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FILOSOFIA TERMINADA,

FILOSOFIA INTERMINÁVEL1
SARAH KOFMAN

I. O ARGUMENTO DA MATURIDADE

Este é um dos argumentos mais comuns na defesa do ensino


da filosofia. O aluno não estaria suficientemente “maduro” para
compreender um ensinamento filosófico antes da “última série”.
Pretender ensinar a filosofia em outras classes do secundário
repousaria sobre um desconhecimento das possibilidades da
inteligência humana, incapaz de sustentar antes de uma determinada
idade os esforços exigidos pela mais nobre das disciplinas. Quanto a
reservar a filosofia apenas para os estudos superiores, pode-se admitir
que seria então muito tarde: a filosofia deveria ser o “coroamento”
dos estudos secundários, ela deveria reinar soberana sobre as outras
disciplinas, completando um determinado ciclo de conhecimentos,
para posteriormente deixar lugar, também, a algo mais importante que
ela: a vida, a ação, outros estudos, exceto para um pequeno número de
estudantes que, por sua vez, se destinaria a um estudo filosófico.
O argumento da maturidade parece “realista” e uma pedagogia
razoável deveria então, obedecendo ao princípio de realidade, preconizar
um ensinamento filosófico reservado somente à última série. Poderíamos
também invocar o princípio de prazer: a idade da última série é a da
adolescência que tem prazer em subverter tudo, “colocar tudo em dúvida”;
não é a adolescência a idade crítica, cética, idade “metafísica” por definição?
Ensinar a filosofia para esta faixa etária seria, portanto, ir no sentido da

1
Texto originalmente publicado em GREPH, Qui a peur de la Philosophie? Paris:
Flammarion, 1977. O título, “Philosophie terminée, philosophie interminable”,
faz referência à classe onde unicamente se costumava ensinar filosofia na escola
francesa, antes do advento de experiências de filosofia com crianças, no ensino
primário, a saber: a “Terminale”, última série do Liceu, correspondente ao
terceiro ano do ensino médio brasileiro. Para as citações contidas no texto,
procurou-se seguir traduções existentes em português, traduzindo a partir do
francês apenas quando a versão da autora se distancia significativamente da
versão portuguesa. Tradução de Ivan Pinto e Filipe Ceppas.

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inclinação natural da inteligência, que, num momento bem determinado


de seu desenvolvimento, teria necessidade de passar por uma fase
negativa, interrogativa, “filosófica”. Esta idade cética, correspondente à
“maturidade” metafísica, seria, tal como outros momentos da vida, apenas
uma etapa no caminho da verdadeira maturidade da inteligência. Esta
implicaria no abandono da dúvida, da interrogação, da crítica dissolvente,
em benefício das certezas e da positividade. A filosofia na última série,
entendida como interrogação crítica, dúvida generalizada, subversão das
opiniões recebidas, exploraria então este momento privilegiado que é a
adolescência: ela poderia ser interpretada como uma concessão outorgada
à necessidade de independência e de crítica da juventude, quando ela
teria um valor catártico e preventivo: a crítica filosófica, ocasionando uma
descarga de pulsões destrutivas, serviria de escape, permitiria, na futura
vida real, a economia das revoluções políticas. Ao término do curso de
filosofia, a crise da adolescência deveria estar liquidada: a passagem da
escola secundária para a vida seria também a passagem da idade da
revolta para a idade da razão, para a maturidade verdadeira. Tudo deveria
entrar em ordem novamente. A crise deveria ser passageira, servir de
transição, sem deixar vestígios.
O argumento da “maturidade” não é portanto “inocente”: é
fundamentalmente político, implica uma determinada política. Não é por
acaso que o termo “maturidade”, no sentido rigoroso, remete, de modo
privilegiado, dentre todas as outras, à filosofia de Auguste Comte, para
quem precisamente a idade metafísica e a da adolescência são a mesma
coisa; uma e outra são um mal radical pois comportam um risco por
excelência, o risco da desordem e da anarquia; a idade metafísica é
somente uma idade de transição, uma idade necessariamente patológica
devendo deixar lugar a uma idade normal, idade positiva, da maturidade
viril ao longo da qual todos os valores teológicos se encontram
restaurados, ainda que nunca garantidos, por princípios não mais
quiméricos, porém científicos.2
Talvez seja esta a questão...
O exemplo de Comte convida a que se mantenha particularmente
atento ao “tema” da maturidade, presente em quase todos os filósofos,
dos sofistas à Nietzsche: eles se interrogam sobre o melhor momento para
filosofar e sua resposta, podemos suspeitar, nunca é neutra. Ela implica

2
Cf. S. Kofman, Aberrations. Le devenir-femme d’Auguste Comte. Flammarion
1978.

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quase sempre um postulado que parece evidente: a oposição entre a


filosofia e a vida.
Assim, para Descartes, é preciso filosofar somente uma vez na
vida, isto é, “buscar seriamente” se desfazer das opiniões recebidas para,
graças a uma dúvida geral e metódica, chegar a “estabelecer algo firme e
constante nas ciências”. A própria seriedade do empreendimento exige
que se tenha chegado a uma idade madura: precisamente porque se está
certo de tudo e livre de toda inquietação, pode-se praticar com seriedade
uma dúvida sistemática e hiperbólica; a ausência de dúvida existencial
sozinha garante o caráter filosófico da dúvida (a exploração do ceticismo
da adolescência é, portanto, fundamentalmente anti-cartesiana):

“Agora, pois, que meu espírito está livre de todos os


cuidados, e que consegui um repouso assegurado numa
pacífica solidão, aplicar-me-ei seriamente e com
liberdade em destruir em geral todas minha antigas
opiniões.” (Primeira meditação).*

Filosofar uma vez na vida: pois a dúvida é apenas um meio que


objetiva fundar as ciências, objetiva dar raízes metafísicas à árvore da
qual os ramos principais são a medicina, a mecânica e a moral, ciências
cujos frutos são o bem-estar do corpo e da alma, isto é, a felicidade. A
principal utilidade da filosofia é, portanto, garantir a felicidade, fim último
da existência. Uma dúvida radical permite encontrar uma certeza
inabalável, um ponto firme e fixo, que seja uma garantia contra a dúvida
existencial e propicie uma segurança definitiva. Ela permite, para o resto
da existência, ter que consagrar poucas horas por ano aos pensamentos
“que ocupem somente o entendimento...”, consagrar todo seu tempo a
“descansar os sentidos e repousar o espírito”:

“como creio ser necessário compreender bem, uma vez


na vida, os princípios da Metafísica, porque são eles
que nos fornecem o conhecimento de Deus e de nossa
alma, creio também que seria muito prejudicial ocupar
amiúde o entendimento para meditar neles, porque ele
não poderia aplicar-se tão bem às funções da imaginação
e dos sentidos; mas que o melhor é contentar-se em

* Edição brasileira: Os Pensadores, traduções de J. Guinsburg e Bento Prado


Júnior, São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 85.

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reter na memória e na crença as conclusões que foram


alguma vez tiradas e depois empregar o tempo restante
para o estudo, nos pensamentos em que o entendimento
atua com a imaginação e os sentidos.” (Carta à Princesa
Elisabeth de 28/06/1643, grifo da autora).

