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Auditoria Cidadã à

Dívida Pública - O Que É?


Nas últimas semanas, o termo auditoria tem sido utilizado com muita frequência, e
nem sempre da forma mais apropriada ou justificada. Neste momento, a sociedade ci-
vil portuguesa deve exigir uma auditoria cidadã à dívida pública. Através dessa exigên-
cia, nós, cidadãs e cidadãos da República, impediremos a continuação do sequestro
do nosso destino por agentes cujos padrões de transparência não são suficientemente
elevados e que não elegemos, pelo que se consideram imunes à prestação de contas
que sustenta qualquer democracia.
A constituição de uma comissão de auditoria resultará numa avaliação rigorosa dos
compromissos assumidos pelo sector público português e modificará os termos da
discussão política. Porque, com uma auditoria cidadã, a reestruturação da dívida, que
já é um dado adquirido, será feita em nome da justiça social e a favor de pessoas e
famílias; com as auditorias e auditores do costume, a reestruturação será efectuada
com uma atenção desproporcionada e injustificada aos credores. A sociedade civil
portuguesa deve assumir as suas responsabilidades e exercer os seus direitos, nos ter-
mos da Constituição da República (Art. 48º: 1, 2).

1. O que é uma auditoria?


Uma auditoria é uma avaliação a um sistema ou conjunto de dados, de modo a veri-
ficar a sua consistência, validade e fiabilidade. Em paralelo, uma auditoria também
pode avaliar a capacidade de auto-regulação de um sistema e a fiabilidade da entidade
que produz um conjunto de dados. Pode ser complementada com uma avaliação dos
mecanismos de verificação interna do sistema ou da entidade que produz os dados.
Uma auditoria financeira, por exemplo, é uma verificação da consistên-
cia, validade e fiabilidade da demonstração financeira produzida por
uma entidade, como uma empresa.

2. Qual é a diferença entre uma auditoria às contas


públicas e à dívida (externa, pública ou privada)?
Uma auditoria às contas públicas é diferente de uma auditoria à dívida.
2.1. Numa auditoria à dívida, verificam-se os compromissos assumidos por um devedor,
tendo em conta a sua origem, legitimidade, legalidade e sustentabilidade.
2.2. Uma auditoria às contas públicas compreende, pelo menos, duas dimensões do sector
público: uma avaliação da estrutura de despesas e uma avaliação da estrutura de receitas.
Normalmente, uma auditoria às contas públicas é entendida como verificação das despesas
públicas. A amplitude de uma auditoria deste género, sem monitorização adequada, pode
torná-la um instrumento político, utilizado por grupos de interesses com objectivos apar-
entemente indeterminados e que podem atentar contra o interesse público (como a redução
das transferências sociais).

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A dívida externa é a soma da dívida pública (todos os compromissos assumidos pelo
sector público perante credores não-residentes em Portugal) e dívida privada (todos
os compromissos assumidos por residentes em Portugal perante não-residentes em
Portugal). Portanto:

2.3. uma auditoria à dívida pública refere-se aos compromissos assumidos pelo
sector público (incluindo dívida privada garantida pelo Estado) perante credores
residentes e não-residentes;
2.4 uma auditoria à dívida privada refere-se aos compromissos assumidos pelos
bancos, empresas e famílias e indivíduos residentes perante credores residentes e
não-residentes;
2.5. uma auditoria à dívida externa refere-se aos compromissos assumidos pelo
sector público, pelos bancos, pelas empresas e pelas famílias e pelos indivíduos
residentes em Portugal perante credores não-residentes.

3. No que diz respeito à dívida pública, qual é a dife-


rença entre auditoria externa e auditoria cidadã?
Auditorias externas e auditorias cidadãs dizem respeito a dimensões
diferentes. Vejamos porquê:

3.1 Uma auditoria externa ou independente é uma avaliação da dívida feita por
elementos exteriores ao Estado português. Embora as auditorias externas sejam,
teoricamente, independentes, isso não se verifica em todos os casos.
3.2. Uma auditoria cidadã é uma verificação coordenada pela sociedade civil.

Podemos tirar algumas conclusões desta classificação:

1. Uma auditoria externa pode ser efectuada por qualquer entidade auditora,
desde que a mesma não pertença à estrutura orgânica do sector público;
2. Uma auditoria externa pode não ser independente. As quatro grandes audi-
toras (Ernst&Young, PricewaterhouseCoopers, KPMG e Deloitte) mantêm, desde
há vários anos, relações contratuais com diversas instituições públicas, re-
gimes de responsabilidade limitada e um oligopólio que previne e diminui os
seus incentivos à prestação de contas perante os cidadãos. Não garantem um
grau adequado de transparência numa auditoria à dívida pública. Nesse senti-
do, são auditoras externas, mas não independentes ou credíveis para o efeito;
3. Uma auditoria cidadã é uma avaliação efectuada por uma comis-
são constituída por membros da sociedade civil. Ou seja, é uma audi-
toria externa, porque a comissão não é estatal, embora possa incluir
titulares de cargos públicos, e é uma auditoria independente, porque
garante, desde logo, um grau adequado de transparência e prestação
de contas aos cidadãos. Contudo, a independência de uma comissão
cidadã deve exigir a colaboração da mesma com instituições públi-
cas específicas, como o Tribunal de Contas, o Instituto de Gestão da
Tesouraria e do Crédito Público e o Banco de Portugal.

