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Antes

Quando eu nasci, não tive festa, nem comemorações até tarde da noite, com gente
extremamente bêbada e chapada falando alto. Mal me pegaram no colo.
Também não foram ao hospital com balões coloridos e grandes ou ursinhos de pelúcia
três vezes maiores que meu corpo de bebê.
Eu nasci num bangalô caindo aos pedaços, perto de um lago em Conwy, no País de
Gales, cercado por mosquitos, muita maconha espalhada pela casa e muita, muita gente
bêbada e jovem, que não tinham a mínima capacidade de saber o que fazer, nem onde
estavam.
Minha mãe era uma jovem vocalista de uma banda folk de Gales e tem ideais liberais
extremos demais. Ela se apaixonou aos vinte anos pelo meu pai, um baixista de uma banda
punk no auge do sucesso, com ideais anarquistas.
A maioria das pessoas diziam que eles eram a combinação perfeita de uma bomba-
relógio. Quando a mídia soube da gravidez da minha mãe, as especulações aumentaram numa
escala absurda. Ousaram dizer, até, que um deles traiu o outro e eu não era uma criança
legítima. Me apelidaram de “bastardo do Jones”, ou “bastardo do baixista”, e coisas desse
tipo, que serviam apenas para irritar a banda, e desestabilizar ainda mais minha mãe. E então,
com a notícia do meu nascimento, a explosão veio com a força de dez terremotos.
Claro que meus pais ficaram felizes com a minha chegada, e os caras da banda me
tratavam como filho deles, mas a mídia e a empresária deles, Amber Clayton, começaram a
encher os ouvidos deles com o discurso barato da falta de responsabilidade de um casal de
vinte e poucos anos no auge da fama.
Meu pai lidava muito bem com as críticas e com toda a pressão. Ele entrou de cabeça
na empreitada de criar um filho pelo mundo, e faz isso muito bem. Assumiu o posto de “pai
da banda” e ajudou os outros caras quando os filhos deles tomaram meu lugar de mascote.
Mas o problema era minha mãe. Sempre foi ela. Minha mãe não conseguia lidar com
a fama e com tudo que ela trouxe. Como consequência disso, cada palavra mal interpretada
ou como duplo sentido, já derrubava minha mãe e ela se trancava no quarto com três garrafas
de vodca e saía de lá uma semana depois, tratando todo mundo mal.
A mídia aproveitava esses momentos de fraqueza e soltava todo o tipo de notícias
absurdas. Normalmente, eram notícias sobre um possível divórcio dos meus pais, o que
minha mãe passava mais tempo bebendo uísque e fumando maconha do que cuidando de
mim. Mas, quando os boatos de que minha mãe iria se internar numa clínica de reabilitação,
meu pai começou a pensar duas vezes sobre o quanto de exposição na mídia nossa família
teria.
Ele vinha pensando nisso desde o momento que minha mãe contou que estava
grávida, mas, o ápice foi quando o baterista da banda e um dos melhores amigos do meu pai,
Taylor, contou que também estava esperando um bebê.
Assim que anunciaram o cancelamento da turnê por motivos pessoais, o circo foi
montado. Todos os abutres e parasitas mais cruéis da mídia mundial começaram a especular
sobre a pausa na turnê.
Quando minha mãe começou a aparecer nas fotos com uma barriga saliente ao lado de
Emma, esposa de Taylor na época, os comentários eram, ao mesmo tempo, apoiadores e
invasivos. A grande maioria desrespeitava a privacidade dos meus pais e da minha futura
família.
Por causa desse carnaval todo, meus pais e toda a banda se instalou num bangalô em
Gales, longe de tudo, para que eu e o bebê de Emma crescêssemos em paz, pelo menos por
algum tempo.
Pouco depois de eu nascer, minha mãe apresentou alguns sintomas de depressão pós-
parto. Meu pai e todos os outros achavam que duraria no máximo um ano, mas quando ela
parou de comer e se recusava a sair do quarto, a não ser para abastecer o estoque de bebida,
eles entenderam que o negócio poderia ser mais grave.
Exatamente um mês depois de eu nascer, Neil, o filho de Taylor e Emma, chegou para
aumentar a nossa família gigante.
Mesmo com toda a alegria da situação, minha mãe mal me pegava no colo. Evitava
estar no mesmo cômodo que Neil, e sempre que podia, brigava com todo mundo que tivesse a
ousadia de respirar perto dela.
Já meu pai, apesar de segurar bem as pontas e fazer o impossível para manter todos
nós felizes e unidos, estava miserável. Ter um filho era o sonho dele e ele sempre
compartilhou isso com a minha mãe desde o momento em que se conheceram. Então, ele
passou a me chamar de filho, enquanto minha mãe, insistia em dizer que eu era a filha
perfeita, a bonequinha de luxo com a qual ela poderia brincar à vontade, e me descartar
quando cansasse da minha cara rechonchuda de bebê.
Depois de muito tempo, eu descobri que ele saía para chorar bem tarde da noite. Eu
sempre tive consciência de que, mesmo com todo o dinheiro que tínhamos, conviver com a
minha mãe piorando a cada dia não era fácil para ninguém, especialmente para ele. E tudo ia
de mal a pior a cada ano. Ela nos arrastava em sua jornada sem fim ao fundo do poço, e
ninguém podia fazer nada, além de assistir e sofrer em silêncio.
Como Neil e eu tínhamos uma diferença de um mês, comemorávamos nossos
aniversários no mesmo dia. Nosso primeiro ano não teve nenhuma das nossas mães presentes.
A minha, ficava trancada no quarto, bêbada, chapada e chorando. A dele, terminou o
casamento com Taylor logo depois que Neil começou a andar sozinho e nunca mais deu sinal
de vida.
Em Junho desse mesmo ano, Brandon, o guitarrista da banda e o outro melhor amigo
do meu pai, chegou em casa dizendo que a namorada Mary estava grávida de sete meses e
queria que o bebê fosse criado por ele.
Na segunda semana de Julho, Ross, o filho de Brandon, nasceu. Para a sorte dele e do
bebê, minha mãe decidiu criar a nova criança como se fosse dela.
Foi um começo bom para Ross, porque minha mãe era sim carinhosa e amável, mas
se tornou extremamente possessiva e protetora em relação a ele, a ponto de não deixar nem
Brandon, que era o pai, segurá-lo por muito tempo.
De certa forma, Ross era o filho que ela sempre quis e que eu nunca fui. Mesmo com
todos os problemas, minha mãe tirava tempo para ficar com Ross. Brincava com ele no
quintal, lia para ele de noite, o ensinava a ler e cantava com ele em alguns momentos do dia.
Ela até se aventurava no centro da cidade, quando ia com ele fazer compras.
