveira, perante a inusitada
extensão do silêncio, arriscou este passo, com
brandura:
- Para mim ... significa tecnologia. É um assunto que
eu e Serra de Oliveira temos debatido arduamente.
0 quadro moral do homem não mudou. 0 Sol, a
Terra, os elementos e os animais ferozes foram
substituídos por duendes mais terríficos ainda. Não
é necessário enumerá-los. Todos sabemos deles
tragicamente. Na sua essência, o panorama do
homem é o mesmo.
Continuamos a chocar com limitações, acorrentados
à mesma existência precavida, que Vossa Excelência
chamou racional. Nunca tivemos outra. Os
frigoríficos, os foguetões e os automóveis não
alteraram a nossa substância humana.
0 Professor acusou o golpe. Mas sorriu ... Não
atinou com melhor saída do que esta:
-Então como concilia o Doutor a razão (razão no
sentido filosófico mais corrente, sobretudo entre
nós: capacidade de compreender: (cum-
prehendere!) com aquilo a que chamamos
consciência! ...
-Sou mau filósofo, senhor Professor. Sei vagamente
que depois de Kant o idealismo germânico
distinguiu razão de intelecto; que Hegel levou a
destrinça até às últimas conseqüências (ao
pensamento de Deus antes da criação do mundo
-segundo ele próprio); e que os filósofos franceses e
ingleses não navegaram nos mesmos oceanos até
Bergson cindir definitivamente a inteligência da
intuição, etc., etc., e que há quem afirme que a
consciência é algo de mais profundo que a razão,
sendo-lhe por isso anterior .... mas, para mim,
homem comum, além de médico, fazendo tudo
parte de nós mesmos, somos uma e cada coisa ...
mais o corpo! A conciliação está feita por natureza.
Somos o que somos não sabendo o que ser seja,
cônscios de uma vaga pluralidade -fundida em um
só.
- Até Serra de Oliveira arregalou os olhos. Mas o
Professor sorriu ... Sorriu superiormente. E o
médico, face ao êxito, ergueu as mãos (como pouco
antes o Mestre) a reclamar silêncio, e desferiu este
bote caseiro:
-Não mudamos. Mais ainda: Creio que a consciência
é responsável pelas nossas tendências para a
harmonia; por todos os nossos sentimentos morais
de ordem superior, hoje de âmbito universal, como
ontem, pois o universo da época era o âmbito dela.
E que à razão se devem todos os fracassos coletivos
e individuais das tentativas de consecução dos
objetivos da consciência. Da permanência daquelas
tendências, da objetivação daqueles sentimentos, e
da realidade dos fracassos ... urdimos a filosofia. E
como desta, em boa verdade, nenhuma contribuição
positiva para o aperfeiçoamento da natureza
humana resultou já..., ou se pode esperar que
resulte... - não vejo, honestamente, o que quer que
seja que dela possamos em tal sentido esperar.
Ninguém retrucou. Pinto de Castro invadira o
próprio imo da sabedoria do Mestre. Ia fatalmente
ser aniquilado. (Heresias daquela dimensão nutrem-
se de -insuficiência-. De -superficialidade-. Da
própria -ignorância-). Sereia manteve por isso,
aquela, muito dele, superior compostura olímpica.
Iam no entanto decorridas mais de duas horas e
Serrão tinha desaparecido. A ausência de Castro
Raposo começara a preocupá-lo. Mandou averiguar
de novo se a carrinha do geólogo não regressara de
fato, e em seguida se parava por qualquer ponto da
mina ou das instalações industriais -indo ele
próprio bater à porta do apartamento do
desaparecido. Derrotado em todas as frentes, mil
apreensões a flanquearem-lhe a tranquilidade,
decidiu comunicar o fato ao Professor. Entrou
justamente no momento em que ele se preparava
para retomar a palavra e diluir Pinto de Castro.
Aproximou-se do Mestre, e em meia dúzia de
frases, quase ao ouvido, pô-lo ao corrente do
sucesso.
- Eu bem disse ao Menal -explodiu com indignação,
antes que o oficial tivesse tempo de expor os seus
planos de contra-réplica. - Os senhores têm a mania
de que sabem tudo! De ver facilidades nas
aparências daquilo que as não tem! De facilitar! ... -E
deixou-se cair na poltrona, visivelmente abalado,
suspirando: - Infantilismos. Pura infantilidade.
à exceção de Mena (que ficou encabuladíssimo,
apesar de não fazer idéia Exata daquilo por que o
Professor o quisera atingir), os mais,
assarapantados, remiraram-se de alto a baixo. Dir-
se-ia, perguntarem uns aos outros se aquela prótese
era a réplica do Mestre para o médico (tendo aquele
baralhado nomes), ou a consequência de algo
novíssimo, ainda não equacionado, que, entrando
na dialética, dessorara a olimpicência de Sereia.
-E agora? ... Não seria melhor dar já o alarme?
-sugeriu desbaratado, logo a seguir, fazendo a luz
penetrar os crânios de quantos o rodeavam.
-De modo algum, senhor Professor! -A voz de
Serrão, apesar de ainda abafada, subira de tom e
alcançara todos os do grupo, sem no entanto lhe
trespassar as fronteiras. - Isso poderia dar lugar...
sabe-se lá ao quê!
Corvo (que nome bem ajustado!), bico à banda e
olho de esguelha, desceu então do poleiro:
- Perdão! ... E se Vossa Excelência, num gesto de
carinho para com o pessoal dos turnos da noite,
manifestasse o desejo de ir ver a lavaria a funcionar
agora mesmo, em vez de amanhã, conforme está
programado? ...

0 Professor desabriu os olhos. Mas Corvo (Passarão-


Negro-de-Lisboa, como tantos lhe chamavam,
devido à sua lisbonência, à sua sagacidade, e à
circunstância do símbolo heráldico da urbe de
Ulisses exibir dois corvos face a face), Corvo, dizia
eu, não se impressionou. Fez até de conta que não
ouviu a reação do Mestre. Adoçou mais ainda o
vozeirão bem timbrado, aliciando com pausa,
magistralmente:
- 0 Comandante Serrão organizaria dois ou três
grupos eficientes, para baterem os terrenos da mina,
e, se necessário, até os dos restantes jazigos. Mercê
dos alardes inerentes ao luminoso interesse da
comitiva de Vossa Excelência, esta, muito
naturalmente, não poderia deixar de atrair as
atenções, e os movimentos do Comandante
passariam desapercebidos, ou, na pior das
hipóteses, seriam levados à conta de medidas
adequadas à circunstância. Imunes desta sorte
contra suspeitas de natureza alarmante (ele,
Comandante Serrão, e sua gente) poderiam aplicar-
se a fundo e agir em plena eficácia. Vossa
Excelência, entretanto, daria uma volta pela mina;
observaria os bulIdozers e os scrapers gigantes a
extrair e transportar minério virgem das jazidas
naturais para as grandes tremonhas primárias da
lavaria; e, por fim, para mais se dignificar a
autenticidade da visita, abandonar-se-iam os carros
e percorreríamos as instalações industriais a pé, tal
como consta do programa, galvanizando toda
aquela gente magnífica, que tem coração! Estou
certo de que não ficariam insensíveis; de que
vibrariam até!, perante tão inusitada atitude de
interesse, e respeito, pelo seu duro labor.
- Hum! hesitou o Mestre.
0 sorriso aflorara de novo aos lábios de Sereia. Um
mar vivo de novas emoções (novas ondas!) agitava-
lhe a alma, embalando-lhe o coração ...
- Seria magnífico!
- Esplêndido!
- Oportuníssimo!
Ouviu-se dos vários quadrantes, irmanados sem
reservas. Via-se que o Professor estava prestes a
capitular. Apesar de por vezes fátuo, e
gregàriamente pedante, no fundo era um homem
bom. Um ser com alma e coração, como todos nós.
Corvo não perdeu tempo:
- Há mais de duas horas que Vossa Excelência se
digna honrar, com a sua presença, este nobilíssimo
grupo de funcionários da grande Família Obreira de
Cassinga.
E num gesto largo (magnífico, bem medido!)
envolveu todos os presentes, dentro e fora do Jango.
- Se lhes dissermos - prosseguiu Corvo - que o
senhor Professor Sereia quer, com a sua presença,
demonstrar àqueles que por força das suas
obrigações não puderam vir até aqui, que deles se
não esqueceu .... estes compreendê-lo-ão!
0 Professor já não escondia o júbilo. Corvo exordiou:
-E se me for permitido informá-los de que Vossa
Excelência lhes pede o favor de não interromperem
a festa, permanecendo aqui, até ao nosso regresso
(enquanto Vossa Excelência vai honrar e
cumprimentar os camaradas dos turnos da noite)
estou certo de que ninguém arredará pé, e todos lhe
ficarão profundamente gratos. Por fim, se estivesse
de acordo, senhor Professor, dir-lhes-ia que, após o
regresso da zona industrial, Vossa Excelência
estimaria despedir-se de todos os presentes:
agradecer ... e desejar boas-noites a cada um,
individualmente.
Foi uma vitória integral. Sereia emergiu de todo:
-Não me parece mal pensado, não senhor... Tenho.
de concordar que além de muito competente, você
é, também, muito hábil, engenheiro Corvo! Hábil ...
e sagaz! ... Muito sagaz! Não quero privá-lo, nem
privar-me, dos frutos, e até das delícias da sua bela
oratória. Pode, pois, informar os presentes de que
nos vamos ausentar. Quanto tempo será necessário?
...
-Hora e meia. Não fazendo grandes paragens, chega
para uma visita quase completa. Mas não podemos
demorar-nos mais do que alguns minutos nos
vários pontos do trajeto -informou Falcão Mena,
transbordando felicidade.
-Bem... -continuou o Professor, dirigindo-se a Corvo
outra vez: - Diga-lhes que nos demoraremos cerca
de hora e meia. - E voltou a sorrir abertamente para
quantos o rodeavam, que sorriam e sentiam quase
como ele.
0 discurso de Corvo foi um êxito estrondoso. Se
havia alguns senões contra a fatuidade empolada do
Professor, a aliciação do engenheiro desfê-los por
completo. Soube ir tão ao fundo do coração daquela
gente, que uma salva de palmas vibrante,
verdadeiramente apoteótica, reboou do Jango para
os hotéis, repercutindo-se nas cozinhas, invadindo
os próprios quartos e as enfermarias do hospital. E a
seguir às palmas: hips e hurras inflamados,
esmagando os dirigentes de emoção e remorsos,
purificando-os por tudo, e de todo .... de momento.
Nunca o Professor Sereia se sentiu tão
verdadeiramente feliz. Jamais, em toda a sua já
longa vida assistira a coisa assim. Nas centenas e
centenas de manifestações em que participara, de
que fora alvo, ou simples observador, jamais aquele
fogo ardente, aquela verdade, aquela alma, aquele
coração. Em síntese: aquela espontaneidade
agradecida!
A visita às instalações industriais e à mina foi um
prolongamento desvanecedor (muito natural)
daquele áureo triunfo grimpante. A emoção chegou
a toda a parte primeiro que ele. Brotava das
próprias coisas, do chão, do ruído dos motores, do
ronronar das correias transportadoras, da
trepidação dos crivos, dos jatos de água que os
filtravam. Respirava-se. Era o espírito do próprio ar.
As lágrimas vieram-lhe aos olhos numerosas vezes.
Invocou Deus ... e lamentou muito do que fizera. Do
que deixara de fazer. E mais ainda: -daquilo que
pensara!
Serrão teve assim o campo livre. Só no regresso,
contudo, e por acaso, Sereia voltou a pensar em
Castro Raposo. Uma patrulha aproximou-se-lhe do
carro e fê-lo reentrar na realidade. Até àquele
momento não se detectara qualquer rasto do
geólogo. Ninguém o vira. Ninguém dera conta dele.
E como as carrinhas eram quase todas da mesma
marca, da mesma cor, e de modelos muito
semelhantes, os indícios de ter passado nuns
quantos sítios não inspiravam a menor confiança,
No Jango, entrementes, a festa prosseguia com
animação: dançava-se, bebia-se, charlava-se, e
comia-se até, ainda, com verdadeiro prazer. 0
regresso do Professor foi carinhosamente festejado
-e por via da desaparição do geólogo, apesar de ser
perto da meia-noite, Sereia não iniciou as
despedidas, como prometera. Apesar de fatigado,
decidiu esperar mais: até pelo menos (segundo
informou) haver notícias diretas do Comandante.
Como a animação da festa ia no seu melhor,
ninguém estranhou aquela decisão. Não contando
os favorecidos do seu pequeno grupo, todos
pensaram que ficara porque isso o comprazia.
Agradeceram-lhe a presença duplamente: primeiro,
porque enquanto não se retirasse a música, os
petiscos e as bebidas não sofreriam restrições;
segundo, porque vendo-o ali (após uma viagem
esgotante de Lisboa até Luanda, e, logo a seguir, por
Nova Lisboa até Cassinga, mais a sobrecarga da
recepção e da visita à mina) as ressonâncias da
alocução de Corvo, vivas ainda, enriqueciam a
atmosfera de compreensões fraternais.
Mas a verdade é como o fumo e o pó: insinua-se
incontrolavelmente onde menos se espera;
sobretudo onde se não deseja. Nada consegue detê-
la. Nada, de fato, a detém. 0 pó e o fumo, com
técnicas aperfeiçoadas podem travar-se. Isto é:
impedir que penetrem onde não se queiram. Contra
a verdade, nenhum filtro, nenhuma barreira é
eficaz. No máximo: -pode-se feri-Ia; até mutilá-la;
jamais extingui-Ia. E como a sua capacidade de
recuperação não destoa da força cósmica da sua
sobrevivência, cedo ou tarde ressurge igual a si
mesma.
As pesquisas de Serrão não tardaram a ser
interpretadas pelo que de fato eram: pesquisas
autênticas. E embora nenhum dos componentes das
patrulhas se tivesse aberto, fosse com quem fosse, as
perguntas que iam fazendo foram espalhando a
notícia -que não tardou a atingir o Jango, onde
recebeu confirmação decisiva: Anacleto de Miranda,
apesar de pouco ter falado no companheiro de
viagem, estranhava a sua ausência desde o primeiro
minuto. E à medida que a noite foi avançando mais
a estranhou. Quando Corvo dirigiu a palavra aos
subordinados acendeu nele a primeira suspeita de
que algo de muito sério (sem qualquer dúvida
anormal) acontecera a Castro Raposo. As versões
que lhe chegaram de fora diziam-lhe contudo
menos do que a suspeição que o habitava. A meia
noite expirou... -e a festa prosseguiu.
Porque não cantam as aves quando a chuva cai,
arrulham as pombas quando os filhos nascem, geme
o vento quando é mais forte ... e o amor vem
quando quer, vai ... quando lhe dá?! ...
PORQUE NÃO CANTAM AS AVES ...

Depois de tratar da instalação de Miranda,


Rodrigues passou com ele pelo escritório, deu uma
olhadela aos papéis e enfiou para o bairro
habitacional, a fim de embarcar os companheiros e
as moças a quem prometera transporte para o
aeródromo. Esperavam-no um pouco adiante, em
frente da moradia onde elas deviam residir, pois
mal a carrinha estacionou, alguém, que vigiava a
porta, correu para dentro, como quem vai avisar da
ocorrência de um sucesso importante, ansiosamente
aguardado. Em vez dos -quatro ou cinco rapazes-
previstos, apenas três estavam à vista.
-0 Ruy? -perguntou Rodrigues mal atingiu a
fronteira da voz.
-Já foi - respondeu o mais alto e mais forte dos
aguardantes. -0 Freitas passou por aqui e levou-o.
Trazia instruções. Parece que tem de entrar de turno
por causa do Andrade. (0 Andrade era o ferido que
pouco antes seguira para Nova Lisboa; e o Freitas, o
chefe da secção).
- Okay. Miranda saiu da cabine e trepou com os
mais para a caixa da carga. Rodrigues esticou o
tronco através da janela da viatura e dirigiu-se ao
que falara:
- Freixo! Esse amigo é o construtor civil Anacleto
Miranda. Apresenta-o aos colegas, se fazes favor.
Chegou há bocado e não conhece ninguém.
Freixo era o já nosso conhecido eletricista: rapagão
de feições abertas e gestos seguros, que viera de
Cuima -jazigo cuja exploração já não era rentável,
por razões várias, delas avultando a queda
substancial dos preços dos minérios de ferro.
Solteiro, como Rodrigues, mas bastante mais novo e
sem depressões da mesma espécie, falava com
alegria transbordante, entremeando as frases de
risadas exclamatórias, como se tudo quanto dissesse
ou acontecesse fosse cômico ou brejeiro. Espremeu a
mão do mestre-de-obras com prazer visível,
gabando-lhe o físico e risando a seu modo: _ Muito
prazer, amigo Miranda. Você também é dos
pesados! Ali, ali, ali ... Olhe, estes parceiros são
operadores de bulIdozers, scrapers, dumpers e
coisas assim. Maquinaria bruta! Bons tipos, não
desfazendo. Ali, ali ... Este -e apontou para o mais
franzino - é o Ilídio Soares; e este, o João Correia.
Creio que dormimos todos juntos, salvo seja! Ah,
ah, ah ...
Apertos de mãos e frases convencionais. (Freixo
quis dizer que tanto ele como João Correia e Ilídios
Soares viviam na camarata onde Anacleto Miranda
ia dormir -como já se deixou ver).
Rodrigues, entretanto, à vista do atraso das
raparigas, fez soar a buzina do carro, como quem
não está satisfeito: um ronco alongado, enervante,
seguido por uma série de apitos curtos.
-Aposto que a Clotilde ainda não acertou bem o
soutien. Ah, ah, ah... -mangou Freixo, aludindo aos
cuidados manifestos da visada com a toilette, e, em
especial, com as audácias do busto, que, de tão
atrevido e franco, gozava de lauto respeito: -lúbrico
prestígio!
-Oh, oh... -escarneceu Ilídio. -Isso já lhe nasceu
certo. Se fosse preciso pintá-lo ... estava bem. Está
mas é a lambuzar a cara. Enquanto a pintura dos
beiços, dos olhos, do rosto ... eu sei lá!, não estiver
bem a ponto, ninguém a arranca do espelho. Há-de
ser pior do que afinar um motor!
- Mas olha que vale a pena! ... Ela apura aquilo que
nem uma artista, caramba! -Aprovou Freixo sem
gargalhar. -Ai isso vale! E se já é boa ... melhor fica!
É como os bolos: os enfeites também ajudam ao
paladar! Ah, ah, ah . . .
- Oh ... Pinta-se de mais! - desdenhou Correia. - Até
se estraga. Cá para mim é muito mais gira quando
não se empasta ... Não devia pôr tanta droga na
cara. -vê-se bem que só percebes de tratores e
mandioca, João. Aquilo não é artigo de senzala, nem
jogo de meia bola e força! Manda arte! É como quem
apura uma alta-fidelidade. Já lhe reparaste bem
para os amplificadores? São estereofônicos! Ah, ah,
ah ... E sempre têm uma classe! Ah, ah, ah... -Ã
medida que falava as mãos e os braços foram
-esterebscopando- a pintura.
-Amplificadores? Oh, ho ... Diz mas é bombas-de-
injeção! - mecanizou o outro. - E que bombas!
- Quais bombas, nem meias bombas. Granadas!
Granadas de mão! ... -assobiou Ilídio Soares, desta
vez a enaltecer as prendas da rapariga, extasiado
com a imagem mental daqueles -para-choques-
explosivos. - E que granadas, caramba! -e assobiou
de novo.
Rodrigues insistiu outra vez na buzina (quem sabe
se pensando nas -granadas- também), agora por
golpes curtos sobrepostos. A pessoa que Miranda
julgou divisar à porta quando a viatura chegou,
abriu a janela daquele lado e fez sinais a pedir
paciência.
-Aquela não perde tempo com as granadas nem
com a pintura - gabou João Correia, só para desfazer
nos cosméticos.
-Pois olha que bem precisava. E quanto a granadas
... vou ali e venho já. Está cada vez mais anêmica.
Lembra-me a bainha dum cabo de baixa! Ah, ah, ah
...
-Não digas isso! - contrariou Soares. -A Albina,
apesar de tudo, ainda é mais bonita do que a
Clotilde! Lá por não ser farfalhuda nem se pintar,
isso não tira: tem mais classe! Muito mais linha! É
mais aerodinâmica! ...
- Não gosto do gênero - desdenhou Rodrigues,
curvando-se de novo para trás. - Para magro basto
eu. Quase nem tem por onde se lhe agarrei Nem
sequer enche as mãos ...
- Ah, ah, ah ... Diz mas é que ela é que não te deixa
agarrar! - E desta vez Soares e Correia gargalharam
tanto ou mais que o próprio Freixo. Miranda sorriu.
Mas Rodrigues não se desmanchou:
- É seca de mais. Seca e sisuda. Para se rir é preciso
pedir-lhe por favor. E então a dançar? ... Põe a gente
a meio quilômetro de distância!
-Eu cá também prefiro a Clotilde. Aquilo é
realmente outro material! A AIbina parece insossa.
Insossa e deslavada! Lembra-me uma tripa por
encher. Ali, ali, ali ...
- Tu preferes a Clotilde mas é o tanas! - brandiu
Rodrigues, com ares de quem é dono da -praça-. E
amaciando a voz, armou em generoso: -De resto
entre uma e outra não há comparação possível. São
tipos diferentes. Mas franqueza franquezinha!,
aqueles olhos da Clotilde, aquela pele morena,
muito macia!, aquelas curvas intrometidas!, aquelas
-papaias-! ..., ah! ... Belzebu, Belzebu, Belzebu! ... Ao
pé daquilo a AIbina é um fantasma. Já nem é
mulher nem macieira! Por mais que se tente agarrá-
la, mordê-la! ... não se sente.
- Diz-lhe que sim. Diz mas é que ela não te dá>
avanço. Ali, ali, ali ... Bem te conheço, meu pau de
laranjeira! Quando chegou achava-la um mimo!
Uma orquídea de estufa! Não era o que dizias? Ali,
ali, ali ... E olha que ela já estava assim. Com que
então um fantasma Uma tampa! Uma tampinha!
Ali, ah, ah ...
Rodrigues não repontou: premiu de novo a buzina e
fê-la soar durante quinze a vinte infernais segundos
consecutivos.
-Não te vingues na buzina, pá! -protestou Ilídio
Soares, batendo na janela da cabina. - Há tempo de
sobra. Há tempo mas é uma gaita. Devia estar no
aeródromo meia hora antes da chegada do avião, e
dez minutos já se foram por água abaixo. As gajas
estão a abusar! - e pôs o motor em marcha.
As raparigas galgaram a porta a correr. À frente, a
Albina: alta, loira, simples - olhos cor de mel
silvestre, bem esculpida (apesar de esguia),
deslizava sem esforço visível, por passos curtos
muito rápidos, mal fletindo os joelhos. Atrás, a
Clotilde: quase do mesmo porte, morena, de longos
cabelos sedosos, olhos noturnos e geometria
afrodisíaca (sem ser gorda) tinha um correr
ondulante, que deliciou os rapazes e deu cabo da
tarde a umas quantas vizinhas em esculca,
preparadas para sair, que, mais adiante,
aguardavam transporte para o aeródromo há largos
minutos - sem ter conseguido puxar a atenção de
Freixo ou dos outros.
Quando alcançou a carrinha, Clotilde fez um aceno
aos da caixa, tantalizando o pobre do condutor:
- Desculpa ... Rodrigues! E estendeu os lábios
hipnóticos, no jeito de quem beija, meigando
olhinhos. - Não pôde ser mais depressa... querido!
-Está bem, está bem... -amoleceu o moço, derrotado
por tanta blandícia. - Há doze minutos que eu devia
estar no campo! Que desculpa hei-de eu vender? 0
Comandante Serrão a estas horas está que nem uma
fera. Queres que lhe diga que foi por tua causa? ...
Via-se que a preocupação de Rodrigues não era
fingida. Clotilde, não obstante, fez beicinho e
abanou a cabeça como quem está prestes a chorar e
diz que não quer.
Face ao clima, enquanto as raparigas se
acomodavam, Miranda sugeriu ao interpreter esta
escapatória:
- Diga-lhe que andou à minha procura. Como ainda-
não conheço isto, podia muito bem ter-me
despistado.
Olharam-no brunidos de curiosidade. Rodrigues,
mais consequente, achou o gancho oportuno e não
moeu cerimônias: pendurou-se logo:

-Você não se importa mesmo?