Filosofar uma vez, uma única e boa vez, para nunca mais ter
necessidade de filosofar... E viver. Filosofar mais seria “muito nocivo” à
vida. Eis porque o problema da maturidade é fundamental: se não se escolhe
o “bom momento”, corre-se o risco de passar a vida na dúvida, de passar a
vida filosofando. Corre-se o risco portanto de perder assim a vida. Filosofar
primeiro para viver depois uma vida na qual a filosofia irá garantir,
verdadeiramente, a segurança e a felicidade (poderia-se opor a esta
concepção cartesiana o famoso princípio tributário da tradição empirista,
hedonista, “viver primeiro, filosofar depois”: seria preciso primeiro ter vivido
para poder refletir sobre a vida e extrair suas regras. Posição paradoxal já
que apenas ao fim da vida disporíamos de regras para bem viver. Com
efeito, este tipo de posição forma como sempre um sistema com aquela que
lhe é contrária: ambas implicam a oposição entre a vida e a filosofia, e uma
valorização da vida em detrimento da filosofia: com Descartes, desembaraça-
se de uma vez por todas da filosofia mesmo se é unicamente graças a ela
que se pode viver melhor depois. Com o empirista, com o hedonista, desfruta-
se primeiro a vida, e reserva-se a filosofia para a velhice, momento em que
de qualquer maneira não podemos mais viver, onde resta somente a filosofia).

“O argumento” da maturidade é, portanto, no mínimo


equívoco: ele pode sublinhar ou a seriedade da filosofia
que exige um momento privilegiado, apropriado à
grandeza do empreendimento; ou a seriedade da vida
que exige livrar-se de uma vez por todas da filosofia a
fim de viver melhor e de não mais correr o risco de
“cair em águas muito profundas onde não se possa
mais apoiar os [seus] pés no fundo nem nadar para
[se] manter na superfície”.(Segunda Meditação)

É preciso esperar Nietzsche para que seja abolida a oposição


entre a filosofia e a vida, e, por conseguinte, para que seja posto de
outro modo o problema da “idade” da filosofia. Como Descartes (mas
não pelas mesmas razões) Nietzsche considera que “é na felicidade que
é preciso começar [a filosofar], em plena maturidade viril, na alegria
ardente de uma idade adulta corajosa e vitoriosa” (O nascimento da
filosofia na época da tragédia grega, Tr. Fr. 32, Gallimard). É preciso

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começar em tempo e também saber parar a tempo: não é preciso esperar


a infelicidade, como pensam aqueles que fazem derivar a filosofia do
descontentamento. Não filosofar na velhice! Não porque não se estaria
então mais apto a procurar a verdade, mas porque os julgamentos que
um velho portaria sobre a vida seriam necessariamente marcados pelo
ressentimento de uma vida debilitada, doente. Porque a filosofia é
inseparável da vida, porque um sistema filosófico é sempre “uma
confissão do seu autor, uma espécie de memórias involuntárias” (Para
além do bem e do mal, 6), porque toda tese consciente remete sempre à
uma tese inconsciente, antecipada, a das pulsões, por tudo isso, não é
em qualquer idade que se deve filosofar, ao menos caso se pretenda
justificar a existência da filosofia como o souberam fazer os gregos da
época pré-socrática. A “aurora” da filosofia, considerada pela filosofia
metafísica, de Aristóteles à Hegel, como a infância da filosofia, o momento
do seu balbuciar, o momento mais pobre, que só pode adquirir todo seu
sentido e sua plenitude de seus “desenvolvimentos” posteriores, se
encontra revalorizada por Nietzsche: ela está, para ele, sob o signo da
plenitude, pois ela engendra todos os tipos possíveis de filosofia que a
história posterior pôde somente repetir, confundir, degradar, corromper.
É que os pré-socráticos viveram “na época mais vigorosa e
mais fecunda da Grécia”, eles filosofaram em plena saúde, no
arrebatamento da juventude. “Filosofando neste momento de sua
história, os Gregos nos esclareceram tanto sobre o que é a filosofa e
sobre o que ela deveria ser, quanto sobre a própria natureza deles”.
Se a questão da “maturidade” permanece primordial para Nietzsche
é, ao contrário do usual, porque a filosofia é inseparável da vida, e o
filósofo, de seu corpo e de seus desejos. Porque o corpo deve servir de
fio condutor, a noção mesma de maturidade não é mais simplesmente
analógica. O corpo “coletividade de numerosas almas”, hierarquização
dos instintos, das vontades, sob um instinto, sob uma vontade dominante,
serve de centro provisório de perspectiva, de tal sorte que a “maturidade”
não está mais ligada a uma idade determinada, mas à força de afirmação
das vontades, à vontade de afirmação e de potência dos instintos, ainda
que esta não seja independente da idade “biológica”.
Através desta nova concepção de “maturidade”, Nietzsche
confunde de modo singular os limites entre a juventude e a velhice,
coloca em questão a concepção metafísica, aristotélica ou hegeliana, da
história da filosofia, onde o que vem “depois” é mais “sensato”, mais
“rico” do que o que vem “antes”. Nietzsche descobre que o “velho
Kant”, apesar de sua idade, se comporta como uma criança (Para além

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do bem e do mal, II). Toda a filosofia dogmática que se dá como


acabamento da filosofia, filosofia adulta, madura, tendo renunciado a
todos os preconceitos da infância, é um simples balbuciamento, uma
infantilidade: “Para falar seriamente, acredito que há bons motivos para
se esperar que todo dogmatismo em filosofia —apesar da sua atitude
solene e quase definitiva— não tenha sido mais do que uma magnífica
infantilidade e um « balbuciar »” (Para além do Bem e do Mal, Prólogo).
A “velhice” de Kant, a velhice das filosofias dogmáticas, não é um sinal
de sabedoria, mas de uma falta de virilidade: assim como não souberam
se entender com as mulheres, e “admitindo que a verdade seja mulher”,
eles nunca souberam nem puderam conquistá-la porque castraram a
inteligência e separaram o conhecimento da vida. A filosofia dogmática
quis persuadir e se persuadir de que o conhecimento é o resultado de
uma dialética divinamente inconsciente, guiada por um espírito “puro”,
privada de toda relação com o corpo e os desejos. Esta é a suspeita do
filosofo da Gaia Ciência, o enfant gâté da filosofia, que desfruta do
prazer perverso de assistir à cena filosófica (esta outra cena primitiva),
de se oferecer em espetáculo, o ridículo dos velhos filósofos que estão
sempre mortos antes mesmo de haverem vivido, já tendo sempre
renunciado a seus desejos. O que ele desconfia é também da hipocrisia
deles. Aqueles que desta forma pregam a renúncia dos desejos em
nome da moral ainda assim defendem seus desejos, mas os desejos de
doenças que se protegem atrás de todo um aparato conceitual, racional,
como uma couraça: para amedrontar, fazer recuar o inimigo, por medo de
serem violentados, estuprados talvez...
Nietzsche permite compreender em que sentido o argumento
da “maturidade” é tributário de uma concepção metafísica da história
evolucionista e linear; em que sentido falar de “maturidade” do espírito
ou da inteligência dissimula a ligação essencial da filosofia com a
vida, com o corpo e com os desejos. A “maturidade” intelectual não
existiria independente de uma certa economia pulsional. Se a
adolescência é uma idade metafísica por excelência, talvez não seja
somente porque a inteligência, ao longo do tempo, passa
necessariamente por uma fase crítica e cética. O espírito crítico da
adolescência deve ser relacionado a uma crise mais geral, uma
perturbação de toda a economia pulsional. O percurso do espírito é
inseparável do percurso pulsional, e seu desenvolvimento inseparável
do destino das pulsões.
No momento em que se fizesse do argumento da maturidade
um argumento “teórico”, em concordância com um simples princípio