Apesar de tudo, nossa vida começou a ficar bem de novo, com minha mãe voltando a
ser quem ela foi há tanto tempo atrás. Para a alegria de todos, principalmente minha e de
minha mãe, nós recebemos a notícia de que ela estava grávida novamente, de outro menino,
mas dessa vez, já estava com cinco meses, e bebê estava forte como um touro, e saudável
como um cavalo de corrida, como o próprio médico havia dito.
Mas tudo voltou a piorar quando eu fiz dois anos.
Em Setembro de 1980, minha mãe recebeu a notícia de que estava grávida de novo.
Dessa vez, de gêmeos.
No terceiro mês de gravidez, ela foi ao médico fazer o ultrassom. O médico disse que
devido a uma série de fatores, ela perdeu os dois bebês. Dois meninos.
Não me lembro exatamente como foi a volta deles dois para casa, mas eu tenho clara
a minha reação quando encontrei meu pai na cozinha. Era de tarde, ele tinha a cabeça entre as
mãos e os olhos vermelhos e inchados.
Eu não disse nada, principalmente por medo de não saber o reagir e nem o que dizer.
Simplesmente entrei na cozinha, sentei no colo dele e lá fiquei por sabe Deus quanto tempo
enquanto ele chorava.
A semana e o mês que se passaram depois dessa notícia foram como uma nuvem de
fumaça. Os adultos brincavam com nós três da melhor forma possível, e nos distraíam de
toda a energia negativa que minha mãe soltava em todos.
Mas não foi fácil. Nos anos que se passaram, minha mãe acumulava abortos
espontâneos e piorava a cada mísero segundo. O quarto dela, no meio do nosso trailer, fedia a
vômito de gente bêbada, restos de comida podre, e dejetos humanos que não precisam ser
mencionados. Ela estava em um estado quase de decomposição, mas quando cortou fundo o
braço de meu pai no momento em que ele a tirou à força de casa, ninguém fez mais nada.
Todo mundo ali, inclusive eu, agia como se ela não estivesse lá, ou fosse uma espécie de
lenda urbana macabra, como a Loira do Banheiro, ou coisa do tipo.
Quando Neil e eu fizemos quatro anos e, Ross e meu irmão mais novo, Astra,
completaram três anos, meu pai e os caras da banda decidiram voltar à ativa. Com todo o
dinheiro que acumularam com a banda, compraram um trailer grande o bastante para
comportar três crianças em crescimento, quatro adultos que se viram da forma que podem e
uma adulta com depressão crônica. Assim como Davey, o motorista da banda, que estava
sempre por perto.
Vendemos nosso bangalô em Gales e, depois de um breve pronunciamento do meu
pai na mídia avisando a volta da banda, nós embarcamos na estrada, prontos para encarar o
mundo como a família desajustada que éramos.

A primeira vez que eu fui à delegacia, eu tinha quatro anos e estava na festa do filho
de oito anos do prefeito de Londres da época. Havia todo o tipo de crianças famosas lá. Das
mais esnobes e mesquinhas, que eram bem chatas, às mais normais e que apenas
frequentavam a mesma escola do menino.
Davey Hill, o nosso motorista e segurança particular, apareceu às pressas e
completamente irritado. Pegou Astra no colo, e me puxou pelo pulso com tanta força, que
pensei que o perderia no meio dessa festa estranha cheia de gente esquisita. caminhei aos
tropeços até o carro, e ele explicou muito por cima que meus pais estavam presos.
Para a minha surpresa e, aparentemente de todos ali, minha mãe havia saído do quarto
com a ideia louca de encher a cara com meu por todos os pubs e bares infames da cidade,
beber até cair, e fazer as maiores atrocidades que a humanidade já ousou em pensar.
Eu vestia uma bermuda justa e preta, com all-stars de cano alto laranja, e uma blusa
dos Ramones, grandes demais até para um cara grande e musculoso como meu pai. Astra, por
outro lado, vestia uma camiseta do Batman e um par de calças com estampa havaiana. Com
toda a certeza nós éramos a dupla de irmãos mais excêntricos de Londres até o presente
momento.
Se fosse em outra ocasião, eu teria caído na gargalhada no momento em que vi meus
pais, algemados, completamente bêbados e cobertos apenas por um casaco que os guardas
lhes emprestaram. Também estavam suados, e gritando palavras ininteligíveis aos quatro
ventos. Se eu tivesse quatro anos a mais, teria notado o quão vergonhosa, patética e absurda
essa ação deles foi.
Mas eu estava ocupado demais tentando acalmar Astra na sala do chefe da delegacia,
para prestar atenção a qualquer coisa que acontecia ao meu redor. Ele não estava exatamente
chorando, mas conseguia ficar bem chato e manhoso quando meu pai não estava por perto, ou
qualquer outro membro da banda, principalmente Davey.
Nos quatro curtos anos em que passamos em Gales, eu fiquei amigo de um garoto
com cabelos cacheados cor de caramelo, com um sorriso tímido e gentil, e de olhos caramelo
tão gentis que seriam capazes de partir meu coração naquele instante.
Ele falava tão pouco quanto eu, mas gostava de ficar deitado na ponte perto de casa,
olhando o céu e conversando sobre as estrelas. Quando comentei que meu irmão se chamava
Astra, eu pude jurar que o garoto de nome incomum iria entrar em combustão.
Infelizmente, pouco tempo antes de sairmos em turnê pelo mundo outra vez, meu
amigo adoeceu, e eu não pude me despedir dele. Pensava nele quase em todos os momentos
de nossa viagem. Das coisas que eu ia e que sabia que ele iria gostar de ver e saber, das
miniaturas de aviões e naves espaciais que eu vi em Los Angeles, e dos animais diferentes
que tinham nos zoológicos mundo afora. Eu sentia falta do silêncio acolhedor de Remus. E
sentia falta dele.
Quase seis horas depois de meus pais entrarem na delegacia, eles foram liberados, e a
história foi explicada decentemente a mim, Astra, Neil e Ross. Tio Brandon nos contou que
eles entraram na casa da família Bridgerton, a mais rica e influente de Londres. Estavam
bêbados, chapados, pelados e, claro, dizendo coisas horríveis sobre os capitalistas que lá
moravam.
Aparentemente, a senhora Bridgerton tem um monte de filhos pequenos e, dou razão à
ela por isso, ter um casal completamente estranho e obsceno em sua casa, quando sua filha de
um ano começa a andar, não é uma coisa muito legal de se presenciar. Meus pais precisariam
pagar dez mil libras à família, e prestar serviço comunitário a eles.
Como o bom filho dos meus pais, eu não gostei nada dessa ideia. Sabia que isso
também se aplicaria a mim, e eu teria de conviver com os filhos mesquinhos e engomadinhos
deles. Os mesmos que estavam na festa do filho do prefeito. Eu também sabia por alto que
eles tinham um garoto da minha idade, e um da idade de Astra. Provavelmente, o senhor e a
senhora Bridgerton nos obrigariam a passar uma quantidade dolorosa de tempo com esses
dois para nos ensinar bons modos e como “dois garotos da alta sociedade londrina deveriam
se portar”. Quase vomitei só pensar em todas as coisas ridículas que havia naquela casa
tediosamente grande.