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4. Porque devemos exigir uma auditoria cidadã?
Existem duas razões principais:
4.1. Uma auditoria cidadã é a única modalidade que oferece garantias em
termos de transparência e prestação de contas à sociedade civil. Além dis-
so, é a única que garante rigor e precisão na detecção de dívida legítima,
ilegítima, insustentável ou odiosa.
4.2. A auditoria cidadã tem o objectivo de clarificar o processo de reestru-
turação da dívida e torná-lo político. Com uma auditoria cidadã, a reestru-
turação passará obrigatoriamente por considerações de justiça social e não
apenas por obrigações contratuais ou pela satisfação das prioridades de
credores (especialmente de credores que são co-responsáveis pela con-
tracção de dívida ilegítima/ilegal/insustentável).

5. Qual é o papel da sociedade civil neste processo?


A sociedade civil desempenha três papéis principais:

5.1. Elege os representantes que formarão uma comissão de auditoria;


5.2. Define os termos da fiscalização à comissão de auditoria;
5.3. Utiliza os resultados.

6. Que tipos de dívida podem ser detectados numa


auditoria cidadã da dívida pública?
A dívida pública pode ser dividida em quatro categorias:

6.1. Dívida legítima: Compromissos assumidos pelo sector público nos termos da
lei, em igualdade de circunstâncias entre devedor e credor, e em benefício (subjec-
tivo/objectivo) do interesse geral;
6.2. Dívida ilegítima: Compromissos assumidos pelo sector público nos termos
da lei, mas sem que se verifique a situação de igualdade de circunstâncias entre
devedore e credor, e/ou em prejuízo (subjectivo/objectivo) do interesse geral;
6.3. Dívida ilegal: Compromissos contraídos pelo sector público em violação do
ordenamento jurídico aplicável;
6.4. Dívida odiosa: Compromissos contraídos por regimes autoritários em pre-
juízo claro dos interesses dos seus cidadãos;
6.5. Dívida insustentável: Compromissos assumidos pelo sector público cujo pag-
amento é incompatível com o crescimento e criação de emprego (o volume de en-
cargos com dívida e juros respectivos asfixia as finanças públicas).

Podemos tirar algumas conclusões:

6.6. O empréstimo acordado com a comissão conjunta BCE-CE-FMI comporta juros


insustentáveis, pelo que uma parte da dívida é, previsivelmente, insustentável. O
caso da aquisição dos submarinos, em que existem suspeitas fundadas de práticas

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corruptas e, em cujo âmbito, já foi aberto um inquérito, exemplifica um compro-
misso insustentável e potencialmente ilegal.
6.6.1. As parcerias público-privadas (PPP), casos de complexidade acrescida, de-
vem ser incluídas no âmbito analítico de uma auditoria cidadã à dívida. A maioria
dos estudos de impacto financeiro apontam para a sua insustentabilidade; as PPP
são, por definição, opacas e, em vários casos documentados, obrigam o Estado a
suportar perdas significativas, enquanto os parceiros privados derivam lucros cuja
tributação continua a ser insuficiente para compensar esta discrepância. Portanto,
também devem ser escrutinadas.
6.7. Os resultados de uma auditoria cidadã à dívida pública podem ser estimados,
mas não determinados antes do processo;
6.8. Uma parcela da dívida pode ser ilegítima e sustentável, legítima e in-
sustentável ou ilegítima e insustentável; em qualquer destes casos, deve
ser exigida a reestruturação;
6.8. A dívida odiosa é um conceito cuja aplicabilidade em países democráti-
cos é mais complicada.

