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Dialectos açorianos

Contributos para a sua classificação

Luísa Segura
Centro de Linguística da Universidade de Lisboa

1. A conclusão de alguns volumes de mapas do Atlas Linguístico-Etnográfico dos Açores


(ALEAç)1, em parte ainda inéditos, permite, pela primeira vez, ter uma visão de conjunto
dos dialectos açorianos (doravante DA). A apresentação sistematizada dos mesmos dados
recolhidos em todas as ilhas permite, de facto, compará-los, constituindo um ponto de
partida seguro para o conhecimento e consequente descrição e caracterização dos dialectos
das várias ilhas2. O meu objectivo é pois apresentar uma primeira reflexão sobre os
resultados tomados no seu conjunto e tentar uma caracterização e classificação dos DA (ou,
pelo menos, encontrar afinidades que justifiquem um primeiro agrupamento), uma e outra
forçosamente provisórias.
O ALEAç3 apresenta uma rede de 17 pontos de inquérito (V. Mapa 1), distribuída e
numerada da seguinte maneira:
Corvo: 1 Vila Nova do Corvo;
Flores: 2 Fajãzinha; 3 Ponta Ruiva;
Faial: 4 Castelo Branco; 5 Cedros;
Pico: 6 São Roque; 7 Terras;
São Jorge: 8 Calheta; 9 Rosais;
Graciosa: 10 Carapacho;
Terceira: 11 Altares, 12 Fontinhas;
São Miguel: 13 Mosteiros; 14 Rabo de Peixe; 15 Ponta Garça; 16 Nordeste;
Santa Maria: 17 Santo Espírito4.

1
Barros Ferreira et al. (2001).
2
Embora existam descrições, algumas extensas e rigorosas de alguns dos dialectos do arquipélago,
nomeadamente de São Miguel, Terceira ou Corvo, não existem descrições referentes a todas as ilhas.
3
O ALEAç é parte integrante dum projecto mais vasto, o Atlas Linguístico-Etnográfico de Portugal e da
Galiza (APEPG). A sua publicação, no entanto, autonomizou-se e antecipou-se relativamente a este
projecto.
4
Os inquéritos foram realizados em várias etapas, primeiro em 1979 (inquéritos de prospecção,
especialmente), depois em 1981, tendo a parte mais significativa dos dados sido recolhida em 1995 e 1996.

1
A análise efectuada partiu da observação das respostas obtidas e posteriormente
cartografadas nestes 17 pontos para as perguntas do Questionário5, nomeadamente as
referentes a três dos volumes prontos para publicação; esses volumes englobam os capítulos
correspondentes, respectivamente ao léxico da criação de gado e da matança do porco
(Vol. I), do cultivo da vinha e do fabrico do vinho, do tratamento do linho e da lã e da
tecelagem (Vol. II) e do cultivo dos cereais, dos sistemas de moagem tradicionais (moinhos
de água e de vento e atafona) e do fabrico do pão (Vol. III). Estes três volumes perfazem
um total de 428 mapas em que as respostas cartografadas se apresentam em transcrição
fonética.
2. Como se sabe, nenhuma das classificações que foram feitas dos dialectos portugueses6
contempla os dialectos insulares que, no entanto, têm sido filiados nos dialectos do sul do
país ou deles aproximados7. Mas, para além de uma inevitável aproximação aos dialectos
continentais, importa reconhecer que as especificidades dos DA lhes conferem um estatuto
que permite considerar a sua autonomia, como Cintra já reconhecia no seu último trabalho
de dialectologia.8
Um dos processos habituais quando se pretende delimitar dialectos é escolher um traço
fonético relevante ou um número muito reduzido de traços cujas isófonas permitam traçar
fronteiras. Tentando aplicar essa metodologia aos DA, a primeira tentativa foi a de verificar
se os traços que Cintra usa na sua divisão dos dialectos continentais se mostrariam
operativos para estabelecer distinções no interior dos DA. Porém, nenhum dos traços
consonânticos que Cintra utilizou – inexistência vs existência da africada [ ], ausência de

distinção fonológica entre /v/ e /b/, existência de sibilantes ápico-alveolares – podem ser
tomados em consideração para estabelecer distinções internas nos DA; de facto, estes
identificam-se na totalidade com os traços de um dos grupos de dialectos do continente, o
grupo dos dialectos centro-meridionais, que é também aquele em que se inclui o português-
padrão, o que equivale a dizer que, no tratamento destas consoantes, os DA se identificam
com o português-padrão. Relativamente aos traços vocálicos – conservação vs
monotongação dos ditongos grafados ei e ou, os DA coincidem neste caso com os dialectos

