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Resenha Forense

Prof. Marcelo Pichioli da Silveira


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RESENHA FORENSE
— versão escrita —

Canal RESENHA FORENSE

MARCELO PICHIOLI DA SILVEIRA


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#011
A Constituinte Burguesa (Qu’est-ce que le Tiers État?), de EMMANUEL JOSEPH
SIEYÈS

***
Confira a análise no YouTube:
https://www.youtube.com/watch?v=vyFUGhD0XjI

Depois de um período de (merecidas) férias, nossa coluna volta ao Empório do


Direito com sua décima primeira contribuição. A obra resenhada nessa ocasião é um clássico
amplamente divulgado entre os constitucionalistas brasileiros: A Constituinte Burguesa (Qu’est-
ce que le Tiers État?), de EMMANUEL JOSEPH SIEYÈS, com tradução de NORMA AZEVEDO.
Notas biográficas: quem foi E. J. SIEYÈS? EMMANUEL JOSEPH SIEYÈS foi um
padre (alguns o chamam de “abade”) que, em 1789, escreveu a obra ora resenhada. Segundo
FLÁVIO MARTINS ALVES NUNES JÚNIOR, SIEYÈS nasceu em 1748 e morreu em 1836. Foi
ordenado padre no ano de 1773. “Segundo os historiadores”, diz FLÁVIO MARTINS, “teria
ficado desgostoso com o rápido crescimento hierárquico da nobreza dentro dos níveis
eclesiásticos, em detrimento dos plebeus. Também se afirma que a opção pelo clero não se
deu por qualquer tipo de vocação, mas porque seria o meio mais cômodo de fazer avançar
sua carreira de escritor político. A obra foi muito bem-sucedida e Sieyès foi eleito deputado,
integrando a Assembleia Constituinte francesa (que redundou na Constituição francesa de
1791), bem como na elaboração da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de
1789”1.

1
NUNES JÚNIOR, Flávio Martins Alves. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2017, p. 371-372.
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Essa pintura retrata SIEYÈS, sendo de autoria de JACQUES-LOUIS DAVID.


Aparentemente, o quadro pertence ao Museu de Arte de Harvard.

A obra: Qu’est-ce que le Tiers État? tem seis capítulos: I) “O Terceiro Estado é uma
Nação Completa”; II) “O Que o Terceiro Estado tem Sido até agora? Nada”; III) “O Que
pede o Terceiro Estado? Ser Alguma Coisa”; IV) “O Que Tentaram Fazer pelo Terceiro
Estado as Propostas do Governo e dos Privilegiados”; V) “O Que Deveria ter sido feito?
Identificar os Princípios”; VI) “O Que Falta Fazer? A Execução dos Princípios
Fundamentais”; e VII) “A Assembleia Nacional” (nota: as palavras com iniciais maiúsculas
constam da obra que consultei; não sei, ao certo, as razões disso – por estilo, me incomoda;
mais incômodo seria alterar algo citado ipsis litteris). Afirma-se que Qu’est-ce que le Tiers État?
“corresponde e se confunde com um dos mais significativos momentos da história moderna:
a Revolução Francesa” A rigor, “o livro não antecede à Revolução nem ao menos
lhe sucede: sua dinâmica é a dinâmica da própria Revolução”2.
O que está por trás desse momento histórico é o seguinte: a França, ao final do
século XVIII, enfrentava crises (econômicas, sociais, tributárias etc.). Vigorava na França
um regime estamental (= divisão da sociedade em estamentos – clero, nobreza e burgueses).

