Muitos estudiosos tendem a considerar a Alquimia como uma espécie de
Protoquímica que procurava, através do fogo, a transformação dos metais, não só fabricar armas e utensílios mas encontrar um produto maravilhoso que poderia levar à obtenção do ouro no laboratório. Este entendimento estava voltado para os aspectos materiais da Obra. Um grupo mais reduzido de operadores e de adeptos deixaram em vários textos uma outra visão através da qual se enfatizavam os aspectos simbólicos das operações alquímicas. Muitos textos chineses, antiqüíssimos, falam, com efeito, de que a verdadeira transformação que a Arte propunha dizia respeito, antes, às operações que transmutavam a personalidade de quem a ela se entregava. Adiantavam mais que o fracasso das operações, se ocorresse, deveria ser debitado, tão só, à falta de preparação espiritual dos operadores. As práticas alquímicas orientais (taoístas, védicas, hinduístas, tibetanas, persas, etc.) chegam aos gregos, a Alexandria, passam a Bizâncio, mas foi por intermédio dos árabes é que a Arte atingiu a cristandade, penetrando pelo sul da Espanha. Com as cruzadas logo outra via se abriria para a penetração da Alquimia no Ocidente. O nome árabe se fixa, “el- kimya”. No século XI, a Alquimia já estava perfeitamente adaptada à cristandade latina. Nos séculos seguintes, tornar-se-ia elemento importante da cultura européia da Idade- Média. No Renascimento, um grande impulso é dado à Obra, impulso este que se prolongará até o século XVII, quando as pressões do racionalismo científico começam a se impor, destruindo a integração homem-natureza-cultura. Todavia, mesmo assim, figuras maiores da cultura continuarão a admitir a visão alquímica, a defendê-la. Um dos exemplos mais significativos do que expomos é o de Leibniz, filósofo e sábio alemão dos sécs. XVII-XVIII, que, convidado por seu tio, o pastor luterano Justus Jacob Leibniz, assumirá devotadamente por muitos anos o cargo de secretário da Sociedade Alquímica de Nuremberg. A dificuldade que muitas vezes encontramos (o leitor moderno) na leitura de textos alquímicos se deve principalmente ao fato de que as operações e os processos descritos diziam respeito, ao mesmo tempo, à época, àquilo que se realizava no laboratório e às etapas de uma ascese psíquica, filosófica e espiritual. Os dois aspectos eram (são) indissociáveis. Com isto, a Alquimia deixa de ser um apêndice da história da ciência, como muitos a viram e ainda vêem. Da via espiritual e filosófica, especialmente na Idade Média, sai um grande conjunto de símbolos, de imagens alegóricas e de gravuras que invade a Renascença e o Barroco; mais do que informar, todo esse conjunto pretende dar aos iniciados uma orientação para as suas práticas e meditações. Com as observações acima, procuramos restaurar as idéias de antigos alquimistas que sempre viram na Alquimia uma operação simbólica. Já Nagarjuna, filósofo budista (sécs. II-III), do sul da Índia, da linha Mahayana (Grande Veículo), alquimista, afirmava que a operação alquímica só era possível pela “virtude espiritual”. Aliás, muitos textos védicos declaravam na mesma linha que “o ouro era a imortalidade”. Muitos alquimistas chineses também foram nessa direção, colocando a via espiritual antes da material. Uma das melhores leituras que podemos fazer do simbolismo alquímico é através de um plano cosmológico. As duas principais fases da Alquimia, a coagulação e a dissolução (Coagulatio e Solutio), têm correspondência com os ritmos universais de evolução (kalpa) e involução (pralaya), inspiração e expiração. Quanto ao ser humano, a Alquimia aponta para uma evolução, ou seja, a ida de um estado onde predomina a