5
O questionário usado, fundamentalmente o do ALEPG, abrange uma grande variedade de temas,
contemplando, por um lado, o léxico comum e, por outro, o léxico especializado de determinadas
actividades tradicionais (por exemplo o cultivo dos campos, a criação de gado, a pesca), de ofícios e
tecnologias tradicionais (por exemplo a moagem, o fabrico do pão, a tecelagem) ou ainda nomes de plantas
e de animais.
6
Vasconcellos (1897), id. (1901), id. (1929), Boléo e Santos Silva (1962), Vásquez Cuesta e Mendes da Luz
(1971) e Cintra (1971).
7
Vasconcellos (1901: 129-30), Cunha e Cintra (1984: 19).

2
continentais do Norte de Portugal (e também com os de Lisboa quanto a ei), à excepção
dos dialectos micaelenses.
Pareceu-me então dever procurar o traço ou traços diferenciadores entre os que são
privativos dos DA, por referência aos dialectos continentais, querendo com isso significar
que não existam nestes ou que, existindo, se diferenciem, de alguma maneira, destes ou se
manifestem de forma esporádica.
Antes porém, devo referir que a selecção desses traços me suscitou alguma perplexidade
face à existência (de há muito conhecida e que os materiais analisados não fazem senão
confirmar) de alguns DA de forte personalidade, ou seja, fortemente marcados e claramente
distintos de outros e que é, obviamente, necessário isolar: estou a referir-me evidentemente
aos dialectos da ilha de São Miguel, com o chamado “deslocamento em cadeia” do seu
sistema vocálico que não tem paralelo em nenhuma das outras ilhas9 e também aos da ilha
Terceira, em que se regista um traço característico e original, desconhecido dos dialectos
continentais (ou, pelo menos, de contornos diferentes daquele que se lhe pode comparar no
continente), a harmonização vocálica provocada na sílaba tónica pelas vogais átonas das
sílabas precedentes; este traço não se restringe, porém, à ilha Terceira.
Estas constatações - (i) O facto de o dialecto micaelense ser tão marcado, estável e de tal
maneira coeso que não pareceu aconselhável como que desmontá-lo ou desmembrá-lo,
erigindo um ou outro traço tomado isoladamente para comparar com os dialectos das
restantes ilhas; (ii) a harmonização vocálica não se circunscrever à ilha Terceira –
determinaram, de certa maneira, a selecção dos traços que vim a considerar como relevantes
para o estabelecimento de distinções nos DA e que são os seguintes:
harmonização vocálica
metafonia pela vogal final;
supressão da vibrante em final absoluto

3. Vejamos mais detalhadamente em que consistem estes traços:

3.1 Harmonização vocálica

Recordemos que se chama harmonização vocálica a um conjunto de fenómenos que têm por

8
Cintra (1990).
9
O que não quer dizer que não se verifiquem noutras ilhas alguns dos traços que encontramos em São
Miguel, mas não encontramos o seu conjunto, a arquitectura do seu sistema.