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de realidade, ele dissimularia ao mesmo tempo questões políticas e


pulsionais. E essas são inseparáveis.
Segundo Nietzsche, é com Sócrates-Platão que a filosofia teria
começado este trabalho de ocultação, ao introduzir uma cisão rigorosa
entre a filosofia e a vida, entre a filosofia e a política. Parece-nos, portanto,
interessante nos demorarmos um pouco mais sobre este momento
decisivo, este momento de ruptura do qual toda a história da filosofia
seria tributária.

II. O PONTO DE VISTA DE CÁLICLES: O CHARME PUERIL DA FILOSOFIA.

É precisamente em relação ao desejo que Cálicles e Sócrates,


no Górgias de Platão, colocam o problema do momento apropriado,
senão ao ensino, pelo menos à educação filosófica. É, com efeito, em
função do prazer que Cállicles determina a idade da filosofia: a cada
idade seus desejos e seus prazeres. Saber qual o prazer apropriado à
filosofia é suficiente para determinar o momento privilegiado
correspondente àquele que a própria natureza nos assinala. A
“maturidade” não é mais uma questão de inteligência: o corpo e seus
desejos servem de fio condutor e de medida.
A intervenção de Cálicles se faz (em 481c) no momento em que
Pólo acaba por concordar que é mais feio cometer injustiça do que
suportá-la: o diálogo socrático conseguiu domar a selvageria de Pólo,
conseguiu civilizá-lo, substituir o homem da natureza pelo homem da
convenção; é porque ele teme, por falso escrúpulo, dizer o que pensa,
que ele concorda definitivamente com Sócrates.
Este “falso escrúpulo”, este “medo”, são atribuídos por Cálicles
à juventude. O mesmo acontece no Teeteto. Protágoras, no discurso
fictício que pronuncia sob a máscara de Sócrates, acusa a juventude de
Teeteto que o teria feito recuar diante do terrível argumento: aceitar, ao
mesmo tempo, que se pode saber e não saber; recuar, portanto, diante
da necessidade de colocar novamente em questão a lógica da identidade
e da não-contradição para poder defender a “tese” de Protágoras. Força
desta forma Teodoro a intervir no jogo dialético, Teodoro que até então
havia “resistido” a Sócrates invocando sua avançada idade: tal é a
astúcia de Sócrates. O “pudor”, a “vergonha”, o respeito da razão e da
lógica são, portanto, para os sofistas os defeitos da juventude: é por
isso que a filosofia convém à juventude, e somente a ela. Paradoxo: é
quando ainda não se ousa dizer o que se pensa verdadeiramente, quando

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ainda não se ousa ir até o fundo do pensamento, porque se está ainda


sob a ascendência da moral, que convém filosofar. Pois para Cálicles, a
educação realiza isso mesmo: afasta a humanidade daquilo que ela pode,
da natureza, de seus desejos, graças a um adestramento moral. O perigo
da educação filosófica é que ela corre o risco de manter o homem em um
eterno estado de juventude, de perverter para sempre a juventude
aprisionando os desejos às leis do justo e do belo, forçando-a a renunciar
àquilo que é o índice da virilidade, a satisfação sem reserva das paixões:

“Nós moldamos os melhores e os mais vigorosos entre


nós, os selecionamos na infância, como pequenos leões,
para dominá-los à força de encantações e criancices, lhes
dizendo que não precisam ter mais do que os outros e
que isto consiste no justo e no belo. Mas caso se encontre
um homem suficientemente dotado para sacudir, quebrar,
rejeitar todos esses grilhões, estou certo que, pisando
em nossos escritos, em nossos sortilégios, em nossas
encantações, em nossas leis totalmente contrárias à
natureza, ele se revoltaria, se ergueria como um senhor
diante de nós, ele que era nosso escravo brilharia então
com toda a sua luz em seu direito natural” (484 a).

Inversão do mito da caverna: para Cálicles é a educação filosófica


que aprisiona a humanidade desviando-a da satisfação natural dos
desejos, que a mantém fixada em um estado infantil, o do prazer apenas
pela palavra. A filosofa é uma empreitada perversa que força os homens a
ficar no nível do simples prazer preliminar. É a perversão de Sócrates que
o impede de ser convencido por Cálicles; que ele renuncie à filosofia, se
dedique a tarefas mais apropriadas à sua idade, sobretudo à política, ele
se tornaria com certeza “razoável” e aquiesceria as posições do seu
adversário.
Certamente, em Atenas, a política não é independente da palavra:
mas a palavra não é mais brincadeira nem tagarelice: ela é séria, coisa
pública e não mais privada; ela visa refutar o adversário, ganhar dele,
“ter mais” do que ele; a oralidade que se encontra em jogo é do tipo
“sádico”. É a esse estado sádico-oral que é preciso, ao menos, chegar
para adquirir as virtudes do homem político e se tornar um cidadão
considerado, um homem e não mais uma criança:

“A filosofia, Sócrates, é sem dúvida sedutora se a ela


nos entregamos com moderação, na juventude. Mas,

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se nela passa-se mais tempo que o necessário, ela


corrompe os homens. Por mais talentoso que seja um
homem, se ele continua a filosofar na idade madura, é
impossível que não se aliene de todas as coisas que
precisa conhecer para tornar-se um homem virtuoso
e respeitado”.(484 cd).

Se a praticamos com moderação na juventude, a filosofia é


atraente, dá prazer: porque é normal e natural filosofar. Mas continuar
mais tardiamente a filosofar é patológico, tem a ver com a perversão:
filosofar quando se é adulto, é balbuciar, ser louco, ou melhor, ridículo.
De qualquer modo, não é ser um homem, pois se afastar dos prazeres,
da satisfação das paixões, da política, de tudo o que faz a seriedade da
vida é se castrar. O filósofo que pretende conhecer os homens não
pode nada conhecer do homem, pois não é sequer um homem:

“Ele se torna menos que um homem (anandrô


guenesthai), fugindo sempre do coração da cidade,
das assembléias onde, como diz o poeta, os homens
tornam-se ilustrados e, rebaixando-se pelo resto da
vida, ficam cochinchando (phithupizonta) num canto
com três ou quatro jovens, sem jamais pronunciar um
discurso livre, grande, generoso” (485 e).

