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O Paradigma do

t
Holocausto
Sir
I send you half the kidne I took from one woman
presarved it for you to ther piece I fried and ate it
was very nise I may send you tlie bloody knif
that took it out if you ouly wate a whil longer 1

Introdução
A lguma coisa está evidentemente fora de ordem na nova or-
dem mundial.
É como se houvéssemos incorporado ao cotidiano os
ardis do Gênio Maligno:2 agora que as realidades da mídia
e dos micro-circuitos parecem mais substanciais (e mais
desejadas!) do que as naturais e sobrenaturais, pressente-
se que um certo limiar foi cruzado e nós tenhamos passa-

1 “Senhor: mandei pra vuce mitade do rin que eu tirei di uma mu-
lier presirvei pra vuce dois otros pedaço eu fritei e comi foi mu-
ito gostoso eu talvez mande pra voce a faca insangentada que
arrancou o rin fora si vuce isperar um poco mais.” Única carta
considerada genuína enviada por Jack, o Estripador, à polícia
londrina em 1888, ano em que aqui se promulgava a Lei Áurea.
2 Descartes, para lançar as bases da filosofia moderna, precisou
criar um personagem temporário, o Gênio Maligno, uma enti-
dade inteligente superior cujo possível intento seria enganar
perpetuamente o ser humano. Ao longo de seus discursos e medi-
tações, Descartes acaba refutando a existência do Gênio Ma-
ligno, é claro, e desse modo prova a legitimidade do universo
material e do seu Deus peculiar.
do a viver num mundo onde “o céu, o ar, a terra, as cores,
as figuras, os sons e todas as coisas exteriores que vemos
são apenas ilusões e enganos”.3
Hoje, após séculos de atuação de uma legião de genio-
zinhos malignos, uma insensibilidade consentida face ao
corpo – induzida pela imisção de práticas sexuais iniciáti-
cas no comportamento sexual da população leiga e pela
crise de identidade da medicina que provocou um apego
patológico às drogas anestésicas e à intervenção cirúrgica
e genômica – força o ser humano comum à denegação da
dor associada a tais práticas. Entretanto, quaisquer que se-
jam as suas variantes, há apenas uma forma essencial de
denegar a dor: considerarmo-nos de um modo ou de outro
“absolutamente desprovidos de mãos, de olhos, de carne,
de sangue, de qualquer sentido”,4 ou seja, tornando perma-
nente o estado de alma a que Descartes precisou recorrer
apenas transitoriamente para confutar a atuação do Gênio
Maligno.
3 Descartes, Primeira Meditação, 12. Essas são as ilusões com as
quais o Gênio Maligno pretendia enganar Descartes. Elas adqui-
riram hoje estatuto de realidade, pois a cibernética, no limite, per-
mite excitar os sentidos independente de ‘coisas exteriores’ e
empregar-se a razão sem ativar a faculdade do entendimento (o
incipiente orgasmo virtual e a ainda mais incipiente inteligência
artificial são exemplos presentes de potencialidades futuras).
A filosofia cartesiana precisou hipotetizar a existência de um Gê-
nio Maligno gerando equívocos de percepção; hoje o Gênio Ma-
ligno é rei.
4 Descartes, Ibid.
Nosostros, porém, seres ainda sencientes (pero no mu-
cho), não podemos deixar de ver claramente os efeitos des-
se estado de dúvida constante perpetrado pela filosofia da
representação. Jack, o Estripador, tomou-os inequívocos.