3
resultado aproximar o timbre de uma vogal do timbre de uma outra que lhe está próxima.
Um dos aspectos mais originais que encontramos em alguns dos DA é a instabilidade que
podemos reconhecer na vogal acentuada. Essa instabilidade é devida à acção da
harmonização vocálica e da metafonia que modificam a vogal acentuada por dois tipos de
condicionamentos: por um lado, pelo timbre das vogais e das semivogais das sílabas átonas
que a precedem (harmonização vocálica) e, por outro lado, pela vogal átona da sílaba final,
fenómeno a que geralmente se dá o nome de metafonia.
3.1.1 Harmonização vocálica pelo timbre da vogal pretónica

A estrutura da sílaba acentuada modifica-se sempre que, na sílaba anterior ou na sílaba final
do vocábulo anterior, existe ou existiu [i] ou [j] ou, então, [u] ou [w]. Essa modificação
traduz-se no aparecimento das semivogais [j] ou [w], respectivamente, antes da vogal
acentuada passando a formar com ela um ditongo crescente. Trata-se de um fenómeno de
harmonização vocálica devido à qualidade da vogal ou da semivogal pretónicas, que se faz
sentir sobre todas as vogais orais e nasais.

Vogal acentuada antecedida de [i] oral ou nasal ou de [j] de ditongo oral ou nasal:

ceifar vitelo

limpar tinota

em sacas leitoa

chiqueiro estopa

Vogal acentuada antecedida de [u] oral ou nasal ou de [w] de ditongo oral ou nasal:

δ o gado do pé

δ podar novelo

um cacho ! torresmos

" (es)tão fartas # $δ um bêbedo

! morcela % forquilha

A semivogal pode, por sua vez, condicionar o timbre da vogal acentuada que assim adquire
a qualidade (palatal ou velar) da semivogal, como alguns dos exemplos evidenciam. Este

4
processo de palatalização ou de velarização provocada pela semivogal pode ainda conduzir
à assimilação total entre os dois elementos do ditongo e à sua fusão, fazendo desaparecer a
semivogal; podem assim coexistir variantes fonéticas dum mesmo vocábulo (i) com ditongo
e manutenção do timbre da vogal tónica; (ii) com ditongo e alteração do timbre da vogal
tónica; (iii) com palatalização ou velarização da vogal tónica e queda da semivogal. O facto
de a vogal condicionadora poder integrar a sílaba final do vocábulo precedente tem como
consequência não ser estável a sílaba acentuada, podendo um mesmo vocábulo apresentar
realizações diferentes, consoante o contexto frásico anterior, como se exemplifica a seguir:

três cachos " em cacho um cacho

Especialmente sobre a vogal & ', o efeito de inserção da semivogal & ' pode ter como

consequência a deslocação do acento, passando o ditongo de crescente & ' a decrescente

& '10:

( ( o trigo ! % ! % o milho

Distribuição geográfica
A harmonização vocálica tem a sua incidência máxima na Terceira, mas não é, no entanto
exclusiva desta ilha; encontramo-la, com maior ou menor regularidade e frequência, em
praticamente todas as ilhas do arquipélago, à excepção da ilha de São Miguel. Atendendo
ao número de ocorrências observadas nos mapas, estabeleceram-se os vários graus de
incidência que estão representados no Mapa 2. – “Harmonização vocálica”. Aí podemos ver
que, para além da incidência máxima assinalada para a Terceira, se consideraram com
incidência média alta as ilhas Graciosa e São Jorge, com incidência média baixa as ilhas do
Pico e de São Jorge ainda no Grupo Central e as ilhas das Flores e do Corvo do Grupo
Ocidental e com incidência mínima as pouco numerosas ocorrências registadas na ilha de
Santa Maria.
Convém ainda assinalar que: (i) o ponto 7 (Terras) mostra-se mais produtivo do que
qualquer dos outros que incluí no mesmo grupo; (ii) no Faial, no ponto 4 (Castelo Branco)
registou-se maior número de ocorrências do que no ponto 5 (Cedros), ou seja, neste o traço
é menos regular do que naquele; (iii) nas diferentes ilhas, a formação de ditongos crescentes

10
Para uma informação mais completa, nomeadamente sobre outro tipo de modificações que se produzem
V. Martins e Vitorino (1989) e Segura da Cruz e Saramago (1999).

5
com semivogal velar (bem como as modificações daí decorrentes) é mais frequente e regular
do que a formação de ditongos com semivogal palatal; contudo, no Corvo e pelo menos
num dos pontos das Flores, Ponta Ruiva, mostrou-se mais produtiva a formação de
ditongos com semivogal palatal.