Mesma descrição do ridículo filosófico, da autocastração do


filósofo, no Teeteto (173dss.): o filósofo, em perigo, é incapaz de se
defender diante dos tribunais: interessando-se somente pelas coisas
superiores, negligencia o que se passa a seus pés e, como Tales, corre
o risco de cair num poço e de se expor ao riso de uma criada trácia.
A filosofia não deve ser excluída da educação, mas ela deve
ocupar o lugar delimitado pela própria natureza e pelo prazer por ela
imposto: “O homem idoso que continua a filosofar faz uma coisa ridícula,
Sócrates, e, de minha parte, experimento em relação a estas pessoas o
mesmo sentimento que experimento junto a um homem feito que gagueja
e brinca como uma criança” (485 c).

“Junto a um jovenzinho, desfruto da filosofia: ela


está no seu lugar e denota uma natureza de homem
livre; o jovem que a ela não se entrega me parece ter a
alma pouco liberal, para sempre incapaz de visar algo
de nobre e belo” (485 c).

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Uma criança que renunciasse a brincar, a satisfazer os desejos


próprios a sua idade, que fizesse prova de uma extrema seriedade, seria
inquietante, estranha, louca; ela apenas imitaria de forma perversa o adulto,
até zombaria dele: mereceria o chicote! O homem maduro, por sua vez, que
imita, se “faz” criança, não é somente ridículo, deve ser tratado como uma
criança zombeteira: merece o chicote também.
Mas porque uma criança “perversa” mereceria apanhar? quem aqui
é perverso? Em todo caso, para Cálicles, a criança não poderia ser, por
natureza, um “perverso polimorfo”. Se a norma natural manda satisfazer
seus desejos, convém acrescentar: os desejos naturais a uma idade
determinada. Mas quem decide, aqui, o que é natural, senão uma determinada
convenção concernente à infância, para a qual o apropriado seria, por
exemplo, brincar, como o apropriado, o natural para o adulto seria ser sério?
Quem decide aqui a partilha entre a brincadeira e o sério, senão um conjunto
de pressupostos culturais já dados? Além disso, como poderíamos
ultrapassar a ordem natural, senão por anomalia da natureza, e, neste caso,
porque se mereceria chicote, ainda por cima? Se Cálicles convida a bater na
criança “perversa”, não é porque “atrapalhar” a ordem natural implica
questionar a existência de uma tal ordem? não é porque isso implica a
possibilidade, entre outras, de que uma criança tome o lugar do pai,
“imitando-o”, identificando-se com ele? Pelas mesmas razões o filósofo
deve apanhar: ele não é simplesmente ridículo; imitando a criança, ele força
perigosamente os limites estabelecidos entre as idades, entre a brincadeira
e o sério, o filosófico e o político. Ele elimina a idéia de uma ordem natural,
de um prazer natural a cada idade. Inverte a hierarquia dos valores julgados
“naturais”, põe fim, sobretudo, à assimilação da virilidade e da potência
política. É nisso que ele é perigoso, merece o chicote, ou mesmo a morte.
Diante do tribunal, Sócrates, não sabe se defender. Boquiaberto, ele é tomado
pela vertigem. Um homem assim que não pode se defender precisa apanhar:
“Temos o direito de esbofeteá-lo impunemente” (486 c).
A filosofia, quando ultrapassa os limites “naturais”, é nociva: ela
conduz à morte dos desejos, à morte. Ela não deve ser defendida, pois ao
defender-se contra a vida, ela subtrai toda defesa.

III. O PONTO DE VISTA DE PLATÃO/SÓCRATES: A FILOSOFIA INTERMINÁVEL

Entretanto, a argumentação de Cálicles não atinge Sócrates,


porque “quem sabe se viver não é morrer e se morrer é não viver! Talvez,
na realidade, estejamos mortos” (493a).

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Sócrates opera uma inversão completa dos valores introduzindo


uma nova concepção de natureza. Nossa “verdadeira” natureza é o
pensamento; nossa “verdadeira vida” é a do noûs. Filosofar é tentar
encontrar esta verdadeira natureza, é lembrar de seu verdadeiro
parentesco: o que só pode acontecer se nos esquecemos da outra natureza,
fazendo morrer aqui em baixo o corpo e seus desejos. Nesta perspectiva,
a filosofia não tem idade, ela não ocupa mais um lugar determinado na
cidade: ela é atópica. A alma do filósofo não ocupa lugar algum, em seu
vôo ela “percorre todos os lugares” (Teeteto,173d). Não se poderia nem
começar, nem parar de filosofar, ao menos de direito. Nos mitos, sobretudo
no Fedro, a alma filosofa antes mesmo do nascimento (sua encarnação
em um corpo terrestre). Sua ocupação essencial é então se esforçar para
perceber “alguma coisa da essência”; ela filosofa igualmente depois da
morte. A imortalidade da alma afirma, miticamente, a imortalidade do
pensamento que não poderia parar de dialogar: os diálogos platônicos
terminam sempre de forma contingente e, em geral, os interlocutores
marcam um encontro para recomeçar no dia seguinte. Como se pôde dizer
da análise, a reminiscência é uma tarefa interminável.
Se pensar é próprio da nossa natureza, o gozo que a filosofia traz
não seria aquele de um prazer preliminar; não seria um simples prelúdio às
satisfações políticas. Ele é gozo total e a filosofia exige que se lhe dedique
toda sua vida, todo seu lazer: nada poderia ser mais urgente, mais sério que
ela, mesmo a vida: “pois a vida e sua duração mais ou menos longa não
merecem preocupar um homem verdadeiramente homem” (Alethôs andra)
(Górgias, 512 e).
A virilidade não reside, portanto, na satisfação dos desejos:
submetido à medida da filosofia e não mais a de um cozinheiro frente a um
tribunal de crianças, o ridículo não recai sobre os filósofos, mas sobre os
políticos e oradores. Ri melhor quem ri por último:

“Quando, a respeito de todas essas questões, aquele de


alma mesquinha, afiada e chicaneira se vê obrigado a dar e
a defender sua resposta, é então sua vez de sofrer a lei do
Talião. Sente vertigens na altura a que se viu guindado. [...]
É objeto de riso não apenas das raparigas trácias ou das
pessoas incultas em geral, incapazes de notar o ridículo da
situação, mas de todos que receberam educação contrária
à dos escravos” (Teeteto, 175 d).3

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“Que seja preciso explicarem-se de homem para homem sobre as coisas que

