Você está na página 1de 10

A LEI DE LAVAGEM DE DINHEIRO E OS REFLEXOS NA

JURISPRUDÊNCIA NACIONAL

Amanda Maria Marques de Carvalho da Silva1


Ana Beatriz de Melo Braga2
Iagor João Santana Sousa 3
Mayla da Silva Henrique4
Rackel Farias Madeira5

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo analisar a Lei nº 9.613 de 3 de março de 1998, também conhecida como lei
de lavagem de dinheiro, primeiramente sendo analisado a evolução da conduta que passaria a ser o objeto da lei
e posteriormente as implicações na jurisprudência nacional, em que pese o Superior Tribunal de Justiça. Para tal,
utilizamo-nos da modalidade de pesquisa exploratória, com a utilização de doutrina especializada, como também
jurisprudências acerda do tema. Destarte, a lavagem de dinheiro possui uma rica discussão acerca de seus
aspectos jurisprudenciais.

Palavras-chave: Lavagem de Dinheiro. Legislação Penal Especial. Jurisprudência. Superior


Tribunal de Justiça.

1 INTRODUÇÃO
A prática da lavagem de dinheiro, embora possua origens que remontam a períodos
longínquos da civilização humana ocidental, encontrou tipificação enquanto ato ilícito na
maioria dos países americanos e europeus apenas nas últimas décadas do século XX — tendo
sido, àquela época, identificada como cerne da atuação de diversas organizações criminosas,
sobretudo relacionadas ao tráfico de drogas, dado que tais associações utilizavam-se de
operações bancárias escusas para explorar brechas de leis (internas e internacionais) e, assim,
manter a anonimidade de seus recursos financeiros.

1
Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Maranhão; amandamaria.mc@gmail.com;
2
Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Maranhão; beatrizmelomb@gmail.com;
3
Graduando em Direito pela Universidade Federal do Maranhão; iagorss12@gmail.com;
4
Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Maranhão; mayla.2013.henrique@gmail.com;
5
Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Maranhão; rackelfmadeira@gmail.com.
2

No Brasil, a Lei nº 9.613/98 (conhecida como ―Lei de Lavagem de Dinheiro‖) é a que


na contemporaneidade estabelece como penalidade dessa infração a reclusão de 3 a 10 anos e
multa, de sorte que existem no ordenamento jurídico penal brasileiro relativamente poucos
paralelos em termos de gravosidade da pena abstratamente cominada.
Ante o exposto e uma vez verificada a importância histórico-jurídica do tema em
questão, bem como observada a frequência em que este se manifesta nos principais tablóides
nacionais, entendemos pertinente pormenorizar as concepções essenciais que regem o crime
de lavagem de dinheiro a fim de fomentar a discussão acadêmica e, assim, lograr maior
discernimento acerca da temática. Para tanto, foram essenciais os ensinamentos de
doutrinadores como Renato Brasileiro de Lima (2020), Rodolfo Tigre Maia (2004), Marcelo
Batlouni Mendroni (2018) e Alvaro Gondim (2015), cujos preceitos alicerçaram a presente
pesquisa exploratória.

2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA
A questão que envolve o surgimento do crime de lavagem de dinheiro ou de capitais
remonta a diversos acontecimentos históricos que contribuíram para a conceituação dessa
conduta pelo ordenamento jurídico nacional. Tendo em vista isso, é possível citar alguns
desses acontecimentos e como eles contribuíram até o conceito atual desse crime.
Num primeiro plano, Anselmo citado por Gondim (2015) destaca a máxima anedótica
pecunia non olet dita por Tito, filho do imperador Vespasiano, após seu pai ter gravado com
um determinado imposto as latrinas romanas. Tal máxima significa que o dinheiro não tem
cheiro, já que nesse fato histórico em questão, Vespasiano pergunta ao filho se sente algum
cheiro, obtendo uma resposta negativa. Vespasiano anteriormente teria mandado lavar as
moedas em um rio.
Outrossim, outro fato histórico que conforme Mendroni (2018) contribui para o
surgimento da lavagem dinheiro é a pirataria do séc. XVII, tendo em vista que era algo
considerado uma proposta de elevado custo, tendo em vista que manter um navio não era
barato, como é possível observar o exposto abaixo
Havia um alto custo em manter um navio pirata, posto que muitas coisas eram
obtidas por meio de hostilidade assumida. Uma vez admitida a pirataria, a tripulação
necessitava ser alimentada e paga; o navio tinha que ser mantido, armas deviam ser
estocadas com pólvora e munição. Muitas coisas eram obtidas por roubos, mas
muitas outras com a ajuda dos portos amigos. Aí mercadores providenciavam coisas
para o navio, roupas, cerveja, vinho, munição, enquanto oficiais corruptos fechavam
os olhos para a presença de saqueadores no seu setor de vigilância. Mas então os
piratas, após saquearem e roubarem, não enterravam as ―arcas dos tesouros‖, como
3

