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A DIVINA COMÉDIA – DANTE ALIGHIERI

A Divina Comédia (Comédia) é um poema composto de um canto introdutório e de


três partes: Inferno, Purgatório e Paraíso. Cada parte é integrada por trinta e três
cantos, de pouco mais do que uma centena de versos cada um. Os versos são
decassilábicos, e o metro é terceto encadeado. São muito discutidas as datas da
composição do poema: muito provavelmente, Dante começou-o por volta de 1307,
para depois nele trabalhar durante toda a sua vida. O título do livro, por extenso, é
pelo próprio poeta apresentado na carta a Cangrande della Scala: "Incipit
Commedia Dantis Alagherii, florentine natione, non moribus" (Começa a Comédia
de Dante Alighieri, florentino de nascimento, não de costumes). Dante chamou à
obra simplesmente "Comédia", porque, como as comédias propriamente ditas,
termina com um final alegre. Talvez lhe haja chamado "Comédia ainda por
modéstia, enquanto considera a Eneida como tragédia. O adjetivo "Divina" é um
acrescento mais tardio, talvez da responsabilidade de Boccaccio. Apareceu
impresso pela primeira vez na edição veneziana de 1555. O poema, no seu
conjunto, é a história da conversão do pecador a Deus. O poeta tencionava fazer da
"Divina Comédia" principalmente sua obra de doutrina e de edificação, uma "Suma"
que compreendesse o saber do seu tempo, da ciência à filosofia e à teologia. Por
isso o poema é repleto de significados alegóricos e ainda morais. Assim, por
exemplo, Virgílio, que cantou os ideais de paz e justiça do Império Romano no
tempo de Augusto, e que guia o poeta através do Inferno e do Purgatório, simboliza
a razão integrada com a sabedoria moral, e é também a voz da própria consciência
de Dante. Beatriz, a mulher amada que o guia no Paraíso, é a sabedoria cristão
iluminada pela graça, a suprema sabedoria dos santos, a única que pode levar a
Deus. Tudo no poema é perfeita construção alegórica, e nisto Dante limita-se a
respeitar as regras do seu tempo: pois quantas não são de fato as obras medievais
que referem as viagens ultraterrenas, devidamente arquitetadas para edificação do
pecador? Só que, no poema dantesco, há um sutil artifício que permite ao poeta
encerrar nos seus cantos também a história do seu tempo. Dante imagina fazer
uma viagem em 1300 e portanto refere naturalmente tudo quanto aconteceu antes
desta data; mas, reconhecendo aos mortos a capacidade de prever o futuro, põe-
nos a profetizar os acontecimentos públicos e particulares que não deseja deixar
em silêncio.

Arquitetura do mundo extraterreno

Sob a crosta terrestre abre-se, no hemisfério boreal, precisamente debaixo de


Jerusalém, uma profunda depressão em forma de cone que chega até ao centro da
Terra. Foi provocada pela queda de Lúcifer, o anjo rebelde, o qual, efetivamente, se
acha cravado no fundo do abismo. As terras que saltaram durante a queda do anjo
confluíram no hemisfério austral formando uma ilha constituída por uma montanha
cônica no cimo da qual está colocado o Paraíso Terrestre, exatamente nos
antípodas, portanto, de Jerusalém, e na fronteira extrema entre o mundo da
matéria e o da imaterialidade.

Na depressão, que se abisma em nove círculos concêntricos, está situado o Inferno.


Os condenados estão disseminados nestes círculos de harmonia com a gravidade
dos pecados; e o pecado é tanto mais grave quanto mais violou o que o homem
tem em si de divino.

Sobre a montanha cônica do hemisfério austral está situado, por seu lado, o
Purgatório. As almas estão distribuídas sobre as ravinas que se escavam no flanco
do monte. Sete sãos as faixas correspondentes aos sete pecados capitais; com o
antipurgatório e o Paraíso Terrestre é atingido o fatídico número nove, que com o
número três se encontra na base de toda a disposição da Divina Comédia. Os dois
reinos estão ligados por um estreito subterrâneo que do fundo do abismo infernal
leva à ilha do Purgatório, no hemisfério oposto.

O Paraíso encontra-se, naturalmente, no Céu: onde nove esferas circulam com


órbitas sempre maiores e movimento sempre mais rápido, em volta da Terra
imóvel, segundo o sistema ptolomaico. Acima delas, o fulgurante Empíreo, onde
resplende Deus, circundado pelos bem-aventurados triunfantes.