Dizer que a mansão da família Bridgerton era grande e bonita seria, praticamente, um
insulto ao que realmente era, e ao que estava diante de meus olhos naquela manhã fria e
úmida de segunda-feira. Astra segurava minha mão com tanta força, que eu não sabia se
meus dedos estavam brancos por conta do frio, ou pela força dele. Mas eu não me importava.
Por mais que eu amasse Ross e Neil como se fossem meus irmãos, eu prezava muito o que eu
e Astra tínhamos.
Mesmo reconhecendo todo o esforço que meu pai fazia para nos criar decentemente,
tudo o que eu e Astra tínhamos de verdade, era um ao outro. Era eu quem dava comida a ele,
eu dei a mamadeira a ele quando ele não quis saber da minha mãe, eu o levava à escola e
fazia as lições de casa com ele, quando estávamos viajando, eu o ajudava a estudar, e era eu
quem lia livros a ele antes de dormir, mesmo que ainda dividíssemos a cama.
Sendo assim, como em todos os outros momentos de nossas vidas, apenas Astra e eu
fomos à casa Bridgerton naquela manhã. Davey também foi, mas ficou esperando do lado de
fora, conversando animado com o chefe da jardinagem da família. Como eu não tinha
tamanho suficiente para tocar a campainha, fiquei na ponta dos pés e bati três vezes na porta e
esperei, com as mãos apoiadas nos ombros magros de meu irmão.
Meus pais chegaram logo depois de nós e, como de costume, eu agarrei com força a
calça de meu pai e, juntos, esperamos que alguém tivesse a boa vontade de nos atender. Ouvi
passos se aproximarem da porta e uma gritaria abafada vinda da parte de dentro. Um senhor
elegante e bem-vestido nos atendeu, e eu pude ver a curiosidade se transformar em desgosto
no rosto dele ao nos ver. Ele foi bem gentil comigo e Astra, mas manteve o tom seco e polido
ao falar com meus pais.
“Imagino que vocês sejam os filhos de Earl e Clementine.” ele resmungou para nós,
enquanto indicava com a cabeça o caminho para meus pais seguirem. Astra e eu
concordamos com um sorriso fraco, sem vontade alguma de falar com o homem. “Se nos
encontrássemos em outra ocasião, crianças, poderia tratá-los melhor.”
“Não tem problema, senhor. Estar aqui e ser bem tratados, já é suficiente para nós.”
respondi, tentando não parecer mal-agradecido e rude.
É claro que eu não queria estar lá, e tampouco Astra. Mas nenhuma das nossas ideias
sobre eles podia interferir na política da boa vizinhança que nossos pais estavam nos forçando
a fazer parte.
Eu sei que o que fizeram foi errado, mas eu nunca forçaria meus filhos a pagar pelos
meus atos, sabendo que a nossa relação com o pessoal rico e influente do Reino Unido,
principalmente uma família como os Bridgerton, não era boa.
Astra ameaçou chorar um pouquinho quando percebeu que não veríamos nossos pais
durante todo o dia, mas, vendo que não ficaria longe de mim, me abraçou, e até gargalhou
alto quando eu sussurrei que uma das estátuas no pavilhão de entrada parecia com o professor
chato de educação física dele.
Nossas brincadeiras foram interrompidas quando uma mulher, não tão mais velha que
meus pais, desceu apressada as escadas e parou ofegante, mas sorridente, à nossa frente.
Cutuquei as costelas de meu irmão para que ele parasse de encará-la, e fizemos uma mesura
que a levou à uma gargalhada escandalosa.
“Ah, não, crianças, não precisam fazer isso aqui!” ela riu. “Só façam reverências ao
ver a Rainha.”
“Com todo o respeito, madame, mas morando numa casa dessas, deveria exigir uma
reverência de vez em quando.” rebati, sob o olhar atento do homem, que deduzi ser o
mordomo.
“Gentileza sua, minha querida.” ela falou, passando a mão com delicadeza no meu
rosto, me fazendo retrair um pouco.
“Moça, o Nova é um menino.” Astra falou se aproximando dela, com uma coragem
admirável, deixando-a completamente desconfortável, mesmo que parecesse impossível.
“Oh! Mi-mil perdões, querido, eu não quis te ofender! Me perdoe.” ela gaguejou, e eu
quase ri.
“Astie!” falei num sussurro, quase gritando. “Não tem problema, madame. De
verdade, tanto faz, sabe.” balancei os ombros, encarando os olhos gentis com cor de
amêndoas da senhora.
“Bom, venham, crianças! Vou lhes apresentar aos meus filhos.” ela falou, voltando-se
para a escada, e parando para nos esperar no primeiro degrau. Astra e eu nos entreolhamos e,
de mãos dadas, subimos as escadas de mármore branco. “A propósito, eu sou Violet
Bridgerton. Podem me chamar da forma que quiserem, crianças, não se acanhem.”
“Tia Violet, eu sou o Astra, e esse é meu irmão mais velho, Nova.” Astie falou,
animado, arrancando um sorriso de Lady Bridgerton.
“É um prazer conhecê-los, queridos. Agora vamos, aposto que os meninos estão
doidos para ver vocês.”
Eu queria rebater, e dizer que, nem eles, nem nós, estávamos ansiosos por esse
encontro, mas não queria acabar, ainda mais, com a felicidade dela. Já tinha visto o mais
velho perto da escola de Astra, provavelmente esperando um irmão, ou só brincando com os
amigos, porque ele tinha essa liberdade. Todos os meninos Bridgerton podiam andar por onde
quisessem, agir feito babacas, e as pessoas achariam lindo e bonitinho, porque estavam
agindo feito “homenzinhos”.
De certa forma, Ross, Neil e eu tínhamos essa liberdade, mas éramos vistos como
arruaceiros e o tipo de garoto que os pais usam de exemplo para dizer aos filhos como não
deveriam ser. Tudo por causa de nossos pais serem famosos, e terem uma fama ruim no
mundo todo. Ainda mais agora, que invadiram a casa da família mais rica. Por sorte, Neil e
Ross não precisavam ficar lá, nem fingir serem educados num lugar onde todos nos tratavam
mal sem nem saber quem éramos.
Antes mesmo de nos prepararmos emocionalmente para o encontro, a porta da sala foi
violentamente aberta e os garotos nos arrastaram para dentro.
“Oi Astra!” O mais novo disse feliz ao meu irmão, que deu um gritinho de felicidade.
“Colin! Esse aqui é meu irmão, Nova.” ele me apresentou, e me puxou pelo pulso
para perto de Colin. Acenei, envergonhado, para o garoto.
“Por que estão aqui?” O garoto mais alto, e mais esnobe, que eu deduzi ser o mais
velho, perguntou a mim.