2
Trecho da Introdução Analítica de AURÉLIO WANDER BASTOS (p. XIX).
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Neste regime, não havia igualdade formal: os estamentos eram tratados de maneira diferente.
Dentre as distinções jurídicas, uma era fundamental (e bastante criticada por SIEYÈS, como
veremos abaixo): o clero e a nobreza tinham privilégios tributários exacerbados. O Estado
francês, mergulhado em crises econômicas, precisava arrecadar mais... Das duas, uma: ou
tributaria o clero e a nobreza; ou tributava, mais ainda, o terceiro estamento. Diante deste
impasse, LUÍS XVI convocou, para o ano de 1789, a chamada “Assembleia dos Estados Gerais do
Reino”. Esta assembleia era formada pelos três estamentos, e iria discutir os problemas para
buscar soluções que atendessem o bem-estar dos franceses. Com a estratégia de considerar
os votos por “classe” e não por “cabeça” (leia-se: por quantidade), a nobreza e o clero
somavam esforços para diminuir as forças e os anseios do Terceiro Estado (maioria
arrasadora da França).
Capítulo I – “O Terceiro Estado é uma Nação Completa”3: SIEYÈS inicia
sua obra com uma pergunta. Ela é assim formulada: “o que é preciso para que uma nação
subsista e prospere?”, sobrevindo a resposta “trabalhos particulares e funções públicas”.
Como se nota, SIEYÈS já chama atenção, desde o princípio de seu escrito, ao papel do que
hoje poderíamos chamar de “iniciativa privada”. Desde a pequena burguesia, passando pelos
profissionais liberais e chegando até aos serviços domésticos, SIEYÈS salienta que são esses
“os trabalhos que sustentam a sociedade”. Mas “sobre quem recaem?”, pergunta SIEYÈS...
Sobre os ombros do que ele chama de “Terceiro Estado”.
A denúncia de SIEYÈS vem nessa colocação: “as funções públicas também podem,
no estado atual, ser reunidas sob quatro denominações conhecidas: a Espada, a Toga, a Igreja
e a Administração. Seria supérfluo percorrê-las detalhadamente para mostrar que o Terceiro
Estado integra os dezenoves vigésimos delas, com a diferença de que se ocupa de tudo o que
é verdadeiramente penoso, de todos os cuidados que a ordem privilegiada recusa”.
O primeiro capítulo é assim encerrado: “o Terceiro Estado abrange, pois, tudo o
que pertence à nação. E tudo o que não é Terceiro Estado não pode ser olhado como
pertencente à nação. Quem é o Terceiro Estado? Tudo”.
Capítulo II – “O Que o Terceiro Estado tem Sido até agora? Nada”4: o
segundo capítulo é, definitivamente, um ataque ao estado de coisas da época pré-
revolucionária da França. SIEYÈS critica o status quo dos “Estados Gerais”5, dizendo: “que se

3
SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A Constituinte Burguesa (Qu’est-ce que le Tiers État?). Organização e introdução
analítica de Aurélio Wander Bastos. Trad. Norma Azevedo. 6.ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2015, p.
1-4. Daí em diante, tudo o que se citar em aspas consta desse intervalo de páginas.
4
SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A Constituinte Burguesa (Qu’est-ce que le Tiers État?). Organização e introdução
analítica de Aurélio Wander Bastos. Trad. Norma Azevedo. 6.ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2015, p.
5-10. Daí em diante, tudo o que se citar em aspas consta desse intervalo de páginas.
5
Segundo nota de AURÉLIO WANDER BASTOS, “os Estados Gerais, a mais alta organização corporativa da
sociedade no Antigo Regime, não tinham sido convocados desde 1614. Representavam o reino diante do rei.
Três ordens, ou estados, a saber, o clero, a nobreza e o Terceiro Estado o compunham; deliberavam
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faça dos novos nobres tudo o que se quiser. A partir do instante em que um cidadão adquire
privilégios contrários ao direito comum, já não faz mais parte da ordem comum. Seu novo
interesse se opõe ao interesse geral. Ele não pode votar pelo povo”; sendo que “não se deve
separar esta observação da seguinte: a abolição dos privilégios no Terceiro Estado não é a
perda das isenções de que se beneficiam alguns de seus membros. Estas isenções não são
outra coisa senão o direito comum”. Por isso, “resumindo, o Terceiro Estado não teve, até
agora, verdadeiros representantes nos Estados Gerais. Desse modo, seus direitos políticos
são nulos”.

Essa pintura retrata uma sessão dos Estados Gerais, em Versalhes.


É intitulada Ouverture des États généraux de 1789 à Versailles, sendo a autoria atribuída a
AUGUSTE COUDER.

