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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA

DOUTORADO EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO

DISCIPLINA: TEORIA DA RELIGIÃO

ALUNO: JÓVIRSON JOSÉ MILAGRES

Sagrado, Profano e Interdito: categorias-chave para se compreender situações de


conflito entre projetos políticos pedagógicos e fundamentalismo religioso

Pretendo, com o presente artigo, elencar temas relevantes para a elaboração da


minha tese de doutorado e que foram tratados sistematicamente por autores tidos como
clássicos – Rudolf Otto, Paul Tillich, Mircea Eliade - e, consequentemente,
fundamentais para consolidação da Ciência da Religião enquanto disciplina acadêmica
autônoma. Recorrerei a Émile Durkheim, cuja obra transita por diferentes domínios das
Ciências Sociais, mas que também se dedicou a estudar e teorizar sobre a religião e o
fenômeno religioso, contribuindo magistralmente para compor o campo de estudos que,
estruturado a partir de uma perspectiva interdisciplinar, compõem o conjunto das
Ciências da Religião.

Considerando o arcabouço teórico edificado por esses autores, utilizarei de


algumas ideias, noções e conceitos essenciais para tentar compreender teoricamente
uma dada situação empírica: a resistência de alunos em participar de atividades
escolares alegando motivos religiosos. Mais especificamente, me atentarei para como
Rudlf Otto, Mircea Eliade e Durkheim procuraram conceituar o Sagrado enquanto
objeto de análise privilegiado do fenômeno religioso. Contudo, é a noção de Interdito,
trabalhada categoricamente por Durkheim, que se constitui o instrumento conceitual
precioso para definir como esses alunos avaliam, pautando-se por critérios religiosos, as
atividades escolares as quais oferecem resistência.

A Realidade Empírica

Coincidindo com a expansão do movimento evangélico na última década do


século XX e início do XXI, os episódios que evidenciam a resistência de alunos
procedentes de famílias evangélicas, quase sempre pentecostais, em participar de
atividades escolares têm se tornado cada vez mais frequentes. Esse tipo de resistência,
que pode se limitar a uma indisposição prévia gerando vez por outra alguma frase de
esconjuro - ”Jesus tem poder!” – pode também desencadear conflitos difíceis de
contornar e surge quando a esses alunos são propostas atividades associadas à tradição
católica ou que abordam, mesmo tangencialmente, a religiosidade afro-brasileira.

Outra forma de intransigência por parte de alunos evangélicos, desencadeada por


motivações religiosas, diz respeito a atividades corporais propostas nas aulas de
Educação Física que contrariariam determinações de denominações mais severas quanto
ás normas de conduta de seus fiéis, particularmente no que se refere à corporeidade.

Há uma terceira situação bem característica que invariavelmente desperta a


objeção de alunos evangélicos em participar de atividades tradicionais da escola. São as
festas juninas. Como essas festividades são, em sua origem, dedicadas a homenagear
santos católicos, sofrem boicote por parte desses alunos e de suas famílias, mesmo que
essa referência aos santos nas festas juninas escolares seja mais folclórica e caricata que
devocional.

Por fim, alguns professores tem se deparado, cada vez mais, com a dificuldade
de se abordar o tema do evolucionismo nas escolas onde estudam alunos evangélicos de
tendência mais fundamentalista. Ao defenderem o criacionismo e a interpretação literal
da Bíblia, esses alunos criam situações muitas vezes difíceis de superar.

Cabe aqui uma consideração importante: quando me refiro a “alunos


evangélicos” incorro em uma generalização a priori que em tentarei determinar melhor,
buscando assim definir mais precisamente quem são os sujeitos que protagonizam as
ocorrências citadas. O termo “evangélico”, se referindo tão somente aos “seguidores do
evangelho”, seria uma simplificação da terminologia utilizada por Martinho Lutero, por
volta de 1600, na Germânia, como forma de englobar sob a mesma denominação
diversas ramificações do protestantismo: luteranos, calvinistas, etc. No Brasil, dizer que
alguém é evangélico significa dizer que o indivíduo é cristão, mas não é católico.