se possa imaginar. Isso é apenas folclore. O navio pirata necessitava de ―dinheiro‖


para funcionar. (MENDRONI, 2018, pág. 21)

Conforme o fragmento acima, para que esses piratas obtivessem sucesso na


administração de seus navios era imprescindível que tomassem alguma atitude com o intuito
de sustento, como também não serem descobertos, desse modo, inicia-se por meio dos donos
desses navios piratas um processo que hoje em dia equivale-se ao da lavagem de dinheiro,
como pode ser observado em seguida:
Eles davam – entregavam ou ―colocavam‖ (placement) – o lote e as mercadorias
(ouro, moedas espanholas, peças caras de ouro e prata) para mercadores americanos
de reputação, que as trocavam por várias quantias menores ou por moedas mais
caras. As cargas dos navios capturados eram muito procuradas pelos mercadores
americanos. Não havia real necessidade de acomodação (layering), já que os piratas
operavam abertamente e as mercadorias eram facilmente aceitas e trocadas.
Integração (integration) dos fundos lavados se tornava importante somente quando o
pirata resolvia se aposentar, e todos o faziam na então alegre velha Inglaterra.
(MENDRONI 2018, pág. 21-22)

Em síntese, havia uma troca de moedas por meio dos donos dos navios piratas com
outros mercadores que possuíam boa reputação, era entregue moedas advindas das atividades
ilícitas desses mercadores – donos de navios – e em troca recebiam outras moedas em uma
quantidades menores ou moedas de valores mais altos, dessa forma observa-se uma
equivalência entre essas moedas.
Vale frisar ainda, outro evento histórico mais contemporâneo, que é o movimento das
organizações mafiosas norte-americanas da década de 1920, podendo citar dois gangsters6
Meyer Lansky e Al Caponne duas figuras icônicas da lavagem de dinheiro, um obteve sucesso
com tal conduta delitiva, já o outro nem tanto. O contexto da atuação dos dois é bem parecido,
ambos líderes de associações criminosas. Al Caponne lucrava com o contrabando de bebidas
com alto teor alcoólico, tendo em vista que vigorava uma Lei Seca que permitia apenas a
venda de bebidas com 0,5 grau de teor alcoólico, além de outras condutas criminosas. Já
Lansky ficou bastante famoso pela forma como lavava o dinheiro advindo de suas condutas
ilícitas, sendo por meio de depósitos em bancos que estavam fora da jurisdição americana e
dessa forma implantou séries de lavanderias para mesclar o dinheiro obtido de forma ilícita
como a lícita.
Por fim, é possível notar dentro desses três acontecimentos históricos tão distantes
entre si, porém com finalidades semelhantes a perpetuação da lavagem de dinheiro, e com
isso a necessidade da implementação de maneiras a coibir tais práticas, sendo que no Brasil

6
Faz referência a alguém envolvido em atividades criminosas.
4

ocorreu por meio da ratificação da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de
Entorpecentes em que se comprometeu a criminalizar a conduta da lavagem de dinheiro
advindas desse tráfico ilícito e posteriormente ampliando o rol de crimes antecedentes, com
isso foi promulgada a Lei nº 9.613 de 3 de março de 1998.