Qual o papel da Assembleia dos Estados Gerais na vida e na obra de


SIEYÈS? A obra agora resenhada tem de ser necessariamente contextualizada com os “Estados
Gerais”. Segundo MARCOS LEITE GARCIA, foi por conta de “uma série de fatores econômicos

separadamente e votavam por ordem. Segundo este sistema, eram os delegados das cidades que
representavam o Terceiro Estado; essas eram controladas pelas oligarquias burguesas e as facções
corporativas” (SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A Constituinte Burguesa (Qu’est-ce que le Tiers État?). Organização e
introdução analítica de Aurélio Wander Bastos. Trad. Norma Azevedo. 6.ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,
2015, p. 7, nota n.º 9). Em fórmula didática, FLÁVIO MARTINS ALVES NUNES JÚNIOR aduz que “na monarquia
francesa que perdurou até a Revolução Francesa [...], Terceiro Estado indicava as pessoas que não faziam parte
do clero (Primeiro Estado) e da nobreza (Segundo Estado)” (NUNES JÚNIOR, Flávio Martins Alves. Curso de
Direito Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 372).
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e políticos” que o Rei LUIS XVI convocou, ao final de 1788, os “chamados Estados Gerais, a
Assembleia Nacional que reuniria as três ordens ou três Estados: o clero, a nobreza e os
comuns, conhecidos também estes últimos, de acordo com sua posição hierárquica, como o
terceiro Estado”. Segundo MARCOS LEITE, “os Estados Gerais não eram convocados desde
1614, e sua convocação levou a que as três ordens organizassem as questões a serem
discutidas nos chamados cadernos de queixas (cahiers de doléances), que condensavam os desejos
de reformas que antecedem a Revolução, já que esta era uma época marcada pela tentativa
de reorganização e discussão dos problemas da sociedade francesa”. O referido autor
prossegue:

[...] para os Estados Gerais se organizaram eleições, evidentemente de


maneira diferente que em 1614. [Para tanto,] chegou-se a um acordo
que a terceira ordem teria o dobro de deputados que os nobres e o clero.
Seria então o Parlamento de Paris quem iria determinar as regras. E esse
parlamento compostos por magistrados determinou em um acórdão de
25 de setembro de 1788 que o funcionamento dos Estados Gerais é que
seria igual ao de antes: “regularmente convocados e compostos da
mesma maneira que em 1614”. Os intelectuais do Terceiro Estado, a
sociedade evidentemente não era a mesma de 1614, começaram a
denunciar uma série de coisas, entre elas a “venalidade e o caráter
hereditário dos cargos judiciários, os abusos das custas em espécie e a
negar à magistratura o direito de censurar leis ou de modifica-las. [...].
No dia 5 de dezembro de 1788, em novo acórdão, anulou o precedente,
e aceitou o dobro de representantes do Terceiro Estado. [...]. O
Parlamento de Paris antes popular agora era execrado por estar a serviço
dos privilegiados. [...]. O clima tenso fez com que um grupo de nobres,
chamados os notáveis por ser composto por cinco príncipes de sangue,
evidentemente pronunciara-se a favor das antigas regras dos Estados
Gerais e já prevendo algo declararam em 12 de dezembro ao rei que se
ele não procurasse manter de qualquer forma os dispositivos
tradicionais, a Revolução seria inevitável. [...]. Mesmo fazendo [...]
concessões, as novas regras de nada serviam, pois o rei não ousou tocar
na questão mais importante de todas: a da votação per capita, deixando a
votação por ordem ou para ser discutida depois de iniciada a reunião das
três ordens [...]. [E] exatamente essa votação por ordem que será
fundamental para o fracasso da forma tradicional de funcionamento dos
Estados Gerais e a pólvora para a explosão da revolta do Terceiro Estado.
Não fazia sentido o voto por ordens, pois essa forma era um jogo de cartas
marcadas uma vez que as duas primeiras ordens – clero e nobreza –
unidas, quando fossem discutir seus privilégios (por exemplo: seus
direitos feudais, isenção de impostos, reserva de cargos públicos e
patentes militares) com as regras de 1614 o resultado seria sempre um
dois a um (2x1) em favor dos privilegiados6.