- Tenho as costas largas. Resta saber se pega! Não
vejo que eu valha a demora. Mas isso é consigo.
- 0kay! - E a carrinha partiu a todo o gás. Ao
torcerem para a rua principal as moças acenaram
para uma senhora de muita idade, toda branca, que
debruçada no extremo da varanda por onde elas
saíram, muito serena, espiava atentamente a
largada. - Também era funcionária ... além de tia de
um dirigente.
A pressa de Rodrigues tornou-se tão dolorosa que
nem se peneirou durante o percurso: remordeu.
Assim que atingiu o aeródromo foi advogar-se à
barra do Comandante - e daí a pouco, gaiteiro e
risonho, girava de um lado para o outro
retransmitindo estratégia e unção. Só largos
minutos mais tarde pôde espanejar para as
raparigas, mais o Freixo e a sentinela de Miranda.
Correia e Soares, mal puseram pés no aeródromo,
aderiram a um bando particularmente domingueiro,
pilotado por chaufeurs e tratoristas -apinocados
como eles.
A espera e o regresso decorreram sem remorsos.
Após a deposição de Albina e Clotilde no hospital, a
pedido das duas, Rodrigues aliciou Miranda -para
emparelhar com ele, quando, dali a pouco,
conforme o justado, fosse buscar -as pequenas- para
a festança do Jango. -Você podia encarregar-se da
loira!- (Ele, Rodrigues, ficaria com a morena: a bela
e incendiária Clotilde!) -Não terá problemas. A
Albina é muito reservada-. E como o outro se
limitasse a sorrir (o sorriso de quem está por tudo)
foi mais longe: -Fala pouco, é raro dançar e, ainda
por cima, é uma grande chata, pois quando menos
se espera atira-nos com cada sabonete que a gente
fica de cara à banda. Mas como você também não
parece de grandes falas, pode ser até que se
entendam!- E gargalhou a imitar o Freixo. -Assim eu
escusava de perder o meu rico tempo em cerimônias
com ela- ...
Miranda não pôs entraves. Como não sentia
vocação para -conquistador- nem tão-pouco se
impressionara com as moças, limitou-se a encolher
os ombros e sorriu outra vez. Mas face à insistência
dos olhos do companheiro teve de ser mais
explícito:
-Está bem. Não será por minha causa que os seus
planos hão-de ir por água abaixo, meu caro
Rodrigues. Fique descansado. De resto, como não
faço tenções de dançar, nem sou de fato dado a
-grandes falas-, espero que não haja razões para
queixas.
A festa enrubesceu ardores à gente nova, diluiu
reservas, desfez cansaços, amordaçou demônios.
Velhos, maduros e jovens, sem destrinça de sexos
ou galões, ancoraram sem calemas naquela roda
franca e farta, comungando o mesmo pão.
Apesar de todo o seu empenho em reter Clotilde só
para si, Rodrigues teve de se contentar com uma
vaga preferência da morena, que, sempre muito em
foco, parecia não querer desiludir qualquer dos seus
numerosos vassalos, todos muito atentos. Com
Albina dava-se precisamente o contrário: apesar de
muito correta - sempre delicada- criou em volta de
si uma espécie de vácuo inacessível, onde
permaneceu distante, luzindo embora, como se fora
um ídolo intocável. Freixo, forte e audaz, esgrimiu
farroncas com ela - mas não ousou convidá-la:
ergueu a lança e foi atacar outro forte. Miranda
limitou-se a deixar a azáfama, o tempo, o cenário, a
própria quietude de Albina aureolar, fluir, arder ...
Proletarizou-se na pacatez de sóbrio espectador.
Saciada a curiosidade, adormecido o interesse
restaurado o cismar, Anacleto Miranda evadiu-se
dali revendo castelos desfeitos, raivas, traições, o
noivado em chamas, a ruína, a aventura do exílio, a
viagem .... e por fim o encontro com o geólogo: o
saber e a simpatia que dele irradiavam; a amizade
que os atraíra, apesar de tantas diferenças... -e deu
consigo a procurá-lo com os olhos, sem conseguir
descobri-lo. Não estava junto dos administradores
ou em qualquer dos grupos que os rodeavam, nem
tão pouco dentro ou fora do recinto. Achou aquela
ausência bastante estranha; mas não passou dai.
0 recato de Miranda deve ter sossegado, senão
mesmo intrigado Albina. Estando ambos há longos
minutos uni ao pé do outro, e tendo vindo juntos,
não haviam. despendido entre si mais do que duas
ou três frases insulsas. Não, que ele fosse menos-
amável! Como ela se envidraçara naquela redoma
de ausência, dir-se-ia que ele não só lhe respeitava o
gosto, a táctica, ou a decisão, como a aprovava.
Foi ela -talvez por isso- quem quebrou o marfim:
-Chegou hoje, não chegou? -Exatamente: esta
mesma tarde. Vim com o Dr. Castro Raposo e o
engenheiro Serra de Oliveira, com quem vou
trabalhar.
-Vem da Metrópole -Diretamente de Lisboa. E a
conversa caiu. Minutos mais tarde ela fez novo
esforço de aproximação, invertendo a estratégia:
-Já conhecia Angola? -Nem Angola nem qualquer
outra província ultramarina. Nunca tinha saído de
Portugal; tudo isto, para mim, é novidade. -E sorriu-
lhe despretensiosamente. -Nunca fui a Espanha
sequer.
Perante naturalidade tão esmaltada, AIbina desistiu
de lhe chamar a atenção para o fato de tudo isto ser
também Portugal -algo a conhecer antes da
Espanha. Perguntou-lhe apenas, como em casos tais
é inevitável:
-E gosta? -Pelo menos não desgosto. Veremos como
de fato é ... Fazia no entanto uma idéia diferente.
Errada, sem dúvida. Sempre julguei, por exemplo,
que Luanda não passasse de uma cidadezinha como
Santarém, Leiria, Braga..., quando muito Coimbra.
Afinal não se parece com nenhuma delas, nem com
nada daquilo que eu já conhecia.
-Não lhe encontrou ares de Setúbal?
- Não ... Pelo menos não dei por isso.
- Quando vim, há perto de quinze anos, achei-a
parecidíssima. A baía, a parte alta, a Ilha ... A Ilha
era Tróia. Mas Luanda cresceu tanto que a
semelhança é muito capaz de já não ser tão evidente
como naquela altura me pareceu. Eu gostava
imenso de Setúbal. íamos todos os anos passar umas
semanas à banda de lá: a Tróia! --- -E calou-se por
instantes. -Dizem que estão a modificar aquilo tudo.
Já não vou à Metrópole ... há mais de doze anos,
meu Deus! ...
Emudeceu extasiada, fugindo!, sem contudo
irradiar distância ou ausência. Recordava, sem
dúvida, a última visita; aquelas férias lembradas;
Tróia, Setúbal, a infância -a riqueza desses tempos
de flores. Miranda quis então ser gentil. Contagiado
pela doçura triste da voz dela, pelo tom de magoada
sinceridade que parecia impregná-la, pela singeleza
natural do que ouvira, perguntou-lhe a racia, voz,
docemente também:
- É de Setúbal? -Não. Sou de Lisboa. Nasci em
Campo de Ourique. Mas já me sinto de Angola.
Quando viemos ainda não tinha dez anos... - E
tomou a cair naquele reviver remoçante.
Anacleto Miranda surpreendeu-se a fazer contas:
-Quando vim, há perto de quinze anos ... -, -... ainda
não tinha dez ... -. Teria pois 24. No máximo 25. E no
entanto não parecia. Dava-lhe quando muito... 20!
Ou, vá lá, agora... 22. -Já sofrerá pavores de ficar
para tia?-, pensou a seguir, lembrando-se da ex-
noiva, seu pináculo salgado. .
Para não deixar a conversa morrer abriu-se também:
. -Eu sou da Graça. Mas conheço Campo de Ourique
de ponta a ponta. Campo de Ourique e
praticamente todos os bairros de Lisboa. E os novos,
claro está, pois sã o bem mais fáceis de conhecer.
Trabalhei em todos eles. Primeiro, corno servente;
depois, como artista (foi quando comecei a estudar);
a seguir, como encarregado. E por fim por conta
própria.
-E não se deu bem?
0 tom de interesse da voz dela era tão flagrante que
ele acampou com refrescado prazer:
-Lá dar bem, dei. A vida até me estava a correr -às
mil maravilhas-: fartura de trabalho, preços
razoáveis, clientes bons ... Mas houve um azar- e foi
tudo por água abaixo. - Entressorriu durante alguns
segundos. - Talvez não lhe devesse chamar azar ...
Falta de calo!, como se diz entre nós. Falta de
experiência! Experiência dos homens, bem
entendido. Nanja da profissão. Fui muito ingênuo,
Deus do céu!
-Deve ter sido um choque muito grande ... Mas
parece muito novo, para ter já passado tudo isso!
-Não me julgo nem me sinto velho. Muito pelo
contrário. Começo a ter a impressão de que,
verdadeiramente, ainda não principiei. -E
assumindo um ar de bem disposta decisão: - 0 meu
verdadeiro princípio ainda não chegou! Mas enfim
.... também j à não sou um rapaz! ... Fiz 32 há pouco.
- Curioso --- Dava-lhe 26 ou 27. Cheguei até a
pensar em 25.
-Com 25 anos, para mim, o mundo era uma
campina de piso difícil, sem dúvida!, mas sem
surpresas. Só com as dificuldades próprias do
terreno, que, julgava eu, com um pouco de jeito e
pertinácia, acabaria por vencer sem percalços.
Ainda não tinha chocado com montanhas; nem
acreditava em abismos; e menos ainda em
atoleiros!... -E voltou a sorrir, deixando o mutismo
de novo envolvê-los. Era porém um mutismo
diferente: sem reservas já; não-precavido; orvalhado
pelo seu quê de intimidade: um elo de simpatia a
irmanar sentires.
No correr deste pequeno diálogo, Miranda
observara melhor a companheira: a sua voz era
doce, muito macia; o brilho dos olhos magnífico; as
feições de uma correção imprevista: -tão regulares
que se apagavam; isto é, não atraíam; não
chamavam a atenção. E esta circunstância aliada à
falta de contraste entre a brancura da pele e o loiro
dos cabelos, o próprio mel cristalizado que lhe
dulcificava as íris, fazia da sua beleza uma beleza
velada; etérea; difícil de alcançar, mas que, uma vez
descoberta, não era fácil esquecer. Lembrou-se das
observações de Ilídio Soares: -A Albina, apesar de
tudo, ainda é mais bonita do que a Clotilde. Lá por
não ser farfalhuda nem se pintar, isso não tira. Tem
mais classe!- (Pareceu-lhe, de fato assim). -Mas
apesar de tudo ... Que tudo?..., bonita como de fato
é?! .... embora triste ... Será infeliz?... Parece
derrotada. Se fosse homem diria que passou por
qualquer experiência do gênero da minha e desistiu
de combater. Que se adaptou à cômoda situação da
dependência e não está para mais aventuras-.
-Enquanto assim cogitava, os seus olhos iam
pespontando o recinto em busca do geólogo.
Desiludido, soergueu-se... -e através dos janelões
praticados na vedação esteirada em redor, pontuou
depois os grupos da zona exterior, tudo naquele dia
organizado como se fora uma assembléia só, num
átrio único. 0 resultado foi igual: o Dr. Castro
Raposo não parava, não estivera ainda ali!
-Porquê?-, inquiriu de si mesmo. (Albina de vez em
quando observava-o). Decidiu fecundar o mutismo:
-Admira-me não ver o Dr. Castro Raposo. -Quem é?
Não conheço!... -animou a moça, esquecida já do
começo do diálogo.
- 0 geólogo com quem fiz viagem. Um homem
extraordinário, segundo parece... Pelo que me foi
dado ouvir, é pessoa de que a Companhia muito
espera. Vem fazer um estudo que, pelos vistos, será
decisivo para o prestígio da empresa, e até para o
futuro de Cassinga: Suponho que a avaliação
definitiva das possibilidades e da própria valia das
minas, não só quanto ao presente, mas também
quanto ao futuro. Muito me admira por isso não o
ver aqui. Isto é, além!, junto dos Administradores.
Há pedaço também não o vi no aeródromo., Acho
estranho ...
-Não teria ficado a descansar? -Não me pareceu
cansado. Pelo menos até ao ponto de não poder vir
a esta ... Como se chama isto?..-Uma reunião? ... É
mais do que uma simples reunião, não é? ...
-Creio que não tem qualquer nome especial ... É
uma festa. Se tem outro nome ... também o
desconheço. Talvez seja um jantar-volante. Não sei.
Como há música e baile ... Confesso que não estou
muito familiarizada com estas coisas.
- É nova aqui?
- Assim assim. Estou na Jamba desde Janeiro
passado. Há uns dez meses portanto.
- E como se tem dado?
- Não tenho grandes razões de queixa ...
- Não sei porquê ... quis-me parecer que também era
nova nestas paragens. Isto é, aqui, na Jamba.
Não teve coragem de lhe perguntar o que fazia.
Pensou no entanto que se a -jambite- era de fato a
doença que Serra de Oliveira descrevera, ainda não
a molestara, pois a falta de alegria que nela
dominava era algo de mais profundo, talvez
intrínseco, a que o -afastamento- seria porventura
mais benéfico do que hostil. Optou por um voto de
otimismo:
-Também espero dar-me bem! -E sorriu-lhe como
num cumprimento. -Pelo menos durante um ano.
Até concluir o contrato! Depois... veremos. Para já,
graças a Deus!, confesso que estou a gostar. É uma
experiência nova. 0 Doutor Castro Raposo diz que
-isto- me vai -abrir novos horizontes-. Começo a
convencer-me de que pode muito bem ser como ele
diz. Como ele profetiza! - E sorriu sem reservas.
Os criados competiam na distribuição de chávenas
de vidro fumegantes, cheias de um líquido espesso
que lhe pareceu sopa de carne ou algo do mesmo
tipo; perguntou à companheira:
-Não lhe apetece uma sopa?
- Acho que vinha muito a propósito. - E sorriu-lhe
também, desta vez abertamente, surpreendendo-o
para além de quanto ele poderia imaginar.
É que Albina, ao sorrir, transfigurava-se. Aquilo
que nela havia de suave e discreto, iluminava-se
como por encanto: a sua beleza resplandecia. Meio
deslumbrado, ergueu-se, e em meia dúzia de
passadas flexíveis, barrando o caminho a um dos
serventes, sem lhe dar tempo de parar, arrebatou a
um outro, logo adiante, duas chávenas do tabuleiro
e voltou para junto dela, passando mais por detrás.
Albina já não sorria: esforçava-se por travar o riso,
ardendo em beleza; confundindo-o; murando-o de
perplexão.
- Que aconteceu? - perguntou interdito, frio já, as
chávenas à altura dos ombros, os olhos nos olhos
dela, e um desconforto gelado a despi-lo de alto a
baixo.
- Então não me dá a sopa?... - e o riso abrandou para
uma quase carícia: as mãos estendidas, os olhos nos
olhos dele também.
- Desculpe ... Entregou-lhe a chávena e sentou-se.
Foi sorvendo o caldo aos poucos e olhando em
frente. 0 primeiro dos criados apanhava xícaras do
chão, e uns quantos dos assistentes, em redor
limpavam calças, casacos, camisas, o próprio corpo.
Na precipitação da manobra Miranda nem dera por
-resistências-: com aquilo que muito vagamente lhe
parecera -um raspão ao de leve-, provocara aquela
sementeira de risos, chávenas, sopa, indignação e
desconforto - mergulhando o rapaz na cratera do
pandemônio. Convictos de que o servente fora
incauto e tropeçara, os atingidos vazavam sobre o
infeliz catadupas abafadas de vinagre, fel e
impropérios. Mas Albina viu tudo. E Miranda,
ocupado por inteiro com o riso dela, não decifrou o
mistério da confusão. 0 martelar dos segundos,
entrementes, acabou por lhe abrir a cortina do
segredo: por o pôr na pista da verdade. Sentiu-se
aniquilado. Não querendo porém acreditar na
própria evidência dos fatos, volveu os olhos para a
companheira em muda, cômica, aflitiva
interrogação. Ela baixou à cabeça duas vezes; e não
podendo mais sustar a onda que dentro de si
borbulhava, estourou de vez -destroçando-o num
abismo de vexame.
Miranda glaciou: Olhos vidrados no vácuo (sorvo a
sorvo goela abaixo, lentamente -coágulos de fogo
nas entranhas) arrependido, revoltado até, por se ter
interessado por ela, enfureceu-se contra si mesmo
-incapaz no entanto de qualquer réplica salutar.
Não tardou em reviver outra humilhação maior:
Apesar de toda a sua desenvoltura, do seu
incontestável espírito de empreendimento, da sua
pertinácia, da sua inteligência, da própria força
física fora do comum -fora sempre um tímido
perante as mulheres.
Não obstante os seus princípios humildes, vingara
na vida e estava muito longe de se considerar um
vencido. Sofrera apenas um enorme revés. Mas no
roteiro da sua existência, o horizonte, facho de
promessas, recomeçava a madrugar.
Por volta dos 20 anos desfrutava já de uma situação
material invejada -e não lhe faltavam (muito
naturalmente), os rodeios, os assédios, as fintas das
aduladoras. Manteve-se porém arredio, cauto,
medindo com justeza o quilate daqueles ademanes
intrometidos, queimando a vitalidade no trabalho e
por cadinhos onde sabia o dinheiro ditava, sem
reservas -contra relógio embora vontade ... e o mais
vital, do sentir sensível.
0 caso da noiva confirmava o empirismo da sua
filosofia. Tudo aquilo, hoje, para ele, não passara de
uma cilada: de um golpe chão, burguesíssimo!
-Moralíssimo para os mais, portanto:
Conluiado com a mulher, o sócio convidara-o para
um jantar de festa: bodas-de-prata do casamento
distante. Sem filhos, reuniram na função amigos e
parentes, e uma sobrinha-afilhada com fama de
teres, -instruída- e tão ambiciosa como flamante
-por todos muitíssimo gabada. Por tanto exigir, fora
rejeitando oportunidades e certezas -e acabara por
dobrar os 29 sem arrumo visível, em pânico já, ante
uma perspectiva de tia ou remedeio humilhante.
Como ele ganhava bem e tudo predizia que dentro
em pouco estava rico, um conciliábulo de famílias
conspirou para o seu enlace com a beldade. Não
seria Exatamente o que ela sonhara ... -mas era um
belo homem, e um bom partido já! -. E como, por
assim dizer, jamais tivera um namoro, ou, que se
soubesse, qualquer ligação estável sequer, pareceu-
lhes um alvo ideal - a verdadeira sorte dela! - fácil
para tantíssimas -prendas-, tanto charme, tanto
glamour, tanta sedução!
Assim foi - pois a moça (Lucila Rosa) era de fato
atraente e -meiga-, e -ficara deveras apaixonada-.
Tudo lhe pareceu liso, puro, cheio de boas
intenções, pleno de amizade até: -Miranda!, o que tu
deves fazer, é casar. Já estás em muito boa idade.
Precisas de ter casa. Só se não gostas da Lucila! ...
Nesse caso, não! 0 casamento deve fazer-se por
amor. Tu já tens de teu ... Quem me dera a mim!
Ela... é bom partido!, bem sabes. Gosta de ti ... Mete-
se pelos olhos dentro! - Só se não gostas dela !?-.
-Gosto! ... Então não havia de gostar? ... -
E ficaram noivos. Miranda acreditou em tudo,
principalmente porque no fundo -sabia bem-
desejava casar-se: imprimir outra ordem ao viver;
montar casa; pôr ponto final naquela vida maninha
de pensões, bares, prostíbulos e hotéis. Mas este fato
(a ausência de um amor exaltado por Lucila) não lhe
amorteceu o choque nem tão pouco adoçou a
amargura da separação. Muito pelo contrário -pois a
ocorrência do desastre (do roubo e da fuga do sócio)
mergulhou-o num estado de espírito jamais sentido,
em que o conforto de outrem (o conforto sobretudo
da mulher) se lhe desvendou como a bênção mais
válida que o homem pode encontrar. Como o
próprio fim, a verdadeira justificação da existência.
Correu para junto de Lucila com o sentimento
profundo (pela primeira vez) de precisar, de
necessitar dela! Foi um sentir tão belo, tão doce, tão
deslumbrante! ... -que pouco faltou para entre si
agradecer ao sócio, e de feito lhe perdoar.
As perdas materiais não o destruíram. Arruinaram-
no, apenas, por uns tempos. Estava tão seguro dos
passos que percorrera até chegar onde chegara, que
dentro de si não havia lugar para dúvidas sobre a
sua capacidade em os repetir: -em se refazer sobre
melhores bases, num sentido mais apropriado, e por
um rumo mais direto. Além disso não podia
libertar-se de uma convicção granítica de que, cedo
ou tarde, acabaria por recuperar (não fazia idéia
como) boa parte do que perdera ou lhe fora
roubado. Os dois, Lucila e ele, venceriam a crise
sem grandes dificuldades.
Quando chegou junto da noiva quase sorria. A
reserva que nela topou, apesar de o surpreender,
não o feriu. Como era sobrinha do -tratante- ... era
natural que não se sentisse bem. Procurou sossegá-
la. Fez-lhe ver que o mundo não ia acabar, Apenas
por uns anos teriam de viver pior. Mas que
importância tinha isso ante as promessas do futuro?
... _ Estou cansada de promessas! -explodiu com
desdém, a data altura, mostrando-se tal como era-
como já não podia deixar de ser mesquinha, egoísta,
ilusoriamente ambiciosasem a mais ligeira sombra
de interesse nele por ele mesmo.
Foi um golpe rude. Começou por não acreditar. Por
não querer acreditar! Aquilo eram destemperos
devidos ao desastre; à humilhação perante a nojeira,
a ordinaríce, os crimes do padrinho. Mas quando
(sem ao certo saber bem como, nem para quê -visto
não traduzir, não concorrer com o que sentia)
arriscou a hipótese de uma suspensão do noivado,
ela tomou-lhe a palavra e descartou-se dele com
alívio, sem pejo nem demora.
Pouco faltou para sucumbir. Anos atrás guardara
certa intimidade com uma rapariga de vida fácil,
com quem se entendia sem atritos, de quem gostou
até, e a quem esteve para completamente se unir
-admitindo a própria hipótese de mais tarde com ela
casar.
Afastou-se Exatamente por assim sentir: por ter
-visto- quão inclinado estava para -descer-.
Apesar do afastamento, aquela mulher-só-mulher
permaneceu dentro de si como altar fiel da sua alma
-quimera de anseios, refúgio do coração. Só
ultimamente, com o noivado, aquele nicho
principiara a desfazer-se. Eí-lo, porém, de repente!,
iluminando as trevas -portais abertos, clamando por
si. Recordou a sua ternura espontânea (baldia
embora!), a dedicação pura, o asseio sem projetos, a
própria nobreza - aquela autêntica honestidade! ...
Sabia, isto é, sentia que ela o amara deveras: sem
alardes nem esperanças de recompensa. Quando
decidiu deixá-la... -nem um rogo!, um só queixume!
Apenas mudas lágrimas abissais deslizando-lhe
pelo rosto -e um sorriso triste, muito triste, de
aureolada compreensão.
Procurou-a por Lisboa inteira. Sumira-se. Constava
que fora para o Ultramar, como girl de um night-
elub. E o Ultramar chamou-o.
A sua determinação de reconstruir, de ultrapassar o
galarim econômico desmantelado, constitui-se então
no escopo da sua vida. Mas não querendo,
entretanto, suportar os desdéns, os olhares,
porventura o próprio ódio de Lucila, decidiu-se por
aquele recomeço promissor, que lhe permitiria, ao
fim de um ano, dar outro passo maior e em seguida,
de fato, reprincipiarl Não obstante, só porque
Albina lhe parecera infeliz, vencida, uma autêntica
destroçada, caíra na patetice de nela confiar; no
quixotismo de lhe querer transmitir um pouco de
apoio ... -E ei-la, sádica e viperina, como as mais,
rindo-se dele.
Albina, entretanto, vendo e sentindo a
transformação que bronzeara aquele homem
enorme, de alma transparente e fundo bom,
recolheu-se também -pois dentro de si havia agruras
maiores. Tendo rido por rir (porque tudo se
conjugara para que um travo de comicidade
burlesca mascarasse o incidente) não se sentia
merecedora daquela dureza repentina, alheada e
fria. Mas não teve a menor dúvida, a sombra sequer
de uma incerteza, de que fora ela quem a desabara,
ferindo-o, embora sem intenção. Que fazer? ... Sorria
apenas -de novo aquele sorriso triste indecifrado
quando Rodrigues e Clotilde se aproximaram dos
dois.
-Com que então, muito divertidos!? ... -comentou o
rapaz enquanto Clotilde aceitava uma chávena de
sopa que outro criado, junto deles, naquele
momento oferecia.
Albina e Miranda não responderam. Não deram
com, não acharam o que quer que fosse que valesse
a pena dizer. Sorriram: ela, como quem confirma a
sentença e aceita, e sente, que nela se encerra muita
verdade; ele, como quem a admite, para não ter de a
contestar.
Clotilde pareceu deleitada com a sopa:
- Hum! ... 0 consommé está delicioso!
- Está de fato muito bom - confirmou Albina,
sorrindo ainda, aquele sorriso sem sol que Miranda
logo de entrada lhe surpreendera, sem contudo nele
entrar.
- Também quero! - chamou Rodrigues, fazendo sinal
ao criado.
Serviu-se de uma chávena e juntou o seu aos votos
das companheiras:
- Estupendo! Gado de Cuima! explicou em unção,
gabando a excelência da pecuária que, na zona
daquele jazigo pioneiro, sucedera à extração do
minério e prometia resultados por si só
compensadores, sob certos ângulos espetaculares.
Após um sorvo guloso voltou-se para Albina e
galanteou: - Queres mais? ...
- Não ... Muito obrigada.
- E você, Miranda?
- Também não, obrigado.
0 silêncio pareceu agasalhá-los por instantes
A fundi-los no mesmo sentir. Foi Rodrigues quem A
rasgou, interpelando a loira e o companheiro:
- Vocês não dançam? Só AIbina respondeu:
- Ainda não tive a sorte de agradar a ninguém ... -
ironizou em tom repleto de intenções. -Ninguém até
agora deu por mim .. -, ou me quis dar a honra de
por mim se interessar.
Rodrigues olhou para Miranda. E este, mantendo a
compostura exterior, como se nada de especial se
houvera passado, recordou-lhe, meio a rir
-nitidamente a desfazer:
-Não se lembra de eu lhe ter dito que não dançava?
...
- Sim ... Isto é, tenho a impressão de lhe ter ouvido
que era raro dançar. Mas se é assim ... AIbina!,
queres dançar comigo?
- Com todo o gosto. Há um bom pedaço que
esperava que alguém se lembrasse de mim.
- E sorrindo abertamente, a pleno alvor outra vez,
ergueu-se para acompanhar o rapaz.
Miranda seguiu-os com os olhos, remoendo nas
respostas de Albina. Era evidente que ela
pretendera visá-lo. Mas não se percebia porquê,
pois não mostrara até ali qualquer interesse pela
dança. E como pela posição, sobretudo pela atitude
que assumira, afastara deliberadamente as
possibilidades de convite, o remoque era bastante
estranho, tanto mais que a ele, Miranda, ainda não
lhe passara pela cabeça dançar, e o fato não lhe
devia ter escapado, a ela.
Clotilde, sempre em silêncio, acabada a sopa,
renasceu: pôs-se a rever, a corrigir, a estudar a
pintura do rosto. De repente ergueu-se: e pegando
em ambas as mãos de Miranda soprou -lhe com
dilatada excitação:
-Venha dançar comigo, por favor! Vem acolá o
Freixo e eu já não posso aturá-lo. É um realejo
insuportável. Aquelas risadas idiotas dão-me cabo
dos nervos.
Miranda não pôde fugir. Se chegou a ter qualquer
idéia de se descartar da rapariga, quando pretendeu
pô-la em prática já era tarde. Ela não lhe deu tempo
para hesitações. A declarada ansiedade de se ver
livre da ameaça de Freixo precipitou o cerimonial
do começo: mal ficaram de pé deram início à dança.
Apanhado assim de supetão, quando pôde falar foi
para timidamente prevenir a parceira de que estava
muito longe de ser um dançarino -ou de saber,
sequer, corno se dançavam estas e aquelas peças
modernas, a começar pela que naquele momento o
conjunto restrugia.
- Não faz mal. Desde que me salve do Freixo e não
me pise, para mim dançará como um anjo,
tranquilizou a rapariga no seu estilo envolvente,
todo mel, orquídeas e cardos.
Miranda não sabia que os anjos dançavam bem.
Remirou por isso a companheira (olho em riste)
pesquisando o alvo da seta. Clotilde, ante o espiar
dos olhos dele, retratou as garras -toda flores, Abril
a sorrir:
-No fim de contas você não dança tão mal como
isso! Pelo contrário... Há quem dance bem pior e
esteja convencido de ser Fred Astair.
-Antes assim -agradeceu sem convicção. E
esforçando-se cautelosamente por guardar o
compasso, acrescentou semi-solene: -Continuarei a
esforçar-me por não a pisar. Mas logo que se sinta
em segurança..., deixe-me onde lhe convier.
Clotilde despiu-o: lúdica, um ar de escandalizada
confiança a escarnecer da inconfidência dele:
- Está a correr comigo!? ... .Era no entanto difícil
decidir se a expressão do rosto dela era de
escândalo, raiva, surpresa, ou apenas reinação.
Miranda fez um esforço desesperado para não se
afundar; e curvando uma vênia camarada -toda
masculina compreensão- bruniu com certo humor:
-Que idéia! ... Se veio dançar comigo para atingir
determinado fim ... não seria leal, da minha parte,
aproveitar o fato para a reter.
Clotilde sorriu. Começava a simpatizar com ele.
Fez-se amável e declarou-lhe sem afetação:
- Estou a gostar bastante de si, e mais ainda de
dançar consigo, sabe? - E como ele fizesse um
trejeito de descrença, insistiu: - Dançar com grandes
apuros é quase sempre uma enorme estopada. Uma
vez por outra, de longe em longe, vá lá ... Mas
sempre? .... só de castigo! As pessoas não se
divertem, não riem, não vêm o que vai em volta ...
nem sequer podem conversar. Ufe! Só por capricho.
Ou então de castigo, e soltou uma gargalhada sadia,
fresca, luminosa, que o brindou por dentro e por
fora.
- Folgo ouvi-Ia - agradeceu pacificado. E segundos a
seguir avançou com esta confissão: - Estava bem
longe de supor que ainda hoje havia de dançar. Não
só não me apetecia, como nem tal me passara pela
cabeça.
- Sério? .. . Não gosta de dançar? - No tom da voz
dela, de novo aquela nota de zombaria; o tal ar de
provocação.
-Não gosto nem desgosto... -negaceou, matreiro
também, à cautela. -É como com o tabaco: não fumo;
mas quando faço parte de um grupo que em dada
altura resolve fumar por brinde, ou por outro
motivo qualquer relacionado com o objeto da
reunião, nunca me contento com um cigarro: exijo
um charuto da melhor marca que houver.
-Isso é um cumprimento? -Não sei ... Gostaria que
fosse. Mas a verdade é que eu estou apenas a
pretender justificar-me: a explicar porque -não gosto
nem desgosto- ... nem tão-pouco sei-se lhe fiz um
cumprimento. É que vejo um obstáculo insuperável:
na dança não se pode dizer ao criado: -Rapaz! Traz
lá uma garota das melhores para eu dançar! -
Clotilde estourou a rir - fazendo-o rir também.
-Nunca esperei que você tivesse humor!
- Juro-lhe que o não tenho. Pode crer que me
surpreendi tanto, como, pelo que vejo, a diverti.
Uns passos adiante os olhos de Miranda esbarraram
nos de Albina. Os dela estavam a remirá-lo. Desviou
os seus e continuou a girar, pensando nela sem
remédio, apesar de não o querer. Clotilde, num tom
agora de pura simpatia, o ar mais natural deste
mundo, cauta! a desarmar pruridos e reservas -
perguntou-lhe a meia voz, o próprio sorriso muito
sério:
- Ouvi dizer que você já foi muito rico, é verdade?
Miranda escrutou-a atentamente, e por fim sorriu
também:
-Não! Não é verdade. Se tivesse sido muito rico,
facilmente suportaria os prejuízos que me
castigaram, os quais, ao fim e ao cabo, não indo
além de três mil contos, foram mais do que
suficientes para me arruinarem. Não. De modo
algum. Nunca passei de -aprendiz de feiticeiro-.
-Três mil contos?! ... E diz você que não era rico,
heim!? -sobrestimou Clotilde, sem fazer caso das
jactâncias dele.
Miranda não retorquiu. E passeando os olhos em
redor, deu com os de Albina de novo fitos em si,
menos seguros agora -pois fugiram mal espelharam
os dele. Clotilde, sagaz!, farta de cabra-cega, deixou-
se de cerimônias, e, cravando-lhe esta direta,
desmascarou-se:
-Porque não foi você dançar com a Albina?
- Porque não fui eu dançar com a Albina?! ...-
contra-interrogou precavido, a tentar descobrir
onde ela pretendia de fato bater.