“Anthony! Mais respeito com eles.” A senhora Bridgerton ralhou, antes de fechar a
porta nos deixar sozinhos.
“Meus pais foram babacas com os seus e, como forma de punição, nos obrigaram a
ficar aqui com vocês.” rebati com a mesma insolência que ele. Para minha surpresa, ele
sorriu, um sorriso verdadeiro, como se nós dois compartilhássemos um segredo, e estendeu a
mão para me cumprimentar.
“Já sabe meu nome, só falta me dizer o seu.”
“Me chamo Nova.” falei, aceitando a mão dele.
“Que nome legal! Por que te chamam assim?”
“É o nome de uma estrela!” Astra falou, distraído com Colin e seus brinquedos.
“É porque eu brilho tanto quanto uma supernova, Anthony” falei, e o garoto que
estava sentado no sofá, com um livro no colo, riu.
“Se você diz…” Anthony resmungou, e jogou uma bolinha de papel na cabeça do
irmão que estava no sofá, me fazendo rir.
“Pelo menos, ele brilha mais que o Sol, Anthony.” ele falou, com o olhar vacilando
entre mim e a bola em sua mão, e sorriu para mim.
De alguma forma, o sorriso dele, o rosto dele, e o olhar doce e brincalhão que ele me
lançou, me lembrou Remus, e meu coração deu uma batida dolorosa em meu peito. Queria
ligar para ele, ou mandar uma carta, sei lá. Mas eu não fazia ideia se ele ainda morava em
Gales, e nem sabia seu endereço. Às vezes, eu tinha a impressão de que Remus só existia em
meus sonhos, como um presente do deus Hipnos para mim.
“O que você tá lendo?” perguntei, quando me sentei entre o garoto quieto, e Anthony.
“Moby Dick. Mas é uma versão ilustrada, porque mamãe diz que eu sou novo demais
pra ler o livro normal.” ele resmungou, me mostrando a capa.
“Benedict tem quatro anos, mas tem alma de um velho de noventa.” Anthony riu.
“Meus irmãos falam a mesma coisa sobre mim.” falei, trocando um sorriso tímido
com Benedict.
“Seus… irmãos? Pensei que Astra fosse seu único irmão.” Anthony falou, se deitando
no sofá.
“Ele é, mas a gente vive com os caras da banda do meu pai, e eles também têm filhos,
então… somos meio que uma família gigante, eu acho.” respondi dando de ombros, e eles
sorriram, sem saber o que dizer.
Enquanto Anthony tentava fazer uma guerra de bolinhas de papel com Benedict, eu
fiquei olhando em volta, e admirando cada detalhe da sala deles que, obviamente, era mil
vezes maior que o trailer onde morávamos. Atrás do sofá, tinha um pianoforte imenso, branco
com detalhes em dourado, que eu imaginava serem de ouro puro. Apoiei a cabeça no braço, e
fiquei me imaginando tocando naquela coisa. Benedict me pegou olhando para ele, e sorriu.
“Sabe que pode tocar, né? Meu pai tocava de vez em quando depois do jantar, mas
não toca mais… por conta do trabalho.”
“Ah… é legal da sua parte, e tal, mas nem nos meus melhores sonhos eu chegaria
perto de uma coisa tão bonita assim.” gaguejei, fazendo-o rir.
“Medo de quebrar?” concordei com a cabeça, e ele riu mais ainda. “Vai lá, ele não vai
te morder. E eu prometo que você não vai quebrar.” Benedict me encorajou.
“Vai Nova, por favooooor!” Astra pediu, do outro canto da sala.
Respirei fundo antes de me levantar e caminhar com calma até o piano. Como
Benedict bem disse, eu tinha, sim, medo de quebrá-lo, mas era muito mais que isso. Era algo
como… medo de não ser bom o bastante para poder tocar numa coisa tão magnânima quanto
aquele piano. Meu pai sempre dizia que eu não posso saber se bom o bastante se não praticar.
Mas a música era uma coisa só minha. As únicas pessoas que me viram tocar foram
Astra e Neil e, naquele momento, eu não sabia que estava sendo observado. Tocar piano,
baixo, ou, até mesmo, bateria, era a melhor forma que eu tinha para poder fugir da realidade
horrível em que eu vivia, e a única maneira que eu tinha de mostrar ao mundo quem
realmente era Nova Glover-Jones.
Quando eu tocava, era como se eu fosse preenchido por alguma espécie de magia, que
me acolhia e acalentava, numa tentativa de me proteger e me fortalecer. Era como ser
abraçado pelo fogo, mas, ao invés de se queimar (ou morrer), você é curado, fica mais feliz,
mais forte e pronto para ser quem sempre quis. Como tomar uma tigela de sopa num dia frio,
quando você sente que vai ficar resfriado.
Em outras palavras, eu sentia a música fluindo do meu coração para meus dedos; eu
não precisava de partituras, nem de incontáveis horas de teoria clássica para tocar. Música era
a minha essência, as notas corriam pelas minhas veias e as melodias me davam vida.
Era exatamente assim que eu me sentia enquanto tocava o concerto para piano, do
‘outono’ de Vivaldi, que o senhor Bridgerton deixara aberto, como se soubesse que eu iria lá
algum dia. Talvez ele soubesse mesmo.
Tudo estava correndo melancolicamente bem, até que Anthony começou a gritar,
chamando pela mãe. Eu estava tão imerso na música e nas notas, que não reparei em nada
que acontecia ao meu redor. Estava de olhos fechados e cem por cento focado no que tocava,
ouvindo bem ao longe a voz animada de Astra, comentando alguma coisa com Colin,
Anthony e a senhora Bridgerton.
No momento em que abri os olhos, percebi que Benedict estava sentado ao meu lado, me
olhando como se eu fosse um fantasma, ou como se eu fosse a melhor coisa que lhe
aconteceu; eu não sabia muito bem como interpretar as reações dele.
“Tem alguma coisa errada? Por que todo mundo tá olhando estranho pra mim?” perguntei,
com uma das mãos ainda apoiada nas teclas.
“Seu cabelo tá rosa, Nova.” Anthony respondeu pela mãe, que lhe beliscou o braço. “Mas é
verdade, mãe! Tá mesmo rosa.”
“Ah, isso é normal. Faço isso toda vez que toco algum instrumento.” respondi com calma.
“É verdade! Uma vez, o cabelo dele ficou verde, e não mudou de cor por três dias!” Astra
comentou, animado.
Ao passo em que Colin e Astra voltaram a se focar nos trens do Bridgerton mais novo, eu
ouvia alguns sussurros que Anthony e a mãe trocavam. Sabia que falavam sobre mim, mas
não conseguia entender o que era dito. Pegava apenas alguns “será que ele pode ser?” ou
“não sabemos nada da família deles” o que só aumentava minha curiosidade.
“É bem legal isso que você faz com o cabelo, sabe.” Benedict, que ainda estava ao meu lado,
falou, me dando um susto leve.
