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Entramos em casa e, de repente, havia grades imaginárias nas portas e nas janelas.
Estávamos presos, entregues a nós mesmos e guiados pelo desconforto de perder
o controlo da vida de todos os dias.
Aqueles com que vivíamos, até então, algumas horas por dia e com horas marcadas
pelo que era suposto fazer em cada uma delas, passaram a ser, de alguma forma,
uns estranhos vistos à luz de todos os centímetros que o sol percorria no céu, ao
longo do dia, mesmo quando estava escondido do outro lado da bola que nos serve
do chão que sentimos perder.
Passámos a conhecer todos os seus bons e maus momentos, aprendemos (ou não)
à força a respeitar os seus espaços e tempos.
Agora finalmente éramos livres de organizar o nosso tempo. A única imposição que
tínhamos era, afinal, ficarmos no local para onde desejávamos correr todos os fins
de dia.
Estar nas redes sociais, ao telefone ou de frente para a televisão era finalmente,
não só consentido, como incentivado para a manutenção das relações sociais,
familiares e profissionais. Era a tábua de salvação para a manutenção da saúde
mental e económica.
Não tínhamos que nos preocupar com as lancheiras nem com arranjar a roupa e a
mochila para o dia seguinte. Não éramos obrigados a sair ao frio e à chuva e
percorrer quilómetros que eram até então monótonos e massacrantes.
Podíamos andar sempre com roupas e sapatos confortáveis e até podiam não nos
assentar muito bem ou nem ser os mais condicentes com os ditames da moda.
Finalmente tínhamos como dizer que não ao fast food sem ter que alegar os seus
malefícios para a saúde... Afinal, não era possível e pronto. E olha a sorte de não
teres que comer o almoço que tanto desdenhas na cantina da escola...
Aquele sacrifício dos almoços de domingo que, tantas vezes nos obrigavam a adiar
indefinidamente aquele descanso de sofá e filmes na véspera de mais uma semana
de lufa-lufa. Estávamos, finalmente dispensados porque eram proibidos por lei e as
leis são para cumprir e pronto.
Tínhamos tempo para tudo, para ter a casa sempre arrumadinha, a dispensa
organizada e as refeições muito certinhas.
Os cães ficaram mais calmos e mimados por ter em casa os seus donos e até
passaram a ser uteis para quem se servia deles como livre-trânsito para pôr o nariz
fora da porta.
Podíamos também ser polícias dos outros, sancionar com opiniões firmes e
imposições castradoras, incutir sentimentos de culpa que nos iam colocando no
topo do ranking dos cidadãos exemplares.
Podíamos finalmente evitar, com argumentos válidos, aqueles com quem não nos
apetecia ou não nos era conveniente partilhar o nosso tempo físico.
Não ter as unhas arranjadas, o cabelo bem cortado ou pintado era comum e não
eram um grande problema, apenas um incómodo partilhado tantas vezes com um
sorriso brincalhão esboçado.
Passámos a conhecer as caras dos colegas e professores dos nossos filhos o que,
antes, não nos era possível pela bolha invisível onde a escola se encerrava.
Passamos a ser muito mais crentes em Deus e nos santos, os mesmos que nos
tinham colocado naquela situação mas que de alguma forma seriam a salvação de
vivos e mortos.
(inglês resilience, do latim resilio, -ire, saltar para trás, voltar para trás, reduzir-se, afastar-se,
ressaltar, brotar)
Nome feminino
1. [Física] Propriedade de um corpo de recuperar a sua forma original após sofrer choque ou
deformação.
Começámos a olhar para as diferenças sociais de uma forma muito mais próxima e
o nosso pensamento foi-se tornando muito mais solidário.
Alegramo-nos descobrindo, aos poucos, os monstros que fomos até então, para o
nosso planeta porque, desde que estávamos assim, sossegadinhos, fechadinhos,
encapsulados, tudo renascia do céu e da terra, no mar, nos rios e nas florestas.