- Sim! ... Sabe muito bem que era a si que ela estava
a chegar, há bocado, quando disse que há não sei
quanto tempo aguardava que a convidassem ...
- Olhe que não! - desconversou Miranda, fazendo-se
desentendido. - Foi para o Rodrigues que ela disse
isso. Estava quase de costas para mim e a olhar para
ele! ...
-Deixe-se de fitas. Foi para si que ela falou.
E no tom da voz dela havia uma nota severa de
magoada censura.
-Acho a sua conclusão muito audaz - teimou depois,
lúdico ainda. Mas esfriando a seguir a voz,
desarmou, e abriu-se com firmeza: - Enquanto estive
sozinho com ela, não dei conta de que estivesse
interessada, ao de leve sequer, em dançar ... fosse
com quem fosse! E como eu nem nisso pensei, nem
tão-pouco me atreveria a convidá-la (ou a si,
dançando como danço), estou convencido, melhor,
tenho quase a certeza de que a vontade de dançar
lhe veio apenas quando você e o Rodrigues
chegaram ao pé de nós.
Clotilde não respondeu. E segundos depois,
ressabiado ainda, Miranda forçou a nota com este
sarcasmo pouco justo:
- De resto não admira que assim tenha acontecido.
Dançar com o Rodrigues é uma prova de bom
gosto.
-Hum... -fungou Clotilde, cada vez mais séria,
passando por cima das quiromancias dele, rumo ao
seu crisól: -Que diabo disseram vocês um ao outro?
...
- Nada de especial. Menos, vinte vezes menos do
que aquilo que entre nós, você e eu, foi dito já ...
Posso ter alguns -parafusos- desajustados ...
Admito. Ela tem pelo menos o dobro.
-Seja! -cortou Clotilde entre fria e austera, impondo
silêncio.
Só então Miranda principiou a reentrar
verdadeiramente em si. Estava, como não podia
deixar de ser, admirado, espantado até, com a
morena. Pelo que de tarde tinha visto e dela ouvira,
tecera idéias, juízos profundamente errados:
julgara-a frívola; superficial; sexy apenas, ou pouco
mais. Via que se enganara, apesar de Clotilde ser tão
sexy quanto uma rapariga honesta, extrovertida e
muito atraente, pode ser, ou inevitavelmente é -por
natureza.
A austeridade de Clotilde arrefeceu mais, e por fim
cristalizou:
-Miranda!, já lhe disseram que ela sofre de
leucemia?
A sua voz era abafada, claustral, fortemente
impressiva, e, não obstante, quase neutra.
Miranda estava assombrado:

-Diz você que ... -Sim, que sofre de leucemia. A


última anã- lise acusou setenta e oito mil glóbulos
brancos. A anterior indicava cincoenta e quatro mil.
Devia ter cinco, seis, sete ... vá lá, oito mil!
Apesar de sempre igual a si mesma, dir-se-ia que a
transfiguração da morena fora tão grande que
Miranda já não sabia que mais o esmagava: se a
revelação do mal terrível, ímpio!, em bacanal no
sangue de Albina, se a mágoa austera, a serenidade
impressiva da companheira.
-Ela não costuma de fato dançar... - amenizou
Clotilde quase a sorrir. -Julgo até compreender
porquê .... se acaso é possível alguém compreender
o que nela realmente se passa ... Foi por isso que lhe
perguntei o que disseram e porque razão não quis
você dançar com ela. Desculpe. Sei muito bem que
não fui leal. A lealdade não é, nunca foi moeda-
padrão de nenhum mercador a sério. Fechemos as
contas: Acredito que tudo se tenha passado como
disse, e até que a vontade de dançar a tenha atacado
quando eu e o Rodrigues chegamos ao pé de vocês.
Mas foi a si que ela quis punir. Porquê? ... Não sei!
Supunha que você soubesse Miranda estava cada
vez mais perplexo. Aniquilado, perguntou com
timidez quase infantil:
-Quer dizer que o Rodrigues foi dançar com ela
para ... ? -e suspendeu-se: olhos de medo fitando os
olhos dela, e estes, gaiatos, de novo a mangar:
- Não ... 0 Rodrigues é boa pessoa, apesar de ter,
segundo a sua gíria, uns quantos -parafusos-
também desajustado. Não. Não pense nisso.
Limitou-se a aproveitar a deixa. Olha quem, o
Rodrigues! Tomara ele que ela dançasse mais ...
sobretudo com ele! 0 que ele quis foi namorá-la.
Os tropeções de Miranda eram choques em cadeia:
- Mas não é a si que ele faz a corte? ... Clotilde
sorriu. A pergunta revestira-se de tanta
ingenuidade, e soara num tom de tal modo patético,
que a rapariga quase se comoveu:
-0 Rodrigues faz a corte a todas as mulheres
atraentes que estejam dispostas a aturá-lo, sejam
elas quem forem. Também sofre de morbos
incuráveis. De leucemias morais, coitado. E não sei
porquê. Para ele a cura é fácil .... desde que ele
acredite e colabore a sério.
Silêncio ativo. Pouco depois Miranda exibiu outro
retrato seu:
-Estou confundido consigo, sabe? -Porquê? Por
causa da minha arenga sobre doenças, ou..., como
lhe havemos de chamar?..., da minha insimulação?

-Por isso ... e muito mais. -Está a fazer-me a corte?


-Não entre comigo! Você confundiu-me! Confunde-
me! - Vexa-me! Bem, é melhor eu calar-me.
Clotilde afastou-o ligeiramente de si, e batendo-lhe
maternalmente na face segredou-lhe à puridade:
- Confia em mim? ... -Confio! -Mas ainda não
acabara de pronunciar esta verdade, sentiu-se de tal
modo embaraçado que enrubesceu.
- Deixe-se disso! - ralhou Clotilde ternamente. -
Pense em mim como enfermeira. Ou como mãe, se
quiser.
- Enfermeira?! - 0 espanto de Miranda era cômico.
- Enfermeira, sim! Então que esperava você que eu
fosse? Datilógrafa, amanuense?, secretária?..., ou
apenas um -pastelinho-de-nata-, uma -boneca-,
um...
-Por favor, Clotilde! -rogou Miranda, cortando-lhe o
discurso.
Ela sorriu e voltou a galhofar com a verdade:
- Fique-se com esta, Miranda: fiz o 7.1 ano de
Ciências no Maria Amália com média de 15; fui o
número 1 do curso de enfermagem; e na minha
família somos todos um bom bocado -pílulas-, mas
sabemos onde se deve pôr os pés e, sobretudo,
trazer a cabeça!
-Mas eu não pretendi de modo algum diminuí-la,
por amor de Deus! Juro-lhe que não me passou pela
cabeça que fosse enfermeira nem tão-pouco pensei
no que pudesse ser ou deixar de ser. Tenho pensado
mais em mim do que nos outros, creia! Quando
perguntei se era enfermeira também era capaz de
lhe perguntar se era almirante. Bastava que você
tivesse dito que o era!
- Está bem, não se zangue - orvalhou ela a sorrir,
desarmando-o.
A música entretanto parara e recomeçara, e eles a
dançar. Miranda nem deu pelo fato - tal o grau da
sua turbação após o conhecimento do que se
passava com Albina. Mas Clotilde, com outro estofo
psíquico e uma filosofia mais sólida, revestíu-se do
ar frívolo que parecia caracterizá-la e desferiu sobre
o companheiro esta alfinetada coquete:
-Com que então você não sabe nem gosta de dançar,
nem tão-pouco pensa na dança. Mas já dançou
praticamente de tudo e durante a paragem da
orquestra nem sequer de mim se arredou! Hum,
hum ... Vá lá a gente fiar-se nos homens!
Apanhado mais uma vez de surpresa, Miranda
meteu os pés pelas mãos e saiu-se com esta muleta,
que ele próprio viu estar rachada:
-Quer que a leve ao lugar? ... -Quero que continue a
dançar comigo, se isso não lhe desagrada!! -E
assumiu aquele ar de momice tema que ele já lhe
vira, antes de irem para o aeródromo, quando
chegou ao pé da carrinha e decidiu desbaratar
Rodrigues.
Miranda pôs o jogo na mesa: -Você confunde-me.
Concordo que me atrapalha. Mas conseguiu que eu
passasse a gostar de dançar. Não espere que eu me
canse ou desista. Já -vi que para a bater tenho de me
servir do físico. Da única arma em que sou mais
forte do que você, se é que o não sou também na
pertinácia. Prepare-se para me pedir misericórdia!
Ela sorriu, sem dúvida tocada, mas fez fogo doutro
ângulo, para o ar, flanqueando-o sem remissão,
outra vez ainda:
-Você é muito modesto, não lhe parece? A pergunta
foi articulada num tom de tal modo sério, tão rica
de simpatia e conteúdo, que Miranda ficou de novo
sem norte -pois acabara de se enaltecer. Clotilde,
claro está, passou por cima da jactância. Mas como
ele, apesar disso, ficou a oscilar, ela acudiu-lhe:
-Escusa de responder. É, de fato, bastante modesto.
Penso que é também uma boa pessoa. Um homem
puro, isento de maldade. Atrevo-me por isso a
pedir-lhe um favor. Pode ser?
-Desde que esteja nas minhas mãos ... -jurou
Miranda. Mas como ela não prosseguisse
imediatamente, sentiu-se invadido por uma
sensação dolorosa de ansiedade, receando não sabia
ao certo quê. (Como não lhe passara pela cabeça que
a enfermeira pudesse ter dançado com ele para
atingir este vértice promissor, interpretou
erradamente o ar de mistério que parecia nimbar a
expressão dela -julgando por instantes ver Lucila
diante de si). Estremeceu. Clotilde fitou-o então nos
olhos, sorriu ternamente, e segredou-lhe com
doçura:
- Quando a música parar, pegue-me no braço ao de
leve, fale, sorria, diga o que lhe vier à cabeça, enfim
... mostre-se o mais divertido que puder. Mas uma
vez no lugar, aproveite a primeira deixa e meta
conversa com a Albina. Proceda como se entre nós
apenas se houvessem discutido bugiarias: dança,
má-lingua, frioleiras. E mal a orquestra recomece
convide-a para dançar. Mostre-se alegre. Que ela
não suspeite do que eu lhe disse. Caso contrário não
dançará mais. Lembre-se de que é novo na Jamba e
ainda não conhece os nossos podres. Para si todos
nós somos arcanjos, sereias, querubins ...
Entendido?
Miranda limitou-se a baixar a cabeça. Nenhum deles
abriu mais a boca por minutos. Mas apenas a
música se extinguiu deram início à comédia, qual
deles mais bobo, mais frívolo, mais desmiolado.
Tudo correu pelo melhor. Albina aceitou o convite
de Miranda e Clotilde foi dançar com Freixo.
A conversa do metropolitano com a loira foi
assambarcada por ele. Retomou o tema da sua
-falência- em ar de troça, atribuindo tudo à sua
patetice (o que de certo modo era de fato verdade
mas ele só então o reconhecia em toda a sua
profunda nudez) e narrou-lhe depois, vírgula por
vírgula, a catástrofe do noivado. Não admira que
tenha atraído a simpatia, o interesse, toda a atenção
de Albina. A verdade tem poderes sobrenaturais. É
cósmica e incorruptível -por mais que isso fira,
acidule, traia aqueles que outra coisa não fazem
além de traí-Ia, tentando corrompê-la, degradando-
se- corrompendo os mais. É não querer sol no
pomar, só para não ter de o regar.
As peças foram-se sucedendo às peças e eles nos
braços um do outro. Quando por fim Miranda se
calou Albina fez este comentário:
-Foi tudo realmente mesquinho, reles, sórdido até, e
portanto doloroso. Mas há um ponto que você não
esclareceu, Miranda. Um ponto sobre o qual me
parece ainda não fez verdadeira luz. Diga-me, com
toda a franqueza, a mão na consciência e os olhos
em Deus: você amava-a? ... Amava-a de fato? ... A
ela por ela? A ela só? ...
0 primeiro impulso de Miranda foi para protestar:
para lhe dizer que sim; que em toda a sua vida
jamais amara a alguém como a Lucila. Mas a
sombra da outra, daquela que nada pedia, que nada
pediu a não ser amor, perpassou silenciosa entre os
dois e os seus lábios não se abriram.
Os olhos de Albina, pousados nos seus, eram como
orvalho de Outubro sobre chanas queimadas. E os
segundos foram ardendo ...
-Já concluiu?... -volveu ela num sopro quase
maternal.
-Parece que sim ... -E então? ... -Creio que nunca, de
fato, a amei.
0 silêncio não se admirou. Nenhum deles se
comoveu. Mas era tudo tão -absurdo- que ele teve
de ir mais além:
- Juro-lhe, contudo, que não sabia. E no entanto eu
estava certo de que a amava! ...
Albina sorriu: um sorriso triste, despido, nu!, rico de
compreensão. Iluminou-o assim:
-Acha que vale a pena acorrentar-se a um destino de
vingança? ... De ódio, no fim de contas, quando o
Senhor nos diz que único fim da vida é amar?
Miranda não respondeu. De olhos nos olhos dela
foi-se aferindo e dançando. Lucila, a outra, todas as
outras, eram fantasmas. Meros fantasmas! ...
Quimeras passadas, fogos-fátuos de todo irreais.
A música interrompeu-se e alguém anunciou que o
administrador da Companhia, senhor engenheiro
Eurico, Gonçalves Corvo, ia usar da palavra. Pedia-
se a máxima atenção.
0 silêncio alastrou e por fim uniu. Corvo, muito
solene, fez então o discurso a que atrás se fez
referência, com o êxito e as repercussões
mencionadas.
Foi a vez de Albina escorregar: -Muito simpático, o
Professor, não acha? Miranda assentiu. Mas a
ausência do geólogo voltou a instalar-se-lhe no
pensamento e aliciou-o nesta suspeita que os lábios
traíram a meia voz:
-Oxalá por detrás de tudo isto não agonize outra
verdade ...
Albina mirou-o com surpresa. Visivelmente
chocada não teve mão em si, e lamentou:
- Não o supunha capaz de má-fé ... -Não se trata de
má-fé, creia. Sob muitos aspectos sou
incorrigIvelmente crédulo e ingênuo. Mas nuns
quantos, em que me desiludiram de todo, não é fácil
enganarem-me. Estou cansado de ler e ouvir
palavras assim. A verdade tem outro estilo. Creia!
Não acredite que um programa de tamanho
aparato, com tanto cerimonial, tão discutido e
revisto (como ouvi) fosse alterado de um momento
para o outro só -por amor dos nossos camaradas
dos turnos da noite-. Amor de quando!? ... Albina,
diga-me, com toda a franqueza, a mão na
consciência também, acredita no amor à primeira
vista? ...
E como os olhos dela, boiando nos seus, oscilaram
por instantes, batidos pelo sopro de não sei que
brisa imaterial, ele mergulhou na pergunta e
estremeceu. Os olhos de Albina, muito sérios agora,
puros, ternos, muitíssimo suaves, pareciam refletir
silêncios de abóbadas, vozes da terra, hinos do mar
... E abrindo-se em mais luz, iluminaram, cegando-
o:
- Acredito, Miranda.
Batuques, batuques! ...
Tange-ta-tangue, tange-ta-tangue, tange-ta-tangue,
tange-ta-tangue ...
Vozes da Eternidade ... do céu, da terra, do mar.
Hip!, híp' hip! ... Urra! ... Ué-ué...' ué-ué...' ué-ué ...
Minhas Senhoras e meus Senhores, façam favor de
se sentar.
BATUQUES, BATUQUES! ...

Depois de terem esquadrinhado toda a margem


direita do Cuanja a partir da foz até à mulola da
nascente, Januário mandou subir pelo jazigo
Cateruca, dar a volta, descer, e atravessar para o
vale do Cului, fazendo o jipe contornar a albufeira
da barragem até próximo do encontro dos dois rios.
0 terreno foi todo espiado palmo a palmo, ao longo
e ao largo das picadas, em busca de rastos da 75-75,
sem o menor resultado positivo. Olhos vítreos de
gaselas, pequenos felinos, canídeos e mais
passeantes da noite quebravam de quando em
quando a monotonia da busca. Os aldrabões eram já
raros. Fartos, porventura, teriam voado para as
árvores ou escolhido outros pousos, abandonando
os caminhos.
Era tarde. Começavam a estar exaustos. Sobretudo
desanimados. Januário ordenou então ao condutor
que avançasse de novo pelo Cuanja, a fim de
atravessarem no dique-norte do Laranjeira e se dar
a pesquisa por finda.
Quando dobravam para a albufeira o lanternim, de
bombordo imobilizou-se num objeto flutuante, que
pairava à tona da água, junto ao talude.
- Que é aquilo? - perguntou Almeida, o condutor,
chamando a atenção do chefe do grupo.
- Hum! ... - fungou Januário Santos, fazendo tremer
o facho luminoso sobre o alvo. Após longos
segundos de quase indiferença e fatigada hesitação,
acabou por ordenar ao 2.- ajudante (um negro
atlético) que fosse ver o que era: -Quissonde! Desce,
e vê se consegues deitar a mão àquílo.
Ágil como um gato, Quissonde pulou e escorreu
pelo talude abaixo com a segurança e a ligeireza dos
caprinos. Ao aproximar-me da linha de água, no
entanto, sentindo os pés a afundar, hesitou, e depois
imobilizou-se.
-Está mole... -gemeu para cima, dando um passo à
retaguarda, contrariado, a sacudir lama cor de
sangue ora duma ora doutra bota, empapadas até
ao cano.
-Descalça-te! -ordenou o chefe. Pés e mãos à
compita, Quissonde subiu num ápice e tirou as
botas. A seguir despiu as calças. E armando-se
depois com a pá do jipe, desceu outra vez, de novo
a escorrer. Chegado ao fundo, entrou na água -lama
por cima das rótulas e líquidos vermelhos até à cinta
-, e ao fim de aturados esforços lá conseguiu :varar o
objeto na borda.
- Imbamba! ... -grunhiu, à vista da -coisa-. -Que tem?
Quissonde jogou fora a pá e estendeu a mão: -Um
saca! -e apalpando o conteúdo anunciou o resto: -
Tem um bola ... e latas ... e mais. Coisas de branco!
(0 volume continha efetivamente conservas e uma
grande bola de borracha: avios para o banquete e
um presente de Salviano para o filho esperado: -um
rapaz, segundo ele. dizia! A bola impedira a
imersão).
Ao deslocar-se para agarrar a saca, Quissonde pisou
o que quer que fosse, alongado, simultaneamente
duro e mole, que por pouco não o fez cair.
Desembaraçou-se por isso da presa, e recuando um
pouco mergulhou os braços na lama e ergueu o que
pisara. Mal viu o que era, fugiu, talude acima,
desvairado, sem fala -um pavor fúnebre a esgasear-
lhe os olhos e o corpo úmido a tremer.
Os farolins acompanharam todos os seus
movimentos. Ninguém, contudo, os interpretou
devidamente.
-Que foi, Quissonde?!... Giboia?... Jacaré?... -
interrogou Januário, surpreendido com as reações
do auxiliar, que era dos mais valentes A
experimentados dos seus homens.
-Aqui não há jacaré! -explicou Raimundo, A outro
ajudante da viatura, um transmontano seco, de falas
mansas e ossos quadrados. - Aquilo é mais lama do
que água. 0 jacaré não gosta disto ...
Imóvel na borda do talude, entrementes, Quissonde
não descongelava os olhos do atoleiro donde se
escapulira. Nu da cinta para baixo, todo ele era lama
vermelha. o próprio sexo mal se lhe notava.
-Que foi, Quissonde! -berrou Januário, obrigando o
rapaz a acordar.
- Cazumbi ...
- Qual cazumbi, qual minha avó torta! Que viste tu,
Quissonde
- Cazumbi, sô Januário! ... Um pau ... e virou perna
de gente com bota no pé! ... Acolá! ... Eu viu! -E com
o braço estirado, preso ao chão pelo terror do
sobrenatural, estarreceu mais ainda, apontando
para a água.
-Raimundo! Descalça-te e vai ver o que é! -ordenou
Januário para o transmontano. - Espera. Passa um
cabo pela cinta ... Não vá o diabo tecê-las.
Raimundo assim fez. Almeida largou o volante e
deu uma ajuda ao camarada. Quando o
transmontano principiou a descer, Januário espetou
os dois farolins nos olhos do preto, e com meia
dúzia de impropérios forçou-o a acompanhar o
parceiro. Dois passos à retaguarda, Quissonde lá foi
escorrendo.
- Em que sítio é, Quissonde? - interrogou
Raimundo ao aproximar-se da base.
-Ali!... No fundo ... Raimundo deu mais uns passos
e mergulhou as mãos ... Mal sentiu o que procurava,
ergueu-o com jeito -pois no seu espírito luzira já o
pior. Uma bota primeiro, e uma perna a seguir,
vermelhos, da cor da lama, ficaram à vista dos
quatro. Soltou um assobio e deixou tombar o
achado. Mergulhou depois as mãos em busca do
par. Lá estava. -Ê ele!-, exclamou a meia voz,
pensando no geólogo.
-Januário! -rouquejou para cima. -0 tal doutor está
aqui. Tiramo-lo?! ... ou vai-se avisar?
- Diabo! ... E se ele ainda não morreu? ... Dizem que
há quem se salve mesmo depois de estar ... sei lá
quanto, debaixo de água... _ Se ele aqui fica ...
amanhã é o diabo! -agravou Raimundo. -Se fosse a ti
levava-o já para o hospital. Num há nada a perder ...
Vai ser preciso tirá-lo ... 0 melhor era já.
Januário hesitava. A determinação de Raimundo,
entretanto, fortaleceu-lhe aquela idéia absurda (que
lhe pareceu luminosa) de tentar a recuperação do
afogado. Desfez-se de hesitações A deu ordens com
firmeza:
- Puxai-o pra fora! Depressa! Almeida! Larga A
corda e vai ajudar. -Vamos! ... Gtizol Almeida
desceu como estava. Da base do talude, melhor, da
linha que parecia sê-lo, subiu nova confirmação do
transmontano:
- É mesmo o doutor, Januário. Barbas, bigode,
cabelo, fato, cabeça grande ... É ele todo!
A lama transfigurara o sinistrado. Embora o
geólogo fosse grisalho e Salviano um homem novo,
como eram de compleição semelhante e usavam
barbas do mesmo tipo, além de botas, calças e
camisas por assim dizer iguais, a confusão era
inevitável, dado suporem o guarda com a família, e
o cientista -ter desaparecido-. Não pensaram sequer
na carrinha em que ele -saíra-. Não obstante, se em
vez de ter ficado aos lanternins, Januário tivesse
também descido, por certo não alimentaria
otimismos sobre as possibilidades de salvamento do
afogado. Só quando o viu em cima, na borda do
talude, e foi ajudar os companheiros a carregá-lo na
viatura, mediu a situação: da boca do morto escorria
um líquido vermelho espesso: -papa rala de
hematite, água, sílica ... e pouco mais! Era todavia-
tarde para recuar. Redobrou de afinco e frenesi.
Quanto mais depressa chegasse ao hospital, melhor.
Que desse por onde desse! Ele pensara que fosse
ainda possível salvá-lo!
0 médico de serviço, Dr. Raul Lezaola, mal viu o
sinistrado, não teve a sombra de uma dúvida
sequer: -Está morto e bem morto-, disse de si para
si. Mas em face da narrativa de Januário, do seu ar
preocupado, da expectativa envolvente e de razões
bastante mais fortes para si, como homem e
cidadão, além de médico, promoveu a escrupulosa
observância das medidas que o caso requeria -a
mais eficaz das quais foi a limpeza do - geólogo-.
Como o jipe havia chegado ao hospital com todo o
recato, e ninguém mais, lá fora, além dos
componentes da patrulha, conhecia a -verdade-,
fixou ali o pessoal de serviço e dirigiu-se a toda a
pressa para o Jango.
A consternação e a própria surpresa, apesar dos
receios preexistentes, foram enormes – e Sereia não
escondeu o abalo. Serrão havia estado ali, pouco
antes, a informá-lo da total ausência e rastos
suspeitos, e que o fato devia querer dizer, pura e
simplesmente, que o Dr. Castro Raposo se ausentara
por estrada, dentro de qualquer plano muito seu,
pelo que teria comido em Vila da Ponte, no Dongo,
em Cassinga, ou mesmo Tchamutete, visto conhecer
gei@èricamente a região e ter declarado que
desejava andar -sem apêndices-. Parecia-lhe, pois,
não haver lugar para receios sérios - o que não
impediria que as pesquisas continuassem até ele ser
localizado. Isto confortara o Professor. E de repente
- a verificação da morte do cientista!
Mena deu ordens para irem procurar o Comandante
e perguntou ao administrador se quena ver o
cadáver. Sereia declinou o convite. Fatigado,
demolido como estava, disse que preferia deitar-se
quanto antes. Fez por isso as despedidas e recolheu
aos aposentos.

