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internacional
internacional

Julho 2020 NÚMERO 293 | MENSAL | €5 (Cont.)

MUDAR AS CIDADES
PARA SE VIVER MELHOR
Missão urgente para o pós-pandemia: repensar o urbanismo,
a mobilidade, os transportes, a habitação e os serviços públicos.
Ideias e propostas germinam pelo mundo
M U DA R A S C I DA D E S PA R A S E V I V E R M E L H O R

THE GUARDIAN, SÜDDEUTSCHE ZEITUNG, THE NATIONAL, JINGJI GUANCHA BAO, DZIENNIK GAZETA PRAWNA

TECNOLOGIA
QUANDO A INTERNET FOR CHINESA…
FINANCIAL TIMES
O Noticioso

UM MURO CONTRA OS SONHOS


VIAGEM À FRONTEIRA ENTRE OS EUA E O MÉXICO
Julho 2020

AMNISTIA INTERNACIONAL
TUTORIAL APRENDA A TIRAR
TODO O PARTIDO DA APP
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RETRATO

DUAS OPÇÕES ANGELA MERKEL


“Parece-me lógico
DE LEITURA DA REVISTA haver paridade
de género em todas
Pode escolher as áreas”
como prefere ler NESTA ENTREVISTA,
CÂNDIDA E EXCLUSIVA,
a edição mensal: A CHANCELER ALEMÃ FALA
SOBRE FEMINISMO, O SEU
em formato pdf, ESTATUTO DE MULHER
POLÍTICA E AS FRUSTRAÇÕES
DOS CIDADÃOS DA ANTIGA
com primazia RDA POR OS SEUS MÉRITOS
NÃO TEREM SIDO
para o grafismo, ou VALORIZADOS DEPOIS
DA REUNIFICAÇÃO

em formato de texto, É uma tarde de inverno, cinzenta mas


amena em Berlim Na noite anterior [15 de
< ANTERIOR 4 / 60 SEGUINTE >

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confortável do texto

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50 / 132 FORMATO DE TEXTO
Para leitura mais q
ao sétimo andar. Aqui se juntará a eles o

confortável dos artigos porta-voz do Governo,


over
À hora combinada,
ve
da quase
nada, qu
entramos no escritório
rit
Steffen Seibert.
ao segundo,
da chanceler.

ou caixas completos, Angela Merkel parece


calma, talvez um
are concentrada e
pouco tensa – não por
m po
causa da entrevista;
sta provavelmente
ro pelo

basta carregar. chumbo ao acordo do do Brexit


com a União Europeia].
B [negociado
op a]. Mas esta
entrevista irá centrar-se
-se sobretudo na
Pode escolher o corpo chanceler. Merkel convida-nos
sentarmo-nos a uma
nvid
ma longa
a
lon de mesa de
conferências, e serve-nos
no café.
ve-nos ca Fomos
de letra mais adaptável avisados de que a entrevista
ntrevis
ev
minutos. E 45 minutoss depois,
d
duraria 45
chegaria ao
fim.
ao seu gosto Die Zeit: Senhora chanceler, quando
anunciou
ou a intenção
ando
ção de abandonar a
presidência
esidên da União Democrata-Cristã
ta-Cr
(CDU),
DU) eu escrevi no Die Zeit [em outubro
CDU)
de 2018]
018] um
u artigo de despedida muito
NAVEGAÇÃO INTUITIVA pessoal
– no qual realçava, nomeadamente, quão
► Deslize para navegar importante foi a sua liderança para muitas
alemãs no Leste. Gosta de ser admirada
nesta perspetiva do Leste?
entre páginas < ANTERIOR 4 / 60 SEGUINTE >

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E
A

FOCAR NA SOLUÇÃO OU CONTINUAR


A OLHAR PARA O PROBLEMA?
EdITORIAL Esta pandemia, pensávamos no início, podia ser uma oportunidade rara para
nos obrigar a repensar na vida, na sociedade, na forma como podíamos preparar
R U I TAVA R E S G U E D E S melhor o futuro, até para não voltarmos a ser surpreendidos com algo de que, na
rguedes@visao.pt verdade, os cientistas já nos tinham avisado que algum dia deveria suceder. Estavam
reunidas todas as condições para esse exercício, pensávamos – e escrevíamos! –,
nesses primeiros dias de confinamento, em que concentrávamos a atenção principal
nos números de propagação da epidemia, a tentar adivinhar curvas e a procurar
cálculos para prever percentagens de contágio na população. Todo o resto do tempo,
tínhamos aquilo que, passe a redundância, sentíamos que sempre nos faltara até
então: tempo para pensar, tempo para refletir sobre o trabalho e a vida, tempo
para tentar imaginar novas formas de organização, tempo para planear projetos,
tempo para assentar ideias. Nesse tempo, começámos até a alimentar a ideia de que
estávamos a iniciar um tempo novo – sim, repito a redundância –, um tempo em
que a partir do qual tudo seria diferente face ao passado.
Esse choque com uma realidade totalmente diferente daquela a que nos
tínhamos habituado fez despertar a imaginação, mas também nos obrigou a
repensar prioridades e respetiva hierarquia. Embalados por esse desafio, começámos
a procurar novas soluções para velhos problemas, obrigamo-nos a repensar as
formas de trabalho e, até, a raciocinar sobre o que pretendemos realmente do
espaço em que habitamos e nos movemos diariamente. Foi um tempo que nos
permitiu olhar para as nossas casas e para a nossa vizinhança com novos olhos e
perceber melhor o papel que temos a
desempenhar no seio da comunidade
– como os laços sociais podem ser INFELIZMENTE, A CRISE
reforçados ou destruídos, em função ECONÓMICA GALOPANTE E
da organização urbanística, da IMPLACÁVEL JÁ COMEÇOU A
mobilidade, do acesso aos serviços
ATIRAR MUITOS DOS SONHOS
essenciais. Um tempo também em que
reaprendemos a valorizar profissões E REFLEXÕES, GERADOS
que nos pareciam desvalorizadas, NO CONFINAMENTO,
mas que, afinal, são essenciais para PARA O CANTO DAS IDEIAS
o funcionamento da sociedade e das
quais todos dependemos.
BOAS MAS ESQUECIDAS
Como acontece em todos os
momentos de crise, esta também gerou uma quantidade infindável de propostas e
de ideias para o “tempo novo” que se adivinhava. Perante um inimigo desconhecido
e invisível que nos obrigava a repensar tudo, foram muitos os pensadores, artistas,
cientistas e políticos que sentiram a necessidade de começar a olhar para o futuro
com base em paradigmas diferentes. A necessidade aguça o engenho, como
sabemos, e entre tudo o que foi escrito, proferido e, em certa medida, iniciado na
sua concretização, houve muitas e boas ideias que, de facto, poderiam contribuir
para a construção de um mundo melhor, mais sustentável, menos desigual e muito
mais equilibrado. Por momentos, voltámos a discutir utopias e sonhos, como se o
mundo tivesse, de facto, aprendido a lição que lhe tinha sido dada por um inimigo
desconhecido e invisível.
COURRIER INTERNACIONAL Infelizmente, a crise económica galopante e implacável já começou a atirar mui-
Disponíveis nas lojas tos dos sonhos e reflexões, gerados no confinamento, para o canto das ideias boas
da Apple e da Google mas esquecidas. Perante o aperto da economia, do aumento dos desempregados,
as aplicações necessárias da quebra dos negócios, da instabilidade face ao dia seguinte, as atenções começa-
ram depressa a virar-se muito mais para a resolução dos problemas imediatos do
que para as soluções de futuro. Em vez de se aproveitar para mudar o que estava mal
– e que, em grande medida, nos conduziu até à situação atual –, corremos o risco de
repetir muitos dos erros do passado, e, com isso, ficar à completamente à mercê das
ameaças que se avizinham. O progresso, como escreveu Oscar Wilde, “é a concre-
tização de utopias”. Perante a maior crise das nossas gerações, era bom que tivésse-
mos isso em conta – e que não desistíssemos da busca pelas melhores soluções.
É essa, na verdade, a única forma de resolver os grandes problemas.

ILUSTRAÇÃO DE RAMSES JULHO 2020 - N.º 293 3


S SUMÁRIO
06 Fontes
08 Cartoons

RETRATO
10 Ricardo Salinas: O milionário
que ignora a pandemia

Focar
MODA
12 O lado negro da indústria

BANGLADESH
CHINA
38 Utilizar os dados
para se viver com o vírus

PESSIMISMO
40 O fim dos serviços
públicos?

TENDÊNCIA
42 Toda a gente de bicicleta!

IDEIAS
44 Viver melhor em casa
PROPRIETÁRIA Courrier International S.A.
- O Courrier Internacional é publicado sob licença da
Courrier International S.A. - Sede: 80, Boulevard Auguste
Blanqui, 75013 Paris, França - CRC Paris, Inscrita no Registre
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GERÊNCIA DA TRUST IN NEWS: Luís Delgado,
Filipe Passadouro e Cláudia Serra Campos.
COMPOSIÇÃO DO CAPITAL DA ENTIDADE
PROPRIETÁRIA: 10.000,00 euros,
Principal acionista: Luís Delgado (100%)
PUBLISHER: Mafalda Anjos
JULHO 2020 14 Apocalipse para as
trabalhadoras têxteis ALEMANHA
Courrier internacional

EDIÇÃO Nº293
DIRETOR Rui Tavares Guedes
46 Depois da crise, DIRETOR DE ARTE João Carlos Mendes
ITÁLIA TRADUÇÃO Aida Macedo, Ana Caldas,
um êxodo urbano? Ana Cardoso Pires/Campo das Estrelas, Bureau Portugais
18 As fábricas invisíveis de Traduction (Ana Marques, Teresa Borges), António
das grandes marcas Pedro Braga, Fernanda Barão, Helena Araújo, Jorge Pires,
Digital Maria Alves, Mariana Afonso, e Mariana Passos e Sousa
REVISÃO Rui Carvalho, Sónia Graça, Margarida Robalo,
EUA Maria Carvalhas e Teresa Machado
INFOGRAFIA: Álvaro Rosendo.
20 Um país sentado INVESTIGAÇÃO SECRETARIADO: Sofia Vicente (Direção), Teresa Rodrigues
(Coordenadora), Ana Paula Figueiredo e Luís Pinto
num barril de pólvora 50 Quando a internet COURRIER INTERNATIONAL Arnaud Aubron (Diretor),
Claire Carrard (Diretora de Redação),
for chinesa Sophie-Anne Delhomme (Diretora de Arte)
EUA REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E SERVIÇOS COMERCIAIS:
Rua da Fonte da Caspolima – Quinta da Fonte
22 Uma mobilização EUA Edifício Fernão de Magalhães, nº8, 2770-190
Paço de Arcos – Telefone.: 218 705 000
capital 56 Quem controla os Delegação Norte: Rua Conselheiro Costa Braga
n.º 502 – 4450-102 MATOSINHOS
algoritmos que recrutam?
Capa Telefone – 220 993 810
PUBLICIDADE: Telefone 218 705 000
Vânia Delgado (Diretora Comercial) vdelgado@trustinnews.pt
RÚSSIA Maria João Costa (Diretora Coordenadora de Publicidade)
CIDADES mjcosta@trustinnews.pt Mónica Ferreira (Gestora de Marca)
61 Yandex, o outro mferreira@trustinnews.pt Rita Roseiro (Gestora de Marca)
rroseiro@trustinnews.pt Mariana Jesus (Gestora de Marca)
24 Operação mudança gigante digital mjesus@trustinnews.pt Florbela Figueiras (Assistente Comercial
Lisboa) ffigueiras@trustinnews.pt Elisabete Anacleto (Assistente
IDEIAS Comercial Lisboa) eanacleto@trustinnews.pt

26 Bem-vindos ao laboratório Reportagem Delegação Norte - Telefone: 220 990 052


Margarida Vasconcelos (Gestora de Marca) mvasconvelos@
trustinnews.pt Rita Gencsi (Assistente Comercial Porto)
Capa GETTY IMAGES de ideias rgencsi@trustinnews.pt
MARINHEIROS PARCERIAS E NOVOS NEGÓCIOS:
Pedro Oliveira (Diretor) - poliveira@trustinnews.pt
CRIATIVIDADE 72 Prisioneiros dos mares MARKETING:
Aos leitores Marta Silva Carvalho (Diretora) mscarvalho@trustinnews.pt
30 Tornar as cidades habitáveis Marta Pessanha (Gestora de Marca) mpessanha@trustinnews.pt
Esta edição da COURRIER
INTERNACIONAL é a terceira
SINGAPURA BRANDED CONTENT:
Rita Ibérico Nogueira (Diretora) rnogueira@trustinnews.pt
feita totalmente em ABU DHABI 78 No atelier dos deuses TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO: João Mendes (Diretor)
PRODUÇÃO, CIRCULAÇÃO E ASSINATURAS:
teletrabalho, em consequência Vasco Fernandez (Diretor), Pedro Guilhermino
das medidas de proteção 34 A cidade do amanhã? 82 Flashback (Coordenador de Produção), Nuno Carvalho,
adotadas no combate à Nuno Gonçalves e Paulo Duarte (Produtores),
Isabel Anton (Coordenadora de Circulação),
epidemia da Covid-19. Helena Matoso (Coordenadora de Assinaturas)
Devido ao momento singular SERVIÇO DE APOIO AO ASSINANTE
Tel.: 21 870 50 50 (Dias úteis das 9h às 19h)
que vivemos, individual e IMPRESSÃO: Lisgráfica – Casal de Sta. Leopoldina – 2745
coletivamente, optámos por Queluz de Baixo. Distribuição: VASP MLP, Media Logistics Park,
alterar o alinhamento normal Quinta do Grajal. Venda Seca, 2739-511 Agualva-Cacém
Tel.: 214 337 000. Pontos de Venda: contactcenter@vasp.pt
da revista, transformando-a, – Tel.: 808 206 545
mais uma vez, numa espécie DISTRIBUIÇÃO VASP - MLP, Media Logistics Park,
de edição especial – com Quinta do Grajal, Venda Seca, 2739-511
Agualva-Cacém, Tel.: 214 337 000
menos páginas, sem algumas Pontos de Venda: contactcenter@vasp.pt
secções habituais, é certo, Tel.: 808 206 545
TIRAGEM 13.100 exemplares. Registo na ERC
mas com uma maior riqueza com o n.º 124.692 - Depósito Legal n.º 224.413/05
e diversidade de artigos e de ESTATUTO EDITORIAL: www.visao.sapo.pt/informacaopermanente
pontos de vista. Acreditamos,
com toda a humildade, que
esta é uma edição que cumpre
ainda mais o lema e o objetivo
da COURRIER INTERNACIONAL: A Trust in News não é responsável pelo conteúdo
ajudar a compreender o mundo dos anúncios nem pela exatidão das características
e propriedade dos produtos e/ou bens anunciados.
pelo olhar (diversificado) A respetiva veracidade e conformidade com a realidade
dos outros. são da integral e exclusiva responsabilidade dos anunciantes
e agências ou empresas publicitárias. Interdita a

Direitos humanos
reprodução, mesmo parcial, de textos, fotografias
ou ilustrações sob quaisquer meios, e para quaisquer
fins, inclusive comerciais.

64 Um muro (nunca) detém os sonhos Assine a Courrier internacional

Uma viagem à fronteira entre os Estados Unidos Ligue 21 870 50 50


da América e o México, por Pedro A. Neto, diretor- Dias úteis, das 9h às 19h.

-executivo da Amnistia Internacional – Portugal

JULHO 20202020
JULHO - N.º-293
N.º 293 5
F FON T E S
ESTE MÊS NO
dois diários de referência, optou
por ter um site de acesso livre,
que partilha com a sua edição
dominical, The Observer.
www.theguardian.com

SüDDEUTSCHE ZEITUNG
MUNIQUE, ALEMANHA
Criado em 1945, é um dos
diários suprarregionais de
referência no país. De tendên-
cia liberal, é grande defensor
dos valores democráticos e do
SOUTH CHINA MORNING POST
HONG KONG
O grande diário de língua ingle-
sa de Hong Kong foi adquirido,
em abril de 2016, por Jack Ma
(Ma Yun), patrão do gigante
do comércio eletrónico chinês
Alibaba. A primeira iniciativa
de Jack Ma foi tornar gratuito o
site do jornal, com o intuito de
permitir “ao resto do mundo
aceder ao site de informação
mais completo e mais fiável
Estado de direito. O diário dis- sobre a Grande China”.
A tingue-se também pela impor- www.scmp.com
1 tância que atribui à cultura.
www.sueddeutsche.de DZIENNIK GAZETA PRAWNA
1 DER SPIEGEL VARSÓVIA, POLÓNIA
HAMBURGO, ALEMANHA FINANCIAL TIMES Nascido de uma fusão entre
Orgulhosamente independen- LONDRES, REINO UNIDO Dziennik (O Diário) e Gazeta
te, segue, desde a sua criação, Fundado em 1888 com o Prawna (O Jornal Jurídico),
um jornalismo de investigação, nome London Financial Guide, este título, especializado em
declarando guerra à corrupção um jornal de quatro páginas questões jurídicas e econó-
e ao abuso de poder. Um dos destinado “aos investidores micas, está em concorrência
mais influentes média euro- honestos e aos corretores direta com o Rzeczpospolita.
peus. www.spiegel.de respeitáveis”, é hoje o diário O seu suplemento de fim de
financeiro e económico de refe- semana, por outro lado, contém
2 EL PAÍS rência na Europa. Foi comprado grandes entrevistas, ensaios e
MADRID, ESPANHA pelo grupo japonês Nikkei, em reportagens sobre temas mais
Fundado em 1976, seis meses 2015. Mais de 600 jornalistas alargados. www.dziennik.pl
após a morte de Franco, é o jor- distribuídos por mais de 40 paí-
nal mais lido em Espanha. Per- 2 ses trabalham para este título. THE NATIONAL
tence ao grupo espanhol Prisa. www.ft.com ABU DHABI, EAU
Com o surgimento de novos O título, criado no início de
títulos de esquerda, o diário po- 4 THE NEW YORK TIMES 2008, pertence a uma empresa
sicionou-se mais ao centro do NOVA IORQUE, EUA de investimentos do prínci-
que nos seus primórdios, mas Com mil jornalistas, pe herdeiro Mohammed ben
continua a ser considerado uma 27 delegações no estrangeiro Zayed al-Nahyan. Assim, é
instituição www.elpais.com e 122 prémios Pulitzer, é, geralmente pouco crítico na
de longe, o principal diário sua cobertura de acontecimen-
3 THE ATLANTIC do país, no qual podem ler-se tos nacionais. Por outro lado,
WASHINGTON, EUA all the news that’s fit to print ao nível internacional publica
A antecipação é um dos pontos (“todas as notícias dignas de geralmente reportagens e
fortes da revista, desde a sua serem publicadas”). A família análises de alta qualidade. The
criação, em 1857. Esta venerável Ochs, que em 1896 assumiu o National tem meios para atrair
publicação, na qual escrevem controlo deste jornal criado em bons escritores da Imprensa
os mais prestigiados autores 1851, continua à frente desta anglo-saxónica. www.thenational.ae
da atualidade, soube, melhor 3 publicação de centro-esquerda.
do que qualquer outra revista www.nytimes.com JINGJI GUANCHA BAO
norte-americana, virar-se para PEQUIM, CHINA
a internet, transformando a sua THE WASHINGTON POST O Observador Económico visa
página num local de reflexão e WASHINGTON, EUA um público com sentido crítico
de debate. www.theatlantic.com Grande diário da capital nor- que pretende acompanhar a
te-americana e um dos títulos atualidade. Criado em abril de
THE GUARDIAN mais influentes da Imprensa 2001, em Shandong, impôs-se
LONDRES, REINO UNIDO mundial. posteriormente em Pequim,
Lançado em 1821, é o jornal de Distingue-se pela cobertura onde vivem quase todos os que
referência da intelligentsia, dos atenta da vida política norte- escrevem nas suas colunas.
professores e dos sindicalistas. -americana, pelas análises Todos os anos, em colaboração
De orientação centro-esquer- e reportagens. Em 2013, com uma instituição de Ensino
da, mostra-se muito crítico em foi adquirido pelo patrão Superior, atribui um prémio a
relação ao governo conserva- da Amazon, Jeff Bezos. um agente económico
dor. Ao contrário dos outros www.washingtonpost.com www.eeo.com.cn
4
6 JULHO 2020 - N.º 293
C CARTOONS

Regresso às aulas
“Correu bem o teu dia na escola?”,
perguntam os pais, quando
o filho regressa a casa que está cheia
de indicações sobre
os procedimentos a adotar
CÔTÉ, PARA LE SOLEIL, CANADÁ

Plano israelita
para a Palestina
“A solução a dois Estados”,
apoiada pelos EUA
CHAPPATTE PARA LE TEMPS,
LAUSANNE, SUÍÇA

8 JULHO 2020 - N.º 293


Férias pós-Covid
Como vai ser bom acampar
no meio da Natureza...
LAZAN, CHILE,
COURRIER INTERNATIONAL

Do confinamento
ao “covidivórcio”
A diferença ao longo dos dias
passados em casa
CÔTÉ PARA LE SOLEIL, CANADÁ

JULHO 2020 - N.º 293 9


R R E T R ATO

RICARDO SALINAS

O milionário
que ignora a pandemia
MAGNATA MEXICANO, O SEGUNDO HOMEM MAIS RICO DO PAÍS E
PRÓXIMO DO PRESIDENTE LÓPEZ OBRADOR, OPÕE-SE ABERTAMENTE À
CESSAÇÃO DAS ATIVIDADES NA SEQUÊNCIA DA CRISE DO CORONAVÍRUS.

P
RETRATO DE UM MAGNATA À FRENTE DE UM IMPÉRIO DE SERVIÇOS
DEDICADOS AOS POBRES

oucas horas depois de o governo me- foi comprada por uma ninharia após a sua TV Azteca são geralmente poupados a tais
xicano ter declarado estado de emergência privatização, em 1993. nomes. Na semana em que esta polémica
sanitária [em 31 de março], um comunicado A TV Azteca é o segundo canal mais estalou, Ricardo Salinas Pliego também
da maior importância começou a circular visto no México, principalmente pelas reivindicou o título de segundo homem
entre os 70 mil funcionários do poderoso classes trabalhadoras, a base eleitoral de mais rico do México, atrás de Carlos Slim,
Grupo Salinas, um grupo [mexicano] pre- López Obrador. “Não ouçam mais o que de acordo com a última atualização do ran-
sente nas áreas das finanças, do comércio, López-Gatellis vos diz: os seus números já king da Forbes. A cabeça do Grupo Salinas
das comunicações, da segurança e energia. não fazem sentido”, declarava o apresenta- conseguiu destronar a poderosa empresa
“Hoje, mais do que nunca, o México precisa dor do noticiário da noite [Javier Alatorre], mineira de Germán Larrea e acrescentar
de nós”, lia-se. na sexta-feira, 17 de abril, referindo-se às à sua fortuna cerca de 11,7 mil milhões de
Ricardo Benjamín Salinas Pliego dava, conferências de Imprensa do vice-ministro dólares. E tudo isto aconteceu em 2019,
assim, ordens aos seus empregados para que da Saúde e porta-voz do governo sobre o um ano em que a situação económica no
permanecessem a trabalhar. Em concreto, coronavírus. México esteve longe de ser favorável.
este homem de negócios, próximo do Pre- Estas palavras deixaram o México muito Enquanto o crescimento económico do
sidente López Obrador, estava a incitar as perturbado e levaram o Presidente López México contraía pela primeira vez desde
pessoas a desobedecerem às ordens oficiais Obrador a reagir logo no dia seguinte: 2009 (em 0,1%), Salinas colecionava con-
em plena pandemia. “Penso que o meu amigo Javier Alatorre cessões obtidas junto do governo federal
“O país vai mal: as ruas estão vazias, cometeu um erro: não foi algo muito bem e das autoridades da Cidade do México,
todos os lugares públicos estão fechados, pensado da sua parte.” ambos detidos pelo Movimento de Rege-
as escolas e hotéis estão desertos, os par- Esta resposta moderada do Presidente é neração Nacional (Morena), partido de
ques sem vida. Isto não é tolerável, a vida surpreendente, dado o seu temperamento López Obrador.
tem de continuar”, escrevia Salinas Plie- belicoso face às críticas dos meios de co- O bom entendimento entre Salinas
go aos seus empregados. A sua declaração municação social [ao seu governo]. López Pliego e o Presidente mexicano já existe
destinava-se a combater “o medo que nos Obrador usa de bom grado termos sarcás- há vários anos, tendo-se estabelecido quan-
é instilado” e a lutar contra o colapso da ticos, como “aliados da máfia no poder” do López Obrador foi chefe do governo da
economia mexicana. Desde então a mes- ou “fifi press” [referindo-se aos meios de capital (de 2000 a 2005). Na manhã de 2
ma mensagem apareceu nos noticiários da comunicação conservadores que ele con- de julho de 2018, Salinas Pliego fazia parte
sua estação de televisão, TV Azteca, que sidera pretensiosos], mas os jornalistas da das poucas pessoas convidadas a visitar
a casa de López Obrador para celebrar o
seu triunfo absoluto nas eleições presiden-
JORNAL AUTORES DATA TRADUTORA ciais. À noite, os dois homens brindaram
R El País David Marcial Pérez, 05.05.2020 Helena Araújo com uísque junto daqueles que se torna-
Madrid Luis Pablo Beauregard riam figuras-chave do governo de López

10 JULHO 2020 - N.º 293 FOTO: GETTYIMAGES


Obrador: Alfonso Romo, chefe de gabinete subsídios há anos e substituiu-os por um Os pobres são os seus clientes e os seus
do Presidente, e Julio Scherer, conselheiro dos bancos que acumulam mais queixas eleitores. O modelo de Salinas não reúne,
jurídico do Presidente. das organizações de defesa do consumi- ainda assim, unanimidade. É difícil en-
Entre os lucrativos concursos públicos dor, devido às suas elevadas taxas de juro contrar a vocação social de uma empresa
que as empresas do Grupo Salinas vence- e aos seus métodos de cobrança, os quais que aproveita a falta de acesso aos serviços
ram, em 2019, há que citar o da Total Play, incluem visitas domiciliárias. bancários – num país onde quase meta-
a sua divisão departamental de telefonia Quando a presidente [Alejandra Pala- de da população vive abaixo do limiar da
móvel e internet. Esta divisão ganhou cios Prieto] da Comissão da Concorrência, pobreza – e a economia subterrânea para
dois contratos para gerir sistemas de vi- num artigo publicado na Imprensa, criticou oferecer empréstimos pessoais a taxas por
deovigilância na Cidade do México por um esta atribuição direta ao Banco Azteca, o vezes superiores a 50 por cento.
orçamento de 40 milhões de dólares. Em grupo Salinas passou à ofensiva através dos Salinas Pliego vai mais ao encontro dos
agosto do mesmo ano, a Seguros Azteca seus advogados. O caso foi amplamente critérios da aristocracia das grandes fortu-
[ramo de seguros do grupo] assumiu os considerado uma manobra de intimidação nas do México. Pertence a uma poderosa
contratos de cobertura de acidentes de rua contra uma especialista na luta contra os dinastia familiar da cidade de Monterrey,
de agentes policiais e funcionários públicos monopólios. Mas o grupo Salinas sabe jogar o coração industrial [no Nordeste] do país,
da capital, num montante próximo dos três bem, quando é necessário. onde as empresas prosperaram à custa de
milhões de dólares, o que equivale a um “É verdade que Ricardo Salinas tem privatizações e de contratos públicos. As
aumento de 19 por cento em relação ao dinheiro, mas também tem uma vocação origens da sua fortuna remontam ao início
custo fixo anual do mesmo contrato nos social.” É assim que López Obrador costuma do século XX, quando o seu bisavô abriu
seis anos anteriores. Este mesmo ramo de defender a sua cumplicidade com o homem uma fábrica de camas em latão.
seguros foi escolhido para cobrir “todos os de negócios que também faz parte do seu “Mesmo nessa altura, perceberam que
bens móveis e imóveis” do Ministério da conselho consultivo patronal. O governo as lojas tinham de estar abertas todo o dia
Educação por mais de 42 milhões de dóla- tinha, de facto, justificado a atribuição da e que, para vender às pessoas com baixos
res. O atual ministro da Educação, Esteban gestão dos benefícios sociais a Salinas pela rendimentos, era necessário propor-lhes
Moctezuma Barragán, antigo membro do existência de uma rede [do grupo] de mais o pagamento faseado, com prestações to-
Partido Revolucionário Institucional (PRI, de quatro mil lojas Elektra nas regiões mais das as semanas”, explicava, há cinco anos,
da oposição), dirigiu a Fundação Azteca de pobres do país. As lojas Elektra são o ponto Luis Niño de Rivera, então diretor do Banco
Salinas Pliego, durante 17 anos. de partida do império de Salinas. Herda- Azteca, o qual foi nomeado presidente da
A decisão mais controversa quanto à das do pai [de Ricardo Benjamín], cons- associação patronal dos bancos, em 2019.
relação do governo com o grupo Salinas re- tituem uma integração única no comércio O Banco Azteca herdou estas práticas
fere-se à atribuição direta ao Banco Azteca de retalho e nos serviços financeiros para comerciais. As sucursais estão abertas todos
da gestão dos pagamentos dos principais a população pobre, não só no México mas os dias do ano, das 9h às 21h. Os créditos
subsídios sociais – o cavalo de batalha do também na América Central e nos Estados devem ser reembolsados semanalmente e
Presidente mexicano, com um orçamento Unidos da América. não em parcelas mensais, como os bancos
de mais de 12 mil milhões de dólares. O Este é provavelmente o elo mais forte tradicionalmente propõem. Um ritmo que
novo sistema fez tábua rasa de organis- entre o Presidente e o homem de negó- Salinas Pliego não quer perder, mesmo em
mos da sociedade civil que geriam estes cios. Ambos têm o mesmo objetivo central. tempos da Covid-19.