O universo representado pela diversidade de denominações evangélicas que


compõem o campo religioso brasileiro representa um conjunto heterogêneo, que
compreende desde protestantes históricos até os chamados neopentecostais. Cada uma
dessas denominações tem sua forma própria de se posicionar frente às situações
anteriormente descritas, que vêm deflagrando episódios de intransigência religiosa cada
vez mais frequentes nas escolas.

As denominações mais obstinadas em demarcar um posicionamento contrário às


atividades escolares que supostamente ferem seus princípios religiosos não constituem a
maioria do universo evangélico brasileiro. Invariavelmente referendam suas convicções
através de discursos marcados por um fundamentalismo religioso incipiente, ou então
por se apegarem à chamada “batalha espiritual”1, fenômeno contemporâneo da
animosidade originária de algumas denominações neopentecostais em relação às
religiões de matrizes africanas no Brasil e às suas entidades espirituais.

No decorrer de minha atividade docente, tenho tomado conhecimento de fatos a


partir de relatos de outros profissionais de educação – professores, coordenadores
pedagógicos, diretores escolares e articuladores de projetos sociais – que se deparam
com essa resistência por parte dos alunos ou de seus familiares em participar de alguma
atividade proposta alegando motivos religiosos e que, muitas vezes, não sabem a
maneira mais apropriada de se lidar com essa situação problemática.

Além da falta de fundamentação teórica de professores e demais agentes


educacionais, existe uma deficiência no que se refere a propostas metodológicas para
lidar com essas situações e mediar conflitos decorrentes de posicionamentos religiosos
que, nesse caso, se contrapõem ao projeto político pedagógico da escola. Tal conjuntura
reflete a dificuldade de se tratar questões que dizem respeito à religiosidade e a
convicções dogmáticas normalmente tidas como “pessoais”, de “foro íntimo” e,
portanto, indiscutíveis.

Contudo, podemos recorrer a algumas categorias próprias à Ciência da Religião


como chaves de compreensão para decodificar o pensamento desses sujeitos que,
alegando motivações religiosas, questionam e se opõem a participar das referidas
atividades. Essas categorias, assim como um embasamento teórico mais amplo pautado
no campo de estudos da Ciência da Religião, são de grande valia para os educadores
que, cada vez mais, se deparam com situações de conflito no cotidiano escolar.

1
Termo usado por Vagner Silva (2007) para caracterizar a oposição ferrenha de determinadas
denominações do movimento neopentecostal, que rechaçam veementemente a possibilidade do diálogo
inter-religioso no que se refere à aceitação de práticas comuns à religiões afro-brasileiras, inclusive
demonizando as entidades espirituais que compõem o panteão dessas religiões.
O Plano Conceitual

Inicialmente, é preciso reconhecer que a religião ocupa um papel significativo na


definição de hábitos de vida e visões de mundo de um modo geral. Isso se observa, de
maneira mais acentuada, no universo evangélico representado, no Brasil,
majoritariamente por grupos pentecostais que assumem um discurso fundamentalista
frente ás referidas questões.

As religiões teriam como prerrogativa a função2 de organizar a vida de seus


adeptos, conferindo-lhes normas de conduta e valores de julgamento para as atividades
mundanas. Mas, essa função, teria uma significância bem maior e suplantaria a
obrigatoriedade das regras prescritas por outras instituições, pois seriam determinações
“reveladas”, advindas de um “outro plano” que não o mundano, transcendentes. Para o
sujeito deveras religioso, aquele que se propõe a viver integralmente os preceitos de
uma determinada tradição religiosa, as regras propostas por sua crença suplantariam em
importância as regras das demais instituições em que ele está inserido – no caso aqui
tratado, a escola.

Existe uma tendência, derivada do pensamento cientificista moderno, que encara


com desconfiança as decisões tomadas tendo como base estritamente convicções
religiosas. Essa tendência se espelha principalmente nas ideias de Carl Marx, para quem
as religiões seriam uma forma de alienação social, e de Freud, que considerava a
religião uma ilusão criada pela mente para suportar a impotência frente às limitações
humanas.