matéria para um estágio superior, de natureza espiritual. Daí a necessidade de se conhecer a matéria por meio de uma física simbólica, com destaque maior para os aspectos teóricos das proporções e das relações e menor para uma análise físico-química ou biológica. A interpretação alquímica procura usar os símbolos de sua linguagem como chaves para abrir outros sentidos de mitos, lendas, histórias, contos ou de obras de arte nos quais se descreve, de modo mais ou menos claro, o caminho da existência humana. Quatro operações fundamentais, às vezes seis ou oito, ou em maior número se necessário, mais ou menos detalhadas, que resumem a fórmula “solve et coagula”, isto é, purifica e integra, fórmula que tanto se aplica ao mundo objetivo como ao mundo subjetivo. A idéia central é a da transformação no sentido do mais elevado. Para se entregar à Obra os seguintes requisitos são necessários: alma paciente, disposição trabalhadora, coragem, obstinação, dedicação integral. É a máxima: “ ora, lege, lege, lege, relege, labora et invenies”. São esperadas na busca muita aflição, dúvidas, muita ansiedade. “Terás de mudar com freqüência teu curso devido às novas descobertas que fizeres. O Diabo tudo fará para frustrar a tua busca por meio de um ou de outro dos três tijolos soltos, a saber: o açodamento, o desespero e a ilusão. Aquele que tiver pressa não completará o trabalho num mês, nem mesmo num ano. Os servos que deves empregar para a alimentação das fornalhas são freqüentemente indignos de crédito. Alguns são desleixados, vão dormir quando deveriam prestar atenção ao fogo; outros são depravados e fazem contra ti todo o mal que podem; outros ainda são estúpidos ou presunçosos e excessivamente confiantes, desobedecendo às instruções. Ou são beberrões, negligentes e distraídos. Guarda-te contra todos esses se desejares poupar-te de alguma grande perda.” A obra requer atitude religiosa pois o trabalho é sagrado. Consciência clara, solidão, responsabilidade. Poucos auxiliares, portanto. A obra tem caráter secreto. Certos segredos não podem ser passados. Juramento, iniciação. Cuidado na transmissão. Divulgação proibida. Não fales muito. O processo alquímico tem como fundamento a criação do mundo. Eqüivale ao processo da individuação. Cosmogonia=Individuação. Para transformar alguma coisa é preciso fazer retornar esse algo ao seu estado de indiferenciação, a “Prima Materia”. Por isso, aspectos fixos e estabelecidos da personalidade são destruídos, dissolvidos. Símbolos dessa indiferenciação: inocência, infância, deserto... Retornar, pois. A “Prima Materia” é sem forma como a Prakriti dos hindus, sem limites, sem centro, sem contorno. Ausência de ordem, anterior ao cosmos. Antecede a existência, que pede ordem, vida consciente. O medo pode surgir, temores, apreensões, pânico, pavor, diante dessa destruição. Muitos não se arriscam, contentam-se com os seus limites. A ameaça do Caos, massa informe e confusa, é sempre extremamente perturbadora. É a protomatéria, isto é, virtualidade, possibilidade, os elementos desordenados à espera de um ato criador. As principais operações alquímicas são: calcinatio, separatio, mortificatio, putrefactio, coagulatio, sublimatio, solutio e conjunctio. A busca de poderes ocultos caminha com a conquista de uma iluminação progressiva que é individual. A partida está na filosofia secreta que é transmitida de mestre a discípulo. Depois, cada adepto, por uma espécie de revelação intuitiva, sua, pessoal, encontrará a sua “salvação”, um conhecimento perfeito. Este conhecimento é obtido, conforme muitos depoimentos, pela libertação do “princípio luminoso” aprisionado na “matéria tenebrosa”.