JULHO 2020 - N.º 293 11


MODA
O LADO NEGRO
DA INDÚSTRIA
NO BANGLADESH, MILHÕES DE PESSOAS, MAIORITARIAMENTE,
MULHERES, FICARAM SEM SUSTENTO, QUANDO AS GRANDES
MARCAS MANDARAM SUSPENDER A PRODUÇÃO
POR CAUSA DA PANDEMIA. MAS ANTES DISSO, NUM PAÍS
DA UNIÃO EUROPEIA, ITÁLIA, AS ACUSAÇÕES DE EXPLORAÇÃO
OCUPAVAM AS PÁGINAS DOS ÓRGÃOS DE COMUNICAÇÃO
SOCIAL MAIS INFLUENTES
Indústria

Bangladesh

Apocalipse
para as
trabalhadoras
têxteis
Após o confinamento que se seguiu ao surto da Covid-19,
as marcas europeias cancelaram mais de três mil milhões de dólares
em encomendas aos seus fornecedores deste país asiático

DER SPIEGEL HAMBURGO

A A fábrica de calças de Mostafiz


Uddin, em Chittagong, Bangla-
Desde que algumas empresas, incluindo
a gigante C&A [holandesa] e a cadeia irlan-
desh, emprega duas mil costureiras. desa Primark, cancelaram encomendas no
Mas quando regressaram de férias pro- valor de várias centenas de milhões de euros,
longadas devido ao coronavírus, estas não os fabricantes dos países asiáticos com mão
tinham trabalho. Os clientes, incluindo o de obra barata estão a lutar pela sobrevi-
grupo espanhol Inditex (Zara) e o discounter vência. Os mais afetados são a Birmânia, o
alemão Takko, entre outros, suspenderam Camboja e, precisamente, o Bangladesh, a
as suas encomendas. Já nem levam a mer- fábrica de costura do mundo que depende
cadoria que eles encomendaram: a empresa mais da indústria do vestuário do que de
fabricou 20 mil jeans para a Takko, explica qualquer outra: o vestuário pronto-a-ves-
Mostafiz Uddin, mas, “por enquanto, di- tir representa 84% das suas exportações.
zem-nos para não os enviarmos”. De acordo com um inquérito às empresas
Este empresário de 41 anos encontra-se, locais, realizado em 22 de março, até essa
por isso, com a mercadoria nas mãos até data, as anulações de encomendas já tinham
nova ordem. Ele tem de pagar antecipada- atingido 1,4 mil milhões de dólares.
mente o tecido e os portes, mas as grandes
empresas têm meses para pagar as contas. Sem nada para comer
Se se esconderem atrás de cláusulas contra- As empresas do Bangladesh estão sozinhas
tuais, que autorizam a suspensão imediata nesta batalha. Não têm manifestamente
das encomendas em caso de força maior, qualquer solidariedade dos seus clientes.
empresas como a de Mostafiz Uddin vão Certamente que o grupo [alemão] de ves-
ser asfixiadas pelos bancos que ameaçam tuário de baixo custo KiK tem no coração
congelar as suas contas. Cada um dos seus os interesses das costureiras, confessou um
empregados sustenta uma média de cinco porta-voz, mas, neste momento, tem tam-
pessoas, conta o patrão. “Eu já nem consigo bém outras preocupações, nomeadamente
dormir”, acrescenta. salvar postos de trabalho na Alemanha.

AUTOR DATA TRADUTORA


F Nils Klawitter 06.05.2020 Helena Araújo

14 JULHO 2020 - N.º 293


N Ú M E RO

70%
de encomendas
a menos
No Vietname, as encomendas de têxteis
e de calçado deverão ter baixado 70%,
em abril e maio, de acordo com os dados
do Ministério da Indústria e Comércio
citados pelo THE NIKKEI ASIAN REVIEW.
Um declínio que pode levar à perda
de 50 mil empregos no líder do setor,
Vinatex: “30% a 50% dos empregos
vão desaparecer”, revelou o diretor
da empresa, Le Tien Truong, ao jornal
japonês. A Vinatex possui cerca
de 200 fábricas no Vietname e tem
mais de 100 mil empregados.

A partir do momento em que algumas


empresas cancelaram encomendas no
valor de centenas de milhões de euros,
a mão de obra barata dos países asiáticos
está a lutar pela sobrevivência
FOTO DE GETTY IMAGES

Era de bom-tom, nos anos de abundân-


cia precedentes, pensar nas trabalhadoras
do setor têxtil. Nenhuma palavra era demais
para os gestores da produção sustentável:
falava-se de responsabilidade social, de
salários que permitissem às pessoas viver
com dignidade. Há alguns meses, a Zara
mandara imprimir a palavra “RESPECT”
na sua dita “sustentável” sweatshirt com ca-
puz. “Deram-lhes a ganhar muito dinheiro
nos últimos anos e agora esquecem-se das
pessoas a quem o devem”, diz Kalpona Ak-
ter, diretora do Centro do Bangladesh de
Solidariedade dos Trabalhadores (BCWS).
A situação aqui é muito diferente da
do próspero Ocidente, explica. “Perder
o emprego normalmente significa não ter
o suficiente para comer.” Além disso, as
trabalhadoras estão expostas a um elevado
risco de infeção, e não apenas nas fábri-
cas. O salário, o equivalente a cerca de 100
dólares por mês, serve, em grande parte,
para pagarem o alojamento em barracões
perto da fábrica. “Há frequentemente duas
casas de banho e um chuveiro para 40 a
50 pessoas.”
A situação é “apocalítica”, diz ao te-
lefone Rubana Huq, presidente da Asso-
ciação de Fabricantes e Exportadores de
Vestuário do Bangladesh (BGEMA). “Vamos

JULHO 2020 - N.º 293 15


Indústria

ter dificuldade em sair desta situação.” Em seu salário, mas 98% dos grupos [europeus] Perder o emprego nestes
videochamada, ela exorta os compradores não contribuem para isso. países do Oriente significa,
ocidentais a “não os abandonarem” e a, Em 3 de abril, a Primark declarou que já normalmente, não ter o dinheiro
pelo menos, receberem as roupas já con- pagara 1,6 mil milhões de libras esterlinas suficiente para comer
fecionadas. [1,8 mil milhões de euros] por mercadorias FOTO DE GETTY IMAGES
Além disso, também as empresas neces- que se encontram em suas lojas e armazéns
sitarão de apoio nos próximos três meses, ou em trânsito. O encerramento das suas muito diferente e prepotente. “Este período
caso contrário, mais de quatro milhões filiais resultará numa perda de 650 milhões excecional” exige “medidas excecionais”,
de pessoas de cerca de quatro mil fábri- de libras esterlinas de volume de negócios diz-se o texto.
cas estarão na rua. Arriscamos a anarquia, por mês. O grupo diz estar disposto a um Em primeiro lugar, todas as encomen-
acrescenta. O site da BGEMA apresenta compromisso e concorda em financiar os das, independentemente do seu estatuto,
um contador que apresenta a catástrofe salários dos trabalhadores que trabalharam “ficam canceladas com efeito imediato”.
em números: no primeiro fim de semana nas encomendas da produção que foram Além disso, a produção de encomendas já
de abril, as anulações e os cancelamentos canceladas. efetuadas deve ser interrompida. Em se-
de encomendas ultrapassaram os três mil A C&A evoca igualmente a dificuldade gundo lugar, a C&A espera que o fornecedor
milhões de dólares – afetando 1 108 fábricas. da sua situação, mas diz que está “a tra- tome “imediatamente todas as medidas ne-
balhar arduamente”, nas palavras de um cessárias para excluir ou reduzir qualquer
Quem falta mais ao respeito porta-voz, “para minimizar os efeitos risco de responsabilidade para si próprio
O Centro para os Direitos dos Trabalhado- sobre os fornecedores”. O email que lhes e/ou para a C&A”. O email invoca ainda a
res [Center for Global Workers’ Rights, da foi enviado, a 23 de março, pelos diretores lei alemã aplicável e as “autoridades supe-
Universidade da Pensilvânia] publicou, no de marketing e de compras utiliza um tom riores”. Não menciona os empregados nas
final de março, um ponto da situação das suas cerca de 150 instalações de produção
“faltas de respeito” para com os fabricantes, ... no Bangladesh. “Há fábricas que produ-
com base num questionário online enviado zem para a C&A há décadas. Para as pessoas
às empresas do Bangladesh, e estabeleceu “Aqueles que cancelaram aqui, foi um golpe no coração”, confessa
uma espécie de ranking: a Primark está à encomendas, como a C&A um empresário de pronto-a-vestir.
frente, com mais de 273 milhões de dólares “Aqueles que cancelaram encomendas,
em cancelamentos de encomendas, seguida ou a Primark, mostram como a C&A ou a Primark, mostram bem
pela C&A, com 166 milhões de dólares. No bem o valor que atribuem o valor que atribuem a toda esta conversa
total, desde o surto da epidemia, 46% das sobre responsabilidade”, diz Gisela Bur-
produções em curso ou finalizadas foram
a toda esta conversa sobre ckhardt, da Femnet, uma organização que
canceladas, no Bangladesh. Além disso, responsabilidade”, diz defende os direitos das mulheres.
72% dos comitentes não pagaram os teci- Gisela Burckhardt, de uma
dos comprados pelos seus fornecedores. Esperança na mudança
Os trabalhadores que trabalham a tempo organização de defesa Algumas empresas parecem estar mais aber-
reduzido têm direito, por lei, a uma parte do dos direitos das mulheres tas ao diálogo: a H&M da Suécia sublinha

16 JULHO 2020 - N.º 293


Camboja
Um regresso à terra
para as pequenas mãos
do pronto-a-vestir?
Encomendas canceladas, faturas por pagar... As fábricas de vestuário, que
abastecem os mercados europeu e americano, estão a fechar uma após a outra.
E 750 mil trabalhadores estão em risco de ficar sem recursos
O setor do vestuário do Camboja é constituído por mil fábricas de pronto-a-vestir,
de calçado e de artigos de viagem que representam cerca de 40% do produto
interno bruto (PIB) do país e 75% das suas exportações, ou seja: 9,35 mil milhões
de dólares e 750 mil postos de trabalho diretos, numa população de 16 milhões de
habitantes. Embora o país tenha um número reduzido de pessoas infetadas com o
novo coronavírus (cerca de 100, a maioria das quais já recuperou), a onda de choque
da pandemia desencadeou um terrível terramoto na sua economia.
De acordo com o primeiro-ministro Hun Sen, cerca de 100 fábricas já encerraram,
informa o PHNOM PENH POST. Mas, segundo o KHMER TIMES, que cita a Gmac
(Associação das Fábricas de Vestuário do Camboja), “cerca de 60% das fábricas
foram gravemente afetadas pelo cancelamento de encomendas”, atingindo
500 mil dos seus 750 mil trabalhadores.
Para todas estas pessoas que, de um dia para o outro, ficaram sem trabalho,
as medidas de apoio são reduzidas. Em fevereiro, segundo o CAMBOJA NEWS,
“as fábricas obrigadas a suspender a produção tinham acordado em cumprir
a diretiva do primeiro-ministro que indicava o pagamento equivalente a 40% de um
salário mínimo ao seu pessoal”, tomando o governo a seu cargo 20 por cento.
que não cancelou encomendas já efetuadas. Este montante correspondia a 114 dólares (105 euros). Mas, no início de abril,
O grupo alemão Tchibo garante que ainda deu-se uma reviravolta, revela o PHNOM PENH POST: o chefe do governo, evocando
não cancelou qualquer encomenda, que está um “gesto humanitário”, decidiu que seria pago um montante fixo de 70 dólares
a receber os produtos já finalizados e que (64 euros) aos desempregados.
pretende manter, na medida do possível, Um “gesto humanitário” durante quanto tempo? Em momento algum o primeiro-
as relações comerciais – inclusive através -ministro o mencionou. E, na sua opinião, em vez de esperarem uma ajuda social
da realização de novas encomendas. ou uma improvável reabertura rápida das fábricas, os trabalhadores agora no
A Takko, que é membro da Fair Wear desemprego deveriam pensar em regressar aos campos. “Aqui não é como na
Foundation [uma organização dedicada a Europa, onde os antepassados dos operários já eram operários. Os trabalhadores
melhorar as condições de trabalho no setor cambojanos ainda não cortaram os seus laços com o mundo rural.” Por outras
têxtil], também está disposta a fazer cedên- palavras: desistam das fábricas e regressem à terra. Um projeto que dificilmente
cias: não houve cancelamentos em massa, seduzirá as centenas de milhares de cambojanos que se apaixonaram pelas luzes
diz uma porta-voz. “Estamos a cumprir a da cidade. Sem contar, observa o CAMBOJA News, que uma esmagadora maioria está
100% as nossas obrigações de pagamento muitíssimo endividada com as organizações de microcrédito.
aos nossos fornecedores”, prossegue. O
grupo continua em contacto, entre outros,
com a Denim Expert, empresa da Mostafiz
Uddin, tendo as duas partes encontrado
uma “solução” para uma encomenda de
pré-produção. No entanto, Uddin conti-
nua a enviar emails que demonstram o seu
desapontamento: agora ele tem de arranjar
algumas centenas de milhares de dólares
para pagar o salário de abril aos seus tra-
balhadores.
Talvez a crise conduza a uma mudança,
quer acreditar Gisela Burckhardt. Talvez se
ganhe consciência de que demasiadas pes-
soas estão a pagar demasiado caro por uma
produção excessiva a baixo custo. Talvez
a era da moda descartável chegue ao fim.
Rubana Huq tem pouca esperança. “As
grandes empresas voltarão para nós e dir-
-nos-ão: ‘O mundo é um lugar diferente
agora, precisamos de produtos ainda mais
baratos’.”

JULHO 2020 - N.º 293 17


Indústria

I TÁ L I A

As fábricas invisíveis
das grandes marcas
A polícia italiana descobriu, em novembro, uma fábrica
brica
clandestina de costura, em que estavam trancados
dos
43 operários. Esta prática é comum no Sul do país, onde
as grandes marcas da moda exploram o trabalho ilegal
legal
de pequenos artesãos mal remunerados

LA REPUBBLICA ROMA

A A Itália deve a qualidade da questrados numa casa-forte fechada com ou cave pode transformar-se em atelier
sua indústria de manufatura, uma porta blindada, sem janelas nem casa de confeção de camisas, sapatos, jeans,
em grande parte, a pessoas que de banho. Numa ação de inspeção a uma blazers ou mesmo vestidos de noiva. Na
trabalham em situação de escravatura. fabriqueta de costura, a polícia descobriu Campânia e na Apúlia, o trabalho clan-
Falamos de homens e de mulheres que que, num total de 35 empregados, 14 se destino é, simultaneamente, um balão
trabalham clandestinamente em zonas encontravam em situação irregular. Pior: de oxigénio e um veneno para milhares
industriais em que, há mais de meio por detrás de uma pilha de rolos de cou- de famílias.
século e em condições de trabalho fre- ro e de ferramentas, uma enorme porta “Excelência” é a palavra que se aplica
quentemente desumanas, executam as blindada dava acesso a uma verdadeira ao setor da moda italiana. Aplica-se, do
várias fases de confeção (corte, costura, caixa-forte. Dentro dessa, escondiam-se mesmo modo, à arte dos empregados des-
acabamentos). Fabricam ainda calçado, mais 43 trabalhadores “clandestinos”. tes ateliers clandestinos, que trabalham
peças de roupa e cintos para os grandes Refiro-me à empresa Moreno s.r.l, para as grandes casas da moda de todo o
costureiros. Estamos perante uma “rea- situada em Melito, a 20 minutos de Nápo- mundo e ganham entre um e três euros
lidade italiana”. les. Aí fabricam-se artigos de marroqui- por hora.
Para perceber em que consiste a naria para as grandes marcas do mundo As razões para a indústria da moda
“realidade italiana” decidi investigar as da moda. Durante a operação, a polícia recorrer a estes trabalhadores invisíveis,
fábricas clandestinas. Quando discutia apreendeu máquinas e material no valor em vez de deslocalizar o trabalho para
o assunto com sindicalistas ou com os de 2,5 milhões de euros. a Índia, a Roménia ou o Bangladesh,
próprios operários, o comentário era Acha que não é possível trancar operá- como acontece com outros produtos,
sempre o mesmo: “Pois, esta situação rios numa sala blindada? À primeira vista, resumem-se a uma palavra: “excelên-
é... uma realidade italiana.” essa casa-forte destinava-se a armaze-
Compreendi que essa “realidade ita- nar as peles mais valiosas. No entanto, ...
liana” é algo que todos conhecem, que a mercadoria mais preciosa, aquela que
está à vista de toda a gente, mas de que os patrões tentavam esconder da polícia, Ainda que estejam
ninguém fala: se alguém a denunciasse, eram os operários dos dois sexos e as suas protegidas do ponto de
os primeiros a sofrer seriam os traba- competências, mais importantes do que
lhadores explorados. qualquer rolo de pele. Entre as 43 pessoas vista jurídico, as grandes
Realidade italiana é a notícia da des- fechadas na caixa-forte encontravam-se casas da moda sabem
coberta, pela polícia de Nápoles [em 16 de dois menores e uma grávida.
novembro passado], de 43 operários se- Na minha terra, qualquer garagem
perfeitamente que a
qualidade dos seus artigos
é produzida em condições
AUTOR DATA TRADUTORA de trabalho deploráveis
F Roberto Saviano 18.11.2019 Ana Caldas
e de constante exploração

18 JULHO 2020 - N.º 293 ILUSTRAÇÃO DE AREND, HOLANDA


Neste caso concreto, os trabalhadores do
mundo da moda possuem esses atributos
mas, para os protegerem, assistem à queda
a pique dos salários e à deterioração das
condições de trabalho.
A tradição da manufatura em ateliers Autor
ou em casa já vem de longe. Na década
de 70 do século XX, qualquer saia ou
par de sapatos, qualquer tapete ou par Roberto Saviano
de calças era costurado no domicílio; UM ESCRITOR
as fábricas enviavam o material para as CONTRA AS MÁFIAS
mulheres (raramente para homens) que Jornalista e escritor napolitano,
confecionavam, montavam ou acabavam tornou-se célebre
as peças em casa e eram pagas ao mês. com a publicação, em 2006,
Este sistema mantém-se; porém, o traba- de Gomorra, em que denuncia
lho no domicílio, a que a socióloga Tania o poder da Camorra
Toffanin, muito justamente, deu o nome (máfia napolitana) na região
de “fábricas invisíveis”, deslocou-se para da Campânia. Desde então,
os ateliers. tem de viver sob a proteção
da polícia, mas continua a escrever
Mão de obra barata sobre o tema das máfias e,
No debate público, os nacionalistas ig- de modo mais geral, sobre
noram por mera ideologia o problema a pobreza no Sul de Itália.
do trabalho forçado em Itália: reconhe-
cê-lo deitaria por terra a sua argumen-
tação segundo a qual são os imigrantes
clandestinos no país que fazem baixar o
preço da mão de obra, reintroduzindo,
COURRIER INTERNATIONAL

deste modo, uma forma de escravatura. por rondar um euro por hora. Quando
Há mais de 50 anos que nas regiões rebentam escândalos como o de Meli-
ITÁLIA
REGIÃO do Sul de Itália (mas também em Véne- to, vem à luz do dia o nome da empresa
DE CAMPÂNIA to) toda a estrutura da moda assenta na em causa, mas nunca são divulgadas as
Roma exploração sistemática de mão de obra grandes marcas para as quais esta labora.
de qualidade. Apesar de todos os artigos Como é possível que a alta-costura não
Nápoles e reportagens, das denúncias e dos es- seja também implicada nas ações judi-
Melito de Nápoles forços dos sindicatos, não se consegue ciais instauradas contra os ateliers? Fácil:
REGIÃO pôr termo à situação. oficialmente, a empresa final nada tem
DE APÚLIA
Aos operários de Melito trancados na que ver com o caso, visto ter utilizado um
200 km caixa-forte sucedem-se a outros ope- mecanismo (que, na realidade, a exime
rários trancados numa cave qualquer. de qualquer responsabilidade) de sub-
Mar
Mediterrâneo Muitos perguntam-se qual a razão para contratação de fornecedores que, por
estes ateliers não regularizarem a situa- sua vez, subcontratam outras empresas.
ção dos seus trabalhadores. A resposta é A verdade, porém, é que as grandes
cia”. Para falar a verdade, não é possível simples: declarar estes assalariados im- casas da moda são inegavelmente respon-
aprender a trabalhar com qualidade numa plicaria pagar-lhes um salário mínimo, sáveis pela situação: ainda que estejam
formação intensiva de três dias, como a além de obrigar ao cumprimento de horas protegidas do ponto de vista jurídico, elas
que se concede às operárias indianas ou semanais, férias remuneradas e locais de sabem perfeitamente que a qualidade dos
paquistanesas. O cuidado extremo no fa- trabalho dignos deste nome, ou seja: con- seus artigos é produzida em condições de
brico e o controlo minucioso do resultado dições que empurrariam muitos ateliers trabalho deploráveis e de constante ex-
fazem toda a diferença. para fora do mercado e que acabariam ploração.
A qualidade é paga a preços de mi- com os lucros de outros tantos pequenos Só as grandes marcas poderiam fazer
séria e, para que se mantenha, os custos empresários. escolhas suscetíveis de alterar o jogo.
têm de ser reduzidos ao máximo. Quan- Acresce que a regularização revela-se, Os populistas calam-se por opor-
do perguntámos aos jovens naturais de muitas vezes, um logro: é certo que tem tunismo; os reformistas receiam a fuga
Nápoles qual a sua função nestas fábricas, um contrato, mas o trabalhador vê-se das empresas, dos postos de trabalho e,
responderam-nos: “Eu, aqui, trabalho à obrigado a reembolsar ao patrão metade por arrasto, dos eleitores. Vamos sempre
chinesa.” Por detrás do racismo incons- do seu salário de miséria. parar, portanto, à famosa “realidade ita-
ciente desta resposta, o que eles preten- O outro grande subterfúgio das em- liana”. E, no que respeita à alta-costura,
diam dizer é que auferem o mesmo do presas para regularizarem os trabalha- será porventura a Canzone del Maggio,
que os operários de uma fábrica chinesa. dores clandestinos é o contrato no “do- do cantor genovês Fabrizio de Andrè, que
Aí não vigora o princípio de que o ta- micílio”: o operário é pago à peça, pelo melhor sintetiza esta situação:
lento, a beleza e as competências são bens produto acabado, e não pelas horas que “Mesmo que se considerem ilibados,
inesgotáveis que salvam vidas e regiões. passou a produzi-lo; a remuneração acaba estarão para sempre envolvidos.”

JULHO 2020 - N.º 293 19


EUA

UM PAÍS SENTADO
NUM BARRIL
DE PÓLVORA
Desemprego maciço, desigualdades agravadas pela pandemia, violências policiais,
extrema-direita desinibida e Presidente pronto a deitar achas para a fogueira:
todos os ingredientes estavam reunidos para os EUA se incendiarem

THE NEW YORK TIMES NOVA IORQUE

N Nos Estados Unidos da Améri-


ca, os últimos dois meses e meio
Brutalidade impensável
Durante algum tempo, pensou-se que
a violência – a sua equipa de campanha
esperava, afinal, roubar alguns eleitores
fazem lembrar as primeiras se- a impensável brutalidade da morte de negros aos democratas –, mas o que ele
quências de um filme distópico so- Floyd iria refrear as piores tendências do realmente queria dizer era bastante óbvio.
bre o colapso de uma nação. Em primeiro Presidente e dos seus apoiantes da Blue
lugar, a pandemia atacou, e os hospitais Lives Matter [um movimento de defesa Achas para fogueira
de Nova Iorque ficaram sobrecarregados. da lei em reação ao Black Lives Matter]. A presidência de Trump foi marcada por
A economia do país estagnou, o desem- As autoridades não tiveram outra alter- investidas chocantes de violência da ex-
prego atingiu o seu auge. Um em cada nativa senão intervir: os quatro agentes trema-direita: os motins nacionalistas
quatro trabalhadores norte-americanos policiais envolvidos foram despedidos, brancos em Charlottesville em agosto de
apresentou um pedido de subsídio. Em as suas ações foram condenadas em todo 2017, o massacre na Sinagoga da Árvore
frente aos bancos alimentares, vimos filas o país por agentes da autoridade e o De- da Vida em Pittsburgh, em outubro de
de carros a estender-se por quilómetros. partamento de Justiça, sob a direção de 2018, o assassínio de hispânicos em El Paso,
Fortemente armados, manifestantes hostis William Barr, prometeu que a abertura de em agosto de 2019. No entanto, embora
ao confinamento desceram às ruas um uma investigação federal seria uma “prio- o país estivesse a borbulhar e a fervilhar,
pouco por todo o lado. Em todo o país, ridade máxima”. Até Donald Trump, que ainda não se tinha registado uma revolta
uma doença de que quase ninguém tinha em tempos encorajou a brutalidade poli- generalizada. Hoje, estamos no alvorecer
ouvido falar até há um ano, já fez mais de cial, descreveu o que aconteceu com Floyd de um longo verão escaldante, palco de
100 mil mortos. como “algo verdadeiramente terrível”. convulsões sociais.
Depois, um polícia de Minneapolis foi Mas na noite de 28 de maio, quando Nos dias que correm, são muitas as
filmado a esmagar o pescoço de um afro- um procurador do município disse que o coisas que fazem com que os EUA estejam
-americano de nome George Floyd com o seu departamento ainda estava a avaliar prestes a incendiar-se: o desemprego em
joelho. Enquanto agonizava, Floyd gemeu se os quatro polícias tinham cometido um massa, a pandemia que revelou cruamen-
que não conseguia respirar, uma queixa crime, os tumultos recomeçaram em Min- te as desigualdades assassinas na saúde e
que lembra as últimas palavras de Eric neapolis e pessoas em fúria incendiaram na economia, os adolescentes ociosos, as
Garner, cuja morte, em 2014, contribuiu uma esquadra de polícia. No Twitter, um violências policiais, uma extrema-direita
para o nascimento do movimento Black Trump confuso ameaçou destacar o Exér- que sonha com uma segunda Guerra da
Lives Matter [“As Vidas Negras Impor- cito contra aqueles a quem chamou de Secessão e um Presidente sempre pron-
tam”]. A morte de Floyd ocorreu apenas “BANDIDOS”, dizendo: “Quando os saques to a deitar achas em todos os fogos que
três dias após a detenção, na Geórgia, de começarem, vamos começar a disparar.” deflagrem.
três homens acusados de perseguição e Quer tivesse ou não consciência disso, “Penso que estamos de facto num
assassínio de um jovem negro, Ahmaud citava uma frase racista dos anos 1960, ponto em que as coisas vão começar por
Arbery, enquanto fazia jogging. Em Min- utilizada por George Wallace [governador se agravar, antes que a paz regresse”, diz
neapolis, os manifestantes inundaram as do Alabama conhecido pelas suas opiniões a historiadora Heather Ann Thompson,
ruas e a polícia reagiu muito mais du- segregacionistas], entre outros. O Pre- da Universidade do Michigan.
ramente do que face aos contestatários sidente tentou então acalmar as coisas, As recentes manifestações foram
anticonfinamento, armados até aos dentes. dizendo que estava apenas a alertar contra desencadeadas por casos específicos de
violência policial, mas também ocorrem
num contexto mais vasto de uma catástrofe
AUTORA DATA TRADUTORA sanitária e económica de que são vítimas,
F Michelle Goldberg 29.05.2020 Helena Araújo de forma desproporcionada, as pessoas
de cor, especialmente os mais pobres.

