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CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS – CECH

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA – DFL

GLEIDE SELMA MOREIRA DE ALCÂNTARA

“Ilustração, formação e cosmopolitismo no contexto kantiano:


Resposta à pergunta: que é o iluminismo”

Trabalho referente a disciplina História da


Filosofia Moderna I, Ministrada pelo Prof.
Dr. Oliver Tolle.

São Cristóvão, dezembro de 2010.


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I. Introdução

No medievo o tempo linear é “instituído”, porém, o futuro é pré-determinado e


o tempo, vivido como se fosse cíclico (tempo lento). Na modernidade o presente é
aberto; o tempo é homogêneo e vazio, os fatos se somam formando uma sequência na
qual não há mais retorno.

Essa mudança da concepção do tempo vai trazer em seu bojo uma nova
concepção da História e da Política e estabelecer uma questão: Em quais termos se
reconhece o sujeito? Essa pergunta será respondida prontamente como sujeito
cognoscente. O homem moderno coloca desse modo a si próprio no centro dos
interesses e decisões e descobre assim, sua subjetividade. O problema central é o
problema do sujeito que conhece. O conhecimento partirá da própria realidade
observada e submetido a experimentações devendo, este saber, retornar ao mundo para
transformá-lo. Alia-se a ciência a técnica.

Com o esfacelamento das visões de mundo tradicionais Kant vai eleger a


autonomia da razão como a principal característica da atualidade. Porém, fundamentado
em um sistema crítico, que fará o pensamento se questionar sobre o que pode pensar – e
como pode efetivamente fazê-lo – e que garantirá a possibilidade de se fazer uso,
corretamente, do próprio entendimento – Kant colocará a razão num tribunal para julgar
o que pode ser conhecido legitimamente e que tipo de conhecimento não tem
fundamento e dirá que o homem só se torna esclarecido pelo uso público da razão
atingindo assim a maioridade. Assim, esclarecido seria aquele capaz de pensar por si
próprio, sem a ajuda de outrem.

Nesta perspectiva, segundo Höffe, Kant desenvolve uma compreensão das


ideias iluministas divergente da interpretação ingênua e contra iluminista adotada na
época e assume o lema “Sapore aude!” elevando-o a princípio universal posto que este
se refira à razão em seu sentido amplo, e não exclusivamente à razão científica.

Neste contexto procuraremos analisar o opúsculo “Resposta à pergunta: Que é


o iluminismo?” fazendo uma relação com o texto “Sobre a pedagogia” e “Ideia de
uma história universal com um propósito cosmopolita”. Nesta análise percorremos os
conceitos de menoridade, liberdade, autonomia e uso público da razão bem como
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tomaremos como suporte os textos, “Que significa orientar-se no pensamento?” e


“Antropologia de um ponto de vista pragmático”.

II. Esclarecimento

De acordo com Adorno, “No sentido mais amplo do progresso do pensamento,


o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de
investi-los na posição de senhores.”. Seguindo essa linha de raciocínio, podemos dizer
que o esclarecimento é o processo pelo qual uma pessoa vence as trevas da ignorância e
do preconceito em questões de ordem prática (religiosas, políticas, sexuais, etc.); é à
saída do homem da sua menoridade, atingindo a maioridade fazendo o uso público da
razão.

Em Kant, maioridade é Mündigkeit, que implica literalmente a possibilidade de


falar (uso público da razão). Münd significa boca. Menoridade é Unmündigkeit, ou seja,
a impossibilidade de falar. Portanto, menor é aquele que não tem acesso à fala plena,
que não pensa por si mesmo. Segundo Kant, “pensar por si mesmo significa procurar
em si próprio (isto é na sua própria razão) a suprema pedra de toque da verdade; e a
máxima de pensar sempre por si mesmo é a Ilustração (Aufklärung).”.

