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13 Março de 2020 o desconhecido obriga a confinar, pior do que isso, obriga

a mudar, a sair da zona, a que não chamávamos, até então, de conforto.

Entramos em casa e, de repente, havia grades imaginárias nas portas e nas janelas.
Estávamos presos, entregues a nós mesmos e guiados pelo desconforto de perder
o controlo da vida de todos os dias.

Aqueles com que vivíamos, até então, algumas horas por dia e com horas marcadas
pelo que era suposto fazer em cada uma delas, passaram a ser, de alguma forma,
uns estranhos vistos à luz de todos os centímetros que o sol percorria no céu, ao
longo do dia, mesmo quando estava escondido do outro lado da bola que nos serve
do chão que sentimos perder.

Passámos a conhecer todos os seus bons e maus momentos, aprendemos (ou não)
à força a respeitar os seus espaços e tempos.

Conhecem-nos num horário não tabelado e com a insegurança de não viver


segundo um cronograma determinado por outros e que, serviam de bússola aos
nossos dias e a que fomos sempre obedecendo, julgando nós que andávamos
contrariados.

Agora finalmente éramos livres de organizar o nosso tempo. A única imposição que
tínhamos era, afinal, ficarmos no local para onde desejávamos correr todos os fins
de dia.

Tínhamos tempo para tudo.

Estar nas redes sociais, ao telefone ou de frente para a televisão era finalmente,
não só consentido, como incentivado para a manutenção das relações sociais,
familiares e profissionais. Era a tábua de salvação para a manutenção da saúde
mental e económica.

Não tínhamos que nos preocupar com as lancheiras nem com arranjar a roupa e a
mochila para o dia seguinte. Não éramos obrigados a sair ao frio e à chuva e
percorrer quilómetros que eram até então monótonos e massacrantes.

Tínhamos, todos, motivo de conversa, os números, aqueles por que esperávamos


todos os dias ansiosamente. As músicas e hinos de esperança, os arco-íris à janela
que com o tempo perdiam a cor mas continuavam a ser como um código que todos
decifrávamos como um mantra ao universo num constante looping "Vai ficar tudo
bem"...

Podíamos andar sempre com roupas e sapatos confortáveis e até podiam não nos
assentar muito bem ou nem ser os mais condicentes com os ditames da moda.

Tivemos, finalmente, a hipótese de reconhecer que a velha máxima "Todos


diferentes todos iguais" estava escrita ao contrário e que afinal era... Somos todos
iguais mas todos diferentes. Sim estávamos todos no mesmo barco mas em
camarotes bem diferenciados física e emocionalmente.

Finalmente tínhamos como dizer que não ao fast food sem ter que alegar os seus
malefícios para a saúde... Afinal, não era possível e pronto. E olha a sorte de não
teres que comer o almoço que tanto desdenhas na cantina da escola...

Aquele sacrifício dos almoços de domingo que, tantas vezes nos obrigavam a adiar
indefinidamente aquele descanso de sofá e filmes na véspera de mais uma semana
de lufa-lufa. Estávamos, finalmente dispensados porque eram proibidos por lei e as
leis são para cumprir e pronto.

Tínhamos tempo para tudo, para ter a casa sempre arrumadinha, a dispensa
organizada e as refeições muito certinhas.

As idas intermináveis ao supermercado foram reduzidas ao mínimo, em frequência


e duração. Dávamos graças por poder ir e trazer tudo aquilo de que precisávamos.

Os cães ficaram mais calmos e mimados por ter em casa os seus donos e até
passaram a ser uteis para quem se servia deles como livre-trânsito para pôr o nariz
fora da porta.

Prazos de pagamento de luz e água foram alargados, as inspeções dos carros


puderam ser adiadas...

Podíamos também ser polícias dos outros, sancionar com opiniões firmes e
imposições castradoras, incutir sentimentos de culpa que nos iam colocando no
topo do ranking dos cidadãos exemplares.
Podíamos finalmente evitar, com argumentos válidos, aqueles com quem não nos
apetecia ou não nos era conveniente partilhar o nosso tempo físico.

Não ter as unhas arranjadas, o cabelo bem cortado ou pintado era comum e não
eram um grande problema, apenas um incómodo partilhado tantas vezes com um
sorriso brincalhão esboçado.

Explodiram as fórmulas mágicas para entreter as crianças. ~

Passámos a conhecer as caras dos colegas e professores dos nossos filhos o que,
antes, não nos era possível pela bolha invisível onde a escola se encerrava.

Fomos todos políticos, médicos, matemáticos e cientistas cheios de conhecimento


em todas as áreas que envolviam aquele que a todos tocava, desta ou de outra
forma.

Passamos a ser muito mais crentes em Deus e nos santos, os mesmos que nos
tinham colocado naquela situação mas que de alguma forma seriam a salvação de
vivos e mortos.

Passámos a acreditar nas teorias da seleção natural e tentámos sempre salvar a


pele praticando o conceito da moda, a resiliência ( re·si·li·ên·ci·a

(inglês resilience, do latim resilio, -ire, saltar para trás, voltar para trás, reduzir-se, afastar-se,
ressaltar, brotar)

Nome feminino

1. [Física] Propriedade de um corpo de recuperar a sua forma original após sofrer choque ou
deformação.

