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MÓ DULO 9 A cultura do cinema

A CULTURA DO CINEMA
Nos primeiros anos do século XX e até perto da II Guerra Mundial desenvolveram-se no seio
da cultura ocidental um conjunto de experiências artísticas a que normalmente nos referimos
como arte de vanguarda. Este fenó meno, protagonizado tanto por artistas como por
intelectuais, críticos de arte e galeristas, desencadeou uma verdadeira revolução que não só
afetou a vertente artística das suas criaçõ es, como também determinou uma autêntica
transformação dos conceitos de arte, de artista e de obra de arte até então vigentes.
Organizados em grupos e reunidos em espaços pú blicos que ficaram reconhecidos como
«lugares de culto» (bares, cafés, clubes noturnos), estes homens implementaram estratégias
de luta contra o sistema (donde resultaria a atribuição do termo «vanguarda»), publicando
artigos, panfletos e manifestos, organizando exposiçõ es e intervençõ es pú blicas, e mantendo
entre si um contacto muito dinâmico e frutífero. Num ambiente de autêntica efervescência
cultural sucederam-se diversas experiências inovadoras configuradas numa vertiginosa
multiplicidade de «ismos» (Fauvismo, Expressionismo, Cubismo, Orfismo, Futurismo,
Dadaísmo, Suprematismo, etc.), em obras e intervençõ es que em comum apresentavam um
desígnio de rutura e experimentalismo.
Por outro lado, o caráter divergente destas experiências decorria da própria conceção da obra
de arte como uma entidade fragmentária, subjetiva e plural, estabelecendo uma «obra aberta»
a uma pluralidade de sentidos que se contrapunham à totalidade, imutabilidade e estabilidade
das criaçõ es artísticas académicas. Assim, as vanguardas romperam os limites dos
tradicionais géneros e hierarquias artísticas, normalmente designadas por «belas-artes», e
propuseram uma nova relação entre o artista, a arte e o espetador. Neste sentido, o pú blico
passava a ter uma participação ativa em todo o processo: convidado a participar no sistema
criativo, o pú blico devia conferir sentido à obra e completar o seu ciclo artístico, para além de
se converter num agente deste processo de integração da obra de arte no quotidiano.
No campo da arquitetura, a dinâmica vanguardista do início do século XX traduziu-se no
chamado Movimento Moderno, produzido sobretudo no período entre Guerras e associado a
outros termos como «funcionalismo», «racionalismo» ou «organicismo». A arquitetura
modernista pretendeu responder às exigências funcionais da sociedade industrial, quer
resolvendo problemas urbanos e arquitetó nicos, quer propondo uma linguagem
arquitetó nica que representasse os novos valores dessa sociedade. Daí que o edifício fosse
Nascer da Lua e Pôr do Sol, Paul Klee,
1919.
concebido como organismo racional análogo a uma máquina, conceito expresso na célebre
Juntamente com Kandinsky, Paul Klee frase de Le Corbusier que entendia «a casa como uma máquina de habitar». Uma ideia que
pertenceu ao grupo fundador implicava tanto a utilização de elementos e materiais normalizados e estandardizados, como a
do movimento Der Blaue Reiter.
A sua obra anuncia a total rutura
submissão da forma e dos espaços à eficácia do seu funcionamento. Irradiando por toda a
da arte com o real, recorrendo a Europa do pó s-guerra como vetor de transformação da cidade, o Movimento Moderno
figuras esquemáticas, grafismos vários redefiniu-se no Estilo Internacional como uma linguagem arquitetó nica universal.
e pictogramas.
Paisagem com Árvores Vermelhas,
Maurice de Vlaminck, 1906.
A grande inovação do Fauvismo foi a de utilizar a
cor pura como elemento plástico autónomo,
como elemento estruturante do espaço do
quadro segundo uma lógica interna. A cor deixa
de se referir ao real, para adquirir um valor
próprio na organização da composição.

Improvisação 4, Wassily Kandinsky, 1909.


Kandinsky foi um dos protagonistas
da revoluçã o esté tica operada no início do
sé culo XX.
Apó s dinamizar o Expressionismo alemã o
atravé s do movimento Der Blaue Reiter (O
Cavaleiro Azul), abriu o caminho para o
abstracionismo com as suas pinturas nã o
figurativas cujo significado dependia de
uma estrita interrelaçã o entre as cores e as
formas.

A Dança, Henri Matisse, 1909-1910.