O Inferno

No meio do caminho da sua vida, Dante, tendo-se perdido numa floresta obscura,
tenta em vão subir a colina luminosa: três feras, que simbolizam as
concupiscências humanas, impedem-lhe o passo. Virgílio aparece ao poeta e
propõe-lhe um outro caminho para chegar à contemplação de Deus (o cume
luminoso), um áspero e terrível caminho que atravessa os reinos de além-tumba.
Dante fica hesitante e aterrador, e só quando Virgílio o informa de que tal privilégio
lhe foi concedido pela oração de uma mulher bendita, Beatriz, que tanto deseja a
sua salvação, ele se tranqüiliza e dirige-se para o limiar do além. Virgílio guiá-lo-á
através do reino da beatitude.

Atravessado o fatídico limiar infernal, Dante encontra no vestíbulo os cobardes, os


que viveram "sem infâmia e sem louvor", juntamente com os anjos que, quando da
revolta de Lúcifer, não souberam de que lado se colocar. Estes, que quiseram
impedir a batalha, estão agora condenados a correr sem descanso atrás de uma
bandeira, pungido por vespas e zangãos. Primeiro exemplo, este, da lei do
contrapasso segundo a qual em todo o Inferno as penas são infligidas em estreita
relação - de analogia e de contraste - com os pecados cometidos. A mesma lei
governa também o Purgatório.

Entre o vestíbulo e o primeiro circulo do Inferno corre o rio de Aqueronte. Aqui


param os recém-chegados, esperando que Caronte, o demônio dos "olhos de
brasa", os atravesse para a outra margem, onde serão julgados por Minos,
monstruoso juiz que, enrolando a cauda, indica o círculo a que cada pecado está
destinado. No primeiro círculo, para além do rio, há o Limbo, que recebe as almas
das crianças mortas sem o batismo e as daqueles que honestamente viveram antes
da vinda de Cristo à Terra.

Não há penas no Limbo, mas uma atmosfera de deprimente melancolia. Dante


encontra aí os grandes da Antiguidade: Homero, Horácio, Ovídio, Lucano e tantos
outros. O Inferno propriamente dito começa, portanto, apenas com o segundo
círculo, onde os luxuriosos são arrebatados por uma tempestade de vento. Entre
esses, Francesca de Rímini, ainda abraçada ao seu Paulo, narra ao poeta a sua
trágica história.

No terceiro círculo os gulosos são flagelados por uma chuva putrefacta e


ferozmente vigiados por Cérbero, horrível cão com três cabeças. O florentino Ciacco
fala a Dante das lutas entre as facções opostas da sua cidade. No círculo seguinte,
desfilam os avarentos e os pródigos, que empurram pesos enormes, e depois os
iracundos, os indolentes, os invejosos e os soberbos, todos imersos na lama
ardente do pântano do Estige.

Para atravessarem o pântano, Dante e Virgílio aproveitam a barca do demônio


Elegias, que os deixa à porta da cidade de Dite. Os seus muros de fogo encerram a
parte mais baixa e mais terrível do Inferno, aquela onde mais graves são as culpas
e mais terríveis as penas. As penas parecem freqüentemente sugeridas por ímpetos
de desprezo; outras, por uma fantasia atroz.

Os diabos estão bem decididos a impedir a entrada na cidade de Dite àquele que
"sem morte vai pelo reino da gente morta": trancam todas as portas, enquanto as
três fúrias aparecem sobre as ruínas e, entre elas, Medusa procura magicamente
petrificar Dante. Chega a tempo um enviado celeste que, com um toque de vara,
abre as portas de Dite, repreendendo asperamente os diabos.

Recomeça a viagem, e Dante vê em sepulcros de fogo os heréticos, entre os quais


Farinata; os violentos contra o próximo, num rio de sangue, alvejados e feridos
pelas flechas dos centauros desde que ousem erguer apenas um pouco a cabeça;
os violentos contra si mesmos, isto é, os suicidas como Píer delle Vigne,
transformados em árvores nodosas; os esbanjadores perseguidos e devorados por
cadelas ferozes.

Os violentos contra Deus e os violentos contra a natureza são submetidos a uma


implacável chuva de fogo; contudo, enquanto os violentos contra a natureza (isto é,
os sodomitas, como Brunetto Latini) caminham, aliviando assim o seu tormento, os
violentos contra Deus devem permanecer deitados sob o flagelo da chuva ígnea.
Também os usurários são submetidos a ela, mas sentados, e movendo sem
descanso as mãos para se defenderem.