Antes que eu pudesse respondê-lo, minha escancarou a porta da sala, nos trazendo de volta à
realidade.
“O que vocês fizeram com a minha filha!?” ela berrou, marchando na minha direção, fazendo
Benedict se levantar com rapidez. “Quantas vezes eu não te disse que é pra ficar longe de
instrumentos musicais, Nova? Pelo amor de deus, como você pôde ser tão… burra e
irresponsável!”
“Não ouse falar assim com ele!” gritou a senhora Bridgerton, segurando o que eu
imaginei ser um sapato de Colin. “Fale com ele dessa forma na SUA casa, mas não ouse
gritar com ele dentro da minha casa, Clementine.”
“Já que insiste, Violet, venham.” Minha mãe puxou Astra do chão com tanta força,
que tenho certeza de que deixou uma marca roxa com seus dedos no braço dele.
“Mas mãe…” eu tentei argumentar, dizendo que ainda queria passar meu tempo com
meus novos amigos, mas ela me puxou pela gola da camiseta com força, me arrastando para
fora do piano, que eu mal tive tempo de me despedir.
“Agora, Nova.” ela disse, enquanto praticamente me enforcava com a gola da blusa.
No caminho até nossa casa, eu podia ouvir Anthony e Benedict correndo pela rua,
tentando chamar nossa atenção e Colin, chorando no colo da mãe, tal qual Astra iria fazer,
assim que estivesse sozinho comigo.
Meu pai ficou, no mínimo, surpreso ao nos ver em casa tão cedo e, com seu
comentário nada feliz, desencadeou ainda mais a fúria de mamãe. Ele tentava buscar meu
olhar no meio da guerra que ela havia armado, mas eu não tinha coragem de olhar para outro
lugar que não fosse o chão.
Estava com vergonha, me sentindo péssimo tanto por ter desrespeitado minha mãe,
tanto por ela ter desrespeitado a senhora Bridgerton daquela forma. Afinal, não era de mais
mudar a cor do meu cabelo quando eu bem entendesse. Sempre fui assim, e isso fazia parte
de mim tanto quanto a música. Talvez esse tenha sido o motivo de eu não ter sido celebrado
quando nasci… explica tantas coisas…
“Você está proibida de tocar qualquer instrumento, Nova. Eu não quero saber que
você sequer se aproximou de um, eu te proíbo de fazer qualquer coisa que envolva música.
Você me entendeu?” minha mãe gritou. Ela parecia uma gralha, resmungando e tendo seus
gritos ecoados pela casa.
“Por quê? O que eu fiz pra você, que te faz me odiar tanto quando eu toco música?”
gritei de volta, sentindo o choro subir pela minha garganta, e formar uma bola de ansiedade
horrível e desconfortável no meu peito. “Por que você odeia tanto o fato de meu cabelo
mudar de cor, justamente quando eu faço uma coisa que eu gosto, mãe? Qual o seu problema
comigo?”
“Você precisa ser muito pretensiosa para achar que tem alguma coisa a ver com você.
Claro, seu ego, com certeza, é um problema, mas não há nada que não possa ser mudado em
breve.” ela falou com tanta displicência, que eu realmente cogitei pegar minhas coisas e sair
para um lugar qualquer. “A vida ainda vai te ensinar muitas coisas, garotinha, mas, por
enquanto, você vai fazer o que eu quiser, quando eu quiser e na hora em que eu achar melhor.
Estamos entendidas?”
Tentei ponderar uma resposta. Não sabia se precisava respondê-la, e tentei buscar
ajuda nos olhos de meu pai, mas ele não estava mais lá. Provavelmente, levou Astra para o
lado de fora, e tentou distraí-lo da forma que pôde. Eu realmente estava num beco sem saída,
e sem nenhuma opção favorável a mim.
“Eu fiz uma pergunta, Nova. Me faça o favor de me responder direito.”
“Sim, mãe… estamos entendidos.”
“Eu disse para me responder direito, Nova!”
“Me desculpa, mas eu não sei mais o que você quer que eu fale. Te respondi da forma
que queria, o que tem de errado agora?” perguntei, num tom firme, sentindo meu corpo
balançar tanto quanto uma gelatina quente.
“Ah, você não sabe? Ou você se acha mais esperta que eu, para poder sair por aí
dizendo que você é um menino, achando que não há nada de errado com você? Você é uma
menina, Nova! Uma menina! Então, responda da forma correta.”
“Eu já respondi. Disse que entendia o que você disse, e concordei em não fazer a
única coisa que me faz bem.” falei, sacudindo os ombros. "Não tenho mais nada pra falar.”
“Você acha que já falou tudo? Ainda tem muita coisa para falar, mocinha!" ela
começou, mas meu pai apareceu na porta.
“Ele não tem não, Clementine. Você já disse tudo o que queria, e já machucou nosso
filho vezes demais.” ele comentou, mantendo a porta aberta. “Então, se ainda tiver alguma
coisa ruim para dizer, arrume um advogado, e saia logo daqui. Caso o contrário, arranje um
hotel para passar a noite, e só volte quando respeitar meu filho.”
“Ela é sua filha, Earl! Por que não consegue ver isso? Ela te manipulou tanto assim?”
Minha mãe falou, segurando a mão de Astra, e o puxando para perto de si. “Eu não sou a vilã
aqui, Earl. Espero que possa ver isso um dia.”
“Não, você não é. E nem Nova. Não tem um vilão aqui, Clementine. Shakespeare não
escreveu nossa história, saberia disso se não ficasse o dia trancada no quarto, enchendo o cu
de uísque.” meu pai se virou subitamente para mim. “Vá com Astra lá fora, meu bem. Eu
preciso conversar sozinho com a sua mãe.”
“Vai ficar bem, papai?”
“Pode ter certeza disso, estrelinha.” ele passou as costas dos dedos com leveza pela
minha bochecha, e tirou Astra das garras de minha mãe. “Eu apareço num segundo.”
Astra e eu ficamos caminhando por todo o estacionamento de trailers, chutando
algumas pedras, arrancando pedacinhos de grama, ou esperando que anoitecesse para vermos
o céu, e encontrar nossas estrelas e constelações preferidas. Mas, parecia que até mesmo o
céu queria prolongar o crepúsculo, e nos impedir de saber o que aconteceu, de fato, entre
meus pais.
“Cadê o papai, Nova? Ele disse que ia vir rápido!” Astra choramingou enquanto nos
sentamos no chão. O puxei para perto de mim, e o abracei, sem jeito.
“Eu sei, Astie. Mas é assim mesmo. A mamãe não sabe muito bem conversar com o
papai, e eles ficam horas brigando.” admiti, ainda sentindo o choro anterior na garganta.
“Mas não se preocupa, o papai vai decidir o melhor pra gente, você vai ver.”