20 JULHO 2020 - N.º 293


Centenas de pessoas prestam
Esta é a opinião de Darnell Hunt, reitor homenagem a George Floyd,
do Departamento de Ciências Sociais da num memorial improvisado
Universidade da Califórnia em Los Ange- em sua honra, em Minneapolis
les: “Há anos que os sociólogos estudam o FOTO DE GETTY IMAGES
comportamento de grupo e os tumultos
urbanos, e penso que é justo dizer, como das, ou estão prestes a sê-lo. Os subsídios
muitos concordam, que os tumultos nunca de desemprego adicionais aprovados pelo
são o resultado de um único incidente.” Congresso só duram até ao final de julho.
Keith Ellison, o procurador-geral de- Os orçamentos do Estado estão em farrapos
mocrata do Minnesota, confessou-me que, e, em Washington, os republicanos recu-
ultimamente, quando andava a passear ... sam-se atualmente a ajudar, o que significa
ou a correr pelas ruas de Minneapolis, que, em breve, seremos testemunhos de
sentia “uma espécie de tensão prestes a “Estamos de facto cortes dolorosos nos postos de trabalho
explodir”. As pessoas, recorda, “estiveram num ponto em que as e nos serviços públicos.
presas nas suas casas quase dois meses. “Quando as pessoas estão zangadas,
Elas já não aguentam mais. Alguns estão coisas vão começar a quando aparentemente não há nenhuma
desempregados, outros não conseguem agravar-se, antes que ajuda, não há autoridade a quem recorrer,
pagar a renda e estão frustrados, furiosos”. não há nenhuma certeza sobre o futuro,
a paz regresse”, diz a isto cria condições para a raiva, a fúria,
Sementes de raiva historiadora Heather o desespero, a depressão; uma mistura
Essa raiva só vai aumentar, porque a ruína Ann Thompson, particularmente volátil", constata Keean-
económica provocada pela pandemia está ga-Yamahtta Taylor, professora no Depar-
apenas a começar. Em alguns estados, as da Universidade tamento de Estudos Afro-Americanos de
moratórias sobre despejos foram levanta- do Michigan Princeton. Mas se sentimos que os EUA

JULHO 2020 - N.º 293 21


Revolta

M ov i m e n t o
...
Quando as pessoas
Uma mobilização
capital
estão zangadas e sem
certezas quanto ao
futuro, criam-se as
condições para a raiva,
a fúria, o desespero, a A vaga de protestos gerada após a morte de George Floyd não parece
depressão; uma mistura parar e poderá ter repercussões nas eleições de novembro.
particularmente volátil
THE ATLANTIC WASHINGTON

são hoje um barril de pólvora, não é só por


causa da ira que ressoa entre os mais ca-
renciados. No final de maio, os jornalistas
Robert Evans e Jason Wilson publicaram
uma análise fascinante e perturbadora do
movimento [de extrema-direita] “boo-
galoo” – “uma versão online, moderna e
extremista do movimento das milícias“
– no site de investigação Bellingcat.
“Os ‘Boogaloo Bois’ esperam, desejam
mesmo, que com o regresso do calor se as-
sistirá a confrontos armados com as forças
da ordem, o que dará o impulso necessário
A A vaga de protestos que hoje se
abate sobre as grandes e peque-
de acontecer, mas o movimento atingiu
uma amplitude inédita. As manifesta-
para o eclodir de uma nova guerra civil nas cidades dos Estados Unidos da ções poderão prosseguir durante dias e
nos Estados Unidos da América”, escre- América, incluindo a capital fede- semanas, talvez mesmo até às eleições de
vem Evans e Wilson. E acrescentam: “Na ral Washington, não é liderada por uma novembro. A manifestação de 6 de junho
paisagem desestabilizada do pós-corona- grande figura nacional. É constituída por na capital federal serve de ensaio para a
vírus, eles podem muito bem participar centenas de milhares de pessoas que saem grande marcha em Washington, prevista
numa explosão de violência nas ruas das à rua, bloqueiam pontes ou se reúnem em para 28 de agosto próximo.
cidades norte-americanas.” parques. Este movimento também não Este fim de semana, a polícia de choque
As pessoas associadas a esta subcultura tem um objetivo único, mas uma mul- tinha dado lugar às carrinhas de vendedo-
estiveram muito presentes nas manifes- tiplicidade de reivindicações nacionais e res de gelados. Voluntários circulavam com
tações contra a contenção, mas algumas, hiperlocais que vão de pequenos gestos carregamentos de água engarrafada, fruta
motivadas pelo ódio policial e pelo amor concretos, como a remoção de estátuas e quesadillas. Nos placards empunhados
à desordem, também participaram nos de figuras históricas racistas, até à re- por filas intermináveis de manifestantes
protestos de Minneapolis. forma completa dos serviços de polícia, podiam ler-se slogans como “Não consigo
Perante tal instabilidade, a maioria dos incluindo uma redistribuição dos seus respirar” e “Polícias no banco dos réus”.
presidentes norte-americanos teria tido orçamentos e a supressão de proteções Outros dançavam a Macarena sobre as
tendência para apostar na desescalada. É legais especiais concedidas aos agen- enormes letras amarelas fluorescentes que
por esta razão que a agitação social, para tes. “Todas estas exigências convergem formam o slogan Black Lives Matter que
lá de todos os danos que pode causar nas para reclamar o fim da guerra contra os o presidente da Câmara de Washington,
cidades onde eles explodem, conduz fre- negros”, diz YahNé Ndgo, militante do Muriel Bowser, tinha mandado pintar no
quentemente a reformas. Mas hoje temos movimento Black Lives Matter, oriundo dia anterior na 16th Street, a rua que con-
um Presidente que não está muito preo- de Filadélfia. “A nossa exigência final é duz à Casa Branca (igualmente rebatizada
cupado em evitar o caos. Como observa o fim da violência e desta guerra contra Black Lives Matter Plaza).
a historiadora Heather Ann Thompson: as vidas negras.” “Com o coronavírus e tudo o que
“De todas as outras vezes que os protes- Tais reformas necessitariam do envol- aconteceu em 2020, o nosso mundo está
tos se intensificaram porque era urgente vimento de milhares de atores políticos obrigado a mudar”, sublinhava Marilyn
reparar as injustiças, o país acabou por a nível local e exigiriam uma campanha Neale, uma manifestante de 28 anos que
tentar encontrar um novo equilíbrio, de ofensiva da parte dos membros eleitos veio de Maryland. “As coisas têm de mudar
trazer uma resposta suficiente para res- do Congresso, bem como do apoio do para haver mais igualdade. No ano 2020,
taurar a paz, por mais frágil que ela fos- Presidente. Tudo isto é pouco provável o mundo inteiro está a acordar.”
se. Ora, atualmente, as pessoas que nos
governam nunca esconderam o facto de
que não lhes incomodaria absolutamente AUTORA DATA TRADUTORA
nada se nos afundássemos totalmente na F Elaine Godfrey 00.00.2020 Helena Araújo
guerra civil.”

22 JULHO 2020 - N.º 293


Manifestantes perante os polícias,
em Nova Iorque – uma imagem
repetida em muitas cidades dos EUA
Viragem ou continuidade? reivindicações dos manifestantes. Esta FOTO DE GETTY IMAGES
Mas nem todos estão assim tão otimistas. ideia radical explica-se pelo aumento
Para James Gilmore, um jovem afro-a- das políticas de manutenção da ordem
mericano recentemente licenciado pela que “consumiram muitos recursos a nível
Universidade de Georgetown, “podemos local e nacional em detrimento de investi- ção dos programas federais que fornecem
dizer que cada vez mais os brancos utilizam mentos em bairros difíceis”, explica Vanita equipamento militar às forças da ordem
a sua influência e os seus privilégios para Gupta, presidente de uma das maiores as- locais; a criação de uma base de dados
participarem na luta”, prova de que as sociações de defesa de Direitos Humanos nacional recenseando os agentes policiais
coisas estão a progredir no país, reconhece. e Civis, que trabalhou na reorganização que tenham cometido abusos e o fim da
No entanto, “isto não parece um ponto de dos departamentos policiais de Cleveland, “imunidade qualificada”, que impede que
viragem, para mim é apenas uma forma Baltimore, Chicago e Ferguson quando era os polícias sejam responsabilizados por
de continuidade”. responsável pelo departamento de Direitos determinados crimes no cumprimento
Esta manifestação em Washington foi Civis no Ministério da Justiça. do seu dever.
uma das 400 manifestações organizadas Mas as manifestações não estão ape-
em todo o país, além de dezenas de outras Cansaço e raiva nas ligadas a objetivos políticos, defendem
no estrangeiro. Em Minneapolis, onde as A nível federal, os manifestantes e gru- os organizadores e os manifestantes. Elas
pessoas começaram a sair à rua a 26 de pos de defesa dos Direitos Civis apelam permitem que os negros norte-americanos
maio, depois da morte de George Floyd ao Congresso para adotar, entre outras expressem o seu sofrimento e a sua raiva.
pela polícia, os manifestantes reclamavam reformas, a interdição à escala nacional Quatrocentos anos após o início da escra-
o desmantelamento da polícia local. Em da técnica do estrangulamento; a elimina- vatura, mais de 50 anos após a aprovação
Louisville, no Kentucky, os manifestan- da Lei dos Direitos Civis e seis anos após a
tes exigiam a detenção e a acusação dos morte de Michael Brown, que foi baleado
agentes da polícia envolvidos na morte pela polícia em Ferguson, os negros norte-
de Breonna Taylor, uma mulher negra ... -americanos continuam a ter duas vezes e
de 26 anos morta a tiro em sua casa pela meia mais probabilidades de serem mortos
polícia durante uma rusga que correu mal. Os negros norte- pela polícia do que os brancos. Morrem
Em Filadélfia, os organizadores exigiram três vezes mais de Covid-19. E são mais
um aumento de 23 milhões de dólares no americanos continuam os negros que os brancos a perder os em-
orçamento da polícia para financiar es- a ter duas vezes e meia pregos na catástrofe económica provocada
colas públicas e programas sociais. Em pela pandemia. “A realidade pesada em
Washington, os ativistas pintaram as pa-
mais probabilidades que os negros têm de viver suscita muito
lavras “Deixemos de financiar a polícia” de serem mortos cansaço e raiva”, explica Ndgo, ativista de
numa parte da 16th Street, uma mensagem pela polícia do que os Filadélfia. “A raiva e a dor que estão a ser
dirigida ao presidente da câmara da cidade. expressas também têm uma finalidade.”
Este apelo aos cortes no financiamen-
brancos. E morrem três Por outras palavras, estas manifestações
to da polícia é um tema recorrente nas vezes mais da Covid-19 são também uma demonstração de força.

JULHO 2020 - N.º 293 23


CIDADES
OPERAÇÃO MUDANÇA
PERANTE O RISCO DE EPIDEMIA, OS URBANISTAS VÃO TER DE CONCEBER AJUSTAMENTOS QUE
PERMITAM AOS CIDADÃOS REINVENTAREM A SUA VIDA EM METRÓPOLES PARTICULARMENTE
EXPOSTAS AOS VÍRUS. COMO CONCILIAR A DENSIFICAÇÃO E A NECESSÁRIA DISTÂNCIA FÍSICA
ENTRE OS CIDADÃOS? TUDO TEM DE SER REPENSADO: DESDE OS MEIOS DE TRANSPORTE À
GENERALIZAÇÃO DO TELETRABALHO, DA FALTA DE VARANDAS A PASSEIOS MAIS LARGOS, DA
UTILIZAÇÃO (POLÉMICA) DOS DADOS ÀS NOVAS SOLIDARIEDADES – EIS UMA PANORÂMICA
DAS PROPOSTAS PARA TORNAR AS CIDADES MAIS AGRADÁVEIS E, AO MESMO TEMPO, MAIS
SEGURAS DO PONTO DE VISTA DA SAÚDE PÚBLICA
Ideias

BEM-VINDOS
AO LABORATÓRIO
URBANO
A História mostra-nos que as epidemias deixam marcas nas cidades.
A pandemia da Covid-19 não será muito diferente. Vigilância, distância social,
novas solidariedades – a mudança já começou

THE GUARDIAN LONDRES

P Para muitas pessoas, o Victoria


Embankment, que acompanha
crescente das cidades hiperglobalizadas
do mundo de hoje, raras foram as crises
Para Richard Sennett, de futuro, vol-
taremos às habitações unifamiliares e à
o Tamisa ao longo de dois qui- sanitárias que não deixaram marcas nas expansão urbana, o que permite que as
lómetros, é a própria essência de metrópoles. pessoas se encontrem sem se atropelarem
Londres. Nalguns dos primeiros postais Numa altura em que o mundo conti- em restaurantes, bares e clubes – embo-
enviados na Grã-Bretanha, vemos os seus nua a combater a propagação galopante ra, tendo em conta o preço astronómico
longos passeios e jardins aprazíveis. O Me- do coronavírus, confinando em casa mi- dos terrenos em grandes cidades, como
tropolitan Board of Works, responsável lhões de pessoas e subvertendo a forma Nova Iorque ou Hong Kong, o sucesso
pela supervisão da obra [1865-1870], como nos deslocamos nas cidades, como de um programa desta natureza tenha
apresentava-o, orgulhosamente, como as pensamos e como nelas trabalhamos, de assentar, também, na implementa-
“um trabalho de urbanismo inteligente fica a dúvida sobre quais as transformações ção de reformas económicas de grande
e refinado, como convém a uma cidade que perdurarão após o fim da pandemia e envergadura.
comercial próspera”. como será, então, a nossa vida.
A verdade, porém, é que este local, Uma das principais questões com Custo da distância
indissociável da imagem que fazemos da que os urbanistas terão de se confrontar Nos anos mais recentes, ainda que o êxodo
cidade, se deve a uma pandemia. Sem as prende-se com a contradição aparente rural tenha contribuído para o desenvol-
várias mortíferas epidemias de cólera que entre a densificação – a tendência para vimento das cidades nos países do Sul, a
assolaram o mundo no século XIX – uma a concentração, considerada indispen- norte as cidades seguem a tendência opos-
delas em Londres, no início da década de sável para se reduzir a pegada ecológica ta: os habitantes mais folgados do ponto de
1850, que causou mais de dez mil mortos das cidades – e a “desagregação espacial”, vista financeiro aproveitam as ferramentas
–, nunca se teria sentido a necessidade de isto é, o afastamento entre os habitantes, de trabalho à distância e instalam-se em
se criar uma rede de esgotos moderna. E a o que constitui uma das medidas atual- cidades de província ou no campo, onde
notável obra de engenharia de Joseph Ba- mente mais utilizadas para se impedir a o preço dos terrenos é mais acessível e há
zalgette [engenheiro britânico], concebida transmissão da doença. “Neste momento, mais qualidade de vida.
para desviar as águas residuais da cidade reduz-se, sempre que possível, a densidade A “descida do custo da distância”,
para jusante, longe das reservas de água por uma razão bastante válida”, observa nas palavras de Karen Harris, diretora
potável, nunca teria vindo à luz do dia. Richard Sennett, professor de Urbanis- do serviço Macro Trends do gabinete de
mo no Massachusetts Institute of Tech- consultoria Bain, deve acentuar-se devido
Marcas nas metrópoles nology (MIT) e conselheiro de referência ao coronavírus. Cada vez mais empresas
Desde a peste de Atenas, no ano 430 a.C., do programa das Nações Unidas para as recorrem a soluções que facilitam o tra-
que mudou profundamente as leis e a pró- cidades e as alterações climáticas. “Em balho a partir de casa, e os assalariados
pria identidade da cidade, até à “Peste termos gerais, a densidade é positiva: as começam a acostumar-se a esta realidade.
Negra” da Idade Média, que perturbou cidades densas consomem menos energia. “São hábitos que, provavelmente, vieram
o equilíbrio entre classes das sociedades Creio, todavia, que, a longo prazo, surgirá para ficar”, garante Karen Harris.
europeias, passando pela recente vaga de uma contradição entre as exigências em As repercussões nas grandes cida-
epidemias do ébola na África subsaria- termos de saúde pública e a preservação des são, potencialmente, colossais. Se,
na, que expôs claramente a interconexão do clima.” por exemplo, a proximidade do local de
trabalho deixar de ser determinante na
escolha da habitação, os subúrbios per-
AUTOR DATA TRADUTORA derão qualquer interesse. Talvez esteja-
F Jack Shenker 26.03.2020 Ana Caldas mos a avançar para um modelo em que os
centros das cidades e as “novas aldeias”

26 JULHO 2020 - N.º 293 ILUSTRAÇÃO DE GETTY IMAGES


remotas ganham importância, enquanto o aparecimento de focos de transmissão.
os tradicionais subúrbios definharão. Se o governo chegar à conclusão de que
Outro possível efeito do coronavírus ... “cidades inteligentes”, como a de Shen-
será uma multiplicação de infraestrutu- zhen, são mais seguras do ponto de vista
ras digitais nas nossas cidades. A Coreia Para Richard Sennett, da saúde pública, é quase certo de que
do Sul, um dos países mais afetados pela de futuro, voltaremos às assistiremos a uma banalização do ras-
doença, é ao mesmo tempo um dos que treamento e do registo dos nossos atos
têm a taxa de mortalidade mais baixa, re- habitações unifamiliares e gestos nas zonas urbanas – lado a lado
sultado atribuível, em parte, a uma série de e à expansão urbana, com acesos debates sobre o poder que uma
inovações tecnológicas, nomeadamente o vigilância deste tipo confere às empresas
rastreamento público (aliás, controverso)
o que permite que as e aos Estados.
das pessoas infetadas. pessoas se encontrem Na realidade, o risco de um autori-
Na China, as autoridades pediram a sem se atropelarem tarismo larvar através da normalização
empresas tecnológicas, como a Alibaba e e, mesmo, da perpetuação das medidas
a Tencent, para rastrear a propagação do em restaurantes, bares de emergência deve ser a nossa maior
vírus e utilizam os megadados para prever e clubes preocupação, adverte Richard Sennett.

JULHO 2020 - N.º 293 27


Cidades

“Se olharmos para o passado e se procu- jurídica e tecnológica (e vontade política)


rarmos as disposições tomadas para gerir para erguê-las.
as cidades em períodos de crise, desde a No passado, depois de crises sanitárias
Revolução Francesa até aos atentados do ... de grande amplitude, as comunidades de
11 de Setembro de 2001, nos Estados Uni- judeus e de outros grupos banidos pela
dos da América, perceberemos que grande Se a proximidade do sociedade, como os leprosos, foram alvo
parte delas levou anos, se não séculos, a da população maioritária. As referências
desaparecer”, continua. local de trabalho deixar de Donald Trump ao “vírus chinês” levam-
de ser determinante na -nos a pensar que também esta pandemia
Novas fronteiras escolha da habitação, poderá conduzir a uma sinistra estigma-
Num contexto de etnonacionalismo exa- tização como as referidas.
cerbado à escala mundial, que levou a di- os subúrbios perderão No terreno, porém, as reações ao coro-
reita populista ao poder, em países como interesse. Talvez navírus foram bastante diferentes de cida-
o Brasil ou os Estados Unidos da América, de para cidade, em todo o mundo. Depois
passando pela Índia e a Hungria, uma das
estejamos a avançar para de décadas de dispersão, em particular dos
consequências do coronavírus poderá ser um modelo em que os jovens urbanos empurrados para o noma-
o enraizamento dos discursos políticos centros das cidades e as dismo e precarizados pelo custo exorbi-
exclusivistas que apelam à criação de novas tante da habitação, a súbita proliferação de
fronteiras à volta das zonas urbanas – sob “novas aldeias” remotas grupos de entreajuda – visando organizar
a supervisão de dirigentes com capacidade ganharão importância a ajuda local em prol dos mais vulneráveis

28 JULHO 2020 - N.º 293


TENDÊNCIA
O fim das megalópoles
“Em tempos um grandioso ideal, a megalópole, enquanto modo de
vida, tem vindo a perder cada vez mais encanto”, escreve Joel Kotkin,
investigador em Urbanismo na Universidade Chapman de Orange,
Califórnia, na revista em linha australiana QUILLETTE. Segundo Kotkin,
a propagação da Covid-19 nas grandes cidades recorda-nos de que,
desde a Constantinopla assolada pela peste, na Antiguidade, até à
Los Angeles de hoje atingida pela febre tifoide, as cidades sempre
conheceram problemas de salubridade. Acresce que, numa altura
em que os preços do imobiliário e os “problemas sociais crescentes”
vêm tornando as megalópoles menos atrativas, aliás já de há alguns
anos a esta parte, a presente pandemia poderá desferir-lhes o
golpe fatal. “Nos Estados Unidos da América, desde 2010 que o
crescimento demográfico se regista, sobretudo, na periferia urbana
e em cidades de menor dimensão”, afirma o urbanista que observa
ainda que “o aumento da imigração de trabalhadores qualificados é,
atualmente, duas a três vezes superior em Salt Lake City, Pittsburgh
e Cincinnati do que nos arredores de Nova Iorque, Los Angeles ou
Washington”. Esta mudança deve-se, sobretudo, aos progressos
tecnológicos que permitem que as empresas se descentralizem e
que os assalariados trabalhem à distância. Na opinião de Joel Kotkin,
“é possível que, no futuro, as cidades não sejam definidas como
locais físicos” mas como redes virtuais interconectadas. Nesse caso,
as cidades tornar-se-ão “mais planas e menos densas. Em vez da
Cidade Radiante e superpopulosa de Corbusier, as cidades tenderão
para o conceito de Broadacre City, desenvolvido pelo arquiteto
norte-americano Frank Lloyd Wright – casas e jardins a perder de
vista, numa cidade mais dispersa.”
Esta dispersão, nas palavras do urbanista, tornaria “o imobiliário
muito mais acessível. Seria possível configurar espaços de vida mais
amplos com base no trabalho a partir de casa, regressando à ideia de
capitalismo centrado na família do início da era moderna. Podíamos
aproveitar esta crise para desenvolver um novo modelo económico
e social, mais humano e que associasse o aspeto cosmopolita a um
modo de vida melhor e mais seguro.”

durante o confinamento – aproximou os que desempenham tarefas de que todos um enquadramento mais rigoroso das
vizinhos, ultrapassando barreiras etárias dependemos. rendas?
e fraturas demográficas. Paradoxalmente, Considerar a sociedade como um Neste momento, é impossível ter cer-
a distância social aproximou mais do que coletivo, e não como um aglomerado tezas, mas as novas e inesperadas inter-
nunca alguns de nós. Não sabemos é se tais de indivíduos separados, poderá levar a conexões que nascem nas cidades, como
grupos de entreajuda se irão manter após opinião pública a exigir mais medidas in- resultado da pandemia, permitem-nos ter
o coronavírus e influir significativamente tervencionistas para proteger os cidadãos. algum otimismo. Segundo Karen Harris,
na cidade do futuro. Isso dependerá, em Os governos poderão ter dificuldade em “não devemos esquecer o fator humano
parte, das lições políticas que soubermos resistir a estes apelos, uma vez que a crise que, regra geral, é reconfortante”. Para
retirar desta crise. do coronavírus já os forçou a renunciar Richard Sennett, não é de todo impossí-
ao primado do mercado. vel que estejamos a assistir a uma grande
Desejo de novos contactos Os hospitais privados são pressiona- mudança nas relações sociais urbanas: “Os
Torna-se evidente a vulnerabilidade de dos a oferecerem as camas a quem delas habitantes das cidades descobrem em si
muitos cidadãos – não só devido à cri- precisa, sem custos adicionais. Em Los ideais de que até aqui não tinham cons-
se de saúde pública mas também à sua Angeles, pessoas sem-abrigo ocuparam ciência, o desejo de mais contactos huma-
vivência quotidiana na cidade –, como habitações vazias, o que teve o apoio de nos, de estabelecer ligações com pessoas
é o caso das pessoas idosas carenciadas alguns deputados. Esta tendência vai pa- diferentes.” Resta saber se esta evolução
ou dos trabalhadores precários ou inde- rar quando passar a crise? Ou continuará da vida nas cidades durará tanto como o
pendentes, os quais não dispõem de uma o interesse da coletividade a sobrepor-se sistema de esgotos de Joseph Bazalgette
almofada financeira para ampará-los, mas ao das empresas – por exemplo, mediante sob o Victoria Embankment.

JULHO 2020 - N.º 293 29


Cidades

C r i At i v i da d e

Tornar as cidades
habitáveis
O coronavírus atinge mais a cidade do que o campo. Transforma em
desvantagens o que era a atração e o sucesso das aglomerações.
Poderemos impor uma distância social sem matar a vida citadina?

SÜDDEUTSCHE ZEITUNG MUNIQUE

A Antes da chegada do corona-


vírus, quando falávamos das
número de pessoas, bens e serviços, se
possível 24 horas por dia.
vantagens da vida na cidade, Esta é a receita do seu sucesso, e é
referíamo-nos à densidade e à assim desde que existe. Há mais de cinco
proximidade. O conceito abrangia tudo mil anos, Uruk, a primeira megalópole do
o que era, até hoje, atração citadina: os mundo, no Sul da Mesopotâmia, onde 25
encontros e o intercâmbio que as cidades mil pessoas viviam num espaço restrito,
permitem, o peso económico que se con- funcionava segundo o mesmo princípio da
centra nelas, a oferta de lazer – cinemas, Nova Iorque de hoje – porque as cidades
teatros, museus, jardins zoológicos, etc. sempre foram, antes de tudo, centros de
As empresas aproveitavam esse dinamis- negócio. Todas as megacidades de hoje
mo e alimentavam-no, por sua vez. O foram, no início, placas giratórias de
mundo estava a urbanizar-se a um ritmo intercâmbio económico. A maioria foi
nunca antes visto na História, cada um construída em torno de um porto, sempre
vendo nisso uma promessa de sucesso. com a promessa de se otimizar os negó-
A promessa da cidade era a aproximação cios. Tal não escapou à atenção do poder
das pessoas e as possibilidades que daí político, que se posicionou com destaque
decorriam. no coração de cada metrópole. A vida
Isso acabou. A proximidade dos ou- pública era o coração pulsante da cidade.
tros tornou-se perigosa; para alguns, é Muito se tem escrito [durante as
mesmo mortal. primeiras semanas da epidemia] sobre ocasião – muito antes do coronavírus, já
Se para o coronavírus não há diferença a impressão irreal que emana das cida- os fotógrafos de arquitetura apagavam os
entre cidade e campo, ele, em contrapar- des desertas. O New York Times mostrou transeuntes das suas fotos para revelarem
tida, atinge as cidades com muito mais essas cidades vazias dos seus habitantes, os edifícios em toda a sua pureza –, é sinal
dureza. E isto não tem que ver apenas com numa reportagem fotográfica, de Lon- do seu declínio, porque esse vácuo destrói
o tamanho das metrópoles, que aumenta dres a Nova Iorque, passando por São o que fazia girar as cidades até então, em
o risco de contaminação e faz das cidades Paulo, Deli, Banguecoque e Munique, primeiro lugar a sua economia.
os epicentros da pandemia. Tem que ver, escrevendo: “Estas imagens emanam o O pequeno comércio e a restauração
sobretudo, com o que faz a cidade, com a romantismo das ruínas.” Pode parecer vivem dos transeuntes, mas isso parece
sua essência. A cidade é projetada para a exagerado, mas na verdade esse vazio ir- estar a anos-luz de distância. A atual ar-
interconexão, para a circulação do maior real, por mais belo que possa parecer na quiteta consultora da câmara de Munique,
Elisabeth Merk, apelidou de “rés do chão
da morte” as pequenas lojas que têm porta
AUTORA DATA TRADUTORA aberta, porque é preciso muito movimen-
F Laura Weißmüller 14.05.2020 Aida Macedo to para que um café, uma livraria e uma
loja de moda infantil possam singrar. Face

30 JULHO 2020 - N.º 293 FOTO: GETTY IMAGES


ao preço crescente das rendas nas cidades, do Santa Fe Institute [no Novo México,
tentar manter-se à tona financeiramente Estados Unidos da América], comparou
... já era um exercício de acrobacia, mesmo esta faculdade das cidades aos processos
antes da chegada do vírus. Hoje, muitos em funcionamento no universo: “Uma
Há cinco mil anos, Uruk, não sabem se serão capazes de reabrir cidade funciona como uma estrela. A sua
a primeira megalópole do portas após o confinamento, apesar de maneira de atrair pessoas, de acelerar a
todas as promessas de ajuda financeira. interação social e a criação, é compará-
mundo, na Mesopotâmia, A inovação também está a marcar pas- vel à maneira como as estrelas atraem as
onde 25 mil pessoas viviam so. De facto, é nos lugares onde se cruzam massas e ardem com um brilho cada vez
muitas pessoas, onde diferentes camadas maior à medida que crescem.”
num espaço restrito, sociais se entrecruzam, conversam entre Essa energia também é encontrada
funcionava segundo si e estabelecem contactos que nascem nas artes. Claro que sempre houve pin-
o mesmo princípio as invenções. Se a cidade torna as pes- tores, músicos, arquitetos ou escritores
soas criativas, é principalmente porque que fugiram para o campo em busca de
da Nova Iorque de hoje: lhes oferece a proximidade geográfica criatividade, mas, em geral, a cultura é o
centro de negócios necessária. Luís Bettencourt, urbanista negócio das cidades: não apenas porque

JULHO 2020 - N.º 293 31


Cidades

encontra aí um palco mas também pela Manifestantes perante os polícias,


inspiração que as metrópoles trazem aos em Nova Iorque – uma imagem
artistas. Além disso, as cidades ainda nos repetida em muitas cidades dos EUA
ensinam a apoiar o outro. Numa defesa FOTO DE GETTY IMAGES
da cidade aberta, o sociólogo norte-a-
mericano Richard Sennett escreve que as
crianças que crescem na cidade têm maior viver do que os habitantes do campo.
probabilidade de se tornarem democratas. O que nas cidades se considera um luxo
Porquê? “Porque elas fazem a experiência incrível – ter casa própria e jardim – é a
física do outro”, disse ele numa entrevis- norma no campo.
ta. Porque, desde o jardim de infância, A ocupação favorita de muitos mora-
elas se cruzam com diferentes crenças dores da cidade, neste momento – fazer
e nacionalidades. Porque, no recreio, limpezas e arrumações – também se deve
têm de aprender a partilhar o baloiço e ao facto de terem pouco espaço e sobre-
o escorrega, e é aí que descobrem que tudo nenhum a perder. Viver apertado,
existem outras culturas e outras origens que para dizer a verdade seria ecologica-
sociais que não as suas.” mente recomendado pois consome me-
O termo “social” abrange “a capa- nos espaço, tornou-se agora sinónimo de
cidade de viver no mesmo lugar em que perigo. Apartamentos pequenos parecem
vivem pessoas totalmente diferentes de prisões ao fim de pouco tempo, quando
ti”, continua Richard Sennett. Antes do se está de quarentena em casa e não se
coronavírus, uma pequena caminhada tem autorização para se sair.
numa cidade digna desse nome ilustrava Em período de epidemia, a densidade
isso, quer fosse no bairro de Glockenbach, da população sempre foi o ponto negro da
em Munique, ou no Friedrichshain, em cidade. As ruas estreitas, a promiscuidade
Berlim, ou em Brooklyn, em Nova Iorque. e os problemas de saneamento fizeram das
Desde o que se refere à roupa que se traz cidades, na Idade Média, epicentros de
vestida, à orientação sexual ou à atividade doenças e de epidemias. Com a industriali-
profissional, há muitas vezes um mundo zação e o afluxo crescente de trabalhadores
entre duas pessoas que se cruzam e que para as áreas metropolitanas, o problema
partilham o mesmo código postal. agravou-se. Os centros das cidades, com
Numa altura em que o espaço público as suas vielas tortuosas, horrorizaram os
[se transformou] numa zona proibida e urbanistas modernos que prometeram aos
quando fitas de sinalização [foram es- habitantes uma vida melhor, porque seria
ticadas] em torno dos antigos locais de mais higiénica. E as medidas que propu-
encontro, descobrimos a desvantagem de seram para o fazer foram radicais.
viver num espaço limitado. Pois a cidade Em Paris, por exemplo, no final do
só é habitável – sem demasiado stresse – se século XIX, Georges Haussmann arrasou
houver espaços de liberdade em número ruas inteiras e um total de 40 mil habita-
suficiente: quando a área de lazer pode ções para transformar uma cidade imunda
substituir a sala de jogos; o parque, o jar- e atormentada pela cólera numa capital
dim privativo, e o restaurante, a mesa da moderna. Na década de 1920, os arquitetos
sala de jantar para receber os amigos. Os da Nova Frankfurt celebraram o ar e a luz
habitantes das cidades têm, em média, que substituíram as ruas confinadas da
muito menos metros quadrados para cidade velha e propuseram a expansão de
novos centros habitacionais no campo.
... Muitos dos projetos da época, destinados
ao saneamento da cidade, desapareceram
A cidade só é habitável das gavetas durante a Segunda Guerra
Mundial, sendo, de seguida, concreti-
– sem demasiado stresse zados com grande rapidez, em torno do
– se houver espaços de automóvel.
liberdade em número Epidemiologicamente falando, pode
talvez parecer a cidade ideal. Não há
suficiente: quando a área promiscuidade no espaço público, e há
de lazer pode substituir ruas onde todos se podem deslocar a boa
distância uns dos outros, nos seus car-
a sala de jogos; o parque, ros. Só que agora não é ecológico, nem
o jardim privativo, e o social nem económico. Chegou, portanto,
restaurante, a mesa da sala o momento de os arquitetos entrarem
em cena: trata-se de remover o medo
de jantar para receber da promiscuidade sem se destruir no-
os amigos vamente a cidade.