Entretanto, proponho aqui analisar o tipo de posicionamento engajado dos


sujeitos religiosos a partir de uma outra perspectiva, “compreensiva” (WACH, 1988),
fenomenológica. Esta perspectiva supera, de certa forma, uma perspectiva puramente
“crítica”, pois não considera a religião simplesmente como uma doutrina alienante e,
por conseguinte, um mecanismo de dominação ideológica. Nesse sentido, Rubem Alves
defende inclusive que “a religião, mesmo nas suas formas mais “alienadas”, contem
uma crítica do real que a ciência, prisioneira de sua própria metafísica, não tem
condições para transcender” (ALVES, 1984).

2
Uma perspectiva funcionalista da religião é comum às Ciências Sociais. Desde Durkheim
invariavelmente trabalhos acadêmicos abordam a religião a partir de sua função socializadora,
determinante, coerciva, coercitiva, alienante, etc.
Uma perspectiva compreensiva reconhece, antes de mais nada, que numa
determinada situação em que posicionamentos religiosos afloram, sempre irão haver
pré-noções envolvidas. No caso aqui tratado, tanto por parte dos alunos, como por parte
dos professores e agentes educacionais que a vivenciam. Isso gera também um
problema de compreensão com o qual devemos lidar: mesmo o pesquisador que se
propõe a analisar essas situações e suas variáveis deve ter em mente que ele próprio
também parte de pré-noções que delimitam seu objeto de estudo, a começar pela ideia
de religião a que ele se apega como referência.

A ideia de religião como uma dimensão humana que pode ser analisada como
uma instância isolada, destacada do contexto cultural no qual se insere, emerge do
pensamento ocidental moderno, racional e positivista. A partir dessa perspectiva,
existem não apenas maneiras divergentes de se tentar conceituar o que seja religião 3,
como diferentes formas, pessoais e muito próprias, de se vivenciar uma experiência
religiosa.

O que podemos afirmar é que, dependendo do conceito de religião adotado,


automaticamente se privilegiará certos aspectos em detrimento de outros. De um modo
geral, quando nos referirmos à religião podemos ter em mente tanto um sistema de
crenças e práticas historicamente contextualizadas, como a dimensão subjetiva da
relação do ser humano com as divindades, ou seja, a estrutura específica do fenômeno
religioso, a religião em uma perspectiva mais essencialista.

Partindo dessa segunda perspectiva, Paul Tillich (1995), se vale de um conceito


de religião amplo, plural e essencialmente humano, que nos ajuda a compreender o
porquê da preponderância das motivações religiosas no questionamento peremptório de
determinadas atividades escolares. Para além do caráter institucional das tradições
religiosas, ele compreende a religião como algo que dá sentido e significado últimos à
vida das pessoas, fazendo parte de uma esfera da existência humana que manifesta
valores absolutos de desejos, justiça e fraternidade.

Para Tillich, a experiência religiosa pessoal é o momento em que o racional e o


irracional atuam e interagem; é quando o corpo, a alma, a mente e o coração se

3
Em O Objeto da Ciência da Religião Horizontes e Limites de um Conceito, aula preparada pelo
professor Frederico Pieper para a disciplina Teoria da Religião, ministrada no Programa de Pós-
graduação em Ciência da Religião da UFJF, 2018/1, é possível entender a limitação do(s) conceito(s) de
religião e a relativização da validade de se utilizar o conceito “religião” de uma forma universalizante.
mobilizam simultaneamente. Dessa forma, a religião é uma dimensão da natureza
humana que adquire a qualidade de dar sentido infinito ao finito. Segundo o autor, esse
traço da natureza humana não se refere apenas às tradições religiosas, mas a um sentido
profundo da vida, atribuído em diferentes momentos históricos e de diferentes formas.

Essa reflexão sobre o sentido da religião para a vida das pessoas ajuda a
compreender o aspecto “incondicional”, nas palavras de Tillich, assumido pela religião
na definição de normas de conduta dos fiéis. Para ele, a incondicionalidade é uma
característica primordial da religião que, no caso específico representado pela
resistência em participar de atividades escolares tidas como impróprias, se sobrepõe às
imposições normativas dos currículos escolares e às propostas didático-pedagógicas
elaboradas formalmente pelas instituições de ensino.