3 A LEI DA LAVAGEM DE DINHEIRO E SUAS ALTERAÇÕES


A Lei nº 9.613/98 não trouxe um conceito exato do que seria a lavagem de dinheiro.
Entretanto, seu artigo 1º, caput, criminaliza a conduta de ―ocultar ou dissimular a natureza,
origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores
provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal‖. Assim, com base nos elementos
contidos no referido dispositivo, é possível inferir que a lavagem de dinheiro refere-se, em
síntese, à ideia de dar aparência lícita ao dinheiro proveniente de infração penal.
Nesse sentido, Rodolfo Tigre Maia (2004, p. 53), apresenta em sua conceituação três
etapas que configuram o processo para identificação do crime previsto na supracitada lei. Para
o doutrinador, a lavagem de dinheiro pode ser entendida
como o conjunto complexo de operações, integrado pelas etapas de conversão
(placement), dissimulação (layering) e integração (integration) de bens, direitos e
valores, que tem por finalidade torna legítimos ativos oriundos da prática de atos
ilícitos penais, mascarando esta origem para que os responsáveis possam escapar da
ação repressiva da Justiça.

A criação dessa divisão em três estágios no processo de lavagem de dinheiro é oriunda


dos Estados Unidos, por isso é comumente apresentada com os termos em inglês. No primeiro
estágio, referente à colocação (placement) o dinheiro de origem ilegal entra em alguma
instituição legítima. Mendroni (2018) destaca que nessa etapa a lavagem está mais vulnerável
a ser detectada, justamente por ser a primeira, e é nela que as autoridades devem concentrar
seus esforços, pois quanto antes forem identificados os esquemas, maior a chance de sucesso
da investigação.
Na etapa de ocultação (layering), o dinheiro passa por várias transações financeiras
para dificultar sua procura, ou seja, a finalidade dessa etapa é afastar ainda mais o dinheiro de
sua origem ilícita. Aqui pode, inclusive, ocorrer transações entre países diferentes, que
possuem um sistema financeiro mais liberal (paraísos fiscais e centros offshore). No último
estágio, referente à integração (integration), ―o dinheiro é incorporado formalmente aos
setores regulares da economia‖ (MENDRONI, 2018, p. 85). Nesse ponto, são feitas
aquisições, investimento, compras de ativos. Assim, o dinheiro incorpora a aparência lícita e a
identificação de sua origem é praticamente impossível.
5

Entendidas a conceituação e o processo para efetivação da lavagem de dinheiro,


cumpre ressaltar que a Lei nº 9.613/98 sofreu aprimoramento legislativo quatorze anos após
sua promulgação, por meio da Lei nº 12.683 de 2012. De acordo com Brasileiro de Lima
(2020), ocorreram três modificações principais. A primeira delas foi a supressão do rol
taxativo de crimes antecedentes. Isso porque, nas primeiras legislações sobre esse tipo penal o
critério utilizado, muito por força da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de
entorpecentes, previa apenas o tráfico de drogas como crime antecedente. A Lei nº 9.613/98 já
previa um rol mais amplo de infrações, mas a atualização de 2012 eliminou completamente o
rol de crimes antecedentes, o que implica na possibilidade do dinheiro ilícito advir de
qualquer infração penal.
A segunda modificação destacada pelo doutrinador refere-se ao fortalecimento do
controle administrativo sobre os setores frequentemente utilizados para a reciclagem de
capitais. Outra atualização que Brasileiro de Lima (2020, p. 644) ressalta é a ―ampliação das
medidas cautelares patrimoniais incidentes sobre a lavagem de capitais e sobre as infrações
penais‖. É o que se observa, por exemplo, com inclusão da expressão ―interpostas pessoas‖
(conhecidas como ‗laranjas‘) no art. 4º, caput, que prevê a possibilidade de imposição de
medidas assecuratórias de bens, direitos ou valores.
Atualmente, a Lei nº 9.613/98 prevê para quem comete o crime de lavagem de
dinheiro a pena de reclusão, de 3 a 10 anos, e multa. Ou seja, é uma das mais graves do
sistema penal brasileiro, fato que se justifica devido ao seu histórico criminal, no qual
geralmente a lavagem de dinheiro é precedida por infrações praticadas por organizações
criminosas estruturadas. Entretanto, com a generalização dos crimes antecedentes, criou-se
um paradoxo, visto que contravenções ou crimes de menor potencial ofensivo, que tem penas
mais brandas, podem ensejar o crime de lavagem de dinheiro, com pena muito mais gravosa.
O Capítulo II da Lei de Lavagem de Dinheiro trata das disposições processuais
especiais. No artigo 2º dispõe que serão obedecidas as disposições relativas ao procedimento
comum dos crimes punidos com reclusão, da competência do juiz singular. Destaca-se, ainda,
que o julgamento e o processo do crime de lavagem de dinheiro independe das infrações
penais antecedentes, ainda que praticadas em outro país.
Ademais, estabelece que a competência é da Justiça Federal quando a infração
antecedente também o for e ―quando praticados contra o sistema financeiro e a ordem
econômico-financeira, ou em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, ou de suas
entidades autárquicas ou empresas públicas‖. Outrossim, não se aplica o art. 366 do Código
6