Esta tela de grandes dimensões
(2,60 x 3,91 m), consagrada a um tema
a que Matisse retornaria, constitui um
dos expoentes máximos do Fauvismo.
A alegria transmitida pelas figuras,
a dinâmica dos seus movimentos, a
aplicação de cores planas, puras e vibrantes, o
espaço bidimensional, a simplificação das
formas e a valorização absoluta da cor, fazem
deste quadro um autêntico manifesto do
movimento.
MÓ DULO 9 Os «loucos anos 20»: expressão da «vida moderna» ao som
A CULTURA DO CINEMA
do jazz e do swing
A «revolução das comunicaçõ es» teve um impacto tão grande na sociedade do século XX como
os caminhos de ferro tiveram na sociedade do século anterior. Em 1920 têm início as
primeiras emissõ es regulares de rádio nos Estados Unidos e, em 1922, é criada a BBC (British
Broadcasting Company) na Grã-Bretanha. Três anos depois já tinham sido comercializados
mais de um milhão e meio de aparelhos. Também as emissõ es de televisão têm o seu início
nesta época: as primeiras experiências nos Estados Unidos e Grã-Bretanha datam de 1926-
1930.
Mas as maiores invençõ es no campo das comunicaçõ es terão sido, por um lado, o telefone (a
primeira ligação entre Nova Iorque e Londres foi estabelecida em 1927), que permitiu a
transmissão de informação em tempo real entre diferentes distâncias e, por outro lado, os
transportes: a partir de 1925 as grandes fábricas (Ford, Chrysler, Morris, Austin, Opel,
Renault, etc.) produzem em série veículos econó micos facilitando a deslocação de bens e
pessoas; e, em 1919, são criadas as primeiras linhas aéreas de passageiros. A partir de 1939, a
companhia americana Pan-Am estabelece viagens regulares entre os Estados Unidos e a
Europa transportando mais de três milhõ es de passageiros por ano.
É , pois, num cenário de grande euforia quotidiana e agitação urbana em que a mulher
conquista um estatuto de independência na sociedade, em que a moda desempenha um papel
de libertação social e contagia todo o tipo de bens de consumo e até mesmo os costumes, em
que surgem os primeiros mitos criados pela indú stria cinematográfica, em que a mú sica
moderna se sente ao ritmo do jazz e dos blues e se dança ao ritmo do swing e do charleston, é
portanto neste pano de fundo caracterizado normalmente como os «loucos anos 20» que
acontece a tão celebrada «vida moderna».
Mulheres na década de 1920.
Um dos fenómenos que melhor De facto, a I Guerra Mundial modificou totalmente a relação de forças internacionais; a
caracterizam os «loucos anos 20» foi destruição, a devastação e a crise generalizada afetaram as estruturas sociais, econó micas e
a conquista de um estatuto de maior
independência por parte das produtivas dos países mais desenvolvidos da Europa. E, enquanto se processa a recuperação e
mulheres, num processo em que a reconstrução das cidades, para o qual são canalizados todos os esforços, os Estados Unidos
a moda vai desempenhar um papel da América acentuam o seu crescimento econó mico, ocupando progressivamente a posição
de libertação e afirmação social.
A mulher alcançou a partir da década hegemó nica no mundo que outrora pertencera à Europa.
de 1920 uma condição de maior
independência e liberdade não só em Os efeitos do progresso econó mico fizeram-se sentir na ascensão da classe média, no aumento
relação ao homem, como também em do consumo e num clima de bem-estar que se estendeu a toda a sociedade americana. Num
relação aos costumes e ao acesso a cenário de grande euforia quotidiana e de agitação urbana, celebra-se o renascimento da vida
lugares que, até então, lhe eram
interditos. apó s o caos da guerra: a indú stria cinematográfica cria os primeiros mitos e heró is que
É o tempo dos «loucos anos 20» em também emergem da «vida real» – como os gangsters Al Capone e Dilinger –, num cenário em
que as invenções, a velocidade e as que a vida e a ficção se inspiram mutuamente.
comunicações contagiam a vida
moderna cujos ecos chegam à Europa
fazendo esquecer as amarguras da
guerra.
Louis Armstrong (1901-1971).
Armstrong foi um virtuoso trompetista e, provavelmente, o
mú sico de jazz mais importante do século XX.
A sua maior contribuição para a História da Mú sica foi elevar
uma mú sica de dança rudimentar e restrita
a um grupo social, a uma forma de arte popular – o jazz – do
qual emergiria toda a mú sica popular do século XX.

Dançando ao som do swing, anos 1920.


O charleston e o swing são géneros musicais cheios de ritmo
e «balanço» derivados do jazz.
Este tipo de mú sicas era uma presença constante nos bares,
cabarés e festas, convertendo-se numa das características
mais marcantes dos «loucos anos 20».

