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FUTUR

TINIFNI
Literatura & Tecnologia

A canção mais
valiosa do Brasil
Ana Rüsche
FUTUR
TINIFNI
Literatura & Tecnologia

A canção mais valiosa do Brasil

Ana Rüsche

Não saber nada era a sábia especialidade da dupla de


aprendizes. Uma forma de estar na vida com toda a potência.
Assim, a dupla mentiu à inteligência artificial quando ouviram
a pergunta:
− Vocês já sabem como funciona, certo?
Não sabiam. A máquina bem que poderia detectar a
mentira, mas preferiu largar a dupla entregue à própria sorte
no conglomerado comunitário OctopusVoyag.
− Xis, tô com medo.
− Relaxa, Cau. O que pode dar errado? Não iam mandar a
gente pra uma missão perigosa. E voltar ao passado sempre
cai bem no currículo. − Viagens ao passado foram autorizadas
fazia menos de um século, aquela missão traria prestígio aos
olhos de Comuns.
− Tá, vou tentar. Você já usou papéis de gênero antes? Olha
esse catálogo.
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A mão grandalhona de Cau estatelou na parede uma


projeção. Casais de “homens” e “mulheres” vestiam trajes
com muitas especificações.
− Eita. Bom, vamos focar: temos três dias para a ambientação.
Vai dar tudo certo, vamos usar ponto auricular e tradutor.
− E qual é a altura mesmo?
− 1968. América do Sul.

***

Em três dias, a dupla Cau e Xis preparou-se. Dormiram


pouco e estudaram muito. Queriam dar o melhor para a
Comunidade. Treinaram conceitos básicos do mundo com
propriedade, como “teu” e “meu”. Revisaram o “uso de
dinheiro” e a “compra de coisas”.
Entretanto, havia um detalhe horrível:
− Olha isso aqui! Como se caminha com isto? − Xis balançava
um artefato, uma réplica de calçado, originalmente feito de
tecido animal e madeira.
− É um salto alto. São trajes antigos, vamos ter que ter
paciência.
− Nem me venha com essa, Cautitlán! Você não pegou a
parte pesada da operação. Tuas instruções são facílimas!
− Não são, Xis. Vou ter que atuar como um “advogado-
homem”. Vou ter que comer carne de animais, lidar com
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dinheiros e mostrar voz de liderança. Você sabe o quanto


cansa liderar algo?
Xismênides atirou a réplica do sapato em Cau.

***

No dia da partida, a AI louvou a dupla de aprendizes e


os Esforços Comuns. No amplo salão, diante de três pessoas
do corpo técnico da OctopusVoyag, a inteligência artificial
especificou a missão, ordenando:
“Quarta-feira, dia 10 de janeiro de 1968. Praça Doutor João
Mendes, 62, então centro da cidade de São Paulo, décimo
sétimo andar. Participar de reunião, impedindo o agente
Promathiste de assinar o contrato de gravação da música O
sonho é um sopro. Calcula-se que a composição vá se tornar
um hino da resistência e alterar em três dias o curso da
História. A missão não é punir Promathiste, pois cada pessoa
possui livre-arbítrio. Entretanto, a alteração histórica coloca
em risco a própria existência de Comuns. Agente Promathiste
está há mais de quinze anos naquele século, assumiu o
gênero masculino e apresenta resistência por contaminação
cultural. Para compor a música O sonho é um sopro, utilizou-
se de informações privilegiadas, infração ética e egóica.”
Mantendo uma distância segura para não se tocarem, Cau
e Xis engoliram seco, vestindo trajes de poliéster e poliamida.
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Sentiam-se diferentes.
Os cabelos lisos e pretos de Cautitlán foram fixados com uma
gosma transparente. Sua figura enorme, embalada num trajeto
escuro, com uma corda de tecido que pendia pela barriga. Na
mão, uma maleta preta, feita com tecido animal falso, com
cédulas de Cruzeiros Novos e pequenos retângulos de celulose
com o codinome: Dr. Cauã Vitório do Nascimento, advogado.
A outra figura era digna de pena. Não só Xismênides vestia
frágeis meias transparentes de poliamida, mas ainda recebeu
um conjunto lilás, que a impedia de abrir as pernas, completo
com o tal sapato de salto. Todos os pelos de pernas, axilas e
outros do rosto foram removidos. A face pintada tornou-se
mais branca e triste. Não teve direito aos charmosos retângulos
impressos com seu codinome. Na realidade, somente tinha o
prenome, “Mariângela”.
Recitados os ritos, a dupla foi lançada ao passado.