Antes de Jack

“ Mais importante foi o reconhecimento instintivo de que


algo estranho estava acontecendo, de que alguma mudança
básica estava sendo anunciada. Antes de Jack, o Estripa-
dor, praticamente todo crime tinha uma origem ‘econômi-
ca’, [...] Nada que sugerisse a violência maníaca de um
homem em guerra com a sociedade.”5
Os crimes bizarros de Jack provocaram à revelia um
novo tipo de relação em sociedade ao criarem uma manei-
ra inaudita de infligir dor e apreensão. Foram arautos inu-
manos de um estado de guerra ao qual à morte inesperada
hobbesiana6 acrescentava-se agora a iminência de morte
aleatória. Anunciaram no plano social o emergir aterrador

5 Wilson, Colin, Introdução, in Rumbelow, Donald, The Com-


plete Jack the Ripper (Londres: W. H. Allen, 1987).
6 Para Hobbes, o ‘estado de guerra’ define-se pela possibilidade
de se morrer sem aviso prévio, por assim dizer. Em não se es-
tando em guerra, a morte sempre enviaria algum tipo de notifica-
ção. Vale notar que todo artifício tecnológico (da pedra lascada
aos feixes de quanta) também carrega no bojo a possibilidade de
matar inesperadamente, ou seja, traz consigo o estado de guerra.
do randômico. A dúvida cartesiana se transmutara e mos-
trava pela primeira vez sua verdadeira face.
Jack inaugurou um novo tipo de guerra; uma guerra
apolítica, avessa a considerações econômicas, esquiva a
justificações dialéticas – uma vez que, em si, a volúpia san-
guinolenta esgota-se no próprio ato – mas, não obstante,
uma guerra. Com Jack, a sociedade se deparou com um ini-
migo que não podia mais ser desconsiderado. Mais: com
um inimigo que haveria eventualmente de sair-se vence-
dor.
Toda guerra – clássica, lisérgica ou de mera algozaria
– implica em gravames políticos. Qual seria o ônus políti-
co dessa nova guerra?

Os Governantes Ocultos ou Uma


Defesa a Contragosto da Democracia

Q uando o grande soberano governa, o povo nem sabe que


7
ele existe, dizia o bom e velho Lao Tzu . Dos sacerdotes fa-
raônicos no Egito antigo aos mistérios do direito divino
reivindicados por Carlos Magno aos labirintos subterrâ-
neos dos estados-maiores da contemporaneidade, o ‘prín-
cipe’ mais eficiente é sempre o que menos aparece.

7 Tao Te King, XVII.


Formas diferentes de teocracia, variando conforme o
deísmo peculiar de cada sociedade (mas todas elas excluin-
do de maneira mais ou menos absoluta a população em ge-
ral das esferas de poder) sempre caracterizaram o estado.
Exceção à regra é o estado democrático. A democra-
cia, direta ou representativa, quaisquer que sejam as suas
falhas, é um esforço bastante meritório para ‘desocultar
governantes’.8 A Queda da Bastilha foi também a Queda
dos Mistérios – dos mistérios em geral e dos mistérios do
governo em particular. A Queda dos Mistérios, no entan-
to, foi temporária, uma vez que o sonho iluminista não vin-
gou (ainda que tenha legado à humanidade alguns séculos
durante os quais se acreditou que a opressão não precisa-
ria necessariamente reger o contrato social).
Não vingou porque, lamentavelmente, a hierarquia
faz parte da ordem inescapável das coisas (para exaspero
das almas de índole anarquista) e, como tal, é própria da
natureza do poder: a hierarquia não pode desaparecer. Des-

8 Um esforço no qual se inserem as primeiras comunidades cris-


tãs. Ao contrário da igreja hierarquizada posterior, essas “tinham
tudo em comum; vendiam as suas propriedades e os seus bens e
dividiam o preço entre todos, segundo as necessidades de cada
um” (Atos dos Apóstolos, 2:44). Pouco estudada, essa forma de
democracia direta muito contribuiu para a derrocada dos gover-
nantes ocultos de Roma: as perseguições que vitimaram os pri-
meiros cristãos decorreram em boa parte da convicção de que a
crescente ineficácia dos deuses do império devia-se de alguma
forma às práticas do cristianismo primitivo.
graçadamente, é integrante da condição humana. Os so-
nhos de 1789, 1848 e 1968, não fossem tão ingênuos, não
teriam incluído a des-hierarquização da sociedade. De al-
guma forma, em alguma esfera, a hierarquia (massas lei-
gas de um lado, governantes portando ou ostentando
algum cetro de poder do outro) há de permanecer.
Uma curiosa dicotomia social persisitiu no projeto ilu-
minista: embora todo poder político efetivamente emanas-
se do povo, os governantes ocultos não desapareceram;
permaneceram ocultos, quase inatuantes, à espera, de ata-
9
laia. Isto é, até Jack começar a estripar mulheres.