Os dois poetas chegam assim à extremidade do sétimo círculo, onde se abre um


profundo e íngreme precipício. Para o superar, Dante deve subir com Virgílio para a
garupa de Gerione, um monstro alado com a cauda afiada, o qual, com lentíssimo
vôo, desce com os dois ao fundo do abismo. O oitavo círculo é dividido em dez
fossos, ligados entre si por pontes. Num crescendo de horror, numa atmosfera cada
vez mais alucinante, entra-se no lugar chamado "malebolge, Oodo de Pedra da cor
do ferro". O longo desfile de pecadores continua. Na segunda parte do Inferno, o
espetáculo torna-se ainda mais horroroso.

Eis os alcoviteiros flagelados por demônios cornudos; os aduladores imersos em


estrume; os simoníacos espetados com a cabeça para baixo em pequenos buracos,
com as plantas dos pés acesas; os adivinhos com as cabeças voltadas para trás. No
quinto fosso os vendilhões debatem-se em pez fervente: multidões de diabos
armados com arpões abrigam os desgraçados a permanecer inteiramente
submersos. Os hipócritas, oprimidos por pesadíssimas capas de chumbo, arrastam-
se no sexto fosso. E o sétimo é repleto de serpentes: serpentes de todas as
medidas, cores, venenos, que se lançam sobre os ladrões; envolvem os seus
membros enroscando-se neles, apertam-nos e mordem-nos. No momento de ser
atingido, o infeliz incendeia-se e um momento depois fica completamente
incinerado, para ressurgir depois das suas cinzas como a Fênix da fábula. Mais
além, por seu lado, os condenados, uma vez feridos, transformam-se em
serpentes, enquanto as gestas que os mordem se tornam homens. Todo o fosso
fervilha de estranhos seres em metamorfoses, entre um abater de caudas que se
tornam pernas, e de braços que se retiram no corpo e línguas que se bifurcam.
Depois deste monstruoso espetáculo, eis o crepitar de chamas que encerram
conselheiros fraudulentos, entre os quais Ulisses e Diomedes. Ulisses conta a sua
extrema aventura no oceano sem fim. (Solene a proclamação do destino dos
humanos: "Não fostes feitos para viver como brutos, / Mas para seguir virtude e
conhecimento").

Depois de haver falado com Ulisses e com Guido de Montefeltro, Dante e o mestre
fiel retoma o caminho, e encontra os promotores de discórdias e os cismáticos,
cortado em pedaços pelas espadas afiadíssimas dos demônios; entre chagas
horrendas e restos de braços, aparece Bertrand de Born, trovador provençal que,
tendo separado um pai do filho com maus conselhos, caminha segurando pelos
cabelos a sua própria cabeça, separada do tronco.

No último fosso estão apinhados os falsários, oprimidos por terríveis doenças; os


falsários de metais arranham-se furiosamente, os de moedas estão tumefactos pela
hipocrisia, os mentirosos ardem de febre.

Saindo de Malebolge, o poeta julga ver uma vaga paisagem de torres, mas depois
apercebe-se de que as torres são de fato três gigantes agrilhoados, que pouco a
pouco emergem da Bruna caliginosa. Trata-se de Fialte, Anteu e Nembrote, o que
ousou desafiar Deus com a sua torre de Babel e que agora balbucia palavras que
não têm sentido algum. Cabe a Anteu o encargo de fazer descer Dante e Virgílio no
derradeiro precipício: toma-os de fato, inclina-se e coloca-os no mais profundo
círculo infernal.

Não há fogo, nem demônios, nem gritos de condenados: o fundo do Inferno é


gélido, um imenso bloco de gelo. Prisioneiros aí, com a cabeça imersa da estrutura
gelada, estão os traidores: as lágrimas no gelo significam as suas pálpebras.
Naquela imobilidade alucinante, o conde Ugolino raivosamente rói o crânio do seu
inimigo.

Com a visão de Lúcifer, o anjo rebelde, reduzido agora a monstro com três bocas,
cada uma das quais mastiga um dos três maiores traidores (Judas, traidor de
Cristo, e Brutus e Cassius, traidores de César e, portanto, do Império), cai o pano
sobre a horrorosa tragédia da humanidade condenada. Agarrando-se aos pêlos das
pernas de Lúcifer, Dante e Virgílio descem ainda; depois, num dado momento,
voltam-se e começam a subir: chegaram ao centro da Terra, e um estreito
subterrâneo levá-los-á a "rever as estrelas", da outra parte do mundo. A viagem
através do Inferno durou três dias.

O purgatório

Um instintivo respirar de alívio no emergir da "aura morta" e no reencontrar, acima


de si, o Céu, "doce cor de oriental safira". Graças a Deus, tudo é diverso no
Purgatório: a paisagem, a atmosfera, a luz que chove do alto.