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Entretanto, a filosofia não conseguiria esquivar-se do problema


da idade; se nossa verdadeira natureza é o pensamento, este não é,
desde o início, reconhecido como tal; é esquecido, porque se torna mais
ou menos corporal pelo seu contato com o sensível; somente por uma
educação apropriada é que a parte divina da alma, o noûs, pode
reencontrar seu lugar original, e que a hierarquia natural entre as três
partes da alma pode encontrar-se restaurada. A educação visa instaurar
a justiça, a restituir a cada parte o justo lugar que lhe cabe ao subordinar
os epithumia ao noûs, ao desenvolver o thumos, de cuja ajuda se
necessita para reinverter a tirania que os epithumia espontaneamente
exercem. A educação é interminável porque as paixões, tal como Typhon
exilado no Tártaro por Zeus, podem ser recalcadas pelo intelecto, elas
não podem jamais ser sufocadas, tendem sempre a reaparecer, a sobrepor
com seus clamores a voz do logos e a ocupar o primeiro lugar. A educação
deve, portanto, começar o mais cedo possível, antes que a perversão
seja irremediável, que a corrupção da alma pelo sensível seja tal que a
impeça para todo sempre de encontrar seu verdadeiro parentesco. A
educação deve enfim ser progressiva: a passagem do sensível ao
inteligível implica uma inversão completa das avaliações espontâneas,
o que exige psicologicamente o tempo de se habituar às novas medidas.
Várias metáforas que formam um sistema descrevem a
necessidade de uma tal educação filosófica.
A educação consiste em fazer passar o olho da alma da
obscuridade da caverna para a luz do mundo inteligível: se não se quer
correr o risco de uma oftalmia, é preciso habituar o olho da alma, o noûs,
progressivamente, por etapas, à encontrar-se em uma boa direção, à
operar a conversão de seu olhar. A conversão é necessária pois, se
“algo de divino em nós não perde jamais seu poder”, ele pode tornar-se
nocivo ou útil segundo a orientação que se lhe dá, isto é, segundo se o
ponha a serviço do desejo ou do Bem. Para se habituar à olhar na boa
direção, sem se ferir, é preciso aprender o prelúdio antes da própria ária,
aprender as ciências antes de se entregar à dialética: as ciências, pelas
contradições que apresentam ao espírito, o forçam a refletir, à dirigir o

censuram e que se permitam ser corajosos, a resistir por muito tempo ou a


evadir covardemente: então, é estranho ver, excelente amigo, como eles chegam
finalmente a não mais considerar satisfatórias, para eles mesmos, suas próprias
teses: dir-se-ia que esta retórica famosa se perde no tédio, e eles, no fim das
contas, acabam por fazer totalmente papel de criança.” (Teeteto, 177b)

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olho da alma para o alto: elas têm um valor catártico. Necessidade portanto
de uma educação progressiva:

“Em primeiro lugar, aquilo que ele enxergaria mais


facilmente são as sombras, em seguida, as imagens de
homens e dos outros objetos, refletidas nas águas, depois,
os próprios objetos; em seguida elevando seu olhar para
a luz dos astros e da lua, ele contemplaria durante a noite
as constelações e o firmamento, mais facilmente do que
o faria durante o dia, ao olhar o sol e seu brilho.
Finalmente, julgo eu, esse seria o sol, não nas águas nem
nas imagens refletidas sobre um ponto qualquer, mas o
próprio sol em sua morada, que ele poderia olhar e
contemplar tal como é”. (Rep VII, 516a ss.)

Olhar para o alto, é a isto que se deve portanto habituar a alma;


desde a juventude é preciso se esforçar para adestrá-la pela educação,
tal como se adestra o corpo pela ginástica. Este adestramento é desde
sempre um readestramento, porque a alma está já desde sempre
abaixada, encarquilhada pelo seu contato com o sensível: nenhuma
legislação, portanto, sem justiça; nenhuma ginástica sem medicina. A
ereção definitiva da alma não está jamais assegurada, porque qualquer
que seja a beleza do natural, permanecem sempre os riscos de queda,
de recaídas, de escolioses irremediáveis: os pesos excessivos que são
os festins do sensível, os banquetes, os prazeres que cortam as asas
da alma e a tornam corporal, a mantêm curvada para baixo. Para que as
asas da alma cresçam é preciso renunciar aos alimentos terrestres em
proveito do néctar e da ambrosia, das comidas divinas que são as
idéias. Os alimentos sensíveis tornam a alma tão irreconhecível quanto
a estátua de Glauco, o marinheiro, coberta de algas e conchas (cf. Rep.
X). Para evitar um tal recobrimento é preciso desde a infância oferecer
à alma uma comida apropriada à sua verdadeira natureza:

“Se desde a infância se operasse a alma assim


conformada pela natureza, cortando, se posso assim
dizer, essas massas de chumbo, que são da família do
devir e que, presas a ela pelos liames dos festins,
prazeres e apetites deste gênero, voltam sua vista para
baixo; se, livre desses pesos, ela fosse direcionada para
a verdade, esta alma nesses mesmos homens, se a veria
com a maior clareza, tal como ela vê as coisas na direção
para as quais atualmente está voltada” (Rep. 518 b).

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ETHICA RIO DE JANEIRO, V.13, N.1, P.137-159, 2006

É preciso começar a educação desde a infância, pois ainda que


“algo de divino em nós não perca jamais seu poder”, o risco limite é o de
uma transformação total, de um devir corpo da alma que conduz à tirania:
no mito, esta metamorfose irrecuperável é expressa pela reencarnação,
na segunda geração, da alma do tirano no corpo de um animal: castigo
supremo.
Esta é a razão, a mais grave entre todas, pela qual é preciso
filosofar desde a juventude e não porque seria ridículo, como pensam
os sofistas, filosofar na idade madura: é ridículo para um ancião se
despir diante de alguém mais jovem que ele, ridículo deixar-se corrigir
por alguém mais jovem que ele. Tal é a argumentação de Teodoro no
Teeteto, que, confundindo filosofia com erística, compartilha o ponto
de vista de Protágoras e Cálicles, recusando-se a expor-se nú, recusando-
se a entrar no jogo dialético: Teodoro teme as quedas humilhantes e ser
derrotado pelo adversário. Ele pede para assistir, como espectador, aos
embates dos outros, sem tomar parte no risco. Opondo-se totalmente a
Teodoro, Sócrates pede para seus interlocutores, por mais jovens que
sejam, que o corrijam. Longe de ser perigoso e humilhante, somente o
desnudar permite, porque é despojamento de toda vestimenta sensível,
reencontrar nossa verdadeira natureza, nos conhecer a nós mesmos:
assim o mito de Górgias indica que as almas terão que se apresentar
nuas no Inferno, diante do tribunal supremo. Pela sua recusa de tirar
suas roupas, por seu medo de ser vencido e humilhado, Teodoro, apesar
de sua idade, se comporta como uma criança. Como tal, ele compara
Sócrates a Cirão, um ladrão esperto que monta armadilhas, porque
Sócrates arranca dele suas certezas, o desaloja de sua posição
assegurada de espectador. Ele o compara ao gigante Anteu, invencível,
recuperando as forças a cada vez que é derrubado... por um argumento.
Forçado a participar do diálogo pela esperteza socrática,
Teodoro, entretanto, mostra sua afinidade com a retórica exigindo que
se fixe, desde o início, o tempo de sua fala, como se fosse possível
estabelecer antecipadamente um limite ao pensamento sem torná-lo de
um só golpe corporal, como se a dialética não fosse um caminho
implicando idas e vindas sem fim!

“Eu não contradigo mais: conduza-me pelos caminhos


que tu quiseres. É preciso neste ponto submeter-me
inteiramente ao destino que terás urdido e suportar a
prova de tua crítica. Mas, para além do limite por ti
fixado de antemão, eu não poderia mais estar a tua
disposição”.

