Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Resumo: Esta comunicação pretende abordar um dos aspectos estudados na pesquisa sobre a
Banda de Pífanos de Caruaru e as significações culturais, sociais e simbólicas de sua prática
musical, ligado ao universo da oralidade característica da sua cultura de origem no sertão ala-
goano, que está na base da construção de sua concepção musical e de sua concepção de mun-
do. As fontes compõem-se de registros etnográficos, depoimentos orais, registros musicais e
visuais gravados em campo, e discografia. Através da interdisciplinaridade entre a etnografia,
a etnomusicologia e a história da cultura, procura-se articular a dimensão sócio-cultural-
simbólica e a dimensão formal da linguagem musical, partindo da compreensão da música
como um sistema de significações culturais. Pretendemos dar atenção à relação entre a per-
formance musical e o contexto, buscando os elementos musicais e expressivos ligados ao sen-
tido musical e às temporalidades presentes nas músicas de acordo com o seu lugar na dimen-
são ritual e cíclica da festa. Ao analisar o lugar da música no contexto das festas e cerimônias
religiosas, suas estruturas e linguagens, percebemos o sentido ritualizador e ao mesmo tempo
lúdico da relação dos indivíduos com o fazer musical e sua maneira de relacionar-se com o
mundo nesta cultura, marcada pelo saber oral. O sentido material construído na experiência
sensorial e concreta e o sentido mágico-religioso estão presentes na sua criação musical, na
performance e na concepção musical, permitindo diferentes representações e significações da
performance como prática social e simbólica.
Sebastião Biano começou a tocar com 5 anos de idade o seu instrumento, em 1924.
Ele nasceu em 1919. Seu pai era trabalhador rural, trabalhava na roça, e viviam nesta época
como retirantes, fugindo da seca, em busca de trabalho no sertão. Seu depoimento revela a vi-
da de muitas famílias nesta região, e através dele pretendemos compreender um pouco deste
grupo, sua maneira de ver o mundo, sua relação com a música, e o que esta sua experiência de
tocador no sertão do nordeste brasileiro nos revela de significações, linguagens musicais, per-
cepção musical e performance musical com um sentido e um lugar naquela sociedade, em um
contexto cultural específico.
Nesta época viviam em um povoado chamado Olho d´Água do Chicão, em Alagoas,
e foi lá que a Banda se formou, com o nome de Cabaçal, reunida por Manuel Clarindo Biano,
tocador da zabumba, pai de Sebastião Biano e Benedito Biano, tocando os pifes, e Martim
Grande, tocando a caixa. A Banda tinha o nome de Cabaçal. Apenas na década de 50, vivendo
em Caruaru, Pernambuco, é que a Banda mudou seu nome para Bandinha de Pífano Zabumba
Caruaru, e mais tarde, Banda de Pífanos de Caruaru. O período que nos importa é anterior a
Caruaru, em que viveram entre o sertão de Alagoas e de Pernambuco, de 1924 a 1939, quando
sua prática musical estava intimamente ligada às festividades e cerimônias religiosas, feitas
pela população local, ou mesmo fazendeiros, celebrando alguma data religiosa ou algum a-
contecimento cerimonial como casamentos, batizados, enterros, aniversários.
Através dos seus depoimentos, percebemos uma presença marcante da oralidade em
sua concepção de mundo, em seu processo de aprendizado do instrumento, em sua imagina-
ção musical, e na prática musical neste contexto.
A linguagem musical expressa uma maneira de se relacionar com o mundo, possível
em sua cultura, e através dela estes indivíduos estabeleciam uma relação de troca com o con-
texto social, sendo que sua prática musical apresentava um sentido social em um contexto no
qual se estabelecia um conjunto de relações construídas a partir de regras definidas pela festa
ou cerimônia religiosa, numa ordem que constituía um rito. A seqüência ordenada da festa in-
cluía a performance do grupo, e havia regras quanto às músicas que podiam ser tocadas, os
toques específicos para cada momento, como se fossem movimentos musicais, que expressa-
vam os conteúdos simbólicos daquele rito.
A performance musical fazia parte, portanto, do conjunto maior da festa ou da ceri-
mônia. Nesta cultura rural, oralizada, em que tais festividades católicas assumem um papel
335
32
. Segundo John Blacking, a própria música, sendo um “sistema organizado de símbolos significantes
socialmente”, tem uma relação intrínseca com o pensamento humano sendo compreendida como um “tipo
especial de ato social que pode ter conseqüências importantes para outros tipos de ato social”, apresentando
assim uma dimensão social e uma significação em diálogo com a cultura. (Blacking, 1970: 227)
33
. Burke, Peter. 1989. Cultura popular na Idade Moderna. Europa (1500-1800).SP: Companhia das Letras;
Ginzburg, Carlo. 1987. O queijo e os vermes. SP: Cia das Letras.
336
A própria festa estabelecia uma relação de troca com o sagrado, era um agradecimen-
to pela dádiva recebida, do amor de Deus, oferecida a um Santo, de acordo com a data e o dia
de cada Santo. Os tocadores representam um papel fundamental na simbolização da festa, as-
sim como os demais elementos que compõem a cerimônia: as roupas, os fogos, as fitas colori-
das, que materializam o rito, reiteram no plano sensorial as emoções, devoções, o êxtase da
337
festa religiosa. Neste sentido, a música é um forte componente para esta materialização dos
sentidos.