Desaparecidos o ódio, a rebelião, o crime. Enquanto as personagens infernais eram


visceralmente ligadas à vida vivida na Terra, aos pecados que ainda reviviam e que
reviveriam por toda a eternidade, os penitentes do Purgatório, afastados das
vicissitudes terrenas, encontram-se ansiosamente tendidos para a sua futura união
com Deus. As tragédias sofridas na Terra estão já muito afastadas, transfiguradas:
já não fazem bater o coração.

As próprias penas a que os purgandos estão submetidos não têm o terrível relevo
plástico do Inferno. O sofrimento físico quase desaparece perante a mais torturante
dor espiritual, mitigada, porém, pela resignação e pela esperança. Mal chegado à
praia da ilha, enquanto olha em volta de si e descobre as estrelas do hemisfério
austral e o esplêndido Cruzeiro do Sul, Dante descobre, de súbito, que está perto
de si um velho de venerada barba branca. É Catão, o estrênuo defensor da
liberdade, aquele que em Útica se matou por não suportar que a Roma republicana
sucumbisse.

Agora é o guarda do Purgatório: por isso a montanha da expiação é exatamente o


reino da liberdade, liberdade em relação ao pecado, liberdade do arbítrio. Virgílio
fala-lhe com suma reverência e obtém para si e para o seu discípulo a autorização
de subir a montanha. Antes, porém, de começar a viagem, Virgílio recolhe o
orvalho das ervas e com ele lava o rosto de Dante, para o libertar de toda a
sujidade caliginosa do Inferno.

Entretanto aparece sobre o mar uma luz que velozmente se aproxima: trata-se de
um anjo, rente à popa sobre um barco "estreitito e leve" que ele faz deslizar com o
adejo das grandes asas. Sentam-se no barco mais de cem espíritos que estão a
chegar ao reino da expiação. Entre eles encontram-se Casella, que já em vida havia
musicado as canções de Dante e que agora, tendo desembarcado e reconhecido o
amigo, não hesita entoar a famosa "Amor que na mente me discorre". As almas
apinham-se em volta para ouvir o "doce canto", mas Catão repreende-as pela
demora, e elas correm então para as encostas do monte. Também os dois poetas
se dirigem apressadamente para a montanha e, enquanto Virgílio procura um
carreiro que permita a Dante subir, um grupo de almas os alcança. Depois de ter
sabido porque razão um vivo se encontra naquele lugar, uma delas se identifica: é
Manfredi, que, embora excomungado, se salvou num extremo impulso de
arrependimento.

A subida é rude, e Dante avança agarrando-se com as mãos o melhor que pode.
Chega, porém, à primeira plataforma, que constitui uma espécie de vestíbulo onde
os que tardam a arrepender-se esperam o momento de poder entrar no Purgatório.
Dante encontra Belacqua, um famoso ocioso dos seus tempos; e Buonconte de
Montefeltro, combatente em Campaldino; e, enfim, depois de muitos outros, a
suavíssima e infeliz Pia de Tolomei.

Um encontro singular é o de Virgílio com Sordello, mantuano como ele: um abraço


que traz aos lábios de Dante a célebre invectiva contra a escravidão da Itália.
Tendo passado para o Vale dos Príncipes, onde se encontram reunidas as almas dos
reis e senhores.

Dante adormece, para se encontrar na manhã seguinte, misteriosamente, em


frente da verdadeira porta do Purgatório. Um anjo lhe traça na fronte "sete P",
representando os sete pecados capitais. Serão apagados pouco a pouco por outros
anjos, à medida que Dante passe de faixa em faixa, observando de perto aqueles
que expiam exatamente os sete pecados capitais e meditando sobre vários
exemplos de virtudes ou de vícios castigados.

A soberba expia-se na primeira plataforma e as almas caminham curvadas debaixo


de pesos enormes e olham para esculturas que representam exemplos de
humildade; a inveja, na segunda, e os invejosos são castigados com os cilícios, os
alhos cosidos com fio de ferro, enquanto vozes ignotas gritam exemplos de inveja
castigada; no terceiro círculo, onde as almas estão envolvidas em densa fumarada,
é expiada a ira; na quarta correm os preguiçosos; na quinta jazem por terra, de
bruços, os avarentos.