6
GARCIA, Marcos Leite. As origens da teoria do poder constituinte: o abade Sieyès e a Revolução Francesa.
Revista Brasileira de História do Direito. Curitiba, v. 2, n. 2, jul./dez. 2016, p. 4-6.
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Capítulo III – “O Que pede o Terceiro Estado? Ser Alguma Coisa”7: a


passagem retro forma um link perfeito com um trecho do início do terceiro capítulo da obra
aqui resenhada. SIEYÈS escreve, justamente, que “o Terceiro Estado pede, pois, que os votos
sejam emitidos ‘por cabeça e não por ordem’”, de maneira que “a verdadeira intenção do
Terceiro Estado é a de ter nos Estados Gerais uma influência ‘igual’ à dos privilegiados”.
Assim, “a condição exigida pelo Terceiro Estado é para ele, de acordo com a equidade e a
natureza das coisas, a mais importante de todas as que a lei deve estabelecer para a eleição
dos representantes”. Aqui um resumo da “petição 1”. A “petição 2” abrange o pleito de
“que seus deputados sejam em número igual ao da nobreza e do clero”. Numa conta rápida,
SIEYÈS supõe que a França de sua época tinha cerca de 200 mil pessoas das duas primeiras
ordens, contra “vinte e cinco milhões de almas” (o restante fora do Clero e da Nobreza).
Finalmente, a “petição 3” traz uma conclamação: “que os Estados Gerais votem não por
ordens mas por cabeças”.
E argumenta SIEYÈS: “os privilegiados temem a igualdade de influência na terceira
ordem e a declaram inconstitucional; este modo de agir é um tanto chocante, sobretudo se
se leva em conta que, até agora, foram dois contra um, sem que se visse nenhuma
inconstitucionalidade nessa injusta superioridade. Eles sentem intimamente a necessidade
de conservar o veto sobre tudo o que poderia ser contrário a seus interesses. Não vou repetir
aqui o raciocínio utilizado por vinte escritores que derrotaram esta pretensão e o argumento
das antigas formas. Só tenho uma observação a fazer. É claro que há abusos na França; esses
abusos favorecem alguém; não é ao Terceiro Estado que eles trazem vantagens, mas é a ele,
sobretudo que prejudicam. Eu pergunto se, neste estado de coisas, é possível destruir
qualquer abuso, enquanto o veto puder ser utilizado por aqueles que dele se aproveitam.
Qualquer justiça será inútil; seria preciso esperar tudo da generosidade dos privilegiados.
Seria esta a ideia que temos da ordem social?”.
Capítulo IV – “O Que Tentaram Fazer pelo Terceiro Estado as
Propostas do Governo e dos Privilegiados”8: as queixas de SIEYÈS, no quarto capítulo
da obra, têm vieses mais econômicos. Há incessante questionamento acerca do sistema
tributário da época. Diante de um sistema que onerava o Terceiro Estado, era contraditória
a contrapartida que disso decorria: “tudo é igual. Então é por espírito de igualdade que se
pronunciou contra o Terceiro Estado a exclusão mais desonrosa de todos os postos, de todos
os lugares incolores? É por espírito de igualdade que se arrancou um excesso de tributo para
criar essa quantidade prodigiosa de recursos de todos os tipos, destinados exclusivamente