O Paradigma do Holocausto
“ Uma teoria sobre os motivos do assassino é que ele estaria
realizando uma Operação para obter o supremo poder da
magia negra. As sete mulheres tinham que ser mortas para
que seus sete corpos formassem ‘uma Cruz do Calvário de
sete pontas’ voltada para o oeste.”10

9 Madame Blavatsky descobriu seus mestres ocultos; Allan Kar-


dec aliciou para o rol dos dirigentes invisíveis praticamente todo
ser humano que já morreu; Aleister Crowley vendeu tudo o que
tinha e o que não tinha para ser emissário dos chefes secretos; o
Lectorium Rosacrucianum acusa os monges do Tibete de exerce-
rem domínio sub-liminar sobre o planeta. Et puis...
10 Crowley, Aleister. The Confessions (Londres: Routledge & Ke-
gan Paul, 1983), p. 691. Essa teoria, como qualquer outra teoria
específica sobre os motivos de Jack, é do âmbito da facécia. Jack
Qualquer que seja o supremo poder da magia negra, e
independente das práticas de Jack terem sido ritualísticas
ou não, o sacrifício sangrento é sempre da natureza da su-
premacia absoluta do supliciante sobre o supliciado.11 O
grande e terrível feito de Jack foi transpor esse poder para
o plano do aleatório, do não-institucional e do profano.
Com Jack, o Estripador, o sacrifício sangrento invadiu o
domínio do cotidiano.
Ao expor aos olhos do público ritos (ou paródias de ri-
tos) sacrificiais outrora reservados a contextos iniciáticos,
Jack atuou como uma espécie de relações públicas divul-
gando formas antigas de exercício de poder que havian
sido restritas às elites. Jack, o Estripador, foi, então, um
agente de ‘democratização’ do paradigma do holocausto.
Sua impunidade serviu e serve para simbolizar a eficácia e
aparente superioridade desse paradigma.
Mas o que significa uma sociedade viver sob o Para-
digma do Holocausto?

não nos legou nem sua identidade nem seus motivos, mas tão so-
mente uma aura sombria apontando para a possível impunidade
do grande crime.
11 E exerce um atrativo inegável sobre o psiquismo mágico-religi-
oso. A Igreja Católica, por exemplo, concentrou todo o seu culto
na imolação do Cordeiro, não na sua ressurreição. Nem deve ter
sido por acaso que o mais poderoso grupo ocultista do final do sé-
culo XIX, a Aurora Dourada, foi criado por um médico legista
de Londres (em 1887, aliás, coincidentemente um ano antes do
primeiro crime de Jack).
O
O Cotidiano como Situação Limite
que significa uma sociedade viver sob o Paradigma do Ho-
locausto? Significa, acima de tudo, aceitar o sacrifício san-
grento como legítimo.12
Disso decorre tudo o mais: o cinema não poder filmar
um estupro que seja percebido como uma experiência de
fato não-prazerosa; a medicina incorporar os experimen-
tos médicos do nazismo e reconhecer que, no fundo, apon-
tavam para a direção correta; o coito anal e o prazer dorido
nele implícito serem considerados um direito adquirido de
toda a humanidade; a praxis publicitária recorrer diuturna-
mente a apelos tanatológicos; o esporte adquirir nuances
nítidas dos jogos gladiatoriais; a economia mundial esco-
rar-se hoje nas duas indústrias que mais matam e mutilam
(a armamentista e a automobilística) e amanhã nas mais
destituídas de fundamentação ética (a informática e a enge-
nharia genética); o progresso da física das partículas ter
como pré-requisito metodológico a total aniquilação do
seu objeto de estudo; embriões humanos serem transfor-
mados em matéria-prima de cosméticos e fetos em reposi-