No quinto círculo, Dante e Virgílio encontram a alma do poeta latino Estácio, que,
terminada a expiação, está a subir para o cume da montanha; acompanham-no, e
os três juntamente passam para o sexto círculo, onde os gulosos, entre os quais
Forense Donati, amigo de Dante, estão reduzidos a uma magreza esquelética.
Durante a viagem, Estácio fala da sua conversão ao cristianismo e Virgílio, dos seus
companheiros do Limbo. O discurso torna-se depois mais erudito, versando sobre a
teoria da formação do corpo e da alma sensitiva, sobre a origem da alma racional e
sobrevivência da alma ao corpo.

Assim, os três chegam ao sétimo círculo, onde os luxuriosos ardem no fogo. É


preciso que também Dante passe pelas chamas para purificar-se, e o bom Virgílio
deve recorrer à recordação de Beatriz para levar o relutante discípulo a entrar no
fogo. Superada a prova, Dante cai num sono profundo e sonha com uma jovem e
bela senhora que vai colhendo flores para se engrinaldar: é Lia, símbolo da vida
ativa. Uma última subida e eis as maravilhas do Paraíso Terrestre. Chegou,
entretanto, o momento da despedida de Virgílio: esperando a chegada de Beatriz,
Dante já não precisa ser amparado pelo seu conselho. Na "divina floresta, espessa
e viva", o poeta move sozinho os seus passos, continuando, porém, a voltar-se
para o seu mestre, que o olha afetuosamente de longe. Chega junto de um límpido
regato, além do qual vê uma senhora de celeste beleza, Matilde, que caminha
"cantando e escolhendo flores no meio de flores". Matilde é talvez o símbolo da
inocência primitiva.

Mas já se vê avançar uma mística procissão: sete candelabros ardentes, vinte e


quatro mulheres cingidas com flor-de-lis, quatro animais estranhos e o carro
alegórico da Igreja, que sofre uma série de espantosas transformações, em volta
do qual dançam as três virtudes teologais e as quatro virtudes cardeais.

É enfim: "Veste nívea, cingida de oliveira, / Apareceu-me a Dama em verde manto,


/ E vestida de cor da chama viva".

É Beatriz. A emoção do poeta atinge a sua acme. Sente nascer em si a antiga


chama e volta-se para tornar Virgílio participante de um tão ardente
acontecimento: mas o mestre já tinha desaparecido em silêncio.

Beatriz, que simboliza a luz de Deus enquanto verdade, dirige-se-lhe, severamente


repreendendo Dante pelas suas culpas e convidando-o a confessá-las. A confissão
purifica o poeta, que, depois de haver sido imerso por Matilde nos dois rios do
Paraíso Terrestre, que fazem esquecer as culpas cometidas e despertam a memória
das boas ações, está finalmente preparado para subir ao Paraíso.

O Paraíso

O Paraíso é o canto da beatitude, da consonância da vontade dos bem-aventurados


com a de Deus. É também o canto das dissertações teológicas, das doutas
explicações que Dante recebe da sua dama e de outros eleitos. Mas principalmente
é o canto da luz, uma luz que resplende, que irradia, flameja, palpita onde quer
que seja, sobre as figuras dos bem-aventurados, nos olhos de Beatriz, sobre as
esferas que se movem nos céus, e que se torna tanto mais ofuscante quanto mais
se sobe para a visão de Deus.

Do Paraíso Terrestre, Dante e Beatriz erguem-se com movimento rapidíssimo para


a esfera do fogo e, ultrapassada, chegam ao primeiro céu, o da Lua, onde se
encontram os espíritos daqueles que foram constrangidos pela violência dos outros
a serem infiéis aos votos religiosos. Dante encontra aí Piccarda Donati. No Paraíso,
os bem-aventurados residem todos no Empíreo em contemplação de Deus, mais
perto ou mais longe d'Ele segundo seu mérito, mas todos felizes do seu estado. Só
para fazer compreender a Dante a arquitetura celeste, e para lhe mostrar o seu
diverso grau de felicidade, eles se agrupam nos sete céus planetários, cada um
naquele cuja influência sofreu em vida, segundo as regras astrológicas medievais.
Uma particular virtude moral preside a cada céu: a fortaleza no céu da Lua, a
justiça em Mercúrio, a temperança em Vênus, a prudência no Sol; e no céu de
Marte há a fé, no de Júpiter, a esperança, em Saturno, a caridade.