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Pondo-se a filosofar muito tarde, melhor seria fazer como Teodoro:


ao conceder alguns instantes ao pensamento, imagina-se estar
pensando, entregando-se à reminiscência, quando se está somente a se
contentar com a palavra dos outros, e por toda a vida haverá a
necessidade de preceptores, de pais, de mestres. Filosofar um pouco
não é filosofar. Pois este pouco não é suficiente para reencontrar seu
verdadeiro parentesco, escapar da escravidão, da tirania, para evitar
que a alma não seja corrompida, não degenere, não fique doente: esta
nova metáfora implica, ela também, a necessidade de uma educação
filosófica empreendida mais cedo, entendida como medicina da alma.
Violência da filosofia proporcional àquela oferecida pela sedução do
sensível: a alma doente deve ser entregue ao ferro e fogo da dialética
para que ela se livre das massas de chumbo que a prendem ao corpo e
que a impedem de lembrar de si mesma como pensamento.

“Responde ousadamente Pólo; tu não terás nenhum


dano; entrega-te corajosamente à razão como a um
médico” (Górgias,475d).
“Quando eu considero o resultado ao qual chegam as
pessoas deste tipo, eu os compararia de bom grado a um
doente que, sofrendo de mil males muito graves, chegaria
a não contar aos médicos sobre eles e a evitar todo
tratamento, temendo, como um menino, a aplicação do
ferro e do fogo porque isso dói [...] É sem dúvida porque
não saiba o preço da saúde e de uma boa constituição
física. A julgar pelos princípios que reconhecemos sãos,
aqueles que evitam prestar contas a justiça, Pólo, bem
poderiam ser, igualmente, as pessoas que enxergam o
que ela comporta de doloroso, mas que são cegas sobre
aquilo que ela tem de útil e que não sabem o quanto é
mais lamentável a companhia de uma alma malsã, isto é,
corrompida, injusta para com os deuses e os homens, do
que aquela de um corpo doente” (Górgias 479 a e seq)

Curar é morrer para o corpo e para seus desejos (a fim de que


eles desapareçam até mesmo nos nossos sonhos [cf. Teeteto, 174 c])
para nascer a verdadeira vida. Curar é abandonar os bajuladores vis que
pertencem à família do devir para reencontrar seu verdadeiro parentesco

“Você acredita que aquilo que acontece aos


jovens dialéticos seja surpreendente? [...] Eles se
encontram —continuo eu— na situação de uma criança,

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ETHICA RIO DE JANEIRO, V.13, N.1, P.137-159, 2006

nascida em berço de ouro, em uma família numerosa e


considerada, em meio a um bando de bajuladores, e
que, chegando à idade adulta, se aperceberia que não é
filho daqueles que se dizem seus pais e sem poder
encontrar seus pais verdadeiros. Podes adivinhar quais
seriam seus sentimentos em relação aos bajuladores e a
seus pretensos pais, antes que ele tivesse conhecimento
da sua suposição, e depois que ele fosse instruído? [...]
Nós temos desde a infância, sobre a justiça e a
honestidade, algumas máximas que, como os pais,
formaram nossos espíritos, e que temos o hábito de
seguir e respeitar [...] Há também outras máximas
opostas àquelas, máximas sedutoras que bajulam nossa
alma e a atraem para si, mas que só persuadem os
homens pouco sábios, porque são essas máximas
paternais que eles honram e seguem [...] Mas [...] quando
ele não reconhecer mais o preço dessas coisas e o
parentesco delas com sua alma e, por outro lado, não
encontrar aquilo no qual é preciso acreditar, com quais
máximas de conduta ele se acomodará, naturalmente,
senão com aquelas que o bajulam?” (Rep VII,539 a)

A dialética põe à prova o nosso natural: interrogá-lo permite


detectar se abandonaremos ou não nossa família verdadeira. A maiêutica,
o parto das idéias é sempre seguido de uma encenação que decide da
legitimidade ou da ilegitimidade das nossas concepções, e que, em
conseqüência, decide sobre a vida ou a morte delas, sobre a necessidade
de nutrir o recém nascido ou de deixá-lo morrer. A metáfora do parto
também implica levar em consideração a idade: o parteiro deve, para poder
parir os outros, ter-se tornado estéril: ter a alma vazia de toda ciência, à
exceção daquela de sua ignorância. Se a mediação do filósofo é necessária
ao parto, não é para “fecundar” a alma do interlocutor, derramando sobre
ela algum saber; mas é porque o parido não pode, por si mesmo, decidir da
viabilidade de sua progenitura, que o parteiro tende sempre, porque é
dela a mãe e o pai, a querer conservar em vida sua criança, a acreditar que
é a mais bonita das crianças, que é uma criança legítima. A mediação do
filósofo é necessária porque o parido ignora seu verdadeiro parentesco:
a mediação de si para si só pode se fazer por intermédio de uma alma-
espelho que nos é aparentada e na qual nós podemos nos reconhecer.
Desde o início, o Teeteto insiste sobre a semelhança corporal e espiritual
entre Teeteto e Sócrates: Sócrates é como o duplo de Teeteto, duplo mais
velho, indulgente, que permite, pela imagem que lhe oferece, que seu

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interlocutor tenha acesso a si mesmo após estar livre das opiniões que
imaginava ilusoriamente serem suas. Seu duplo o liberta daquilo que
entulha sua memória a fim de que ele possa entregar-se à reminiscência.
Para que se façam nascer belas crianças é preciso que as trocas filosóficas
unam as almas que apresentam uma afinidade essencial. Imitando a
perseguição erótica, o filósofo está à procura de uma alma apropriada à
sua, uma alma a qual ele possa se unir para procriar na beleza: na forma do
mito, o Fedro descreve cada alma humana como uma determinada biga a
seguir uma biga divina que pretende tomar como modelo. Ora, ainda aqui,
perseguição amorosa e parto devem começar desde a juventude, por
medo que o perseguido, corrompido pelo sensível, se engane, tal qual
Alcebíades sobre as intenções de Sócrates, que não saiba mais adivinhar
por trás da feiura dos corpos a beleza da alma, que não possa mais
compreender que é a vacuidade da alma, e não o inverso, que é sinal de
plenitude.
A perseguição deve começar antes que o perseguido, por sua própria
natureza, venha a matar pai e mãe como lhe recomendam os vis bajuladores,
a viver como órfão, se prostituindo nos tribunais, dando ouvidos a qualquer
orador, a viver sendo incapaz de, a seu turno, dar vida, parindo somente
aparências vãs e mentirosas. Contrariamente ao que afirma Cálicles, a
educação segundo a natureza não permite elevar a criança à idade adulta,
torná-la “viril”: ela contribui somente para mantê-la num estado de infância,
privada de seus pais, de seus tutores, cercada de vis aduladores, que ela
honra como a seus pais e que a conduzem à perdição:

“[os oradores] correm atrás do favor popular [...].


Sacrificam o interesse público a seu interesse privado e
[...] tratam os povos como crianças, aos quais querem,
antes de tudo, agradar, sem se importar em saber se
eles se tornam melhores ou piores por este
processo”(Górgias, 502 e).