Além dos valores pessoais e subjetivos de sentido atribuídos à religião por seus
praticantes serem determinantes na definição de padrões culturais, como ressaltado por
Tillich (1995), outros autores se dedicaram a enfatizar o aspecto mais “objetivável” da
religiosidade como possibilidade plausível de estudo. Esses aspectos são importantes
para a compreensão do fenômeno religioso como um todo. A partir de sua dimensão
visível e mensurável, podemos avaliar as implicações do referido fenômeno na
formação de convicções e determinação de posturas comportamentais de grupos
religiosos e sujeitos filiados a esses grupos.

Tanto uma compreensão mais descritiva e analítica do fenômeno religioso,


própria da abordagem multidisciplinar compreendida pelas “ciências” da religião, como
uma mais normativa e fenomenológica, ajudariam a compreender a relevância das
motivações religiosas na vida das pessoas. Entretanto, uma síntese dessas duas
abordagens, visando uma perspectiva mais holística de apreensão do fenômeno, é rara.

A base do pensamento acadêmico sobre o qual a Ciência da Religião se legitima


– ou que, no caso do Brasil, ainda busca legitimidade – se estruturou principalmente a
partir da virada do século XIX e, desde então, dentre os conceitos mais fundamentais
trabalhados está a noção do Sagrado. Podemos considerar essa noção a partir de
categorias forjadas quase simultaneamente por dois autores, ambos considerados
“clássicos” em suas respectivas áreas, que se dedicaram a elaborar uma definição que
abarcasse toda a relevância do termo, atribuindo delimitações teóricas distintas ao seu
significado.
O primeiro, do ponto de vista cronológico, a enfatizar a importância da noção do
Sagrado para se entender o fenômeno religioso foi Émile Durkheim (1858-1917).
Procurando definir categoricamente os limites e a abrangência do termo, com toda
preocupação sistemática e metodológica que lhe garantiu o título de um dos “pais da
Sociologia”, Durkheim foi fundamental para edificar a tradição francesa das Sciences
des religions, herdeira direta das ciências sociais da religião.

Ao lançar, em 1912, As Formas Elementares da Vida Religiosa: o sistema


totêmico na Austrália, o autor propôs uma definição do Sagrado e de sua dimensão
oposta e complementar, o Profano. Se empenhou também na definição e caracterização
das interdições de caráter religioso, categoria que será extremamente útil para a
compreensão sobre a resistência de alunos evangélicos frente a determinados conteúdos
curriculares.

Outro autor a se debruçar sobre a noção do Sagrado e a partir do qual se


constituiu uma linha de pensamento sobre o fenômeno religioso foi Rudolf Otto (1869 –
1937). Sua obra O Sagrado (2007) é considerada um marco constituinte da tradição
Alemã e dos Países Baixos em se abordar a Religião como um objeto específico de
estudo científico – Religionswissenschaft.

Publicado em 1917, ou seja, cinco anos após As Formas Elementares da


Religião de Durkheim, o livro de Otto desenvolve o tema tendo como referência
conceitual recorrente a obra de Friedrich Scheleiemarcher (1768-1834). Scheleimacher
procura desvincular a religião da concepção hegemônica dos intelectuais de seu tempo,
pautada por critérios iluministas e racionalistas, além de considera-la a partir de sua
autonomia em relação a outras esferas da natureza humana. Com isso, distinguiu-se
tanto de Kant como de Hegel por não enfatizar, respectivamente, nem o aspecto moral
nem o aspecto metafísico da religião (DREHER, 2001).

Buscando revisar e aprimorar a contribuição teórica de Scheleiemarcher, Otto


não tem como objeto último de análise nem as ideias sobre Deus nem sobre a religião,
mas se dedica a interpretar as particularidades da experiência religiosa, principalmente
no que se refere ao seu caráter irracional. A partir da experiência pessoal do sagrado e
de seu aspecto ao mesmo tempo pavoroso, majestoso, tremendo e fascinante, ele forjou
o termo “numinoso” (do latim numem, “deus”) para caracterizar a experiência religiosa
por excelência, que antecede todo e qualquer conceito de Deus. Esse seria o elemento a
partir do qual se constituiriam e estruturariam todas as religiões.