No céu de Mercúrio pairam os espíritos que usaram do seu talento para fazer o
bem. E aqui se revela a Dante Justiniano, o qual celebra, a grandes linhas, a
história do Império Romano, desde Enéias a Carlos Magno. Depois do encontro com
o imperador, Beatriz tira algumas dúvidas de Dante falando-lhe da morte de Cristo,
da redenção do homem do pecado original, da incorruptibilidade do que foi criado
diretamente por Deus. E assim discutindo, chegam à esfera de Vênus, onde, entre
os espíritos que fortemente amaram, encontram Carlos Martel, filho de Carlos II de
Anjou. Passando por Florença em 1294, o jovem angevino conhecera Dante e dera-
lhe prova de grande amizade, logo cortada pela sua morte prematura. Depois de
Carlos, outros espíritos amantes se revelam ao poeta: Cunizza da Romano e Folco
de Marselha, que censura a vergonhosa avareza dos eclesiásticos.

No quarto céu, o do Sol, brilham as almas sapientes e triunfam os teólogos. Dante


encontra lá Tomás de Aquino e Boaventura de Bagnorea, que tecem o elogio dos
dois grandes campeões da fé, S. Domingos e S. Francisco. O quinto é o céu de
Marte, onde as almas dos que Morreram combatendo pela fé de Cristo estão
dispostas em forma de cruz luminosa. Do baço direito da cruz fulgurante revela-se
ao poeta o seu trisavô, Cacciaguida, morto na segunda cruzada. Cacciaguida fala de
Florença dos seus tempos antigos, quando a população, encerrada no primeiro
círculo de muralhas, "estava em paz, sóbria e pudica", e prediz a Dante o exílio,
exortando-o todavia a suportar as injustiças confiando em Deus: principalmente
não tenha medo da verdade, mas grite-a no rosto de todos sem se preocupar com
as conseqüências. Dante continua a subir com Beatriz: no sétimo céu, o de
Saturno, os espíritos contemplativos estão ordenados segundo uma escala
admirável que sobe até ao Empíreo. S. Pedro Damião fala do mistério da
predestinação; S. Bento conta de si e da ordem e lamenta a sua decadência.

O oitavo é o céu das estrelas fixas: em forma de fúlgido sol, no meio das mil
esplêndidas luzes dos bem-aventurados, Dante assiste ao triunfo de Cristo. Sobre
Cristo ao empíreo e, num tripúdio de fulgor, os bem-aventurados celebram o
triunfo de Maria. Antes da ascensão ao nono céu, S. Pedro, S. Tiago e S. João
interrogam o poeta sobre a fé, a esperança e a caridade! Dante supera com êxito
este exame acerca das virtudes teologais e depois ouve de Pedro a mais rude
invectiva contra o papado e a sua corrupção. Aos três apóstolos junta-se depois
Adão, que desvenda ao poeta a natureza do pecado original e lhe diz quantos nos
passaram desde a criação do homem, quanto tempo ficou no Paraíso Terrestre e a
língua que falou.

Depois de um hino de agradecimento a Deus, os bem-aventurados sobem para o


Empíreo. Do nono céu, ou primeiro móvel, Dante contempla nove esplêndidos coros
angélicos, cujas virtudes e função lhe são explicadas por Beatriz; ela fala-lhe depois
da causa, do lugar e do tempo da criação dos anjos, nas suas faculdades, do seu
número e das trágicas diferenças entre os anjos fiéis e os rebeldes.

Dispersos os anjos, comparece perante os olhos de Dante o fúlgido ofuscante


espetáculo da Rosa celeste, formada pelos espíritos triunfantes e pelos anjos, em
volta de Deus. É o Paraíso dos contemplantes. Beatriz deixa Dante e vai ocupar o
seu lugar no terceiro círculo dos eleitos. Junto do poeta está agora S. Bernardo, o
mais ardente dos místicos, que o guiará, pois que Dante, agora, não poderá seguir
com a força da razão, mas apenas por arroubos extáticos.

Invocada por S. Bernardo com uma estupenda oração, a Virgem intercede junto de
Deus e obtém para a graça sublime: o poeta tem a visão da Divindade.

É um átimo inefável, um entrever para além das capacidades humanas, um fulgor


faiscante que a memória não pode fixar. E com a vista no inexprimível termina o
poema.

Estudo contido na edição da Martin Claret, editora


Biografia de Dante Alighieri

Nascido em Florença (maio ou junho de 1265), Dante


pertenceu a uma família de pequena nobreza, graças
ao título de cavaleiro, outorgado a seu trisavô
Cacciaguida, pelo imperador Conrado III. A família,
de condição modesta, vivia do comércio local, de
câmbio e pequenos empréstimos: uma típica família
florentina dos séculos XII e XIII. As reviravoltas da
Cida política foram a causa do exílio de Bellincione, o
avô de Dante.
Aos 5 anos de idade perdeu a mãe. Tempos depois
morre o pai, comerciante que fez maus negócios. Dante no exílio
Dante, então, torna-se chefe de família, aos 16 ou 17
anos. Recebera instrução que se ministrava aos jovens florentinos de sua condição
social: instrução primária – gramática e retórica – na casa de um pedagogo, e,
depois, o ensino do " trivium " e do " quadrivium " na escola da igreja episcopal.