Entregue desde jovem, aos tribunais ou à educação sofística, tal


como uma planta muito tenra, ao qual falta o tutor que é a lei do justo e
do belo, a criança corre o risco de definhar, encarquilhar e jamais poder
olhar na direção do sol. Na obscuridade da caverna, ela pode somente
estiolar e morrer.

“Eles são apenas escravos pleiteando perante seu


senhor [...] Todas essas provas os tornam mais
enérgicos, aguçam sua sutileza, os tornam hábeis com

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ETHICA RIO DE JANEIRO, V.13, N.1, P.137-159, 2006

palavras que bajulam o mestre, e com os modos que o


lisonjeiam lhes fazem as almas mirradas e defeituosas;
crescimento, retidão, liberdade, ainda jovens a
escravidão os arrebatou, constrangendo-os a práticas
perigosas; lançou em tão graves perigos e tão graves
temores suas almas ainda tão tenras que, não podendo
opor o justo e o verdadeiro como suporte, é
diretamente à mentira, às reciprocidades das injustiças
que as crianças se voltam e assim se curvam e se
encarquilham. Deste modo, não resta mais nada de
são em seu pensamento quando de adolescentes
tornam-se viris e, no seu entender, sua malícia e
sabedoria são perfeitas” (Teeteto,172 c)

Todas estas diversas metáforas implicam que nossa verdadeira


natureza é um princípio divino, inalterável, eterno, o noûs: que a filosofia,
enquanto exercício desta parte divina é, de direito, sem idade, eterna: mas
também que há de fato necessidade, o mais cedo possível, de uma educação
filosófica progressiva, sob pena de encobrimento e degenerescência do
bom princípio.
Entretanto, o que deve ser começado desde a infância é o
aprendizado da coragem e das diversas ciências, prelúdio à dialética, mais
do que a própria ária, a dialética.
A posição de Cálicles é invertida, a dialética é, para os
adolescentes, perigosa: o “charme” do jogo dialético é de natureza sádica,
o prazer da palavra é o de contradizer, de atormentar o adversário. Para os
adolescentes, o prazer de ganhar ultrapassa o de procurar a verdade: a
dialética se transforma em uma erística onde o meio é tomado pelo fim, faz
esquecer o fim. O jogo dialético faz esquecer o sério da verdade em proveito
de uma seriedade completamente outra: obter o primeiro lugar na corrida
pelo poder. O mito de Fedro descreve os cocheiros disputando o primeiro
lugar e, em suas querelas, terminando por esquecer o objetivo mesmo
desta corrida: a subida em direção ao céu inteligível.
Esquecer a filosofia pela disputa e, por força desse disputar, perder
toda crença, soçobrar no ceticismo; esquecer pai e mãe, não mais reconhecer
o valor da lei e do bem, são os riscos em que incorre a adolescência que se
entrega cedo demais à dialética; e, coroando todos os outros, o risco da
tirania: perversão radical dos valores, perda radical do humano por perda
do reconhecimento em nós do divino. O tirano é o inverso mesmo do
Bem: como ele, mas em sentido inverso, está fora do jogo, no mais baixo,
inatingível, pois incurável mesmo pela dialética, que assim não poderia

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lhe servir de punição salvadora. É mais um animal do que um homem,


como no outro extremo o Bem está mais próximo da divindade do que da
humanidade.
O adolescente que abusa da dialética se comporta, ele também,
mais como um animal: ele se parece com um cachorrinho:

“Tu não deixastes de haver notado, penso eu, que os


adolescentes que uma vez provaram da dialética, dela
abusam e fazem um jogo que só serve para contradizer,
como a exemplo daqueles que os confundem, eles, por
sua vez, confundem os outros e, semelhantes a
cachorrinhos, têm prazer em puxar e rasgar com a razão
todos aqueles que se aproximam: é para eles um prazer
sem par” (Rep. VII,539 c).
“O jovem se lança primeiro, mais que nenhum outro, em
confusões e confunde em seguida todos que dele se
aproximam. Não faz concessão, nem à seu pai, nem à
sua mãe, nem àqueles que o escutam.” (Filebo, 15 d).
“Após haver freqüentemente confundido seus
contraditores ou terem, eles mesmos, freqüentemente se
confundido, chegam rapidamente a não crer em mais
nada do que acreditavam antes, e por conseguinte eles
mesmos, e com eles toda a filosofia, se tornam
depreciados perante a opinião pública”(RepVII, 532 c).

O adolescente é também como um cachorrinho porque está


pronto para morder qualquer um que desejar despojá-lo de suas idéias:
como uma jovem parturiente, torna-se furiosa se ela sente seu primeiro
filho ameaçado; o adolescente que se quer liberar torna-se furioso,
porque está ligado de modo visceral, ou até mesmo anal, às “suas”
idéias que, de fato, são somente idéias recebidas, estranhas a ele mesmo,
porque estranhas ao logos: “Eles estão prontos para morder desde a
primeira bobagem que deles arranco. Não imaginam que o faço por
benevolência”. (Teeteto,151 d)

“Terminado o parto, precisamos fazer a festa do recém-


nascido e, verdadeiramente, passear nosso raciocínio
por toda a volta para ver se não seria, mesmo sem o
sabermos, resultado que valha a pena alimentar ou se
não é um embuste. Suportaria você, ao contrário, sem
ficar colérico, que, examinando-o sob seus olhos, te
privassem do teu primogênito ou bem pensaria você
que é preciso nutri-lo a todo custo?” ( Teeteto,161 a)

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Exemplo de um adolescente confundindo filosofia e erística: Pólo.


Se Cálicles o reprova por ser ainda muito jovem para ousar desafiar toda
falsa modéstia, Sócrates atribui à juventude sua impaciência, sua falta
de medida e doçura necessárias para a discussão dialética; neos te kai
oxus – diz dele Sócrates. Ele não sabe nem escutar os outros, nem
responder as questões que se lhe fazem, porque só escuta a si mesmo,
isto é, seu mestre Górgias! Fala muito rápido, corta a palavra dos outros,
não dá atenção ao outro, porque não está atento a si mesmo, à razão,
escutando somente seus desejos e sua memória. Assim, à guisa de
argumentos só oferece espantalhos. Se Pólo possui vivacidade de
espírito, uma qualidade da natureza filosófica, falta-lhe a contrapartida:
a doçura e a ponderação, sem dúvida ele não cultivou suficientemente
a música. Ao contrário de Pólo, Teeteto possui todas as qualidades da
natureza filosófica, submeteu-se às ciências do prelúdio, a música e a
ginástica.. Corajoso, geômetra, é o interlocutor ideal, aceita que se o
liberte de seus primeiros filhos, fruto da semeadura de Protágoras. Se
ele tivesse vivido mais tempo, Teeteto teria se tornado filósofo...
Porque pode ser extraído da dialética um outro prazer diferente
daquele que se origina na procura da verdade —um prazer que realça
antes as pulsões de morte que as pulsões de Eros—, Platão exclui seu
uso pela juventude, que dela não saberia senão abusar, mal usar . É
preciso que o noûs seja primeiro sustentado e fortificado por tutores
para que ele não confunda erística e filosofia, não se deixe seduzir por
um devir louco onde tudo é somente disputa e violência.