32 JULHO 2020 - N.º 293


D e n s i da d e
O culpado ideal
Os grandes centros urbanos são mais afetados pela pandemia, mas também
permitem uma resposta eficaz em tempos de crise. Mais do que a densidade
da população, é o poder local que frequentemente falha e que terá de ser
repensado, após o fim da pandemia.
As cidades são por definição “a falta de espaço material entre as pessoas”,
como as descreve o economista de Harvard, Edward Glaeser. “O seu sucesso
depende dessa proximidade física que agora é perigosa para a nossa saúde”,
acrescenta THE CITY JOURNAL. Mas, segundo este jornal trimestral de Nova
Iorque, dedicado ao planeamento urbano, “a densidade populacional não será
um fator determinante na vulnerabilidade de uma cidade face à Covid-19.
A propagação de epidemias depende dos problemas sanitários já existentes,
da sua organização social e da qualidade da gestão municipal”.
“Do ponto de vista prático, a densidade facilita muitas coisas úteis em caso
de dificuldades”, sublinha o NEW YORK TIMES (NYT), na sua coluna The Upshot.
“A densidade permite transportar muitas pessoas ao mesmo tempo. Possibilita
habitação mais barata. Cria espaços onde as pessoas se podem deslocar a pé
e onde as crianças podem brincar. Ajuda a agrupar os riscos. A cidade é uma
força para os grandes hospitais públicos e, graças a ela, os nossos sistemas
de segurança são mais fortes. Permite limitar as emissões poluentes.”
Enquanto o CITY JOURNAL observa que “a velocidade de contaminação nas áreas
rurais é da mesma ordem que nas cidades mais densas”, o NYT lembra que
“as áreas com uma população tão ou mais densa do que Nova Iorque, como
Singapura [que finalmente impôs o confinamento a 7 de abril], Hong Kong
e alguns bairros de Taiwan, limitaram-se a uma política de despistagem precoce
e a uma vigilância eletrónica” dos contaminados.
Perante o forte aumento das populações urbanas – 6,7 mil milhões de pessoas
em 2050, face a 4,2 mil milhões em 2019, segundo a ONU –, “a luta contra as
epidemias exige uma boa gestão municipal, juntamente com uma organização
social sólida que proteja os mais vulneráveis ”, afirma o CITY JOURNAL.
“A densidade é mais mortal nos Estados Unidos da América devido às
falhas da administração local [...]. A América urbana não conseguiu proteger
as populações mais vulneráveis a tempo [...]; as únicas medidas possíveis
foram os confinamentos draconianos que pioraram a situação orçamental
de muitas cidades. O número muito elevado de mortes nos EUA devido
a esta pandemia é consequência da reação demasiado lenta das autoridades
locais eleitas e das suas políticas”.
Para pensar o futuro, argumenta o NYT, será necessário conciliar “as vantagens
da densidade para uma sociedade saudável com os seus inconvenientes no caso
de uma pandemia. Se perdermos de vista os seus benefícios – incluindo os atuais
–, passando apenas a ver os seus perigos, o que acontecerá?”

Singapura
Um cão-robô-patrulha
Vai ser “uma espécie de embaixador da distância de segurança”, no contexto
da epidemia da Covid-19, explica o THE STRAITS TIMES: desde o dia 8 de maio,
o cão-robô Spot “patrulha” o parque de Bishan-Ang Mo Kio, em Singapura,
“recordando às pessoas as medidas de distância social”.
Num vídeo disponibilizado online pelo jornal, vemos a maquineta amarela
a avançar nas suas quatro patas, num movimento mecânico. Depois, difunde
uma mensagem gravada numa voz feminina que exorta os visitantes
a manterem distância entre si, “para sua segurança e das pessoas à volta”.
O robô foi desenvolvido no âmbito de um “projeto-piloto”. Está “equipado com
câmaras” que visam “ajudar” as autoridades da cidade-estado “a calcularem
o número de visitantes dos parques”. E não recolhe dados pessoais. “Como
o robô é controlado à distância”, continua o THE STRAITS TIMES, a vigilância do
parque “exige menos pessoal, o que contribui para reduzir os contactos físicos
entre os empregados do parque e os passeantes. Assim, o risco de exposição
ao coronavírus é diminuto”.

JULHO 2020 - N.º 293 33


Cidades

Abu Dhabi

A metrópole
do amanhã?
Mais descentralizadas e mais flexíveis, mas também menos igualitárias?
Ao serem questionados sobre o legado que a Covid-19 podia deixar
nas áreas metropolitanas, os urbanistas chegaram à conclusão
que as megacidades dos Emirados Árabes Unidos já viviam no futuro.
Nesses espaços, a crise sanitária terá mesmo reforçado
o sentimento de pertença

THE NATIONAL ABU DHABI

N Nas últimas semanas, todos


explorámos as nossas casas até
sas em residências familiares: essas são
algumas das mudanças que, segundo os
ao último pormenor. Quando co- especialistas, poderiam ser promovidas
meçamos finalmente a ver o fundo nos próximos anos.
do túnel e o mundo tenta recuperar da “Atualmente, a dificuldade é não
pandemia, surge a pergunta: como serão, pensar a resiliência urbana apenas em
a partir de agora, as nossas comunidades? termos de risco epidémico, porque isso
Embora as nossas estruturas continuem levar-nos-ia a falsas soluções”, explica
de pé, depois desta crise global e do trau- Huda Shaka, diretora associada do grupo
ma do isolamento e das consequências britânico Arup e membro do conselho de
económicas da epidemia, será sempre administração do Emirates Green Building
possível reconstruir o mundo. Council. “A ameaça pode ser de ordem
A história das epidemias – desde a económica ou climática, de qualquer
peste que assolou Atenas, na Grécia An- espécie de coisas.”
tiga, até à gripe espanhola, depois da I
Guerra Mundial – mostra-nos que essas Megacidades continuam Na cidade dos Emirados Árabes Unidos,
crises provocaram sempre perturbação Isso não significa, de forma alguma, a 80% da população é imigrante
social. Estiveram na origem de um ree- morte das metrópoles. Mesmo que, a FOTO DE GETTY IMAGES
quilíbrio entre classes sociais e permi- curto prazo, os especialistas esperem
tiram o surgimento de políticas públicas um ligeiro êxodo para o campo ou uma
de saúde, a criação de habitações mais maior preferência por casas particula-
saudáveis e baratas, bem como de novos res, o fenómeno da urbanização deverá aos governos e aos sistemas de saúde.”
parques ou espaços públicos. continuar em todo o mundo. Segundo Shaka constatou que na sua terra na-
Qual será o legado da Covid-19? Para as Nações Unidas, cerca de 2,5 mil mi- tal, a Jordânia, as redes comunitárias não
os urbanistas, este não é o momento de lhões de pessoas poderão somar-se às conseguiram enfrentar o desafio da crise
pensar no que vai acontecer, mas no que populações das megacidades asiáticas e alimentar e fornecer água e alimentos aos
gostaríamos de que acontecesse. africanas até 2050. mais vulneráveis. Não é o Exército que
Varandas maiores, ruas projetadas Para tirarem proveito deste período de deve ser enviado para as comunidades,
para deixar mais espaço aos peões e aos incerteza, os grandes centros económicos entregando-lhes cestos alimentares,
ciclistas, mais cooperação no seio das co- terão de permanecer flexíveis. “É preciso como foi feito na Jordânia, diz ela. O
munidades, a transformação das empre- dar mais flexibilidade às comunidades, governo deveria poder contar com re-
des locais, “totalmente coordenadas e
funcionais”, para saber “onde estavam
AUTORA DATA TRADUTORA os mais vulneráveis, como entrar em
F Kelsey Warner 14.05.2020 Aida Macedo contacto com eles, do que precisavam
como ajuda”.

34 JULHO 2020 - N.º 293 FOTO: GETTY IMAGES


Esta pandemia pode levar ao surgi- pas das cidades, de modo a se garantir
mento de redes melhores, o que Shaka mais espaço para os peões e os ciclistas
chama “infraestruturas leves”. Jens Aerts, e a se propor uma visão mais completa
um urbanista de Nova Iorque e colabo- dos arredores. Depois dessa experiência ...
rador da UNICEF e do Departamento de de distanciamento social, é possível que
Urbanismo de Bruxelas, está de acordo. as pessoas desejem “varandas e espaços Varandas maiores,
Encontra-se muito interessado na ideia de coletivos mais amplos”, diz Aerts. ruas projetadas para
“saúde urbana”, seja esta uma maneira de
preparação para uma epidemia, seja uma Atenção às desigualdades
deixar mais espaço aos
adaptação ao influxo de equipamentos Para Bill Fulton, diretor do Kinder Insti- peões e aos ciclistas,
digitais que provavelmente tornará as tute for Urban Research da Universidade mais cooperação no
cidades menos ávidas de energia. Rice e ex-presidente da Câmara de Ventu-
“Não podemos voltar à situação ‘nor- ra, na Califórnia, a epidemia da Covid-19 seio das comunidades,
mal’ de antes”, diz ele. Acredita que não só irá acelerar as já emergentes dinâmi- a transformação das
é possível reorganizar os transportes pú- cas na forma como se trabalha e como se
blicos das cidades, de forma a garantir chega ao local de trabalho. Mas também
empresas em residências
a distância física estipulada pela Orga- poderá agravar as desigualdades sociais familiares – eis algumas
nização Mundial da Saúde (OMS) que e económicas. Agora que aprendemos a mudanças que poderiam
recomenda a manutenção de um metro ser produtivos a partir de casa, a prática
e meio de espaçamento entre as pessoas. do teletrabalho e a procura de espaços de ser promovidas nos
Aconselha que se volte a desenhar os ma- coworking vão eclodir. Anteriormente, próximos anos

JULHO 2020 - N.º 293 35


Cidades

abrigos para os millennials dotados, os Em Abu Dhabi, há uma grande


espaços de coworking vão deslocar-se aposta na cultura (com a abertura
do centro para os arredores, acolhendo de uma extensão do Museu do Louvre)
um público mais velho de trabalhadores e na preservação das tradições
com crianças, diz Fulton. FOTO DE GETTY IMAGES
“Mas as pessoas que não podem tra-
balhar em casa [...] têm de deslocar-se
para o seu local de trabalho específico e dades de Bombaim tenham de ser sub-
geralmente essas são as que têm salários metidas à aprovação de Deli, assim como
mais baixos.” é uma tolice subjugar as necessidades da
O suficiente para criar um fosso pe- cidade de Nova Iorque à autoridade de
rigoso entre os bairros mais ricos, onde Washington”, diz Abraham. “Se Nova
os funcionários em teletrabalho podem Iorque tivesse podido organizar a pró-
tirar proveito de uma oferta abundante pria resposta à epidemia, a sua reação
de restaurantes, ginásios e outros salões teria sido muito mais rápida e eficaz.
dedicados à estética, e os “bairros menos Ainda não sabemos como a epidemia da
abastados, onde moram as categorias de Covid-19 mudará a maneira como nos
trabalhadores que não podem ficar em movemos ou trabalhamos, mas do que
casa”. “Já vimos esse movimento no pas- nos apercebemos claramente é que as
sado, e é bem possível que a tendência autoridades locais são preciosas nessas
se acentue”, admite Fulton. circunstâncias.”
“A vida na cidade poderá, em breve,
ser assim: mais lojas antigas convertidas Sentimento de pertença
em residências familiares, mais bares e No fim de contas, como será a cidade do
restaurantes, mais cafés e serviços de futuro? Essa cidade administrada de for-
cuidados pessoais (cabeleireiros, mani- ma independente, onde as vantagens da
cures, ginásios, centros de ioga), e um vida urbana se misturam com as de uma
controlo muito maior no estacionamento rede social solidária nos subúrbios; uma
selvagem, para se facilitar o acesso a um cidade onde parques e praias públicos
número crescente de camiões de entrega.” foram planeados perto de casas baratas e
Para alguns, no entanto, essa visão acessíveis, graças a aplicações de partilha
de futuro parece distante – ou mesmo de bicicletas, e onde o teletrabalho e o
completamente errada. “Ainda estamos comércio eletrónico estarão em pleno
a apagar o incêndio”, explica Reuben crescimento.
Abraham, diretor-executivo do IDFC Honestamente, isso assemelha-se um
Institute, um grupo de urbanistas de pouco a algumas áreas do Dubai ou de Abu
Bombaim que aconselha o governo in- Dhabi, à exceção de que, com uma popu-
diano na gestão da epidemia. lação por natureza flutuante, os Emirados
Com 1,3 mil milhões de pessoas nas Árabes Unidos (EAU) – onde quase 80%
suas residências obrigatoriamente, a Índia dos habitantes vêm da imigração – so-
organizou a maior operação de confina- frem, por vezes, de um sentimento muito
mento do mundo. ténue de pertença, explica Shaka. E isso
“Espero sinceramente que tudo isso influencia as redes sociais informais e es-
leve a uma descentralização do gover- senciais que permitem que as comunidades
no. Algumas cidades, nomeadamente as prosperem, especialmente em tempos de
megacidades, são maiores do que certos crise. A nossa resposta coletiva à Covid-19
países. É insensato supor que as necessi- pode mudar tudo isto. “A grande maioria
dos meus compatriotas optou por ficar
nos EAU, durante a pandemia”, disse o
... embaixador norte-americano nos Emi-
rados Árabes Unidos.
A vida na cidade poderá, O aparecimento de iniciativas nacio-
em breve, ser assim: mais nais nos setores dos serviços voluntários
e comunitários, bem como a instauração
lojas antigas convertidas de mínimos garantidos no fornecimento
em residências familiares, de alimentos e de condições sanitárias
para cada residente, durante a pandemia,
mais bares e restaurantes, ajudarão a reforçar esse sentimento de
mais cafés e serviços de pertença, conclui Shaka. “É muito fácil
cuidados pessoais, e um notar apenas mudanças muito tangíveis”,
diz ela. Ou talvez algo mais fundamental e
controlo muito maior no essencial esteja a acontecer nos Emirados
estacionamento selvagem Árabes Unidos.

36 JULHO 2020 - N.º 293


Conceito-chave
RESILIÊNCIA
URBANA
Furacões, inundações, atentados,
epidemias: o consultor Michael
Berkowitz é especialista em catástrofes
e “guru” a quem as cidades podem
recorrer em caso de sinistro, escreve
o site CITYLAB. A sua missão consiste
em desenvolver e reforçar aquilo que
ele chama “resiliência urbana” e que
define como “aptidão ou capacidade
que determinada cidade demonstra
em sobreviver e em se reerguer após
um desastre, seja de que natureza for”.
Para isso, são necessárias diversas
competências: boas infraestruturas que
favoreçam a mobilidade, comunidades
robustas, onde os vizinhos zelem uns
pelos outros, um tecido económico
variado e um sólido sistema de
governação. “Para se construir a
resiliência, impõe-se relacionar
objetivos diferentes”, explica Michael
Berkowitz. Por exemplo, quando se
pretende melhorar a governação de
uma cidade, “de que modo se estimula
a confiança dos cidadãos, de forma a
garantir que, em caso de crise, estes
escutam e seguem os conselhos das
autoridades eleitas?”.

JULHO 2020 - N.º 293 37


Cidades

China

Utilizar os dados
para se viver
com o vírus
Desde o início da epidemia, a informatização de serviços públicos
e privados tem vindo a crescer. A tendência das cidades inteligentes terá
de manter-se, se quisermos proteger-nos de forma sustentada

JINGJI GUANCHA BAO PEQUIM

A A luta contra a epidemia já


passou por várias modalida-
te integrante da comunicação urbana; é o
grande slogan das empresas que operam
des: primeiro, o ataque em força; na internet e surge em toda a parte, desde
depois, a guerra de trincheiras. E relatórios governamentais a campanhas
se, a partir de agora, a evolução for no de promoção de capital de risco.
sentido de uma guerra de desgaste, o que Mais de 500 grandes aglomerações
devemos nós, cidadãos, fazer? da China afirmam estar prontas para
Esta crise de saúde pública à escala tornarem as respetivas cidades “inteli-
mundial continua a propagar-se. A fim de gentes”. No entanto – e isto é desastroso
combater o avanço da doença, a Humani- –, há ainda muito trabalho pela frente
dade, confrontada com uma prova de tão no sentido de concretizar tal propósito.
grande dimensão, encontra-se em estado Ficamos com a impressão de que estamos
de alerta. Hoje, quando as pessoas reco- perante belos discursos a que cidadãos
meçam a trabalhar e se relança a atividade comuns são perfeitamente alheios.
económica, os certificados de saúde sob a
forma de códigos QR [verificados à entra-
da de comboios e de autocarros de longo
...
curso e de inúmeros edifícios de serviços
públicos] e os serviços desmaterializados
O recurso a ferramentas
já são amplamente utilizados no controlo informáticas constitui
e na prevenção da epidemia. Talvez se a única solução para
possa fazer um balanço provisório. Os
megadados (big data), a computação em se evitar incidentes
nuvem (cloud computing), a Inteligência e melhorar a eficácia
Artificial, deviam tornar as nossas cidades
mais “inteligentes” e “facilitar” a nossa
das medidas, perante a
vida. Mas, afinal, num quotidiano cada necessidade de conciliação
vez mais digital, de que modo estamos a do regresso ao trabalho
aproveitar estas oportunidades?
A expressão “cidade inteligente” está com a prevenção
omnipresente há já algum tempo. Faz par- da epidemia

AUTORA DATA TRADUTORA


F Song Fuli 03.04.2020 Ana Caldas

38 JULHO 2020 - N.º 293 FOTO: GETTY IMAGES


Desta vez, porém, a situação é um ...
pouco diferente. Passámos por uma prova
de fôlego fora do comum, durante a qual A construção de uma
vários métodos e conceitos de “cidade “cidade inteligente” não
inteligente” foram concretizados.
Após o início da epidemia [cuja exis- se resume à aplicação de
tência oficial remonta a 21 de janeiro], ferramentas informáticas;
a maioria das metrópoles, à exceção de
Wuhan, manteve o funcionamento nor-
passa, sobretudo, pela
mal. As plataformas que propõem serviços evolução das mentalidades
de apoio à vida quotidiana ou que permi- e por uma partilha
tem a rápida transmissão de informações
cresceram exponencialmente, uma vez
espontânea dos dados com
que as famílias, confinadas, as utiliza- o objetivo de elevar o nível
ram para darem resposta a uma série de de gestão dos serviços
necessidades do dia a dia.
públicos
Digital omnipresente
A obrigação de se evitar o contacto criou
uma forte procura de formas de se receber vida do cidadão comum essa noção de
notícias e de se manter as relações. Ape- “cidade inteligente”. Todavia, as maiores
nas graças ao comércio e ao pagamento dificuldades não eram de ordem tecno-
eletrónicos, bem como à generalização lógica mas administrativa.
da internet, conseguimos adaptar-nos a Na verdade, antes de tornar uma ci-
esta nova existência, marcada pela im- dade inteligente é necessário derrubar
portância crescente do digital em tempo as barreiras informáticas que separam
de coronavírus. Até os mais velhos, pou- os diversos serviços governamentais e
co habituados ao comércio eletrónico, eliminar nichos informáticos isolados.
aprenderam a fazer compras online. Só assim as “andorinhas” dos megada-
No entanto, no início da epidemia, dos não se limitarão a ficar no átrio das
vivemos um período de teste. Por exem- famílias influentes e conseguirão entrar
plo, as tecnologias ainda não estavam em casa de cidadãos comuns [alusão a
afinadas para identificarem as pessoas um conhecido poema da dinastia Tang],
que tinham tido contacto próximo com contribuindo para resolver os problemas
um caso positivo de Covid-19. Também de governação da sociedade. Cada vez
a distribuição dos bens doados aos ha- mais cidades distribuem vales informá-
bitantes de Wuhan não funcionou bem ticos para relançar o consumo – eis um
na fase inicial. Mas aprendemos com os exemplo típico da aplicação do conceito
erros e, graças às ferramentas informáti- de “cidade inteligente”.
cas, conseguimos proceder à distribuição Conseguir recolher e analisar os da-
com rapidez e evitar os erros cometidos dos provenientes de diversos canais, de
inicialmente, nomeadamente na dispensa modo a tomar a decisão mais acertada
de material médico. com base em raciocínios objetivos, é a
A responsabilidade do controlo da vocação primordial do “City Brain”.
epidemia exerce um peso enorme sobre A construção de uma “cidade inteligen-
as autoridades locais. O recurso a fer- te”, porém, não se resume à aplicação de
ramentas informáticas constitui a única ferramentas informáticas; passa, sobre-
solução para se evitar incidentes e me- tudo, pela evolução das mentalidades e
lhorar a eficácia das medidas, perante a por uma partilha espontânea dos dados
necessidade de conciliação do regresso com o objetivo de elevar o nível de ges-
ao trabalho com a prevenção da epide- tão dos serviços públicos e de reforçar a
mia. Inicialmente pouco à vontade com capacidade da cidade para reagir numa
essas ferramentas e sem plena consciên- situação de emergência.
cia das suas possibilidades, passámos a “Fazer as informações circularem mais
usá-las de bom grado e com espírito de para poupar as deslocações do público”
cooperação. Todo o nosso funcionamen- é uma fórmula repetida que faz todo o
to social e económico tende a tornar-se sentido neste período de epidemia.
mais “inteligente”. A epidemia acabou A fórmula responde, simultaneamen-
por ser uma preciosa oportunidade que te, à pergunta inicialmente apresentada:
nós, felizmente, não desperdiçámos. já que vamos ter de conviver com o vírus,
Há muito que os profissionais da área durante uma longa batalha, não temos
tentavam, através de PowerPoints e de escolha a não ser tornar as nossas cidades
simulações 3D fabulosos, introduzir na “inteligentes”.

JULHO 2020 - N.º 293 39


Cidades

Pessimismo

O fim dos serviços
públicos?
Desinteresse pelos transportes públicos e investimentos coletivos
tornados inacessíveis ao público: a “nova normalidade” pós-pandemia
será caracterizada por uma explosão de egoísmo e de desigualdade

DZIENNIK GAZETA PRAWNA VARSÓVIA

É É natural que em tempos de


crise as pessoas se voltem para
num táxi ou de bicicleta (o uso de bicicletas
partilhadas foi proibido pelo Governo).
Segundo, na educação à distância, a in-
fluência dos pais e do seu próprio nível
o Estado. No entanto, suponho Obviamente, com o degelo da econo- de formação aumenta.
que, uma vez ultrapassado o pico da mia e da vida social, os transportes públi- Não se pode excluir que, como resulta-
epidemia, a tendência será exatamente o cos vão regressar gradualmente a um ritmo do da pandemia, o papel do ensino público
oposto e levará à privatização de novos normal. No entanto, quantas pessoas que diminua, apesar de este ser o melhor ins-
setores da economia, aprofundando a in- possuem carro o irão deixar na garagem? trumento de igualdade de oportunidades
dividualização das condições de vida. A É difícil incentivar os polacos a usarem os que conhecemos. Tal levaria a um alastra-
nova normalidade não lembrará em nada transportes públicos, já que preferem o mento das desigualdades económicas. Se
o socialismo, mas uma distopia na qual automóvel mesmo que tenham de passar a crise sanitária se prolongar vários anos,
a solidariedade dará lugar ao domínio do horas no trânsito. A isso acrescenta-se o a classe média [na Polónia, o termo real-
interesse pessoal. medo de ser contaminado pelo corona- mente designa a classe abastada, que tem
Um dos primeiros serviços públicos vírus, que deverá manter-se num nível acesso aos hábitos de consumo das classes
a sentirem o efeito destrutivo do fecha- mais ou menos pertinente até ao próximo médias dos países mais desenvolvidos] co-
mento da economia foram os transportes ano. Portanto, suponho que a utilização meçará a pressionar para reduzir os gastos
públicos. Já antes da crise estes forneciam dos transportes públicos diminua e que consagrados ao ensino público, porque ela
um mau serviço, pois, segundo o Observa- os municípios reajam a isso como costu- mesma cumprirá essa função. Os filhos
tório de Políticas Urbanas IRMiR, mais de mam fazer – reduzindo os serviços, o que
metade dos habitantes das dezasseis áreas desencorajará ainda mais os passageiros.
metropolitanas polacas não têm acesso a Para o grande deleite de muitos par-
qualquer paragem de transporte público tidários da educação em casa, o trabalho
dentro de um raio aceitável. à distância também afeta as escolas: fi- ...
Devido ao fechamento da economia e nalmente, as crianças podem estudar sob
às limitações impostas na utilização dos o olhar vigilante dos pais que, como se Se a crise sanitária se
transportes, as cidades adotaram os ho- costuma repetir na Polónia, sabem o que
rários de férias para reduzir as perdas. Em é melhor para os seus queridos meninos.
prolongar, a classe média
Cracóvia, onde a receita semanal de vendas O reverso da medalha, no entanto, será começará a pressionar
de bilhetes passou de 8 milhões de zlotys o aumento extremo da desigualdade de para reduzir os gastos no
para 600 mil [cerca de 130 mil euros], os oportunidades. Primeiro, as diferenças de
autocarros e os elétricos praticamente só material importante, mesmo que apenas ensino público, porque
circulam nas horas de ponta. Se alguém de equipamento informático, fazem com ela mesma cumprirá essa
tiver de se deslocar a qualquer outra hora que os filhos de famílias mais abastadas
do dia, terá de o fazer em carro próprio, tenham mais condições de aprendizagem.
função. Os filhos das
famílias ricas poderão
sair-se bem, mas não
AUTOR DATA TRADUTORA os filhos das famílias
F Piotr Wójcik 14.05.2020 Aida Macedo
mais pobres

40 JULHO 2020 - N.º 293 FOTO: GETTY IMAGES


das famílias ricas poderão sair-se bem,
mas não os filhos das famílias mais pobres,
mesmo que sejam talentosos.
Com o tempo, cada vez mais vozes ATRAVESSAR
exigirão o abandono da política de con- SEM CARREGAR NO BOTÃO
tenção generalizada, privilegiando apenas Chamados, em inglês, beg buttons, os botões que pressionamos
o isolamento dos chamados grupos “de para solicitar a paragem dos veículos nas passadeiras de peões foram
risco”, ou seja: as pessoas com doenças desativados nalgumas cidades como Minneapolis, nos Estados Unidos
crónicas e, sobretudo, os idosos. Os sinais da América, Calgary, no Canadá, ou Praga, na República Checa. Onde,
que anunciam essa mudança já são visíveis. antes, era necessário carregar no botão e esperar até poder atravessar,
O confinamento forçado de pessoas idosas foi imposta a circulação programada e alternada. Segundo a edição checa
limitará severamente a sua presença na da revista FORBES, pretende-se, para evitar contrair ou transmitir o vírus,
vida social e fará desaparecer da agenda impedir que dezenas de dedos toquem no mesmo botão.
política questões importantes como a atua- Mas esta medida visa, ao mesmo tempo, devolver a prioridade aos peões
lização das reformas e o financiamento do que, assim, não terão de “pedir” (beg) para atravessar a rua.
sistema de saúde. Se agora se ouvem do Primeiro os peões, depois os automóveis.
Estado exigências que parecem progres-
sistas e sociais, na minha opinião, a “nova
normalidade” não tardará a desencadear
processos completamente opostos. Porquê
cuidar de áreas comuns como parques e
piscinas públicas se o acesso a elas se tor- A MINHA GARAGEM
nar mais difícil, se não impossível? Vamos É UMA QUINTA
então apostar mais em estratégias de exis- Quintas urbanas nos telhados dos estacionamentos dos edifícios de
tência individuais ou familiares, porque, habitação de renda moderada: desde o início do mês, Singapura vem
em tempos de isolamento social, o nosso explorando esta possibilidade a fim de aumentar a produção agrícola local,
nível de vida depende dos nossos recursos relata o STRAITS TIMES. O abastecimento alimentar é, há muito, um dos
próprios e dos nossos parentes. A explo- grandes problemas da cidade-Estado, que importa 90% dos bens que
são do individualismo e do familiarismo consome. Já antes tinham sido lançados programas no sentido de diminuir
será tão mortal para a solidariedade social esta dependência. Foi necessário acelerar pequenas quintas perante o risco
como o coronavírus para as pessoas. A de escassez derivado da pandemia. Um fundo de 30 milhões de dólares
nova realidade pandémica poderá não ser de Singapura (19 milhões de euros) foi desbloqueado em abril, conta este
tão dramática como as distopias cyber- jornal. O fundo visa ajudar os agricultores locais, num período que pode ir
punks dos livros de William Gibson [autor de seis meses até dois anos, a otimizarem a sua produção de ovos
de Johnny Mnemonic e The Neuromancer, e produtos hortícolas, graças às novas tecnologias. Vai, igualmente,
que inspirou a trilogia cinematográfica financiar a identificação e conversão de locais passíveis de serem
Matrix], mas poderá ser igualmente um cultivados no centro da cidade.
pesadelo.