Dante parece não haver se interessado pelos negócios comerciais da família. Muito
cedo, ele se consagra à poesia: o soneto " A ciascun'alma presa " que encabeça a
Vita Nuova , parece ter sido escrito em 1283. Nos estudos, dedica-se, de início,
aos literários, filosóficos e teológicos (1290-1294). Depois de passar, talvez, pela
Universidade de Bolonha (1287), ele freqüenta intelectuais florentinos,
particularmente Brunetto Latini (consagrado escritor florentino) e Guido Cavalcanti
(que lhe possibilita ingressar numa camada da sociedade inacessível a sua pequena
nobreza), recebendo bastante influência na obra. Assimila a retórica clássica e
medieval, a cultura francesa, a poesia cortês siciliana e toscana.
Em 1289, as obrigações militares interrompem a sua atividade literária, já que
toma parte nas batalhas de Campaldino e de Caprona. Em 1290, reinicia os
estudos, voltando-se para a filosofia, principalmente Cícero e Boécio, e para a
teologia, na escola de religiosos de Santa Croce e de Santa Maria Novella.

Os interesses de Dante, no entanto, não se limitam aos estudos. Em 1295, aos


trinta anos, passa a tomar parte na política florentina, à beira da guerra civil. A
motivação foram as novas medidas que devolviam os direitos civis aos nobres, com
a condição de que se inscrevessem numa corporação. Dante inscreve-se
imediatamente na dos médicos e farmacêuticos. Até o ano de 1300, participa
ativamente da vida política de Florença, tendo assento em diversos conselhos e é
encarregado de missões diplomáticas importantes.
Dante faz-se notar pela política firme contra os " magnati " e pela oposição aos
Pretos, os quais, como seu chefe Corso Donati, sustentavam na Toscana as
ambições políticas do Papado. O engajamento político não retirará Dante da criação
poética: ele compõe a Vita Nuova (1293-1295).

Em 1300, é eleito membro do Colégio dos Priores. Neste cargo ficou 2 meses,
juntamente com outros 5 priores que exerciam o colegiado do poder executivo de
Florença. Seu priorado á assinalado por sangrentos motins, que causam o exílio dos
principais chefes dos Pretos e dos Brancos – entre estes últimos achava-se Guido
Cavalcanti. Porém, como a entrada em Florença de Charles de Valois, que fora
enviado pelo Papa para pacificar as dissensões entre as facções adversárias – os
Pretos e os Brancos –, o partido dos Pretos triunfa e toma o poder. Dante, que
pertence ao partido dos Brancos, derrotado, acusado de corrupção, improbidade
administrativa e oposição ao Papa.

De acordo com os relatos, Dante, que havia ido a Roma para uma audiência com o
Papa, não teve oportunidade sequer de retornar antes de sua condenação, em
janeiro de 1302. Sentenciado a uma pena pecuniária, a dois anos de prisão e à
perda dos direitos civis e, principalmente, a justificar-se perante um tribunal por
sua ação política contra os Pretos, Dante não teve a ingenuidade de apresentar-se:
era o exílio. Condenado à morte por contumácia, em março de 1302, nunca mais
iria rever Florença.

Em 1304, Dante rompe definitivamente com os Brancos exilados, ao dar-se conta


de que eles estão animados apenas pelo facciosismo. Até 1309, vive entregue a
uma vida errante pelas cidades de Forlì, Bolonha, Treviso, Pádua, Veneza,
Lunigiana, no Casentino e em Lucca. Com a falta de dinheiro, é obrigado a recorrer
a empréstimos de um meio-irmão, Francesco, um modesto comerciante. Os
primeiros anos no exílio, entretanto, são preenchidos com enorme trabalho de
criação literária: canções doutrinais e morais, cartas em latim; o tratado filosófico
O Banquete – uma obra inacabada, composta de três odes, um ensaio lingüístico,
De Vulgari Eloquentia (1303-1304), em que defende a língua italiana; Convívio
(1304), obra projetada para 15 volumes, sobre a importância da cultura, mas da
qual só escreveu 3; e, ao que parece, é em 1304 que começa a Divina Comédia .

De 1309 a 1312, o poeta alimenta esperanças na empresa do Imperador Henrique


VII que, desejando pôr termo às ambições do Papado, prepara sua ida à Itália.
Dante escreve-lhe três cartas em latim, empenhando-se na viagem. A morte de
Henrique VII, em 1313, fazem desmoronar as esperanças.