de Processo Penal, isto é, se o acusado não comparecer nem constituir advogado, deve ser
citado por edital, prosseguindo o feito até o julgamento, com a nomeação de defensor dativo.
O artigo 7º da Lei nº 9.613/98 trata dos efeitos da condenação, para além daqueles já
previstos pelo Código Penal. São eles: a perda, em favor da União ou dos Estados, de todos
bens, direitos e valores relacionados, direta ou indiretamente, à prática dos crimes de lavagem
de dinheiro; e a interdição do exercício de cargo ou função pública de qualquer natureza e de
diretor, de membro de conselho de administração ou de gerência das pessoas jurídicas, pelo
dobro do tempo da pena privativa de liberdade aplicada, isto é, de 6 a 20 anos.
Outro dispositivo que merece destaque é o artigo 14 da Lei de Lavagem de Dinheiro,
que trata da criação do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), no âmbito
do Ministério da Economia. De acordo com o supracitado dispositivo, o COAF tem ―a
finalidade de disciplinar, aplicar penas administrativas, receber, examinar e identificar as
ocorrências suspeitas de atividades ilícitas previstas nesta Lei, sem prejuízo das competências
de outros órgãos e entidades‖. Destarte, fica evidente a relevância de tal órgão para ações
rápidas e eficientes no combate à ocultação ou dissimulação de bens, direitos e valores.
Por fim, destaca-se que os aspectos trazidos no bojo da Lei de lavagem de dinheiro não
se encerram nas pontuações aqui apresentadas. A Lei possui diversos outros apontamentos
substanciais, como a questão da comunicação de operações financeiras e dos crimes da
lavagem praticados no exterior, que só são possíveis de serem abordados em toda sua
complexidade com aprofundado estudo. Contudo, como forma de complementar os pontos
destacados da lei seca, a seguir, serão apontadas algumas teses acerca da Lei nº 9.613/98 no
Supremo Tribunal Federal.

4 TESES DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA SOBRE A LAVAGEM DE


DINHEIRO
À vista do exposto, o crime de lavagem de dinheiro tem sido objeto de diversas
discussões, inclusive no âmbito do Superior Tribunal de Justiça que se pronunciou sobre
algumas questões, como as a seguir:

4.1 Superação do rol taxativo do art. 1º da Lei nº 9.613/1998


Como já abordado anteriormente, a Lei n° 12.683/12 retirou o rol taxativo que versava
sobre os crimes passíveis de serem considerados antecedentes ao crime de lavagem de
dinheiro. Acerca da atualização de tal rol, o direito comparado considera haver três fases
distintas para classificar a tipificação do crime de lavagem de dinheiro. No momento inicial,
7

