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Thais Brito
Universidade Federal da Bahia
RESUMO
Este artigo aborda questões sobre imagens indígenas, relacionando o tema da autoria
com as transformações possibilitadas pelo acesso as tecnologias audiovisuais, enquanto
dispositivos técnicos e como linguagem e narrativa, pelos indígenas. A partir de uma
experiência com mulheres Yawalapiti, no Alto Xingu, Mato Grosso, surgiram as
questões apresentadas no texto. São questões que se referem ao processo de
conhecimento a partir das imagens que circulam sobre etnias indígenas, do processo de
reflexão sobre autoria e representação, apontando questões sobre a perspectiva do
antropólogo como autor e dos pontos de vistas, perspectivas, assumidas numa análise. O
diálogo deste texto acontece a partir da experiência de compartilhar uma câmera com
mulheres Yawalapiti que passavam pela primeira vez pela experiência de registro da
imagem com video e fotografia. Com a câmera em suas mãos, estimuladas a registrarem
o que desejassem, elas passam a fotografar a antropóloga. O cenário contemporâneo de
apropriação da câmera como dispositivo de escrita desloca o etnógrafo e sua autoridade,
essa é a compreensão expressa no texto. A escrita como analogia da civilização permite
pensar em termos da antropologia como escrita, como autoria e como autoridade.
***
2 Uma consistente análise desse filme pode ser encontrada na dissertação de mestrado de Bernard
Belisário “As Hipermulheres: cinema e ritual entre mulheres, homens e espíritos”
das tecnologias de comunicação adquiridos pelo Ponto de Cultura da aldeia e funciona
com um motor que tornou um pouco mais rápida a chegada, depois de uma viagem que
já estava para completar três dias na estrada, entre terra, ar e água.
No contato com os indígenas, atualizamos logo a ideia de internet, rede e
sociedade. Ali, vimos que as redes eram mesmo sociais. Amarramos cinco delas num
mesmo tronco suspenso, apoiado nos alicerces da grande oca, construída pelo arquiteto
da aldeia que compartilha sua ciência em aulas de arquitetura xinguana na Universidade
de Brasília. Além das nossas redes, tinha outras tantas espalhadas pelo espaço da oca. Se
alguém se mexia em sua rede, todos balançavam...
Estávamos na aldeia como convidados dos yawalapiti e do Ministério da Cultura
para colaborar no uso do equipamentos multimídia que receberam do Ministério. A
primeira tentativa de aproximação foi abrir a caixa-preta e, ao mesmo tempo em que
mexíamos nos fios e placas, fomos desempacotando os equipamentos de áudio e as
câmeras que foram de imediato para as mãos dos e das indígenas.
A duração dessa diversão era medida pelo tempo do gerador de energia, que
ritmava nosso encontro. E, entre uma queda e outra, um mergulho no rio.
Em algum momento das oficinas, sugerimos a divisão entre linguagens
específicas desde o audiovisual até os primeiros passos para usuários de internet. Fico
um pouco surpresa por todas as mulheres se decidirem pela oficina que eu iria realizar
na aldeia. Era uma proposta de trabalhar com fotografia e editar também as imagens,
criando cartões postais sobre o Xingu, mas tive a impressão que elas se decidiram com
base não apenas no desejo de bricolar imagens, parece que havia algo que as deixaram
mais à vontade.
Cheguei com a ideia de produzir esses pequenos postais, com imagens, grafias,
histórias e mensagens sobre o Xingu, ou em torno das ameças de destruição que vem
com os grandes projetos como Belo Monte. Pretensão minha pensar no produto, quando
o processo em torno desse contato tem gerado mais aprendizado e possibilidades... Essa
ideia dos postais não deu certo. Mas criamos outras formas de interação. Antes de
pensar o que aquilo geraria, tivemos que encontrar uma forma de nos comunicar. Eu não
falava nenhuma das línguas xinguanas e elas não falavam português.
Com a ajuda de um intérprete kamayurá, conseguimos algum diálogo. O ponto
alto do nosso entendimento foi relacionar o awëre, saudação positiva na língua do
xingu, com a tecla enter. Mostrei algumas ferramentas simples de edição e a cada corte
ou cor elas se viravam pra mim – Awëre?, e eu – Awëre!
Ainda como parte da oficina, elas escolheram um lugar para fazer as imagens
que seriam editadas. Com a máquina fotográfica na mão, seguiram para a margem
esquerda do rio num porto onde as mulheres costumam se banhar (separado apenas por
uma pequena moita de onde costumam mergulhar os homens). Achei que tinham a
intenção de fotografar o rio, a mata... mas chegando no rio, elas ficaram nuas e se
atiraram na água. Não havia mais ninguém para mediar nossa linguagem, mas nos
entendemos nesse instante. Numa experiência única de antropologia íntima, me despi e
entrei na água com elas, mas parecia mais vestida que antes, pois só agora tínhamos as
mesmas vestes. Foi então que a lente da câmera se voltou para mim. Naquele momento,
senti que eu era o índio e que o índio era também um antropólogo relativo.
Nunca houve uma exposição dessas imagens antes, mas encontrei uma
proximidade de sentidos na personagem Alma, de Darcy Ribeiro. Compartilho um
trecho do livro para finalizar esse texto e abrir caminhos para pensar o diálogo entre a
imagem e conhecimento.
Depois de uma hora, Alma está deitada numa esteira aberta no chão, rodeada de
mulheres, nua em pêlo e abobalhada. Como não quer fugir, prefere rir, confraternizar
com aquela gente que lhe sorri simpática, com malícia e carinho. Esconde, quanto
pode, o vexame de se sentir invadida, desvendada, decifrada. Mas como reclamar que a
queiram ver nua, se todas essas mulheres estão também peladas? Por que não se deixar
ver e tocar por quem quer vê-la com tanto empenho, se elas se dão também à
curiosidade de Alma, com seus corpos ali ofertados?
(...) As grandes surpresas daquela lição de antropologia íntima são a pele limpa e lisa
da planta dos pés, que encanta. (…).
Referências Bibliográficas
ABU-LUGHOD, Lila.
1991. Writing against culture. In: FOX, Richard G. (org.) Recapturing
Anthropology: working in present. Santa Fé. School of American Research
Press.
CLIFFORD, James.
2008. A Experiência Etnográfica: Antropologia e Literatura no século XX. Rio
de Janeiro: Editora UFRJ.
MCCALLUM, Cecilia
1994. Ritual and the origin of sexuality
in the Alto Xingu. In: Harvey, P., Gow, P.
(eds.) Sex and violence. Issues in representation and experience; London:
Routledge, p. 90-114
RIBEIRO, Darcy.
1976. Maíra. São Paulo: Editora Civilização Brasileira.
STRATHERN, Marilyn
2014. O efeito etnográfico. In: O efeito etnográfico e outros ensaios. São Paulo:
Cosac Naify, 345-405.