Ninguém pensou mais na 75-75. Só quando Serrão


apareceu e perguntou por ela o fato ganhou
relevância. Não foi todavia necessário tomar
providências para a sua pesquisa na lagoa: os
médicos, entretanto, haviam verificado que o morto
era um homem novo; que não se tratava do geólogo;
que, segundo o testemunho dos enfermeiros, seria
um guarda-auxiliar a quem havia sido concedida
uma licença especial de três dias.
- 0 Salviano! - concluiu Serrão, já presente, correndo
emocionado para o hospital.
Os demais suspiraram de alívio.
Não seria bom informar o Professor? - sugeriu
alguém, no cume da descontração.
- Acho que sim. Ele ficará contentíssimo!
- E se já está a dormir?...
- Calma! - ponderou Corvo. - Ainda não sabemos do
Dr. Raposo.' A situação é -Exatamente a mesma- de
há meia hora atrás. As buscas têm de prosseguir
sem descanso.
Olharam uns para os outros. 0 reparo apunhalou
todas aquelas euforias, -de fato precipitadas. E
Corvo, medindo melhor ainda a parcela
-significativa- da conjuntura, perguntou ao diretor-
chefe das minas:
- Alguém viu se o Dr. Raposo estava, ou não estava,
efetivamente, no seu apartamento?
- Bem..., eu não posso jurar! ... Disseram-me que
verificaram -que a chave não estava por dentro-!
Deduzi que teriam aberto a porta ... - abonou Falcão
Mena.
-0 Serrão? -Deve ter ido para o hospital. 0 Salviano,
isto é, o guarda que morreu afogado, era um dos
seus prediletos. Ele e a D. Guilhermina creio que até
já foram aliciados para padrinhos de um filho dele,
que está para nascer ...
- Quem tem as duplicatas das chaves dos
apartamentos? - cortou Corvo, repondo eficiência na
conversa e afastando para longe o sentimentalismo.
-0 encarregado do hotel.
- Mande chamá-lo, Mena, se faz favor. E que traga a
chave do Dr. Raposo.
Corvo, Mena, Serra de Oliveira, médicos e mais
componentes do grupo aguardaram em silêncio o
regresso do mensageiro. Foi uma pausa curta:
- Mas é lá possível que ele esteja no quarto?! -
aventou alguém, da parte menos iluminada do
grupo, interpretando o sentir da maioria.
- Pode estar a dormir... -sugeriu outro, aderindo à
defecção.
- 0 Serra de Oliveira diz que ele mal dorme! ...
- Essa lhes posso eu garantir. -E então a carrinha? ...
0 encarregado do hotel surgiu, e o diálogo secou.
-Vamos ver o apartamento. Era por onde
deviam ter começado! -censurou Corvo a sorrir,
moendo receios imprecisos, sereno, contudo, nos
ares e na voz.
0 pequeno cortejo deslizou em silêncio. Uma vez no
destino, o encarregado do hotel recebeu ordem para
abrir a.porta. Nenhuma chave por dentro,
efetivamente, e ninguém na divisão da entrada.
-Bem, vamos passar uma revista... -decidiu o mesmo
engenheiro a seguir, muito sério já. -Acompanhem-
me, façam favor.
Entraram. Castro Raposo jazia de bruços, meio-
atravessado na cama, sem nada sobre si. Olharam
uns para os outros com interrogações, desculpas e
vanglórias disfarçadas.
-Dr. Lezaola, faça favor... -articulou Corvo,
convidando o médico a avançar e apontando para o
geólogo.
-Está quente..., e, segundo creio... –a pausa arrastou-
se por demorados segundos opressivos- a dormir!
-Mas... -ouviu-se alguém estranhar.
0 médico observava agora os olhos do cientista, sem
fazer caso dos seus movimentos desconexos. Pinto
Castro, entretanto, avançando pelo outro lado da
cama, foi direito à mesinha de cabeceira, atraído
pelo frasco paralelepipédico de onde o geólogo
havia retirado as cápsulas que tanto lhe custaram a
engolir, conduzindo-o embora, em compensação, à
descoberta da água potável e do gelo que lhe
permitiram confortar-se com o uísque.
-Deve estar sob os efeitos disto –declarou Pinto de
Castro, exibindo a droga para os acompanhantes.
-0 que é? -Nembutal. Um suporífero ... Resta saber
quantas cápsulas engoliu. Em doses pequenas é
inofensivo ... Mas a Marylin Monroe suicidou-se
com este pozinho amarelo!
-0 coração está em ordem -ouviu-se Lezaola
tranquilizar. -A respiração é normal ... Mas a boca
cheira a uísque de verdade!
-Então não há perigo! -mofou Pinto de Castro.
-Dorme a dois carrinhos. -E soltou uma risada
galhofeira.
Lezaola sorriu também, baixando e erguendo a
cabeça, em sinal de confirmação.
Alívio ensolarado. Sorrisos e comentários em voz
alta.
Castro Raposo entreabriu os olhos e pôs-se a
remirar a assembleia, como quem não está bem
certo do que vê nem seguro de ter acordado:
-Que raio de coisa é esta?! -Descanse! -sossegou o
médico. -Como o senhor Doutor não apareceu para
jantar, e já passa das duas da madrugada, viemos
saber se estava bem.
-Tivemos de lhe forçar a porta! -gracejou Corvo. Já
passa das duas da madrugada?! ... - contra-
interrogou o geólogo, com ar incrédulo.
- Verdade! - confirmou Pinto de Castro. -Passa
mesmo das duas e meia. São duas e trinta e cinco.
Veja!
- Eh! ... Como diabo foi isto?!
- 0 senhor não tomou este pozinho amarelo antes de
se deitar?
Castro Raposo fixou os olhos no frasco que o
médico lhe pôs na frente do nariz.
- Tomei ... Estava nervoso..., e como durmo mal ...
Mas foi um médico amigo que me aconselhou isso
... E garantiu-me que era inofensivo!
- Depende. Quantas cápsulas lhe aconselhou? -Uma
a duas ...
- E quantas tomou o doutor?
- Deixe-me ver ... Três! Foi isso: três cápsulas! Como
estava excitado .... pareceu-me que seria melhor
reforçar um pouco a dose... -e fitou em Pinto de
Castro uma interrogação penetrante.
-Descanse. Não houve qualquer novidade. Mas para
a próxima tome só duas, como lhe recomendou o
seu amigo.
Sorriram, trocaram algumas explicações mais, e o
geólogo narrou o que se passara com o banho, o
álcool, as cápsulas, a água potável, o gelo ..., e por
fim o uísque. Houve risos, gracejos, larachas de
parte a parte -e manifesto embaraço dos clínicos,
visto não terem sido capazes de engendrar qualquer
explicação convincente para
A adormecimento repentino do cientista (de que o
nembutal não era responsável), tanto mais que
Raposo rejeitara vigorosamente as -culpas- que os
médicos pretenderam atribuir ao cansaço, ao
uísque, aos pachos de álcool, e a não sei que
sinuosos desencadeamentos psíquicos, mais ou
menos obscuros, tão fugidios como falazes. Os
leigos, por outro lado, chegaram à conclusão de que
não fora devido às manchas do Sol, nem tão-pouco
ao minério da água do chuveiro -ou sequer do
daquela que bebera por engano - antes de saber que
era imprópria. Mas ninguém se atrigou. Pelo
contrário: ficaram excelentemente dispostos -
galhofando quase sem parar.
Quando iam para se despedir Castro Raposo fez ver
a Falcão Mena que o seu -dia- não estava
-completo-: que ainda não tinha -acabado-:
-Meu caro, avenha-se como quiser. Estou cheio de
fome. Quero comer! Se não tivesse a -beleza- da
água no -carnaval- em que se encontra, eu não teria
faltado ao banquete! 0 culpado é o senhor! Tinha
obrigação de, pelo menos, prevenir os amigos; ou
mandar pôr avisos de precaução nas portas das
casas de banho: -Cuidado!
Se deseja lavar-se, sirva-se dos garrafões ..., ou vá à
senzala! - -ou: -Use pachos de álcool! - -contribuiu
Serra de Oliveira.
Riram de novo, e Mena descarregou as culpas para
cima do colega, que era o responsável direto por
tudo quanto dizia respeito à engenharia civil! Serra
de Oliveira fez como ele: atirou com a -batata- para
as mãos de Corvo, juntando-lhe -calor- da sua
própria cozinha:
- Há mais de dois anos que ando a barafustar e
rebarafustar com o Corvo por causa da estação de
tratamento. Mas como ele está em Lisboa, e a água
de lá é de confiança a gente que se amole!
Corvo sorriu. Um sorriso da cor do líquido das
canalizações: aguado, ferroso, e amarelo também.
Mas como lhe pareceu que não valia a pena alijar as
responsabilidades mais para -cima-, modulou o
vozeirão e entrou em cena pela via da farsa:
- A culpa, meus caros amigos, é de Gil Vícente!
Ninguém lhe encontrou piada... - mas sorriram.
Falcão Mena aproveitou a sota para se pôr ao largo:
disse que ia mandar fazer um bife com batatas fritas
e ovos, para o Dr. Castro Raposo.
-Com vinho branco gelado, pão!, e azeitonas de
Moçâmedes!, -acrescentou o geólogo em ar de
exigência.
Mena disse que sim, e o aguaceiro passou.
Chistaram e riram de novo (sem pesadelos nem
mais gindungo) e a seguir despediram-se, indo os
-assaltantes- para o jardim fronteiro, onde a
conversa reanimou, agora a desfrutar as facetas
cômicas dos banhos de Castro Raposo -muito em
especial as -tragédias- dos pachos com álcool.
Quatro ou cinco minutos mais tarde, Mena estava
de volta. Na primeira deixa jogou contra a corrente,
reabrindo com o seu naipe dileto:
-E o Professor? Não seria melhor a gente ir avisá-lo?
Como o -morto- -ressuscitou-! ... E o -desaparecido-
não desapareceu! ...
- Não ... ]É melhor deixá-lo dormir ... Ele estava
arrasado! Além disso, imaginem que ele também
tomou nembutal, ou outra droga do gênero! -
contrabateu Menezes, o outro médico das minas.
Nembutal ... ou banho de pachos! - fintou Serra de
Oliveira.
Novas risadas e mais chistes com intenção. A certa
altura Corvo espreitou para o relógio e crucitou a
recolher:
-Passa das três horas! ..., meus caros amigos! Vamos
mas é à deita ... que o programa de amanhã é pior
que o de hoje. E quanto ao Professor ... deixá-lo
dormir.
-Amanhã, vírgula! -pontuou Pinto de Castro.
-Está bem ... De hoje! .... seu puritano! Despediram-
se e recolheram aos apartamentos.
Serrão, entretanto, depois de verificar que o morto
era realmente o pobre Salviano (seu quase-
compadre) deu ordens para a interrupção das
pesquisas, e, logo que fosse dia, para a recuperação
da motoreta. Despachou também um rádio para
Tchamulete (a fim de confirmarem se a carrinha em
que o engenheiro Roxo lá chegara era de fato a 75-
75) e depois encaminhou-se para os seus aposentos.
Ia desolado. 0 drama do auxiliar atingira-o
duramente. Por mais esforços que fizesse não
conseguia libertar-se de um torturante sentimento
de culpa insidioso, naquela hora deveras opressivo:
Se tivesse deixado o rapaz seguir conforme
autorizara, e fizera registrar na guia (acusava de si
para si), o acidente não teria ocorrido.
Quando abriu a porta quase arrastava os pés. A
mulher esperava-o, recostada num caldeirão. Mal
ouviu o ruído da fechadura, ergueu-se e foi ao seu
encontro:
-Sempre é ele?... -quis saber D. Guilhermina.
-É ... Só a mim é que acontecem coisas destas. Só a
mim! ... Se o tenho deixado ir às duas horas, como
devia, ainda estava vivo.
-0 homem!, que culpa tens tu de ter precisado dele?
Não o retiveste por razões pessoais! ... Por
conveniência tua! Que culpa tens tu do que lhe
aconteceu?! ...
-Tenho. Tenho toneladas!, montanhas de culpa! ... Se
ele fosse um azelha!, uma azêmola!, um estupor! ...
como há tantos para aí! .... eu não o teria retido.
Percebes? Não o teria retido! -explodiu com
veemência.
0 homem, não digas isso! Se ele fosse uma azêmola
tu nunca lhe terias dado a licença. -É o destino ...
E como Serrão não descongelasse da postura em
que se imobilizara, D. Guilhermina empurrou-o
para a casa de banho:
-Estás coberto de pó. Vai mas é tomar uma ducha. A
água está quase boa. Vamos... -e continuou a
empurrá-lo docemente.'
Serrão deixou-se conduzir. D. Guilhermina mal o
viu de novo em si paramentou o diálogo:
-Coitada mas é da mulher ... Vai ser preciso olhar
por ela. E logo agora ... 0 filho não pode tardar ... Se
é que já não nasceu! Lembra-te de que o miúdo é
nosso afilhado! ... Desta vez não me venhas lá com
os teus escrúpulos do costume. Vais ter de lhe
arranjar uma ocupação na Companhia! Na
Companhia ... ou onde quiseres! Onde ela possa
olhar para o futuro com relativa segurança. Pobre
Maria do céu! ...
Serrão sorria. A mulher falava como o Salviano:
como se ele (pobre de si, também) fora um mago, e
o bebê que estava para nascer .... alguém, já deste
mundo! ... Um ser com vontade, alegrias, dores,
anseios, desilusões... -Ela também (e disso o marido
não sabia) tinha comprado uma bola de borracha
para lhe oferecer!
Anacleto Miranda não pôde acreditar que o afogado
fosse o Dr. Castro Raposo. Não sabia explicar
porquê. Sentia que não era ele! ... Primeiro, de uma
forma obscura, porém dominadora; depois, com
uma certeza quase plena, ao ver o cadáver:
Apesar de tantas semelhanças flagrantes, faltava-lhe
algo: um quid indefinível, fluido misterioso..., halo
familiar... - não obstante a sujidade que o
conspurcava, as transfigurações, o seu estado
patético repugnante.
Ainda lhe ocorreu se tal -ausência- não seria a
própria -vida-. Esse -nada- transcendente que nos
irmana e destrinça; que nos faz -ser- e -não-ser-; que
não fazemos idéia do que seja, do que é! ..., e porque
existe! ... - se acaso existe.

Afastou porém tais pensamentos. Mil pormenores


do vestuário, do todo, do próprio rosto, - apesar de
infiel e desabitado - consolidaram o seu
pressentimento, as suas suspeitas, conferindo-lhe
aquela certeza consoladora, de certo modo
pungente. Não ousou, contudo, transmiti-Ia a
ninguém. 0 receio de um engano traiçoeiro (ainda
possível), fê-lo encerrar-se numa ensimesmação
angustiada - até os efeitos da limpeza
testemunharem decisivamente a favor do que
sentia. Só então se abriu de todo com Clotilde, e,
eufórico, esquecendo os mais, partiu aliviado.
Não foi longe, porém. Aquele rebutalho humano,
graças a Deus!, não era o seu amigo. Mas, então ....
que seria feito dele realmente? ...
Albina - a quem transmitira aquela primeira
suspeita avassaladora, e prometera dar parte do que
descobrisse, sumira-se-lhe do pensamento.
Rodrigues ficara de levar Clotilde a casa e de o
conduzir à camarata. Fora encarregado por Serrão
de um avio urgente e prometera não se demorar. E
ele, Miranda!, abalava sem dizer -água vai!-
Regressou ao hospital e perguntou à enfermeira se
não se importava de ficar só. Ele iria a pé. Apetecia-
lhe passear ... Espairecer um pouco. Tinha
esperanças de que, entretanto, houvesse noticias do
amigo .... e preferia esperar.
Clotilde ouviu-o em silêncio. Meditou ... E fitando-o
bem nos olhos deu voz ao coração:
- Vou consigo. No fim de contas eu vim aqui só para
lhe facilitar a entrada. Importa-se de me
acompanhar? Quando o Rodrigues vier saberá que
eu já parti. Mas veja lá! ... Não o incomodo? ...
- Por amor de Deus, Clotilde! Só me dá prazer ...
- Então espere aí. É só um minuto. Vou deixar um
recado ao meu colega Magina. -E correu para o
interior.
Saíram. Por sugestão de Miranda principiaram a
descer, de modo a contornarem os hotéis, na
esperança de que algo mais, entrementes, houvesse
lançado luz sobre o paradeiro do cientista. Quando
subiam avistaram um grupo silencioso marchando
para os apartamentos. Tiveram a premonição do
que ia acontecer. Para não darem nas vistas
subiram um pouco mais e depois desceram. Não
tardou que adivinhassem o essencial:
Os -assaltantes- entraram e ficaram! ... Castro
Raposo estava, pois, ali! -Mas, como? ... Que lhe
teria acontecido?
Como os minutos se sucedessem aos minutos, e
ninguém, lá de dentro, arredasse pé, foram-se
aproximando. Outros curiosos, entretanto,
rondavam também as proximidades. 0 fato anímou-
os. Um pedaço mais tarde Clotilde deu um chuto na
vergonha e foi espreitar. Aproximou-se da janela, pé
ante pé, e colou o rosto à vidraça. Não viu Castro
Raposo. Mas, pela atmosfera, pelo todo, pelo ar dos
-assaltantes-, deduziu o principal: o geólogo estava
ali, possivelmente no leito - e não devia encontrar-se
muito mal, pois todos, lá dentro, riam a bom rir.
Quando ia a retirar-se alguns curiosos menos afoitos
abordaram-na com interrogações. Deu-lhes parte do
que observara. Entrementes, Miranda havia
acorrido também e não precisou que ela repetisse o
que já contara. Clotilde, no entanto, não teve mão
em si: Olhe, estavam todos a rir. Como se o tivessem
apanhado numa ratonice qualquer ... Talvez a cozer
uma piela..., ou coisa assim! - e riu com prazer.
Como o riso de Miranda lhe soasse a rachado,
temperou a garridice: - Ou talvez não..., pois era ele,
ou alguém junto dele, quem falava! Deve ter
adormecido ... Ou não esteve para se ralar com a
festa ... Eu sei lá! Olhe!, morto não estava. Nem por
certo doente.
-Ainda bem -suspirou Miranda por fim. Subiram
depois em silêncio. De repente o mestre-de-obras
lembrou-se dos antecedentes que a levaram ao
hospital e a seguir ali. Fez alto e perguntou com
ansiedade:
-Não quer voltar à enfermaria? Pode ser que o
Rodrigues ainda não tenha chegado ...
-Não. Prefiro ir a pé. Também,preciso de espairecer.
Vamos indo. A noite está abafada ... Ufei Desconfio
que a chuva não tarda aí.
-A chuva?! ... Com este calor? -Exatamente por isso.
Retomaram a marcha em silêncio. As vozes da noite
enchiam a atmosfera e no céu não luzia uma estrela.
Ao longe, no entanto, a sul, a norte, A leste...
-relâmpagos intermitentes descreviam A horizonte,
pincelando nuvens carregadas. Ao virarem para o
bairro 'onde ela morava, Clotilde pôs termo à
meditação:
- Estou-lhe muito grata pelo que fez pela AIbina,
Miranda. Há muito que a não via tão alegre; tão
feliz; tão satisfeita! Você foi muito gentil. Muito
compreensivo! ... Ela merecía-o. É uma rapariga
excelente: uma rara amiga verdadeira! Nunca vi
criatura assim: mulher tão desprendida e leal!
Miranda ia também a pensar na loira. Aquela
comunhão de pensamentos perturbou-o. Parecendo-
lhe que devia dizer qualquer coisa também,
retribuiu desta maneira:

-Acredito que seja como diz. Mas, quanto a mim,


você engana-se Clotilde. A Albina é que foi amável
comigo. Quase lhe contei a minha vida, mês a mês,
desde que nasci... - E após uma suspensão, reforçou:
-Não me lembro de serão como este..., nem de
pessoas assim! ... Sobretudo como você e a Albina!
- Deixe-se disso! -escarneceu Clotilde, para não trair
a emoção.
-Não estou a fingir, Clotilde. Nem sequer a
exagerar. Gostei imenso de as conhecer. E também,
devo confessá-lo, do Rodrigues ... Sabe?, este, nas
primeiras impressões, enganou-me. Por baixo
daquela frivolidade superficial há um mundo
insuspeito de compreensão. É um rapaz generoso.
Talvez um pouco infantil ... Mas bom, segundo
creio.
A resposta dela confundiu-o: -Gostou realmente
assim .... da Albina? A pergunta foi de tal modo
inesperada que ele não teve tempo de pensar:
exteriorizou o que sentia:
- Imenso! -Ainda bem. - E segundos a seguir, esta
revelação inesperada: - Ou eu me engano muito, ou
ela apaixonou-se por si ...
E não disse mais. Miranda ficou mudo. Sentiu-se
atordoado e nem protestou - como lhe pareceu
desejar. Sabia que tinha agradado à companheira,
mas, nem de longe nem de perto, lhe passara pela
mente semelhante possibilidade. Não encontrou que
dizer. E medindo o alcance da afirmação de
Clotilde, que (não sabia porquê) de repente lhe
pareceu verdadeira, mergulhou na realidade, e viu
que algo daquele fogo também o tocara. -Que fazer?
... -, ouviu? dentro de si, perguntar a si mesmo. Mas
o mais perturbante não era ainda isto: o
conhecimento da doença de AIbina chocara-o; quase
o demolira; fora, sem a menor dúvida, o que o
levara a dançar com ela. Mas, a seguir, esquecera-se
do fato. Esvaira-se-lhe por completo do
pensamento. Perdera de todo o conteúdo emocional
que o subjugara. E agora, olhando bem para si,
auscultando-se .... era como se -aquilo- não existisse
- apesar de existir. Apesar de ser uma realidade.
Uma sentença irrevogável sobre o destino de tão
suave, tão doce, tão enternecedora mulher! ... Sim...,
uma sentença cruel! -que ela parecia ter aceitado
com resignação. Mas se tudo isto o confundia, mais
confuso se tornara, ao notar, ao sentir que em vez de
escurecer a sedução que dela rescendia, a iluminava
- engrandecendo-a. Sublimando-a! ... Exaltando em
si, com veemência, o desejo, a loucura de lho
agradar! -Quebrou assim o silêncio:
-Que faz ela? -Trabalha no laboratório. Na secção de
análises ... P, agente-técnica de química.

