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Quantas pessoas já viram essa imagem?

Thais Brito
Universidade Federal da Bahia

RESUMO

Este artigo aborda questões sobre imagens indígenas, relacionando o tema da autoria
com as transformações possibilitadas pelo acesso as tecnologias audiovisuais, enquanto
dispositivos técnicos e como linguagem e narrativa, pelos indígenas. A partir de uma
experiência com mulheres Yawalapiti, no Alto Xingu, Mato Grosso, surgiram as
questões apresentadas no texto. São questões que se referem ao processo de
conhecimento a partir das imagens que circulam sobre etnias indígenas, do processo de
reflexão sobre autoria e representação, apontando questões sobre a perspectiva do
antropólogo como autor e dos pontos de vistas, perspectivas, assumidas numa análise. O
diálogo deste texto acontece a partir da experiência de compartilhar uma câmera com
mulheres Yawalapiti que passavam pela primeira vez pela experiência de registro da
imagem com video e fotografia. Com a câmera em suas mãos, estimuladas a registrarem
o que desejassem, elas passam a fotografar a antropóloga. O cenário contemporâneo de
apropriação da câmera como dispositivo de escrita desloca o etnógrafo e sua autoridade,
essa é a compreensão expressa no texto. A escrita como analogia da civilização permite
pensar em termos da antropologia como escrita, como autoria e como autoridade.

Palavras-chave: Cinema Indígena, Yawalapiti, Antropologia

1 Trabalho apresentado no I Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre


os dias 04 e 06 de novembro de 2014, Belém/PA
Quando a antropologia intensifica os questionamentos que nortearam a crítica
pós-colonial à relação entre o conhecimento do Ocidente sobre o outro, há um
descolamento do etnógrafo que é levado a imaginar um mundo de etnografia
generalizada (Clifford, 2008). Esse deslocamento significa uma ruptura na relação de
conhecimento antropológico sobre o outro e na autoridade do etnógrafo como autor. O
que está em questão, nessa apropriação é, também, a noção de cultura – e de sociedade
– como vem sendo amplamente debatido na disciplina (Strathern, 2014).
Reflexões contemporâneas evocam os debates em torno da categoria analítica de
cultura e suas idas e vindas, como as análises em torno das categorias cultura e
“cultura”, de Manuela Carneiro da Cunha (2009). Em diálogo com Marshal Sahlins, a
antropóloga fala do processo de indigenização da cultura e aborda a tentativa da
antropologia contemporânea de se desfazer da noção de cultura, enquanto vários povos
celebram sua “cultura”, utilizando-a com para obter reparações por danos políticos. A
política acadêmica e a política étnica caminham em direções contrárias, diz a autora,
ressaltando que a academia não pode ignorar que a “cultura” esta ressurgindo para
assombrar a teoria ocidental. (Carneiro da Cunha, 2009: 313)
Uma dimensão desse cenário pode ser relacionada, também, a alguns aspectos
destacados por Lila Abu-Lughod (1991) em Writing against culture, que descreve
estratégias de escrever “contra a cultura” como uma forma de reorientar os problemas e
questões feitos pelos antropólogos e antropólogas sobre seus temas. Explicitar as
conexões e interconexões, históricas e contemporâneas, entre a comunidade e o
pesquisador ou pesquisadora de campo que “está lá” e escreve sobre as suas questões e
experiências, e, ainda, as conexões com o mundo do próprio antropólogo ou
antropóloga, é o desafio de posicionar-se diante da sua prática e discurso. Para Lila
Abu-Lughod,
we need to ask questions about the historical processes by which it came to
pass that people like ourselves could be engaged in anthropological studies of
people like those, about the current world situation that enablesus to engage
in this sort of work in this particular place, and about who has preceded us
and is even now there with us (tourists, travelers, missionaries, AID
consultants, PeaceCorps workers). We need to ask what this "will to
knowledge" about the Other is connected to in the world. (Abu-Lughod,
1991:472)

Tanto a crítica feminista, quanto a emergência de antropólogos nativos


influenciaram os deslocamentos e questionamentos sobre a posição da antropologia e a
categoria analítica “cultura”. Tais deslocamentos podem ser analisados, ainda, sob a
perspectiva da antropologia visual, a partir do efeito que tem a apropriação de
tecnologias audiovisuais entre grupos em contato com o conhecimento antropológico.
Quando os indígenas começam a escrever com imagens criam também textos com
sentidos diversos, muitas vez, da abordagem antropológica. Uma referência para pensar
esse processo é a experiência de etnias do Alto Xingu com o audiovisual. Neste texto,
refletimos essas questões a partir de uma experiência com uma câmera nas mãos das
mulheres Yawalapiti, uma das etnias da área indígena.