O ser humano esclarecido, diz Kant, é aquele que tem a decisão e a


determinação de servir-se de seu entendimento sem a orientação de outrem. Tais seres
são poucos, muito raros, porque pressupõem a coragem para assumir a maturidade
intelectual ou, nas palavras do filósofo, a maioridade, pois é cômodo ser menor. Para
que pensar se outros podem fazê-lo por mim? Kant sustenta, então, que “somente a
razão e não um pretenso e misterioso sentido da verdade [...], apenas a autêntica e pura
razão humana é que se afigura necessária e recomendável para servir de orientação.”.

Segundo Kant, por não ter a capacidade imediata de realizar tal projeto de
emancipação independente da sociedade e da cultura o ser humano é o único entre todos
os seres que necessita da educação, entendida por ele como o cuidado que uma geração
exerce sobre a outra como meio e precaução para que não venha a fazer uso nocivo de
suas forças visando, desta maneira, à sua própria conservação. O entendimento é
alcançado através da participação, é o esclarecimento para a vida comum (Aufklärung
füns Gemeine Lehen).
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Dentro desse projeto educacional e partindo do princípio que a diferença entre


os animais e os homens reside na presença ou ausência da razão, Kant vai afirmar que
os primeiros, pela sua ausência, desenvolvem em suas vidas os instintos naturais; os
segundos, pela possibilidade de uso da razão, têm por objetivo construir seu próprio
projeto formativo, ou seja, “Os animais cumprem o seu destino espontaneamente e sem
saber. O homem, pelo contrário, é obrigado a tentar conseguir o seu fim; o que ele não
pode fazer sem antes ter dele um conceito. O indivíduo humano não pode cumprir por si
só essa destinação”. Logo, “O homem é a única criatura que precisa ser educada”
compreendendo por educação o cuidado de sua infância (a conservação, o trato), a
disciplina e a instrução com a formação. Como não consegue fazer isso de forma
independente e imediata, torna-se imprescindível a presença do outro. Desse modo, uma
geração educa a seguinte no intuito de desenvolver as disposições naturais existentes no
ser humano (ainda sem a marca da moral), em direção ao bem visto que “A única causa
do mal consiste em não submeter à natureza a normas.”.

O filósofo conclui assim, que não se pode dizer que haveria no homem uma
vontade, enquanto razão praticamente legisladora, que desejasse o mal. De acordo com
Kant “Tornar-se melhor, educar-se e, se se é mau, produzir em si a moralidade: eis o
dever do homem”.

A educação, além desse enfoque, deve ser pensada e estabelecida de um modo


cosmopolita de tal forma que o homem possa se tornar: a) disciplinado; b) culto; c)
prudente ou que adquira civilidade; e, atinja por fim o seu mais alto grau a d)
moralidade.

De acordo com Kant todas as disposições naturais de uma criatura estão


destinadas há um dia se desenvolver completamente e conforme um fim. O homem
necessita de indefinidas gerações que transmitam seus conhecimentos, suas luzes, termo
que o próprio Kant usa em seu texto, para que a espécie atinja um elevado grau de
desenvolvimento; o ser humano esclarecido – emancipado racionalmente – é aquele
que, segundo o pensamento kantiano, possui a “capacidade de servir-se de sua própria
razão para elaborar, por si mesmo, o projeto de sua conduta”.

Porém, existe um fio condutor da razão que coordena os homens e os conduz


para a racionalidade plena, que não será desenvolvido totalmente nos indivíduos, mas
somente na espécie. Kant entende razão como a faculdade de ampliar as regras e os
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propósitos do uso de todas as suas forças, muito além do instinto natural, e que não
conhece nenhum limite para os seus projetos. Kant utiliza a razão de modo não
dogmático. Para ele, a razão é puramente regulativa sendo a antípoda do instinto natural.

Por, devido à razão não atuar instintivamente, precisando de tentativas,


exercícios, ensinamentos e ensaios para que assim possa progredir aos poucos de um
grau de inteligência para outro, é que ela não se desenvolve plenamente no indivíduo. O
homem necessitaria de um longo tempo para aprender a utilizar, a fazer uso, de todas as
suas disposições naturais, porém, como a natureza não lhe concedeu o tempo suficiente
para tal, ao contrário deu-lhe um curto tempo de vida, uma vida limitada pela finitude,
ele precisa de várias (indefinidas) gerações para que transmita seus conhecimentos e
finalmente a espécie consiga atingir um elevado grau de desenvolvimento. Não o
indivíduo que é mortal, mas a espécie que é imortal deve atingir a plenitude do
desenvolvimento das disposições naturais. A história não é a história do indivíduo é a
história da espécie.