Considerando a Religião uma dimensão da vida humana que precisa ser


entendida a partir de si própria, Otto julgava importante que o cientista interessado em
pesquisar a religião tivesse sua própria crença, a partir da qual pudesse vivenciar a
experiência do sagrado e seu significado. Se opondo a qualquer tentativa de derivar a
Ciência da Religião de outra disciplina, para ele a categoria do Sagrado apresenta um
elemento ou aspecto bem específico, que foge ao acesso estritamente racional e à
apreensão conceitual pura. Assim, um estudo sobre a religião que se proponha a
compreender sua dimensão mais ampla atingiria seus objetivos através de uma
abordagem que não partisse apenas de uma perspectiva estritamente racional, mas que
considerasse também o aspecto não racional do fenômeno religioso, com todas as
dificuldades e limitações conceituais e metodológicas que tal abordagem implica.

Desse modo, o autor conduz sua linha de pensamento por um sentimento mais
essencialista da religião, se contrapondo assim ao sentido funcionalista,
tradicionalmente privilegiado pelas ciências sociais. Por esse enfoque original sua obra
foi considerada precursora da fenomenologia da religião. Por sua originalidade Otto
também foi criticado, tanto porque seria mais um filósofo da religião do que um
fenomenólogo, como porque sua fenomenologia estaria mais voltada para a teologia,
não podendo assim ser respeitada enquanto ciência.

O certo é que, desde que foi publicado, O Sagrado vem servindo de referência
obrigatória por ampliar a compreensão do fenômeno religioso em suas especificidades.
A obra foi concebida em meio ao pensamento científico vigente de sua época, que
reconhecia como incontestável a superioridade do aprimoramento intelectual europeu,
da mesma forma que o modelo ocidental de civilização como o resultado de um
processo evolutivo pelo qual a humanidade tenderia naturalmente a passar.

Contemporâneo de Otto, Durkheim também apresenta, ao conceber As Formas


Elementares da Vida Religiosa (2003), um modelo de interpretação do fenômeno
religioso a partir de uma visão pautada pela noção de evolucionismo cultural que,
invariavelmente, norteava a produção intelectual da época. Analisando os sistemas
religiosos mais “primitivos” conhecidos – no caso o dos aborígenes australianos -
julgava que poderia se chegar à formas elementares que preexistiriam e seriam comuns
a todos os sistemas religiosos concebidos pela humanidade.

Apesar de permeada por um pensamento etnocêntrico questionável, essa obra de


Durkheim é de extrema relevância para a finalidade que se destina esse artigo, pois pode
nos dizer muito sobre o significado religioso das desmotivações de alunos evangélicos
em participar de determinadas atividades escolares. Buscarei então, a seguir, delinear a
maneira como o autor elabora conceitualmente as noções de Sagrado, Profano e
Interdições Religiosas.

Para ele, a diferenciação das coisas concebidas pelo homem, sejam elas “reais ou
ideais”, em dois gêneros opostos, o sagrado e o profano, é uma característica comum a
todas as crenças religiosas conhecidas. Esse seria por excelência o traço distintivo do
pensamento religioso: “a divisão do mundo em dois domínios que compreendem, um,
tudo o que é sagrado, outro, tudo o que é profano” (DURKHEIM, 2003, p. 19).
Ao descrever as características gerais pelas quais o sagrado se diferencia do
profano, Durkheim considera que as coisas sagradas são comumente tidas como
hierarquicamente superiores em dignidade e em poderes às coisas profanas. Também o
homem, “quando este é apenas um homem e nada possui, por si próprio, de sagrado,
ocupa, em relação às coisas sagradas, uma situação inferior e dependente” (ibidem).
Essa classificação das coisas do mundo como sagradas ou profanas é absoluta,
não existindo, segundo o autor, duas categorias de coisas tão profundamente
diferenciadas na história do pensamento humano e tão radicalmente opostas uma à
outra. Mesmo que a forma de oposição entre as referidas categorias possa não ser a
mesma e variar de religião para religião, a diferenciação fundamental, entretanto, seria
universal (idem, p.20).