logo após a Convenção de Viena, os primeiros tipos penais da lavagem de capitais


consideravam apenas o tráfico ilícito de entorpecentes como crime-base. Apesar disso, ―nos
países que adotaram essa sistemática, constatou-se que a lavagem de capitais também estava
sendo utilizada para dissimular a origem de valores obtidos com a prática de outras infrações
penais além do tráfico de drogas‖ (LIMA, 2020, p. 647).
Em razão disso, surge a segunda fase de tipificação que se caracteriza pela ampliação
do rol de crimes-base, mas que se restringe às hipóteses previstas, isto é, trata-se de numerus
clausus. A doutrina majoritária brasileira entende que é nessa fase que se insere a Lei
9.613/1998 já que foi responsável pelo alargamento das hipóteses de crimes antecedentes à
lavagem de dinheiro para além do tráfico de drogas. No entanto, existiu corrente minoritária
que alegava a abertura do rol, com base no inciso VII do art. 1º da lei supracitada, uma vez
que qualquer crime praticado por meio de organização criminosa poderia dar origem a
produtos laváveis.
Não obstante, Renato Brasileiro (2020) destaca que essa posição minoritária perdeu
força a partir da decisão do STF no Julgamento do HC 96.007/SP, no qual se pacificou o
entendimento de que o conceito de organizações criminosas não poderia ser extraído da
Convenção de Palermo, sob pena lesão ao art. 5º, XXXIX da CF/88. Não apenas isso, o STJ,
enfrentando a questão a acerca da natureza do rol previsto pela lei, emitiu entendimento no
REsp 1170545/RJ que perdura em decisões mais recentes como RHC 109122/DF:
Antes da alteração trazida pela Lei n. 12.683/2012, o crime de lavagem de dinheiro
estava adstrito a certas e determinadas infrações penais, segundo rol taxativo
previsto no art. 1.º da Lei n. 9.613/1998. A partir do advento da nova legislação, não
mais existe um rol de crimes antecedentes e necessários para a configuração do
delito de lavagem de capital, que poderá ocorrer diante de qualquer "infração penal".
(Superior Tribunal de Justiça STJ - RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS
CORPUS : RHC 109122 DF 2019/0065388-9).

Nesse prisma, a tipificação brasileira do crime de lavagem de dinheiro passaria para


terceira fase com o advento da Lei 12.683/2012 uma vez que essa revogou o rol de crimes-
base, exigindo apenas que o capital objeto da lavagem seja oriundo de uma infração penal.
Com isso, a legislação brasileira é atualizada ao movimento internacional de tipificação do
crime de lavagem de capitais que já conta com países como Portugal, Alemanha e Espanha.

4.2 Autolavagem de dinheiro


Em diversos países europeus, como a França e a Itália, por exemplo, o autor do crime
antecedente não pode ser o mesmo a responder pelo crime de lavagem de dinheiro. Em tais
países, há uma associação de crime de lavagem de dinheiro com o crime de receptação, por
8

exemplo. A Convenção de Palermo, em seu art. 6º, item 2, ―e‖, apresenta que devem ser
observados os princípios fundamentais de cada Estado parte para a responsabilização do autor
do crime antecedente pelo crime de lavagem de dinheiro. No ordenamento jurídico brasileiro
não existe a mesma vedação presente em alguns países europeus, o que alguns doutrinadores
entendem como indicativo da possibilidade dessa criminalização.
Entretanto, ainda assim, diversos doutrinadores pátrios são contrários à essa
possibilidade de responsabilização do autor do primeiro ilícito cometido. Muitos utilizam
como argumento o exemplo do crime de receptação, que nesse caso o sujeito ativo não pode
ser o mesmo do crime antecedente; na hipótese de ser a mesma pessoa, haveria mero
exaurimento da conduta. (LIMA, 2020)
Corroborando a ideia de criminalização, Delmanto (2006) aponta bis in idem,
afirmando que assim como no crime receptação, a lavagem de dinheiro seria um exaurimento
do crime anterior. Ainda, há o entendimento de que essa responsabilização estaria ferindo o
art. 5º, LXIII, da Constituição Federal, em que é apresentado o direito do acusado em não
produzir provas contra si mesmo; baseado nisso, não seria coerente requerer que uma pessoa
que comete um crime não busque encobri-lo.
Em discordância a tudo que foi exposto, Renato Brasileiro (2020) ensina que a
legislação brasileira não aponta para a vedação da autolavagem, inexistindo a denominada
―reserva de autolavagem‖ e, ainda, que no crime de favorecimento real (art. 349, Código
Penal) há expressa descrição da impossibilidade do acusado responder pelo crime
antecedente, o que não é o caso da lei nº 9.613/98, que dispõe sobre o crime de lavagem de
dinheiro. Ainda, o doutrinador apresenta a impossibilidade da utilização do princípio da
consunção, tendo como fundamento que o delito anterior não consegue abarcar o delito
cometido através da conduta posterior.
Diante dos pontos controvertidos expostos, o Superior Tribunal de Justiça entende que
embora a tipificação da lavagem de dinheiro dependa da existência de um crime
antecedente, é possível a autolavagem - isto é, a imputação simultânea, ao mesmo
réu, do delito antecedente e do crime de lavagem -, desde que sejam demonstrados
atos diversos e autônomos daquele que compõe a realização do primeiro crime,
circunstância na qual não ocorrerá o fenômeno da consunção (APn 856/DF, Rel.
Ministra NANCY ANDRIGHI, Corte Especial, julgado em 18/10/2017, DJe
6/2/2018).

