Você está na página 1de 2

RESENHAS 427

KUPER, Adam. 2002. Cultura, a visão pologia norte-americana. A primeira


dos antropólogos. Bauru, SP: EDUSC. parte contém dois bons capítulos dedi-
cados à genealogia do conceito de cul-
tura. No primeiro, passamos pelos inte-
Roberta Bivar C. Campos lectuais franceses, alemães e ingleses,
PPGA /UFPE como é de praxe em toda genealogia
do conceito. O segundo, mais original,
A EDUSC mais uma vez oferece aos lei- fornece-nos o desdobramento mais re-
tores de língua portuguesa uma publi- cente do conceito via a tradição parso-
cação relativamente recente no cenário niana que influenciou vários antropó-
internacional: Culture: the anthropolo- logos. A segunda parte, dedicada ao
gist’s account. Em português, o mais re- que Kuper chama de experimentos, ele-
cente livro de Adam Kuper publicado ge Clifford Geertz, David Schneider e
no Brasil tem como título Cultura, a vi- Marshall Sahlins como os herdeiros de
são dos antropólogos. Adam Kuper é Talcott Parsons, e a cada um desses teó-
nosso conhecido não tanto por seus tra- ricos dedica um capítulo (capítulos 3, 4
balhos etnográficos baseados em pes- e 5) onde descreve suas carreiras, idéias
quisa de campo na África e na Jamaica, e contribuições no contexto intelectual
mas por conta de seus trabalhos sobre a e institucional em que trabalharam. Es-
antropologia britânica, mais especifica- sa parte oferece ao leitor um certo des-
mente, pelo seu livro Antropólogos e an- conforto. Ao contrário dos capítulos de-
tropologia (originalmente publicado em dicados a Geertz e Sahlins, em que Ku-
1973). Tal qual este último, Cultura, a vi- per nos oferece uma análise crítica sé-
são dos antropólogos é uma história crí- ria e por vezes até minuciosa da traje-
tica da produção antropológica, e não tória intelectual desses teóricos, aquele
dispensa ironias. Em verdade, trata-se consagrado a David Schneider parece
de um desdobramento do último capí- ter sido escrito às pressas, para dizer o
tulo do primeiro livro onde já estão co- mínimo. Seu conteúdo é desrespeitoso
locadas suas idéias sobre o desenvolvi- à pessoa de David Schneider. Kuper
mento recente da antropologia a partir decepciona e infelizmente não nos ofe-
de 1970, quando os antropólogos, em rece uma análise crítica das idéias de
face do processo de descolonização, se Schneider, mas uma biografia com co-
viram forçados a repensar a natureza mentários psicanalíticos de profundi-
de seu objeto de estudo. Se o primeiro dade questionável, fazendo sugestões
livro é obra de sua juventude e tem por sobre a personalidade de Schneider
objeto de análise a antropologia britâ- que não vejo como possam contribuir
nica, em especial os antropólogos de para a compreensão do impacto de
orientação estrutural e cultural-funcio- suas idéias nos estudos sobre parentes-
nalista, o segundo, obra da maturidade co, que Kuper faz questão de omitir.
do autor, trata da antropologia america- A introdução e os capítulos 6 e 7 es-
na, em especial de David Schneider, tão organicamente ligados e situam
Clifford Geertz e Marshall Sahlins, her- Cultura, a visão dos antropólogos em
deiros intelectuais, segundo Kuper, de um debate maior sobre os limites e im-
Talcott Parsons. passes que a teoria antropológica en-
O livro está organizado em torno do frenta na atualidade, e que tem como
desenvolvimento e dos usos da idéia foco a crítica ao conceito de “cultura”.
de cultura, particularmente na antro- Tal crítica tem como alvo as vertentes
428 RESENHAS

teóricas que privilegiam a função cog- usual que as entende sob a ótica bipo-
nitiva, mental e representacional da lar do conflito entre familismo e ordem
cultura. Kuper, em particular, parece pública, como remanescente arcaico do
mais preocupado com a banalização e poder privado em face da suposta fra-
vulgarização do conceito, e culpa em gilidade do poder do Estado, Marques
grande medida os estudos culturais e o expõe ao leitor um complexo painel
multiculturalismo por tal efeito perver- formado por fluxos de relações de dife-
so. A cultura por estar em toda parte te- rentes ordens — familiar, política, jurí-
ria perdido seu potencial analítico e ex- dica, moral — que se sobrepõem, cola-
plicativo. Ao mesmo tempo, o próprio boram, opõem. Seguindo com segu-
potencial liberal que se pensa existir no rança o tema épico sertanejo — e obje-
conceito de cultura, em especial se to clássico do nosso pensamento social
comparado ao conceito de raça, não é — das lutas de família, o livro oferece
mais garantido, podendo o conceito, in- uma compreensão abrangente dos
clusive, servir para oprimir e subjugar. meios de produção e reprodução de um
A cultura tal qual a raça, por mecanis- universo social localizado que, no en-
mos distintos, fixa a diferença. Kuper, tanto, se articula com a sociedade na-
na verdade, é fiel à tradição britânica, cional e a operacionalização de suas
privilegiando as relações sociais, o jogo modernas instituições.
de interesses econômicos e políticos. O A pesquisa realizada no sertão de
forte sociologismo de Adam Kuper o Pernambuco resultou em uma etnogra-
faz “jogar fora a criança (cultura) junto fia minuciosa, traçada através da intri-
com a água do banho”. Ao final da lei- cada trama de diferentes episódios, das
tura não temos uma simples genealo- sutis mas significativas variações de in-
gia do conceito, com suas aventuras terpretação dos atos e motivações ex-
acadêmicas e transformações, mas um postas nas narrativas, das ambigüida-
ataque consciente ao movimento pós- des expressas em intervenções inusita-
moderno em favor de uma antropolo- das de agentes estatais e no modo de
gia sociológica, comparativa. apropriação do conflito pelos poderes
do Estado — resultante do recurso que
os próprios intervenientes locais fazem
MARQUES, Ana Cláudia. 2002. Intri- do seu aparato jurídico-administrativo.
gas e questões: vingança de família e Assim, a autora faz uma opção inequí-
tramas sociais no sertão de Pernam- voca pelo deslindamento do fenômeno
buco. Rio de Janeiro: Relume-Dumará. das “brigas de família” por meio da ló-
352 pp. gica dos atores, o que lhe permite reve-
lar a dinâmica de funcionamento dos
conflitos e, resultado apenas aparente-
Christine de Alencar Chaves mente paradoxal, iluminar as interco-
UFPR nexões com a sociedade abrangente
permanentemente em jogo na consti-
Originalmente uma tese de doutorado tuição de comunidades locais.
defendida no PPGAS/MN/UFRJ, o li- O texto expõe as complexidades do
vro de Ana Cláudia Marques apresen- tema e a labilidade das categorias por
ta um tratamento inovador do fenôme- via de uma sucessão de casos paradig-
no das “brigas de família” no sertão máticos que, no intrincamento concreto
nordestino. Contrariando a perspectiva dos atos e significados, vão paulatina-

Você também pode gostar