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Contava-se que, nas noites sem lua, um grito horripilante de lamento vindo de dentro da
tapera espalhava-se pelo vale. Nada se movia. As criaturas encolhiam-se, paralisadas pelo
pavor daquele ganido congelante. Um silêncio alucinador se fundia com as trevas. Quem se
arriscasse a olhar pela janela de suas casas, veria algo sobrenatural que se movia lentamente
na frente do barraco, acompanhado por enormes ratas negras. Sua forma etérea, escura,
adquiria aparência humana, de cabelereira escura, tão longa que alcançava seus tornozelos. A
figura demoníaca delineava-se na escuridão por seu negror profundo, mais profundo do que a
noite, e então um fedor de enxofre varria toda a região. Vezes acontecia de o espectro
rastejar-se como um lagarto, com a cabeça virada para trás, os cabelos desgrenhados
cobrindo-lhe a cara, em uma cena tão macabra que congelava a espinha dos curiosos. Por
muitos anos, as aparições e os uivos de lamento da besta continuaram sem que ninguém
ousasse derrubar a tapera.
O pavor de que a entidade pudesse grudar-se ao corpo de quem havia destruído sua moradia
acovardava até os mais céticos e corajosos. Testemunhas afirmavam que outra coisa estranha
acontecia a pouca distância daquele lugar: em um casebre com teto de sapê, o pranto de uma
recém-nascida, batizada de Benedita, se fundia com a lamúria da entidade. Um choro
incessante de uma cria nas noites sem lua. A vida e os anos correram. Engenheiros e operários,
com grandes e poderosas máquinas, chegaram derrubando casas e rasgando a terra para
loteamento, abertura de ruas e avenidas. Bem ali, na beira daquele terreno maldito, iniciaram
a construção de uma via que, ironicamente, passou a chamar-se de Rua Santo Antônio.
Naquele sobrado não poderia ter sido diferente. Desde a primeiro dia de seu trabalho, grande
quantidade de água escura e malcheirosa escorria pelas paredes do andar térreo, onde
funcionava uma farmácia.
A infiltração descia do piso superior, trazendo vermes e danificando prateleiras, drogas e
medicamentos do laboratório. Nenhuma causa para o problema foi encontrada. A podridão
vinha do nada e seguia para o nada. Rapidamente o caso se espalhou pelas redondezas e
multidão de curiosos se aglomerava no local para ver a casa mal-assombrada. Semanas depois,
os moradores abandonaram o sobrado, e Benedita perdeu o emprego. A vida continuava, mas
os problemas forçavam-na a isolar-se em casa, agora um barracão no mesmo terreno onde
havia nascido, no começo da Rua Santo Antônio. Benedita não sabia, mas uma entidade escura
que se rastejava como lagarto, com a cabeça virada para trás, os cabelos desgrenhados
cobrindo-lhe a cara, seguia-a aonde fosse.
A casa, espaçosa, possuía um quintal que se estendia pouco mais de 50 metros ao fundo. De
arquitetura comum aos anos trinta, revelava sinais de maltrato e de desleixo: paredes
enegrecidas pelas infiltrações e pelos fungos, que lhe davam aparência de um mausoléu. Seu
aspecto sinistro assombrava os moradores do bairro. Nas noites sem lua, ouviam-se longos e
arrepiantes ganidos de lamento que saiam dos fundos do quintal. Os curiosos que se
esgueiravam para ver o outro lado do muro, gelavam os ossos com a visão macabra de uma
entidade que se rastejava como lagarto, com a cabeça virada para trás, os cabelos
desgrenhados cobrindo-lhe a cara. A casa fora construída pelo marido de Benedita, morto em
um atropelamento na mesma rua.
A mulher, então com 56 anos, aparentava 70, 80, ou qualquer coisa acima disso, pois seu rosto
estava tão estragado e velho quanto a parede da casa. Com a saúde debilitada pelo câncer na
perna, Benedita vivia com os três filhos: Maria Antonieta, de 19 anos, epiléptica e paralítica,
Cordélia, 23 anos, esquizofrênica; Paulo, 26 anos, que não apresentava nenhuma doença
congênita, mas possuía o caráter explosivo e irritadiço da mãe. Essa realidade anunciava uma
desgraça iminente. Em fins de novembro, o sumiço de Benedita e suas filhas despertou a
desconfiança dos vizinhos. Acionada, a polícia invadiu a casa. No fundo do quintal,
encontraram os cadáveres em decomposição das três mulheres, assassinadas e enterradas em
um poço pelo filho e irmão. Paulo suicidou-se no mesmo dia da descoberta dos corpos. A casa
permaneceu fechada por vários anos, até que fosse derrubada, junto a outras do bairro, para a
abertura de um estacionamento. Ninguém suspeitava, entretanto, de que o poço do crime foi
escavado exatamente sobre o local onde, meio século atrás, existiu uma tapera amaldiçoada,
de paredes enegrecidas e infestada de ratazanas.