Não sabia se dizia isso a ele ou a mim, mas, com certeza, eu tinha medo do que quer
que acontecesse entre meus pais. Também não era novidade pra nenhum de nós, que minha
mãe ficava cada vez mais instável e, por conta disso, discussões como a que eu tive com ela,
eram comuns.
Sim, eu queria voltar para o trailer, arrumar minhas coisas e pedir ajuda à senhora
Bridgerton, com Astra a tiracolo. Mas, eu também queria voltar ao trailer e viver em paz com
a minha família. Sentia falta da minha mãe, mesmo não sabendo muito bem como ela era,
antes de eu nascer. No fundo, eu queria, sei lá, que meu pai a obrigasse a entrar numa clínica
de reabilitação, para que ela voltasse bem para casa.
Eu queria tantas coisas, que não sabia ao certo o que eu realmente queria. Talvez, o
que eu mais quero, era não ter nascido.

Mais tarde, me contaram que todos os caras da banda do meu pai acabaram entrando
na discussão, e o evento se tornou uma briga generalizada. Por sorte, Ross, Astra, Neil e eu
ficamos brincando pelo estacionamento, sob a tutela de Davey, enquanto sabe-se lá o que
acontecia entre os adultos.
Por fim, minha mãe, após conversar por três horas com o advogado e com um médico,
concordou que seria melhor para nós, e para ela, se ela passasse um tempo em uma clínica de
reabilitação, aprendendo a lidar com seus vícios, e, acima de tudo, aprendendo a lidar com
situações em que é contrariada, e situações em que não há cabimento ela expressar suas
opiniões, sejam boas ou ruins.
Papai pediu à assistente e empresária deles, Amber Clayton, organizar uma entrevista
coletiva, onde ele colocaria o país, e o mundo, a par de tudo que estava acontecendo em
nossas vidas privadas.
“Devemos isso aos nossos fãs. A maioria nos ama pelo que nossa música significa
para eles. Já faz muito tempo desde o anúncio do nosso hiato.” ele argumentou. “Se não
quiser que eles participem, eu mesmo faço isso sozinho. Eu devo isso a eles, de qualquer
forma.”
“Somos uma família, Earl. Faremos isso juntos, ou não faremos de jeito nenhum.”
disse o tio Taylor.
Até mesmo nós fomos chamados para a entrevista, mesmo que não fossemos falar
nada, e que passássemos a maior parte de nosso tempo comendo e brincando. Diferente de
Ross, Neil e eu gostávamos muito de aparecer em público, de fazer algumas brincadeiras com
os repórteres nos bastidores dos shows da “nossa banda”. A gente gostava muito de aparecer
na mídia e de conversar com os filhos de outros cantores e atores que conhecíamos pelos
nossos pais.
Para a infelicidade do meu pai, nós éramos amigos de Skylar Lydon, filho do Johnny
Rotten, o vocalista super problemático dos Sex Pistols. Johnny e meu pai estudaram juntos
por um tempo quando eram crianças, e nunca se deram bem. A briga deles tomou proporções
absurdas, quando Johnny disse que bateu no meu pai uma vez, na infância, e que estava
disposto a uma revanche.
Graças ao casamento com a minha mãe, e ao meu nascimento, meu pai nunca teve
chance de responder com sinceridade se brigaria com ele outra vez, mesmo que o conflito
nunca tenha se resolvido. O máximo que fizeram foi processar um ao outro, e meu pai entrou
com uma liminar na justiça, que impedia o Johnny de se aproximar de qualquer um de nós.
Mas Skylar era bem diferente do pai. Ele morava com a mãe numa casa pequena no
interior de Manchester, no norte da Inglaterra e raramente via ou falava com o pai. Mesmo
que nós não tivéssemos um contato muito grande, nos vimos apenas três vezes nas
premiações que nossos pais foram convidados, Skylar era bem legal, e eu gostava muito dele.
Às vezes, eu me pegava pensando se, caso Skylar me conhecesse bem, ele queria
mesmo ser meu amigo? Uma coisa era a gente conversar vagamente nos bastidores dos
grandes eventos em que nossos pais participavam, ou coisa, bem diferente por sinal, era ele
ser um amigo íntimo meu, como Ross e Neil, que me conhecem de trás para a frente e,
quando reclamavam de mim, nunca era visto como algo ruim nem um insulto.
Também me pegava pensando se Remus, Benedict e Skylar seriam amigos. Eu
realmente queria que eles chegassem a se conhecer. Mas, ao mesmo tempo, não sei se seriam
amigos, porque eram muito parecidos, principalmente Remus e Benedict. Provavelmente, se
odiariam, e me odiariam também por obrigá-los a conviver entre si.
Seja como for, na entrevista coletiva da nossa banda, meu pai avisou aos fãs da minha
mãe que ela se ausentar por tempo indeterminado, para cuidar da saúde e que, sim, ela estaria
indo à uma clínica de reabilitação. Tio Cam, por outro lado, ficou encarregado de dar as
notícias bombásticas ao público. Para a surpresa dos repórteres, e minha também, eles
avisaram que estariam voltando à turnê que abandonaram para cuidar de suas famílias.
Dessa vez, estaríamos indo ao Japão, ao Hawaii e a muitos países da América do Sul,
incluindo o Brasil, onde eles sempre quiseram visitar. Também disseram que, nessa turnê,
estariam tocando algumas músicas inéditas, que escreveram em casa. Terminaram dizendo
que os fãs, e todo o mundo, pode esperar um álbum 100% diferente do que eles já estavam
acostumados, que vão se esforçar para lançar mais álbuns, incluindo um que já foi gravado.
No período em que passamos em turnê com nossos pais, estudávamos em casa, e
aprendemos a tocar ainda mais instrumentos. Eu realmente passei a me sentir mais vivo
quando víamos os shows deles, e quando eles me deixavam entrar no estúdio com eles e tocar
os instrumentos que eu quisesse. Meu cabelo estava sempre mudando de cor, mesmo que o
rosa chiclete fosse a cor mais comum, e a que eu mais gostava.
Vez ou outra, recebíamos uma carta de minha mãe, contando como ela estava, que a
recuperação não era nada fácil, mas que fazia pequenos avanços cada vez mais. Também
contava que estava voltando a tocar acordeom e gaita junto da banda que a clínica oferecia
como atividade extra.
“Sua mãe tocava muito bem, era lindo de ver.” meu pai comentou depois de ler a carta
para nós. “Uma pequena que ela nunca tocou para vocês dois.”
“Seu pai até chorava quando a ouvia tocar.” tio Brandon provocou, fazendo todos eles
rirem.
“Eu pensava que a mamãe odiasse música, depois do que ela falou pra mim aquela
vez.” comentei, alternando entre ficar triste e ressentido.
“Ah, meu bem, a mamãe só disse aquilo da boca pra fora. Ela não quis realmente
dizer aquelas coisas.” meu pai disse, tentando melhorar meu ânimo.
“É…, mas ela disse mesmo assim.” falei, antes de voltar correndo para o meu quarto e
chorar por um bom tempo.
