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A oralidade do sertão na prática musical da Banda de Pífanos


de Caruaru nas festividades religiosas locais

Cristina Eira Velha


cristinaeirav@hotmail.com (USP)

Resumo: Esta comunicação pretende abordar um dos aspectos estudados na pesquisa sobre a
Banda de Pífanos de Caruaru e as significações culturais, sociais e simbólicas de sua prática
musical, ligado ao universo da oralidade característica da sua cultura de origem no sertão ala-
goano, que está na base da construção de sua concepção musical e de sua concepção de mun-
do. As fontes compõem-se de registros etnográficos, depoimentos orais, registros musicais e
visuais gravados em campo, e discografia. Através da interdisciplinaridade entre a etnografia,
a etnomusicologia e a história da cultura, procura-se articular a dimensão sócio-cultural-
simbólica e a dimensão formal da linguagem musical, partindo da compreensão da música
como um sistema de significações culturais. Pretendemos dar atenção à relação entre a per-
formance musical e o contexto, buscando os elementos musicais e expressivos ligados ao sen-
tido musical e às temporalidades presentes nas músicas de acordo com o seu lugar na dimen-
são ritual e cíclica da festa. Ao analisar o lugar da música no contexto das festas e cerimônias
religiosas, suas estruturas e linguagens, percebemos o sentido ritualizador e ao mesmo tempo
lúdico da relação dos indivíduos com o fazer musical e sua maneira de relacionar-se com o
mundo nesta cultura, marcada pelo saber oral. O sentido material construído na experiência
sensorial e concreta e o sentido mágico-religioso estão presentes na sua criação musical, na
performance e na concepção musical, permitindo diferentes representações e significações da
performance como prática social e simbólica.

Palavras-chave: Banda de pífanos. Cultura oral. Improvisação.Performance musical. Festivi-


dades religiosas.
Foi em 1924 mesmo. Quando nós começamos a tocar no pife, que nós a-
prendemos. Tocava uma musicazinha de um pessoal que cantava, outro as-
soviava, nós tocava. Foi quando ele (seu pai) veio fazer a zabumba. Que na
infância dele, menino assim que nem a gente, ele tocou numa banda de uns
tios dele, da família do pai dele. Aí começou a banda, do dia em que ele fez
a zabumba, e a caixa, aí começamos a tocar mesmo. (...) Era eu, meu irmão,
meu pai e um sobrinho do meu pai, filho do irmão de minha mãe, que é pri-
mo meu, primo legítimo. Tinha a caixa, a zabumba e os dois pífanos. Lá
ninguém sabia essa palavra, pífano, lá era pife, a palavra de lá, da região. (...)
Nós tocávamos em enterro de anjo (...), a gente ia acompanhando tocan-
do, os pais chamavam meu pai para tocar, convidavam a gente para uma fes-
ta, para a gente tocar. E não ganhávamos nada, só comida. Só pela alegria de
tocar. As músicas que nós aprendemos, as primeiras músicas, só era marcha,
bendito, reza. Só era religiosa. Esse instrumento foi feito para festa religiosa
(...) tocando novena, tocando terço... acompanhamento de andor, de santo. O
pessoal fazia aquelas promessas, e quando a pessoa recebia aquela graça, que
ficava bom, aí ia pagar o que prometeu. Que foi valido no pedido, e alcan-
çou, então fazia essas festas. Promessas para chover. Tinha deles que não ti-
nha um centavo para pagar um tocador para tocar a noite todinha numa no-
vena. E meu pai tocava de graça. Tinha outros que tiravam esmola dois, três
meses, para poder fazer aquela festa. Tirar esmola é com o santo no braço e
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pedindo de porta em porta. O nordeste todo antigamente era assim, todo


mundo, a não ser o fazendeiro.

(Depoimento de Sebastião Biano, tocador de pife da Banda)