“Ao chegar a uma idade mais madura [...], se imitará,


de preferência, aquele que quer discutir para procurar
a verdade, antes daquele que se diverte contradizendo,
por prazer, e, mostrando-se mais equilibrado, fará
respeitar a profissão de filósofo ao invés de a expor
ao desprezo [...]. É preciso admitir nos exercícios da
dialética apenas os espíritos comedidos e firmes e, ao
contrário do que se faz hoje, não se pode deixar dela
se aproximar uma pessoa qualquer que não tenha
nenhuma disposição...” (Rep.539 d)

Uma seleção severa fundada sobre uma série de provas


distribuídas no tempo determina em definitivo quais são os espíritos
suficientemente firmes e equilibrados capazes de se entregar sem perigo
à filosofia: sem dúvida, a aprendizagem das ciências do prelúdio deve
começar mais cedo, elas estão aptas a dar à alma “um poderoso impulso

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na direção da região superior”, “reavivam em cada um de nós um órgão


da alma danificado e cego por outras ocupações”.
Somente aos cinqüenta anos os que tiverem atravessado
positivamente todas as provas4 terão se sobressaído em todos os pontos,
“ao mesmo tempo nos trabalhos e nas ciências”, poderão enfim
conseguir “abrir o olho da alma e elevar o olhar para o ser que ilumina
todas as coisas”; poderão então consagrar a maior parte do seu tempo
à filosofia tomando sucessivamente, cada um por sua vez, o comando
da cidade.
Platão indica que todo seu discurso concernente à educação
dos homens vale também para as mulheres...

A confrontação dos pontos de vista opostos, de Cálicles e de


Sócrates, ambos tributários de uma cisão radical entre a filosofia e “a
vida”, ensina que não conseguiríamos decidir à respeito “da idade” da
filosofia sem uma reflexão prévia sobre a finalidade da filosofia e sua
relação com os desejos e com o político. Esta reflexão está ausente na
maior parte do tempo, parece evidente que todos sabemos o que é a
filosofia, que todos temos dela a mesma concepção: crença que remete
a uma filosofia bem determinada.
O problema da “maturidade” do aluno não é nunca unicamente
o da maturidade da sua inteligência. Sócrates e Cálicles têm ao menos
isto em comum: eles reconhecem que a dialética procura um prazer
específico ligado às pulsões sádico-orais que encobre o outro prazer,
prazer mais nobre, de procurar a verdade; este prazer de triunfar sobre o
adversário, de o despedaçar, introduz desde já na filosofia um gozo de

4
“Uma primeira seleção escolhe de início aqueles que têm uma boa conformação
do corpo e da alma, os mais belos, os mais firmes, os mais corajosos, os que têm
disposições naturais apropriadas à educação filosófica: os velhos são, de cara,
excluídos. Ao conduzir as crianças à guerra, selecionam-se os mais bravos.
Desde a infância faz-se estudar as ciências do prelúdio dando-lhes uma forma
atraente. Segue-se uma educação estritamente física, ao término da qual se faz
uma seleção entre os jovens de vinte anos, quando lhes são apresentadas, em
sua ordenação, as ciências ensinadas desordenadamente na infância; trata-se
então de uma prova decisiva: detectar aqueles que são capazes de uma visão de
conjunto, capazes portanto de se tornarem dialéticos. Terceira seleção aos
trinta anos: durante cinco anos “testa-se” através de uma prática da dialética
aqueles que são capazes de se elevar só pelo pensamento ao próprio ser; em
seguida, durante quinze anos lhes são atribuídas, no Estado, as funções destinadas
a testar suas resistências às tentações do sensível.” (cf. Rep VII, 535a ss..).

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tipo político. A partir daí, se desejamos separar radicalmente o filosófico


do político, a idade da maturidade torna-se o momento onde o prazer
mais arcaico está suficientemente recalcado ou sublimado para dar lugar
a uma pesquisa filosófica autêntica: tal é o ponto de vista de Platão.
Retardar ao máximo o momento propriamente filosófico para estar seguro
de que nenhuma outra voz além da voz da verdade se faça ouvir. O
longo “prelúdio” que precede a ária é uma verdadeira catarse, uma
ascese que deve levar à castração definitiva dos desejos. Em uma tal
perspectiva é evidente que a “maturidade” não poderia ser alcançada
em nenhuma classe do secundário: o ensino médio deveria se limitar às
ciências do prelúdio, o que implicaria, entretanto, que todo ensinamento
teria uma finalidade filosófica, ou seja, aprendizagem da morte. Se, ao
contrário, com Cálicles, pensamos que o momento privilegiado é aquele
em que a dialética proporciona prazer, logo, a “maturidade” corresponde
à adolescência: mas a filosofia não tem mais como finalidade procurar a
verdade, garantir os valores do bem, do justo e do belo, da lei paterna e
materna; ao contrário, ela corresponde a uma idade cética e seu objetivo
é de fato a destruição de uma certa ordem política. Em uma tal perspectiva,
duas conseqüências possíveis: ou bem a filosofia é um simples prelúdio
educativo à política, é a solução de Cálicles; ou bem ela tem um papel
preventivo e purgativo: filosofar na juventude, saciar as necessidades
de “destruição”, isto permite sair da crise do ceticismo da adolescência
e evitar posteriormente as revoluções políticas. A classe de filosofia
seria então um mal menor. A noção de “maturidade” da inteligência
serve, assim, para encobrir uma política conservadora.
Em todo caso, é impossível separar a noção de “maturidade” de
uma certa ambição política e de uma certa relação da filosofia com o
prazer e com os desejos.
Se reconhecêssemos mais abertamente, como o faz Nietzsche,
que não é possível separar o filosófico do pulsional e do político; que
não existe uma procura desinteressada da “verdade”, que a vontade de
verdade é ela também vontade de potência e a verdadeira posição de
uma certa perspectiva, aquela que vê o mundo invertido, logo, não se
poderia colocar mais o problema da “maturidade” nesses termos
platônicos dos quais foi tributária toda a tradição filosófica posterior.
Não se poderia mais postergar o momento de filosofar na esperança de
uma purificação radical. Se a filosofia consiste em revelar os desejos em
ação em qualquer discurso, em se perguntar a qual moral, a qual política
quer chegar esse ou aquele texto “teórico”, então ela deveria e poderia
ter começado bem antes da última série: a “maturidade”, neste caso, não

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seria, talvez, uma questão de inteligência, mas dependeria do grau de


recalque dos desejos. Do mesmo modo que é possível uma psicanálise
de crianças muito jovens, não seria impossível um “ensinamento”
filosófico desde a mais tenra idade; levando-se em conta uma certa
“adaptação”. Mas ninguém jamais pretendeu transportar o ensinamento
atual da última série, em sua forma atual, para as classes de idade menos
avançada: não se ensinaria, nesta nova perspectiva, nem a “mesma”
coisa, nem do mesmo modo. Nem, talvez, com o mesmo nome. Em todo
caso, se um tal ensinamento se denominasse ainda filosofia, não poderia
mais dissimular suas dimensões pulsionais nem suas dimensões políticas.

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