Referências citadas
Andrade, Mário de. 1959. Danças dramáticas do Brasil. São Paulo: Livraria Martins Editora.
Bosi, Ecléa. 1994. Memória e sociedade. Lembranças de velhos. SP: Companhia das Letras.
Bosi, Alfredo. 1992. Dialética da colonização. SP: Companhia das Letras.
______. 1989. A cultura popular na Idade Moderna. SP: Companhia das Letras.
Certeau, Michel de. 2000. A escrita da história. RJ: Forense Universitária.
Chartier, Roger. 1990. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel/ Bertrand
Brasil.
Geertz, Clifford. 1989. A interpretação das culturas. RJ: Guanabara.
______. 1997. O saber local. Petrópolis: Vozes.
______. 2001. Nova luz sobre a Antropologia. RJ: Jorge Zahar Editor.
Ginzburg, Carlo. 1989. Mitos, emblemas, sinais. SP: Cia das Letras.
______. 1987. O queijo e os vermes. SP: Cia das Letras.
Halbwachs, Maurice. 1994. Les cadres sociaux de la mémoire. Paris: Ed. Albin Michel.
Lévi-Strauss, Claude. 1989. O pensamento selvagem. SP: Papirus.
Oliveira, Ernesto Veiga de. 1982. Instrumentos musicais populares portugueses. Centro de Estudos de
Etnologia Peninsular, 2ª ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
______. 1995. Festividades cíclicas em Portugal. Lisboa: Dom Quixote.
Paz, Ermelinda. 2002. O modalismo na música brasileira. Ed. Musimed.
Queiroz, Maria Isaura Pereira de. 1973. O campesinato brasileiro: ensaios sobre civilização e grupos
rústicos no Brasil. Petrópolis: Ed. Vozes; SP: Edusp.
Bastos, Rafael José de Menezes. 1995. "Esboço de uma teoria da música: para além de uma Antropo-
logia sem Música e de uma Musicologia sem Homem", Anuário Antropológico/93, Rio de Janeiro:
Tempo brasileiro, pp. 9-73.
Blacking, John. c.1970. Music, Culture and Experience. Chicaco e Londres: The University of Chi-
cago Press.
______. 1977. “L´homme producteur de musique (première partie)”. Musique em jeu, n° 28,
Septembre, Paris: Éditions du Seuil. Revue trimestrielle.
______. 1973. How musical is man? Washington: University Press.
Feld, Steven. "Estrutura do som enquanto estrutura social". Simpósio de Sociologia Comparativa.
Tradução de: "Sound structure as social structure". In: Ethnomusicology, vol. 28(3).
Merriam, Alan P. 1997. The Anthropology of Music. Evanston, Illinois, Northwestern University
Press. (1ª edição: 1964).
Nettl, Bruno. c.1983. The study of Ethnomusicology. Urbana: University of Illinois Press, c.1983 (Tra-
dução dos capítulos 10: "Música e essa totalidade complexa" e cap.14: "Registrado, impresso, escrito e
oral", por Jacqueline Bacha, Paulo B. Sancer e Paulo G. de Lima. 2001. São Paulo)
338
Pedrasse, Carlos Eduardo. 2002. Banda de Pífanos de Caruaru. Uma análise musical. Dissertação de
Mestrado, Campinas, Instituto de Artes / Unicamp.
Pinto, Tiago de Oliveira. 1997. “As Bandas-de-Pífanos no Brasil: aspectos de organologia, repertório e
função”. In: Portugal e o mundo: o encontro de culturas na música / Portugal and the world: the en-
counter of cultures in music. Portugal, África e Brasil: adaptação, síntese e resistência. Lisboa: Publi-
cações Dom Quixote, pp. 563-578.
Pinto, Tiago de Oliveira. 2001. "Som e música: questões de uma Antropologia Sonora" In: Revista de
Antropologia. vol.44, n°1. SP: FFLCH/USP - Departamento de Antropologia.
______. 1983. "Considerações sobre a Musicologia Comparada alemã - Experiências e Implicações
no Brasil", In: Boletim da Sociedade Brasileira de Musicologia, n° 1, ano I. São Paulo, pp. 69-106.
Pires, Hugo Pordeus Dutra. 2005. A malícia do pife: caracterização acústica e etnomusicológica do
pife nordestino. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro, Centro de Letras e Artes / UFRJ.
Rocha, J. Maria Tenório. 2002. Eh! Lá vem esquenta mulher...: as Bandas-de-Pífanos do Nordeste do
Brasil, em uma perspectiva histórico-cultural. Tese Doutoramento, São Paulo, ECA/USP.
Seeger, Anthony. 2004.“Etnografia da Música”. In: Sinais diacríticos: música, sons e significados.
Revista do Núcleo de Estudos de Som e Música em Antropologia da FFLCH/USP, n° 1.
Discos:
Bandinha de Pífano-Zabumba Caruaru. 1972. LP. Bandinha de Pífano-Zabumba Caruaru. CBS, Rio
de Janeiro, Brasil.
Bandinha de Pífano-Zabumba Caruaru. 1973. LP. Bandinha de Pífano-Zabumba Caruaru Vol. II.
CBS, Rio de Janeiro, Brasil.
Banda de Pífanos de Caruaru. 1976. LP. Banda de Pífanos de Caruaru. Continental, São Paulo, Brasil.
Banda de Pífanos de Caruaru. 1979. LP. Banda de Pífanos de Caruaru. Discos Marcus Pereira, São
Paulo, Brasil.