7. Quais as consequências?
Se os resultados de uma auditoria cidadã à dívida pública determinarem a existência
de uma das três combinações que leste no ponto anterior, a consequência deve ser a
reestruturação da dívida, imediata ou faseada. É importante enfatizar isto: a dívida
contraída de forma legítima será identificada como tal - por exemplo, certificados de
aforro ou certificados do Tesouro. O objectivo de uma auditoria cidadã é descritivo e
analítico: a comissão de auditores deve proceder a uma análise rigorosa e exaustiva
de todos os compromissos assumidos pelo sector público, para poder classificá-los da
forma apropriada e comunicar os resultados de forma clara, simples e compreensível
à sociedade civil, de modo a que a mesma possa usá-los para exigir uma reestruturação
imediata ou faseada.
O corolário lógico de uma auditoria cidadã tem duas dimensões:

7.1. A sociedade civil deixa de estar submetida a imperativos tecnocráticos e opa-


cos; passa a dispor de um instrumento de pressão política, devidamente investi-
gado e fundamentado, para exigir, nos termos que definir, uma reestruturação que
dê prioridade às pessoas e ao bem-estar, não aos credores;
7.2. Uma reestruturação da dívida por iniciativa dos devedores será sempre mais
justa do que se for orientada pelos interesses dos credores. Porquê? Porque será
efectuada atendendo aos interesses de todas as partes envolvidas, priorizando os
interesses das cidadãs e cidadãos portugueses.

8. Quem é que faz a auditoria cidadã?


A auditoria cidadã deve ser feita por membros da sociedade civil, com ou sem filiação
partidária, sindical ou associativa. Para ser bem sucedida, a comissão deve procurar
incluir, em todo o processo, representantes de instituições públicas relevantes, como
os já referidos TC e BdP, e um observador do IGCP, que será uma das entidades audita-

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das. Além disso, deve incluir, como membros ou observadores, colaboradores de orga-
nizações internacionais com experiência em auditoria à dívida (p.ex: CADTM, Eurodad,
New Economics Foundation, Jubilee Campaign, ODG).

9. Quem é que fiscaliza uma auditoria cidadã?


A fiscalização da auditoria cidadã e a responsabilidade solidária dos membros da
comissão de auditoria são duas das garantias que tornam esta opção mais credível e
fiável que as suas concorrentes. No entanto, todas as decisões acerca da fiscalização
- orgânica, competências e prestação de contas - devem ser tomadas no seio de uma
plataforma representativa da sociedade civil. Com estes equilíbrios e garantias, a au-
ditoria cidadã fica em condições de exigir um mandato político que lhe permita aceder
a toda a documentação relevante e a fazer um levantamento rigoroso e exaustivo da
dívida pública e dívida privada garantida pelo Estado.

10. Que tipos de trabalho, prazos, obstáculos e pressão


são de esperar numa auditoria cidadã à dívida pública?
Uma auditoria cidadã pode proceder de várias formas e em várias fases. Este é um ex-
emplo retirado do manual do CADTM para auditorias à dívida:

10.1. Análise geral dos processos de endividamento


10.2. Análise dos contratos
10.3. Exame à alocação real das verbas
10.4. Análise dos dados actuais

Existe uma quantidade indeterminada de obstáculos e pressões, mas


podemos apontar alguns:

10.5. Obstáculos técnicos: dificuldades na identificação dos dados e contratos rel-


evantes; acesso a documentos e dados relativos a dívida não contabilizada ou de
contabilização duvidosa (Parcerias Público-Privadas; Empresas Públicas; Entidades
Públicas Empresariais), acesso a documentos e dados relativos a dívida privada
garantida pelo Estado; quantidade e complexidade dos dados/contratos.
10.6. Obstáculos políticos: bloqueio do acesso à informação por agentes políticos
(nacionais e internacionais); falta de credibilidade técnica e política da auditoria
e dos auditores; baixo pluralismo no debate mediático (vantajoso para oposição à
auditoria cidadã).

11. Em que países foram feitas auditorias cidadãs, ou


com participação alargada da sociedade civil, à dívida
pública, e com que consequências?
Foram feitas auditorias cidadãs no Brasil, Filipinas e Uruguai. E também no Equador,
mandatada pelo presidente Rafael Correa. A dívida foi reduzida em 25%, parcela que
foi considerada ilegal.

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12. No contexto dos países periféricos da
Europa, está a proceder-se ou proceder-se-
á a alguma auditoria cidadã?
Na Grécia, foi constituída uma comissão de auditoria, com membros da comunidade
científica, política, sindical e activista. A Declaração de Atenas foi apresentada em
Maio de 2010, e exige a “auditoria democrática das dívidas”, “respostas soberanas
e democráticas à crise da dívida” e “restruturação económica e redistribuição, não
endividamento.” O apelo à constituição da comissão foi subscrito por várias person-
alidades internacionais. Na Irlanda, uma iniciativa coordenada pela AFRI - Action for
Ireland, pela DDCI - Debt and Development Coalition Ireland (que congrega cerca de
90 organizações), e pelo Unite (um dos maiores sindicatos irlandeses), foi lançada a
4 de Maio. Serão contratados 3 investigadores, que terão o apoio de 4 representantes
de cada uma das organizações coordenadoras. Todo o processo será financiado pela
sociedade civil e o projecto apresentará resultados preliminares em Junho.

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