Uns passos adiante, parou. E encarando a amiga,


perguntou-lhe a meia voz:
-Porque me disse você ... isso, Clotilde?
- Se quer que lhe diga ... não sei. Fugiu-me.
Ocorreu-me ... -E ficou-se pela suspensão,
retomando a marcha com os olhos perdidos em
frente.
Silêncio outra vez. Os relâmpagos fusilavam agora a
meia altura, desafiando-se por todos os quadrantes.
Era um espetáculo feérico; um festival só de luz; um
sobreluzir alucinante! -Algo que Miranda nunca
vira..., nem parecia impressioná-lo! Descerrou os
lábios e franziu este comentário:
- Não creio que tenha respondido à minha
pergunta. Muitas outras coisas lhe devem ter
ocorrido ... além daquela, Porque só essa lhe fugiu?
-Porque sou amiga da Albina. A resposta foi quase
violenta. Ele emudeceu. Não obstante, algo depois,
Clotilde, mais intensa ainda, rouquejou:
-Por favor! ---, não me faça mais perguntas! Pare.
Não vá mais longe! ... Não estou segura de ter feito
bem .... ou mal, em lhe ter dito o que disse! ... Como
você me pareceu..., como direi? ... um homem sério!
..., quis acabar com dúvidas.
-Confesso: não percebo onde quer chegar.
- Sabe o que ela tem, não sabe? - (Miranda baixou a
cabeça). - Assim ... poderá orientar o seu
comportamento. Nunca a vi como esta noite. E fui
eu, eu!, lembre-se disto!, quem o empurrou para os
braços dela.
- Está a aconselhar-me a fugir?
- Por favor, Miranda! Pedi-lhe que não me fizesse
mais perguntas. Não será você capaz de me
compreender?
-Não tenho a certeza, Clotilde. Prometo no entanto
meditar no que me disse e não lhe fazer mais
perguntas.
- Obrigada. -Obrigado eu, também, Clotilde. Você é
uma criatura extraordinária. Admito que a Albina
seja a pessoa e a amiga que descreveu. Não duvido.
Você, no entanto, Clotilde, no mínimo, é, como ela ...
Uma mulher como eu julgava que não existisse.
Não pronunciaram mais palavra. Os incêndios da
abóbada afastavam-se pouco a pouco, desertando
por todo o horizonte. As cigarras, os ralos, os grilos,
os sapos - eternos cantores da noite principiavam a
adormecer - e turbilhões apressados, de quando em
quando, revolvendo os capins, zumbindo nos
caminhos, corriam em rodopio, erguendo colunas
de pó e detritos pelo campa fora.
Velada na penumbra da janela, Albina esperava-os.
Viu-os antes de ser vista, 0 seu primeiro impulso foi
correr para eles. Aguardava notícias do geóloga.
Não por ele em si, apesar de lamentar sinceramente
o que se dizia ter-lhe ocorrido -e Miranda não
acreditara. Mas porque a sorte dele importava
àquele homem sereno, que tanto lhe tocara o
coração.
À medida porém que Miranda e Clotilde se iam
aproximando, sós, mudos, lado a lado - sem o
Rodrigues - AIbina foi imergindo noutros oceanos, e
um frio espectral franziu-lhe o coração. Não foi
capaz de se mexer. Seguiu-os, contudo, mais
avidamente ainda. Aquele mutismo, aquela
quebreira, aquele sem-alma que os trazia ... -não era
deles! ... Não.
0 pensar e o sentir voaram-lhe de repente, outra vez,
para escolhos mais sanguíneos: para aquilo que os
levara ao hospital.
- Morreu! ... Era ele... - ouviu-se articular em pleno
silêncio.
Tomada por outros ventos, alma nova!, largou a
janela e correu ao encontro dos dois.
Mal a viram, Clotilde e Miranda compreenderam-
na. Os pensamentos fundiram-se e os olhares
cruzaram: - Julga que o Dr. Castro Raposo morreu-,
disseram um ao outro sem gestos nem palavras.
Albina alcançou-os:
- Então? ... Era ele? -Não... -antecipou Clotilde, meio
séria, como desfrutando aquela ansiedade pelo
desconhecido.
-E não o encontraram ...
- Encontraram... - sossegou Miranda a sorrir.
- Onde? -A voz de Albina perdera a ansiedade. Dir-
se-ia envergonhada já de se ter despido e mostrado
como era.
-Na cama... -mofou a enfermeira sem rebuço. -
Parece que estava a dormir! - oh! ...
Fechou-se. Desatou depois as mãos e deixou
escorrer os braços. A casa era mesmo ali. Escudada
pela amiga - do lado oposto ao lado dele - repetiu
em silêncio os passos do regresso e sofreu o remoer
da narração. Mal a ouviu. Já não lhe interessava. 0
pensamento carpia, sofrendo com os fantasmas
anteriores. Porquê A mutismo deles? ...
A despedida foi incolor. Miranda agradeceu
A auxílio da enfermeira e desejou-lhes -boas-noites
de mel-. Corresponderam-lhe sorrisos desiguais.
Deixou-se ficar onde estava e foi olhando ora uma
ora outra, sem sombra já da timidez que sempre o
tolhera. E abrindo por fim de todo e em todo o seu
melhor sorriso, disse-lhes com doçura:
- Sínto-me verdadeiramente feliz por as ter
encontrado. AIbina!, lembra-se da minha última
pergunta, a seguir ao discurso do engenheiro
Corvo?
Ela cravou os olhos nos olhos dele, muito séria, e
respondeu com frieza:
- Não. -Pois eu lembro ... Lembro-me da pergunta e
da sua resposta. A conversa parou aí. Isto é,
interrompeu-se... Vou concluí-Ia, AIbina: Eu
também acredito ... Não acreditava. Mas agora
acredito!
Desejou-lhes novamente boas-noites, fez uma vênia
ligeira -e partiu, Ia com a alma cheia. E, tal como
sucedera em relação ao geólogo, não acreditando
também que Albina estivesse perdida: sentenciada
já para morrer.
Não era porém aquela sensação que o assaltara no
Jango, vaga, profundamente obscura. Era a quase-
certeza plena, consoladora -de igual modo
pungente- que o avassalara no hospital.
Ao aproximar-se da camarata sentiu cair os
primeiros pingos. Eram gotas esparsas, enormes,
que duraram alguns segundos apenas. Não fez caso.
Foi meditando na dimensão espantosa daquele dia.
Nas pessoas que conhecera, no que vira, no que
passara, sobretudo no que vivera ... -e não pôde
libertar-se da sensação de que já era dali. De que
chegara há muitos, muitos meses atrás - e que
aquela camarata, mesmo em frente, era o refúgio
onde, desde então, sempre dormira e sonhara.
Abriu a porta com o à-vontade próprio dos hábitos
caseiros muito arraigados.
Freixo estava a despir-se; e Ilídio Soares, estendido
na cama, lia atentamente. Olharam-no como se olha
um velho amigo.
- Boa-noite - repartiu à temperatura do melo.
- Boa-noite - ecoaram os móveis, o chão, o teto, o ar
... e as pessoas também.
-0 Correia? Freixo trocou olhares com Ilídio e sorriu:
À hora do ducha está aí! Ah, ah, ah... Miranda olhou
para o outro. Ilídio Soares deu um passo mais:
-Deve andar pelo lado de lá. Na outra margem do
rio ... De contrário já estava a dormir. De vez em
quando faz assim. É um tipo muito romântico! ... Ou
se deita antes das dez e dorme como um justo, sem
se importar com a luz, com as conversas, com um
tremor de terra até! ..., ou faz assim ..., e só aparece
lá para as tantas. Bom tipo. Quase nem se dá por ele.
Quando você amanhã for tomar banha, vai ver que
ele já anda a pé, fresco e enxuto!
Miranda sorriu. Como não tinha sono desfez-se do
calçado e sentou-se na beira da cama. Ilídio retomou
a leitura. Seco e franzino, o seu todo era inteligente e
decidido. 0 tom da pele e o ondulado dos cabelos,
quase passavam por os de um mediterrâneo escuro;
o nariz, porém, e sobretudo a curvatura do lábio
superior, mostravam que pelo menos um dos avós
era negro. Miranda reparou depois no livro do
companheiro: era um compêndio de aritmética
elementar. Cheio de curiosidade aproximou-se para
ver melhor. Como o outro notasse o movimento
perguntou:
-A estudar?! ...
- Que remédio.
- Que remédio!? ... Pode saber-se porquê? -Parece
que vão abrir uma escola técnica...
- Aqui?! ... na Jamba? - A admiração de Miranda não
tinha limites. Se na Europa havia terras
multiceiatenárias que não possuíam tal luxo, como é
que uma vila de três anos, por assim dizer, ia
alcançá-lo?
-É coisa assente! Quando cá veio o
secretárío.provincial, falaram-lhe, e ele prometeu! ...
Ficou tão admirado de já haver quatrocentos
miúdos nas escolas, que disse logo que sim!
-Quatrocentos miúdos nas escolas?! repetiu
Miranda assombrado.
-Sim. E diz a D. Fernanda Naique, a professora
principal, a mulher daquele engenheiro escuro,
baixinho, com que o Professor esteve uma data de
tempo a discutir. Lembra-se?...
-Tenho uma idéia... -desculpou-se Miranda.
-É um engenheiro formidável, segundo dizem.
Parece que é quem sabe mais daquilo do minério!
- Acredito, Mas o que é que diz a D. Fernanda
Naique?
- AM, já me esquecia. Diz que pró ano vai ser
preciso arranjar mais salas. As que há não vão
chegar!
- E o secretário-provincial é homem para fazer o que
promete? Sabe ... isto de promessas de políticos ...
-Não. É coisa assente, como lhe disse. Não vê que o
governo não gasta nada com estas escolas? E com a
técnica..., também lhe vai ficar barato. Olhe! A
Companhia dá as salas! ... E os professores parece
que se arranjam todos aqui. Os engenheiros, os
médicos, os agentes-técnicos, os da secretaria, as
mulheres deles, e por aí fora ..., dizem que chegam;
e até que sobram!
- Percebo ...
- Só por isso é que eu não saí com o Pinto. -0 Pinto?!
...
- o camarada que dormia na sua cama, aí! ...
- Ah!, sim, já ouvi falar.
- Não foi só por isso, Ilídio! - corrigiu Freixo. - Não
foste com ele porque estás convencido que hás-de
chegar a monitor. Bem .... se abrirem a escola
técnica, chegas lá ..., não haja dúvidas. Com a saída
do Pinto deves ser o melhor operador da
Companhia. 0 pior é o resto ...
Com grande espanto de Miranda, Freixo não
gargalhou.
-Sabe?, o que mais me custa é a matemática. Foi
por causa dela que eu saí da escola industrial de
Nova Lisboa. 0 professor queria que a gente
soubesse tanto como ele! E depois humilhava-nos ...
Não pude aguentar aquilo ... Fiz só o segundo ano.
Isto é, não fiz ... ele chumbava-me sempre ... Sacana!
... Mas aqui não vai ser assim. Os professores já são
nossos amigos! ...
Ilídio pousou o compêndio na mesinha de cabeceira
e deixou-se cair para trás, varando os olhos no teto.
0 silêncio envolveu-os num halo de compreensão. A
sisudez de Freixo, contudo, era o que mais
impressionava Miranda. A certa altura Ilídio
soergueu-se, pousou os olhos ávidamente no recém-
chegado, e perguntou-lhe como a medo:
-Você sabe bem de matemática? Apesar da surpresa,
Miranda teve a intuição do que se passava naquele
cérebro inquieto:
-Dessa sei! E até um pouco mais. No meu curso
aprende-se um bocado ... Temos de saber calcular
vigas, lages, colunas, paredes, muros de suporte ...
Tanto de betão simples, como armado .... e de
alvenaria ... Elementos de construção ... e até
estruturas simples: de ferro, madeira, alumíneo ... E
eu tive. mais sorte do que você: calharam-me
sempre bons professores. Bem .... eu também dava
um jeito na coisa ... Umas gorjetas na secretaria..., e
ficava nas turmas dos mestres melhores! ... -E sorriu
com intenção. -Além disso, não é para me gabar,
mas sempre tive queda para números, contas e
problemas Deixou fluir longos segundos
impregnados - sumo de recordações - e refez o
tempo assim:
- Se não tenho apanhado duas ricas obras a fio, logo
a seguir ao curso de construtor civil, tinha ido para
o Instituto ... Era o mais classificado 'e andava cheio
de fé ... Com um entusiasmo como nunca mais
senti! ... Hoje era engenheiro ... Ou, pelo menos,
agente-técnico! ... Mas o dinheiro ... Deixava de
ganhar mais de mil contos! ... Convenci-me de que o
curso não os valia ...
-Mais de mil contos?! ... -assobiaram Freixo e Ilídio.
-Sim. E ganhei-os, de fato. Ganhei depois bastante
mais. Mas descansem: não tenho por assim dizer
um tostão.
Seguiu-se o rosário das confidências. Freixo não
gargalhou uma só vez. Apesar de diplomado com
um 4 equivalente ao de Miranda (e de ser um
eletricista de rara competência) os seus dotes
intelectuais, sobretudo a sua cultura, eram
muitíssimo inferiores.
A conversa não se limitou a cristalizar aquela
camaradagem nascente. Dignificou-a. Miranda
revelou-se um inesperado sucessor de Júlio Pinto, o
companheiro que partira - oráculo do grupo cresceu
na consideração e na própria estima do eletricista e
do operador.
Ilídio aproveitou uma pausa do recém-chegado para
fundir o seu problema:
- Se você quisesse ... eu findava o curso industrial.
-Sério?! -animou o construtor. -Sabe?, às vezes vejo-
me à rasca. Mesmo, mesmo à rasquinha de todo! E
esse tipo... - o indicador de Soares acusou Freixo-
esse tipo, não me liga! Ou então diz que já não se
lembra daquilo que eu estou a estudar. Só por
milagre, de longe em longe, se chega ao pé de mim
(quase sempre quando menos eu conto) e me dá
uma ensaboadela. - ô pá!, sabes muito bem que eu
não tenho tempo. -E voltando-se para Miranda:
-Para lhe explicar o que ele me pergunta, é bom de
ver!, tenho de dar uma vista de olhos à matéria.
São coisas que já me passaram. Coisas pra mim sem
interesse nenhum. E sabe, Miranda, comigo dá-se
isto: aquilo que não me interessa passa-me! Num sei
como é. Só sei aquilo que tenho de saber ... E nunca
me esquece! Além disso levo uma vida dos diabos:
sempre a correr dum lado pró outro ... Como sou
dos que tem mais prática disto ... Quando largo o
serviço apetece-me lá estudar ... Tomara eu saber
tudo quanto vem no manual do ofício.
0 protesto de Freixo revestiu-se de um ar de
seriedade quase pungente. 0 risadas-tolas que
Miranda conhecia, não estava ali. Estranha criatura,
o eletricista! Mas Ilídio não se conformou:
- Não é tanto assim. Se não fosses quase todas as
noites para o futebol, tinhas tempo de sobra.
Futebol?! - interrompeu Miranda. Sim! - confirmou
o primeiro. - Temos aqui uns pares de equipas de
futebol-de-salão, de muita categoria! Jogamos três
vezes por semana. Ainda não viu o nosso recinto?!
... Coisa fina! Boa em qualquer parte! Bem ... eu
gosto daquilo. É a distração que tenho ... É raro ir
ao cinema. Passa-se meses, veja lá! ... E fazem umas
quatro sessões por semana, se não erro.
-Três! -corrigiu Soares. -E as matinés?
-Também há dias que falha. 0 avião não traz o filme
..., e fica-se a ver navios. Que a mim, pouca
diferença faz. É raro lá ir mais que uma vez por
semana. Prefiro estudar. E se me ajudassem ...
- 0 pá, mas que culpa tenho eu disso? Gosto do
futebol... 0 Miranda, você acha que este tipo é justo?
Caramba! Hei-de pôr de lado aquilo de que mais
gosto, só porque lhe deu na telha estudar? ...
Miranda não respondeu. Fez um trejeito e franziu
um sorriso enigmático. 0 silêncio voltou a rodeá-los
- desta vez isolando cada um em seu crisol. 0
mestre-de-obras deixou-os aquecer, e fez a sangria
assim:
- Ilídio!, eu tenho um certo jeito para ensinar. Dois
ou três colegas do meu curso, segundo eles mesmos
confessam, chegaram ao fim porque eu os ajudei.
Não fiz qualquer sacrifício. Pelo contrário. Como
tinha de estudar e aprendia mais facilmente do que
eles (tenho boa memória) as minhas revisões eram
sempre a explicar. A ensíná-los! 0 que lucrava mais
era eu: amassava melhor as coisas, e aquilo ficava-
me cá dentro sem uma falha! Se não fosse assim, isto
é, se não fossem eles, eu nunca teria sido o bom
aluno que fui. Havia pormenores, e até coisas
importantes, que só durante as explicações me
feriam a atenção e se aclaravam. Ora, como já lhe
disse, tenho boa memória. Aquilo que estudar ...
raro me passa! Com o tempo, e falta de uso, pode
delir um pouco. Mas é questão de lhe dar uma
areadela. Fica novo outra vez! Penso por isso que
não terei grandes dificuldades com os seus
enrascanços, Ilídio. E corno nunca liguei muito ao
futebol ...
-Você está a falar a sério, Miranda? Ilídio tinha-se
posto de pé. Havia tal ansiedade na sua voz,
tamanho fulgor no seu olhar, semelhante júbilo nele
todo! -que Miranda comoveu-se. Impregnou a voz
de convicção, e jurou como num voto;
-Conte comigo, Ilídio! Tenho a certeza de que você
vai. acabar o curso. Com essa alma e a sua
determinação! ..., não pode haver dificuldades que a
gente não vença. Estou convencido de que vai ser
um bom aluno. Juro-lhe que estou! Isso da
matemática é muito mais simples do que lhe parece.
Eu, no princípio, também andei assim. Juro-lhe que
é verdade!
Ilídio ficou pálido: - imóvel - os olhos fixos no
amigo e um tremor febril convulsionando-lhe todas
as fibras. Abriu os braços e apertou Miranda contra
o peito, num amplexo vigoroso. Apesar de seco e
franzino, era rijo e forte-. Miranda correspondeu-lhe
com emoção quase igual, sem contudo romper a
compostura aparente. Quando se apartaram
esperava-os um espetáculo chocante:
Freixo, o risadas-tolas a galhofa personificada!,
chorava convulsivamente. As lágrimas
esbagoavam-se-lhe pela cara abaixo como sangrias
de palmeiras no ato da incisão. E ao ver o pasmo
dos amigos - de olhos varados em si- crucificou os
braços com desespero, num patético sublime!, e
desfez-se em pranto e amargura:
- Ô pá! ... eu até já tenho passado horas e horas no
serviço a estudar lições para te ensinar! ... Mas
quando chego aqui já não sou capaz de as dizer! ...
Passam-me! ... Vi-me à rasca para fazer o curso! ...
Se não fosse a minha mãe ajudar-me todos os dias...,
quase até à meia-noite .... nunca teria passado do
primeiro ano! ...
E rompeu num choro tão dorido, que os sucumbiu.
Era a dor personificada. Atirou-se para cima do
leito, quase a gritar!, e escondeu o rosto no
travesseiro. -Chocante! Pungente! Quase brutal! ...
Se o patético existe, é assim.
Ilídio e Miranda ficaram sem reações. Quando se
reencontraram, quiseram confortá-lo. Repeliu-os!
Chorou depois com desespero maior! E de repente,
corno tomado por fúria possessa, ergueu-se e fugiu
porta fora, deixando-os gomados ao chão.
Após o regresso do aerádromo, João Correia, Ilídio
Soares e o seu grupo domingueiro acamparam nas
redondezas do Jango -dente afiado e goela a arder-
feitos para a manduca batida a chinchins, com
charla de garotas, bailinhos e rebitadas. Depois de
comidos e bebidos, os não propensos a comer-por-
comer, ou libações em cadeia, principiaram a sentir
fastio do serão e foram desertando para gaudios,
freimas e lazeres de cada um -gastos da -novidade-.
Ilídio Soares meteu-se na camarata e depois de uma
hora com a Geografia, a fim de fazer coragem,
torturou-se na Matemática. Já vimos o que se
passou, e que ele meditava os números como quem
descobre rios, escala serras, namora capitais -
escorrido no leito.
João Correia não moia aqueles terrores nem viajava
em rotas fictícias. - Pelo menos daquele cariz! ...
-Aquilo do Ilídio querer findar o curso- era mania.
Sandice! Um monitor pouco mais tirava do que ele.
-0 ser coisa mais certa-, era um engano. Por muito
que se forrasse, nunca se passava da forra. Favas
contadas! Com o gado não era assim. Crescia,
dobrava, redobrava, tresdobrava..., e por aí além,
sempre de mais a mais. -Quanto mais se tivesse
mais se podia ter! Aquilo era tonteira. Sal sem tino!
... Inda se ficasse agente-técnico ou engenheiro! ....
vá lá! -Era como passar a oficial. Agora cabo!? ...
Ou até sargento!?... Tonteiras! Sal sem tino! ...
Como era véspera de domingo .... João Correia ia -à
vidinha-. -Um homem é um homem! Um reco é um
bicho! -.
Bebera-lhe bem e comera-lhe do melhor. Naquela
noite não ia ao tasco. De resto, não tinha parceiro. 0
Filinto não quisera ir. Ficara no Jango. Enquanto
dessem de beber, era escusado contar com ele: havia
de beber! Só arredava quando o vinho acabasse. Lá
para as tantas! ..., e mal bateram as nove. Que mania
a dele! ... Não tendo de pagar, pronto! Dava-lhe que
havia de beber enquanto bondasse! Pancada ...
Estapor de prosa! Só pra fazer ver que ninguém
aguentava como ele: -Que era capaz de se bater com
um aImude! ... Um homem bebe até atestar ...
Depois, pronto! Bonda. Um pipo é um pipo! ...
De mais ele não se podia dizer que se batia com o
aImude! ... Sempre que ia mijar, gomitava! Dizia
que era um arroto ... Um arroto o catano! ... Ia pra
dentro: mais um litro! Que favores! ... Canada
dentro, canada fora! ... Brutidade. Só pra dizer que
se batia com um aImude! Aquilo é lá beber ... Beber
é pôr gosto! Raio de mania aquela! ... Antes a do
Ilídio. Ao menos não dava perca. E daí ... talvez
desse. Aí dava, dava! Nã ... Um homem deve medir
o que faz! ... Que mija e bebe! ... Gomita e bebe!
Gomita! ... Gomita, sim senhor! Mija mas é uma
porra ...
Ao subir para o açude, o ronco de uma locomotiva,
seguido pelo barulhar de um comboio. -Vai pra
Moçâmedes-. Encostou-se à guarda da ponte para
ver a -giboia- passar. Era das coisas de que mais
gostava. Ouvira anos e anos falar de comboios.
Quando viu o primeiro já era homem. Andou um
punhado de léguas só por causa -daquilo-. Era uma
idéia que tinha. Queria ver com os olhos dele. Até
sonhava! ... Disseram-lhe que era medonho! ... De
meter medo! ... Rodas e mais rodas! -e uma enfiada
de vagões do tamanho de uma procissão de treze
andores! ... E uma grande máquina a vapor a deitar
fumo, a resfolgar!, ufa, ufa..., com um apito em cima
que se ouvia de terra para terra! ... E o barulho? ...
Uma restolhada maior que dez arraiais! ... Nem
tanto cá, nem tanto lá. Bonito era... -Mas ao pé
destes! ..., não passava dum brinquedo, Isto sim!
Coisa fidalga! ... Via-os todos os dias e nunca se
cansava de os ver! Deitavam mais longura que as
irmandades dum concelho! ... De três concelhos! Ou
mais! ... -Mais, sim senhor!
0 comboio atingiu a ponte e João Correia remoçou.
A contemplação do -monstro- afagava-lhe emoções
benzidas. Vozes, coros, luzes de tempos distantes -
dos anos fadados, longos como séculos!
Era uma formação de três locomotivas com mais de
sessenta vagões. Contava-os sempre. Nunca se
enganava! Era um consolo infantil; um deleite sem
pecado; uma vaidade sem orgulho! ...
0 comboio passou e ele deíxou-se ficar a admirá-lo,
a vê-lo subir do outro lado, torcer..., e mais à frente
lurar na trincheira da senzala.
-Bem, vida vidinha! A Alzira é capaz de estar à
porta. Ou então em casa ... Oxalá não tenha saído ...
Não! Ali só há pretos. Pretos e pretas. E brancos ...
Ela não é de senzalas! Nem de se dar com pretos! ...
Só com tipos como o Pedro, e o Vílar ..., e o pai dela!
Gente evoluída!-
-Eh! ... João! Pra onde vais? -atirou um camarada
que vinha atrás, em passo batido, ao ultrapassá-lo.
Era o Ruy, aquele que ficara também de esperar
pela carrinha do Rodrigues, à porta de AIbina e
Clotilde.
-Por aí... -velou Correia, amolecendo mais o passo,
tentando furtar-se à conversa.
-Disseste ao Rodrigues que o Freitas me pôs na vez
do Andrade? -quis saber o outro, parando adiante.
-0 Freixo disse-lhe. -A senzala?... -insistiu Ruy, como
em busca de parceiro, num desafio camarada.
-Não. Uma volta ... -Anda daí! -Não me apetece.
Não estou bem disposto. -Bem te entendo ... Boa
sorte... -atirou Ruy, pensando na vidinha, seduzido
pelo reboar do batuque.
-Igualmente... -desejou Correia, parado já, as mãos
nos bolsos, pronto para a resistência.
0 outro seguiu e João mergulhou de novo em si:
Ir à senzala, ir à senzala ... Pra quê? ... Pra se
arranjar uma não é preciso ir à dança ... Que
dancem elas! Farta-se um tipo de estar para ali ....
com sinais..., e só quando muito bem lhes dá é que
vão nisso! ... Se não há um bocado de sorte, vem-se
de lá a zero... Máu!, João, João! ..., quando menos se
conta..., põe-se uma ali na frente a rebolar, a
rebolar..., e então dá gosto! Lá isso dá! ... Mas quê?
... quando se vai pró capim estão todas suadas! --- É
como se saíssem duma ducha... Como se saíssem,
não! Quando se sai duma ducha não se cheira
assim! ... OM ... Mais vinte menos cem... muito
melhor marcar encontro. Se não pega ... vai-se Ó
tasco. É só combinar. Tão boas são umas como as
outras ... Tanto há estragadas num lado como
noutro. Nisso é que um tipo tem de pôr atenção! Se
um homem se descuida! ..., está tramado! Mijar bem
..., três ensaboadelas com asepso ... , e é garantido!
Lá isso é. Bem dizia o doutor ... Num há mal que
se pegue! E mal um tipo chegue a casa..., asepso
pelo corpo..., roupinha de molho..., senão! ... chatos,
piolhos e o raio. Grandes putas! ... E já estão a
querer a cincoenta páus! ... Putas de merda Inda há
pouco ... vinte já lhes chegava! Quero lá saber que
tenham de dar percentagem! ... Mas também não
sendo assim ... às vezes fica-se a águas ... E depois
um homem nem dorme! Paciência ... o pior de tudo
é já andarem estragadas ... João! ..., limpeza,
límpezinha! -E apalpou o bolso das calças a fim de
se assegurar de que não esquecera o sabonete
mercurial.
A casa de Alzira era uma construção de pau-a-
pique, com divisórias, traça e apuros do estilo.
Respirava um ar civilizado. Havia luzes lá dentro e
um petromax no terreiro da frente. Uma pequena
multidão. faIazava em torno de uma fogueira. Tudo
pretos e pretas. Em lugar de destaque, sentado
numa cadeira baixa, um homem grisalho - de porte,
ser e atitudes patrícias. Era o Tomé. 0 pai da Alziral
Surpreendido pelo inusitado da assembléia, João
parou de largo e quedou-se a escrutiná-la. -Que raio
será aquilo?! ... Ela não se ajunta com pretos! ... -
Foi-se aproximando. Nem ela nem a irmã estavam
ali. Fez um desvio e deu uma volta por largo - de
modo a não ser visto - animado pelas luzes do
interior. Aproximou-se depois pelas traseiras, passo
a passo, flauteando com os beiços uma balada
montanheira, em surdina... -como quem vai por ir,
ou divaga sem rumo.
A porta aberta de par em par deu-lhe um ânimo
novo. Sentada num banco rasteiro Alzira parecia
alheia do mundo. Sonhava ...
- Boas-noites. Alzira estremeceu. Depois sorriu:
- Boa-noite ... É você?... Vem por causa da roupa
Ele fez um gesto vago. Alzira insistiu: -Faltou
alguma peça?
- Não ... Estava tudo em ordem. Os meus camaradas
é que ficaram admirados! ... Ia tudo na perfeição.
Mas não pense que daqui em diante lhe posso dar a
roupa de um dia para o outro!
-Bem sei ... Isto foi só para lhes mostrar. Alzira
continuava a olhá-lo, mais fechada que aberta, e
João embaraçou-se. Ficou sem atinar no que dizer.
Isto é, como prosseguir. Ela deu-lhe uma ajuda:
-A minha irmã disse-me que você queria umas
calças -Pois quero. Umas calças como as do Filinto!,
-E já tem pano? -Não, não tenho. Queria que você
me dissesse quanto devo comprar.
-Um metro e vinte e cinco, chega. 0 resto ponho eu.
Está incluído no feitio.
A conversa tornou a cair. Perante o enleio dele
Alzira tomou a ajudá-lo:
-Já falou com o meu pai? -Porquê? -perguntou ele,
de repelão, com as idéias a baralharem-se.
-Por causa dos bois. Já não os quere? -Quero! Então
não havia de querer!?... Estava a pensar noutra coisa
...
-Também já lhe arranjou pastor. Foi o mais difícil.
Diz ele que se for daqui acaba por lhe dar cabo dos
animais, ou até dar caminho aos melhores. Vem de
Cuima. Dos nossos sítios.
-É algum dos que estão lá fora? do outro lado?
- Não. Aquilo é tudo gente de cá. Gente que veio de
Cuima!
-Não são da senzala? -Não. Vieram todos do Norte.
Trabalham nas obras e na Companhia. São do
acampamento de lá de baixo. Não gostam desta
gente daqui.
-E que estão a fazer ali todos juntos? Alzira sorriu.
Ele sentou-se na soleira, uma perna dentro e outra
fora, e esperou que ela contasse o resto.
- Estão a resolver uma endaka. Não querem nada
com o soba de cá. Só se entendem com o meu pai ...
É boa gente. Já ali estão há mais de três horas... -e
sorriu de novo. -Lá para daqui a mais duas ... deve
estar tudo arrumado.
-Então é endaka séria!?...
- Não. Estão fartos de saber, mais ou menos, qual é a
sentença do meu pai. Mas é assim. Cada um tem de
falar de tudo quanto sabe. Vão passando o tempo ...
Pra eles é melhor do que ir ao cinema. Vão comendo
e bebendo..., e quando forem embora levam
conversa para um mês..., e vão satisfeitos.
João Correia compreendeu aquela palestra
familiarizada. Nos seus tempos de pastor, quando
os rebanhos se fundiam na Serra, novos e velhos
também se juntavam assim, horas e horas, em volta
de uma fogueira, falando só pelo prazer de falar.
Eram tardes, serões, manhãs até, de cavaco
delicioso. 0 melhor daquela vida montanheíra!
Contavam-se histórias de lobos, de santos, de
fantasmas, de princesas..., e tragédias, gozos,
façanhas... -numa comunhão que os irmanava,
fortalecendo os elos que os prendiam.
0 círculo da fogueira era o lar; um templo;
sobretudo uma escola. Nunca, porém, um tribunal
assim -com um juiz por todos aceito, e a certeza
antecipada de que as sentenças que ele proferisse
morassem já no coração de cada um. Quis saber
como era a endaka:
-0 homem da Filipa foi para a África do Sul. Para as
minas. Eram dois anos, mas valia a pena. Juntava
para comprar uns dez a vinte bois, para ter
motoreta, bom rádio, e coisas assim. Já tinham
alguns bois, mas queriam mais. A Filipa achou bem.
E o Tentão partiu. Em vez dos dois anos
combinados, esteve mais de três. A Filipa, era bom
de ver, enquanto o homem andou por lá, pelas
minas, esteve sempre com um primo, o Segunda.
Fazia-lhe jeito: tomava conta do gado ..., era bom
para ela .... fez-lhe um filho..., e- por aí fora. A Filipa
até já nem contava com homem! ... Nunca mais se
soube dele. Mas o Tentão veio agora ... Não velo no
tempo, mas veio. Também não trouxe o que
esperava, mas isso é o menos. É preciso resolver a
endaka.
-E resolve-se? -quis saber João Correia, não sem
uma certa angústia, com transparente ansiedade.
-Então não se havia de resolver?! ...
- A bem...
- Parece-lhe que havia de ser a mal? A mal não se
resolve nada ...
João Correia não achou resposta. Mergulhou no mar
das suas confusões, de vaga em vaga, cercado pelo
nevoeiro. A tranquilidade de Alzira confundia-o.
Depois de estrénuos esforços tentou rumo a outras
radas:
-Você disse que sabia como vai ser resolvida a
endaka, não disse?
-Disse. -E calou-se muito séria a olhar para ele.
Como João Correia não despregasse os olhos dos
olhos dela, crispado de emoção, ávido pela
sequência, todo ele ansiedade, Alzira retomou o
discurso por esta bolina hesitante: - não preciso ver
que eles entendem que assim é que está certo. Que é
justo! Que deve ser assim! ... Percebe? ...
- Bem ... Você ainda não disse Alzira meditou
durante largos segundos e por fim decidiu-se:
-Depois de muita conversa, de cá e de lá, da família,
do gado, das colheitas, deste e daquele, o meu pai
perguntou à Filipa: -Filipa, qual é o teu homem?-. -0
meu homem é este-, respondeu ela apontando para
o Tentão. -0 Tentão é que é o teu homem, Filipa?-,
continuou o meu pai. -Ê!-. Com o Tentão passou-se
o mesmo: que a Filipa era a mulher dele e ele o
homem dela. Meu pai voltou-se depois para o tio da
Filipa e falou-se do casamento dela com o Tentão.
Muita conversa, muitos pormenores, e o meu pai
voltou à rapariga: -0 Tentão é o teu homem mas tu
tens vivido com o Segunda, não tens?-. -Tenho. Eu
tinha de ter um homem. Tenho multa canseira, e pra
fazer tudo como deve ser feito, precisava dum
homem. Sem um homem não podia fazer o arimo, a
fubá, o sambo ... -, e foi contando o que seria dela a
lidar com o gado, os filhos, a agricultura, o celeiro, o
arranjo e a conservação da palhota, do curral do
gado, do próprio gado, e por aí fora. A alturas
tantas o meu pai fez esta pergunta: -Tu sabias que o
teu homem, o teu homem mesmo, o Tentão, estava
pra vir?-. -Sabia. Agora pensava que já não viesse.
Pensava até que o Segunda já era o meu homem
mesmo-, e assim por diante, até o meu pai chegar à
pergunta maior: -Mas agora, Filipa, qual é afinal o
teu homem?-. -0 meu homem é este, o Tentão,
porque foi com ele que casei-, mais isto mais aquilo,
conversa com ela, com o Tentão, com o Segunda,
com os tios, e os vizinhos, o que fizeram, o que
deixaram de fazer, e os mais a ouvir, a ajudar, horas
e horas ... -e carne, lume, vinho, tabaco, fubá, boa
disposição ..., e lá para daqui a duas ou três horas
mais, está tudo como deve.
Alzira voltou a emudecer. Não propriamente para
descansar ou recompor as idéias, visto haver falado
com serenidade, sem laivo de emoção, nem
interesse aparente, sequer. Por outras razões muito
dela, pois guardou a postura repousada em que ele
a encontrara, e pousou os olhos suavemente nos
olhos ansiosos do visitante. João Correia não se
conteve:
-E depois? ... Como vai ser?
- A Filipa volta para o Tentão e o Segunda terá de
pagar um boi por cada ano que viveu com ela.
João Correia uniu o seu silêncio ao silêncio de
Alzira. Deixaram no entanto de olhar um para o
outro. Cada um perdeu os olhos no vácuo,
mergulhando dentro de si -em busca de um túnel,
uma ponte, um canal que conduzisse aos mundos
do outro. Mas apesar de tudo neles ser luta e
esforço, nela dominava a passividade: um confiar
nas correntes da natureza; um seguir ao sabor das
brisas, entregue à maré. E assim durante longos
minutos revoltos para Correia, até chocar com outro
acidente da rota:
-E o filho do Segunda?
É filho da Filipa. E dele também! Acredito ... Mas é
dela. Disso ninguém pode duvidar. Ninguém tem
dúvidas. 0 mais ... depende daquilo que se pensa. E
há tantos modos de pensar! ... 0 filho é filho da
Filipa. E se é dela ... e o homem dela é o Tentão, é do
Tentão também. Tinha dois ... e agora tem três. Está
mais rico. Não trouxe dinheiro, mas tem mais filhos,
mais bois, mais cabras ...
-Mas... -interrompeu Correia o Segunda... -e não