Eu sei que é socialmente inaceitável ter tanto rancor da mãe como eu tenho, mas, na
época, eu tinha apenas quatro anos, ia fazer cinco dali um mês, e isso não são palavras para se
dizer à uma criança, nem a qualquer pessoa, por pior que seja seu estado mental e emocional.
Também sei que ela estava doente, e eu não deveria ser tão duro com ela, mas eu nunca fui
muito próximo dela, por mais que eu tentasse. E eu tentei, mas era como correr entre várias
janelas e nunca achar a certa. A cada vez que uma se abre, você corre o risco de despencar de
uma altura gigantesca, até que, por fim, você para de abri-las.
Mas, sim, sendo bem franco, eu admito que senti muita falta dela nesses anos todos
em que ela passou longe de nós. Foram três aniversários que ela nunca esteve presente, nem
mesmo aparecia para nos dar um beijo na bochecha. Astra era, de longe, quem mais sofria
com isso. Claro, eu e meu pai também sentíamos, mas demonstrávamos em forma de rancor e
fingindo que nada havia acontecido.
Astra não era assim. Desde bebê, ele sempre demonstrou muito transparentemente
seus sentimentos e emoções. Ele nunca guardava nada para si e, caso algo o magoasse, logo
ficava perceptível. Por um lado, era até bom, mas, o lado ruim, era que ele passava
incontáveis noites chorando de saudade, e perguntando quando ela voltaria para casa.
Ele nunca chegou a perguntar diretamente para meu pai, mas, sempre que eu o
respondia, inventava uma desculpa pior que a outra. Porque, assim como ele, eu não sabia o
real motivo dela ter ido embora. Imaginava que era por minha causa, porque odiava me ter
como filha, ou sei lá qual outro motivo absurdo.
A culpa que eu carregava dentro de mim era tão grande e tão aparente que, um dia, tio
Brandon me deu um caderninho para que eu pudesse escrever músicas, meus pensamentos ou
outra coisa qualquer que uma criança de seis anos pudesse achar interessante.
No Natal desse mesmo ano, meu pai apareceu em casa, afobado, como se tivesse
corrido uma maratona extremamente longa, e disse que tinha um presente especial para mim
e Astra, mas que precisaria buscá-lo mais tarde.
Passamos a tarde toda conversando com Neil sobre o que poderia ser nosso presente e,
para nossa surpresa, Ross nos avisou que não passaria o Natal em casa.
"Mas você volta no Ano-Novo, né?" perguntei, com medo da resposta dele.
"Não sei, acho que não. Quero passar um tempo com a minha mãe, sabe. Longe de
tudo... que tem aqui." ele disse, dando de ombros.
"Longe da gente, né? É isso que quer dizer, Rossi." Neil falou, com o mesmo rancor
que eu tinha quando falava com a minha mãe. Quando Ross não respondeu, e apenas
encerrou a conversa com um olhar triste na minha direção, eu sabia que tinha algo de errado.
"Por que ele olhou pra você? Não vai me dizer que vai embora também, Nova."
"E deixar você sozinho no mundo, sem nem saber como dobrar suas cuecas? Eu não
sou louco a esse ponto." comentei rindo.
"Não foi isso que eu disse, Nova." ele rebateu, mas também estava rindo.
"Você não duraria nem meio segundo sem mim, Neil. Eu sei que dói, mas pode
admitir, o Astie não vai contar pra ninguém, vai?" cutuquei meu irmão nas costelas, e ele riu,
concordando. "Viu só? Tá seguro com a gente."
Ele revirou os olhos, e ficamos conversando até às seis horas, quando meu pai voltou,
seguido por tio Cam que nos olhava tão animado, que eu estava suando frio, e com as mãos
trêmulas. O tempo que se seguiu entre minha mãe aparecer na porta e eu processar o que
estava acontecendo, passou tão devagar, que eu pensei que alguém havia conseguido parar o
tempo.
"MAMÃE!" Astra gritou, pulando no colo dela, com tanta força, que ela quase caiu
no chão.
"Que saudade, meu amorzinho! Eu senti tanto a sua falta, Astra." ela falou,
visivelmente emocionada, assim como meu irmão.
"Oi, mãe." falei no mesmo tom educado que usei com a senhora Bridgerton ao
conhecê-la. A única diferença era que eu realmente tinha respeito pela senhora Bridgerton.
"Nova!" ela falou num suspiro, como se estivesse surpresa em me ver. "Nossa, você...
você... você cresceu tanto!"
"É, as pessoas crescem em dois anos, mãe." falei, com a expressão dura feito uma
rocha. Meu pai olhou feio para mim, mas eu não conseguia me deixar abalar por qualquer
coisa que ele falasse agora. "Por quê voltou?"
"Eu... bom, acho que meu período de estadia na clínica acabou." ela falou, sorrindo.
"Você acha? Se não tem certeza, não deveria ter voltado, né." rebati, enquanto ela se
encolheu, como se eu tivesse jogado óleo quente nela.
"Nova..." meu pai me repreendeu. Eu, finalmente, o encarei de volta, e percebi que ele
lutava para sustentar meu olhar.
"O que foi que eu fiz agora? Por que tudo que a envolve é minha culpa? ELA é a
culpada de tudo isso aqui. Foi graças a ela que EU criei o Astra. E, foi graças a ela, que eu fui
impedido de tocar, porque, na visão estúpida dela, EU era o problema." gritei. "Então, me
desculpa, se eu não consigo ficar feliz por ela estar de volta, quando claramente, não era pra
ela voltar!"
"Não era. Mas eu quis passar o Natal com vocês, e os médicos disseram que não havia
problema nisso." eu ri pelo nariz, completamente descrente do que estava ouvindo dela.
"Pode nos dar um minuto, mãe? Eu preciso falar com pai. Sozinho." falei, no mesmo
tom condescendente que ela sempre usava comigo. Ela concordou com um aceno de cabeça,
e saiu sem dizer nada, com Astra logo atrás.
"Pode me dizer o que está acontecendo, Nova?" meu pai perguntou. Pela expressão
em seu rosto, eu podia dizer que estava confuso de verdade.
"Eu ia te fazer a mesma pergunta, pai. Por que achou que seria uma boa ideia trazê-la
pra cá, sem ao menos ter perguntado pra mim?"
"Nova, eu... eu achei que seria uma boa surpresa de Natal pra... todo mundo." ele
gaguejou.
"Todo mundo, ou só pra você? Se esqueceu da forma como ela me tratava? Desde o
dia em que eu nasci, eu era praticamente um monte de lixo pra ela! Ou será que todas as
noites em que o Astie passava soluçando na minha cama porque sentia falta da mãe dele não
significaram nada pra você?" rebati, praticamente chorando. "Ou será que você se esqueceu
que, graças a ela, você perdeu dez mil libras pra uma das famílias mais ricas de Londres, e
ainda me fez passar vergonha na frente deles? Em que momento, no auge da sua boa vontade,
você achou que seria uma boa ideia a ter de volta?"