Durkheim segue enfatizando que essa diferenciação seria uma característica


primordial do fenômeno religioso, que

supõe sempre uma divisão bipartida do universo conhecido e conhecível em


dois gêneros que compreendem tudo o que existe, mas que se excluem
radicalmente. As coisas sagradas são aquelas que as proibições protegem e
isolam; as coisas profanas, aquelas a que se aplicam essas proibições e que
devem permanecer à distância das primeiras. As crenças religiosas são
representações que exprimem a natureza das coisas sagradas e as relações
que elas mantêm, seja entre si, seja com as coisas profanas. Enfim, os ritos
são regras de conduta que prescrevem como o homem deve comportar-se
com as coisas sagradas (idem, p.23).
Sendo assim, por definição, os seres sagrados são “seres separados”, e é
necessário que haja um conjunto de ritos para que se confirme essa separação, essencial
para todo sistema religioso. Durkheim propõe chamar de “culto negativo” o sistema
formado por um conjunto de ritos especiais que “limitam e proíbem certas formas de
agir” (DURKHEIM, 2003, p.328). Dentro desse conjunto de ritos especiais, chamados
de culto negativo, estão as prescrições relativas a determinadas situações consideradas
“interditas”.

Para o autor, as interdições existem em todas as religiões e são “imperativos


categóricos”, sempre desempenhando um importante papel na constituição de um
determinado sistema religioso. Elas pressupõem a noção do sagrado, são derivadas do
respeito e da reverência que se espera frente ao objeto sagrado, servem para evitar que
se falte com esse respeito. Violar essas interdições resulta em censura e reprovação
pública (idem, p. 319).

Segundo Durkheim, as interdições religiosas se diferenciam entre aquelas


destinadas a isolar o sagrado do profano e aquelas, que são as que mais nos interessam
aqui, que têm a função de separar o sagrado puro do impuro. Essas seriam, ainda
segundo o autor, as mais importantes das interdições, pois se destinariam a impedir toda
comunicação dentro do próprio âmbito do sagrado, diferenciando o que seria o sagrado
“fasto” do “nefasto”. As interdições desse tipo “têm uma característica comum: advêm,
não do fato de haver coisas sagradas e outras que não o são, mas de existirem entre as
coisas sagradas relações de inconveniência e de incompatibilidade” (idem, p. 320). A
meu ver, essa seria a dificuldade que enfrentam os professores quando propõem
conteúdos da cultura afro-brasileira e se deparam com a resistência de alunos
evangélicos, impedidos de participar daquelas atividades por determinações religiosas.

Quarenta e sete anos depois de As Formas Elementares da Vida Religiosa ter


sido lançada, ou seja, em 1959, Mircea Eliade (1907-1986) publicou O Sagrado e o
Profano: a essência das religiões, se propondo a “apresentar o fenômeno do sagrado em
toda sua complexidade, e não apenas no que ele comporta de irracional” (ELIADE,
1995, p. 17). Com a preocupação explícita de se diferenciar de Rudolf Otto, não se
interessou pelos elementos racionais e não racionais da religião, mas sim em investigar
o sagrado em sua totalidade (ibidem).
Apesar de se empenhar em caracterizar exatamente um conceito ao qual, quase
meio século antes, Durkheim também havia se proposto a categorizar de forma
pormenorizada, não existe nenhuma referência à contribuição do pensador francês nesse
sentido ao longo de todo o livro de Eliade. O mais impressionante é que ele cita
textualmente que “a primeira definição que se pode dar ao sagrado é que ele se opõe ao
profano”, e continua avisando que as “páginas que o leitor vai abordar têm por objetivo
ilustrar e precisar essa oposição entre o sagrado e o profano” (ELIADE, 1995, p.17).

Podemos entender essa omissão como uma predisposição do autor em consolidar


uma linhagem de estudos sobre a religião e suas características essenciais a partir de
uma corrente de pensamentos em detrimento de outra. Dessa forma, ele privilegia uma
perspectiva fenomenológica, optando por eleger como referência o texto fundante de
Rudolf Otto (2007). Existe uma única referência a Durkheim, na introdução do livro,
quando Eliade, ao fazer um apanhado histórico sobre o desenvolvimento dos estudos
acadêmicos sobre a religião, cita que o autor francês “julgava ter encontrado no
totemismo a explicação sociológica da religião” (ELIADE, 1995, p.12).