JULHO 2020 - N.º 293 41


Cidades

Tendência

Toda a gente
de bicicleta!
A crise sanitária
ria oferece argumentos aos adversários do automóvel.
Tal como Paris ou Milão, muitas cidades europeias apostam na bicicleta
para permitir
mitir que os seus moradores circulem sem risco

REVISTA DE IMPRENSA

A “Au revoir les automobiles!”


A fórmula é da revista norte-a-
nicípios veem a bicicleta como o meio
de transporte perfeito nestes tempos de
para os transeuntes e surgiram novas
ciclovias. Do nosso lado do Atlântico,
mericana FORBES, em francês no distanciamento social imposto: menos onde a promoção da bicicleta costuma
texto. É nesses termos que esta re- geradora de ansiedade do que o auto- fazer parte de uma política de longo
vista bimensal acolhe a decisão, anuncia- carro ou o metropolitano, a bicicleta prazo das cidades para dissuadir os
da em 29 de abril pelo município de Paris, não polui, ao contrário do automóvel moradores de conduzirem carros, os
de reservar a Rua Rivoli, no coração da – e não provoca engarrafamentos. “Em efeitos prometem ser mais duradouros.
capital, para bicicletas. Uma primeira algumas cidades, a evolução é apenas “As cidades europeias estão a reduzir o
medida que foi seguida por outras. Como temporária”, observa a CONDÉ NAST TRA- espaço concedido aos carros no pós-co-
parte do plano de descontaminação da VELER . Oakland, na Califórnia, “limitou ronavírus”, intitula o site especializado
cidade, um total de 50 quilómetros de o acesso em 10% das suas ruas (cerca de CITYLAB . Tal como outras publicações,
ruas foram transformados em ciclovias. 120 km), a veículos de emergência, para cita o exemplo de Milão, na Itália. Esta
Desde 11 de maio, a Avenida Saint-Michel dar mais espaço a bicicletas e peões”, cidade, uma das mais poluídas da Eu-
e o túnel de l’Etoile, entre outros, tor- relata esta revista de viagens. Nova ropa e também uma das mais afetadas
naram-se domínio da pequena rainha. Iorque adaptou 65 quilómetros de ruas pela Covid-19, lançou no final de abril
Tais iniciativas não são apanágio de para o mês de maio. Os passeios foram o que o jornal britânico THE GUARDIAN
França. Em todo o mundo, muitos mu- ampliados para permitir mais espaço apresenta como “um dos planos eu-
ropeus mais ambiciosos de realocação
urbana”. A principal medida do pro-
AUTOR DATA TRADUTORA grama Strade Aperte (Estradas Abertas)
F Não assinado 14.05.2020 Aida Macedo é a transformação de 35 quilómetros de
estradas em ruas pedonais ou ciclovias

42 JULHO 2020 - N.º 293 FOTO: GETTY IMAGES


...
Antes da Covid-19, m muitas
cidades europeias já
estavam a trabalhar para
p
reduzir o espaço para
carros. Se estas muda
mudanças
também ajudarem as
cidades a continuarem
operacionais após essa
essas
fase, tal provará que e
políticas não são fantasias
fanta
de urbanistas mas umuma
maneira sustentável
e prática de construir
um futuro habitável
pós-pandemia

HOSPITAIS EM ALTURA
Todos os anos, a revista norte-americana de arquitetura EVOLO organiza um
concurso que premeia os projetos de arranha-céus mais inovadores. O palmarés
de 2020, aguardado com expectativa, foi divulgado no dia 20 de abril. Sinal dos
tempos: este ano, o projeto escolhido entre os 473 propostos é o de uma torre-
durante o verão, para apoiar a fase 2 -hospital assinado pelos chineses D Lee, Gavin Shen, Weiyuan Xu et Xinhao
do desconfinamento e o crescimento Yuan. A Epidemic Babel consta de uma construção por módulos que pode ser
esperado da economia. erguida em menos de cinco dias em caso de epidemia. Uma estrutura em aço, leve
Medidas semelhantes estão a ser to- e facilmente transportável, constitui o “esqueleto” no qual se encaixam módulos
madas em Roma, Berlim, Barcelona ou pré-construídos, escolhidos pela equipa médica em função das necessidades.
Budapeste. “Serão mantidas quando a Na opinião dos projetistas, um dispositivo deste tipo seria menos oneroso
ameaça do coronavírus diminuir? Não e permitiria uma construção mais rápida do que os hospitais pré-fabricados
é certo, mas são muito significativas”, atualmente utilizados na China.
analisa o CITYLAB. “Mostram que o ven-
to está a mudar. Antes da Covid-19 se
espalhar pelo mundo, muitas cidades
europeias já estavam a trabalhar para VERDE SOLITÁRIO
reduzir o espaço para carros. Se estas Chris Precht, arquiteto de Salzburgo, concebeu um espaço verde feito à
mudanças também ajudarem as cida- medida, para limitar o risco de contaminação e permitir passear em tempos de
des a continuarem operacionais após o confinamento. Pensado inicialmente para um terreno abandonado na cidade de
levantamento da contenção, tal provará Viena, mas pronto a ser transposto para outros locais, este projeto, batizado de
que essas políticas não são fantasias de “parque de distanciamento”, “acolhe os visitantes como um labirinto, num passeio
urbanistas, mas uma maneira susten- solitário por caminhos paralelos, separados por sebes”, descreve a FAST COMPANY.
tável e prática de construir um futuro Um visitante por corredor, num percurso calculado para 20 minutos por pessoa.
habitável pós-pandemia. E é uma meta Quer os caminhantes decidam aceitar a imersão na Natureza, quer prefiram deitar
que todas as cidades do mundo precisam um olho por cima da sebe, uma coisa é certa: “Mantêm sempre a distância
de alcançar.” de segurança”, explica a revista norte-americana.

JULHO 2020 - N.º 293 43


Cidades

Ideias

Viver melhor Grito do coração


NUNCA

em casa
SEM A MINHA
VARANDA
Linda Poon, jornalista do CITYLAB, fala da
sua experiência quando avisa os arquitetos
de que não poderão continuar a projetar
A arquitetura e a disposição das nossas habitações são fatores edifícios sem varandas. A jovem norte-
importantes no combate à propagação de epidemias. Vejamos -americana passou o confinamento num
o que poderia mudar nas nossas casas e apartamentos apartamento no quarto andar, tendo a
janela da sala como única abertura para
a vegetação. Ela confessa que entende
perfeitamente aqueles que, “alojados em
COURRIER INTERNATIONAL PARIS habitações pouco iluminadas, agora juram
nas redes sociais que nunca mais viverão
num apartamento sem varanda”.
E assegura: “As varandas são o símbolo
das novas formas de liberdade: a de se
confinar sem se sentir encurralado e a de
desfrutar do ar fresco sem medo de respirar
um ar contaminado.”

S “Se Lloyd Alter construísse


uma casa agora, certamente que
de nos ajudar mais. Serão desenvolvidos
sensores que permitirão a deteção de ví-
das epidemias, mudaram muito o seu
design, tanto como a generalização da
acrescentaria um equipamento rus nas superfícies em tempo real. Podem eletricidade e da água corrente. Tor-
pouco comum: um lavabo na en- ser utilizados para avisar os ocupantes naram-se cada vez mais brancas, mais
trada”, escreve o CITYLAB. Interrogado ou para acionar purificadores de ar.” higiénicas e mais funcionais. Quais as
por este site, Lloyd Alter, especialista No site DEZEEN, o arquiteto ucraniano inovações a introduzir nos próximos
em História do Design e ex-arquiteto Sergey Makhno diz que, na sua opinião, anos? O site especializado planeia, entre
de profissão, explica: “A entrada é uma as casas, mesmo pequenas, devem me- outras coisas, a multiplicação de casas
zona de transição entre o exterior e o recer preferência em relação aos arra- de banho em casas e apartamentos (uma
interior, onde deixamos as roupas sujas nha-céus, para limitar os contactos no por cada quarto, ideal para limitar as
e lavamos as mãos antes de ingressar caso de novas quarentenas. Ele imagina trocas de germes) e o regresso dos bi-
na casa". habitações autossuficientes em água e dés. Na falta de papel higiénico, serão
Será que esses lavabos se vão multi- energia, mais compartimentadas (sem muito úteis.
plicar na entrada das casas, bem como os espaços polivalentes tipo lofts) – e
os dispensadores de gel desinfetante dotadas de um escritório com condições
na porta de edifícios públicos e lojas? para apoiar o incremento do teletrabalho.
É muito cedo para dizer. Mas, quando Todos aqueles que estiveram confina-
a pandemia da Covid-19 paralisa o pla- dos em estúdios ou alojamentos exíguos
neta e nos garantem uma multiplicação irão receber com satisfação essas propos-
de epidemias nas próximas décadas, os tas, para alguns inspiradas no movimento
arquitetos e designers já começaram a sobrevivencialista. Contudo, elas não
imaginar como a disposição e o equipa- são compatíveis com todas as bolsas e
...
mento das nossas casas terão de evoluir. são contrárias aos esforços atuais, num
Uma primeira linha de pensamento diz cenário de pressão demográfica e explo-
O arquiteto ucraniano
respeito à qualidade do ar nas habitações. são urbana, para limitar a expansão das Sergey Makhno imagina
Serão necessários filtros mais eficientes cidades. Mas permanece o facto de que habitações autossuficientes
e melhor ventilação para limitar a nossa serão necessárias adaptações.
exposição a doenças infeciosas, escreve Numa escala mais modesta, o CITYLAB em água e energia, mais
a revista FAST COMPANY. As lâmpadas ger- questiona a evolução das nossas casas de compartimentadas (sem
micidas de luz ultravioleta podem gene- banho. Desde o século XIX, os cuidados
ralizar-se. “No futuro, a tecnologia terá com a higiene, combinados com o medo
os espaços polivalentes tipo
lofts) – e dotadas de um
escritório com condições
AUTORA DATA TRADUTORA
F Não assinado 14.05.2020 Aida Macedo para apoiar o incremento
do teletrabalho

44 JULHO 2020 - N.º 293 FOTO: GETTY IMAGES


Breves
CABINAS NO ASFALTO
Já que as barracas das praias vão provavelmente ficar vazias, este verão teremos de contentar-nos
com cabinas de teste de Covid-19. Inspiradas num modelo concebido na Coreia do Sul, essas
cabinas deixam que os médicos falem com os pacientes e os examinem por trás de um vidro
de proteção; permitem, também, realizar colheitas com zaragatoa, graças às luvas que saem
do vidro e passam para o outro lado da cabina. Estes “drive-in para peões”, como lhes chama a
revista norte-americana FAST COMPANY, irão em breve povoar as nossas paisagens urbanas. Em
Nova Iorque, um atelier de arquitetura está a trabalhar num protótipo desdobrável, em alumínio,
que pode ser colocado numa tenda junto aos hospitais mais sobrecarregados que necessitem
de espaço adicional para testes. Em Telavive, Israel, ou em Mumbai, Índia, unidades de saúde
também propõem estes testes para pacientes que apresentem sintomas. Em Banguecoque,
a empresa tailandesa de telecomunicações já transformou mais de 200 cabinas telefónicas
em cabinas de testes, conta-nos o Bangkok Post.

JULHO 2020 - N.º 293 45


Cidades

Alemanha

N Ú M E RO
Depois da crise,
um êxodo urbano? – 90% REDUÇÃO
DO NÚMERO
Como resultado do confinamento, muitos citadinos poderão optar DE UTENTES
do metro de Nova Iorque entre
por deixar a cidade e ir morar no campo depois da crise, diz este jornalista 4 e 11 de abril em comparação
alemão. Isto é especialmente verdade em Paris com a mesma semana de 2019.
O futuro afigura-se sombrio para
a Metropolitan Transportation
SÜDDEUTSCHE ZEITUNG MUNIQUE Authority, equivalente à RATP
[empresa de metropolitano]
em Paris, já crivada de dívidas e
minada pelo subinvestimento
ainda antes da crise. Epicentro da
epidemia da Covid-19 nos Estados
Unidos da América, Nova Iorque
ressentir-se-á duplamente dos
efeitos da crise, segundo o NEW
YORK TIMES. Este jornal enumera
os indicadores que mostram “até
D Devia ser inscrito no patrimó-
nio nacional. O engarrafamento
quase 70 pedidos por dia de casas de cam-
po, o dobro do número de há dois meses.
que ponto o coronavírus muda
a cidade”: explosão do número
das noites de sexta-feira e domin- Algumas negociações que se arrasta- de desempregados, redução da
go faz parte do ritual semanal dos vam há meses foram subitamente concluí- quantidade de resíduos recolhidos,
parisienses há três gerações. Jean-Luc das no espaço de poucos dias, confirma diminuição do consumo de
Godard já lhes prestava homenagem em um colega. Dois milhões de residentes – eletricidade de manhã, mais
1967 no seu filme Week-end, uma espécie famílias ou pessoas sozinhas – mudam- queixas por ruído, menos poluição.
de concerto gigantesco de buzinas que -se todos os anos em França, um décimo E aumento em flecha de pessoas
durava uma hora e meia. Esgueirando- dos quais poderá optar por se instalar em disponíveis para ações
-se a bordo do seu carro desportivo, um permanência fora das cidades e, especial- de voluntariado: + 288% no mês
Facel Vega Facellia, no meio de uma fila mente, fora da capital. de março, apenas.
interminável de carros, Roland e Corin- O ritmo das deslocações semanais não
ne embarcavam numa série de aventuras se inverteu apenas. Na situação excecional
improváveis, terminando para Roland na em que vivemos hoje, um novo modo de
panela de um grupo de novos canibais em vida está a surgir para as classes privilegia-
plena insurreição. Só que a hora de glória das que têm os meios e o tipo de profissão
dos engarrafamentos às portas de Paris que lhes permite trabalhar remotamente.
pode ser coisa do passado. Os requisitos antes de comprar uma casa
Entre as consequências, duradouras de campo incluem acesso aos transportes,
ou temporárias, da atual epidemia de co- fiabilidade da ligação à internet e proximi-
ronavírus, podemos citar uma inversão dade de escolas e hospitais de qualidade. ...
das deslocações entre as casas de cidade e Reduzidos ao estado de meros abrigos,
as casas de campo. As agências imobiliá- os apartamentos parisienses seriam usados A procura de casas de
rias da Île-de-France são unânimes: nas apenas dois ou três dias por semana para
últimas semanas, a procura por casas de o trabalho. E o humorista da Belle Époque
campo explodiu. Contudo,
campo explodiu. Contudo, os clientes não Alphonse Allais veria finalmente a sua iro- os clientes não pretendem
procuram casas de férias à beira-mar ou nia tornar-se realidade: serão construídas casas de férias à beira-
na montanha, mas sim fazendas antigas, cidades no campo. Paris esvazia-se e o
estações fora de uso, celeiros, capelas ou vazio outrora bucólico do campo enche-se. mar ou na montanha, mas
antigos mosteiros para viver no campo, Como ferramentas reguladoras naturais, fazendas antigas, estações
sem estar muito longe da cidade. A agente os engarrafamentos também tiveram o
imobiliária Patrice Besse diz que recebe seu papel.
fora de uso, celeiros,
capelas ou antigos
mosteiros para viverem
AUTOR DATA TRADUTORA no campo, sem estarem
F Joseph Hanimann 14.05.2020 Ana Caldas
muito longe da cidade

46 JULHO 2020 - N.º 293


IDEIAS Análise
ESCRITÓRIOS SEM CONTACTO QUE FOBIA, O METRO!
Concebidos antes da pandemia, são uma antevisão do que poderá “Teremos algum dia coragem de voltar
ser a arquitetura pós-coronavírus. Em Chardja, nos Emirados Árabes a andar de metro?” Esta pergunta,
Unidos, acabam de surgir os escritórios “sem contacto” futuristas, lançada pelo UNHERD, espelha a
desenhados pelo atelier Zaha Hadid Architects. Segundo o THE dúvida de muitos cidadãos perante
GUARDIAN, neste edifício construído na orla do deserto pela empresa a aproximação do desconfinamento.
de gestão de resíduos Bee’ah, “os funcionários só muito raramente “Enquanto não existir vacina – daqui
terão de tocar seja no que for para se deslocarem. As portas são a um ano? Dois? –, todas as pessoas
abertas por sensores de movimento e por reconhecimento facial” e que têm de se deslocar vão evitar
tudo o resto poderá ser comandado através do smartphone pessoal: transportes públicos apinhados. Com
ascensores, estores, iluminação, ventilação, até a máquina de café. toda a razão, aliás”, reconhece este site
O arquiteto Arjun Kaicker calcula que o distanciamento social londrino. “No dia 3 de maio, mais de
obrigará a projetar também “corredores e portas mais largas”, 100 funcionários dos transportes tinham
“muito mais escadas” e mesas e secretárias mais amplas. morrido de coronavírus nos Estados
Unidos da América e 39 em Londres.”
O DONUT SALVADOR O UNHERD dá aos municípios várias
Para salvar as cidades da crise provocada pelo coronavírus, “ sugestões para evitar que demasiadas
não há truques de magia, mas talvez um donut ajude”, graceja pessoas caiam na tentação de recorrer
o Quartz. No início de abril, as autoridades de Amesterdão ao automóvel para se sentirem
anunciaram que, para o seu plano de relançamento económico, iam mais seguras. Promover a bicicleta e
inspirar-se no livro da autora britânica Kate Raworth, traduzido em caminhar, desencorajar o recurso a
português com o título Economia Donut – Sete formas de pensar carro próprio, limitar o número de táxis e
como um economista do século XXI (editora Temas e Debates). TVDE, mas, simultaneamente, “permitir
O círculo interior do donut representa as necessidades individuais que os utentes dos transportes voltem
consideradas fundamentais pelas Nações Unidas (acesso a água a ter confiança”, aplicando as medidas
potável, à educação, à saúde…). O círculo exterior representa os de limpeza necessárias e zelando por
condicionamentos ecológicos. Objetivo: obter a massa que melhor que haja um número de autocarros e
conjugue estas exigências. Assim, é intenção de Amesterdão composições de metro suficiente para
apostar “na redução dos resíduos e na reciclagem”, para evoluir no permitir o distanciamento. E, se houver
sentido de uma economia circular até 2050, explica o DUTCH NEWS. falta de carruagens e de autocarros,
Neste momento, estão em estudo mais de 200 projetos. Um deles, não hesitar em recorrer a operadores
desenvolvido com profissionais da construção e lojas de artigos em privados como a Uber ou outros, com
segunda mão, consiste em “recolher tinta látex não utilizada capacidade para fornecer rapidamente
e acondicioná-la para voltar a vendê-la”, lemos no site. autocarros e miniautocarros.

FOTO: GETTY IMAGES JULHO 2020 - N.º 293 47


DIGITAL
A LUTA PELO
CONTROLO
CONTINUA
CRESCE O CONSENSO DE QUE O ATUAL MODELO DA INTERNET –
RELATIVAMENTE ANÁRQUICO E AUTORREGULADO POR EMPRESAS
PRIVADAS, A MAIORIA NORTE-AMERICANAS – ESTÁ A FALHAR. POR ISSO,
COMEÇA-SE A TRABALHAR NA CRIAÇÃO DE UM NOVO MODELO DE
GESTÃO QUE PERMITA O DESENVOLVIMENTO DA REDE, EM ESPECIAL COM
O ADVENTO DO 5G E O NOVO MUNDO DE POSSIBILIDADES QUE ESSA
TECNOLOGIA TRARÁ AO MUNDO. É NESSE CENÁRIO QUE SE DESENROLA A
GRANDE GUERRA DO SÉCULO XXI: O COMBATE PELO CONTROLO E GESTÃO
DA INTERNET, TANTO A NÍVEL POLÍTICO COMO ECONÓMICO
Investigação

QUANDO
A INTERNET
FOR CHINESA
Já a morder os calcanhares dosnorte-americanos e dos europeus, os engenheiros
da gigante Huawei estão a inventar a internet do futuro. Poderá Pequim impor
ao resto do mundo a sua conceção de uma rede sob controlo estatal?

FINANCIAL TIMES (EXCERTOS) LONDRES

N Num frio dia de setembro de


2019, meia dúzia de engenheiros
mostrar que a atual rede é uma relíquia
do passado que já atingiu o limite das suas
ao mesmo impulso totalitário”, afirma
Shoshana Zuboff, autora de The Age of
chineses entra numa sala de reu- façanhas técnicas. Por isso, seria tempo de Surveillance Capitalism [“A Era do Ca-
nião das Nações Unidas, em Genebra, a substituir por uma rede global baseada pitalismo Vigilante”, não editado em
para apresentar uma ideia revolucionária. em arquitetura de topo, cuja construção, português] e professora de Ciência Polí-
Dispõem de uma hora para converter os como assegurou a equipa da Huawei, de- tica na Universidade de Harvard. “Acho
delegados de mais de 40 países à ideia de veria ser confiada aos chineses. isso assustador, e deveríamos estar todos
uma nova internet que suceda à arquitetu- Todos os Estados do mundo parecem assustados.”
ra tecnológica que há meio século enqua- aceitar que o atual modelo da internet – A Huawei afirma que desenvolveu o
dra a rede. Embora atualmente a internet relativamente anárquico e autorregulado seu novo protocolo apenas para satisfazer
pertença a todos e a ninguém, os chineses por empresas privadas, a maioria norte-a- os requisitos técnicos dum mundo digital
começaram a construir algo totalmente mericanas – está a falhar. O projeto New a alta velocidade e que ainda não planeou
diferente: uma nova infraestrutura capaz IP, a mais recente iniciativa para alterar a qualquer modelo específico de gestão. O
de devolver o poder ao Estado ao invés de gestão da internet, é apoiado por países fabricante chinês de equipamentos está a
o deixar nos indivíduos. que, por alturas da criação da rede, há 50 liderar um grupo de trabalho da UIT para
A equipa por detrás deste projeto, de- anos, tinham sido largamente excluídos. avaliar a tecnologia de rede que terá de
signado como “New IP” (“novo protocolo “Os conflitos sobre a gestão da internet são ser posta em funcionamento até 2030 e,
de internet, sendo o IP o protocolo que os novos espaços em que o poder político segundo o seu porta-voz, o New IP é feito
rege o desenvolvimento e o transporte de e económico se disputa no século XXI”, à medida destas necessidades.
pacotes de dados na rede), trabalha para escreveu a investigadora Laura DeNardis O que se sabe sobre esta proposta foi
o gigante chinês das telecomunicações no seu livro de 2014, The Global War for publicado em documentos extremamente
Huawei, que, de todas as empresas, foi a Internet Governance. [“A guerra mundial técnicos que chegaram aos editores do
que enviou a delegação maior à reunião pela gestão da internet”, não traduzido Financial Times. Foram apresentados,
da União Internacional de Telecomunica- em português]. à porta fechada, aos delegados da UIT
ções (UIT), a agência das Nações Unidas em setembro de 2019 e novamente em
responsável pela definição das normas Controlo absoluto fevereiro de 2020. Um é uma proposta de
internacionais para o setor das novas O Governo chinês, em particular, vê o normas técnicas, e o outro é uma apre-
tecnologias. Os peritos chineses chega- desenvolvimento das infraestruturas e sentação em PowerPoint intitulada New
ram com uma simples apresentação de normas da internet como o pilar da sua IP. Desenvolver a rede de amanhã.
PowerPoint. política externa digital; e nos seus ins-
O documento era parco em porme- trumentos de censura, o modelo de in- Domínio norte-americano
nores sobre o funcionamento da sua nova ternet mais eficiente que os outros países Apesar do seu poder, a internet não é con-
rede ou sobre o tipo de problemas que deveriam seguir. “Claro que os chineses trolada por nenhum organismo regulador.
se propunha resolver. Em contrapartida, querem uma infraestrutura tecnológica Está em grande parte sob o controlo de
continha imagens de tecnologias futu- [global] que lhes permita exercer o mes- um punhado de empresas norte-america-
ristas, como hologramas em tamanho mo controlo absoluto que têm nas suas nas – Apple, Google, Amazon e Facebook.
real de carros autónomos. O objetivo era políticas internas, submetendo ambas Foi precisamente esta falta de autoridade
central que permitiu aos tecnólogos mudar
a forma como comunicamos e vivemos,
AUTOR DATA TRADUTORA mas também conduziu a profundas alte-
F Madhumita Murgia 27.03.2020 Ana Marques rações de ordem social, a começar pela
e Anna Gross manipulação da opinião pública, pela

50 JULHO 2020 - N.º 293


O Presidente chinês Xi Jinping,
na Conferência Mundial da Internet,
desestabilização da democracia e pelo em 2015, quando afirmou que todas
aumento da vigilância online. as nações deveriam ter uma autoridade
O equilíbrio de poder começa a mudar, ... independente para a sua internet
mas de um Estado para outro, as expec- FOTO DE GETTY IMAGES
tativas são muito diferentes. Os Estados O governo chinês vê
Unidos da América, o Reino Unido e a Eu- rede já foram definidas e a sua construção
ropa, por exemplo, gostariam de adap- o desenvolvimento das está em curso. Qualquer país poderá ade-
tar o sistema atual para dar mais espaço infraestruturas e das rir se quiser. “Existem atualmente duas
à regulamentação e facilitar o acesso dos normas da internet um versões da internet: uma versão capita-
serviços de informações aos dados pessoais lista, baseada no mercado e na vigilância
dos utilizadores. O projeto chinês vai muito pilar da sua política que utiliza indevidamente dados, e uma
mais longe e poderá integrar um siste- externa digital, e, nos versão autoritária, também baseada na
ma de controlo centralizado na própria vigilância”, aponta Zuboff. “Resta saber
arquitetura da rede. Segundo fontes que
seus instrumentos de se a Europa e a América do Norte poderão
participaram nas reuniões da UIT, a Arábia censura, o modelo de unir-se para criar o quadro jurídico e tec-
Saudita, o Irão e a Rússia apoiaram, no internet mais eficiente nológico para um modelo democrático.”
passado, as propostas de tecnologias de O New IP apresenta um quadro do
rede alternativas da China. As discussões que os outros países mundo digital de 2030 em que a realidade
revelaram que as orientações para a nova deveriam seguir virtual, a comunicação por hologramas e

JULHO 2020 - N.º 293 51


Digital

a telecirurgia serão omnipresentes. Tudo


aplicações que a rede atual não conse-
gue suportar. Os investigadores chineses
descrevem o protocolo IP convencional
como “instável e muito inadequado” e
culpam-no pelos “enormes problemas
de segurança, fiabilidade e configuração”.
A acreditar nos seus documentos,
defendem, em vez disso, para a futura
rede “uma configuração descendente” e
dispositivos de partilha de dados entre
todos os países, “de forma a lidar com as
necessidades da Inteligência Artificial, os
grandes dados e de todo o tipo de outras
aplicações”. Muitos peritos receiam, no
entanto, que o New IP permita aos ISP
(Internet Service Providers/Fornecedo-
res de serviços de internet), normalmente
empresas estatais, controlar e supervi-
sionar qualquer dispositivo ligado à rede,
vigiando e, eventualmente, restringindo
os acessos individuais.
Sheng Jiang, que lidera a equipa da
Huawei, afirmou na reunião de setembro
que engenheiros de “círculos industriais e
académicos de vários países” já começaram
a construir o sistema, mas, por razões de
confidencialidade comercial, recusou-se
a divulgar quaisquer nomes. Assistiam ao
encontro membros experientes da UIT, na
sua maioria funcionários do Reino Unido,
Estados Unidos da América, Países Baixos,
Rússia, Irão, Arábia Saudita e China.
Para alguns participantes, a ideia é
impensável. Se a UIT validasse o conceito
do New IP, os operadores públicos pode-
riam optar entre uma internet ocidental
e uma internet chinesa. Nos países onde
fosse instalada poderia exigir que todos os
utilizadores precisassem de autorização
do seu ISP para fazer o que hoje fazem, conjunto de redes nacionais, cada uma está a mudar. Ou seja, se a abordagem
como descarregar uma aplicação ou aceder com as suas próprias regras, um concei- defensiva que permitiu a Pequim controlar
a um site, e os administradores teriam a to conhecido na China como “soberania de forma autoritária os fluxos de dados
liberdade de lhes negar o acesso. Em vez digital”. dentro das suas fronteiras é para exportar,
de uma rede global unificada, os cidadãos incentivando outros países a seguirem o
poderiam ficar reduzidos a ligar-se a um Bloquear o acesso seu exemplo.
Os recentes acontecimentos no Irão e na Segundo os criadores do New IP, alguns
Arábia Saudita dão-nos um vislumbre do componentes da Rrede poderão entrar em
... que poderá acontecer. Durante episódios testes já no próximo ano. Os chineses farão
de agitação civil, ambos os países bloquea- todos os possíveis para convencer as dele-
Apesar do seu poder, ram o acesso à internet durante longos gações dos benefícios do novo protocolo
a internet não é períodos, permitindo apenas o acesso a na grande conferência da UIT a realizar
controlada por nenhum serviços essenciais, como bancos e serviços na Índia, em novembro. Mas para a UIT
de saúde. Na Rússia, uma nova lei, dita da aprovar o projeto antes do final do ano,
organismo regulador. internet soberana, que entrou em vigor em e assim abrir caminho à sua aplicação, os
Está, em grande parte, novembro de 2019, consagra o direito de delegados terão de tentar chegar a uma
o Governo poder vigiar de perto o tráfego posição comum, decidida por maioria re-
sob o controlo de um da rede. Demonstra também a capacidade lativa. Se não chegarem a acordo, a pro-
punhado de empresas de o país poder cortar totalmente o acesso posta será votada à porta fechada apenas
norte-americanas – à rede mundial graças à ajuda de empresas pelos representantes dos países membros,
chinesas, incluindo a Huawei. o que não terá necessariamente em conta
Apple, Google, Amazon Os peritos questionam se a visão da as posições deste setor económico e da
e Facebook China em matéria de gestão da internet sociedade civil.