"Earl? Acho que eu vou pedir um táxi e voltar para a clínica." minha mãe disse,
fazendo nós dois olharmos para ela, confusos. "Claramente, eu não sou bem-vinda aqui."
"Você fica." ordenei. "Mas vê se, dessa vez, você age como uma mãe decente pro
Astie. Ele precisa de você."
"Nova, aonde você vai?" meu pai perguntou, desesperado.
"Pra um lugar onde EU seja bem-vindo e bem tratado." resmunguei, batendo a porta
da cozinha, e dando um beijinho em Astra e em Neil, prometendo que voltaria logo.
Havia apenas um lugar aonde eu poderia ir e que teria a certeza de que não seria
horrível como estava sendo em casa. Também sabia que era bem pretensioso da minha parte,
aparecer na casa das pessoas praticamente do nada, sem nenhum aviso prévio, mas eu não
podia mais ficar ali. Eu estava me sentindo tão sufocado quanto da última vez em que vi
minha mãe.
A casa dos Bridgerton ficava a uns bons quarteirões de distância do estacionamento
de trailer e, como o bom clima londrino, estava começando a garoar no instante em que
cheguei à avenida principal.
Na hora em que a mansão apareceu no meu campo de visão, eu mal enxergava um
palmo à minha frente, e já estava completamente ensopado. Hesitei algumas vezes antes de
bater à porta e, assim que o fiz, fui logo atendido, como se já esperassem por mim.
"Ah, senhor Bass-" o mordomo começou a falar, mas parou assim que baixou os olhos
para mim. "Senhor Jones, que surpresa agradável! O que... aconteceu?"
"Eu... tive um pequeno acidente doméstico. Sei que não é uma boa hora pra chegar,
ainda mais porque eu não avisei nem nada. É só que... eu realmente não tinha outro lugar para
ir..." gaguejei, sentindo as lágrimas rolarem pelas minhas bochechas já molhadas.
“Eu entendo, eu entendo. Por favor, entre. Vamos procurar roupas secas para você,
está bem? Quer tomar um banho, ou qualquer coisa desse tipo?” eu neguei com a cabeça,
chorando ainda mais com a gentileza daquele homem. “Certo... eu vou chamar a senhora
Bridgerton, para que ela possa lhe ajudar melhor, ok?” eu concordei com a cabeça, e esperei,
enquanto ele sumia naquela imensidão.
Nunca fui do tipo que gostava de esperar, mas, dadas as condições em que eu me
encontrava naquele momento, eu não tinha quase nenhuma opção além dessa. Por sorte, a
senhora Bridgerton tampouco gostava e, em poucos minutos, veio correndo até mim.
“Nova, querido, o que aconteceu com você?” ela perguntou tão aflita quanto era de se
esperar de uma mãe. Como eu não tinha condições de respondê-la, apenas balancei a cabeça e
comecei a chorar. “Está tudo bem agora, Nova. Você está seguro agora, nada de mal pode te
acontecer mais. Consegue me entender?” balancei a cabeça, indicando que concordava, e fui
levado por ela até um quarto no andar de cima.
“Senhora, para qual quarto o levamos?” o mordomo perguntou, e eu finalmente
consegui encará-la.
“Benedict” sussurrei, fazendo a senhora Bridgerton se virar para me encarar.
“Prefere ir ao quarto de Benedict, meu bem?” concordei outra vez com a cabeça. “Ao
quarto e Benedict, Montgomery. Por favor.” ela falou, pouco antes de se virar para seguir por
outra direção.
“Senhora Bridgerton!” chamei, de repente. Ela se virou com tanta rapidez, que me
surpreendi por não ter quebrado o pescoço. “Eu só... obrigado.”
“Não precisa agradecer, meu bem. Estamos para te ajudar.” ela falou e notei que ela
tinha lágrimas nos olhos. Ela pigarreou, ajeitou a roupa e sorriu. “Agora, se arrume. Vamos
ter a ceia de Natal logo, logo.”
Assim como as portas dos quartos dos irmãos, a de Benedict era toda branca, com
entalhes dourados, e alguns arabescos espalhados por sua extensão. A diferença era que, na
porta de Benedict, não havia nenhum indicativo de que aquele era seu quarto, com a exceção
de um pequeno “B” entalhado na maçaneta.
Montgomery bateu levemente duas vezes à porta antes de abri-la e me anunciar.
“Senhor, temos… uma visita para você.” Escutei Benedict se mexer, provavelmente
estava lendo ou desenho na cama, porque também ouvi folhas de papel caindo no chão,
fazendo-o suspirar irritado.
“Sério? Pode mandar entrar, Monty. Obrigado.”
Montgomery esperou alguns segundos parado na porta, me olhando como se quisesse
ter certeza de que eu estava bem e que não machucaria Benedict. Com uma breve reverência,
ele saiu e me deixou encarando o pouco de espaço do quarto que eu conseguia ver.
“No-nova?” Antes que ele pudesse ter a chance de falar mais alguma coisa, eu o
engoli num abraço e chorei copiosamente, enquanto ele fecha a porta, sem jeito. “O que
aconteceu? Você tá bem?” Eu neguei com a cabeça, sentindo as lágrimas descerem com mais
afinco. Ele passou a mão pelos meus cabelos, antes de se afastar. “Eu… vou dar uma
arrumada nisso aqui, e já te dou atenção, tá? Pode sentar onde quiser, de verdade.”
Depois de juntar tudo numa pilha de papeis que só fazia sentido para ele, Benedict
voltou a me abraçar, e deitou na cama abraçado a mim, fazendo carinho no meu cabelo,
enquanto eu chorava baixinho, tremendo a cada soluço reprimido. Ele parecia não se importar
com o fato de eu ainda estar molhado por conta da chuva.
“Quer me contar o que aconteceu?” Ele perguntou cuidadoso, como se eu fosse
quebrar a qualquer momento.
“Minha mãe voltou pra casa.” Resmunguei, num sussurro fraco.
“Por que ela voltou?” Imaginei que ele, assim como todas as pessoas que
acompanham as notícias, sabia que minha mãe estava em reabilitação.
“Meu pai achou que seria legal tê-la no Natal.”
“Mas ele perguntou pra você como você ficaria com ela lá? Não sei como era a
relação de vocês, mas aquele dia aqui em casa não deve ter sido muito bom.” Ele comentou,
meio avoado, encarando o teto.
“Não. Foi só uma surpresa, mesmo.” Suspirei. “Astra adorou a ideia, mas eu acho
que, como ele era muito pequeno na época, ele não entendeu direito o que tava acontecendo
sabe?”
“Eu sei.” Ele falou, e em abraçou novamente. E eu voltei a chorar. “Mas você sabe
que pode ficar aqui quanto quiser, né?

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