O Parque Indígena do Xingu fica na região do Mato Grosso, na Amazônia


brasileira, e engloba, em sua porção sul, a área cultural conhecida como Alto Xingu,
formada pelos povos Aweti, Kalapalo, Kamaiurá, Kuikuro, Matipu, Mehinako,
Nahukuá, Naruvotu, Trumai, Wauja e Yawalapiti. São povos com uma grande variedade
linguística, e que, ao mesmo tempo, compartilham modos de vida e cosmologia
similares. Pesquisas recentes reunidas por Franchetto & Heckenberger (2001) apontam,
por diferentes ângulos, o que se tem sugerido desde os escritos do etnólogo alemão Karl
von den Steinen que pela primeira vez descreveu o Alto Xingu no final do século
passado:
(...) existe uma entidade sociocultural distinta mais ou menos delimitável,
aproximadamente coextensiva a região geográfica da bacia do Alto Xingu
(...). Esta unidade é reconhecível tanto por sua coerência interna e notável
resistência ao longo do tempo, quanto por sua singularidade em relação a
áreas adjacentes a Amazônia e do Brasil Central. A cultura xinguana não é,
certamente, um sistema fechado ou rigidamente delimitado (…). Mesmo
sendo as fronteiras da cultura xinguana permeáveis, elas, não obstante,
existem e perduram. Em resumo, desde algum tempo contemplamos algo que
poderíamos denominar, sem receio, a “cultura” xinguana. (Franchetto &
Heckenberger, 2001:10)

A região também ficou conhecida por ser cenário de produções


cinematográficas, tanto da indústria do cinema como dos cineastas indígenas. E, para as
reflexões deste texto, essa é uma relação importante ao pensar os efeitos do contato dos
indígenas com a antropologia, e como o contato também com tecnologias audiovisuais
criam um contexto que evoca as questões contemporâneas colocadas pela antropologia.
O ritual feminino do Yamurikumã, para termos apenas um exemplo das
produções audiovisuais indígenas recentes no Xingu, tornou-se tema do premiado filme
documentário Itão Kuegü: As Hipermulheres2, lançado em 2011, com a direção
compartilhada pelo indígena Takumã Kuikuro, o antropólogo Carlos Fausto e o
oficineiro formado no Vídeo nas Aldeias, Leonardo Sette. Takumã Kuikuro prepara
agora um filme sobre os antropólogos que estiveram e escreveram sobre sua aldeia,
experiência que estou acompanhando e que deve ser abordada em outras analises.
Na aldeia Yawalapiti, também no Xingu, foi rodado um filme de grande
circulação chamado Xingu, desta vez uma produção da indústria cinematográfica,
incluindo a Globo Filmes como produtora.
Com experiências distintas de apropriação da câmera e na relação com a
narrativa audiovisual, o fato comum é que são povos que já estão em contato com um
tipo de conhecimento sobre o outro, mediado pela câmera ou pela escrita.
A narrativa de um encontro que aconteceu na aldeia dos Yawalapiti enquanto
realizava uma oficina de produção audiovisual com as mulheres da aldeia, trazem para o
foco da narrativa os deslocamentos que temos discutidos neste texto. Vamos a narrativa.

***

Para encontrar os yawalapiti, fomos em direção ao Xingu. Chegamos de longe,


de muitas cidades. Ponto de encontro, Brasília. Seguimos na viação Xavante, em sete
pessoas. O sol em muitos tons de vermelho nas primeiras horas da manhã parece uma
passagem atravessada no meio da poeira do nosso rastro.
Chegamos pela Aldeia Paraíso e logo alcançamos o rio Xingu, onde nos
aguardava um barco, guiado por um jovem índio e seu filho pequeno. O barco é uma