A ideia de que algo melhor existe é que nos impulsiona a prepararmos o de


melhor para a geração futura. Não é que a natureza proponha alguma coisa é “como se”
a natureza tivesse um propósito (uma intenção heurística); como se a vida dos homens
em conjunto tivesse um propósito da natureza, o que nos faz pensar que no propósito da
natureza encontramos o que nos guia na história.

A natureza possui dessa forma um plano que visa o desenvolvimento das


nossas disposições onde em um primeiro “estágio” o homem sai de um estado de
rudeza/barbárie e entra na vida societária; utilizando-se da hipocrisia social faz a
passagem para o estado da legalidade que se constitui em uma fase transitória que nos
levará a cultura onde as disposições morais vão estar por fim plenamente estabelecidas
chegando-se então a moralidade quando a comunidade cumprirá a lei por amor e será
regida por um Direito Internacional.

Dessa maneira, a realização de um plano da natureza visa à constituição de


uma sociedade cosmopolita para onde seremos conduzidos através do progresso. Esse é
o dever moral do homem: apesar de todos os contratempos devemos pensar que
caminhamos para o esclarecimento. Assim, o esclarecimento, dado pelas luzes da razão,
possibilita o indivíduo abandonar a ignorância, permitindo sua ascensão a um nível
superior de cultura, educação e formação sendo a liberdade fundamental para que este
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processo se realize. A saber, é através da liberdade de se fazer um uso público da


própria razão, que um público poder vir a se esclarecer efetivamente. Em suma, para
Kant, a história humana é a história do aparecimento da liberdade, que impulsiona o
progresso e nos conduz em direção à nossa finalidade essencial. Na visão de Rouanet,
“A ilustração foi, (...), a proposta mais generosa de emancipação jamais oferecida ao
gênero humano. Ela acenou ao homem com a possibilidade de construir racionalmente o
seu destino, livre da tirania e da superstição.”.

III. Bibliografia
HÖFFE, Otfried. “Immanuel Kant”; tradução: Christian Viktor Hamm, Valério Rohden
– São Paulo: Martins Fontes, 2005. ISBN: 85-336-2148-5.

HORCKEIMER, Max; ADORNO, Theodor W. “Dialética do Esclarecimento”;


tradução, Guido Antônio de Almeida – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, p. 19, 21,
81/82. ISBN: 85-7110-414-X.

KANT, I. “Resposta à pergunta: Que é o iluminismo?”. In: “A paz perpétua e outros


opúsculos”; tradução: A. Mourão, Lisboa: Edições 70, 1988.

------------- “Sobre a pedagogia”; tradução: Francisco Cock Fontanella, São Paulo:


UNIMEP, 2006, ISBN: 85-85541-64-4.

-------------- “Ideia de uma história universal com um propósito cosmopolita” In: “A


paz perpétua e outros opúsculos”; tradução: A. Mourão, Lisboa: Edições 70, 1988.

------------- “Que significa orientar-se no pensamento?” In: “A paz perpétua e outros


opúsculos”; tradução: A. Mourão, Lisboa: Edições 70, 1988, p. 54/55 – Nota 330.

-------------- “Antropologia de um ponto de vista pragmático”; tradução: Clélia


Aparecida Martins, São Paulo: ILUMINURAS, ISBN: 85-7321-13-42.

PAIVA, Raquel; BARBALHO, Alexandre. “Comunicação e cultura das minorias”.


São Paulo: Paulus, 2005.

ROUANET, Sergio Paulo. “As razões do Iluminismo”. São Paulo: Companhia das
Letras, 1987, p. 27, 209, 239. ISBN: 85-85 095-14-8.

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