completou a frase. Caiu no mutismo anterior e
vazou de novo o olhar na escuridão, lá de fora.
Alzira, agora a olhá-lo suavemente, a mesma calma
confiante: aquela entrega serena aos quereres da
natureza invencível. Não era uma atitude cega. De
modo algum. Era um sentir iluminado. Lúcido
portanto. Como se visse através dele e o inspirasse.
Descerrou os lábios e foi ao encontro dos mares que
o agitavam:
-0 Tentão terá de indenizar o Segunda por causa do
filho ...
João Correia cravou de novo os olhos nos olhos
dela. Alzira satisfez-lhe a curiosidade:
- Deve ter de lhe dar um porco..., e talvez três
cabras.
-E você acha bem? ...
- Eles acham bem. E vão ficar amigos. Quer ir lá
para fora ouvir a conversa?
-Não. Demais ... eu não os entendia! -Eu vou-lhe
dizendo o que eles disserem.
- Não. Não me interessa. 0 que me interessa ... é
saber se você acha bem!
- Eu acho que um homem nunca deve abandonar a
sua mulher ...
- Mas ... a Filipa concordou! -Pois concordou. Já lhe
disse que vão ficar todos amigos.
-Não era isso que eu queria dizer... – e de braços no
ar, ficou às voltas com os sentimentos e as meias-
idéias, em busca de expressão para umas e outros.
-0 que eu ... 0 que eu ...
Alzira atingiu as águas dele: -Se a mulher concorda
que o homem se ausente, eu entendo que deve
esperar por ele. É por isso que não estou lá fora.
João Correia deixou cair os braços. Foi como se ela
dissera o que ele desejava dizer.
De um e outro lado da albufeira, a batida ritmada, o
fogo, o sangue, a afrodisia dos batuques, excitando
corpos e almas, convidava à união, à dança, à
euforia, ao amor!
Ruy apertou mais o passo, e de cubata em cubata foi
aquecendo por dentro e à flor, refazendo-se da
própria fadiga do turno, catalizado por aquelas
vozes, aquele ressoar, aquele sobreviver.
Uma grande fogueira e gente em volta, ao perto, ao
largo... -batendo, moendo, gingando..., dormindo
aqui e além!, sentados, de cócoras, de borco, de pé!
.... vivendo a eternidade, revesando-se na euforia,
indo e vindo, perdendo-se na escuridão .... dela
renascendo a cada passo. E um canto de melopéia,
reboando, sofrendo pelos ares, unindo o céu e a
terra -espírito e corpo!- refervente, incessante,
sempre, sempre, sempre -sem parar: Ué-ué ... ué!
Ué-ué ... ué! Ué-ué ... ué! ... Tang-ta-tang, tang-ta-
tang, tang-ta-tang ...
Ruy acercou-se do fogo e fundiu-se ao Espírito
imanente. Outros como ele -e pele de menos sol,
crestada e não- irmanados naquela prece,
obedeciam também ao Criador: -Tang-ta-tang,
tanga-ta-tang, tang-ta-tang ...
Decorridos poucos minutos estava no centro: olhos
perdidos, telúrico! -célula daquele Todo!-, cadeiras
em fúria, todo ele em frenesi ... -torrentes do ar para
o chão, da terra para a abóboda .... tang-ta-tang,
tang-ta-tang, tang-ta-tanga ...
Foi rodando, sofrendo, sofrendo, sofrendo... A dada
altura uma sílfide em transe -alma com sangue! -
evolada do próprio fogo, reverteu-o para o alvor do
Paraíso, clamando pelo mundo da alegria: - corte
das nossas lágrimas! ...
E o suor correu ... Pranto da Terra - incenso do Céu!
...
Ué-ué ... ué! Ué-ué... ué! Ué-ué... Uê! ... Tang-ta-
tang, tang-ta-tang, tang-ta-tang ... Noite fora,
mundos além, sem fim... -até à Eternidade!
Monção, eis a monção! ...
Frêmitos púberes da argila ... Volúpias do mar ...
Raivas amarelas do Sol ... Incandescência infernal ...
Luz, luz, luz! Explosões sem dimensão ... Bacanais
de água sexuada ... Partos do Mar-chuva estival.
MONÇÃO, EIS A MONÇÃO! ...
Sobre a madrugada, quando mais se dormia -salvo
nas centrais, na mina, no hospital, nas rondas, nos
comboios, pelas estações do percurso, no porto
mineiro, na lavaria, nos lares inquietos ... - as
trovoadas bandearam-se na Jamba aterrorizando
bichos e homens -as senzalas e a vila. Nesta, porém,
assim como nos polos de toda aquela indústria,' os
pára-raios ionizantes cumpriram escravamente,
cavando luras de segurança no seio da própria
tempestade. Mas, pelos arredores além, o pavor, a
luz e a prepotência cósmica ceifaram vergéis,
cegando orgulhos e inocências. 0 ar vitalizou-se de
morte, gargalhando infernos: cubatas, sambos,
celeiros, berços, arados e sepulturas foram
reduzidos a cinzas: árvores de belo porte
estarreceram de horror, gritando esfaceladas ... -
chorando velhos e crianças, homens e mulheres,
gado, bichos! ..., esperanças interrompidas.
As colinas em redor, sem exceção! - montanhas de
ferro imanente - eram autênticos vulcões aberrantes,
sorvendo rios de fogo: - Raios de quilômetros,
grossos como torrentes, em desvario! - segundos e
segundos consecutivos -vasando catadupas sem fim
de luz asfixiante! - a fio, a eito, aos pares, em feixes!
...
0 tempo sucumbiu. Parou! ... - contemplando
estupefato a Natureza a parir! ...
Os próprios cães - mastins e rafeiros -eram vermes
só de medo: Mais tímidos que rolas, mais pávidos
que a derrota, mais reles que a própria lama! -
escorriam triturados, ganindo para debaixo das
coisas mais incríveis: móveis, pessoas, semelhantes
deles, galinhas, lixo!, jornais até! ...
E a chuva! -o esteio da vida: A monção por meses
aguardada, rasgou o fogo e desceu. Sangueira
incólume dos céus! vingança de ausências! ..., fúria
de atrasos!
- Cordas líquidas espessas, em formação compacta,
restrugindo e avançando! Muralhas fluidas em
marcha. Água, água, água! - Mares dessalados
viajando! ...
Água e mais água! ... Um, dois, três segundos só
àquele desabar .... e ficava-se como extraído das
profundas do Atlântico.
Minutos, muitos minutos seguidos assim ... E pouco
a pouco, a serenidade fecunda que prevalece a
todos os partos: quietação, vagidos, perenidade.
A temperatura caiu. 0 calor sufocante suara
frescura; e depois frio; e chuva boa por fim. Chuva
divina: -Lágrimas repesas! ... - horas e horas em
penitência carpida, velando o Sol, lambendo sal ...,
ungindo, ungindo ...
Ravinas de metros pelos caminhos; ribeiros
transviados; rios a encher ...
Bois nas enxurradas; arimos desfeitos; asas partidas
... corações a sofrer!
Arrasado pelo cansaço, pelo suor, pelas emoções de
todo aquele dia inesquecível .... pelo serão, pela
suposta morte do geólogo, Sereia reforçou a dose do
seu tranquilizante habitual e dormiu nu. As
explosões da tempestade não o acordaram. De
manhã todo ele era tosse, espirros, lágrimas, coriza.
E depois febre. -E com ela: frio, medo, torpor.
0 domingo foi escorrendo mortiço, deslavado, feio -
meditabundo.
Passava muito do meio-dia quando o Sol brindou.
Foi um hino ao renascer. A terra abriu-se uma vez
mais -rasgada agora por bilhões e biliões de insetos,
e miríades incríveis de seres rastejantes. A
atmosfera inundou-se de reflexos alados nupciando
para a eternidade.
Euforias de amor. Asas, asas e mais asas! ... No ar,
nas paredes, no chão, nos copos, nos pratos, nos
bolsos, pelo corpo todo... - na boca, nos ouvidos, nos
olhos até!
Apesar das redes que protegiam todas as janelas,
asas e bichos por todos os sítios, todos os refúgios,
todos os recantos. Nas cozinhas, nos hospitais, nos
quartos, nas camas, nos móveis, nas malas -dentro
dos frigoríficos também.
Asas decepadas aos montes. Corpos sem elas por
toda a parte. Inseticidas a esmo, conspurcando o ar,
a voz, os alimentos, a pele... - e pàzadas e pàzadas
de cadáveres nubentes.
Quando as primeiras luzes se abriram, velaram-se
em poucos segundos. E os sapos, como paridos pela
própria chuva -a esmo, pululando pelo campo, em
volta das casas, nos terraços, nos jardins, de porta
em porta, insaciáveis, banqueteando-se até inchar!
Foi um domingo inumano: sem alma, sem paz, sem
amor -em guerra contra a luxúria dos insetos, os
cheiros dos pesticidas, a náusea dos mortos, a
inclemência da insatisfação.
Velórios, cansaços, ruínas, nojo! ... -prenúncios de
vida renovada.
Mas pouco depois do reaparecer da noite..., de novo
a chuva prometida: um rumor de fritar, certo e
firme, horas e horas renovadas, até o Sol reabrir e o
meio-dia incandescer.
Segunda-feira mungida: luz irisadal - e a chuva
outra vez ...
0 açude não estava ainda concluído. Ia a muito mais
de meio na altura, e a menos de um quarto na
possança -apesar de há muito, em cima dele, esbelta
e obreira, a placa da via -ponte vital-
orgulhosamente servir, hora sim hora não, dando
passo aos comboios.
Precária e provisoriamente, um dique sentenciado,
de terra recalcada, cerca de um quilômetro para
montante, aprisionava reservas líquidas essênciais,
muito minguadas -bloqueando o rio. A seca
mirrara-o perigosamente: fanara-o num triste
ribeirinho -cuja água de todo um dia não dava para
os gastos de uma hora só. Temia-se a falta dela: que
os comboios e a exploração mineira paralisassem! 0
receio das consequências, por tão ruinosas,
amargurava os responsáveis - destemperando os
dirigentes. As chuvas, mercê de Deus!, curaram o
medo - sanando a impaciência. Mas ... se ao vigor da
chegada viesse juntar-se destempero -muito
improvável na infância da estação - algo pior que a
própria seca faria em breve estarrecer.
Toda aquela tarde choveu: água, água .... sempre
aquela água!
Ao cair da noite acordaram os primeiros temores.
Consultas; cálculos; previsões; palpites - apostas,
até!
Se o dique fosse galgado, desmoronar-se-ia Milhões
de metros cúbicos sem freio, em catadupa mortal,
devastariam casas e aldeias a jusante, pondo em
risco as próprias obras definitivas. Apreensões
asmáticas. Prenúncios de asfixia.
0 nível das águas atrás da barragem provisória (do
dique condenado) queimava os pensamentos.
Angústias ... Medo brutal por fim!
Noite cerrada. Sentinelas por todas as escalas de
inundação. Leituras de hora a hora ... Explorações
para montante. Despachos; telegramas; mensagens
para os pontos cruciais da bacia hidrográfica -a
norte, a leste, a poente ...
Anseios de bom tempo, de sol .... de secura até!
Apesar da capacidade de armazenagem da albufeira
crescer imenso à medida que o nível subia, e de,
antes da chuva, o mesmo ter beirado o seu extremo
limite inferior, os caudais afluentes, sempre a
inchar, empurravam-no para a zona vermelha dos
índices ameaçadores! ...
Escuridão ... Chuva. Chuva incessante! ...
Lanternas aqui e além..., estáticas, oscilando,
correndo ...
A chuva transformara-se, por fim, quase em
orvalho. Mas os níveis, de todo indiferentes!, a
subir, a subir, a subir... -sempre a subir!
Ao romper da madrugada soou o alarme: É
imprescindível dar curso às águas! A capacidade da
albufeira vai ser excedida!
Terça-feira de aflições. Ar e sol primaveris ... Tempo
radioso! ... -Mas os níveis, inexoràvelmente, a
crescer, a crescer .... sempre a crescer!
Chuvas de muitos quilômetros para montante só
então principiavam a chegar ...
É preciso abrir, a toda a pressa, vastas passagens
laterais, afastadas dos flancos do dique, e inundar a
bacia inferior, entre ele e a obra definitiva! 0 açude
terá de ser posto à prova ... -e depois galgado!
Todos os recursos para o rio!
Tempo de ação. Homens, máquinas e inteligência.
Almas e músculo. Coragem! ...
Buldozeres poderosos, de um e outro lado,
roncando à compita. Martelos pneumáticos e
compressores, rompendo rochas ... Dinamite. Terras
em rodopio ... Granitos desfeitos ... Couraças
partidas ... Pedregulhos rebolando ...
Canto infernal de tratores, caminhões, basculadoras,
picaretas, pás-mecânicas, grúas, jipes e explosivos!
Enxadas ... Corpos nus ... Suor ... Almas em
ebulição.
E no açude febre igual: cimento às toneladas para
fundir defensas, guias, reforços, proteções;
máquinas fervendo; mãos em sangue modelando
alvenarias, agregados de pedra, de tijolos, de
cacos, de lixo até! As primeiras águas raivando a
descer. De ambos os lados da barragem, rios
caudalosos escavando a par dos homens e das
máquinas. Materiais e ferramentas perdidos.
Banhos, quedas, fraturas, luxações inesperadas.
Berros e pragas. Gritos e correrias. Preces também...
E atrás do dique, indiferente e sereno, o nível a
empolar..., sempre a empolar! ...
Sob aquele céu de anil, aquele sol radioso, fulgindo
nos verdes lavados, tenros, luzidios ... - duas praias
fluviais agitadíssimas ..., e banhistas calçados, meio-
nús, ou de todo vestidos! Ora na lama, ora na água;
ora em seco, ora em risco; sós e aos pares; com
máquinas e sem elas -de todas as cores, todos os
graus, todas as condições: artífices e rurais; escribas
e engenheiros; topógrafos e monitores; mulheres
até! ...
E no meio de todos eles, sempre na brecha! -aqui,
ali, além... - de botas altas e calção à Estoril, pinha
ao sol e voz rompante .... Corvo! o pedante!
Ao cair da noite a catástrofe raivava algemada: as
águas lambiam a crista do dique, mas o nível
cessara de subir. 0 açude resistiu. Compressores,
basculadoras, grúas, caminhões, ferramentas,
cimento, aços, relógios, saúde, isqueiros e berloques
- sepultados sob águas! ...
Só duas semanas mais tarde principiou a
recuperação.
Serra de Oliveira ficara arrasado ... Corvo, porém,
fresquíssimo! Os mais, como Deus quis. -Nenhum,
contudo, baixou à cama! Ninguém ao hospital ...
Sereia, combalido ainda, não autorizado a deixar o
leito, seguiu dali, hora a hora, toda aquela estrénua
batalha fluvial.
Na quarta-feira voltou a chover. 0 dique era uma
ilha à flor das águas, com o formato de um
haltere. E o açude, mais abaixo, um degrau líquido
rapidíssimo, enorme, amarelo, tonitruante!
Castro Raposo trabalhou sem descanso. Bateu, um
por um, todos os jazigos de Cassinga-Norte, as
instalações industriais, os laboratórios, os núcleos
de estudo. Vasculhou arquivos, registros,
formulários, ordens, confidenciais, espíritos e
concretizações. Os dramas do rio, na aparência, não
o tocavam. Só às refeições mergulhava na aflição ....
ouvindo! Quase não falava: sorvia! As suas visitas
ao Professor não passaram de cortês formalidade.
Na quinta-feira foi como feriado. A lavaria parou
para manutenção, e a maioria pÔde dormir.
Apesar da noite haver sido só de água, e a manhã
acordar aos aguaceiros, Castro Raposo quis ir a
Tchamutete, conforme de há muito programara, a
fim de ver -em primeira apanha- o essencial de
Cassinga-Sul.
Corvo ofereceu-se para o conduzir. Aceitou.
Largaram num pequeno bólide com motor à
retaguarda, -garantido contra todas as avarias-.
Eurico não quis levar mecânico ou ajudante -o que
não deixou de surpreender o geólogo. Nos seus
bons tempos do mato, o ajudante era uma -peça de
rotina-. Algo quase tão indispensável, tão essencial,
como a água para beber. Acordara porém bem
disposto ... Não repontou! Além disso, o prestígio, a
juventude relativa, e, porque não dizê-lo?, a
irradiante hiperautoconfiança facial do
companheiro, fizeram-no aceitar que os tempos
fossem outros. E como sentia já, amargamente, que
principiava a estar gasta, admitiu que naquelas
andanças se encontrasse ultrapassado. Deixou
correr ... -Paciência-, lamentou de si para si, -quem
ardeu não tem para arder, como dizia o Manuel
Antunes-. (Manuel Antunes tinha sido o seu melhor
auxiliar. Apesar de quase iletrado e já velho, fora o
mais sapiente de todos os seus colaboradores na
Guiné).
Na travessia passaram por uma longa bicha
humana, abraçada a um abarracamento
administrativo.
-Que é aquilo? -perguntou Castro Raposo, dado ser
quinta-feira. -Também fazem pagamentos no meio
da semana?
-Aquilo é um contributo para a eficiência:
distribuição dos prêmios pela estafa do rio. Extras
são extras! Promessa, cumprimento..., paga!
-pontificou Eurico, amável> pronto e seguro.
Castro Raposo sorriu. Segundos mais tarde, na
sequência já doutras idéias, articulou a meia voz,
para si mesmo, evocando as conversas do avião-
- Dinheiro ... Sempre o dinheiro! ... Corvo, cuja
agudeza de ouvido superava a mais arguta de todas
as raposas, tomou a expressão por um remoque e
desceu à arena:
-Mola real da vida, Dr. Castro Raposo! -Para aqueles
cujo Rei é o ouro ...
- Nós. Todos nós! E não só Rei, apenas, Deus! ... 0
mais persuasivo de todos os Senhores! A força da
sua convicção é irresistível. Pode quanto quiser, 0
que não demonstrar por dez, evidencia por mil; ou
cem mil; ou um milhão; ou um milhar de milhões!...
É um fato. Todos sabem que é assim, embora a par e
passo digam o contrário. É tão inelutável, tão
axiomátíco, tão escravizante!, que chega a ser
necessário negá-lo! ... Muito, muito pior que no caso
das solteironas amarguradas por não terem
conseguido casamento -visto não consentir opções,
nem tão-pouco derivativos, ou fugas sequer. Tem de
ser ele! Nada, absolutamente nada o pode
substituir!
Como o geólogo não retrucasse, Corvo filosofou
mais:
- Essa coisa de vida-simples é fábula, Doutor
Raposo, A própria simplicidade custa dinheiro. E a
pobreza também. Nem vale a pena falar dela ... 0
princípio dos princípios passou: as pedras, as
plantas e os animais já não falam; os deuses não
percorrem os caminhos da Terra; a felicidade e o
bem-estar, ou, pelo menos, os ópios da satisfação,
deixaram há muito de ser fruto espontâneo, se acaso
algum dia o foram.
0 Paraíso, se existiu, morreu!
-Não haverá em tudo isso uma enorme
confusão? -flanqueou Raposo, mais divertido que
impressionado. - Há quem não seja ainda escravo
desse deus ...
-Só se ainda o não conhece ... Nesse caso reverencia
precursores.
- E nós, como dizemos que o dinheiro é ouro . ..,
sucedâneos!
-Claro. Mas como o ouro é um deus, para não
destoar dos outros, abandonou também o convívio
dos mortais. Recolheu aos santuários: às casas-fortes
austeríssimas! ..., templos seus - ultra-reverendos!
- Altares de potentados! - zombou o geólogo.
- Não seria melhor ... de sumos-sacerdotes? ... 0
dinheiro, como outro deus qualquer, prima pelos
mistérios da ausência e da essência. Se assim não
fosse... adeus prestígio! Não seria um deus. Seria
um Senhor apenas. Falível, e portanto mortal ..., e
sujeito a ser deposto. Se fosse fácil, e se visse todos
os dias ... não deslumbrava!
-Confesso que a analogia é sugestiva ... A essência
do dinheiro é realmente insondável ...
-Escapa aos próprios sumos-sacerdotes! 0
dinheirismo, Dr. Castro Raposo, é o credo dos
credos. A única religião verdadeiramente universal,
e irresistível. A mais pura até. Nem precisa de
pompas! ... 0 seu Poder é incontestável.
-Tem ritos, sacerdotes, guardiões, fanáticos...,
detratores até... Aquém e além todas as fronteiras ...
- Escravos confessos ou não-confessos da
mesmíssima -lei-moral-!
Castro Raposo sorriu de novo. Segundos depois
soltou uma pequena risada e mordeu:
-Que diria o Professor se o ouvisse? Pelo que me
contaram da peroração da chegada, ele devia gostar
imenso de o ouvir, engenheiro Corvo! Ali, ali, ali ...
Corvo torceu o pescoço -olho de banda, bico
apontado ao céu... -e crucitou:
Não costumo falar com o Professor ... sobre
filosofias.
-Aplica-lhas? -pistolou o geólogo, abertamente no
desfrute.
-Falávamos de dinheiro, Dr. Castro Raposo. Do
ouro. Do deus-moeda!
-Está bem -condescendeu Raposo. -Do ouro que não
é ouro.
-Como queria o senhor que ele fosse ouro?! ... Não
seria transcendente nem atual. É papel. Hoje em dia
tudo quanto é de fato importante, reduz-se a papel.
Nos governos, nas igrejas, nos tribunais, nas escolas,
nos sindicatos, nas maçonarias, nas cadeias, nos
próprios santuários, e até na batota! ... Papel.
Tudo papel! ... Papel-moeda, papel legal, papel de
jogo, papel secreto, papel de crime, papel de graças,
papel - Notas, cédulas, letras, bulas, cheques, leis,
cautelas, promissórias, recibos, contratos, diplomas,
cartas, mercês...
- Claro! Papelosa canonicamente avalizada!
- Encarnação autêntica da divindade, que neta
permanece tão real como os deuses nos altares!
Você sempre mo saiu um passarão, amigo Corvo!
Mas que passarão! ... Sabe como lhe chamam? ...
- Sei. E digo-lhe mais: acho a alcunha muito
espirituosa. Passarão Negro de Lisboa, quer dizer
muito, Dr. Castro Raposo!
- Nesse ponto estou cem por cento de acordo
consigo, amigo Passarão.
-Mas olhe que para o se-or nem sequer foi preciso
inventar alcunha ...
- Raposo não é nada mau, concordo. Gostava no
entanto muito mais de Raposão. Ou até Raposa:
Castro Raposa! Os raposos não têm prestígio. Ao
passo que os corvos! ... Imagine que eu era Raposa:
uma raposa felpuda!
-Deus me livre! ...
E assim foram espremendo o tempo, rodando
bulidosamente, sob chuva teimosa, fintando os
buracos da estrada, as pedras, as ravinas, as poças, a
lama .... até darem boleia ao silêncio e cada um
mergulhar em si.
A certa altura, num fuganço mais vadio, Corvo
deixou o bólide ir à valeta, garlopando velozmente
no talude, que, por ser de barro e estar mole ... não
repontou.- bruniu ... e, ainda por cima, uns metros
adiante, o devolveu ao leito da via!
-Ufe! ... -Castro Raposo não tugiu nem mugiu.
A umas três dezenas de quilômetros de Cassínga a
chuva tomou-se rala, e depois intermitente. Raposo,
apesar da murça, da pera, do bigode, da -pelagem-
reforçada que o revestia, era friorento. Encolheu-se
no seu canto e deixou-se embalar pelos solavancos
da viatura, afundando-se noutras cogitações -tanto
mais que Eurico desemproara, tornando-se cauto.
A paisagem era cediça, como quase todo o Leste e
Sueste na estação pluvial: floresta rala entremeada
de mulolas escorridas e chanas vazias (de longe em
longe) pasmadas de tédio...
Decorrida uma hora e tal de viagem, rumo ao Sul,
sempre a descer, a chuva atrasou-se, o Sol despiu-
se..., e a Natureza corou!
A floresta, as mulolas, os buracos e a própria lama
irradiavam luz e beleza. E os balanços da marcha,
apesar de sempre arrenegados, douraram de ritmo,
fantasiando cortesias.
A alturas tantas atravessaram o povoado principal
da região: Cassinga. A terreola que deu nome aos
minérios e às minas. Pouco ou nada parecia ter
chovido ali! Não muito depois de Cassinga, o bólide
entrou a falhar: pôs-se aos soluços ..., e por fim
emudeceu. Raposo mirou Corvo pela frincha do
olho.
Parecia uivar à carcaça do Passarão: -Garantido
contra todas as avarias, não é verdade? ... -
Após uma dúzia de arremetidas infrutíferas do
motor de arranque, o engenheiro Negro de Lisboa
virou-se para o confrade e pingou:
-Água no distribuidor! -Oxalá seja... -verteu o
parceiro. Novos esforços inúteis -e o remirar
agourento de Raposo. Corvo sentiu-se depenado,
Fez da filáucia oração: olho de banda, figa na
esquerda - e um esgar de sorriso como a esconjurar
o mau-olhado:
- 0 doutor percebe de mecânica? ... Raposo lembrou-
se de novo da conversa a bordo do taxi-aéreo - e
pôs-se em guarda. Há pelo menos duas décadas que
não olhava para um motor.
-Bem..., aqui há umas dezenas de anos atrás,
percebia ... Mas depois deu-me para só embarcar
nestas andanças acompanhado por quem
percebesse de ofício, e guardei a jeiteira, as energias
e os cuidados para desportos mais consentâncos ...
Além disso esta -traquitana- é capaz de ser
rabichosa ... e a minha ciência ínfusa de antigo
examinador de pesados e ligeiros ... está dessorada.
-Ora bolas... -ambiguou Corvo. -Estou mais ou
menos na mesma ... Mas, apesar de-podão-, como já
mo deve ter catalogado, aqui onde me vê, graças a
Deus!, nunca fui examinador.
Raposo sorriu de gozo: em jeito de provocação. Mas
Corvo não foi ao jogo: penachou mais:
-Vai ver... Isto resolve-se! -Abriu a porta e atirou-se
de cabeça para o touro. Digo: para os mistérios da
motorança bolidal:
Ferramenta lá para fora .... braços ao léu..., motor ao
sol... -e ei-lo daqui para ali, dali para acolá, busca
que busca .... à procura do distribuidor.
-Cá está o bicho! -anunciou dois ou três minutos
mais tarde, eufórico, o bem-fadado Passarão Negro
de Lisboa.
Raposo seguiu-o, e teve de se render: aquilo tinha
de fato todo o aspecto de um distribuidor.
Viram melhor ..., e era mesmo! Mas estava seco,
Sequinho de todo!
- Caramba ... Afinal não é água no distribuidor! ...
-Pois não! ... -mordeu Raposo, entre irônico e
resignado, ao ver tudo aquilo enxutinho.
-Que chatiche! ... -chorou Corvo de rabo caído.
-Podia ser pior ... Pior - Quando há pedaço meteu a
-traquitana- pela valeta, se não houvesse aquele
talude cooperativo ... estávamos agora de rodas no
ar, em plena chuva! ... Ao menos aqui há sol. Até já
me passou o frio ...
Corvo não ouviu nem se rendeu. Espetou o bico de
novo no galinheiro do motor, e foi penicando aqui e
além, atrás e à frente, à esquerda e à direita..., mas
por fim descaiu:
- Quem me mandou a mim ser generoso? ... Para
mais o Tavares até se ofereceu para vir ... Como
fizemos feriado..., não quis estragar o dia ao rapaz.
Fica-me de emenda!
Raposo ia para lhe dizer que o que ele quis foi deitar
figura. De modo algum ser generoso. Mas, ante a
expressão daquela derrota, sentiu-se generoso de
fato, e nem sequer lhe disse que a ele também lhe
ficava de emenda, que o seu dia de trabalho é que
pagava as favas, e que o dele, Corvo, embora fosse a
Companhia quem o pagasse, valia bem uns -extras-
mais, para o Tavares, ou outro acompanhante
qualquer, devidamente qualificado. (0 Tavares era o
motorista habitual: um mulato fuleiro com ares de
embaixador e artes de mecânico - além de manhas à
prova de todas as avarias. Era imperdoável que não
tivesse ido.
Quem saía com ele chegava a ter gosto de apanhar
um furo. Mudava uma roda em cento e oitenta
segundos! E se perdesse o carburador punha uma
lata esburacada na crista do bloco, metia-lhe trapos
dentro com um tubo no fundo, e o carro seguia.
Mal, é certo; mas seguia! A sua
capacidade de improvisação derrotava todas as
panes. Ora tendo-se oferecido para os acompanhar,
não obstante a roda-viva dos dias da véspera, era
indesculpável não o ter levado. Ainda se Corvo
fosse sozinho... - Isso sim Se ele fosse -sozinho-
levava o Tavares!)
-Bem... -animou Raposo de orelha a pintar de
murcha e um travo de gozo a rebolar-se-lhe lá por
dentro. - Deixe lá! Se não resolvermos a encrenca,
quando passar muito da hora prevista para a
chegada, mandam alguém ao nosso encontro.
Não lhe disse que tinha na maleta sandes, bananas,
chocolate e duas garrafas com água de Sã da
Bandeira. (Para Castro Raposo, tal como para a
maioria, a água de Sã da Bandeira era um produto
de confiança. Ignorava também que a
desacidulavam - como atrás se disse - com calcáreos
do deserto, transportados para o Lubango nos
vagões que desciam com gado!) Limitou-se a
perguntar simpaticamente:
_Quantos quilômetros faltam para Tchamulete.
-Uns doze. Talvez nem tanto... Dez, no máximo!
Raposo ficou desiludido. Esperava cerca do triplo.
Decidiu vingar-se:
-Diga-me uma coisa: o carro tem gasolina? -Por
quem me toma o senhor? -repontou o Passarão
abespinhado.
Castro Raposo não garantira que era aquela, a
-avaria-. (Não dissera que se tratava da clássica
pane de burro). Fez-se por isso desentendido e
passou ao item seguinte, rememorando a ladainha
da sua velha cartilha de examinador de pesados e
ligeiros:
-Vejamos se a bomba trabalha ... Procura aqui; busca
além, apalpa acolá..., acabou por descobrir a maldita
bomba. -Irra!-, praguejou entre si. -Não há direito de
se disfarçar uma coisa essencial desta maneira! Não
digo que se ponha um letreiro em cada peça. Mas
que diabo! ... Que as ponham à vista e não lhes
adulterem o feitio! ... Bem, por onde entra o
combustível? ... Pronto: por aqui! E por onde sai? ...
Sai por ali ... Está-se mesmo a ver-.
Fez as manobras recomendadas pelo manual dos
-bons tempos- e resultou! (A bomba cumpria na
ponta da unha: de cada vez que a ordenhava saía de
lá um esguicho que nem o repuxo daquele menino
de Bruxelas..., que não tem vergonha na cara de
repuxar em público naquele despudor.)
-A -traquitana- tem gasolina e a bomba trabalha,
amigo Corvo! - cantarolou Raposo, de soslaio para o
Passarão. -Agora o passo seguinte: -ver se há
corrente nas velas-!
E foi desbobinando a ciência de há um quarto de
século.
Corvo estava a ficar impressionado. Havia corrente
em todas as velas: chispavam melhor que um
isqueiro de marca. Raposo convenceu-se ... e
corvejou:
-Se a gasolina chega ao carburador e as velas
chispam, ou o motor trabalha ou o busilis está aqui!
- E pôs a manápula emporcalhada no corpo do
delito: o carburador.
Fez uma experiência, e outra, e outra... -e espera aí
que eu já venho: o motor não tossiu nem espirrou!
Carburador cá para fora. Abre, analisa, sopra,
limpa, desmonta, analisa outra vez -e torna a
montar. Arranque ... e o motor, nada! Se embirrento
era, mais embirrento ficou.
Uma hora e tal mais tarde estava tudo na mesma. 0
carburador fora aberto, revisto e montado, sei lá
quantas vezes; a bomba testada, antes e depois; as
velas revistas, limpas, medidas e aparafusadas; o
distribuidor cuspido, soprado, batido..., o diabo a
quatro! Estava tudo, absolutamente tudo em ordem.
Mas o motor ... -moita carrasco!-. Quando muito, de
longe em longe, um suspiro ou dois .... e pronto!
Raio de enguiço aquele! ...
Esbodegado, esvaído de toda a sabedoria, o cientista
(o velho examinador, o incomparável Raposo!)
entregou os tentos e desistiu.
Eurico Negro de Lisboa retomou o comando das
operações - convicto de ter aprendido (naquele
comenos!) o bastante para dar um bigode ao
Raposão. Fez de modesto e pipilou:
- Deixe-me cá fazer uma tentativazinha mais ...
- Faça mil. Estou chateado que nem um peru! - E foi
estender-se à sombra de uma árvore convidativa.
Ia tão remoído que nem se lembrou dos lacraus, do
quissonde, das cobras, das tarântulas ... de todas as
mais bichezas matumbas!, nem tão pouco fez caso
das moscas. (Aos mosquitos já estava habituado).
Tinha os nervos em tal desordem que deu consigo a
repetir, uma vez atrás de outra, a expressão do
remate da experiência mecânica: -Estou chateado
que nem um peru! Chateado que nem um peru!
Chateado ... - -e o seu inesgotável senso de humor
veio à tona: -Caramba! ... nunca vi um perá
chateado! ... E porquê um peru? ... Ainda se fosse
um corvo ... Ou uma raposa ... E chateado
porquê? ... Tenho de comer e de beber ... Estamos
perto ... Ora ... Façamos de conta que é um
piquenique!- -e sorriu, gozando a sombra e o calor.
0 tempo, para ele, foi-se arrastando cortesmente ...
Deu-se ao mornaço gostoso, -passou pelas brasas-,
fez as pazes consigo ... e invadiu o reino de Morfeu.
Quando vogava no melhor do cochilo, deslizando
sobre nuvens de espuma..., acordou: Corvo explodia
de júbilo:
- Eureca! ... Eureca! ... Até que enfim! Passarão
Negro de Lisboa esbracejava de alegria.
- 0 que é, afinal?! ... 0 carburador? - inquiriu Raposo
estremunhado, sacudindo as formigas e correndo
para o bólide.
- Um ciclista! - uivou Corvo no auge da euforia.
-0 quê?! E de si para si: - Estará ele doido? ... Pobre
Eurico! E logo um ciclista! Ainda se fosse a
Hermengarda! ... Pode lá ser?! ... Como diabo pôde
-um ciclista- encafuar-se no motor da-traquitana-? ...
-Um ciclista! Um ciclista! Um ciclista!-repisava
Corvo duas oitavas acima do seu melhor.
Castro Raposo sacudiu a cabeça e deu um lambada
em cada uma das faces, para se certificar de que
tinha acordado. Não havia dúvida! Não estava a
sonhar.
Perante o insólito dos gestos do cientista, a
pasmaceira que lhe estrelava os olhos, a folga do
queixo, a eloqüência do todo, Passarão de Lisboa,
apesar de despenado, sujo, e com o bólide a rir-se
dele!, crucitou à fadista:
-Sim, um ciclista! Vem acolá! -e apontou para as
bandas do destino, o arrenegado couto mineiro de
Tchamutete.
Castro Raposo acabou por entender: Uma bicicleta
muito mal enjorcada, empenadíssima, uma roda a
cambar para oeste e outra a fugir para nascente,
quase a desfazer-se!, puxa que tira, vai que não
vai..., ziguezagueava rumo ao bólide, equilibrando
prodigiosamente um preto faceiro, todo janota,
cento e tantos por cento endomingado.
- Por aqui... tem de ser um dos meus trabalhadores!
- sentenciou o camarada de Lisboa, ungido já de
paternal confiança (ferramenta para o chão)
avançando para o subordinado, feito para a
mandice.
Raposo foi atrás dele, comovido pelas acrobacias do
pedalísta, ansioso pelo sprinte final. Não sprintou.
A um gesto firme, de comando bem medido!, todo
paternal, do Negro de Lisboa, o caipira fez um
viranço repentino, e zás! desmontou.
Por um triz que não se estendeu. Era um
principiante convencido, madurão, de tacha
arreganhada e ar feliz.
- Bum dia! - grunhiu de gosto, sorrindo de lés a lés.
-Bom dia -rosnou, condescendente, o também
convencido Passarão.
Estava-se mesmo a ver que o ciclista apreciara a
paragem, e queria umas braçadas largas de corda.
Há lá coisa melhor do que falar? ... Mas o camarada
Negro de Lisboa não lhe deu um metro de guita
sequer. Solene! -paternalíssimo embora- fez honra
aos galões:
-Donde vens tu, meu rapaz? -Vem do Chatete. Dos
trabalho... -Todo ele era satisfação.
-Com quem trabalhas tu? -Trabalha no sô Parrana.
-Muito bem... - (uma pausa de general). -Olha!, eu
sou fulano assim assim, frito e cozido, assado e de
caldeirada, etc., e tal, e tal! ... Conheces, não é
verdade?
Ah! ... - exclamou encantado; e riu, batendo palmas.
- Conhece! ... Comestá Comestá? ...