12 Ou até necessário. Crowley, por exemplo, anteviu em 1904 o dia


em que o sacrifício humano seria retomado (“Sacrificai gado, pe-
queno e grande; depois uma criança. Mas não agora.” Livro da
Lei 3:12-13). Da sua parte, judeus ortodoxos modernos têm ex-
pectativas messiânicas que incluem a reconstrução do seu tem-
plo em Jerusalém, para nele derramarem o sangue de uma
novilha vermelha sem mácula ou defeito (Números 19:2).
tários de órgãos sobressalentes; Freddy Krueger tornar-se
objeto de culto entre adolescentes americanos; a sistemáti-
ca do genocídio organizado mobilizar menos do que um
golfinho encalhado na praia; ou o valor intelectual e revo-
lucionário de uma mulher ser medido pelo número de
abortos que já praticou.

N
O Brasil
13
uma nação movida a profecias de Dom Bosco, a riqueza
desvinculada do trabalho – em si um raciocínio mágico.
(nos sentidos freudiano e hermético) – sempre ocupou lu-
gar de destaque na imaginação.14 Associadas a isso, e igual-
mente no âmbito do raciocínio mágico, uma sexualidade
basicamente perversa15 e a veneração supérflua e estéril de

13 Em agosto de 1883, Dom Bosco teria visto em sonho – “Eu en-


xergava nas vísceras dos montes e no profundo da planície” –
uma terra de riquezas inimagináveis entre os paralelos 15 e 20.
Alguma visão semelhante sempre foi o foco das esperanças brasi-
leiras.
14 “Eu imaginava fortunas absurdas; dinheiro achado na rua, o apa-
recimento de um fazendeiro rico e atilado que diria: ‘Ninguém
percebe o seu valor, rapaz”’, diz Luís da Silva, protótipo do inte-
lectual brasileiro de gabinete, no Angústia de Graciliano Ramos,
por exemplo.
15 Arraigada no substrato inconsciente nacional (pois formada ao
longo da nossa infância colonial), essa sexualidade, ao menos no
que ela tem de ‘pública’, deriva de uma efusão de brancos priápi-
cos (para os quais as marcas da sífilis eram sinais desejados de vi-
uma vasta gama de entidades desencarnadas, só podiam
mesmo acabar gerando uma estrutura civil que permite
um conluio entre governantes democraticamente eleitos e
governantes ocultos.16
Não foi sem motivos que Thomas Harris, em O Silên-
cio dos inocentes, fez Hannibal Lecter, o gênio psicopata
canibal “imortalizado” pelo filme homônimo, escolher o
Rio de Janeiro como a primeira cidade a visitar depois de
reconquistar a liberdade. Afinal, só a antropofagia nos
une…

à
rilidade), negras calientemente submissas, brancas histéricas e
secas (que perdiam o viço da juventude aos dezesseis anos), e ne-
gros forçados à ignomínia subjugante do corno constrangido.
Tudo isso, e muito mais, está delineado no Casa Grande e Sen-
zala de Gilberto Freyre.
16 Os rituais de vodu que teriam sido realizados nos porões do Pa-
lácio do Planalto nos dias terminais do governo Collor e a asses-
soria macroeconômica prestada por magos auto-proclamados
(vide Paulo Coelho em Davos) são exemplos pitorescos mas iso-
lados. A preeminência dos governantes ocultos nas esferas de po-
der no Brasil é alucinantemente denunciada no filme A Idade da
Terra, de Glauber Rocha, um delírio apocalíptico do nosso des-
tino nacional: “Esta é a cloaca do universo; nós estamos condena-
dos; nossas estruturas, nossos alicerces, foram destruídos; a
qualquer momento poderemos ser tragados pelo abismo”, clama
o personagem vivido por Tarcísio Meira.
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