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A tapera resistia ao tempo encravada no meio do matagal.

Assolada por ratazanas, tão


sombria quanto a escuridão, marcava os tempos cruéis dos açoitamentos, das torturas e das
mortes de escravos fugidos. As paredes caiadas, agora enegrecidas e com o reboco se
desmoronando, escoravam as telhas quebradas de barro cozido. Uma janela de madeira
apodrecida pendia-se ao lado da entrada, uma abertura negra, densa, sem porta. Seu aspecto
sinistro afastava a vizinhança, que procurava construir suas casas distantes daquele lugar
amaldiçoado. Ninguém sabia quem a havia construído. Residia ali um espírito maligno,
segundo diziam os relatos da época.

Contava-se que, nas noites sem lua, um grito horripilante de lamento vindo de dentro da
tapera espalhava-se pelo vale. Nada se movia. As criaturas encolhiam-se, paralisadas pelo
pavor daquele ganido congelante. Um silêncio alucinador se fundia com as trevas. Quem se
arriscasse a olhar pela janela de suas casas, veria algo sobrenatural que se movia lentamente
na frente do barraco, acompanhado por enormes ratas negras. Sua forma etérea, escura,
adquiria aparência humana, de cabelereira escura, tão longa que alcançava seus tornozelos. A
figura demoníaca delineava-se na escuridão por seu negror profundo, mais profundo do que a
noite, e então um fedor de enxofre varria toda a região. Vezes acontecia de o espectro
rastejar-se como um lagarto, com a cabeça virada para trás, os cabelos desgrenhados
cobrindo-lhe a cara, em uma cena tão macabra que congelava a espinha dos curiosos. Por
muitos anos, as aparições e os uivos de lamento da besta continuaram sem que ninguém
ousasse derrubar a tapera.

O pavor de que a entidade pudesse grudar-se ao corpo de quem havia destruído sua moradia
acovardava até os mais céticos e corajosos. Testemunhas afirmavam que outra coisa estranha
acontecia a pouca distância daquele lugar: em um casebre com teto de sapê, o pranto de uma
recém-nascida, batizada de Benedita, se fundia com a lamúria da entidade. Um choro
incessante de uma cria nas noites sem lua. A vida e os anos correram. Engenheiros e operários,
com grandes e poderosas máquinas, chegaram derrubando casas e rasgando a terra para
loteamento, abertura de ruas e avenidas. Bem ali, na beira daquele terreno maldito, iniciaram
a construção de uma via que, ironicamente, passou a chamar-se de Rua Santo Antônio.

São Paulo, 1920, Brás

No segundo andar de um sobrado recém-construído na Rua Ricardo Gonçalves, esquina com a


Avenida Celso Garcia, a jovem Benedita, 28 anos, ocupava-se dos afazeres de doméstica. Nas
tarefas delicadas de uma casa, trabalhava como um funileiro. Sua natureza colérica,
impaciente e descuidada afastava-a dos empregos. Aquele era seu terceiro trabalho nos
últimos dez meses. Pudera, coisas bizarras sempre aconteciam com Benedita: cachorros
rosnavam e gatos se eriçavam na sua presença, acidentes inexplicáveis em casas e lojas por
onde passava.

Naquele sobrado não poderia ter sido diferente. Desde a primeiro dia de seu trabalho, grande
quantidade de água escura e malcheirosa escorria pelas paredes do andar térreo, onde
funcionava uma farmácia.
A infiltração descia do piso superior, trazendo vermes e danificando prateleiras, drogas e
medicamentos do laboratório. Nenhuma causa para o problema foi encontrada. A podridão
vinha do nada e seguia para o nada. Rapidamente o caso se espalhou pelas redondezas e
multidão de curiosos se aglomerava no local para ver a casa mal-assombrada. Semanas depois,
os moradores abandonaram o sobrado, e Benedita perdeu o emprego. A vida continuava, mas
os problemas forçavam-na a isolar-se em casa, agora um barracão no mesmo terreno onde
havia nascido, no começo da Rua Santo Antônio. Benedita não sabia, mas uma entidade escura
que se rastejava como lagarto, com a cabeça virada para trás, os cabelos desgrenhados
cobrindo-lhe a cara, seguia-a aonde fosse.

São Paulo, 1948, Rua Santo Antônio, 104, Centro

A casa, espaçosa, possuía um quintal que se estendia pouco mais de 50 metros ao fundo. De
arquitetura comum aos anos trinta, revelava sinais de maltrato e de desleixo: paredes
enegrecidas pelas infiltrações e pelos fungos, que lhe davam aparência de um mausoléu. Seu
aspecto sinistro assombrava os moradores do bairro. Nas noites sem lua, ouviam-se longos e
arrepiantes ganidos de lamento que saiam dos fundos do quintal. Os curiosos que se
esgueiravam para ver o outro lado do muro, gelavam os ossos com a visão macabra de uma
entidade que se rastejava como lagarto, com a cabeça virada para trás, os cabelos
desgrenhados cobrindo-lhe a cara. A casa fora construída pelo marido de Benedita, morto em
um atropelamento na mesma rua.

A mulher, então com 56 anos, aparentava 70, 80, ou qualquer coisa acima disso, pois seu rosto
estava tão estragado e velho quanto a parede da casa. Com a saúde debilitada pelo câncer na
perna, Benedita vivia com os três filhos: Maria Antonieta, de 19 anos, epiléptica e paralítica,
Cordélia, 23 anos, esquizofrênica; Paulo, 26 anos, que não apresentava nenhuma doença
congênita, mas possuía o caráter explosivo e irritadiço da mãe. Essa realidade anunciava uma
desgraça iminente. Em fins de novembro, o sumiço de Benedita e suas filhas despertou a
desconfiança dos vizinhos. Acionada, a polícia invadiu a casa. No fundo do quintal,
encontraram os cadáveres em decomposição das três mulheres, assassinadas e enterradas em
um poço pelo filho e irmão. Paulo suicidou-se no mesmo dia da descoberta dos corpos. A casa
permaneceu fechada por vários anos, até que fosse derrubada, junto a outras do bairro, para a
abertura de um estacionamento. Ninguém suspeitava, entretanto, de que o poço do crime foi
escavado exatamente sobre o local onde, meio século atrás, existiu uma tapera amaldiçoada,
de paredes enegrecidas e infestada de ratazanas.

São Paulo, 1969, Centro

A poucos metros de um terreno condenado, homens e máquinas abriam valas, erguiam


estruturas, puxavam cabos e checavam projetos para a construção de um imponente prédio
de 25 andares, constituído de salas de escritórios e dividido em duas torres: a Norte, com
frente para a Avenida Nove de Julho; e a Sul, voltada para a Rua Santo Antônio.Esse edifício,
dotado do mais moderno sistema de incêndios, segundo seus construtores na época, receberia
o funesto nome de Joelma.

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