Nota-se que a posição do doutrinador Renato Brasileiro de Lima acompanha o


entendimento do STJ, em que existe sim a possibilidade da autolavagem acontecer, desde que
a conduta referente à lavagem seja diversa daquela do crime antecedente, evitando assim
falar-se em bis in idem.
9

5 DISPOSIÇÕES FINAIS
Os acontecimentos históricos que contribuíram para a nomeação e posterior
delimitação do crime de lavagem de dinheiro fazem referência a diversos momentos da
história da civilização, tendo como ponto de partida a máxima anedótica pecunia non olet (―
o dinheiro não tem cheiro‖) dita por Tito, perpassando pela pirataria do séc. XVII e pela
atuação "gângster" do século XX, acarretando repercussões que viriam a se manifestar por
séculos.
Destarte, a Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Psicotrópicos,
concluída em Viena a 20 de dezembro de 1988 e aprovada pelo Congresso Nacional em 14 de
junho de 1991, introduziu no Brasil a tipificação da lavagem de dinheiro enquanto conduta
criminosa. A partir disso e com a posterior promulgação da Lei nº 9.613/98, o tema passou a
ser alvo de inúmeras análises jurídicas tanto por parte de doutrinadores quanto de
magistrados. Por exemplo, em decorrência dessas discussões, a supramencionada Lei sofreu
aprimoramento por meio da Lei nº 12.683 de 2012. Outras teses relevantes foram suscitadas
pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), sendo este o caso do APn 856/DF, julgado em
18/10/2017 e do RHC 109122/DF, de 2019.
Entende-se, diante disso, que não encontram-se findas as possibilidades de
interpretação da Lei nº 9.613/98. Por este motivo, e tendo em vista o emprego do supracitado
dispositivo em casos de importância chave no cenário político e jurídico nacional,
compreendemos que embora os estudos realizados nesta pesquisa acadêmica tenham sido
deveras elucidativos, a riqueza do tema em discussão não nos permite esgotá-lo. Assim, resta-
nos atentar aos futuros entendimentos doutrinários e jurisprudenciais que certamente serão
firmados nos anos conseguintes, devendo o ordenamento brasileiro sempre visar primar de
forma mais efetiva pela coibição de atos ilícitos que atentem criminosamente contra a
isonomia dos recursos financeiros nacionais.
10

REFERÊNCIAS
DELMANTO, Roberto. Leis penais especiais comentadas. Recife: Renovar, 2006.

GONDIM, Alvaro. O histórico da lavagem de dinheiro. 2015. Disponível em:


https://alvaromarcosgondim.jusbrasil.com.br/artigos/234902478/o-historico-da-lavagem-de-
dinheiro. Acesso em: 15 abr. 2021.

LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Penal Especial Comentada: volume único. 8. ed.
Salvador: Juspodvim, 2020.

MAIA, Rodolfo Tigre. Lavagem de Dinheiro: lavagem de ativos provenientes de crime -


Anotações às disposições da Lei 9.613/98. São Paulo. Malheiros. 2004.

MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime de Lavagem de Dinheiro. 4. ed. São Paulo: Atlas,
2018.

Você também pode gostar