Sebastião Biano começou a tocar com 5 anos de idade o seu instrumento, em 1924.
Ele nasceu em 1919. Seu pai era trabalhador rural, trabalhava na roça, e viviam nesta época
como retirantes, fugindo da seca, em busca de trabalho no sertão. Seu depoimento revela a vi-
da de muitas famílias nesta região, e através dele pretendemos compreender um pouco deste
grupo, sua maneira de ver o mundo, sua relação com a música, e o que esta sua experiência de
tocador no sertão do nordeste brasileiro nos revela de significações, linguagens musicais, per-
cepção musical e performance musical com um sentido e um lugar naquela sociedade, em um
contexto cultural específico.
Nesta época viviam em um povoado chamado Olho d´Água do Chicão, em Alagoas,
e foi lá que a Banda se formou, com o nome de Cabaçal, reunida por Manuel Clarindo Biano,
tocador da zabumba, pai de Sebastião Biano e Benedito Biano, tocando os pifes, e Martim
Grande, tocando a caixa. A Banda tinha o nome de Cabaçal. Apenas na década de 50, vivendo
em Caruaru, Pernambuco, é que a Banda mudou seu nome para Bandinha de Pífano Zabumba
Caruaru, e mais tarde, Banda de Pífanos de Caruaru. O período que nos importa é anterior a
Caruaru, em que viveram entre o sertão de Alagoas e de Pernambuco, de 1924 a 1939, quando
sua prática musical estava intimamente ligada às festividades e cerimônias religiosas, feitas
pela população local, ou mesmo fazendeiros, celebrando alguma data religiosa ou algum a-
contecimento cerimonial como casamentos, batizados, enterros, aniversários.
Através dos seus depoimentos, percebemos uma presença marcante da oralidade em
sua concepção de mundo, em seu processo de aprendizado do instrumento, em sua imagina-
ção musical, e na prática musical neste contexto.
A linguagem musical expressa uma maneira de se relacionar com o mundo, possível
em sua cultura, e através dela estes indivíduos estabeleciam uma relação de troca com o con-
texto social, sendo que sua prática musical apresentava um sentido social em um contexto no
qual se estabelecia um conjunto de relações construídas a partir de regras definidas pela festa
ou cerimônia religiosa, numa ordem que constituía um rito. A seqüência ordenada da festa in-
cluía a performance do grupo, e havia regras quanto às músicas que podiam ser tocadas, os
toques específicos para cada momento, como se fossem movimentos musicais, que expressa-
vam os conteúdos simbólicos daquele rito.
A performance musical fazia parte, portanto, do conjunto maior da festa ou da ceri-
mônia. Nesta cultura rural, oralizada, em que tais festividades católicas assumem um papel
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importante na organização das relações sociais e na compreensão do mundo através da religi-


osidade popular, marcada por uma concepção de encantamento do mundo, pelo sentido de
“religare”, ligar-se ao todo, ao universo, à natureza, como complemento da relação do ser, a
música, ou o ato de fazer música era um tipo de ato social que presentificava e ritualizava este
ato social maior caracterizado pela festa32. O lugar da música, da performance musical na fes-
ta apresenta com esta uma relação simbólica, em que a música ritualiza o conteúdo da festa a-
través do ato de tocar e da própria linguagem musical, sendo ela um elemento chave nesta ri-
tualização. A combinação instrumental que compõe a Banda, formada por dois pifes, uma za-
bumba e uma caixa, integra-se no ritual da festa, e a simboliza. Torna-se um elemento sim-
bólico de expressão dos conteúdos celebrados e compartilhados, através da música tocada pa-
ra cada momento, no contato com a experiência sagrada reiterada pela festa religiosa.
Partindo deste ponto, é preciso perceber como as estruturas musicais, sua linguagem
e sua percepção musical estão intimamente ligadas a uma concepção de mundo marcada pelo
universo religioso, pela relação de encantamento presente nas culturas rurais, que expressam
uma ligação com a oralidade33. O saber oral fundamenta a sua relação com a música, o pro-
cesso de aprendizado musical, a construção do instrumento e a própria criação musical, sendo
na vivência sensória com o objeto que se constrói a relação de aprendizado e de significação,
baseada no saber fazer, na música que vem no ouvido e é pegada, quase como se fosse com as
mãos, e inspirada nos sons ouvidos e sentidos.
O que uma pessoa assoviava, nós aprendia. Ou cantava, nós aprendia. Quan-
do eu comecei a fazer o pife, com a idade de dez anos para cá, aí foi que co-
meçou a vir música no meu ouvido. (...) As notas eu ouvia no meu ouvido.
Eu pegava elas, e do jeito que elas vinham no meu ouvido, eu ficava assovi-
ando, deitado. E eu sustentando aquela música, sustentando, sustentando. Aí
vinha o sono, dormia. Quando eu dormia, desaparecia, não vinha mais.
(...) Eu, quando comecei a tocar e comecei a fazer ele, eu tomei uma amizade
igual a um filho esse instrumento. Porque acho bonito o som, e eu mesmo
faço ele, tenho esse dom de fazer, né? E depois desse dom de fazer, colocar
os dedos nas notas e fazer a música, para tocar. Eu mesmo fazia a música.
Fiz muita música, combinando com o tom que sai aqui.
(...) Para fazer as músicas naquela época, eu fazia assim, através de canto de
pássaro, carreira de um animal, que dava aquele compasso, certo, aí eu espe-
rava a música. Briga de animal também. Tem os carneiros, quando briga por
causa de ovelha, eu fiz essa música, inspirei ela. Briga do cachorro com a
onça, foi o cachorro acuando a onça.

