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A morte do sentido

Maria Rita Kehl, O Estado de S.Paulo


03 de abril de 2010 | 00h00

O que tanta gente foi ver do lado de fora do tribunal onde foi julgado o casal Nardoni?
Torcer pela justiça, sim: as evidências permitiam uma forte convicção sobre os culpados, muito
antes do encerramento das investigações. Mas para torcer pela justiça não era necessário acampar
na porta do tribunal, de onde ninguém podia pressionar os jurados. Bastava fazer abaixo-assinados
via internet pela condenação do pai e da madrasta da Isabella. O que foram fazer lá, ao vivo? "Ver"
a morte? "Lá onde moro não tem esse negócio de morte violenta. Lá só tem árvores e passarinhos",
disse à TV um rapaz que viajou de Ibiúna para dormir ao relento na frente do fórum de Santana. Ele
foi ver a morte.
Mas a morte não se vê de fora do tribunal. Nem pelo lado de dentro. Nem de lugar nenhum.
A morte mesmo, mesmo, é aquilo que não se vê. Vê-se o corpo sem vida. Vêm-se marcas de
violência, decrepitude, doença. A morte está fora de nossa capacidade, tanto de representação em
imagem quanto de simbolização. Por isso (assim como o gozo sexual) ela dá tanto o que falar.
Talvez um assassino chegue muito perto de ver, frente a frente, a morte que causou. Como
pode suportar? Matar alguém é um ato que rompe a tela de proteção que separa o indivíduo de um
gozo excluído da consciência, da lei dos homens, da linguagem. Matar não traumatiza somente a
família da vítima. Traumatiza o assassino. Não precisamos ser piedosos para reconhecer esse fato
que, por si, não perdoa ninguém. Importa entender que a repetição é a resposta do psiquismo ao
trauma. O sujeito que mata uma vez é compelido a repetir seu ato na busca inconsciente de sentido
não só para o horror que cometeu, mas também para a identificação indelével na qual se precipitou:
a de assassino.
Todos os assassinos primários deveriam ter direito a tratamento psicológico. Independente
da magnitude da pena. Imaginemos quantos meninos da Febem não estão neste momento
ruminando seus atos, tentando combinar o antes e o depois, sem encontrar outra alternativa para
reorganizar-se psiquicamente a não ser se convencer de que são assassinos. Elaborar o trauma não
diminui o mal que foi feito, mas pode minimizar a possibilidade de que repitam o ato que também
os destruiu psiquicamente, além de ter destruído a vida alheia. A alternativa solitária é parar de
pensar e mergulhar de vez no mal absoluto.
Volto ao julgamento dos assassinos da criança Isabella. Penso que as pessoas não torceram
apenas pela condenação dos principais suspeitos. Torceram também para que a versão que inculpou
o pai e a madrasta fosse verdadeira. Alguém me disse, depois do assassinato dos queridos Glauco e
Raoni, que sentiu alívio ao saber que o criminoso era conhecido das vítimas. Ora essa: por quê?
Afinal, um crime cometido entre amigos - ou, pior ainda, por alguém da família - não é muito mais
hediondo do que a violência praticada por um estranho? Certamente sim. Quem pode se conformar
com a ideia de que um pai tenha participado do assassinato da filha pequena?
O relativo alívio que se sente ao saber que um assassinato se explica a partir do círculo de
relações pessoais da vítima talvez tenha duas explicações. Primeiro, a fantasia de que em nossas
famílias isso nunca há de acontecer. Em geral temos mais controle sobre nossas relações íntimas do
que sobre o acaso dos maus encontros que podem nos vitimar numa cidade grande. Nada mais
assustador do que a possibilidade do mau encontro: um ladrão armado, nervoso, cabeça fraca, que
depois de roubar resolve atirar sem saber por que, porque sim, porque já matou outras vezes e então,
por que não? Morrer na mão de um semelhante a quem não se pode dizer palavra alguma.
Segundo porque o crime familiar permite o lenitivo da construção de uma narrativa. Se toda
morte violenta, ou súbita, nos deixa frente a frente com o real traumático, busca-se a possibilidade
de inscrever o acontecido numa narrativa, ainda que terrível, capaz de produzir sentido para o que
não tem tamanho nem nunca terá, o que não tem conserto nem nunca terá, o que não faz sentido.
Até hoje não se inventou nada melhor do que as narrativas para proporcionar algum sentido
para o sem sentido do real. Não é o simbólico que faz efeito de verdade sobre o real, é o imaginário.
O mar de histórias, lendas, mitos, fofocas, as mil versões que correm de boca em boca, ainda que
mentirosas, ainda que totalmente inventadas, promovem um pequeno descanso na loucura que é
estar nesse mundo sem bússola, sem instruções de voo, sem verdade, sem amparo.
Desde que o renascimento abalou a narrativa hegemônica que a Igreja impôs ao homem
medieval, as pessoas se lamentam de que o mundo perdeu sua antiga ordem. A modernidade,
primeiro, pulverizou as grandes narrativas, depois tentou consolidar utopias mortíferas da razão e
agora procura recobrir a face do mundo com imagens industrializadas. Mas ainda não foi capaz de
inventar narrativas à altura da complexidade das forças humanas que ela própria liberou.
Fim
“O habitante dos grandes centros urbanos volta a cair no estado selvagem, o mesmo que dizer, no
isolamento. A sensação de depender dos outros, antes sempre estimulada pela necessidade, vai
decaindo progressivamente no funcionamento sem atritos dos mecanismos sociais. Cada
aperfeiçoamento desse mecanismo pressupõe a eliminação de determinados tipos de
comportamento e de certas emoções...” (Paul Valéry, Cahier B, Paris, 1910, p. 88-89). Citado por
Walter Benjamin em Sobre alguns motivos em Baudelaire, p. 127. Segundo Benjamin (2017
[1939]], p. 127), “o conforto isola”.

Vídeo Moby Are you lost in the world like me?


À UNE PASSANTE

La rue assourdissante autour de moi hurlait.


Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse,
Une femme passa, d’une main fastueuse
Soulevant, balançant le feston et l’ourlet;

Agile et noble, avec sa jambe de statue.


Moi, je buvais, crispé comme un extravagant,
Dans son oeil, ciel livide où germe l’ouragan,
La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.

Un éclair… puis la nuit! — Fugitive beauté


Dont le regard m’a fait soudainement renaître,
Ne te verrai-je plus que dans l’éternité?

Ailleurs, bien loin d’ici! trop tard! jamais peut-être!


Car j’ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,
Ô toi que j’eusse aimée, ô toi qui le savais!

(Charles Baudelaire)

A UMA PASSANTE

A rua ia gritando e eu ensurdecia.


Alta, magra, de tudo, dor tão majestosa,
Passou uma mulher que, com mãos sumptuosas,
Erguia e agitava a orla do vestido;

Nobre e ágil, com pernas iguais a uma estátua.


Crispado com um excêntrico, eu bebia, então,
Nos seus olhos, céu plúmbeo onde nasce o tufão,
A doçura que encanta e o prazer que mata.

Um raio… e depois noite! – Efémera beldade


Cujo olhar me fez renascer tão de súbito,
Só te verei de novo na eternidade?

Noutro lugar, bem longe! é tarde! talvez nunca!


Porque não sabes onde vou, nem eu onde ias,
Tu que eu teria amado, tu que bem sabias!

(Trad. Fernando Pinto do Amaral, 1999)

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