A CALCINAÇÃO
Aquecimento de um sólido ou de um líqüido para a retirada da água que ele possa
conter ou para volatilizá-lo. Calcinação vem de cal (óxido de cálcio). Aquece-se a pedra calcárea para produzir a cal viva, gerando-se muito calor. Santo Agostinho usa esta imagem para falar da cal que oculta o fogo dentro de si, a alma invisível que dá vida à substância visível ou corpo. A calcinação (calcinatio) tem relação com o fogo, sendo representada desta operações de várias maneiras: pela cor vermelha, pelos três signos de fogo do Zodíaco (Áries, Leão e Sagitário), pelo Sol, por Marte, pelo sangue, pelos três níveis do elemento no plano humano, vida instintiva (lobo), vida consciente (leão) e vida espiritual (a flecha), pela salamandra, pelo triângulo ascendente, pela figueira, etc. Para os hindus, por exemplo, é Agni, kundalini, Vaishvanara, tejas, tapas, etc. Vários mitos nos contam que o fogo desceu dos céus à Terra, transformando-se em fogo do desejo, da paixão. Inúmeras divindades se associam ao fogo: Eros, Hefesto, Ares, as Erínias. Quanto à paixão (pathos, sofrimento), a galeria é imensa, venham os tipos da arte, da literatura, da música, ou da vida real: Heathcliff, Carmem, Lupicínio Rodrigues, Edgar Alan Poe, Electra, Fedra, Rimbaud, Rodin, Orion, Dostoievski, Adèle H., Racine, Maria Vetsera e o arquiduque Rodolfo de Habsburgo, Villiers de L’Isle-Adam, Jules Barbey d’Aurevilly, Romeu e Julieta, Othelo... O fogo negativo obscurece, sufoca, queima, aniquila, é o fogo das paixões, da guerra, dos vulcões, das destruições cósmicas cíclicas. O Tártaro, a última camada do Hades, é símbolo do fogo que queima, tortura, mas que não provoca a mudança de forma, a regeneração, é punição eterna. A prisão à vida instintiva é representada, por exemplo, pela túnica do centauro Nesso e pelo vestido que Medéia envia a Glauce, noiva de Jasão. O fogo é um acelerador de passagens, mudando ritmos. Neste sentido, é mais violento que a água. O batismo pelo fogo (S.João Evangelista) e pela água (S.João Baptista). Os ritos de passagem através do fogo, as escatologias. O fogo como sexo e o diálogo Eros-Afrodite. O fogo intelectual, como no sexo, é obtido por fricção (o signo de Gêmeos). O rebaixamento do fogo celeste e a história do titã Prometeu. Muitas religiões, mitos e textos literários descrevem, em longos capítulos, histórias dos que se revoltam contra a ordenação do fogo instinto-razão-espírito, um servindo ao outro. Um exemplo clássico é o de Fausto, aquele que vende a sua alma ao Diabo para satisfazer o seu desejo insaciável de conhecer. Os mitos gregos registram histórias exemplares de personagens que tentaram se apoderar do fogo dos deuses, tentando igualá-los ou superá-los. Tântalo, Sísifo, Ixion, Salmoneu, os Alóadas, etc. A Psicologia moderna (Jung) chama de intuitiva a personalidade que tem por base o fogo. O alquimista subjetivo “usava” o fogo como “instinto da verdade”, que sabe o que desconhecemos, indo além da intuição. O resultado da calcinação é a cinza branca (albedo), o xisto branco dos alquimistas, o “corpo glorificado”, que sobrevive à ação purificadora. O valor residual das cinzas é, primeiro, indício da precariedade da vida (pulvis es et in pulverem reverteris), depois, positivamente, além de humildade e penitência, é esperança de uma vida nova como saída da nigredo. A calcinação pode ser também um ataque aos vários complexos (coágulos) que perturbam o nosso processo psíquico normal. Complexos como os de Kronos, de Zeus, de Orfeu, de Isaac, de Nausícaa, de Bode Expiatório, de Hamlet, de Trofônio, de Prometeu, etc. podem ser “enfrentados” através da calcinação.
As interdições que cercam o uso do fogo em todas as culturas e tradições revelam a
importância do elemento na história da humanidade. O deus Loki, dos escandinavos. Os vários grupos e corporações ligados ao controle do fogo nas religiões e mitos: os Cabiros, os Coribantes, os Nibelungos, os Cíclopes, os Gnomos, etc. O caldeirão como símbolo alquímico da calcinação. O lugar de Héstia como fogo central da casa. A “Pyrobasia” mítica como preparação para a imortalidade (Demofonte).