3.1.2 Harmonização vocálica pelo timbre da vogal final: Metafonia

Outra manifestação de harmonização vocálica que se regista nos DA, e que é desconhecida
dos dialectos continentais, é a modificação de timbre da vogal tónica condicionada pela
presença da vogal átona & ' na sílaba final11.

A modificação consiste na aquisição, pela vogal acentuada, da qualidade velar da vogal & '.

A acção metafónica de & ' incide especialmente sobre a vogal / / que se velariza em graus

diversos, &)', & ', chegando, a ser pronunciada como & ': g&)'do, g& 'do, g& 'do ou

c&)'rro, c& 'rro, c& 'rro são realizações que se registaram, em diversos pontos do

arquipélago, respectivamente para “gado” e “carro”.


A metafonia por & ' final pode exercer-se também, embora com menor regularidade, sobre

outras vogais, isoladas ou em ditongo, nomeadamente sobre /e/ e /i/. Exemplifica-se, a


seguir, os vários casos de vogais modificadas com pares de palavras que apenas divergem
na vogal final, e que foram recolhidos em diferentes ilhas. Em todos os casos em que se
verifica & ' átono final, a vogal acentuada é articulada com recuo da zona de articulação:

p& 'sta p[)]sto Ponta Ruiva


p& 'sta p[ ]sto p& 'sto Carapacho
p& 'sta p[)]sto p[ ]sto Mosteiros
p& 'sta p[ ]sto Sto. Espírito
s& 'ca s[)]co Corvo, Mosteiros, Rabo de
Peixe
chib& 'rra chib[ ]rro Sto. Espírito

bez& 'rra bez&*'rro Carapacho, Nordeste, Sto.


Espírito

11
A metafonia pela vogal átona final [u], que se observa nos DA (e também nos dialectos madeirenses, cf.
Segura da Cruz e Saramago (1999:720-724)), opera no sentido da adequação da vogal acentuada ao mesmo
lugar de articulação da vogal átona, ou seja, em termos de timbre e não de abertura, como nos casos de
fechamento das vogais [ ] e [ ] respectivamente em [o] e [e] no português.

6
cabr& 'ta cabr& +'to Carapacho

cord[ 'ra cord&* 'ro Carapacho


pen[ 'ra pen&* 'ro Carapacho

Distribuição geográfica
A velarização de & ' sob o efeito metafónico de & ' final apresenta um grau mais elevado e

maior regularidade nas ilhas de São Miguel, Graciosa, Corvo e Santa Maria, embora se
possa atestar em quase todo o arquipélago. A acção da metafonia sobre outras vogais
ocorre especialmente na Graciosa e em São Miguel. É contudo na Graciosa que a metafonia
adquire a sua maior expressão.12
Este tipo de metafonia é desconhecido dos dialectos do continente, embora a existência de
[a] velarizado se registe, como é sabido, nos dialectos da Beira Baixa e Alto Alentejo e do
Barlavento do Algarve, porém não dependente de condicionamentos.

3.2. Supressão da vibrante em final absoluto


Tal como os traços anteriormente indicados, este também diverge daquilo que se verifica
nos dialectos do continente e, tal como os outros, parece-me, é facilmente notado por um
continental. Trata-se da supressão ou apócope da vibrante em posição final de palavra,
exemplificada a seguir:

lav[ ] lavar toc[ ' tocar mo[ ] moer

cav[ ] cavar lag[ ] lagar lavrad[ ] lavrador

A supressão da vibrante nestas condições é conhecida como própria do português do Brasil,


pois não tem sido referenciada nos dialectos continentais portugueses. Pelo contrário, a não
realização da vibrante em final de vocábulo, imediatamente antes de palavra começada por
consoante, ocorre no português continental, mesmo no português standard, sobretudo em
registo corrente, como já notava Leite de Vasconcellos.13 Este tipo de elisão condicionada
pelo contexto seguinte também se verifica nos DA, mas aquele que me parece mais
relevante e que o distingue, de facto, dos dialectos continentais é a não realização da

12
Cf. Segura da Cruz e Saramago (1999: 722, 23).
13
Vasconcellos (1901: 77, 98) refere-o na pronúncia descuidada, pelo menos no Centro e no Norte de
Portugal, a que se pode acrescentar também testemunhos relativos ao Sul do país, registados no Algarve (cf.
Segura da Cruz (1991:91).