52 JULHO 2020 - N.º 293


...
Existem atualmente
duas versões da internet:
uma capitalista, baseada
no mercado e na
vigilância que utiliza
indevidamente dados,
e outra autoritária,
também baseada
na vigilância
controlo, de modo que a Internet nunca
pudesse ser utilizada para atividades ilegais
como a pirataria cinematográfica ou os
crimes contra crianças. Haverá sempre
criminosos dispostos a cometerem delitos
e nem sempre a polícia os apanhará. Mas
é um sacrifício que aceito.”

A “outra” muralha
A antítese desta filosofia tem eco na pe-
quena cidade de Wuzhen, perto de Xangai,
onde todos os outonos se reúnem os gran-
des magnatas da tecnologia, investigadores
e políticos que assistem a uma pomposa
Conferência Mundial da Internet. O fórum
foi criado pela Administração Chinesa do
Ciberespaço em 2014, um ano depois de o
Presidente Xi Jinping ter chegado ao poder.
Uma fileira de bandeiras internacionais
saúda os visitantes, expressando a ambi-
ção de Xi no sentido de criar “um futuro
partilhado no ciberespaço”.
Grandes nomes da alta tecnologia, des-
de o patrão da Apple, Tim Cook, ao diretor
da Qualcomm, Steve Mollenkopf, discur-
Este calendário apertado é particu- Sede da UIT, em Genebra, onde saram em Wuzhen, prometendo apoio à
larmente preocupante para as delegações os representantes da Huawei iniciativa do Presidente chinês. Nos últimos
ocidentais, e várias vozes têm vindo a apresentaram as suas ideias anos, a participação estrangeira foi dimi-
exigir um abrandamento do processo. para o novo protocolo da internet nuindo à medida que a guerra tecnológica
Na sua resposta oficial (transmitida ao FOTO DE GETTY IMAGES China-EUA se intensificava e os patrões das
Financial Times por várias fontes), um tecnologias de informação começavam a
delegado holandês lembrou que “a na- quando era estudante de Matemática em evitar colagens excessivas a Pequim.
tureza aberta e flexível da internet” na Estocolmo, foi recrutado para construir e Desde 1990 que as autoridades chinesas
sua estrutura e modo de gestão é inse- testar a infraestrutura duma nova tecno- tinham começado a construir a Grande
parável do seu sucesso, e disse-se “muito logia a que o governo dos EUA chamava Muralha Eletrónica, um dispositivo de
preocupado” com um novo modelo que internet. É agora consultor digital do Go- controlo da internet que filtra o acesso
se desvie desta filosofia. Num comentá- verno sueco, que representa na maioria a sites estrangeiros proibidos, desde o
rio mais enérgico (também comunicado dos organismos normativos da internet, Google ao New York Times, impede os
ao nosso editor), um delegado britânico incluindo a UIT. Trinta anos depois de ter cidadãos de organizar protestos online e
acrescentou: “Não existem provas de que ajudado a construir as bases da rede global, bloqueia conteúdos considerados politi-
tenham sido apresentadas justificações mantém-se fiel aos ideais ciberlibertários camente sensíveis.
técnicas rigorosas para que se possa dar ocidentais que estiveram na base da sua Estes mecanismos de controlo depen-
um passo tão radical.” criação. “A arquitetura da internet é tal dem de exércitos de censores e funcioná-
Um dos mais veementes críticos do que é muito difícil, se não praticamente rios do Governo, mas também de empresas
novo protocolo é o sueco Patrik Folstrom, impossível, que um ISP saiba como o acesso de tecnologia privadas como a Baidu e a
engenheiro anticonformista de cabelos à rede é utilizado, quanto mais contro- Tencent. Se no resto do mundo não há
compridos, conhecido no seu país como lá-la”, explica. “A polícia e outras enti- obstáculos técnicos a que alguém crie o
um dos pais da internet. Por volta de 1980, dades gostariam que os ISP exercessem o seu próprio website, bastando para isso

JULHO 2020 - N.º 293 53


Digital

um computador e uma ligação à internet,


os internautas chineses têm de pedir uma
licença às autoridades. Os operadores de
telecomunicações e os anfitriões de uti-
lizadores também são obrigados a ajudar
a polícia na identificação de autores de
“crimes”. Por exemplo, chamar ao Pre-
sidente Xi “pão a vapor” num grupo de
discussão privado é punível com pena até
dois anos de prisão.
Apesar disso, a internet chinesa não é
inteiramente capaz de bloquear conteú-
dos considerados sensíveis ou subversi-
vos pelas autoridades. “A malha da rede
ainda é demasiado larga para os censores
chineses. Por isso gastam muito dinheiro
e energia a apertá-la, mas se pudessem
eliminar quase inteiramente estes proble-
mas através de um processo técnico mais
automatizado, como o New IP, para eles
seria formidável”, afirma James Griffiths,
autor de The Great Firewall of China. How
to Build and Control an Alternative Ver-
sion of the Internet [A Grande Firewall da
China. Como Construir e Controlar Outra
Versão da Internet, não traduzido para
português].
Richard Li, diretor científico da Fu-
turewei, o departamento de investigação
e desenvolvimento da Huawei, com sede
na Califórnia, está a coordenar o proje-
to para o novo protocolo. Trabalha com
engenheiros chineses da Huawei e com
as operadoras estatais de telecomunica-
ções China Mobile e China Unicom, com o
apoio oficial de Pequim, para desenvolver
especificações e padrões técnicos.
Tentámos contactá-lo para o questio-
nar sobre o New IP, mas a Huawei não lhe agência norte-americana responsável pelo
permitiu explicar mais detalhadamente o desenvolvimento de padrões de internet.
projeto, emitindo o seguinte comunicado: Em novembro, Li apresentou o seu
“O New IP pretende fornecer novas so- projeto a um pequeno grupo numa reunião
luções para a tecnologia de protocolo IP, da IETF em Singapura, com a presença de
capaz de suportar [...] aplicações futuras Alissa Cooper. “A infraestrutura atual está
como a Internet das Coisas (IoE) [um pas- a anos-luz do que se encontra na proposta
so adicional após a internet tradicional, a do NIP, que se baseia num tipo de arqui-
rede e os objetos ligados], comunicações tetura monolítica de cima para baixo e ...
holográficas e telemedicina. Engenheiros e procura emparelhar as aplicações com a
investigadores de todo o mundo são bem- rede. Foi isso que a internet foi concebida A internet era para ser
-vindos, se quiserem participar e contribuir para não ser”, afirma.
para a investigação e inovação do New IP.” Para o utilizador comum, isto pode ter
uma infraestrutura
Os críticos do projeto afirmam que os consequências graves. “Permite aos ope- neutra, mas tornou-
dados técnicos apresentados são falsos ou radores públicos de telecomunicações não -se uma ferramenta
imprecisos e não passam de “uma solução só vigiar o acesso a determinados tipos de
em busca de um problema”. Salientam conteúdo online como controlar todas as de controlo politizada.
que o atual sistema de endereçamento IP ligações de um determinado dispositivo a A sua infraestrutura
está adaptado às necessidades, mesmo face uma rede”, alerta um delegado britânico da
à rápida evolução da tecnologia digital. UIT. Entretanto, continua a mesma fonte,
está a ser cada vez
“Toda a genialidade do sistema provém a China já lançou um sistema de crédito mais utilizada para fins
da forma como a internet se desenvolveu social para avaliar o comportamento dos políticos – como veículo
a partir de componentes básicos modula- seus cidadãos, tanto online como na vida
res”, afirma Alissa Cooper, presidente da real, punindo “más condutas” passadas. de repressão económica
Internet Engineering Task Force (IETF), “Se o crédito social de um determinado e física dos indivíduos

54 JULHO 2020 - N.º 293


como construir uma rede pública numa
infraestrutura privada? É com este pro-
blema que estamos a lidar. Qual é o papel
do Estado e qual é o papel dos privados?”
Segundo ele as empresas conce-
bem tecnologias para ganhar dinheiro.
“A internet é dominada por empresas
norte-americanas que guardam todos
os fluxos de dados. É um poder que que-
rem manter, claro”, afirma. “A repressão
chinesa repugna-nos, mas a forma como
caricaturamos as fronteiras chinesas frisa
o racismo imperialista.” A verdade é que
a atual gestão da internet não funciona,
pelo que há espaço para outro modelo.
“O risco é que se não encontrarmos
uma terceira via, um modelo que possa
dar mais poder aos utilizadores, aumentar
a democracia e a transparência online e
reduzir os poderes das grandes empresas
tecnológicas e dos serviços de segurança
governamentais”, então cada vez mais
países optarão pelo modelo chinês, em
detrimento do fracasso de Silicon Valley”,
escreve Griffiths no livro The Great Fi-
rewall of China.
A Declaração de Independência do Ci-
berespaço – a Carta da Internet – parece
cada vez mais ultrapassada. Este manifesto,
escrito em 1996 por John Perry Barlow,
cofundador da ONG norte-americana
Electronic Frontier Foundation (EFF) e
letrista do grupo Grateful Dead, foi um
manifesto revolucionário: “Governos do
mundo industrial, gigantes cansados de
carne e aço, eu venho do ciberespaço, a
nova casa da mente”, assim começava este
manifesto. “Em nome do futuro, peço-
indivíduo baixar além de um determinado Com o seu plano, Xi Jinping e os -vos, a vós que representais o passado, que
limiar por ter publicado demasiadas incon- dirigentes chineses podem passar a ter nos deixeis em paz. Não sois bem-vindos
veniências nas redes sociais, o acesso do um maior controlo sobre a internet aqui. Não têm direito de soberania sobre
seu telemóvel à rede pode ser bloqueado.” FOTO DE GETTY IMAGES os nossos locais de encontro.”
Esta visão remete-nos para uma época
Poder de decisão por estados autoritários. “Tudo o que se em que as capitalizações de mercado de
Os operadores de telecomunicações chine- constrói é sempre um pau de dois bicos”, muitos milhões de dólares no setor tecno-
ses guardam grande quantidade de dados suspira. “Tudo pode ser usado para o bem lógico não existiam. No entanto, nem toda
dos seus assinantes. Para obter um número ou para o mal, e essa decisão cabe a cada a esperança está perdida, e talvez exista
de telefone ou uma ligação à internet, os Estado-membro.” uma terceira via, além das duas atuais.
utilizadores são legalmente obrigados a Nem todos olham para a vontade chi- “O que nos distingue da China é que a
indicar a sua identidade completa, à qual nesa de controlar mais as infraestruturas de opinião ocidental ainda pode mobilizar-se
outras empresas, como os bancos, podem rede como um problema, por acreditarem e ter uma voz. Cabe, em grande parte,
aceder. A lei chinesa de cibersegurança que este é simplesmente o próximo capí- aos legisladores protegerem a democracia
também exige que todos os operadores tulo da evolução da internet. “A internet na era da vigilância, quer esta seja ditada
de rede, incluindo empresas de teleco- era para ser uma infraestrutura neutra, mas pelas forças do mercado ou por um regime
municações, mantenham “a ligação às tornou-se uma ferramenta de controlo autoritário”, argumenta Shoshana Zubo-
suas ligações”, sem que fique claro o que politizada. A sua infraestrutura está a ser ff. “O gigante adormecido da democracia
isso significa. cada vez mais utilizada para fins políticos está finalmente a começar a mover-se de
Bilel Jamoussi, responsável pelo depar- – como veículo de repressão económica novo, os legisladores estão a acordar, mas
tamento de estudos do Gabinete de Normas e física de indivíduos –, como vimos em têm de sentir a pressão da opinião públi-
de Telecomunicações da UIT, acredita que Caxemira, na Birmânia, e através das re- ca. Precisamos de uma rede ocidental que
não cabe a esta dizer se as propostas para velações de Snowden”, recorda Niels ten abra um futuro digital compatível com a
a nova arquitetura da internet são descen- Oever, antigo delegado holandês da UIT. democracia. É nisso que teremos de nos
dentes ou podem ser instrumentalizadas “Para mim, a questão fundamental é outra: concentrar na próxima década.”

JULHO 2020 - N.º 293 55


Digital

E UA por estes sistemas não têm uma palavra

Quem controla
a dizer sobre o assunto.”
Loren Larsen, diretor de tecnologia
da HireVue, defende-se dizendo que as

os algoritmos
críticas resultam de má informação. “A
maioria dos investigadores na área da In-
teligência Artificial tem uma compreensão

que recrutam?
limitada da psicologia e do comportamen-
to dos trabalhadores”, declarou. Segundo
ele, a ação dos algoritmos na otimização
dos processos de recrutamento é com-
parável à dos fármacos que influenciam a
Nos Estados Unidos da América, muitas empresas subcontratam nossa saúde. Em suma, diz ele, a Ciência
entrevistas de emprego à empresa HireVue, que usa Inteligência está do seu lado. Um sistema automático
Artificial para avaliar candidatos. Há quem considere, nomeadamente no será sempre mais objetivo do que as re-
meio científico, que se trata de uma abordagem pouco fiável ou perigosa ferências tendenciosas dos recrutadores
humanos, que considera ser “uma caixa
negra por excelência”.
THE WASHINGTON POST (EXCERTOS) WASHINGTON “Todos os dias são recusados candi-
datos devido à sua aparência, aos seus
sapatos, à forma como encaixam a ca-
misa nas calças ou aos seus atributos físi-
cos”, explica. “Os algoritmos eliminam a
maioria destas preferências subjetivas de
uma forma que antes não era possível.” A
Inteligência Artificial não explica as suas
decisões nem atribui notas aos candidatos,
N Nos Estados Unidos da Améri-
ca, a Inteligência Artificial (IA)
superficiais e cálculos arbitrários sem
base científica. Em particular, este tipo
o que, segundo o seu ponto de vista, “seria
irrelevante”. No entanto, “não é lógico”
tornou-se um aliado das maiores de avaliações pode penalizar candidatos pensar que algumas pessoas possam ser
empresas na hora de contratar pes- de origem estrangeira, pessoas particu- injustamente recusadas por um avalia-
soal. Uma novidade que vem revolucionar larmente nervosas e, em bom rigor, todos dor automático, continua Loren Larsen:
a forma de avaliar recursos humanos e de aqueles que não se enquadrem num mo- “Quando mil pessoas se candidatam a
os candidatos a um emprego demonstra- delo pré-estabelecido no plano da apa- um emprego, há 999 que são rejeitadas,
rem as suas qualidades. A empresa Hi- rência e do discurso. Estes algoritmos aplique-se Inteligência Artificial ou não.”
reVue, especializada em tecnologias de podem desempenhar um papel decisivo Constata-se, no entanto, que estes
recrutamento, desenvolveu um sistema na carreira das pessoas, mas saberão de algoritmos impenetráveis geram uma
que utiliza a câmara do computador ou facto o que precisam procurar? Os es- nova forma de ansiedade nos candida-
do telemóvel do candidato para analisar pecialistas duvidam. Dito doutra forma: tos. Estudante da Universidade de Con-
expressões faciais, vocabulário e modu- de que forma o empregado ideal se deve necticut, Nicolette Vartuli formou-se em
lações de voz. Feita a comparação com expressar e que aspeto deve ter? Matemática e Economia com excelentes
outros candidatos, estabelece-se uma notas. Depois de se informar acerca da
classificação ordenada em função do Práticas discriminatórias HireVue, deu o seu melhor durante a en-
“nível de empregabilidade” de cada um. “É extremamente preocupante ver uma trevista com a máquina, tendo em vista
Estas técnicas de “avaliação através ‘tecnologia proprietária’ [pertencente um cargo num banco de investimento.
de Inteligência Artificial” estão tão di- exclusivamente a uma empresa] a fingir
fundidas em certos setores, como ho- ser capaz de distinguir entre um traba- ...
telaria, restauração ou finanças, que as lhador produtivo e outro que não o seria
universidades começaram a ensinar os com base na análise das suas expressões Todos os dias, são
estudantes a falarem e a apresentarem-se faciais, do tom de voz e da forma como se
perante estes algoritmos. Uma centena comporta durante a entrevista”, alerta
recusados candidatos
de empregadores já utiliza o sistema e Meredith Whittaker, cofundadora do devido à sua aparência, aos
este processou até ao presente mais de Centro de Investigação de IA do Instituto seus sapatos, à forma como
um milhão de candidaturas. Now, com sede em Nova Iorque. “Esta-
Contudo, há especialistas em Inte- mos perante pseudociência que permite enfiam a camisa nas calças
ligência Artificial para quem nada disto práticas discriminatórias”, acrescenta. ou aos seus atributos
passa de banha da cobra digital, assente E o pior é que “as pessoas cujas vidas e
numa combinação inepta de medições perspetivas de carreira são condicionadas
físicos. Os algoritmos
eliminam a maioria destas
preferências subjetivas
AUTORA DATA TRADUTORA
F Drew Harwell 06.11.2019 Ana Marques de um modo que antes
não era possível

56 JULHO 2020 - N.º 293


FOTO: GETTY IMAGES JULHO 2020 - N.º 293 57
Digital

Estava confiante e respondeu dentro do ...


tempo atribuído. Usou palavras-chave
com conotações positivas. Sorriu, muitas A máquina disseca as
vezes e com sinceridade.
Mas não conseguiu o emprego. E não
respostas e as atitudes dos
tinha como saber de que forma o com- candidatos ao pormenor,
putador a tinha avaliado e que pontos incluindo expressões
poderia melhorar. O que lhe faltou? Teria
sido pouco calorosa? Falado muito alto? faciais, colocação ocular
O que teria desagradado ao sistema de ou entusiasmo, e compila
Inteligência Artificial? “Sinto que uma das
razões pelas quais fui recusada foi ter-me
tudo num relatório que a
expressado de forma espontânea”, confi- empresa pode usar para
dencia a jovem. “Talvez não tenha usado fazer a sua escolha
palavras suficientemente complicadas.
Usei o termo conglomerado de empresas tificial disseca as expressões faciais dos
uma única vez.” inquiridos para determinar, por exemplo,
Segundo a HireVue, a máquina disseca o seu entusiasmo na realização de uma
as respostas e atitudes dos candidatos determinada tarefa ou a sua possível rea-
ao menor detalhe, incluindo expressões ção perante clientes descontentes. Estes
faciais, colocação ocular ou entusiasmo “pontos de ação facial” podem represen-
e compila tudo num relatório que a em- tar até 29% da pontuação final; o resto
presa pode usar para fazer a sua escolha. é calculado “a partir das características
áudio da voz”, como o tom.
Filtragem automática A fim de ensinar ao sistema que carac-
Os grandes grupos que fazem recruta- terísticas procurar para um determinado
mento em larga escala, recorrem cada vez trabalho, pessoas já empregadas, das mais
mais a sistemas automatizados, quando bem cotadas pelos recursos humanos às
se trata de primeiros empregos. É desta menos, são sujeitas a uma avaliação de
forma que encontram candidatos, avaliam IA, explica Loren Larsen. As respostas
CV e simplificam os processos de recru- nas futuras entrevistas de emprego se-
tamento. A empresa AllyO, por exemplo, rão comparadas com um repositório de
exalta os méritos do seu “bot (assistente sucesso, dando conta do desempenho
virtual) de recrutamento automático”, passado de cada empregado, ou seja: se
capaz, por exemplo, de enviar um SMS a atingiram ou não os objetivos, quanto
um candidato para lhe perguntar se con- tempo demoraram a resolver o problema
cordaria em mudar de cidade. Um con- de um cliente, etc. No final, espera-se que
corrente da HireVue, o ciberrecrutador os candidatos no topo da classificação
VCV, desenvolveu um sistema semelhante, se assemelhem e se exprimam como os
adaptado a entrevistas telefónicas, que funcionários com maior cotação.
permite analisar voz e respostas através Quando alguém é entrevistado pela
de “filtragem automática”. HireVue, o sistema gera um relatório so-
No entanto, a HireVue continua a do- bre competências e atitudes no qual são da pessoa fará no futuro em termos de
minar no novo mundo do recrutamento considerados fatores como “vontade de “desempenho de alto nível”. A empresa
semiautomatizado. A empresa diz que aprender”, grau de “responsabilidade e mostrou-se extremamente vaga em rela-
poupa aos empregadores uma fortuna meticulosidade” ou, ainda, “estabilidade ção às palavras e atitudes mais apreciadas
em entrevistas presenciais, elimina ra- pessoal”. Este último parâmetro é aferido pelo sistema. Para uma posição num call
pidamente as candidaturas consideradas através da “capacidade para tolerar o mau center, apenas informa de que “termos
abaixo da média e alarga as possibilidades humor dos clientes ou colegas”. Da análise encorajadores” serão bem-vindos, ao
de escolha, uma vez que tudo aquilo de informática destes parâmetros resulta a passo que vocabulário agressivo será um
que os candidatos precisam é de um te- inclusão em três grupos – fortes, médios problema. Os algoritmos utilizados são
lefone e de uma ligação à internet. ou fracos – em função das “hipóteses de regularmente revistos por um conselho
Nathan Mondragon, especialista em sucesso”. Nada impede que os emprega- de peritos, mas a empresa recusa sub-
Psicologia Industrial e Organizacional dores repesquem os candidatos do grupo metê-los a uma auditoria independente.
da HireVue, explica que uma entrevista dito mais fraco, mas a maioria dos ouvidos Disse estar a analisar a possibilidade de
padrão de 30 minutos inclui apenas meia pelo Washington Post concentra-se nos usar um provedor independente, “para
dúzia de perguntas, mas gera até 500 mil perfis preferenciais do sistema. ver como funcionaria”, afirma Larsen.
pontos de dados, usados no cálculo da A HireVue só desvenda uma informa- A HireVue lançou o seu serviço de
pontuação do candidato. Cabe ao empre- ção limitada acerca dos seus algoritmos de avaliação por IA em 2014, como pro-
gador definir as perguntas escritas que entrevistas, tanto para proteger os seus duto complementar dum programa de
o sistema da HireVue irá apresentando segredos empresariais, como porque nem entrevista via vídeo, que já foi usado por
aos candidatos, enquanto grava e analisa sempre sabe através de que critérios a mais de 700 empresas em 12 milhões de
as respostas destes. A Inteligência Ar- máquina decide o que uma determina- entrevistas no mundo. A empresa sedia-

58 JULHO 2020 - N.º 293 FOTO: GETTY IMAGES


siness Review, que as 50 mil entrevistas
já realizadas pelo banco representavam
“uma mina de dados que ajudarão a fazer
análises ricas em informação”. É possível
que, no futuro, as empresas utilizem ape-
nas máquinas e algoritmos para avaliar
CV e candidaturas? “Penso que sim, para
alguns deles”, escreveu (salvaguardando
que a Goldman Sachs “manteria o fator
humano” no seu processo de recruta-
mento).
A HireVue também tem como clien-
tes organizações mais pequenas, como a
Re:work, associação com sede em Chicago
que forma desempregados que queiram
reconverter-se ao sector tecnológico. Se-
gundo o presidente da associação, Shelton
Banks, a HireVue foi útil na escolha dos
candidatos merecedores de atenção.
Anteriormente, o programa de for-
mação da Re:work – oito semanas de
trabalho intensivo – era aberto a qua-
se todos, mas muitos participantes não
conseguiam acompanhar o ritmo. Agora,
todos os candidatos passam primeiro por
uma entrevista com IA, para apreciação
da sua capacidade de resolução de pro-
blemas e de negociação, bem como dos
seus níveis de motivação, curiosidade e
tenacidade. “Saber em que momento da
sua vida uma pessoa está ajuda-nos a de-
terminar com mais rigor quem devemos
aceitar ou não”, explica Shelton Banks.
Mas nem todos concordam. Lisa Feld-
man Barrett, neurologista emocional,
diz-se “muito cética” quanto à capaci-
dade de o sistema compreender de facto
as interações que analisa. Recentemente
liderou uma equipa de quatro elementos,
incluindo um especialista em sistemas de
visão computacional [ramo da IA], que
examinou mais de mil artigos científi-
da no Utah não divulga as suas receitas, os outros. “É raro um recrutador precisar cos pondo em causa, quer a existência
tarifas ou a lista completa de clientes. de procurar fora desta seleção”, explica. de expressões faciais universais, quer
O fabricante de produtos de con- a capacidade de os algoritmos as deci-
Baixar período de recrutamento sumo Unilever acredita que a HireVue frarem. Segundo as suas observações, a
No gigante hoteleiro Hilton International, lhe permitiu evitar 100 mil horas de en- tecnologia é capaz de detetar expressões
milhares de candidatos já passaram pela trevistas e poupar quase um milhão de faciais simples, diferenciando um sorriso
HireVue para vagas nos departamentos dólares por ano. Leena Nair, diretora de
de reservas ou de gestão ou para centros Recursos Humanos do grupo, afirma que ...
de atendimento telefónico. Segundo res- o sistema também ajudou a evitar que
ponsáveis do grupo, a automatização das os gestores “recrutassem apenas cópias A tecnologia é capaz de
entrevistas terá permitido que o perío- conformes”, resultando daí “uma maior detetar expressões faciais
do médio de recrutamento baixasse de “diversidade de novos recrutas.” Ou seja,
seis semanas para cinco dias. Segundo “quanto mais passamos ao digital, mais simples, diferenciando
Sarah Smart, vice-presidente de recru- nos humanizamos”. um sorriso de um
tamento internacional, o sistema mudou Dane Holmes, chefe internacional de
radicalmente os hábitos dos hotéis Hil- gestão de recursos humanos da Goldman
sobrolho franzido, por
ton, permitindo processar candidaturas Sachs [até ao outono de 2019], admite exemplo, mas continua
a alta velocidade. Os gestores de recursos “que recorre ao programa de entrevistas perigosamente imprecisa
humanos sobrecarregados com as candi- da HireVue, mas não ao seu departamento
daturas só têm de olhar para quem está de classificações de IA”. Holmes escreveu,
na interpretação dessas
classificado na melhor posição e eliminar na primavera passada, na Harvard Bu- expressões

JULHO 2020 - N.º 293 59


Digital

era para entrar em vigor a 1 de janeiro


de 2020.
O representante do Estado, Jaime
Andrade, coautor do diploma, fez cam-
panha a favor da transparência depois de
descobrir o número de candidaturas eli-
minadas neste tipo de entrevistas. Um dos
seus receios é que sotaques ou diferenças
culturais distorçam os resultados e que os
candidatos que recusem entrevistas pela
IA sejam automaticamente descartados.
“Como deve ser o funcionário-modelo?
Homem branco? Mulher branca? Alguém
que sorria muito? Quais são os dados uti-
lizados? É preciso explicar isto e é preciso
ter o consentimento dos entrevistados.”
O Washington Post falou com uma
dúzia de pessoas sujeitas a este tipo de
entrevistas, algumas das quais foram con-
tratadas. Contaram que acharam profun-
damente perturbador e desumanizador
ter de impressionar um computador antes
de serem considerados dignos de interesse
pela empresa. Também questionaram o
de um sobrolho franzido, por exemplo. a personalidade de um futuro empregado destino dado a estas gravações de vídeo.
Mas continua perigosamente imprecisa com base na entoação da voz ou na cons- Disseram ainda terem-se sentido des-
na interpretação dessas expressões. E trução de frases. Receia sistemas deste tipo, confortáveis por terem de responder,
ignora as imensas diferenças sociais e por serem capazes de gerar muitos dados sem qualquer explicação, aos pedidos
culturais entre indivíduos, bem como a que podem parecer convincentes, mesmo de uma IA. Alguns recusaram inclusi-
existência de diferentes formas de expres- que não sejam baseados na Ciência. Para vamente participar na entrevista. Houve
sar emoções e personalidades. Veja-se o ele, a aura dos números “é particularmente ainda quem se dedicasse a tentar des-
caso do sobrolho franzido. Como expli- preocupante” porque leva os empregadores cobrir a melhor forma de influenciar os
ca a neurologista, um computador pode a confiarem indevidamente nesses sistemas algoritmos. Viram vídeos e consultaram
interpretá-lo como provindo de alguém na hora de decidirem sobre as carreiras guias online – existem centenas – que
zangado e isso pode arruinar as hipóteses profissionais dos candidatos. aconselham, por exemplo, a sentar-se
de emprego num departamento de ven- em frente a um fundo branco para evi-
das. Contudo, os estudiosos sabem que Monocultura empresarial tar ser penalizado devido a um ambiente
as pessoas estão sempre a franzir a testa, Não há grandes dúvidas de que mesmo desarrumado. “Coloque uns olhos falsos
mesmo que não estejam zangadas. “Po- os sistemas de Inteligência Artificial mais em cima da câmara. Isso vai ajudá-lo a
dem fazê-lo quando estão concentradas, sofisticados têm dificuldade em decifrar as manter o contacto visual”, aconselha um
desorientadas ou orgulhosas.” intenções das pessoas. Luke Stark também utilizador no site Reddit.
Investigador no laboratório da Micro- receia que delegar a avaliação do valor Emma Rasiel, professora de Econo-
soft de Montreal, Like Stark, especialista na das pessoas nos computadores ajude a mia na Universidade de Duke, aconselha
relação entre IA e ética, concorda com Lisa perpetuar uma monocultura empresarial regularmente estudantes que querem ir
Feldman Barrett, nomeadamente nas dúvi- de farda, na qual os novos recrutas serão trabalhar para Wall Street. Descobriu que
das acerca da capacidade da HireVue avaliar clones dos anteriores. Loren Larsen ga- havia cada vez mais jovens a enervarem-
rante que a HireVue revê os seus modelos -se por serem confrontados com o dis-
de desempenho para detetar possíveis positivo da HireVue. De entre os apoios à
... práticas discriminatórias, a que chama candidatura disponibilizados na internet,
“impactos adversos”. Estes algoritmos o departamento de Economia disponibi-
O governador democrata são aperfeiçoados com recurso “à base liza um guia com perguntas-padrão (por
de Illinois, J.B. Pritzker, de dados de expressão facial mais rica e exemplo “para si, o que significa integri-
promulgou a primeira diversificada disponível, incluindo repre- dade?”) e conselhos comportamentais
sentantes de muitos países e culturas”. (“seja natural, fale devagar”). “Estamos
lei no país a exigir que A HireVue começa a enfrentar di- perante uma forma tão nova de comuni-
os empregadores digam ficuldades legais. Em agosto de 2019, o car e expressar quem somos que agrava
governador democrata de Illinois J.B. o nervosismo dos candidatos”, resume
aos candidatos como Pritzker promulgou uma lei – a primeira a professora. “Esta geração já é ansiosa e
funcionam as entrevistas no país – exigindo que os empregadores ainda pedimos aos jovens que falem para
de IA e obtenham o seu digam aos candidatos como funcionam as um ecrã de computador ou respondam a
entrevistas de IA e obtenham o consen- perguntas em frente a uma câmara. Com a
consentimento para serem timento deles para serem entrevistados. agravante de não lhes darmos instruções
entrevistados A medida, que a empresa disse apoiar, sobre como o fazer.”