2 Uma consistente análise desse filme pode ser encontrada na dissertação de mestrado de Bernard
Belisário “As Hipermulheres: cinema e ritual entre mulheres, homens e espíritos”
das tecnologias de comunicação adquiridos pelo Ponto de Cultura da aldeia e funciona
com um motor que tornou um pouco mais rápida a chegada, depois de uma viagem que
já estava para completar três dias na estrada, entre terra, ar e água.
No contato com os indígenas, atualizamos logo a ideia de internet, rede e
sociedade. Ali, vimos que as redes eram mesmo sociais. Amarramos cinco delas num
mesmo tronco suspenso, apoiado nos alicerces da grande oca, construída pelo arquiteto
da aldeia que compartilha sua ciência em aulas de arquitetura xinguana na Universidade
de Brasília. Além das nossas redes, tinha outras tantas espalhadas pelo espaço da oca. Se
alguém se mexia em sua rede, todos balançavam...
Estávamos na aldeia como convidados dos yawalapiti e do Ministério da Cultura
para colaborar no uso do equipamentos multimídia que receberam do Ministério. A
primeira tentativa de aproximação foi abrir a caixa-preta e, ao mesmo tempo em que
mexíamos nos fios e placas, fomos desempacotando os equipamentos de áudio e as
câmeras que foram de imediato para as mãos dos e das indígenas.
A duração dessa diversão era medida pelo tempo do gerador de energia, que
ritmava nosso encontro. E, entre uma queda e outra, um mergulho no rio.
Em algum momento das oficinas, sugerimos a divisão entre linguagens
específicas desde o audiovisual até os primeiros passos para usuários de internet. Fico
um pouco surpresa por todas as mulheres se decidirem pela oficina que eu iria realizar
na aldeia. Era uma proposta de trabalhar com fotografia e editar também as imagens,
criando cartões postais sobre o Xingu, mas tive a impressão que elas se decidiram com
base não apenas no desejo de bricolar imagens, parece que havia algo que as deixaram
mais à vontade.
Cheguei com a ideia de produzir esses pequenos postais, com imagens, grafias,
histórias e mensagens sobre o Xingu, ou em torno das ameças de destruição que vem
com os grandes projetos como Belo Monte. Pretensão minha pensar no produto, quando
o processo em torno desse contato tem gerado mais aprendizado e possibilidades... Essa
ideia dos postais não deu certo. Mas criamos outras formas de interação. Antes de
pensar o que aquilo geraria, tivemos que encontrar uma forma de nos comunicar. Eu não
falava nenhuma das línguas xinguanas e elas não falavam português.
Com a ajuda de um intérprete kamayurá, conseguimos algum diálogo. O ponto
alto do nosso entendimento foi relacionar o awëre, saudação positiva na língua do
xingu, com a tecla enter. Mostrei algumas ferramentas simples de edição e a cada corte
ou cor elas se viravam pra mim – Awëre?, e eu – Awëre!
Ainda como parte da oficina, elas escolheram um lugar para fazer as imagens
que seriam editadas. Com a máquina fotográfica na mão, seguiram para a margem
esquerda do rio num porto onde as mulheres costumam se banhar (separado apenas por
uma pequena moita de onde costumam mergulhar os homens). Achei que tinham a
intenção de fotografar o rio, a mata... mas chegando no rio, elas ficaram nuas e se
atiraram na água. Não havia mais ninguém para mediar nossa linguagem, mas nos
entendemos nesse instante. Numa experiência única de antropologia íntima, me despi e
entrei na água com elas, mas parecia mais vestida que antes, pois só agora tínhamos as
mesmas vestes. Foi então que a lente da câmera se voltou para mim. Naquele momento,
senti que eu era o índio e que o índio era também um antropólogo relativo.

Nunca houve uma exposição dessas imagens antes, mas encontrei uma
proximidade de sentidos na personagem Alma, de Darcy Ribeiro. Compartilho um
trecho do livro para finalizar esse texto e abrir caminhos para pensar o diálogo entre a
imagem e conhecimento.

Depois de uma hora, Alma está deitada numa esteira aberta no chão, rodeada de
mulheres, nua em pêlo e abobalhada. Como não quer fugir, prefere rir, confraternizar
com aquela gente que lhe sorri simpática, com malícia e carinho. Esconde, quanto
pode, o vexame de se sentir invadida, desvendada, decifrada. Mas como reclamar que a
queiram ver nua, se todas essas mulheres estão também peladas? Por que não se deixar
ver e tocar por quem quer vê-la com tanto empenho, se elas se dão também à
curiosidade de Alma, com seus corpos ali ofertados?
(...) As grandes surpresas daquela lição de antropologia íntima são a pele limpa e lisa
da planta dos pés, que encanta. (…).

Referências Bibliográficas

ABU-LUGHOD, Lila.
1991. Writing against culture. In: FOX, Richard G. (org.) Recapturing
Anthropology: working in present. Santa Fé. School of American Research
Press.

CLIFFORD, James.
2008. A Experiência Etnográfica: Antropologia e Literatura no século XX. Rio
de Janeiro: Editora UFRJ.

FRANCHETTO, Bruna e HECKENBERGER, Michel (Org).


2001. Os Povos do Alto Xingu: história e cultura. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.

MCCALLUM, Cecilia
1994. Ritual and the origin of sexuality in the Alto Xingu. In: Harvey, P., Gow, P.
(eds.) Sex and violence. Issues in representation and experience; London:
Routledge, p. 90-114

RIBEIRO, Darcy.
1976. Maíra. São Paulo: Editora Civilização Brasileira.

STRATHERN, Marilyn
2014. O efeito etnográfico. In: O efeito etnográfico e outros ensaios. São Paulo:
Cosac Naify, 345-405.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo


2002. O nativo relativo. In: Mana 8(1), 2002a, 113-148.

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