Estendeu a manápula, iluminou a expressão e fez


luzir a dentuça:
- Ah, ah, ah! ... -Muito bem... -correspondeu Corvo
professoralmente. -Como vês, meu rapaz, estou
empanado. - E apontou para a viatura em geral,
para a ferramenta semeada pelo chão, para o motor,
e por fim para o geólogo.
Este não gostou. Fez um gesto de quem pretende
sair à estaca, mas o de Lisboa não lhe deu tempo.
Quando ia a abrir a boca já os tímpanos lhe
vibravam em sintonia atrasada com a emissão de
Eurico para o pedalista:
-Olha! Preciso que me leves um recado ao senhor
Parrana. Quero que ele venha aqui ter comigo
imediatamente, com um jeep, ou uma carrinha, para
me socorrer. Percebes?
-Ah, ah! ... -exclamou o outro, batendo outra vez as
palmas, numa demonstração de pura alegria.
-Percebes o que eu te disse? -Ah, ah! ... Percebeu ... E
de palmas a abrir e a encostar, esquecido já do
biciclo, estendido na terra, foi contemplando as
desgraças -dos branco-, a porcaria das mãos, o
desalinho das vestimentas, o bólide, o ferramental
.... e rematou com ar felicissimo, transparentemente
reinadio:
-Eu vai nos Cassinga, patrão.
- Está bem. Mas eu dou-te matabicho.
- Eu vai nos Cassinga, patrão. Pode levar mukanda
nos Cassinga. Vai lá ... Faz bilhete!, Eu leva.
- Não é, isso. Não me interessa mandar -mukanda
nos Cassinga-. 0 que eu quero é que me leves um
recado a Tchamutete. Que me leves um bilhete ao
senhor Parrana. Percebes?
- Percebe ...
- Pago-te bem. Um dia de ordenado!
- Ah, ah! ... -e voltou a bater as palmas, agora já
menos aberto, fitando mais uma vez o bólide, o todo
sebento dos -artistas-, e, sobretudo, a ferramenta
espalhada em redor, tornando-se sério.
-Vais então?... -insistiu Corvo, meio
desprofessorado.
- Ah, ah! ... -e o sorriso voltou a luzir-lhe nos dentes.
-Não, patrão. Eu vai nos Cassinga. Pode levar
bilhete nos Cassinga. No Chatete num pode. Vem
memo, memo, de lá! Num pode.
- Mas eu dou-te dois dias de ordenado .... ou mesmo
três, e mando a carrinha depois levar-te a Cassinga.
- Não, patrão. Num pode. Vai nos Cassinga.
Mas ouve lá, tu quase não perdes tempo! De
bicicleta chegas a Tchamutete num instante; vens
para cá de carrinha, mais o senhor Parrana; a seguir,
eu mesmo vou levar-te a Cassinga! E no fim dou-te
uma semana de ordenado! Está bem? ... Não perdes
mais de uma hora! ... Urna hora e um quarto, no
máximo!
- Ah, ah! ... Três hora, Chatete aqui!
- 0 quê?! ... Gastaste três horas de Tchamutete aqui?
- Ah, ah ... Corrente num estar bom. Sair muito.
Castro Raposo, já divertido com o negócio da
conversa, olhou melhor para a bicicleta e viu que a
desafinação da maquineta não se circunscrevia
apenas às rodas. A corrente estava de fato
larguíssima. Devia, sem dúvida, saltar a cada passo.
Porventura de cada vez que o -fadista- deixasse de
pedalar ou alterasse o ritmo dos pedais. Mas,
quanto às três horas (disso sabia ele muito bem)
uma vez que estariam a cerca de uma dezena de
quilômetros de Tchamutete, pelo que ouvira, tanto
podiam ser três, como seis, ou dez, ou duas apenas,
ou nem uma sequer. Tempo e dinheiro, era
evidente, para aquele patrício, eram mercadoria de
preço mais que vário, sempre aleatório -nunca
fundamental. Mesmo que o homem tivesse largado
de Tchamutete depois das nove e consumisse três
horas na viagem, o tempo tanto podia ter sido gasto
a pedalar e repor a corrente na posição de rodagem,
como, sobretudo, a divertir-se, a lazer, a dar à
língua, a ir atrás de um enxame---, ou simplesmente
a pavonear-se, a pé, de máquina à mão, para que o
admirassem melhor.
Mas Corvo o Passarão Negro de Lisboa apesar da
sua experiência africana, lisboado como estava, teria
esquecido já, ou deixado de sentir, aquilo que para
certas criaturas é tantas vezes mais alvissareiro, e
até significante. Teimou por isso na dele. Em ser, e
se mostrar: Passarão de Lisboa.
Seguro da sua força, da validade das suas razões, do
seu poder, dos seus dons de convicção, da
hierarquia julgada em causa, daquilo que o geólogo
pudesse pensar, não cedeu. Não quis atender a mais
ninguém -além de si. Argumentando sempre com
lógica, lisura, clareza, e até cordialidade..., ainda por
cima foi fazendo ofertas sucessivamente maiores!
-Tudo em vão ..., como não podia deixar de ser. Só
para ele, Eurico de Lisboa, as ditas ofertas eram
cada vez mais generosas e tentadoras - e a conversa
tinha lógica.
Não conseguiu pois, demover - e portanto
impressionar - aquele pinoca tranquilo, pedalista de
exibição. Absorvera-se de tal modo consigo, que
nem sequer notara que o paleio, a conversa por si só
-sem a menor dúvida - valia para o outro
muitíssimo mais que todas as ofertas. E quanto mais
oferecesse, mais valia a pena resistir. Que horas e
horas de gozo, de orgulho, o pinoca estava a
-amoedar-, para depois vender, revender,
tresvender! ... Que -falar- bom aquele, para depois
falar, falar, falar ...
0 escorrer do tempo venceu o de Lisboa -que deixou
transparecer a derrota e o próprio despeito. Que
inferno escaldante não devia queimar-lhe as
entranhas! ... E o camarada ciclista, sempre calmo e
a rir, a enriquecer, a enriquecer, a enriquecer ...
Castro Raposo gozava também. Não só esquecera o
malogro da sua exibição mecanicista como até quase
o abençoava. Se tivesse posto o bólide em marcha
teria perdido -aquilo-. Que lição! ... E que -filosofia
do dinheiro! ... -
É certo que o sofrimento do amigo foi por vezes tão
humilhante que chegou a sentir ganas de pregar um
chuto na pedaleira do janota e inverter os papéis aos
farsantes. Foram assomos fugazes. 0 preto estava na
dele, sem ponta de má-fé, cheio da sua razão - e
oferecera-se para levar o recado onde lhe pareceu
que podia servir o outro -que era um branco,
apenas. 0 trato de patrão ... era uma senhoria. 0
mais, conversa. E o sim e o não, Exatamente como
para nós, nem sempre aquilo que, formalmente, os
vocábulos implicam.
0 geólogo deixou por isso a ladainha correr. Das
meditações sobre os últimos dias, a chuva, o
dinheiro, os dramas do rio, etc., foi derivando para
outras experiências suas, para os triunfos de Corvo,
para aquele -fracasso- desastroso –e reviu-se com
pouco mais de vinte anos, em plena Guiné, Quando
do seu primeiro contato com trabalhadores negros
como aquele, ainda não destribalizados, quase
puros, e refugiou-se consigo:
Incubiram-no certo dia, algures naquela Província,
de acelerar a todo o custo determinada tarefa muito
urgente. Como já tivesse vencido -enrascadas- no
gênero, embora noutras ambiências, estava cheio de
si e considerava-se -um tipo despachado-. Aceitou o
encargo não apenas sem reservas. Com prazer
-convencidíssimo de que não tardaria a enfeitar-se
com um brilharete mais. Dispunha de carta-branca,
e, segundo lhe parecia, dos meios necessários para
levar a dele avante, embora no jeito daquele amigo
de Lisboa. Foi também lógico e generoso: ofereceu
mundos e fundos: a Lua, as próprias estrelas, para
que uns -almas de cântaro- (como então lhes
chamava) dessem um pedaço mais de si, em
rendimento, e ganhassem prêmios e salários como
até ali nunca tinham auferido. Mas nem tudo é
como se pensa ou nos parece. Não convenceu
ninguém. Desanimado, amaldiçoou a profissão, as
artes, os homens, os bichos, o mar, a -Porca da vida-
-e sobretudo a hora em que se deixara atrair para
-tão estúpidas e derrancadas paragens-. Trabalhava
desalmadamente; montara em todos os sectores da
obra unia orgânica revolucionária, estupendíssima!
-muito superior a tudo quanto já vira e fizera
noutros ares e com outros mortais, sempre com
resultados garantidos. Não dera por isso ouvidos
fosse a quem fosse -e muito menos aos desfasados e
ignorantes capatazes do sítio. Se ele ponderara
todos os pormenores, tinha a certeza de tudo estar
em ordem! Mas nem a -experiência,> nem o -saber-
resultaram. Desiludido também, apesar de ter ainda
na manga certos cartuchos de grande efeito,
aprendidos no outro lado da fronteira (de que não
queria lançar mão -visto haver-se comprometido a
usar somente os seus métodos) viu-se de repente em
face dum fiasco ruinoso. 0 pesadelo do desaire
enegreceu todos os seus sonhos, ameaçando-lhe os
horizontes do futuro. Quase deixou de comer; e
por fim, de dormir. Sugado pelas insônias, vitima já
de cogitações sombrias, viu aproximar-se dele o
velho Manuel Antunes, o capataz-geral que tempos
antes -reformara- diplomaticamente, a pretexto de
mal saber ler e não aguentar o ritmo trepidante das
suas técnicas hípereficientes.
- 0 senhor Raposo dá-me licença? - apalpou Manuel
Antunes compadecido.
-Diz lá ... -Se o senhor Raposo me deixasse amanhã
orientar o pessoal cá na minha feição, com os meios
de que agora dispomos, e a pagar como o senhor
Raposo quer, garanto-lhe que fazia diariamente
mais ainda do que aquilo que está marcado para
cada grupo. Acredite, senhor Raposo! Eu conheço
esta gente. Falo as línguas deles há mais de trinta
anos.
Não acreditou. Mas por descargo de consciência, e
para se ver livre do -pobre diabo do Antunes-,
cedeu. Perdido por cem, perdido por mil!
-Está bem Manuel Antunes. Amanhã podes fazer
um ensaio na Ala do Norte. Mas só te dou um dia,
Estou farto de experiências.
- Posso ir ao acampamento combinar com o pessoal
pra gente pegar às seis?
-Mas o horário manda pegar às oito, Manuel
Antunes!
- Eu sei, senhor Raposo. Mas como vamos trabalhar
à compita, quanto mais cedo se pega mais cedo se
larga, e menos sol se apanha. 0 que a gente quer é
despegar cedo.
- Faz como entenderes. Conheces bem as tarefas que
eu estipulei, não conheces?
- Conheço, senhor Raposo. Trinta por cento mais do
que se fazia na jorna. Pra facilitar as contas e cá por
umas coisas vou ter de puxar cincoenta por cento.
Já matutei no caso.
Tarefa duma jorna e mais metade de outra, e cá uns
pagos como vai ver, senhor Raposo.
-Está bem. Depois se farão as contas para liquidar os
prêmios dos vinte por cento de acréscimo, se vocês
cumprirem ...
- Cumprimos! Garanto-lhe que cumprimos. Matutei
em tudo. Vai ver.
-Está bem... -suspirou desoladamente. -Vai à tua
vida, Manuel Antunes. E oxalá tenhas sorte.
-Muito obrigado.
0 capataz desandou com um luaceiro no rosto.
Castro Raposo soube depois que o Antunes se
dirigiu ao pessoal mais ou menos assim!
- É gente! Os que trabalham na Ala do Norte e
quiserem amanhã pegar às seis, terão de fazer isto e
aquilo e mais aqueloutro. Mas assim que findarem,
o que deve botar lá pra uma da tarde, arreiam e vão
à cantina receber uma dose reforçada de carne, ou
de peixe, e um quilo de farinha e mais meio litro de
vinho inteiramente de borla! (Os extras cabiam à
vontade nos prêmios atribuíveis aos vinte por cento
de acréscimo de produção - meta julgada
impossível, pois traduzia mais do dobro daquilo
que se estava a produzir).
Toda a gente se pôs de pé - e ouviram-se
comentários de aplauso. Indiferente, Manuel
Antunes foi por diante:
- Salários e prêmios como diz o regulamento. E
também, bom é de ver, uma tarde inteirinha de
folga! ... Quem não quiser... pega e despega no
horário, ganha na moda do costume, e não se lhe
leva a mal. Isto é só para os melhores!
Pegou tudo às seis, na Ala do Norte. E ao bater do
meio-dia não havia vivalma nas bandas do Manuel
Antunes.
Castro Raposo fez um vistão. Só faltou
condecorarem-no. Não houve tempo... Foi
despachado à pressa para outra encrenca, noutra
Província, onde molestava um sarilho pior. Os
maiorais, no entanto, deram a medalha ao
sucessor!!!
Raposo levou consigo Manuel Antunes e só o
-reformou- quando ele pediu que o deixassem
descansar.
0 geólogo às voltas com estas recordações e o janota
do ciclista a chegar-se para ele. Estava encostado à
traseira do bólide, como quem olha para o
embirrento do motor, mesmo em cima do arraial da
ferramenta.
0 marau do preto ia de olho feito para as chaves-de-
porcas. Raposo cortou-lhe o jogo. Disse para
consigo: - 0 que tu queres, meu pinoca, é esticar a
corrente da pedaleira ... Pode ser que as pagues
todas juntas-. E com toda a pachorra, no mais
ostensivo desplante, fitando-o bem nos olhos, pôs
uma das botas em riba das chaves e arreganhou-lhe
a tacha a preceito. 0 outro matou a charada.
- Ali, ali ... Patrão, presta ferramenta ... Se não se
tivesse lembrado do Manuel Antunes, Castro
Raposo era muito capaz de lhe ter dado uma
corrida: um berro que o janota nem em Cassinga
havia de parar! Mas a meditação inspirara-o. Optou
por uma faena à Manuel Antunes -até para arrumar
o Negro de Lisboa. -Prepara-te para aprender, meu
alfacinha duma figa! - Tirou a bota das chaves e
carteou para o ciclista:
- Serve-te da que quiseres... - E pôs-se a rezar à
Virgem para que o marau não se entendesse com a
chave nem tão-pouco com a -avaria-.
Foi Exatamente o que sucedeu. 0 janota começou a
pagar as favas com juros dobrados. Quanto mais
mexia na máquina, pior ficava. Quando a corrente
parecia firme, as rodas não buliam; se rodavam, o
empeno crescia e tornava a -pasteleira- incapaz. E
assim por diante, tempo carpir, deixando o biciclo
sem préstimo, nem aparências de afinação possível.
Desistiu. Embora a máquina fosse sobretudo para
vista, o fato de não a poder exibir repimpado no
selim, ou levar à mão sequer, humilhava-o. Mas
como não havia remédio, dispôs-se a carregá-la no
ombro. Castro Raposo jogou então para a vaza fatal:
-Quanto me dás para eu te compor a bicicleta, Bé?
0 preto deitou a máquina outra vez e pôs-se a
mungir o miolo.
-Num sabe. Num tem pra pagã, patrão.
- Tem, 'tem ... Se num tem pode ter ...
0 caipira mergulhou os olhos nos olhos de Raposo.
E depois nos de Corvo. Escorreram segundos
ansiosos ... De repente, deu-lhes as costas e
preparou-se para desandar. Preferia gemer com
toda aquela -sucata- às costas. -Ai o melro!-, disse
Castro Raposo. E amenizou a derrota do preto com
uma trunfada a puxar resposta:
-Espera, lá, Bé ...
0 preto ficou a olhar para ele. 0 geólogo tirou-lhe os
restos da maquineta das mãos ,, depô-los aos pés.
Arreganhou-lhe depois a tacha, e assumindo um ar
de soba, acorrentou-o sem remissão:
- Vais ver como se faz ... Queres, Bé 5 ...
- Quer! E sem mais paleio pôs-se a compor-lhe o
brinquedo. Para aquilo ainda tinha ciência de
bonda. Decorridos poucos minutos o biciclo estava
remelosamente em ordem. De rodas no ar, assente
pelo guíador e pelo selim, parecia renovado. Castro
Raposo deu aos pedais e a roda motora girou que
era uma lindeza. Parecia um milagre! ... Os olhos do
pedalista falavam. Riam, riam! ... de orgulho e
gratidão. Mas quando ia a agarrar na maquineta o
geólogo impediu-o ... Assombro, revolta e
desânimo, por todo ele! -Raposo deixou-o sofrer
largos@ segundos. A seguir sangrou-o:
-Falta compor a roda da frente, Bé! ... Não vez que
também não está em ordem. Queres ir assim? ... Ah!
... Sim, sim, patrão... Compõe, Compõe! ...
Depois do susto, o alegrão assumiu proporções de
batuque por óbito de século.
Passarão Negro de Lisboa, imerso todo aquele
tempo em si, cogitava profundamente. Mal porém a
maquineta ficou em ordem, ergueu a mão e
apossou-se do diálogo. Raposo não reagiu: sentou-
se e deixou as águas correrem: -Vejamos!-, disse
entre dentes, preparando-se para os atos seguintes. -
Espalha-te mais ... pra levares a trepa que mereces.
Já viste que meteste por caminho errado, bem sei.
Veremos se és capaz de acertar na órbita justa. Vá!
Estende-te mais uma vez! -
0 Passarão entrou assim: -Olha lá, Bé! ... Castro
Raposo ficou varado: o lisboeta aprendia depressa!
Até já chamava o janota de Bé ...
- Corvo prosseguiu:
-Olha lá, W, Que vais tu fazer nos Cassinga?
Conversa é moeda universal. Não sendo falsa é
sempre bem aceite. Aquela parecia de lei.
-Comprar uns camisa, patrão. -Comprar uns
camisa?! ... -Sim. Uns camisa! -E levantou um dedo,
para que não restassem dúvidas de que se tratava
de uma camisa apenas.
-Uma camisa como esta? -quis saber o Passarão de
Lisboa, apontando para a balalaica vistosa que
trazia no corpo. Uma lisboeta apetitosa, a puxar
para fadista!
- Ah! ... Não ... Essa muito bom! -Gostas dela? ...
- Ah, ah, ah! ... Gosta. Gosta muto, patrão.
0 janota quase se babava a remirar a bala- laica
alfacinha. Mas o espertalhão do Negro de Lisboa
cortou-lhe as voltas:
-Olha lá, Cassinga é muito longe? - Pôco longe.
- E Tchamutete? ... É muito longe?
- Muto longe. -Muito, muito, muito, muito longe?
- Ah ... Não. Menos longe. -Pouco longe?
- Pôco longe. -Pouco mesmo?
- Pô ... - e suspendeu a resposta, mirando o Negro
de Lisboa, o qual, pardalão como era, deu nova
voltinha ao paleio, levando o coitado para outra
curva:
- Diz-me cá, Bé!, tu não vais a Cassinga só por causa
da camisa, pois não?
- Ah, ah, ah! e riu e bateu palmas como ainda não
fizera até ali. Dir-se-ia ter sido caçado numa ratada,
e gozar com o próprio enleio.
- Vais aos copos! ... Não vais, meu caipira?! ...
-mangou Lisboa, fazendo pasmar Castro Raposo de
verdade. (Teria havido comunicação de
pensamento?)
- Vai ... Vai nos cuca!
- Ah! ... Vais à cerveja?! ... Muito bem. Olha, já
agora, para festejar o arranjo da bicicleta, vou
oferecer-te meia dúzia de eucas ... e esta camisa!
Queres? ...
- Sim! Sim, patrão! Dir-se-ia, que lhe faltara o
ar. Parecia sufocado pela fartura. 0 choque foi tão
violento que a voz acabou por se lhe estrangular. Os
olhos saíam-lhe das órbitas vidrados na camisa do
alfacinha, quase a comiam.
Passarão Negro deixou o tempo correr...
Ultraladinamente, com a mais velhaca das
inocências, repisou na sua aliciante voz grave,
prenhe de engodo, com pausa -muita pausa e
compunção:
-Seis cucas ... Seis cucas e esta camisa ... Esta. Esta
mesmo ... Bé! ...
- Sim, patrão! ...
- Bem ... a camisa posso dar-ta já -e fez menção de
a despir. A meio, contudo, hesitou: -Que chatice! ...
Não senhor! Quero dar-ta juntamente com as cucas.
Tudo junto! Mas .... diabo!, não tenho cucas aqui!
- Ah! ...
- Não faz mal, Bé. Logo que chegue a Tchamutete,
compro doze cucas, doze, doze é melhor! ... e
doutas. Mais esta camisa! Está bem? ...
- Sim patrão!
- Vou esperar que chegue o senhor Parrana. Quando
o senhor Parrana chegar..,, dou-te a camisa e as
doze cucas.
E dito isto foi-se deitar à sombra onde o geólogo
cochilara.
Até Castro Raposo estava de boca aberta. 0 ciclista
voltou-se para ele (entre os dois, lá na dele, a
diferença não devia ser de monta) e grunhiu
embasbacado, escorrido que nem limão já gasto:
- AM ...
- Ah! ... -grunhiu o geólogo, camaradamente,
encolhendo os ombros e compondo um ar de
resignação. -Pois ...
- Pois?...
- Pois repetiu Raposo em face da evidência.
0 pedalista hesitou apenas escassos segundos. Foi
direito ao bisnáu do Passarão de Lisboa e fez o pano
descer:
- Patrão! Faz bilhete. Eu vai no Chatete. Vai já.
Memo, memo já no sô Parrana. Mukanda patrão!
Corvo fez o bilhete e o ciclista partiu.
Ademanes, ademanes!
Uma brisa descalça tateia a escuridão, afagando a
nudez concupiscente do areal ...
Ademanes, ademanes!
Perdoai-lhes Senhor. Compadecei-Vos de nós
Amen.
ADEMANES, ADEMANES! ...