7
SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A Constituinte Burguesa (Qu’est-ce que le Tiers État?). Organização e introdução
analítica de Aurélio Wander Bastos. Trad. Norma Azevedo. 6.ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2015, p.
11-22. Daí em diante, tudo o que se citar em aspas consta desse intervalo de páginas.
8
SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A Constituinte Burguesa (Qu’est-ce que le Tiers État?). Organização e introdução
analítica de Aurélio Wander Bastos. Trad. Norma Azevedo. 6.ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2015, p.
23-35. Daí em diante, tudo o que se citar em aspas consta desse intervalo de páginas.
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ao que se chama de ‘nobreza pobre’? [...] Para quem são todos esses privilégios em matéria
judicial, as atribuições, as avocações etc., com que se desanima ou se destrói a parte
contrária? São para o Terceiro Estado não privilegiado?”. As leis, diz SIEYÈS, “deveriam estar
livres de parcialidade”, mas “se mostram cúmplices dos privilegiados. Para quem parecem
ter sido feitas? Para os privilegiados. Contra quem? Contra o povo”. Para superar esses
problemas de imparcialidade, SIEYÈS defende que “se se quiser reunir, na França, as três
ordens numa só, deve-se começar pela abolição de qualquer privilégio”, sendo “preciso que
nobres e sacerdotes tenham como interesse somente o interesse comum, e que só gozem,
por força da lei, dos direitos de simples cidadãos. Sem isso, não adiante reunir as três ordens
sob a mesma denominação. Elas continuarão a ser três matérias heterogêneas impossíveis de
se misturar [...]. Os homens, em geral, gostam muito de igualar tudo o que lhes é superior;
fazem-se, então, filósofos. Só começam a odiar esta palavra no momento em que percebem
que seus inferiores usam os mesmos princípios”.
Capítulo V – “O Que Deveria ter sido feito? Identificar os Princípios”9:
depois de tecer considerações sobre os movimentos constitucionalistas dos ingleses (no
trecho final do capítulo IV), SIEYÈS aduz que “em toda nação livre – e toda nação deve ser
livre – só há uma forma de acabar com as diferenças, que se produzem com respeito à
Constituição”. “Uma sociedade política” – diz – “só pode ser o conjunto dos associados. Uma
nação não pode decidir que ela não será uma nação, ou que não o será de uma forma, pois
isso seria dizer que ela não o é de qualquer outra forma. Da mesma maneira, uma nação não
pode estabelecer que sua vontade comum deixará de ser sua vontade comum. É uma
infelicidade ter que enunciar essas proposições cuja simplicidade parece tão tola se não se
pensa nas consequências que se quer tirar delas”. Neste sentido, “as vontades individuais são
os únicos elementos da vontade comum. Não é possível privar o número maior do direito
de expressá-la, nem tampouco decretar que dez vontades só valem uma contra outras dez
que valerão por trinta. São contradições em termos, que são verdadeiros absurdos”.
Capítulo VI – “O Que Falta Fazer? A Execução dos Princípios
Fundamentais”10: novamente SIEYÈS bate na tecla da representatividade numérica do
Terceiro Estado. Quem se queixa dele se reunindo separadamente para formar a assembleia
nacional (em detrimento dos três estados “ditos gerais”) teria de observar “que os
representantes do Terceiro Estado terão, incontestavelmente, a procuração dos vinte e
cinco ou vinte e seis milhões de indivíduos que compõem a nação, excetuando-se cerca de
duzentos mil nobres ou padres. Isso já basta para que tenham o título de Assembleia

9
SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A Constituinte Burguesa (Qu’est-ce que le Tiers État?). Organização e introdução
analítica de Aurélio Wander Bastos. Trad. Norma Azevedo. 6.ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2015, p.
37-49. Daí em diante, tudo o que se citar em aspas consta desse intervalo de páginas.
10
SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A Constituinte Burguesa (Qu’est-ce que le Tiers État?). Organização e introdução
analítica de Aurélio Wander Bastos. Trad. Norma Azevedo. 6.ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2015, p.
51-59. Daí em diante, tudo o que se citar em aspas consta desse intervalo de páginas.
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Nacional. Vão deliberar, pois, sem nenhuma dificuldade pela nação inteira, excetuando-se
somente duzentas mil cabeças”. E é por essa lógica que a votação deve se dar por cabeças, e
não por ordens: “se os deixarmos deliberar nas matérias de interesse geral, qual seria o
resultado? 1º) Se os votos são tomados por ordens, acontece que vinte e cinco milhões de
cidadãos não poderão resolver nada pelo interesse geral porque isso não vai agradar a cem
ou duzentos mil indivíduos privilegiados ou, então, que as vontades de mais de cem pessoas
serão interditadas e anuladas pela vontade de uma só. 2º) Se os votos forem tomados por
cabeças, com igualdade de influência entre os privilegiados e os não privilegiados,
acontecerá que as vontades de duzentas mil pessoas poderão contrabalançar as de vinte e
cinco milhões, já que terão um número igual de representantes. E não é monstruoso compor
uma assembleia de forma que ela possa votar pelo interesse da minoria? Não seria essa uma
assembleia invertida?”. No fim das contas, ao Terceiro Estado deve se reconhecer o direito
“de formar sozinho uma Assembleia Nacional, e para autorizar por força da razão e da
equidade, a sua pretensão legitima de deliberar e de votar por toda a nação, sem exceção”.
Capítulo VII – “A Assembleia Nacional”11: creio que o sétimo e último
capítulo da obra panfletária de SIEYÈS tenha um propósito instrumental. A ideia do bem
afamado abade francês parece ser a de divulgar um modus operandi do poder constituinte
originário12 (pertencente à nação13). E, segundo SIEYÈS, “o verdadeiro objetivo de uma
assembleia nacional” não seria o de “se ocupar dos assuntos particulares dos cidadãos”. A
assembleia “considera-os uma massa, e sob o ponto de visa do interesse comum”. Outrossim,
“não é por ser privilegiado, mas por ser cidadão, que temos direito à eleição dos deputados
e à elegibilidade. Tudo o que pertence aos cidadãos, repito, mais uma vez, vantagens
comuns, vantagens particulares, contanto que não se atinjam a lei, tem direito à proteção.
Mas como a união social só pode ser feita por pontos comuns, somente a qualidade comum
tem direito à legislação. Segue-se daí que o interesse do grupo, longe de influir na
legislatura, só consegue fazer com que ela desconfie. O objetivo é tão estranho como oposto
à missão de um corpo de representantes”.
O resto é história – como narra AURÉLIO WANDER BASTOS:

11
SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A Constituinte Burguesa (Qu’est-ce que le Tiers État?). Organização e introdução
analítica de Aurélio Wander Bastos. Trad. Norma Azevedo. 6.ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2015, p.
61-66. Daí em diante, tudo o que se citar em aspas consta desse intervalo de páginas.
12
“[...] a contribuição mais importante de Sieyès, que resvala até os nossos dias, são as suas
observações sobre o poder constituinte. [...]. A Constituição não é obra do poder
constituído, mas do poder constituinte. Nenhuma espécie de poder delegado pode mudar
as condições de sua delegação. A distinção entre poder legislativo e poder constituinte é
uma das primeiras conquistas da Revolução Francesa” – trecho da Introdução Analítica, de AURÉLIO
WANDER BASTOS (p. XXXV)
13
“A partir da obra de Sieyès, o titular do poder passou a ser o povo (embora Sieyès utilizasse a expressão
‘nação’)” (NUNES JÚNIOR, Flávio Martins Alves. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2017, p. 375).
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A 17 de junho de 1789, por proposta do abade Sieyès, o Terceiro Estado


se declarou Assembleia Nacional, representante da Nação e, mais ainda,
aboliu o direito de veto às suas decisões. Luís XVI, na expectativa de
suspender as resoluções da autoproclamada Assembleia Nacional,
conclamou os deputados a se reunirem por “estado” e a suspenderem as
reuniões conjuntas sob pena de dissolução dos Estados Gerais. À
determinante conclamação, Mirabeau respondeu: Comecemos os debates.
Os debates da Assembleia Nacional continuaram com a subsequente
adesão de muitos notáveis, paralelamente, todavia, sob a pressão da
explosão insurrecional popular. Em 9 de julho de 1789 a Assembleia
Nacional, constrangida pelo impacto da insurreição popular, declarou-
se Assembleia Constituinte. Como sempre acontece com as grandes
revoluções, no ímpeto da vitória, as expectativas de seus dirigentes
originários são ultrapassadas, para, somente depois, caírem na
prostração do próprio poder. As propostas alternativas de Sieyès foram
atropeladas pelo substancioso estandarte político da Declaração de
Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada pela Assembleia
Nacional Constituinte em 26 de agosto de 1789:
 os homens nascem livres e iguais em direitos;
 todos são iguais perante a lei;
 todos os cidadãos tem direito à liberdade, à propriedade e à
segurança;
 a propriedade é um direito inviolável e sagrado;
 todos os cidadãos têm o direito de resistência à opressão14.

Em arremate, valemo-nos, novamente, dos dizeres de FLÁVIO MARTINS ALVES


NUNES JÚNIOR: “antes da obra do padre francês, a titularidade do poder constituinte era
discutido na doutrina. Para alguns, titular do poder seria ‘Deus’, pois, segundo São Paulo,
‘todo poder vem de Deus’. Para outros, o titular do poder constituinte era o próprio
monarca, representante da divindade. A partir do panfleto histórico do abade francês, o
titular do poder constituinte passou a ser o povo”15.

14
Trecho da Introdução Analítica de AURÉLIO WANDER BASTOS (p. XXXVII e XXXVIII).
15
NUNES JÚNIOR, Flávio Martins Alves. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2017, p. 371-375.

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