2. [Figurado] Capacidade de superar, de recuperar de adversidades.).

Começámos a olhar para as diferenças sociais de uma forma muito mais próxima e
o nosso pensamento foi-se tornando muito mais solidário.

Alegramo-nos descobrindo, aos poucos, os monstros que fomos até então, para o
nosso planeta porque, desde que estávamos assim, sossegadinhos, fechadinhos,
encapsulados, tudo renascia do céu e da terra, no mar, nos rios e nas florestas.

E as semanas passavam assim neste afinado ritmo.


Cada vez éramos mais exímios cibernautas, era fantástico termos tanta gente ao
nosso dispor, trazendo aquilo que comprávamos, direitinho à nossa porta. As
plataformas laborais já eram uma extensão do nosso cérebro, o tempo passava
mais devagar tal como sempre almejámos e não havia monotonia no estado
emocional...
Ora havia esperança no domínio da centopeia redondinha, ora havia um retrocesso,
ora era correto fazer assim ora amanhã já era melhor ser de uma forma um
bocadinho diferente.
Um cantinho do mundo melhorava e logo outro colapsava. 
Só o facto de não ter que programar férias foi um descanso... Elas já estavam
delineadas. Seriam efetivamente tranquilas. Não haveria malas para fazer, destino a
escolher, despesas que controlar... Que paz. Não esquecendo que o descanso já
tinha sido pago por inteiro aos sortudos pais ou mães que ficaram em casa a cuidar
dos miúdos enquanto as escolas e creches estavam fechadas. Que privilégio!
Mas.. Afinal...
Só porque a estação mudou, pudemos, com todos os cuidados e afinando o azimute
ocular, munindo-nos de armas ou em gel ou em spray, com mais ou menos filtros e
camadas de tecidos hi tech, ir a banhos se, o sinalzinho verde da praia estivesse a
favor.
Também não era assim tão mau. Não podíamos não estar agradecidos pelo facto
da bolinha das mil pernas ser atreita a insolações. 
Mas parecia, surpreendentemente, que não era dele que nos tínhamos de afastar,
de quem nos tínhamos que proteger. Qual quê?? Era dos outros da nossa espécie.
E assim começámos uma nova temporada desta série que nos continuava a
entreter.
Era a segunda temporada!
Nesta, ainda incertos do número de episódios, jogávamos às escondidas uns com
os outros ensinando, num caso prático, as crianças a medir através do comprimento
dos braços, do salto em comprimento e dos passinhos que, nos crescidos eram dois
mas no caso dos mais pequeninos deveriam ser multiplicados consoante o tamanho
das pernocas... 
Que aprendizagem divertida! 
Já não estávamos confinados, só afastados.
Estávamos a reaprender a andar na rua, a atravessar as estradas. Estávamos a
aprender que afinal não dar um beijinho ou um aperto de mão àqueles com quem
nos íamos cruzando, não era falta de educação ou indiferença mas sim uma
questão de respeito. Que dar cotoveladas uns aos outros era a forma correta de
cumprimento. Isto era realmente o admirável mundo novo. Que bom que era viver e
conviver com todas essas novidades! 
Os miúdos iam todos ser premiados com meios tecnológicos não tendo que pedir
aos pais um computador igual ou melhor que o do amigo. Não... Iam todos ser
iguais. Os senhores que mandam iam dar presentinhos iguais a todos.
Havia sol, sorrisos revelados apenas pelos olhos, as desigualdades sociais eram
verdadeiramente uma preocupação, preocupávamos todos (até os senhores que
mandam) com a saúde uns dos outros, a celeridade dos exames de diagnóstico foi
exponencialmente aumentada, o sistema nacional de saúde reconhecia os seus
profissionais com palavras de conforto e encorajamento. Mais dinheirinho ou férias é
que não podia ser porque o país estava com outras prioridades na distribuição do
seu plafom. O treino intensivo de “resiliência” deu capacidade de encaixe a todos.
Sem dúvida, tornámo-nos realmente em pessoas melhores.
A solidariedade chegou a um ponto tal que todos nós furámos um bocadinho a
nossa bolha para doar oxigénio à economia.
E, do nada, já estavam os meninos a voltar alegremente à escola. De tal forma
alegres por rever os professores e amigos presencialmente que, tinham que
esconder os sorrisos atras da máscara! Estávamos cheios de ânimo e coragem.
Mas porquê? Afinal estávamos a voltar a todas aquelas rotinas que no pré 13 de
março de 2020 nos eram tão penosas.
Horários, mochilas, lancheiras, correrias, filas de caixa, trabalho forçado, conviver
(ainda com a devida distancia, lavagem de mãos e etiqueta respiratória) com quem
queríamos e não queríamos…
Podíamos outra vez quase tudo e demos conta de que somos realmente gregários,
sociais e rotineiros. De que a vida (de alguns) está efetivamente feita para ser vivida
de forma coletiva, produtiva e de que tantas vezes nos queixámos por ter tudo isso
ainda que com meia dúzia de fios mal tecidos aqui e ali.

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