Durante todo aquele dia (aquela quinta-feira


assinalada) Serra de Oliveira sentiu-se esvaído,
meio agoniado -incapaz de comer.
Nem por isso, contudo, amoleceu nos seus afazeres,
apesar de por eles, estranhadamente, experimentar
um como tabágico fastio torturado por apelos e
desdém.
Miranda -é tempo de referi-lo -revelara-se o auxiliar
de que o engenheiro se julgava carecido: um
colaborador inestimável, deveras ao vértice da
situação. De quantos anteriormente com ele
pugnaram, poucos ou nenhum o irmanaria. Castro
Raposo não se iludira: -Anacleto Miranda era de
fato um elemento precioso.
-Vale mais do que muitos engenheiros! -, comentou
Serra de Oliveira entre si, no regresso dos trabalhos,
mirando com simpatia o construtor - ao volante,
muito sereno, atento aos obstáculos do caminho. ,
Algo depois, presa daquelas impressões cruas (e da
acidez que o minava) Serra de Oliveira cardou o
pensar com nova límalha, calcínando a conjuntura:
-Engenheiros?! ... Ilusões! Em cada três só um vale a
rabiça! ... Um ... ou dois ... no máximo! Dois?! ...
Qual dois, qual aiveca romba? Uma coisa é ser
engenheiro ... e outra, muito diferente, seco
diplomado em engenharia! ...
Deixou o pensamento lavrar, e um pouco adiante
sulcou fundo:
-E o pior, o mais grave!, é que os deveras
inteligentes, tal qual os mais classificados,
promovidos pela falência, raro depuram no que
redime ... e destilam bolores, ferrugem, salitre...
-besuntando-se de fedorência! Cebol ...
Salgou e remoeu na idéia até sangrar conclusões
sombrias:
-Sem tato depois, nem senso das responsabilidades
em si, perspectivas corretas dos valores humanos,
límpida capacidade de decisão..., afundam cada vez
mais o desastre: a decadência que nos dessora!
Atirou o cigarro pela janela e acendeu outro
maquinalmente, alheado por completo do
companheiro, da própria ambiência, de si mesmo
até -mergulhando mais na descrença.
-Refratários da tarimba das obras, foragidos de
empresas sem maleitas, inválidos na ação direta
basal.... nutrem-se de burocracias e fumos de
laboratório, de cambulhada com ordenAdores ... e
acoitados em arremedos de política e cientismo vão
retorcendo mais e mais, sempre para pior!, os
astrabismos porretas mandantes, codilhando-nos a
vida! Pobres de nós! ... -
Exalou um suspiro acético e aduziu: -São zangões
sem nervo nem ferrão! ... Mas grimpam! Sarna! ... E
mandam!... -escudados por fanfarras de jograis ... ao
clangor de trombetas cangalheíras! ... Os resultados
estão à vista: atrasos progressivos! E loucuras,
peneiras, despudor... -e este maldito improviso em
que nos fizemos mestres, capaz de operar milagres
(sem dúvida!), mas que nos impede o acesso às
craveiras decisivas. Nunca, por isso, chegamos a
100% seja do que for. Até aos 90, ou mesmo 94, por
vezes 95 ... - vá lá, vá lá ... Mas como os 5% finais é
'que depuram, revelam e definem a qualidade,
vamos progredindo ... para a cauda! -industriando
escórias: rebutalhos tècnopolíticos! Resultado?... -0
que se vê! ... Bolas! -
Fez um gesto brusco, descendo o punho como quem
despede um murro no tampo de um estirador,
esquecido mais ainda, se possível, tanto de Miranda
como de si. E cerrando fortemente o queixo,
desabou:
-Porque raio de carga de água hei-de eu querer
endireitar o mundo? Merda para tudo isto!
Tecniqueira, burocracite, política, políticos,
mandarins, mandaretes ... e mais todos os raios que
os partam!-
Miranda não resistiu ao impulso para o despertar.
Voltou-se para ele, e assim que os olhos se
cruzaram, tateou:
-0 senhor Engenheiro está hoje com mau parecer ...
-Há?! ... -rouquejou Serra de Oliveira ainda ausente.
-Disse eu que o senhor Engenheiro estava hoje com
mau parecer!
- Ali! ... Não estou nos meus dias felizes, não. Não
sei que tenho ... nem verdadeiramente o que sinto.
Sinto-me ... esquisito! Mais esquisito do que mal.
Deve ser a porcaria da jambite: essa merda que
vampira por aí ... Oxalá o Pinto de Castro venha
hoje ... Só me entendo com ele ...
E a conversa descaiu. Miranda não achou como
prosseguir. Desejava de todo o coração confortar
aquele homem torturado, chefe lealissimo, aberto,
cem por cento exempla, seu amigo já. Mas conio?... -
Há lá busca mais cega, escalada mais traiçoeira,
salto mais ao incógnito que o vôo, o mergulho no
dédalo dos sentires esse mundo fugaz, onipresente e
avassalador, das realidades impalpáveis? ...
Serra de Oliveira, não obstante, dir-se-ia tê-lo
compreendido: interpretado os sentimentos, as
intenções e o próprio embaraço do companheiro.
Apartou-se de si, contemplando-se embora, e
franzindo um sorriso palustre abordou-o com
irmandade:
- E você, Miranda..., que tal se vai dando por cá?
-0 melhor possível, senhor Engenheiro ... Apesar da
azáfama e dos sarilhos dos últimos dias, e de todas
estas endiabradas transições de clima, sinto-me fino.
Completamente em formal Remoçado até! ... Chego
a ter a impressão de que nunca me senti tão bem.
A serenidade, o vigor, a saúde de Miranda, tiveram
o dom de abrolhar Serra de Oliveira:
-Você devia estar necessitado de ares novos, como
este. A pedir esta mudança radical .... ou outra
qualquer, em forma! Os corpos..., o espírito..., as
próprias instituições, quando não mudam ...
definham, e depois fenecem. Começo por isso a
convencer-me de que para os meus males (esta
insatisfação, o nervosismo, a impaciência, a
quebreira que àltimamente decidiram parasitar-me)
o remédio será uma desclimatização em forma,
também. Outros ares! Bons ou maus ... pouco
importa. Para mim, que já saturei, que atingi quase
o limiar da improficuidade, a própria fronteira da
ineficiência .... serão benéficos. Salutares! ... Pelo
menos por uns tempos. Quando vim para aqui,
apesar da precaridade das condições, dei-me
também admiravelmente. Não me admiro por isso
da sua euforia... Oxalá ela dure o que deve. Aquilo
que lhe convém ... A nos convém--a nós, claro está.
- Há-de durar ... Pelo menos para aqui, para A
Jamba. Um ano passa depressa, senhor Engenheiro.
- Lá isso é verdade. Sobretudo se o ambiente agrada
e os companheiros não são todos -amigos de
Peniche ..., ou coisa pior, como às vezes sucede. Que
tal os seus camaradas?
- Gente magnífica! Então os da camarata são
estupendos. Do melhor que topei em toda a minha
vida. E além de estupendos, curiosos. Isto é,
interessantes! Muito diferentes entre si e no entanto
qual deles melhor! ?
-Quem são?
- Um eletricista de nome Freixo, e dois operadores-
mineiros igualmente hábeis e pundo norosos, sem
nada mais de comum entre si. Um deles, angolano-
mestiço, Ilídios Soares (de alma inquieta e
propensões ao subjetivo) com ânsias e vocação de
natureza técnica. Outro, João Correia, beirão-
serrano, calmo, telúrico (todo confiança e bom-
senso) com fibra de rancheiro e mente de agricultor.
Todos, contudo, verdadeiros camaradas. Amigos,
na melhor acepção da palavra. Não sei se os
conhece ...
- Conheço! ... Conheço-os até muito bem.
0 Freixo, desde há um bom par de anos. E os outros
por serem dos meus preferidos quando preciso de
ajuda mineira em domínios terraplenágicos. São
bons moços, de fato. E debaixo do ponto de vista
profissional, muito competentes. Mas... - o tom da
sua voz mudou - pelo menos à hora das refeições,
você arrancha sobretudo com o Rodrigues ...
-Dou-me de fato bastante bem com ele.
- Não admira. Ele dá-se com toda a gente e parece
beneficiar de tendência manifesta para com recém-
chegados. Não sei se por impulso ... ou cálculo!
Funciona como um dom. A Companhia devia
mandá-lo especializar-se, tanto mais que fala bem
línguas. Dava uma riquíssima -utilidade-, além de
-ornamento-, em public relations. - (Sorriu, gozando
uma pausa). - Conhece mais de meio-mundo:
metade dos homens e a totalidade das mulheres!
Bem disposto já, e até mangão, riu abertamente,
tesourando a seguir:
- Tem no entanto, o que também é deveras
manifesto!, um fraco muito especial pelas Evas mais
novas, quando bonitas. Mas .... deixe-me que lho
diga!, você, Miranda, parece que não está disposto a
ficar-lhe atrás ... _ Sério. ! ... Porque diz isso?
-interrogou o construtor, enleado, visto nunca o
terem aferido assim, nem como tal se pensar.
-Ora porquê?! ... Mal chegou fez logo amizades com
as moças mais jeitosas da vila!
Miranda enleou-se mais: tufou. os ombros... e
cerzindo a fronte à laia de protesto, desculpou-se:
-Só conheço as que o Rodrigues me apresentou ...
- Diga-lhe que é o Rodrigues ... Sempre que o vejo
lá em baixo, está com escolta feminina! E da
melhor. Da mais raffinée!... Quando não é a Albina,
é a Clotilde; quando não é esta, é aquela ..., ou
outra qualquer, das pinocas do -grupinho da
entrada-. Parece-me no entanto que é sobretudo
para a Albina que você se perfila mais, Miranda ... E
enfim, tenho de reconhecer que manifesta bom-
gosto ...
Apesar da entoação francamente camarada, um cibo
reinadia, de Serra de Oliveira, Miranda perdeu todo
o à -vontade, deixando transparecer o embaraço que
o despira. Prurido até ao imo, velou-se num
mutismo sorridente, que, não obstante os seus
esforços, retratava a cores o desconforto e a
confusão que o rasgaram -perturbando o
engenheiro. Não estava nos propósitos deste feri-lo,
ou sequer, no mau pendor, desfrutá-lo. Mudou por
isso de tom, procurando varrer a clareira:
-A propósito, você sabe o que se passa com ela, não
sabe?
Miranda compreendeu a mensagem. Fez um esforço
para corresponder, mas oscilou:
Pretende ... referir-se à doença? ... Exatamente. Sei ...
Estavam de novo irmanados. 0 silêncio prolongou a
conversa, isolando cada um em seu claustro de
meditações.
Açoitado por vislumbres da verdade, Serra de
Oliveira ungiu-se, ardeu ... e por fim peregrinou
-rumo aos rumos do amigo - votado a confortá-lo,
embrenhando-se nas florestas do sentir: quase como
quem fala só para si, pendulou a meia voz:
-Uma rapariga tão válida ... Tão nova
Tão sensata! ...
Silêncio de penedias... Decorridos áridos segundos
gangrenados, a luz daquela mesma voz orvalhou:
-Oxalá o Pinto de Castro esteja no caminho da
verdade ... Estou ansioso que chegue ... Não só por
mim, como já referi, mas também para saber se os
resultados das últimas análises confirmam as
promessas dos exames clínicos. Sabe?, parece que
há casos em que o mal pode ser travado ... E o Pinto
de Castro pareceu-me decididamente convencido de
que a droga que lhe receitou ... esteja de fato a
produzir efeitos mais que passageiros! Não se
trataria apenas de esperanças... - (Apesar do tempo
decorrido não ir além de umas quantas semanas, e
de as doses ensaiadas serem das mais baixas, dir-se-
ia tudo levar de fato a crer que Albina estivesse a
reagir muito favoravelmente). -É verdade. Pelos
vistos, os médicos estariam mas é com receio das
terapêuticas radicais. Principalmente de doses
elevadas do ingrediente por onde começaram. Não
me lembro do nome ... Há vários já. Suponho que
até muito diferentes entre si, visando embora, cada
um lá de sua maneira, controlar a proliferação
desenfreada dos glóbulos brancos ... 0 Pinto de
Castro, pelo menos, parece confiar sobretudo no
fortalecimento de virtualidades da natureza, cuja
capacidade, se assim se pode dizer, estaria apenas
debilitada .... porventura comprometida. Não se
trataria por isso de a substituir (o que seria vão),
mas de a coadjuvar, ou estimular .... na esperança de
a não comprometer mais. Isto é .... de a recompor;
de a reavivar! Não sei bem. Olhe, ele estava
animadíssimo! As sugestões, os resultados, ou lá o
que é ..., do último exame clínico, seriam de tal
modo animadores, promitentes!, que os médicos
acharam que nem convinha dar-lhos a conhecer,
veja lá! ... Guardaram tudo com eles. Claro, você
compreende..., isto é estritamente confidencial ...
- Perfeitamente... - sussurrou Miranda, como num
voto, só olhos e ouvidos, esquecido já de si, do
próprio companheiro!, de todo em todo engolfado
no drama da paciente.
Serra de Oliveira deixou então o silêncio falar... A
carrinha ultrapassara já o destino e rodava para
norte, subindo a via exterior. Fez o circuito
completo e depois voltou, descendo pela lavaria, de
novo em direção ao centro urbano. Por alturas do
bairro ferroviário, frente à estação de passageiros,
Serra de Oliveira reatou o diálogo, guardando o tom
anterior, no fio do assunto -como se a conversa não
fora interrompida:
-Claro!, em face do que se lhes deparou, os médicos
foram unânimes quanto à conveniência de se
repetirem as análises simultaneamente em Luanda e
Nova-Lisboa. Se forem concordantes, e confirmarem
as melhoras (se melhoras se lhes pode chamar), a
Albina poderia ter ainda ... anos de vida para viver!
Poderia até, em não sei que hipóteses mais
favoráveis (que só tempo identificaria), durar o
suficiente para adquirir sérias probabilidades de
não morrer do mal.
Novo silêncio descalço -tateando incógnitas num
lusco-fusco de auroras: -Corações a orar..., olhares
perdidos .... sopros suspensos ... uma voz sumida...
e esta pergunta ansiosa:
- Quando é que os médicos a viram pela
última vez ...
A interrogação de Miranda foi tão sangrenta que
Serra de Oliveira não respondeu logo. Tinham
chegado ao recinto fronteiriço à construção onde
funcionavam os serviços técnicos, e o construtor,
sem dar por isso, estacionara a viatura logo à
entrada, barrando por completo os acessos ao
parque. 0 protesto de uma buzina, vibrando à
retaguarda, cindiu-o em alvoroços. Meio cá meio lá,
repôs o motor em marcha atabalhoadamente,
.gaguejando desculpas. Avançou. Premiu o travão e
fez alto no retângulo devido, reservado ao
engenheiro. Este, contudo, não saiu: permaneceu
onde estava, recostando-se para trás. Miranda refez-
se ... De olhos nos olhos do amigo esperou pela
resposta retardada.
Serra de Oliveira, entretanto, perdera o fogo da
unção. Os incidentes da manobra e os ralhos da
buzina haviam-no desencantado. 0 rogo daqueles
olhos, porém, refizeram a magia: perguntou
docemente:
- Onde ficamos? ...
- Tinha-lhe perguntado quando é que os médicos
viram a Albina pela última vez.
- Ah! ... Isso mesmo. No dia em que você chegou.
Mas o caso vem de trás. Cada um tinha lá a sua
preferência por certa droga, determinadas
dosagens, etc. Mas como tiveram de assentar numa
trajetória concreta, começaram por um esquema
baseado nas idéias do Pinto de Castro, e este ficou,
ipso fato, por assim dizer, o responsável principal-,
além de -chefe- do grupo.
0 tratamento principiou: Menezes e Lezaola, sempre
atentos..., mas a leucemia, segundo as análises, a
progredir: cada vez mais glóbulos brancos, e o
estado geral dela a descer. A certa altura, porém, as
condições físicas da moça pareceram evoluir para
melhor. Vigilância mais apertada. As melhoras
acentuaram-se..., e Menezes e Lezaola deixaram de
ter dúvidas: admitiram que o ensaio tivesse
desencadeado um processo favorável! (Foi, salvo
erro, no princípio da semana passada). Observaram-
na, tornaram a observá-la, conferenciaram..., e
escreveram ao colega. No dia em que você chegou
examinaram-na exaustivamente outra vez,
reforçando as convicções a que já haviam aderido. 0
Pinto de Castro vinha eufórico! Ponha-se no lugar
dele: são os colegas a admitir que teria acertado em
cheio! ... Chegou em brasas. Viu-a também, claro
está. Impunha-se repetir as análises! ... E se elas
confirmarem os resultados da observação clínica ... -
e ficou-se pela reticência, deixando ao amigo
glabros descampados para dedução.
-Mas eles admitem que ela não esteja
definitivamente condenada?
-Bem..., penso que admitem ... Pelos vistos, como já
referi, há várias formas de leucemia. Umas, por
assim dizer, galopantes ... contra as quais pouco ou
nada se pode, pelo menos por ora. Outras, menos
ferozes, passíveis já de certo amordaçamento,
consentindo apreciável extensão da vida. E por fim,
se bem os entendi, as de evolução lenta, das quais,
algumas, segundo parece, poderiam ser já de tal
modo retardadas (se não travadas ... ) que a vida
dos pacientes quase deixaria de estar sob ameaça...
Mas há mais! ... Creio que se têm descoberto
ultimamente drogas e processos de combate à
leucemia de tal modo promissores, que os médicos
acreditam que a batalha contra o mal está prestes a
ser ganha. Todavia, mesmo que a vitória tarde um
pouco, ou muito até! ... (sabe-se lá?...) os casos
menos malignos (eles até já lhes chamam
benignos!), com os meios atuais ... teriam,
porventura, deixado de constituir o espectro
inelutável contra o qual até há pouco nada se
podia... -e puxou por um cigarro, com todos os
vagares, ficando-se por aqui, como à espera da
reação do companheiro.
Apesar da cautela, da própria ambigüidade, da
nenhuma-certeza das confidências de Serra de
Oliveira, Anacleto Miranda sentiu uma paz, um
conforto, um consolo imenso expandir dentro de si.
Dado como era a pressentimentos e fé no
sobrenatural -o que, ao fim e ao cabo, a cada passo,
transcendentemente, parece envolver superlúcidas
intuições da verdadeira verdade- viu explodir,
cósmicamente, fora de si também, aquela convicção
obscura que já o tomara ... e esta certeza raiar:
-Albina não está condenada! De modo algum
prestes a morrer!- Não fez por isso qualquer esforço
para velar a aurora: -Fitou o companheiro
ternamente, invertendo as -realidades-, e consolou-o
com doçura:
- Meu bom amigo ... os resultados das análises vão
confirmar as esperanças dos médicos. A Albina não
vai deixar este mundo!
Subjugado pela voz, pelo olhar, pelo dito do
colaborador, Serra de Oliveira nem soube que dizer.
Abriu e fechou uns quantos gestos desconexos,
sorrindo -acendendo e apagando a expressão - e,
muito a custo, pudicamente, forçando as nuvens,
tremeluziu:
-0xalá ... Foi a vez de Miranda sorrir: -Um sorriso
cálido, inspirado, envolvente..., que desabrochou o
silêncio, fundindo-os no mesmo sentir.
E assim ficaram, longos, muito longos segundos
pacíficos -até Miranda (ele desta vez!) impor a
realidade:
Disse que o Dr. Pinto de Castro chega hoje? ... Sim ...
Isto é, hoje ou amanhã de manhã, para se despedir
do Professor Sereia. Deixe-me ver... -e consultou o
relógio. -Já são horas! Mas não dei pela chegada de
qualquer avião! ... Se já veio, está de certeza no
hospital. Ou com o Professor ... 0 Rodrigues deve
saber. Vamos perguntar-lhe?
Vamos lá. Abandonaram a carrinha e
encaminharam-se para o departamento de obras
fronteiro. Rodrigues foi explícito:
- Não ... 0 senhor Dr. Pinto de Castro não veio.
Chega amanhã de manhã, por volta das oito horas,
a bordo de um táxi especial. Do avião que há-de
levar o senhor Professor Sereia a Tchamutete, onde
almoçará.
-A bordo de um táxi especial? -estranhou Serra de
Oliveira.
-Sim. 0 Sete-Meses está com qualquer deficiência na
rádio. Estão de volta dele. 0 Nogueira disse que o
-brinquinho- não estava em condições de voar. Sabe
como ele é, não sabe? ... Cem por cento meticuloso.
É o mal dos profissionais de escola. Se fosse o Corte-
Real ...
-E para que horas fixou o -senhor Professor a
partida? -quis saber Serra de Oliveira, passando das
insinuações de Rodrigues sobre os pilotos -de
escola-, interessado apenas na viagem a Cassinga-
Sul, que lhe dizia respeito, visto cumprir-lhe estar
em Tchamutete quando Sereia passasse por lá.
- Para as dez e trinta. Como sabe (é do programa), o
senhor Engenheiro, o senhor engenheiro Mena e o
senhor comandante Serrão, além do senhor
engenheiro ' Corvo, claro está!, vão com o senhor
Professor. Terão de regressar por terra ... Exceto o
senhor engenheiro Corvo, que acompanhará o
senhor Professor a Moçâmedes (a fim de lhe
mostrar o porto mineiro) e depois a Luanda, onde
devem chegar ao fim da tarde (conforme também o
programa inicial), segundo me informou há bocado
o senhor comandante Serrão, para se alertar
Moçâmedes e Luanda.
-Há-de ver muita coisa, não há dúvida! - escarneceu
Serra de Oliveira, de novo sob a acidez da jambite. -
Com um programa desses ...
- Tem de ser assim - temperou Rodrigues, fazendo
honras à função. - 0 Senhor Professor tem de
apresentar cumprimentos de despedida ao senhor
Governador Geral na manhã seguinte. No sábado.
A audiência está marcada para o meio-dia. E não se
pode alterar! ... Consta do programa elaborado em
Lisboa ...
-Fixe! -rematou Serra de Oliveira. -Mais alguma
coisa, senhor Engenheiro? -Não, obrigado. Isto é, o
-senhor Professor- vai jantar à sala, ou ainda come
no apartamento?
- Ah! ... Já me esquecia. Valha-me Deus! Vai à sala.
Oito e meia em ponto ... Tem de levar casaco e
gravata! Estamos aflitos por causa do senhor
engenheiro Corvo e do senhor Dr. Castro Raposo.
Receia-se que não possam chegar a horas. Como só
há pedaço se soube que o senhor Professor ia jantar
à sala, e eles mandaram dizer que jantavam em
Tchamutete, não se sabe o que sucederá. Saíram
com o senhor engenheiro Roxo ... não estão certos
para onde. Se para o
Mavulo..., se para o Ouro..., se para outro jazigo
qualquer. Mas o Palhota despachou jeeps e
carrinhas com emissários para todos os lados. Não
sabe porém se os encontrarão... Eles ficaram de
regressar ao acampamento só à noite ... E tanto
podem seguir as picadas ... como os trilhos da
prospecção, ou mesmo andar a corta-mato! ...
Perderam muito tempo na viagem para lá, Parece
que o senhor engenheiro Corvo deixou ir o carro à
valeta e bateu num talude. Mas conseguiu safar-se!
... A pancada e o raspão, no entanto, fizeram mossa.
Aquilo não é carro para estes caminhos! ... Uns
quilômetros adiante, cedeu! ... Passava das duas
quando chegaram a Tchamutete. 0 Parrana é que os
foi rebocar. Só lhes ficou um bocado da tarde ...
Está-se mesmo a ver que não vai ser possível
chegarem a tempo ... Mesmo que dessem com eles!
0 senhor engenheiro Mena parece muito
preocupado.
-Catita... -trauteou Serra de Oliveira com ar gozão.
-0 Professor é muito capaz de julgar que se trata de
outro escapanço do nosso amigo Castro Raposo:
outra deixa, mesmo a propósito, para não vir ao
jantar! ... Quando foi da chegada não escondeu a
gastrite, -0 Doutor Castro Raposo tinha obrigação
de prever que tomando um suporífero podia não
acordar a tempo do banquete! Além disso, sabía
perfeitamente que havia de estar a dormir quando o
meu avião chegasse!-. Catita ...
É o que pensa o senhor engenheiro Mena ... - aditou
Rodrigues com máscara de compunção.
- Mas está-se mesmo a ver que não há qualquer
propósito de ...
-Diga-lhe que não há -cortou Serra de Oliveira
divertido. -Isso é o que lhe parece, meu caro
Rodrigues! Essa opinião corresponde ao juízo de
qualquer mortal. Se você algum dia chegar a
Professor, passa a ver os fatos, os homens e o
mundo com outros olhos. As coisas não são o que
são. São o que se pensa que sejam! Bem ... logo à
noite casaco e gravata, não é verdade?
- Às oito e meia em ponto.
- Fixe ... Até logo, Rodrigues.
- Até logo, senhor Engenheiro. Anacleto Miranda e
Serra de Oliveira abandonaram o escritório,
despediram-se e cada um recolheu aos seus
domínios - a fim de tomar banho e se lisboar para a
função das -oito e meia em ponto-.
Trinta minutos precisos depois das oito, o Professor
emergia na sala do hotel para de novo honrar e luzir
ao seu público. Olímpico e sereno, o seu todo não se
alterara. Parecia no entanto mais fresco, e, se
possível, mais professoral ... desta vez: mais patrício
do que na tarde festiva da sua memorável chegada.
A refeição decorreu sem nota digna de registro,
além da ausência de Corvo e de Castro Raposo,
cujos lugares de honra, de um e outro lado de
Sereia, penalmente vazios, acusaram pelo repasto
fora a heresia da não-comparência. Mas um e outro,
contudo, timbraram em vir. Chegaram tarde, porém
- apesar de não terem comido nem utilizado o
bólide na viagem de regresso. Vieram em duas
carrinhas de tração total, timona das por -sàcristas
encardidos-, vezeiros nas andanças do sertão.
Assistiram à sobremesa e ao café. A sua odisséia
filtrou sortilégios. E o Professor (não fosse ele
lusitano!), acabou por levedar, panificando (fadista
já!), o coração numa viola! -todo ele sensibilizado!
Não falou de etnografia, nem de moral, ou tão-
pouco de minérios. Mas riu a bom rir, quando o
geólogo, no seu estilo cáustico muito pessoal,
narrou a despistagem do bólide, a avaria
consequente, as professoranças mecanófilas, as
fintas ao ciclista e a dialética da camisa, das cucas e
do dinheiro.
Serra de Oliveira fingiu que comeu. 0 mal-estar que
desde aquela manhã o esvaía não deixou um
instante de o sangrar. Fez coro, apesar disso, e
farpeou a duas mãos, do rabo à cabeça, a propósito
da aselhice de Corvo nas faenas da condução. 0
Negro de Lisboa sorriu:
- Meu caro Serra de Oliveira, você é dos que pensam
que -quem tem unhas é que toca guitarra-. Está
muito enganado. É quem a tem! (Claro! -a -guitarra-
liça era o bólide).
Clotilde, AIbina e duas amigas mais, com Freixo,
Miranda, Rodrigues e um analista recente, à mesma
mesa, fizeram quanto puderam para honrar - a
cozinha e a copa - e a atmosfera de brio que radiava
das gravatas, dos casacos, dos vestidos-de-sair, dos
paramentos da função. Todos muito alegres,
desfrutando-se e encarecendo-se, eram criaturas
-felizes-: homens e mulheres -sem problemas.
Ilídio, contudo, comeu e saiu. Tinha um encontro
marcado: um longo serão com ginásticas de frações
e regras-de-três.
Correia, de relações cortadas com o -tasco-, foi tratar
de bois com o pai de Alzira.
Os mais ... como Deus quis. No céu ... uma Lua
exangue. Fogueiras nas senzalas. Tange-ta-tangue,
tangue-ta-tangue ...
Muito depois da meia-noite, Marques da Silva, o
topógrafo-chefe -um dos colaboradores mais diretos
de Serra de Oliveira e seu vizinho de apartamento-
ouviu rumores estranhos do lado de lá da parede,
nos cômodos do engenheiro. Como este morava só
(a família em Nova Lisboa) e era de bom-sono,
Marques da Silva, recordando o mal-estar que
durante o dia da véspera macerara Serra de
Oliveira, suspeitou que o vizinho estivesse com
insônias, ou porventura pior. Entrou em alerta ...
Aos rumores, pouco depois, juntaram-se gemidos!
Marques da Silva acordou a mulher e pediu-lhe que
escutasse também. Queria certificar-se de que não se
enganara.
Não havia dúvidas! - Serra de Oliveira estava em
dificuldades.
0 topógrafo-chefe levantou-se e foi-lhe bater à porta:
Truz-truz ...
- Senhor Engenheirol ... Está doente? ... Precisa de
alguma coisa? ...
Por resposta -rumores mais estranhos ainda, sons
esquisitos, meios-ais e roncos abafados, como de
apelo, relativamente perto da entrada (longe do
leito!) como avançando sobre a portal
Marques da Silva entrou em pânico. Chamou mais
alto, mais forte, gritando quase... -uma angústia fria
a gelar-lhe a alma, e um tremor convulso pelo corpo
todo:
- Senhor Engenheiro! Senhor Engenheiro!
Responda! ... Que tem? ... -e batendo com os
punhos na almofada superior, gritando já, atroou a
noite, fazendo a porta vibrar.
Um encontrão. Outro mais forte! Um terceiro mais
forte ainda! ...
Resistência calma de parafusos e ferraria. Marques
da Silva afastou-se - a fim de tomar balanço e
derrotar pela força aquela obstinação.
- Antônio - gritou D. Alchía (a esposa) alarmada
pela perspectiva do arrombamento.
- Vê lá o que fazes! ... - e travou-lhe o impulso com
desespero. - Espera! Eu vou lá dentro buscar a chave
do pessoal. Deve estar no chaveiro da copa ...
-Vai então. Mas corre! Depressa! ... D. Alcina partiu.
Não deu porém vinte passos. A voz do marido,
rompendo lá de trás, quase a sufocou:
- Olha! ... e não estiver lá acorda o pessoal! Mas
corre! ... Se não arrombo a porta!
A pobre senhora abalou outra vez. Ia sem fala.
Marques da Silva tentou decifrar o mistério através
da janela. 0 reposteiro mal corrido abria uma seteira
tentadora. A ausência de luz, porém, cegava
totalmente o interior ...
Os rumores e os gemidos atingiram a porta ... Sons
abafados na couceira .... um rocegar mais em cima
.... um baque.
Nova tentativa esfacelada ... Fantasmas na
fechadura..., outro baque. Portas abrindo, à
esquerda e à direita ... Vozes cruzadas ... Vultos em
redor.
Em desespero já... -Marques da Silva pronto de
novo para o arrombamento! Não teve tempo de
recuar: -A fechadura estalou e a porta cedeu
-ouvindo-se outro urro e um baque mais forte:
Cinco dedos em sangue, apontados para fora, junto
ao chão, cunhando uma fresta!, impediram a porta
de refecharl
Marques da Silva empurrou-a brandamente ... e
recolhendo aqueles dedos, arrastou o fardo humano
prostrado.
Sem fala, de borco, sem movimentos quase ... -Serra
de Oliveira moribundo!
Todo ele era sangue. Sangue pela cara, pelo tronco,
pelas mãos, nas roupas, pelo chão além! ...
Marques da Silva pegou-lhe em peso e estendeu.o
no sofá.
Vozes, gente, atropelos, tumulto ... Correrias para os
'médicos, à toa..., para o hospital!
Sangue escorrendo lentamente da boca do
moribundo A rotura de uma úlcera gástrica, e a
perda de vários litros de sangue, puseram aquele
gigante nos umbrais da Eternidade.
Transfusões sobre transfusões. Medo, lágrimas,
ansiedade ...
Já era dia -e o Sol raiava - quando a primeira
esperança alvorou.
Eram oito horas precisas quando Corte Real, aos
comandos do seu novo avião, muito sério, deslizou
na pista da Jamba. Trazia Pinto de Castro. Durante a
viagem quase não falaram-se. A rádio fizera-os
calar.

Fim.

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