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RELATOS ALQUÍMICOS II

(ALQUIMIA CHINESA).

Se a alquimia tem uma origem nas técnicas arcaicas mágico-ritualísticas dos curandeiros, mineiros e
ferreiros, ela só pode instituir-se, como tal, a partir de uma sabedoria que procura compreender a relação
anímica do homem com a material. Entenda-se como 'sabedoria' um corpo de doutrina que tem um autor -
o sábio - e traz consigo a marca da individualidade e circunstância desse autor. Uma sabedoria propõe-se
sempre como verdade; entretanto, pode ser desprezada e refutada pelos incrédulos ou insensatos.

É verdade que, com o advento das religiões reveladas, a sabedoria é considerada como tendo sua fonte
em Deus; mas é um Deus sábio e único que fala pela boca de seus provetas. O mito não é assim. Ele não
tem autor, emerge das brumas do antiquíssimo e, pondo-se como lenda, não necessita aprovação nem
sugere rejeição; põe-se como modelo, e não como conselho a ser seguido ou rejeitado. Assim, como
técnica arcaica a alquimia seria universal, pois emerge do próprio despontar da consciência humana,
comum a toda a humanidade. Entretanto, como sabedoria, embora interpretado como uma mesma
necessidade humana, ela difere segundo as mentalidades e circunstâncias dos sábios que a criaram; as
quais prendem - se necessariamente às concepções do mundo e do espírito, peculiares a cada uma das
civilizações sapienciais em que surgiram. Havia, então, desde os tempos imemoriais da China, as
técnicas dos minérios e das fundições de bronze, ao lado da medicina arcaica dos 'elixires', cuja finalidade
última era a obtenção da longevidade.
Ambas eram míticas, ritualísticas e mágicas. Os técnicos-mágicos se constituíram como artesãos. Eram,
de um lado, possuidores de receitas pelas quais extraíam os metais da terra, fabricavam ligas e imitavam
o ouro; de outro lado, preparavam poções que curavam os doentes, conferiam-lhes longevidade e, talvez,
imortalidade. Estabelecera-se desde muito um paralelismo entre o comportamento dos metais e dos
homens. Aqueles como estes sofriam doenças, contaminar-se-iam e padeceriam; com exceção do ouro,
que resiste tanto à umidade quanto ao fogo, permanecendo íntegro após centenas de operações. O
homem, também, poderia melhorar-se por práticas ascéticas e ingestão de drogas, até atingir a perfeição
e a imutabilidade do ouro. Porém, a partir do século V a.C. aparece a sabedoria chinesa.

Com os ensinamentos de Confúcio (551-479 a.C.), Mo-Tzu, no quinto século, e de Lao-Tzu, que floresceu
cerca do ano 300 a.C., algo novo aparece na China. A idéia de que o taoísmo remonta às confrarias dos
ferreiros, detentores das artes mágicas e segredos divinos, não pode contrapor-se à idéia do
aparecimento do pensamento sapiencial na China. Com efeito há no taoísmo aspectos míticos e antigos;
porém, esses são agora interpretados pela sabedoria do Tao. Aliás, todas as sabedorias das várias
civilizações sapienciais incorporaram mitos anteriores, transformando-os em sabedorias. Mas, o caráter
destas últimas é radicalmente diferente dos primeiros. Por exemplo: na técnica mágico-mítica, aquele que
conseguisse obter o ouro a partir do cinábrio adquiriria imortalidade se absorvesse o outro potável. Com o
advento da sabedoria de Lao-Tzu, as virtudes do ouro ou do cinábrio são interpretadas através da
dinâmica dos opostos Yang e Yin (os princípios do masculino, claro e celeste, e do feminino, obscuro e
terrestre)conduzidos à conjugação, pela conduta do alquimista pautada na sabedoria do Tao.

A partir de então, o alquimista não será mais somente um artesão ou um mágico; ele é, também, um
sábio que entende os princípios que regem a realidade. Ele sabe como e por que, ao manipular os metais
para purificá-los até a forma de ouro, adquire ele mesmo perfeição ao obedecer ao Tao. A palavra 'Tao' é
grafada, em chinês, por dois sinais: 'cabeça' e 'caminhar', que correspondem a 'caminhar
conscientemente'. Ela foi traduzida por: sentido, caminho, providência e, até, Deus. Aparece algumas
vezes conotando a luz (daí consciência) e vida (daí caminho) e finalmente como essência (aquilo que
existe por si mesmo).

O Tao domina tanto o homem como o céu e a Terra; daí sua harmonia com o princípio alquímico do
parentesco entre alma e cosmo. O célebre historiador da ciência chinesa Joseph Heedham afirma que a
alquimia chinesa nasce pela adoção, por parte dos sábios taoístas, das técnicas artesanais e dos
curandeiros. Embora haja menções a alquimistas em escritos chineses do segundo século antes de
Cristo, o primeiro alquimista chinês razoavelmente conhecido é Ko Hung (343-283 a.C.), cujo livro,
publicado sob o pseudônimo de Pao p'u tzu, contém dois capítulos sobre elixires de longa vida, baseados
em mercúrio e arsênico. Contudo, sábios, alquimistas e artesãos formavam grupos sociais diferentes; os
primeiros buscavam a perfeição através da sabedoria, evitando qualquer esoterismo.

Os segundos procuravam a transmutação dos metais, sabendo que isso se faria simultaneamente com a
obtenção da própria perfeição e longevidade. Os terceiros procuravam a simples fabricação de ouro
vulgar; porém, havia ainda alguns que se dedicavam a contrafação do outro por motivos desonestos. Mais
tarde, a alquimia chinesa, sob o influxo do budismo tântrico, tomou um novo rumo. A operação alquímica
veio a ser entendida como fazendo-se, não no forno ou vaso alquímicos, no próprio corpo do alquimista.
Contudo, a lei original chinesa do Tao mantém-se. É ela que guia a prática ascética para atingir a
perfeição e a imortalidade, pela meditação, pelo controle da respiração e pela retração do sêmen na união
sexual. Está escrito no livro chinês "O Segredo da Flor de Ouro", com palavras do mestre Lu-Tzu, que "os
adeptos ensinaram as pessoas a manter o originário e preservar o uno", isto é, o movimento circular da
luz e a preservação do centro.

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