***

Aportaram num calçamento de pedras quadradas pretas


e brancas. Quantas pessoas! Nunca tinham visto tantos seres
humanos! Um assalto de cheiros impossíveis, alimentos de
origem animal, frutas, dejetos humanos, combustível fóssil
queimado. Alguém esbarrou em Cau, que quase vomitou
ali mesmo.
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“Caminhem. Não há segurança em ficar imóvel”, a AI


esmurrava os tímpanos da dupla no ponto auricular. Tossindo
com um gosto amargo na garganta, Cau procurou aprumar-
se. Mesmo que a AI repetisse o “não há segurança em ficar
imóvel”, não conseguiu, sofrendo o baque. O corpo de Xis
vibrava de adrenalina, procurando dar uma passada naquele
instrumento de tortura, enquanto todos os poros suavam
chorando diante do calor de janeiro:
− Que calor infernal!
− Xis, que merda você fez! − horrorizou-se Cau, − O teu…
rosto! A tua boca!
Esfregando o rosto, Xis borrara toda a superfície pintada dos
lábios, criando uma marca difusa entre as bochechas suadas
e o nariz. Com os pés latejando, Xis suplicou direções à AI:
− Preciso de um banheiro feminino.
Seguindo instruções, cambaleou, enfiando-se numa
abertura, “Padaria Santa Tereza”.
Enquanto Xis se recompunha, Cautitlán observava
passantes para enganar a própria náusea. Embora todos
os “homens” desfilassem trajes semelhantes, as “mulheres”
exibiam as mais variadas cores. Adoraria estudar a moda do
período, matutou, e que doideira essa história de Promathiste!
No futuro, havia pouca gente no planeta, assim, era difícil
entender o encanto pelas multidões do passado. Mas
agora, naquela calçada, entre o rio de vida tão caudaloso,
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Cau sentia brilhar uma música, uma força nas artérias.


O olhar de uma “mulher” apressada cruzou o com o seu.
Cau tentou virar o rosto, mas o magnetismo não permitia. A
outra pessoa retribuiu, abrindo um sorriso tímido, emoldurado
em batom vermelho. Logo, sumiu na multidão.
Tremendo dum calor inexplicável, o grandalhão expirou. O
que foi aquilo?
Xis reapareceu, agora sem o borrão no rosto e com um
passo mais firme no salto.
− Tá tudo bem aí? A AI está me dizendo “agente com
alteração hormonal”. É você?
− Tudo tranquilo, Mariângela. A alteração hormonal deve
ser tua.
Xis calou-se e guardou para si um pensamento. Estendeu
um objeto gotejante para Cau:
− Toma.
− O que é isso?
− Pedi para a AI algo para a náusea. É “picolé de limão”.
Aproveitei para testar o sistema de tradução, está perfeito.
Consegui “comprar”.
A piada aproximou a dupla novamente. Cautitlán lambia
a iguaria gelada, reparando muito na língua de Xismênides,
sentindo o acúmulo de suor nas telas de algodão do próprio
traje.
“Está na hora. Dirijam-se ao edifício”, comandou a AI.
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Sem titubear, a dupla de aprendizes obedecia


mecanicamente as ordens no ponto auricular, “adentrar o
edifício”, “não sorrir”, “parar”. Cau recebia uma enxurrada
de instruções, “apertar botão”, “entrar no cubículo metálico”,
“apertar número”.
Durante a subida lenta no elevador, a AI calou-se.
Interferência.
Ao chegarem no andar, receberam a ordem: “Entrar e
estabelecer diálogo”.
Descobriram-se numa saleta revestida de madeira.
Encadernações de celulose e pele animal revestiam as paredes
de ponta a ponta. Na atmosfera sonolenta, uma “mulher”
lixava unhas longas vermelhas. Cautitlán pronunciou um “boa
tarde” e apresentou um dos retângulos pequenos de celulose,
com Dr. Cauã Vitório do Nascimento, advogado impresso.
A “mulher” espiou o cartão. Em câmera lenta, agarrou um
objeto com disco e sussurrou no bocal, “é para o doutor”.
Depois, seguiu lixando as unhas, assoprando o excesso de
queratina e resina.
Logo, emergiu na recepção uma figura grisalha com pelos
faciais aparados em ângulos. O velho advogado convidou:
− Como posso ser útil?
Cau então repetiu tudo o que a AI ditava no ponto:
− Boa tarde, Doutor Vitor. Desculpe a interrupção súbita
e ainda no meio do expediente, mas viemos o mais rápido
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possível. Representamos a família do senhor Matthew,


indivíduo que foi declarado pródigo em sentença judicial e
está impedido de estabelecer contratos sem a presença de
seu tutor. Viemos para impedir a assinatura do contrato de
gravação de seu cliente com o senhor Matthew.
Os pelos faciais do interlocutor assumiam novos ângulos
ao escutar a voz grave de Cau. Após escutar, proferiu um:
− Por gentileza, por aqui.
Dirigiu a dupla de aprendizes para uma sala ampla, com
uma vista impressionante da cidade.
− Café?
− Sim, por favor − agradeceu Xis, curiosa para provar o
estimulante da época.
O advogado piscou um olho em aprovação. Cau estacou
diante da janela fabulosa, edifícios cortavam o horizonte
num caos de cor e agitação.
− Ah, a velha Catedral. É bonito observar o Tribunal de
Justiça, não?
Assentiram, embora não fizessem a menor ideia do que
fora dito. Após um complexo ritual, o café foi servido.
Com ordens nos ouvidos, Cau pigarreou e ditou novamente
o conteúdo que a AI despejava em seus tímpanos. Escutadas
as explicações, o advogado velho concluiu:
− É uma pena. O rapaz, esse Mathew, parece que
possui muito talento, viu? Meu cliente fala há dias dele,
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está encantado. Disse que uma das músicas iria vencer