Em seu conjunto, a obra de Eliade trata de identificar os esforços humanos em


opor os domínios do sagrado em relação ao do profano no espaço, no tempo, na
sacralização da natureza e na própria dimensão humana. Para o autor, essa demarcação
de campos distintos pela sacralização do universo se dá a partir da atribuição de valores
e significados extraordinários às coisas mundanas. Para tipificar esses momentos e
situações em que se constata a manifestação do sagrado ele criou o conceito de
“hierofania”.

Essa seria a grande importância da religião: conferir uma ordenação


cosmogônica, de inspiração divina, revelada, que confere sentido à configuração
originalmente caótica do mundo. Essa ordenação se daria a partir da demarcação
espacial e temporal de instâncias sagradas, caracterizando assim a ocorrência da
hierofania.

Eliade acreditava que a sociedade moderna estaria passando por uma crise de
“dessacralização” do mundo. Dessa forma, as hierofanias seriam cada vez menos
frequentes e o homem moderno estaria se distanciando cada vez mais do que ele definiu
como o “homo religiosus”, uma característica essencial do ser humano, presente no
homem primitivo e que estaria se extinguindo na modernidade.
Aqui aparece mais uma vez, mesmo que indiretamente, a ideia equivocada de
um “evolucionismo cultural”. Apesar do incontestável processo de secularização
iniciado com o Iluminismo e da crescente e irreversível laicização das instituições
estatais, um movimento de reafirmação da religiosidade cada vez mais difuso e
difundido em diferentes setores da sociedade eclode vigorosamente, em proporções
variáveis, em diversas partes do mundo.

Como ignorar a profusão de gurus indianos e de correntes espirituais Nova Era,


o acirramento das jihads e o grande número de conversões ao islamismo pelo Ocidente,
a expansão do Pentecostalismo em países do terceiro mundo e, no Brasil, as propostas
político-partidárias de orientação religiosa fundamentalista cada vez pungentes, o
interesse da classe média pelas religiões de matrizes africanas, a profusão de
denominações religiosas nas periferias e nas pequenas cidades e, enfim, a “batalha
espiritual” que vez por outra eclode, em versão moderada, no cotidiano das escolas
públicas brasileiras?

A “batalha espiritual” é o que caracteriza a mobilização de algumas


denominações religiosas mais radicais, contrárias à implementação de políticas
educacionais que incentivam a difusão da cultura afro-brasileira nas escolas. Gerando
uma tensão que, por vezes, eclode em situações de conflito explícito no ambiente
escolar. Esse confronto reflete uma tendência recorrente na sociedade brasileira nas três
últimas décadas, período em que houve uma intensificação de ataques promovidos por
igrejas neopentecostais às religiões de matriz africana.

Esses conflitos podem ser vistos a partir de uma perspectiva que reconheça aí a
busca por afirmação identitária em um contexto pós-moderno que propicia a emergência
de fundamentalismos religiosos, ou então como uma disputa por “clientes” eventuais em
um panorama que configuraria o campo religioso brasileiro atual a partir de uma lógica
capitalista de mercado.

Entretanto, uma perspectiva original sobre esses conflitos pode ser pensada à luz
de uma abordagem fenomenológica e normativa que, sem desconsiderar as implicações
sociais, culturais e históricas do fenômeno religioso, privilegie sua dimensão mais
íntima, particular e existencial. Essa seria a especificidade e o diferencial do campo de
estudos abarcado pela Ciência da Religião em relação às demais Ciências da
Humanidade.
BIBLIOGRAFIA

ALVES, Rubem. O Suspiro dos Oprimidos. São Paulo, Paulinas: 1984.

DREHER, Luís. Recensão do livro Sobre a Religião: Discursos a Seus


Menosprezadores Eruditos, de Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher. (São Paulo: Novo
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DURKHEIM, Èmile. As Formas Elementares da Vida Religiosa [1912]. São Paulo,


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SILVA, Vagner Gonçalves da. Neopentecostalismo e Religiões Afrobrasileiras:


significados do ataque aos símbolos da herança religiosa africana no Brasil
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TILLICH, Paul, Dinâmica da Fé. São Leopoldo: Sinodal, 1985.

WACH, Joachim. Introduction to History of Religions. New York: Macmillian


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