A partir de 1315, fixa-se em Verona por dois anos, na corte de Cangrande della
Scala. Ali faz a revisão de "Inferno", divulgado desde fins de 1314, escreve
"Purgatório", que começa a circular em 1315 e começa o "Paraíso". Nessa ocasião
redige a carta de dedicatória do "Paraíso" a Cangrande e a " Monarchia " (1317).
Em 1316, recebe o perdão do exílio e é convidado pelo governo a retornar a
Florença, mas as condições impostas são humilhantes, semelhantes àquelas
reservadas aos criminosos. Dante rejeita o convite. Em represália à sua negativa,
recebe nova condenação, dessa vez extensiva aos filhos.

Em 1318, deixa Verona, que é agitada por conflitos políticos. Vai para Ravena, na
corte de Guido Novello da Polenta. É nesse momento que conclui o "Paraíso" e
quando escreve " Quaestio de Aqua et Terra ", versão pouco alongada da aula
ministrada pelo poeta sobre a questão de não poder a água, em altura, superar a
terra imersa. O cenário de intelectuais e de seus filhos, condenados que tinham
sido à morte, permite-lhe se dedicar ainda à escrita, redigindo duas "Éclogas".

Em 1321, ao regressar de uma embaixada, desempenhada em Veneza por conta de


Guido da Polenta. Dante adoece e é vencido pela malária. Morre em Ravena na
noite de 13 para 14 de setembro de 1321. Foi sepultado na Igreja de São
Francisco.

Dante e Beatriz:
Segundo o relato da Vita Nuova , Dante, já órfão de mãe, ainda criança – aos
nove anos de idade – conhece Beatriz, da mesma idade, por quem se apaixona.
Nessa época, os casamentos são motivados por alianças políticas entre as famílias.
Aos doze anos, Dante já está prometido em casamento a uma moça da família
Donati.

Quando o pai falece, Dante reencontra Beatriz, por quem nutre um amor platônico,
intenso e infeliz. Mas ela, assim como ele, também já está prometida em
casamento. Assim, em 1285 (aos 20 anos de idade, portanto), Dante se casa com
Gemma di Manetto Donati, com quem teria quatro filhos: Jacopo, Pietro, Giovanni e
Antonia. Sua filha se tornaria freira e assumiria o nome de Beatriz.

Em 1287, com 22 anos, Beatriz casa-se com o banqueiro Simone dei Bardi. A forma
como Dante encara o amor por sua musa, entretanto, não se modifica: ela será a
dama por quem ele estará apaixonado até o fim de seus dias. Embora quase nada
se saiba sobre ela, parece não haver existido nenhuma relação séria entre ambos.

Em 1290, aos 24 anos, Beatriz morre, prematuramente, deixando Dante


inconsolável. Do período imediato à sua morte, pouco se sabe, a não ser que teria
se entregado a uma vida dissoluta. Depois de uma mudança radical, passa a
dedicar-se à filosofia e literatura, e o amor platônico por sua musa está expresso
em Vita Nuova ("A Vida Nova"). Escrito por volta de 1293, é uma coleção de
sonetos e canções dedicados a Beatriz, complementados por um comentário em
prosa, que elucida o leitor sobre as circunstâncias em que os poemas foram
escritos e o estado de alma do poeta. Essa obra revela influência dos trovadores do
sul da França, já que o trovadorismo na região começou a florescer nos séculos XII
e XIII.

Data deste período (1293-1295), época em que escreve Vita Nuova , o desvio do
reto caminho, de que se declarará culpado – o que fornece o ponto de partida da
narração de A Divina Comédia , mas sem nunca especificá-lo. Presume-se que se
trate de uma tríplice infidelidade: à recordação de Beatriz (como o comprovariam
os sonetos escritos para Fioretta, Pargoletta e Petra), à doutrina do amor
sublimado, ao " dolce stil nuovo ".

Quando Dante falece, junto ao leito de morte encontra-se a filha Antonia, a freira
Beatriz.

Alguns críticos buscam na obra de Dante elementos biográficos, porém estudos


revelam que as aparentes confissões, na verdade, correspondem a esquemas
literários e procedimentos de composição. O caráter retórico da obra impede que se
estabeleça uma relação entre obra e realidade biográfica. Assim, os encontros de
Dante e Beatriz, aos 9 e depois aos 18 anos, na nona hora do dia, não têm o menor
valor histórico: trata-se apenas do mito poético de Dante e o seu itinerário interior.

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