32
. Segundo John Blacking, a própria música, sendo um “sistema organizado de símbolos significantes
socialmente”, tem uma relação intrínseca com o pensamento humano sendo compreendida como um “tipo
especial de ato social que pode ter conseqüências importantes para outros tipos de ato social”, apresentando
assim uma dimensão social e uma significação em diálogo com a cultura. (Blacking, 1970: 227)
33
. Burke, Peter. 1989. Cultura popular na Idade Moderna. Europa (1500-1800).SP: Companhia das Letras;
Ginzburg, Carlo. 1987. O queijo e os vermes. SP: Cia das Letras.
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Ao mesmo tempo, este universo da oralidade permite, no contexto da música como


elemento de ritualização da festa, respeitando as normas fixas compreendidas no ritual, que
ela também seja um elemento que traz possibilidades de improvisação. E neste sentido há um
viés de encontro com a dimensão lúdica, criativa e livre da linguagem, estabelecendo novos
sentidos na relação entre os homens.
Como os próprios tocadores disseram em seus depoimentos, não se toca um toque da
mesma maneira, sempre há alguma invenção, alguma mudança criada na hora, alguma idéia,
alguma improvisação.
A partir da música estes indivíduos se relacionam com o contexto, sentida por eles
como sendo um dom. No instrumento que ele sabe tocar, para o qual ele tem o dom de tocar,
que produz a música, está o conteúdo simbólico da troca social, à medida o grupo é convidado
para tocar, oferecendo seu dom, recebendo em troca alimento, uma graça, um dinheiro, ou
mesmo o seu reconhecimento social.
É através desta troca que o grupo reitera a sua identidade social, para além de sua
condição de trabalhadores rurais. O ato musical constitui o elemento que define a sua relação
neste grupo, através de uma interação simbólica dentro do ritual, sendo ela mesma carregada
das próprias significações simbólicas e sociais da festa. A performance do grupo é um ele-
mento ritualizador da festa, e espelha a própria relação ritualizada com o mundo que ela con-
tém.
Na descrição da novena, em que o grupo de tocadores de pife, zabumba e caixa toca-
vam, chamada também, segundo eles, de Zabumbeiro, Zabumba, Terno de Zabumba, percebe-
se que a música concretiza a experiência ritual, sendo através da vivência concreta do ritual
que se dava o contato com o sagrado na cultura rural marcada pelo catolicismo popular. A no-
vena é ela mesma uma festa feita em devoção de algum santo, por agradecimento ou paga-
mento de promessas. Na cultura da seca, era comum se fazer promessas para chover.
Fazia aquela festa, porque choveu, chegou muita água, fazia aquela festa bo-
nita, quer dizer que a promessa que fizeram foi valida. Agora como eles vão
pagar? Agradecer a Deus e o povo que ajudaram para fazer aquela festa? A-
través da novena.

A própria festa estabelecia uma relação de troca com o sagrado, era um agradecimen-
to pela dádiva recebida, do amor de Deus, oferecida a um Santo, de acordo com a data e o dia
de cada Santo. Os tocadores representam um papel fundamental na simbolização da festa, as-
sim como os demais elementos que compõem a cerimônia: as roupas, os fogos, as fitas colori-
das, que materializam o rito, reiteram no plano sensorial as emoções, devoções, o êxtase da
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festa religiosa. Neste sentido, a música é um forte componente para esta materialização dos
sentidos.

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Discos:

Bandinha de Pífano-Zabumba Caruaru. 1972. LP. Bandinha de Pífano-Zabumba Caruaru. CBS, Rio
de Janeiro, Brasil.
Bandinha de Pífano-Zabumba Caruaru. 1973. LP. Bandinha de Pífano-Zabumba Caruaru Vol. II.
CBS, Rio de Janeiro, Brasil.
Banda de Pífanos de Caruaru. 1976. LP. Banda de Pífanos de Caruaru. Continental, São Paulo, Brasil.
Banda de Pífanos de Caruaru. 1979. LP. Banda de Pífanos de Caruaru. Discos Marcus Pereira, São
Paulo, Brasil.

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