60 JULHO 2020 - N.º 293


Um transportador de comida
da Yandex.Eda (equivalente
ao Uber Eats), na Praça Vermelha
de Moscovo
FOTO DE GETTY IMAGES

investidores estrangeiros tornou-se um


gigante das novas tecnologias avaliado em
muitos milhões. Isto não agrada necessa-
riamente ao Governo de Vladimir Putin.
Com milhões de dados de cidadãos russos
à sua disposição, o grupo representa um
poder que o Kremlin pretende manter
sob controlo.
Por volta de 1990, a Yandex ainda es-
tava muito longe do que é hoje. Fundada
por Arkadi Voloj e um amigo de escola, a
empresa apresentou o seu motor de busca,
um dos primeiros em alfabeto cirílico, em
1994. Os criadores não estavam a tentar
imitar o Google, uma vez que este ainda
não existia, conforme tem explicado Voloj
em várias entrevistas. A Yandex conti-
nuou a adicionar novos serviços e acabou
Rússia por chegar à bolsa nos Estados Unidos da
América em 2011. O grupo emprega agora

Yandex, o outro dez mil trabalhadores em nove países.


O pessoal inclui um grande número
de jovens com boa formação, muitos dos

gigante digital quais falam várias línguas. Quando fala-


mos com eles, rapidamente percebemos
quão orgulhosos estão do seu chefe. “É
quase como trabalhar em Silicon Valley”,
Começou como motor de busca e, posteriormente, diversificou-se confidenciou uma empregada. A Yan-
para os serviços digitais. A Yandex tornou-se indispensável dex instalou-se num grande complexo
na Rússia mas nem assim escapa aos atritos com o Kremlin de escritórios, no centro da metrópole,
não muito longe do rio Moscovo. A sede
tem uma fachada de vidro e aço, cores
brilhantes, paredes cobertas de plantas
SÜDDEUTSCHE ZEITUNG MUNIQUE e decoração extravagante no interior.
Há um ginásio e uma sala de ensaios.
Há também um pátio interior, onde os
funcionários se sentam ao sol e conversam
de tablet na mão.

Fazer frente à Uber


Os serviços desenvolvidos aqui são rá-
pidos e fiáveis. Na Yandex Taxi o cliente
reserva, a aplicação calcula a duração da
E Em Moscovo as distâncias
são grandes. Muitos preferem
completo o mercado e o mesmo se aplica
a muitos outros serviços digitais. O grupo
viagem e o preço e o pagamento é fei-
to por cartão de crédito ou dinheiro. A
usar o táxi em vez do metro, tornou-se inseparável da vida dos russos. Yandex Taxi já chegou aos mil milhões de
não obstante as composições cir- Para termos uma ideia da sua dimen- viagens; dois em cada três percursos de
cularem de 90 em 90 segundos durante são, a Yandex oferece serviços equiva- táxi em Moscovo são feitos através desta
o dia. A gasolina é barata e as viagens lentes aos da Google, Amazon, Netflix, aplicação. Conseguiu mesmo defender o
são mais confortáveis. Táxi em Moscovo Uber, PayPal, Lieferheld [agora Liefe- seu monopólio da Uber: a aplicação de
é geralmente sinónimo de Yandex Taxi. rando, serviço de entrega de comida], transporte dos EUA tinha-se aventura-
A aplicação Yandex domina quase por Car2go e Spotify combinados. Graças a do no país em 2017, mas rapidamente
se retirou, contentando-se com a aqui-
sição de ações da Yandex Taxi. Em vez
AUTORes DATA TRADUTORA dos anúncios pretos da Uber, os carros
F Paul Katzenberger, Valentin 30.11.2019 Ana Marques amarelos, vermelhos e brancos da Yandex
Dornis e Clara Lipkowski
continuam a dominar as ruas.

FOTO: GETTY IMAGES JULHO 2020 - N.º 293 61


Digital

permite deslocações mais eficientes em


Diversificação Moscovo do que o serviço de cartografia
Números dos negócios da Yandex, de Silicon Valley.
nove primeiros meses de 2019 No entanto, o Estado considera que
esta independência vai longe demais e
PUBLICIDADE ONLINE TÁXI que a golden share já não chega. Quanto
71 % E ENTREGA mais a Yandex invade a vida dos russos
DE COMIDA
AO com os seus produtos do dia a dia, mais é
DOMICÍLIO procurada nos mercados de capitais inter-
21 % nacionais e mais o Governo se preocupa,
porque a maioria dos direitos de voto po-
derá estar um dia em mãos estrangeiras.
O deputado Anton Gorelkine, do par-
OUTROS* tido pró-Kremlin Rússia Unida, propôs
8% uma medida drástica em julho de 2019:
proibir investidores estrangeiros de deter
mais de 20% do capital de empresas russas
123,69 mil milhões de rublos
(1,77 mil milhões de euros) de internet consideradas estratégicas. Na
Yandex, se nos cingirmos aos direitos de
* Comércio eletrónico, pequenos anúncios,
meios de comunicação… voto [dos acionistas], 43% destes estão já
FONTE: YANDEX em mãos estrangeiras, pelo que a empresa
excede claramente este limiar.
O grupo tem a reputação de ser rela- A Duma, câmara baixa do parlamen-
tivamente leal ao Kremlin. No entanto, to, aligeirou um pouco o texto no outo-
este não está satisfeito por haver uma no: os estrangeiros podem agora deter
maioria de acionistas estrangeiros e por a um máximo de 50% das ações, menos
sede estar oficialmente em Amesterdão. uma. Imediatamente, as ações da Yandex
O Governo esforça-se por reforçar o con- caíram 18 por cento. “Os investidores
trolo, muitas vezes citando a necessidade tiveram medo de ter de vender as suas
de proteger os dados dos utilizadores dos ações a um preço provavelmente muito
ataques do estrangeiro e, por consequên- desvantajoso”, explica Mikhail Terentiev
cia, “a segurança nacional”. da corretora de Moscovo, Sova Capital.
Bastaram algumas declarações do Pre-
sidente russo e o anúncio de um projeto- Interesses nacionais
-lei de regulação das empresas de internet Arkadi Voloj tentou mudar o rumo das
para o preço das ações cair. A cotação caiu coisas. E conseguiu negociar um com-
temporariamente 20% em 2014, quando promisso que satisfizesse as três partes:
Vladimir Putin chamou à internet “um a gestão da empresa, os investidores e o
projeto da CIA” e acusou a Yandex de ter Estado. Em novembro de 2019, assumiu
ligações a serviços secretos estrangeiros. vários compromissos no sentido de im-
No entanto, embora tenha liminarmente pedir o capital estrangeiro de assumir o
desmantelado o grupo petrolífero Yukos, controlo do grupo e, por conseguinte, esta
de Mikhail Khodorkovsky, o Kremlin não manteve-se em mãos nacionais. Primei-
teve até agora mão demasiado pesada em ro, Voloj só poderia vender 5% das ações
relação ao Yandex. em carteira durante dois anos. Depois,
Aos 55 anos, Arkadi Voloj continua a os restantes 95% ficariam imobilizados
liderar o grupo e tornou-se bilionário. durante dois anos numa fundação, para
Foi obrigado a fazer algumas concessões que nada mudasse se ele morresse.
para impedir que a Yandex fosse nacio-
nalizada ou adquirida por investidores ...
próximos do Kremlin. Em 2009, por
exemplo, concedeu uma participação A reestruturação
específica, ou golden share, ao banco da Yandex abre a
público Sberbank, o que permite a este
opor-se à venda de mais de 25% do capi- possibilidade de o Estado
tal. “Na verdade, isso é uma coisa boa pois intervir mais na política
garante a nossa independência”, explica
um empregado. Ninguém no grupo faz
comercial de um grupo
declarações abertamente políticas, mas bem cotado no panorama
uma coisa é certa: são seguros de si quando internacional. No entanto,
comparam o seu produto com os concor-
rentes norte-americanos. Um exemplo
foi bem recebida pela bolsa
frequentemente citado: o Yandex Maps de valores

62 JULHO 2020 - N.º 293


N Ú M E RO

43%
Esta é a quota de mercado do motor
de busca Yandex na Rússia, segundo
as estatísticas do site Statcounter. O
Google está em primeiro lugar, com
53,5% das consultas. Em comparação,
na Alemanha, o motor de busca dos
EUA detém 95% do mercado e, em
França, mais de 92 por cento.

Mas não é tudo. Um novo regulador


assegurará a proteção dos interesses na-
cionais. Denominado “Fundação para o
Interesse Nacional”, será composto por
três membros do conselho de admi-
nistração da Yandex, incluindo Arkadi
Voloj, e representantes da confederação
empresarial russa, institutos de investi-
gação privados e universidades públicas.
O Kremlin participará, portanto, indi-
retamente nas decisões do grupo. Esta
fundação vai ter grande poder. Terá uma
golden share, direito de veto e, eventual-
mente, possibilidade de destituir o chefe
da Yandex Rússia.
É normal um país querer proteger
as suas empresas mais importantes de
uma aquisição externa. Na Alemanha,
por exemplo, o ministro da Economia,
Peter Altmaier, quer reforçar a exigência
de reportar compras estrangeiras de gran-
des pacotes de ações, mas a proibição de
compra deve continuar a ser excecional.
A reestruturação da Yandex abre a
possibilidade de o Estado intervir mais
na política comercial de um grupo bem
cotado no panorama internacional. No
entanto, foi bem recebida pela bolsa de
valores, onde o preço das ações da Yandex
subiu claramente. “De todas as medidas
possíveis, acabou por ser a melhor so-
lução”, afirma Viktor Dima da corretora
Aton. “A nacionalização ou um limite do
número de ações por investidor teriam
assustado os investidores internacionais.”
Ao reforçar o seu controlo, o Kremlin
irá realmente proteger melhor os dados
dos utilizadores russos da Yandex? É
duvidoso. Especialmente porque o pro-
grama de vigilância do Sorm [sistema de
atividade de investigação operacional],
ligado ao Serviço Federal de Segurança da
Arkady Volozh, CEO da Yandex, guiou Vladimir Putin Federação Russa (FSB, sucessor do KGB,
numa visita à sede da empresa, em Moscovo serviços secretos russos), há anos que
FOTO DE GETTY IMAGES vasculha o tráfego de internet no país.

JULHO 2020 - N.º 293 63


DIREITOSHUMANOS
UM MURO (NUNCA)
DETÉM OS SONHOS
UMA VIAGEM À FRONTEIRA
ENTRE OS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA E O MÉXICO
PEDRO A. NETO DIRETOR EXECUTIVO DA AMNISTIA INTERNACIONAL PORTUGAL
Direitos Humanos

“A liberdade de sonhar dá-nos os EUA e o México corre no deserto de


asas para voar e atravessar muros.” forma retilínea e convencionada entre
os dois países, desde meados do século
É uma frase pintada numa das traves do XIX, quando, em diferentes processos,
muro de ferro que separa os Estados Uni- o Tratado de Guadalupe Hidalgo tornou
dos da América (EUA) e o México, entre os territórios do atual estado do Texas e
as cidades vizinhas de Tijuana e de San da Califórnia como parte dos EUA. Sem
Diego, cada uma no seu lado da fronteira. nenhuma característica geográfica dig-
No início de março de 2020, li-a numa das na de distinção, de um lado ou de outro,
centenas de milhares de barras de ferro que são territórios iguais. Do lado do México,
saem da terra em direção ao céu. Foi num os estados de Chihuahua, Sonora e Baja
tempo em que a primavera já começava a Califórnia têm muito de semelhante com
dar um ar da sua graça e a vida recomeçava as zonas fronteiriças a norte do Texas, do
na vontade de florescer, convidando ao ar Novo México, do Arizona e da Califór-
livre e ao sol ainda tímido e fresco, mesmo nia, respetivamente. Não é uma fronteira
antes da pandemia nos atropelar a todos. geográfica. De Tijuana e San Diego, junto
A uns mais do que outros. ao oceano Pacífico, até El Paso e Ciudad
A fronteira é visível por um longo e Juarez, a fronteira são dois ou três riscos
alto muro que interrompe tudo. Vem de passados a régua e esquadro por cima de
leste a perder de vista e entra mar adentro. um mapa. Só a partir daí corre com o rio
Termina no Pacífico, como se este mar, Grande, que separa estas terras maiori-
fazendo jus ao nome que lhe deu Maga- tariamente secas e iguais, até chegar ao
lhães, não permitisse divisões e discórdia Golfo do México.
beligerantes, não dando espaço a muros Em 2018, houve ampla cobertura me-
dentro dele. Mais do que separação, o mar diática a uma caravana humana de famílias
quer ser ponte. provenientes de vários países da América
O muro começou a ser construído nos Central, que caminharam centenas de mi-
anos 90, durante a administração Clinton. lhares de quilómetros desde as Honduras
Nalguns sítios chegam a ser três os muros e El Salvador, atravessando a Guatemala,
que correm mais ou menos paralelos. Na até ao México. Numa longa caminhada a
sua tarefa são apoiados por outros siste- pé rumo a norte, levavam apenas alguns
mas de divisão ou defesa – conforme o dos seus haveres. Estas pessoas queriam
entendimento de cada um. Junto com o chegar ao México, mas também, e sobre-
muro, quilómetros e quilómetros de ara- tudo, aos EUA, país com longa tradição
me farpado enrolado, sistemas tecnoló- de garantia de direitos fundamentais a
gicos avançadíssimos de videovigilância quem busca proteção da perseguição e
e deteção de movimento, alta iluminação das ameaças à vida.
durante a noite e largas centenas de sol-
dados, agentes e polícia fronteiriça que Tanto em comum com os migrantes
percorrem continuamente estradas de portugueses
asfalto ou terra batida nos seus poten- Portugal beneficiou deste acolhimento. Em
tes veículos equipados com armamento 2016, conheci Kerry Kennedy, sobrinha
bélico. A maior parte da fronteira entre de John F. Kennedy, durante trabalhos

66 JULHO 2020 - N.º 293


...
A fronteira é visível por
um longo e alto muro
que interrompe tudo.
Vem de leste a perder de
vista e entra mar adentro.
Termina no Pacífico,
como se este mar, fazendo
jus ao nome que lhe deu
Magalhães, não permitisse
divisões e discórdias
beligerantes, não dando
espaço a muros
dentro dele

Não é uma fronteira


geográfica. De Tijuana
e San Diego, junto ao
oceano Pacífico, até
El Paso e Ciudad Juarez,
a fronteira são dois ou três
riscos passados a régua
e esquadro por cima
de um mapa

JULHO 2020 - N.º 293 67


Direitos Humanos

sobre educação para os Direitos Humanos. quase todos podemos compreender a an-
Confidenciou-me algumas memórias de gústia destas famílias da caravana humana
infância, em que se lembra de ver o tio assi- que, desde a América Central, caminhava
nar milhares de autorizações de residência à procura de asilo e proteção, de trabalho e
a portugueses. É conhecida a lei de 1958 dignidade. Desde então não ouvimos falar
que abre portas aos vistos para portugueses mais destas pessoas.
sem estarem condicionados a nenhum tipo As vozes com discursos de fazer medo,
de quota máxima. É conhecido também o transformados em ódio a migrantes e re-
reconhecimento desse tempo, por parte fugiados, espantam-me. Donald Trump,
do Congresso americano, do contributo profissional a culpar outros de tudo,
das comunidades luso-americanas para investiu nisto como investe sempre na
com os EUA. promessa de violência. A estas famílias
Alguns anos depois, também a história vociferou que, caso tentassem entrar nos
da minha família se cruzou com este país, EUA, lhes mandava o Exército. Além dis-
quando o meu avô materno se juntou ao so, reforçou as fronteiras com forças de
irmão na Califórnia, fugindo da pobreza segurança bem armadas e continuou com
e miséria a que estavam condenados no o discurso de 2016, em que candidato a
Portugal rural e fechado de então. Uma Presidente, prometeu mais muros, e pagos
das versões que me chegou foi a de que pelo México, para que ninguém entrasse.
o meu tio-avô foi primeiro para o Brasil, Donald Trump – filho de uma mulher mi-
procurando trabalho para sustentar a fa- grante e empresário, como tantos outros
mília e os irmãos, entretanto órfãos. De lá, que beneficiam de mão de obra migrante
conta-se que seguiu para os EUA escondido a um custo muito inferior e com salários
dentro de um barril, a bordo de um navio. em média baixíssimos – nunca teve dú-
Esta última parte não é mais do que um vidas em atacar os que em circunstância
mito e dessa condição não sairá, pois não a de maior vulnerabilidade não se podem
conseguirei já comprovar. Ao meu tio-avô, defender. A Amnistia Internacional tem
juntou-se-lhe o meu avô, depois de migrar documentado este padrão e, paralela-
para os arredores de Lisboa para trabalhar mente, denunciado a campanha ilegal e
nas quintas da Companhia Portuguesa de discriminatória de intimidação, ameaças,
Amidos. Assentaram na Califórnia para perseguição e investigações criminais da
trabalhar nos extensos campos de agro- sua administração contra pessoas que de-
pecuária. Foram vaqueiros sem o glamour fendem os Direitos Humanos na fronteira
que os westerns nos pintaram, trabalhavam com o México. Em alguns casos, apenas
muito e escreviam para Portugal, mandan- por oferecerem água, comida ou abrigo
do o que podiam. Mas também lá o trabalho às pessoas.
escasseou, a certa altura.
O meu tio-avô ficou a gerir um mini- Tijuana – a cidade onde começa a pátria
mercado perto da cidade de Sacramento. Cheguei à Califórnia para participar em
O meu avô rumou para leste, para o estado reuniões e eventos de trabalho, bem como
de Pensilvânia, onde foi trabalhar numa numa missão de reconhecimento em bus-
fábrica de fibrocimento – o amianto, que ca daqueles milhares de pessoas que, em
hoje sabemos tão prejudicial à saúde – que 2018, não conseguiram entrar nos EUA.
ia abrir perto de Filadélfia. Ao seu encontro Que destino tiveram as famílias separadas
seguiram a esposa, os filhos, as noras e os nos centros de detenção e que o mundo
genros. E é esta a história de busca por mediático tão depressa esqueceu?
uma vida melhor que me coloca a nascer Com chuva e vento forte, a aterragem
nos EUA e a garantir-me um passaporte em Los Angeles, à noite, não foi ligeira.
americano e, fruto do trabalho dos meus Cansado, faltavam ainda algumas horas
pais, a garantir-me escola e educação. de carro até chegar ao destino final. San
Somos tantos em Portugal com uma Diego fica perto da fronteira com o Mé-
história tão semelhante. Uma história de xico. É a última grande cidade america-
diáspora, de saída e saudade à procura de na, conhecida pela tranquilidade e pelo
uma vida mais digna e de menos fome. Indo espírito laid back de aproveitar a vida, o
às fronteiras da nossa memória familiar, sol e as ondas. Alguns quilómetros a sul

68 JULHO 2020 - N.º 293


...
Indo às fronteiras da
nossa memória familiar,
quase todos podemos
compreender a angústia
destas famílias da
caravana humana que,
desde a América Central,
caminhava à procura
de asilo e proteção, de
trabalho e dignidade

As vozes com discursos de


fazer medo, transformados
em ódio a migrantes e
refugiados, espantam-
me. Donald Trump,
profissional a culpar
outros de tudo, investiu
nisto como investe sempre
na promessa de violência

O controlo fronteiriço
dos EUA para o México
permite uma passagem rápida.
O contrário já não, com filas
enormes de carros para
revistar e pessoas a pé

As pessoas habituaram-se
ao monstro de ferro.
Tiravam-lhe fotografias com a
sua melhor roupa de domingo.
As crianças mais pequenas até
o atravessavam para verem
mais nada do que terra desolada
do outro lado, regressando
depois para o gelado da tarde

JULHO 2020 - N.º 293 69


Direitos Humanos

fica a comunidade de San Ysidro, cidade onde pôde, estendendo-se por quilómetros
mais pequena e de muito comércio, como numa enorme mancha de chapa cinzenta
qualquer fronteira habitada. Separa-a dos – os telhados das barracas onde famílias
muros da fronteira o parque natural do se aglomeram e vivem.
rio Tijuana, rico em diversidade, mas terra A caravana está aqui. Parou. Muitos
vazia como convém, para que ninguém tiveram sorte e conseguiram ficar, não
por ela passe despercebido. Nesta faixa tendo sido deportados para os países de
desabitada, foram famosos os túneis por origem. Reconstruiram a vida em bar-
onde entrava no país o álcool traficado por racas, sem eletricidade, sem água, sem
Al Capone, no tempo da Lei Seca. condições de isolamento. Reconstruiram
Fica aí, em San Ysidro, um dos cen- a vida em trabalhos pobres, em bancas de
tros de detenção. Edifício de rés do chão, rua, sobrevivendo do trabalho do dia a
onde não se pode entrar ou parar perto. dia, da venda ambulante a quem passeia
Ladeiam-no centenas de metros de arame pelas praias da cidade e tira fotografias
farpado. Entre muitas outras famílias de- junto ao muro.
tidas e separadas, crianças para um lado, O controlo fronteiriço dos EUA para
adultos para outro, recordo a história de o México permite uma passagem rápida.
uma mulher que fugiu das Honduras e se O contrário já não, com filas enormes de
juntou à caravana com os seus filhos pe- carros para revistar e pessoas a pé. Apesar
quenos. Na sua terra natal, possuía uma de tudo, o passaporte americano dava-me
pequena loja onde cozinhava alguns ali- o privilégio de passar pelo aparato sem
mentos, que vendia na rua. O seu bairro muitas questões. “Bem-vindo a casa, se-
era controlado por gangues aos quais tinha nhor”, disse-me o guarda fronteiriço com
de pagar por segurança. Desde que o fi- um sorriso. Em Tijuana, o muro faz-se
zesse, ela e todas as pessoas em situação presente e todo ele cheio de arte, con-
semelhante estariam protegidas. tando histórias com as imensas pinturas
Com o avolumar dos problemas eco- que o percorrem, desde os nomes dos que
nómicos e das pobres condições de vida, morreram a tentar atravessar aos sonhos
deixou de conseguir pagar. E assim chegou dos jovens e artistas que lhe deram cor e o
a insegurança do cobrador. O gangue pro- imortalizaram para a vida. Humanizou-se
tetor era afinal a ameaça, que não tardou pela arte, em larga extensão pintado com
em fazer-se sentir com violência e sinais as mais diversas mensagens e imagens de
de intimidação. Não conseguindo mais, união e paz que lhe contradizem a missão.
arrumou alguns haveres e meteu-se a ca- As pessoas habituaram-se ao monstro
minho com as crianças. A cidade frontei- de ferro. Tiravam-lhe fotografias com a
riça de Tijuana seria o ponto de passagem sua melhor roupa de domingo. As crianças
para a liberdade. mais pequenas até o atravessavam para
Na caravana humana juntou-se a ou- verem mais nada do que terra desolada
tras famílias de tantos lugares diferentes do outro lado, regressando depois para o
também com crianças, idosos, pessoas de gelado da tarde. Pareceram-me felizes as
mobilidade reduzida. Do lugar que tinha famílias na praia. Pareceram-me distan-
por seu de nascença, fugiu com quase nada, tes as vendedoras ambulantes, cansadas
à procura de dignidade de vida. Ao chegar de pés calejados. Foram elas que por ali
a Tijuana, e tentando passar a fronteira, ficaram quando esperavam trabalho e
foi detida e os seus filhos foram separa- vida digna do outro lado, como tiveram
dos dela. tantos migrantes portugueses espalhados
Dois anos depois, entretanto libertada por esse mundo.
e devolvida ao México, correu o risco de
ser deportada para as Honduras, onde teria Newton dizia que “construímos
a vida em risco. Ficou em Tijuana, onde muros de mais e pontes de menos”.
vive agora, fazendo o mesmo que fazia: É preciso resistir-lhes, insistindo
vende numa pequena banca de rua. para que “a liberdade de sonhar nos
Tijuana é a cidade mexicana mais perto dê asas para voar e os atravessar”.
do mar e mais a norte do país. Colada ao Foi o muro que o disse. Tem razão.
muro que entra mar adentro, cresceu para

70 JULHO 2020 - N.º 293


Autor

Pedro A. Neto
DIRETOR-EXECUTIVO DA AMNISTIA
INTERNACIONAL – PORTUGAL
Tem um mestrado em Gestão
e Administração Pública, tendo desenvolvido
estudos na área da Governação e dos Direitos
Humanos, pela Universidade de Aveiro.
Prosseguiu na mesma universidade
como doutorando em Políticas Públicas,
dedicando-se à investigação em liderança
comunitária e direitos humanos. Ciclo
de estudos ainda não concluído.
Licenciou-se em História, variante de
Arqueologia, na Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa, tendo-se pós-
-graduado em Ciências da Educação, pela
Universidade Católica Portuguesa, em
Ciências Religiosas, pelo Instituto Superior de
Ciências Religiosas de Aveiro, e em Direitos
Humanos, pela Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra. Mais recentemente
concluiu um programa de estudos avançados
em Data Analysis for Management, na LSE
– London School of Economics and Political
Science, com a convicção de que hoje, mais
do que nunca, mais do que perceções vagas
precisamos de informação, dados e factos
que nos alicercem a decisões que tomamos
na sociedade e nas nossas comunidades
e instituições face à Humanidade.
Foi um dos fundadores e presidente-
-executivo da ONGD ORBIS – Cooperação
e Desenvolvimento, em Aveiro, onde levou a
cabo projetos de desenvolvimento nos PALOP
e no Brasil. Foi diretor-adjunto do CUFC
– Centro Universitário Fé e Cultura, na diocese
e Universidade de Aveiro.
Foi também docente no Instituto Superior
de Ciências Religiosas de Aveiro e docente
do Ensino Secundário público.
Desenvolveu várias missões de voluntariado,
desde 2004: no Interior de Angola, onde
trabalhou num campo de refugiados do
ACNUR, e, depois, em Moçambique,
Guiné-Bissau, Cabo Verde, na Amazónia
e em Marrocos, com projetos de capacitação
e de desenvolvimento comunitário.
Exerce as funções de diretor-executivo da
Amnistia Internacional em Portugal,
desde 2 de maio de 2016.
É treinador de futebol com credencial de nível
II e UEFA B, sendo exímio a usar metáforas
das táticas futebolísticas na defesa dos direitos
humanos. Passou pelas escolas de futebol
do S.L. Benfica em Aveiro, pelo Sport Clube
Beira-Mar e pelo Estoril Praia.
É luso-americano, nascido em Filadélfia
e com raízes e coração em Aveiro, calcorreou
mundo pela África lusófona até à Amazónia
e sonha um dia poder surfar as ondas
de todos os mares.