7
vibrante final seguida de pausa, ou seja, não justificada pela existência de um contexto
seguinte propiciador de elisão.
Distribuição geográfica
A análise dos mapas revela que, embora ocorra praticamente em todos os pontos inquiridos,
a apócope da vibrante não apresenta a mesma frequência e regularidade em todos eles14.
Enquanto se mostra como uma tendência praticamente constante no Corvo, Fajãzinha
(Flores), Altares e Fontinhas (Terceira), Mosteiros, Rabo de Peixe e Ponta Garça (São
Miguel), noutros pontos ocorre esporadicamente, como em S. Roque (Pico), Calheta (São
Jorge) e Santo Espírito (Santa Maria), registando-se muito baixa frequência ou mesmo
inexistência em Ponta Ruiva (Flores), Castelo Branco e Cedros (Faial), Terras (Pico) e
Nordeste (São Miguel). (V. Mapa 3)

4. Tendo em conta os traços escolhidos, a sua distribuição no arquipélago e aquilo que


parecem ser as tendências dos dialectos, o traço que se mostra mais interessante e original é
a instabilidade das vogais, ou seja, os fenómenos de harmonização vocálica que, como se
viu, actuam segundo duas direcções: das sílabas pretónicas para as tónicas e da sílaba final
também para a tónica. Dada a análise efectuada e perante os dados disponíveis pareceu-nos
poder tomar como traço diferenciador aquele que designamos por harmonização vocálica
em sentido restrito. Tomando pois esse traço, propõe-se como primeira grande divisão dos
DA duas áreas ou dois grupos de dialectos:
Área constituída pelos dialectos micaelenses;
Área constituída pelos grupos de dialectos sensíveis a fenómenos de
harmonização vocálica, em sentido restrito.
De acordo com esta primeira divisão teremos, por um lado, os dialectos da ilha de São
Miguel ou dialectos micaelenses opondo-se a um conjunto formado pelos dialectos de todas
as outras ilhas. De facto, o fenómeno de harmonização vocálica manifesta-se, ainda que em
diferentes graus, em todas as ilhas, à excepção exactamente da ilha de São Miguel, como já
foi referido e como pode ser observado no Mapa 2.
Assim teremos como próprio dos dialectos micaelenses – e independentemente das divisões
internas que neles se possam e devam reconhecer – a chamada evolução em cadeia do seu
sistema vocálico acentuado que poderemos sucintamente caracterizar e exemplificar da
seguinte maneira:

8
/i/ é realizado com maior abertura e abaixamento, [ +], quase como [ ] como em barriga

[# +( ] ou cabrita [ $ + ];

/e/ centraliza em & ,], como em bezerra [#- , ], rês [ , ] ou [ ];

/ / é realizado como [.], como em vitela [ . / ];

/a/ velariza em [ ], como em pata [ ], carro [ ];

/ / é realizado com maior elevação, aproximando-se de [o], como em bode [# ];

/o/ realiza-se também com maior elevação, aproximando-se de [u], como em mojo [! ];

/u/ palataliza, sendo realizado como [y], como em fuso [ 0- ] ou unha [ 01 ]15.

Para além desta primeira distinção, que, ao isolar os dialectos micaelenses, vem ao encontro
da consciência que desse facto geralmente se tem, podemos ainda reconhecer dentro da área
de harmonização vocálica, no que diz respeito às ilhas do Grupo Central, dois blocos ou
subgrupos: um bloco formado pela Terceira, Graciosa e São Jorge e um outro formado pelo
Pico e pelo Faial.
O primeiro subgrupo (Terceira, Graciosa e São Jorge) encontra a sua justificação na
pujança que a harmonização vocálica manifesta nessas três ilhas, pois, como já se referiu, na
Graciosa e em São Jorge o traço apresenta também grande vitalidade.
O subgrupo formado pelo Pico e pelo Faial justifica-se tendo em conta que estas ilhas, onde
a harmonização vocálica se manifesta num grau equivalente, distinguem-se claramente das
outras ilhas, no que diz respeito aos outros dois traços que considerámos representativos
dos DA: metafonia e supressão da vibrante. De facto, como se pode constatar no Mapa 3,
estas duas ilhas afirmam-se pela ausência de metafonia em termos regulares e pela
manutenção da vibrante em posição final.