o Festival da Canção, não tira a música da cabeça, uma
composição valiosa.
Um som estridente cortou os ares.
− Ah, devem ser justo eles, meu cliente e o músico! Por
obséquio, um instante.
O advogado velho destrancou a porta. A dupla de aprendizes
ouviu a AI anunciar, “agente Promathiste no campo de visão”.
Não havia dúvida nenhuma. Era impressionante. Cau
estacou, quase ousando tocar no braço franzino ao lado:
− A moda, Xis! O agente está desobedecendo a moda do
período!
Ao lado de um “homem” de terno, Promathiste deslizava
displicente, com uma camiseta de iconografia clássica dos
anos de 1990: um bebê nadando numa piscina atrás de uma
cédula de dinheiro. Promathiste logo desdenhou da dupla:
− Ah, vocês aqui! Aposto que vieram acabar com meu barato.
Cau repetiu, com a potência de seu vozeirão, a explicação
ditada pela AI. Mathew-Promathiste fez a tréplica no seu
sotaque futurista:
− É de lascar, é um absurdo. Minha família me impede de
tudo! Foi mal, Jonas, ter tomado o teu tempo. Olha, eu devia
ter te avisado, mas não sabia que iam chegar nesse ponto.
Minha família veio me calar, me impedir que eu cante. Depois
reclamam dos malditos milicos.
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O advogado velho arregalou os olhos com a última frase e


logo recomendou:
− Jonas, é melhor escutar a voz da razão. Se o curador não
autorizar, você pode ter problemas depois, lamento.
Discutiram. Ao final, o pobre Jonas pareceu resignado em
perder a valiosa gravação e o doutor Vitor, aliviado em ter
salvo o cliente daquele bicho-grilo. O advogado convidou:
− Aceitam um drinque?
Abrindo um bar oculto na estante, serviu uma bebida
castanha. Mesmo com a AI protestando nos tímpanos, Xis
brindou, tossiu ao engolir, para então se maravilhar com a
sensação de leveza nos pés.
“Missão cumprida, retornar ao ponto de origem”,
ordenou a AI.
Mathew-Promathiste bateu o copo vazio na mesa,
despedindo-se:
− Jonas, meu irmão, te ligo, bicho. − Dirigiu-se à dupla de
aprendizes: − Vou descer com esses dois caretas.
Sem protestar, Cau e Xis seguiram Promathiste em direção
ao hall do elevador. Aquela espécie de delinquente fez uma
mesura, indicando que Xis subisse primeiro no cubículo
metálico.
Quando o elevador fechou as portas, Promathiste mudou
o tom:
− Temos só alguns minutos, gente. Antes que a AI volte a
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pegar. O metal do elevador nos protege da transmissão. Por


favor, me escutem.
O elevador descia fundo.
Aquela voz desesperada, com um sotaque do passado na
língua do futuro, então cantou:
− No futuro, no nosso futuro, todas as pessoas são controladas
por máquinas. Vocês acham que não tem mais propriedade
privada. É porque tudo foi controlado pela AI. A inteligência
artificial controla tudo, detém tudo. Aqui é essa merda. As
pessoas ainda comem animais. As pessoas passam fome.
Tem gente ainda escravizada. Esse sapato de salto, gata, é
só um detalhe. − Meneou a cabeça na direção de Xis: − Os
robôs estão trabalhando com os milicos nesse tempo, agora.
Eu sei. Eu ouço. Eu tenho amizades. Eu trepo. Eu bebo. A gente
tem como virar o jogo. Sonhar. Juntei referências na música,
montei uma bomba, a canção mais valiosa do Brasil, cacete.
Os milicos querem me impedir de gravar, de cantar. Vem gente
do futuro me proibir, dizendo que tou contaminado, que tou
sujo, tou louco.
O elevador chega ao térreo.
“Dirijam-se ao ponto de coleta”, a AI comanda nos tímpanos.
Então, com o corpanzil feroz, Promathiste se impõe diante
da dupla na intensidade do calor das ruas, como quem não
irá arredar um milímetro daquele momento:
− Ei, vocês não querem nem escutar a porra da canção?
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Não puderam falar.


Um alarido imenso. A AI deu início à viagem de retorno.
A dupla agarra-se, fundem-se num abraço de quem nunca
se abraçou antes na vida. Num sopro, tudo some e o futuro
atropela o instante.

+ + +

Ana Rüsche é escritora e pesquisadora.


Doutora em Estudos Linguísticos e
Literários pela Universidade de São Paulo,
com tese sobre ficção científica e utopia.
Seu livro mais recente, A telepatia são os
outros, foi vencedor do prêmio Odisseia
de Literatura Fantástica e finalista dos
prêmios Argos e Jabuti.

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