JULHO 2020 - N.º 293 71


MARINHEIROS
PRISIONEIROS
DOS MARES
HÁ QUASE UM MILHÃO DE PESSOAS A TRABALHAR PARA A MARINHA MERCANTE EM
TODO O MUNDO. DESDE O INÍCIO DA PANDEMIA, AS TRIPULAÇÕES DOS NAVIOS TÊM SIDO
OBRIGADAS A PERMANECER EM SERVIÇO PARA LÁ DOS TERMOS DOS SEUS CONTRATOS.
CANSADOS, SOBRECARREGADOS, ESTES ATORES INDISPENSÁVEIS DA GLOBALIZAÇÃO
SENTEM-SE ESQUECIDOS

SOUTH CHINA MORNING POST HONG KONG


Reportagem

Q
Quando embarcou no petroleiro China Kannan e a sua tripulação descobriram
Dawn, em 1 de dezembro de 2019, o capi- que nenhum deles estava a usar máscara
tão Bejoy Kannan esperava uma navegação nem a respeitar as medidas de distan-
semelhante à que conheceu em 25 anos ciamento. O capitão foi inflexível: fora
de mar. Ia trabalhar arduamente, seguir a de questão deixar alguém subir a bordo.
rota planeada e, provavelmente, regres- Contactou a sociedade gestora do navio
saria a casa antes do fim do seu contrato – uma decisão corajosa: fretar um petro-
de quatro meses. Mas, devido às restrições leiro custa várias dezenas de milhares de
causadas pela crise do coronavírus, “sete dólares por dia, e cada hora que passa são
de nós estamos a trabalhar além do prazo lucros perdidos. Felizmente, a Wallem
original do nosso contrato”, conta, por Group faz parte das companhias de fre-
telefone, a partir do seu petroleiro em tamento mais compreensivas: a empresa
pleno Atlântico Sul. “Estamos retidos no negociou para permitir que apenas oito
mar, prisioneiros do oceano.” estivadores subissem a bordo, e com
Depois de terem partido da Austrália, máscaras e luvas. média de 22 pessoas por barco. São mais
em meados de março, Kannan e a sua Bejoy Kennan, que tem uma família a de um milhão de trabalhadores que trans-
tripulação de seis seguiram para a África seu cargo na Índia, sente-se impotente, portam 90% dos bens que vão encher
do Sul, onde deveriam chegar para serem incapaz de proteger os pais. Na sua tri- as prateleiras das lojas do planeta. Estes
revezados e apanhar um avião para casa. pulação, também os marinheiros estão homens (e mulheres, em muito menor
Quatro dias antes da chegada prevista do preocupados com os entes queridos, e grau) continuam a trabalhar sete dias por
China Dawn a Port Elizabeth, o capitão o capitão faz o seu melhor para os tran- semana durante esta pandemia e tiveram
soube que a África do Sul tinha fechado quilizar e animar. os seus contratos prorrogados por não
os seus portos aos marinheiros. Três dias A caminho de Singapura, Kannan terem conseguido desembarcar em terra.
depois, foi o seu país natal, a Índia, que planeia um desvio em direção à Índia, “Todos saúdam o heroísmo e os esfor-
entrou em confinamento e todos os voos para permitir que os cidadãos indianos ços excecionais dos cuidadores”, afirma
foram cancelados. “Não temos nenhum desembarquem. Se o desembarque não Bjorn Hojgaard, presidente da Anglo-Eas-
sítio para ir, lamenta. A companhia está for permitido, “em breve chegaremos à tern Univan, um grupo de gestão marítima
a fazer tudo o que pode para nos tentar fase em que teremos de entrar em gre- de Hong Kong que conta com cerca de
libertar, mas quando seremos revezados, ve”, adverte. “Quanto tempo podemos 600 navios. “Mas, com o coronavírus, a
onde iremos desembarcar?” aguentar isto? As pessoas querem que
A pressão não para de aumentar. De as mercadorias circulem, mas ninguém
Port Elizabeth, o petroleiro dirigiu-se se preocupa com os marinheiros. Todos
para o Brasil, onde estava previsto um falam dos médicos, dos exércitos, dos po- ...
carregamento, o que suscitava uma ou- lícias. Ninguém sabe que nós existimos.”
tra preocupação – como sabemos que Existem em todo o mundo mais de As dificuldades podem
os trabalhadores portuários não têm o 50 mil navios mercantes, 5 150 dos quais
coronavírus? Do convés do navio, Bejoy porta-contentores, com uma tripulação
aumentar rapidamente no
ambiente à porta fechada
de um navio, levando
AUTORA DATA TRADUTORA
F Kate Whitehead 02.04.2020 Helena Araújo a casos de depressão
e de ataques de ansiedade

74 JULHO 2020 - N.º 293


...
“Quanto tempo podemos
aguentar isto? As
pessoas querem que as
mercadorias circulem,
mas ninguém se preocupa
com os marinheiros. Todos
falam dos médicos, dos
exércitos, dos polícias.
Ninguém sabe que nós
existimos”

contaminação, recusou-se a permitir a


presença de oficiais de Singapura a bordo.
O capitão Rajnish Shah defendeu a
tripulação, exigindo que a sua saúde não
viesse antes dos lucros. Antes da chegada
do Tomini Destiny ao porto de Chitta-
gong, no Bangladesh, Shah tinha combi-
nado com o armador que o carregamento
fosse efetuado por máquinas para evitar a
intervenção dos trabalhadores portuários.
Mas, quando o navio chegou ao porto, no
final de março, nada tinha sido organi-
zado e 60 trabalhadores locais pediram
Um marinheiro trabalha muitas para subir a bordo. “Numa situação de
substituição dos marinheiros não está a vezes da meia-noite às quatro pandemia, isto não era aceitável, porque
ser feita, ou está apenas a acontecer de da manhã, faz oito horas de pausa o risco de contaminação da tripulação
forma muito limitada.” e depois regressa ao trabalho era enorme”, diz Rajnish Shah. “O Ban-
Na marinha mercante, os contratos FOTO DE GETTY IMAGES gladesh também estava em contenção.”
são assinados por um período de quatro Seguiu-se um bloqueio de uma sema-
a nove meses, dependendo da patente. A na. Shah contactou a ONG Human Rights
Anglo-Eastern conta com cerca de 15 mil at Sea [Direitos Humanos no Mar] para
marinheiros no mar e, se as restrições de to, 20% deles disseram ter considerado pedir uma melhor proteção para a sua
viagem se mantiverem, o seu presidente suicídio ou automutilação, 25% sofriam tripulação durante as operações portuá-
estima que 23% deles terão os contratos de depressão e 17% tinham ataques de rias. A sua determinação teceu os seus
prorrogados até ao final do mês [de maio]. ansiedade. Entre os principais fatores: frutos e, a 6 de abril, foram distribuídos
O prolongamento dos contratos e a violência e assédio, falta de satisfação no equipamentos de proteção individual e os
incerteza em torno do coronavírus são trabalho e sensação de não ser valorizado. trabalhadores locais puderam ser equi-
fontes de stresse para a saúde mental pados para descarregar a mercadoria.
das tripulações. “A longo prazo, se as Proteção e medo Este incidente marcou um ponto de
pessoas não puderem ir para casa, aca- “Com o coronavírus, o stresse aumen- viragem na pandemia: um comandante
barão por ficar esgotadas e incapazes de tou ainda mais: as pessoas têm medo de de navio usando a sua autoridade como
fazer o seu trabalho”, explica Hojgaard. apanhar a doença, preocupam-se com a comandante (ao abrigo do Código Inter-
“Quanto mais tempo isto durar, mais a família em casa, têm medo de serem con- nacional de Gestão da Segurança) para
pressão se acumulará e, a dada altura, taminadas por pessoas em terra quando defender os interesses da sua tripulação
poderá explodir.” chegam ao porto”, explica Frank Coles, e colocar-se em conflito direto com os
O setor do transporte marítimo está diretor-geral do Wallem Group. Coles interesses dos proprietários! “Sou capitão
cada vez mais consciente das questões de conta a história de um capitão chinês que de navio há 16 anos e esta é a primeira
saúde mental. Um estudo da Universidade queria desembarcar num porto chinês e vez que tenho de usar a minha autorida-
de Yale, publicado em outubro de 2019, ameaçou livrar-se da sua mercadoria se de junto dos armadores para proteger a
interrogou 1 572 membros de tripulações não pudesse voltar para casa. Finalmen- minha tripulação”, conta Shah. “Os ar-
de diferentes postos em todo o mundo: te, concordou em partir. Outro capitão, madores veem os seus interesses em jogo,
nas duas semanas anteriores ao inquéri- querendo proteger a sua tripulação da cada dia de atraso custa-lhes dinheiro.

JULHO 2020 - N.º 293 75


Reportagem

Mas o mundo inteiro está em tumulto.


É lamentável que a saúde da tripulação
esteja a ser sacrificada em nome do lucro.
Era necessário que alguém a defendesse.”
“É raro os capitães tomem estas posi-
ções porque podem ser colocados na lista
negra. Mas os capitães fazem cada vez
mais ouvir a sua voz e apelam a organi-
zações como a nossa para que defendam
os seus direitos. O capitão não protege
apenas a sua tripulação, ele protege a se-
gurança das vias marítimas do mundo”,
explica David Hammond, fundador dos
Human Rights at Sea. Esta organização
criou grupos de WhatsApp para manter o
contato com os membros da tripulação,
independentemente da sua posição hie-
rárquica. Desde 22 de março, a procura de
equipamento de proteção nestes canais
informais aumentou significativamente,
bem como a informação sobre licenças
por doença.
Kishore Rajvanshy é o diretor-geral
da Fleet Management de Hong Kong, que
gere cerca de 520 navios. Anteriormente,
tinha feito carreira como engenheiro-
-chefe. “Não saber quanto tempo isto
vai durar não me deixa dormir”, diz Ra-
jvanshy. Para o pessoal a bordo, não faz
mal um ou dois meses [de prorrogação
do contrato], mas teremos de encontrar
uma forma de os levar para casa.”A Fleet
Management está a proporcionar aos tri-
pulantes cujos contratos são prolongados
um aumento salarial de 25%, bem como
um pacote diário de dados móveis maior confidencialidade é a pedra angular da regressa ao trabalho do meio-dia às 16
para os manter em contacto com as suas relação terapêutica, mas frequentemente horas – um ritmo que, mantido sete dias
famílias. os marinheiros só têm o espaço comum por semana durante seis a nove meses,
Há cinco meses, a empresa criou a para acompanhar a sessão pelo telefone, não está isento de consequências. Du-
Fleet Care, dedicada à saúde dos seus e é necessária a intervenção do capitão rante um período de tempo mais longo,
marinheiros, e no dia 23 de março, com para pedir aos outros que deixem a sala. as tensões aumentam.
o apoio da Sailors’ Society, lançou uma As dificuldades podem aumentar rapi- A organização de caridade cristã The
linha telefónica de apoio 24 horas por damente no ambiente à porta fechada de Mission to Seafarers [A Missão para os
dia, 7 dias por semana, que oferece um um navio. Rina Mathew sugere por isso, Marinheiros] ajuda as tripulações da
serviço confidencial de aconselhamento em geral, uma sessão de quatro em quatro marinha mercante em todo o mundo.
e apoio. “Um grande número de pessoas dias, em vez de uma vez por semana, e Presente em Hong Kong desde 1863, ofe-
já ligou, cerca de 25 numa semana”, diz o assegura um acompanhamento através rece um serviço de assistência aos mari-
capitão Randhir Mahadik, chefe da Fleet do envio de material psicopedagógico.
Care, que está sediada em Bombaim. “As A maioria dos seus pacientes sofre de
nossas tripulações são multilingues, pelo depressão ou de ataques de ansiedade, ...
que este apoio psicológico está disponí- por vezes ambos, patologias exacerba-
vel em mandarim, tagalo, muitas línguas das por um sentimento de isolamento e “Os armadores veem
indianas e outras.” saudades de casa. “Quando se trabalha os seus interesses em
Rini Mathew, psicóloga a tempo intei- continuamente durante um longo perío-
ro da Fleet Care, explica que quando diz do de tempo, pode desenvolver-se uma jogo e cada dia de atraso
aos colegas que trabalha com marinheiros, síndrome de fadiga crónica”, diz, “e com custa-lhes dinheiro. Mas
eles normalmente ficam surpreendidos. ela, os acidentes”.
Ignoram todo o tipo de problemas com Quanto mais tempo dura a pande-
é lamentável que a saúde
que os tripulantes podem ser confron- mia, quanto mais prolongados são os da tripulação esteja a ser
tados. Ela propõe sessões individuais contratos, mais se agrava este cansaço. sacrificada em nome do
às equipas da Fleet Management, mas Por exemplo, um marinheiro trabalha
uma terapia à distância é, por vezes, muitas vezes da meia-noite às quatro da lucro”, queixa-se um
complicada de estabelecer na prática. A manhã, faz oito horas de pausa e depois capitão de navio

76 JULHO 2020 - N.º 293


...
Existem no mundo
mais de 50 mil navios
mercantes, 5 150 dos quais
porta-contentores, com
uma tripulação média
de 22 pessoas por barco.
São mais de um milhão
de trabalhadores que
transportam 90% dos bens
que enchem as prateleiras
das lojas do planeta

nheiros que estão de passagem nas suas Com os portos fechados e os voos a esta experiência, estaremos mais bem
instalações: receção, ajuda psicológica, cancelados, milhares de marinheiros preparados na próxima vez.”
aconselhamento jurídico. O reverendo ficaram presos dentro dos navios Para David Hammond da Human Ri-
Stephen Miller, diretor regional da missão FOTO DE GETTY IMAGES ghts at Sea, a solução está em “platafor-
na Ásia Oriental, acredita que “se existe mas portuárias internacionais fechadas”,
uma Convenção do Trabalho Marítimo, onde terão lugar, com toda a segurança,
é porque quando se trabalha por turnos um pouco de calor e de conforto”, conta os carregamentos e as descargas, permi-
sete dias por semana durante mais de um Miller. tindo a manutenção das trocas comerciais.
ano, fica-se cansado, sofre-se de hipe- Para Tim Huxley, presidente da com- “As pessoas precisam de compreender
restimulação sensorial e acaba por haver panhia de Hong Kong Mandarin Shipping, que estamos a falar de 1,4 a 1,6 milhões
baixas. É aí que acontecem os acidentes: os marinheiros devem ser considerados de trabalhadores que são responsáveis
colisões no mar, acidentes a bordo, tudo trabalhadores essenciais, e deve ser en- pelo transporte de 90% dos bens ven-
o que acontece quando os marinheiros contrado um acordo que lhes permita didos neste planeta”, insiste. “Para que
estão cansados”. embarcar e desembarcar. “Isto pressu- isto continue, temos de ajudar estes tra-
põe que organizemos uma concertação e balhadores.”
Trabalhadores essenciais uma colaboração entre todos os atores do “Ninguém entraria num avião sabendo
Devido às restrições impostas pelo coro- setor: a Organização Marítima Internaci- que o piloto não sai de lá há séculos”,
navírus, os voluntários da The Mission to onal – uma instituição das Nações Unidas nota Frank Coles, diretor-geral do Wallem
Seafarers já não podem entrar nos navios –, os Estados de bandeira [que registam Group. “Mas não temos qualquer proble-
em Hong Kong, pelo que têm de se dirigir os navios], os serviços de imigração e os ma com os marinheiros que permanecem
à ponte do terminal de contentores do serviços de saúde das autoridades por- no mar meses seguidos.”
Kwai Chung, com máscaras, para levar tuárias. Uma verdadeira revolução para “Para que o transporte marítimo so-
jornais, artigos de higiene pessoal, lan- a marinha mercante.” breviva, é preciso que nos deixem de-
ches e recursos de relaxamento, tais como “Esta epidemia é uma oportunidade sembarcar e regressar a casa”, implorou
gravações de jogos de futebol. “Quando para iniciarmos mudanças e para imple- o capitão Kannan. “Não pensem apenas
podemos fornecer-lhes lanches dos seus mentarmos procedimentos sobre os quais nos benefícios do metal sonante, pensem
países de origem, muitas vezes da Índia nos possamos apoiar no futuro, porque em nós. Estamos cansados, estamos de-
ou das Filipinas, isso traz [às tripulações] esta situação vai voltar a acontecer. Graças primidos: deixem-nos voltar a casa.”

JULHO 2020 - N.º 293 77


Tradição

Singapura

No atelier
dos deuses
Sob os cinzéis de madeira da família Ng, as divindades dos ricos
panteões budistas, taoístas e populares encarnam em estátuas.
Uma atividade ameaçada

SOUTH CHINA MORNING POST HONG KONG

S Singapura: uma cidade feroz-


mente moderna, onde os bairros
pontos cardeais, os médicos, o parto, as
camas, a riqueza, o tempo, o calendário,
falecido marido, Ng Tian Sang, que era o
filho do fundador, a trabalhar. A oficina é
antigos com lojas de dois andares etc. A estátua de madeira da divindade dirigida por Ng Yeow Hua, seu filho, e os
cobertas de bolor foram renovados (que normalmente tem uma altura de 15 netos Tze Yong e Chong perpetuam a tra-
há muito tempo ou demolidos para dar a 30 centímetros) é colocada sobre um dição. A empresa emprega também cinco
lugar a centros comerciais, vias rápidas altar nos templos, lojas e casas e reza-se escultores especializados, pintores e calí-
e delírios arquitetónicos sobredimensio- pelo sucesso, pela prosperidade e proteção grafos. Embora a escultura já não seja feita
nados. A cidade pode ter uma forte pre- contra perigos imprevistos. na própria loja – os regulamentos locais
sença cultural chinesa, mas não se espera proíbem-no –, o douramento e a pintura
encontrar uma empresa como Say Tian Sete séculos de ofício familiar continuam a ser feitos lá.
Hng – a última oficina da região que re- De acordo com os seus arquivos, a família As estátuas das divindades têm uma
para e faz estátuas de divindades chinesas Ng, que dirige Say Tian Hng, trabalha com função religiosa, mas a família Ng sempre
inteiramente à mão, utilizando métodos madeira há 700 anos. Os seus membros teve uma abordagem pragmática em rela-
tradicionais. aprenderam o ofício no início da dinas- ção a elas. Embora conheça perfeitamente
Os chineses nunca tiveram falta de tia Ming (1368-1644) com um mestre em as lendas e a iconografia associadas a cada
deuses: os panteões budistas, taoistas e Tong’an, província de Fujian. O bisavô Ng divindade, Ng Yew Hua sublinha que eles
populares são densamente povoados. Al- emigrou no século XIX. Primeiro foi para são artesãos e não padres. “Esculpiríamos
gumas divindades são adoradas por toda a a Tailândia, onde fez marionetas de ma- um Cristo, se nos fosse pedido”, diz. É ver-
diáspora, outras num determinado lugar. deira, e depois instalou-se em Singapura, dade que consagram e desconsagram as
Este culto data de há milhares de anos, e quando o seu irmão, que lá tinha uma loja esculturas quando necessário (pede-se à
as divindades estão listadas no bestiário concorrente, morreu subitamente. Fundou divindade que se retire da escultura en-
ligeiramente delirante que é o The Clas- a oficina de escultura de divindades em quanto esta está a ser reparada e depois
sic of the Mountains and Seas e em The 1896, que está agora localizada numa loja convida-se a voltar quando está pronta),
Investiture of the Gods – um romance renovada situada na 35 Neil Road. A sala mas isto faz parte do trabalho. A criação de
de fantasia cheio de ministros corrup- da frente está coberta do chão ao teto com uma escultura é, no entanto, acompanhada
tos, guerreiros ferozes, mágicos taoistas prateleiras cheias de divindades, algumas de rituais. Uma vez efetuada a encomenda,
e raposas malvadas – que conta a história pintadas de cores vivas e prontas a serem é consultado um calendário chinês [que
da queda da dinastia Shang (1600-1046 vendidas, outras com peças em falta ou en- indica, de dia para dia, quais as atividades
a.C.). Estas divindades atuam como pa- cardidas pela velhice e fuligem de incenso, favoráveis ou desfavoráveis a realizar] para
droeiros de todas as situações, atividades à espera de restauração. Tan Chwee Lian, calcular o momento mais indicado para
ou ideias imagináveis: há algumas para os nascida por volta de 1930, é a matriarca. esculpir a estátua e entregá-la ao cliente,
jogadores, a literatura, os talhantes, os Aprendeu a decorar estátuas vendo o seu uma vez concluída. No passado, o escul-
tor invocava a divindade num sonho para
determinar a forma da estátua, mas este
AUTOR DATA TRADUTORA longo processo está hoje contornado: a
F David Leffman 07.04.2020 Helena Araújo oficina e o cliente escolhem juntos o modelo
geral a partir de um catálogo. As estátuas

78 JULHO 2020 - N.º 293 FOTO: GETTY IMAGES


Tan Chwee Lian, nascida por volta
de 1930, é a matriarca da família
e continua a trabalhar todos os dias
FOTO DE SAY TIAN HNG BUDDHA SHOP

budistas são geralmente simples e com- invoca a divindade e dá vida à estátua. As romance do século XVI. Preso sob uma
pactas e refletem a paz interior, enquanto estátuas destinadas a uma casa ou a uma montanha durante 500 anos por virar o
as divindades taoistas e populares, mais loja têm olhos que parecem ligeiramente céu de cabeça para baixo, Qitian Dasheng
impetuosas, são mais complexas. para baixo porque os seus adoradores es- saiu para acompanhar e proteger o monge
A madeira é geralmente da árvore da tarão mesmo em frente ao altar. Aqueles budista Xuanzang (602-664 a.C.) na sua
cânfora porque é fácil de trabalhar e tem que se destinam a um templo, onde serão viagem à Índia. Cumpriu brilhantemente
um odor forte que repele os insetos que adorados por uma multidão num grande a sua missão e foi elevado ao grau de di-
atacam a madeira. Primeiro, é talhada de salão, têm os olhos voltados para cima, vindade. A energia e os poderes benéficos
uma forma grosseira num bloco de tama- para que possam ter um contacto visual de Qitian Dasheng atraem os jogadores,
nho adequado, depois, é refinada com um com as pessoas que estão ao fundo. as mulheres grávidas e as pessoas com
cinzel e lixada. As marcas de água detalha- deficiência.
das e as decorações – bordados de dragão Lendas imperfeitas Nezha é outra divindade com uma his-
no vestuário, joias no toucado, etc. – são No passado, para consagrar uma estátua, tória turbulenta. Conhecido como o Tercei-
aplicadas à mão. Trata-se de filamentos era também necessário matar uma mosca ro Príncipe, é normalmente representado
de uma pasta especial feita de cinzas de ou outro pequeno inseto, que era colocado como um jovem rapaz brandindo um anel
sândalo. É toda uma arte. É necessário num espaço vazio nas costas da estátua e uma lança de ouro de pé sobre rodas de
um fuso manual, uma espátula e uma com talismãs protetores escritos por um fogo. Criança temperamental, luta com o
boa visão. A avó Tan é sempre excelente padre taoista. Pulverizava-se depois a es- pai, mata o filho do rei dragão e suicida-se
neste exercício. Terminados os detalhes, tátua com o sangue de uma crista de galo para não envergonhar ainda mais a sua fa-
a estátua é pintada e dourada com folha. branco. Os galos são criaturas poderosas, mília. Ele é trazido de volta à vida quando
Finalmente, acrescentam-se os olhos: as e o branco representa a pureza e a liga- a mãe constrói um templo em sua honra. É
pupilas são colocadas por um padre du- ção com o mundo espiritual, enquanto o outra figura guardiã dos jogadores e, como
rante um ritual chamado kaiguang, que sangue simboliza a vida. se move sobre rodas, dos motoristas. Verda-
A vida após a morte, na cultura chinesa deiro general do período turbulento dos Três
... é surpreendentemente familiar: asseme- Reinos (220-280 d.C.), Guan Gong – um gi-
lha-se ao mundo real em muitos aspetos. gante de cara vermelha vestindo um manto
As estátuas das divindades “As divindades são muitas vezes baseadas e agitando uma alabarda – é provavelmente
em figuras históricas, por isso não é sur- a divindade mais famosa de todas: patrono
têm uma função religiosa, preendente que as lendas as descrevam da virtude marcial, é adorado tanto pela
mas a família Ng sempre como pessoas humanas: estão cheias de polícia como pelas sociedades secretas e é
imperfeições, obsessões, e são facilmente também a encarnação do deus da riqueza,
teve uma abordagem transportadas”, diz Tze Yong. É certamente a tal ponto que uma estátua dele pode ser
pragmática em relação o caso de Qitian Dasheng, “Grande sábio, encontrada em muitas lojas.
a elas. “Esculpiríamos igual ao céu”, que é dos mais populares. As divindades têm formas diversas.
Também conhecido como Sun Wukong, Algumas têm características únicas que
um Cristo, se nos fosse este macaco inteligente e imprevisível é as tornam fáceis de identificar – as rodas
pedido”, dizem o herói de Jornada ao Oeste, um famoso de Nezha, a face vermelha de Guan Gong, a

JULHO 2020 - N.º 293 79


Tradição

coroa dourada de Sun Wukong –, mas outras de gerações, estão a ser confrontadas com A família organiza agora
são muito parecidas e é preciso um olho uma dura concorrência. “Pode levar até uma visita mensal no Airbnb,
treinado para as reconhecer. Por exemplo, um mês para esculpir uma estátua de 30 para divulgar a oficina
Zhao Gongming, o deus militar da riqueza, centímetros de altura, e o tempo e a mão FOTO DE SAY TIAN HNG BUDDHA SHOP
e Zhang Daoling, o místico taoista e caçador de obra pagam-se”, diz Tze Yong. “Uma
de demónios, montam ambos um tigre. O oficina que trabalha com máquinas pode exalam uma simpatia, uma energia que
criador Pangu e os sábios Fuxi e Shennong fazer uma escultura em poucos dias por os atuais pigmentos químicos berrantes
usam uma saia de folhas. Uma figura femi- um preço muito mais baixo, e os clientes não conseguem reproduzir.”
nina sentada com um véu de pérolas pode por vezes têm dificuldade em perceber a Este tipo de coleção choca alguns fabri-
representar a imortal Bixia Yuanjun, a deusa diferença.” cantes tradicionais e alguns crentes. Acima
da terra Houtu, Mazu e muitas outras. Zhen de tudo, julgam que esculpir divindades
Wu, Xuan Wu e Bei Di formam outro trio Herança precária para colecionadores é prostituir a arte an-
confuso: os três estão representados como Tze Yong cresceu no meio de uma espessa cestral e insultar as próprias divindades.
guerreiros com a barriga arredondada em camada de aparas de madeira aromática Em segundo lugar, acumular esculturas de
veste de batalha e os pés assentes sobre uma e sempre acreditou que era algo normal. divindades com personalidades tão dife-
tartaruga e uma cobra. De acordo com os Só quando foi estudar para o estrangei- rentes, e por vezes pouco condescenden-
entrevistados, são encarnações diferentes ro é que tomou consciência da natureza tes, não lhes parece ser muito propício à
de uma mesma divindade ou divindades precária da herança da sua família. Depois felicidade de um lar. Pinsler possui mais
diferentes cujas funções se sobrepõem. Zhen de estudar o negócio da família para a sua de um milhar delas. Estes “deuses em se-
Wu e Xuan Wu são os patronos das artes tese de MBA em design, procurou formas gunda mão” também correm o risco de
marciais (o segundo, O Guerreiro Negro, de promover e reinventar a escultura de levar consigo as emanações do passado
era um carniceiro antes de ser divinizado), divindades. A família organiza agora uma negativo do seu anterior proprietário. É
Bei Di, o imperador do Norte, é invocado visita mensal no Airbnb para divulgar a uma das razões pelas quais as divindades
para evitar as inundações. oficina e vender as suas estátuas a cole- que já não são desejadas por uma família
Na verdade, existem tantas formas-pa- cionadores estrangeiros como simples são frequentemente doadas a um templo,
drão – guerreiro a cavalo, taoista armado obras de arte e não como obras para uso onde podem ser vendidas a um coleciona-
com uma espada, barbudo num trono – que puramente religioso e local. Isto coloca dor (depois de consultar a divindade). Do
é praticamente impossível identificar uma alguns problemas, porque os critérios mesmo modo, Tian Hng faz uma distinção
divindade antiga cuja função é esquecida dos dois mercados são muito diferentes. entre as estátuas destinadas a ser venera-
sem qualquer indício particular. O falecido Os clientes que invocam uma divindade das e as que foram desconsagradas e que
Keith Stevens [que morreu em 2016], autor para obter sucesso e riqueza querem que podem, portanto, ser vendidas e exibidas
de Chinese Gods (1996) [Deuses Chineses] a sua estátua seja lindamente pintada e como “obras de arte”.
e de Chinese Mythological Gods (2001) dourada para parecer nova e poderosa. Questionado sobre as suas esperanças
[Deuses da Mitologia Chinesa] escreveu Não querem perder o seu tempo a rezar para o futuro, Tze Yong sugere que a fa-
que tinha visitado duas vezes um templo para uma coisa velha e cansada, pelo que mília Ng será talvez forçada a transmitir
na Malásia onde viu uma grande estátua, e Tian Hng dedica uma grande parte da sua os seus conhecimentos e competências a
que os guardiões lhe tinham dado um nome atividade à restauração de estátuas antigas. outros. No entanto, está convencido de que
completamente diferente. “Em alguns ca- Por seu lado, os colecionadores têm um a tradição sobreviverá no mundo moderno,
sos, a forma mais segura de descobrir qual ponto fraco pelas estátuas desgastadas, custe o que custar. “O mais importante
é a divindade é perguntar à pessoa que a que têm “caráter” e uma história evidente. é que a empresa se mantenha viva”, diz.
esculpiu”, disse Tze Yong. “Pode parecer estranho preferir peças “Para durar mais 100 anos, vamos preci-
Com uma procura que permanece forte não restauradas. Afinal, uma boa escultura sar de aprendizes. Teremos de criar uma
e milhares de personagens como fonte de é uma boa escultura”, diz Ronni Pinsler, sociedade, codificar o know-how, criar
inspiração, Say Tian Hng não deveria ter um colecionador da Malásia que gere o uma procura forte junto de outros clientes,
nada com que se preocupar no futuro. Mas Bookofxianshen.com, uma base de dados atrair talentos, formar novas parcerias.
o negócio está em perigo, não por falta de baseada em mais de 50 anos de investiga- Os aprendizes estarão no centro deste
encomendas, mas porque as suas habili- ção sobre divindades chinesas. “Mas as processo. Serão eles os mestres artesãos
dades tradicionais, transmitidas através pinturas tradicionais, de base mineral, do futuro.”

80 JULHO 2020 - N.º 293


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cada vez mais, um
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Desenhado com inspirações que recorda os e comprovando que
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automático e a moldura de estrutura do inspirados na alta
Vanguard Racing Skeleton foram ligeiramente costura estão em
reduzidos. Foram escolhidos para este projeto ascensão na moda
materiais técnicos e dinâmicos como a fibra de masculina.
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movimentos com calendário
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F FLASHBACK

H
GESTOS DE REVOLTA
Iniciado por Colin Kaepernick, em
2016, o gesto de pousar o joelho no
chão durante o Hino nacional dos
EUA transformou-se num símbolo
da luta pelos Direitos Humanos e
antirracista. Em quatro anos, o seu
ato de rebeldia – que lhe custou,
nomeadamente, ficar sem equipa
na milionária NFL (liga de futebol
americano) – alastrou-se pelo
país, atravessou fronteiras e, agora,
é utilizado como gesto solidário
um pouco por todo o mundo. Mas
Kaepernick não foi o primeiro atleta
negro a revoltar-se contra o sistema,
perante os olhares do mundo.
O gesto mais simbólico continua a
ser o protagonizado pelos velocistas
Tommie Smith e John Carlos, nos
Jogos Olímpicos do México, em
1968, quando escutaram, no pódio, o
Hino dos EUA de punho erguido (em
sinal de luta) e de pés descalços (para
simbolizar a pobreza dos negros na
América). Foi a sua última presença
como atletas de alta competição – de
imediato, foram expulsos e banidos
da equipa de atletismo dos EUA.
Uma situação que lembra, por outro
lado, o martírio de Muhammad Ali,
quando foi impedido de combater por
se recusar a combater no Vietname,
imortalizado numa capa histórica da
ESQUIRE, desenhada por George Lois.

82 JULHO 2020 - N.º 293


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