5. O agrupamento dos DA que acabo de fazer é de base exclusivamente fonética e as


reflexões que a ele conduziram precisam de ser aprofundadas; a análise de maior número de
dados, que os restantes volumes do ALEAç poderão proporcionar, será indispensável para
as confirmar, desenvolver ou contrariar. Um conhecimento mais completo dos DA só será,

14
Por vezes e em vários pontos, a vibrante não chega a ser totalmente suprimida, sendo no entanto
produzida com reduzida perceptibilidade.
15
Algumas destas modificações também se verificam, nas variedades do Barlavento do Algarve e da Beira
Baixa e Alto Alentejo.

9
porém, possível com a observação de outros aspectos como a morfologia, a sintaxe e o
léxico. Relativamente ao léxico, a consulta do ALEAç revelará diferentes tipos de
distribuição cuja origem será interessante investigar. A título de curiosidade darei exemplos
de alguns desses diferentes tipos de distribuição que fui recolhendo, aquando da consulta
dos volumes do ALEAç, em função da pesquisa fonética. Assim, encontraremos mapas
contendo:
(i) léxico cobrindo apenas parte do arquipélago, correspondendo a conceitos para os quais
só parte do arquipélago dispõe de termo próprio, como por exemplo velo ‘lã retirada de
uma ovelha quando se tosquia’ presente nas ilhas do Grupo Ocidental e Central (Faial, Pico
e São Jorge apenas num dos pontos, Rosais); na Calheta (São Jorge) já não se registou,
bem como nos restantes pontos das ilhas do Grupo Central e Grupo Oriental;
(ii) léxico circunscrito a uma ilha, correspondendo a conceitos para os quais só uma ilha
dispõe de designação (ou designações); é o caso do conceito ‘meda de palha que se deixa a
secar ao ar livre, feita de molhos dispostos à volta de um pau’, reflexo certamente de que só
nessa ilha se usa (ou usou) esse modo de conservação da palha, designada em São Miguel e
apenas aí por frascal, peão e cafua.
(iii) dois tipos lexicais correspondendo a um conceito, em que um deles cobre a
generalidade das ilhas e o outro é usado só numa ilha, como manjedoura ou maçaroca,
designações presentes em todo o arquipélago, à excepção da Terceira e aí substituídas
respectivamente por baia e soca; é também o caso de levedar (a massa do pão), designação
comum a todo o arquipélago, à excepção do Pico, onde o mesmo conceito é designado por
dormir;
(iv) dois tipos lexicais correspondendo a um conceito, em que cada um deles cobre uma
área distinta como camisa (do milho) ‘invólucro da maçaroca’ designado por casca no
Grupo Ocidental e Central até São Jorge e por folha no resto do Grupo Central e no Grupo
Oriental, constituindo a Calheta ponto de charneira onde se registam ambos os tipos; é
também o caso de vinho abafado, designação que vive apenas no Grupo Oriental (São
Miguel e Santa Maria), cabendo à designação angelica a representação do mesmo conceito
no resto do arquipélago.
(v) quatro tipos lexicais para um mesmo conceito, como carolo do milho ‘parte interior da
maçaroca onde se fixam os grãos’ designado por sabugo (Grupo Ocidental e parte do
Central: Faial, Pico e São Jorge), soco e toco (Graciosa e Terceira) e carrilho (Grupo
Oriental: São Miguel e Santa Maria).

10
Esta variedade na distribuição do léxico, de que dei breve amostra, oferece, não só ao
linguista, mas também ao etnógrafo e ao historiador abundantes e interessantes motivos de
reflexão e de pesquisa.

Referências bibliográficas
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