Vista sobre Manhattan, Nova Iorque,


fotografia de c. 1932.
A partir da década de 1920 Nova Iorque constitui-se como
o centro da «modernidade», da cultura e da arte, sendo para
aqui que confluem artistas
e intelectuais em busca de trocas de ideias e, também, de
sucesso.
A Arte Déco, tendência artística que ficou associada à
«modernidade» e aos «loucos anos 20» tem o seu
ex-líbris no edifício Chrysler (1928-1930), ao centro da
imagem.
MÓ DULO 9 Os primórdios do cinema
A CULTURA DO CINEMA
O cinema é a abreviatura de «cinemató grafo» (do grego kine, que significa «movimento»; e
grafos, que significa «escrever») e refere-se à técnica de projetar fotogramas de forma
sucessiva (24 fotogramas por segundo) de modo a criar uma sensação de movimento natural
e em tempo real. Ao longo da Histó ria são conhecidas experiências para projetar imagens
simulando o movimento real como, por exemplo, as «sombras chinesas» (surgidas na China,
5000 a. C.), a «lanterna mágica» (inventada por Athanasius Kirchner no século XVII) e o
«zootró pio» (criado por W. G. Horner em 1833). Mas a invenção do cinema decorre
naturalmente da evolução da fotografia, particularmente das experiências de Eadweard
Muybridge, e tem como antecessor o «cinetoscópio», criado por Thomas Edison em 1893.
O documentário foi o primeiro género do cinema: em 1896 os irmãos Lumière equiparam
fotó grafos que enviaram imagens de toda a Europa para projeção em Paris. Mas, entretanto, a
linguagem cinematográfica desenvolveu-se. Em França foram filmadas peças de teatro
protagonizadas por grandes figuras como Sarah Bernhardt e na América nasceram as
primeiras estruturas narrativas pela mão de Edwin Porter: Vida de um Bombeiro Americano
(1902) e O Grande Assalto ao Comboio (1903) – o primeiro clássico do cinema americano –,
que marcaram o começo da indú stria cinematográfica. O facto de os filmes serem mudos
Programa do primeiro cinematógrafo ajudou à sua ampla divulgação e popularidade generalizada, já que a ação dependia da
em Londres, Irmãos Lumière, 1896. mímica e das expressõ es dos atores, sendo as legendas inseridas em subtítulos.
Os dois grandes nomes dos primó rdios do cinema são Méliès e Griffith. Ator, realizador,
produtor e fotó grafo, Georges Méliès (1861-1938) opô s-se ao documentarismo e realizou as
primeiras fitas de ficção, Viagem à Lua e A Conquista do Polo (1902), onde desenvolveu as
primeiras técnicas: montagem, exposição mú ltipla, utilização de maquetas e efeitos ó ticos. Por
seu lado, David W. Griffith (1875-1948) foi o primeiro a usar dramaticamente o close-up, a
montagem paralela, o suspense e os movimentos de câmara. E, se no clássico Nascimento de
uma Nação (1915) realizou a primeira longa-metragem americana, já com Intolerância
(1916) Griffith experimentou a técnica ousada de montagens de histó rias paralelas.
Entretanto, nasceram os primeiros estú dios americanos em Hollywood, na Califó rnia. Em
1912, Mack Senett, o maior produtor de comédias do cinema mudo (trabalhou com Charles
Chaplin e Buster Keaton), instalou a sua Keystone Company, logo seguido pela Famous
Players (a futura Paramount), e em 1919 nasceu a United Artists, numa dinâmica que
consolidava a indú stria cinematográfica americana na década de 1920 com os grandes
géneros (western, policial, drama, musical e, sobretudo, comédia) ligados ao star-system.
Os Irmãos Lumière: Auguste Lumière
(1862-1954) e Louis Lumière (1864-
1948).
O cinematógrafo foi uma criação
dos irmãos Lumière que, a 28 de
dezembro de 1895, fizeram a primeira
apresentação pú blica no Grand Café do
Boulevard des Capucines, em Paris.
Acontecimento inédito na cidade
mais cosmopolita da Europa, a sala
atraiu um pú blico ávido em conhecer a
ú ltima conquista da tecnologia, apesar
da simplicidade das imagens que iam
ver. De facto, os filmes eram
rudimentares, não ultrapassavam os
dois minutos de projeção e limitavam-
se a registos ingénuos do que se
passava em frente da câmara.
Cinetoscópios, S. Francisco, Estados Unidos da América, c. 1889.
O «cinetoscópio», inventado por Thomas Edison (1893), era um dispositivo que
permitia a observação individual de cerca de 20 segundos de película, tendo atingido
grande popularidade na época.

Fotograma de «Broken Blossoms», um filme com Lillian Gish, 1913.


Lillian Gish foi uma das primeiras «estrelas» do cinema mudo, dando início
à mitificação dos atores e atrizes do cinema norte-americano, o star-system. Excerto de película de um filme
dos Irmãos Lumière, 1896.
MÓ DULO 9 O cinema desde a II Guerra Mundial: a ascensão de
A CULTURA DO CINEMA
Hollywood, o star-system e o cinema de autor
A autonomia do cinema define-se na década de 1910. Até então, as comédias eram o género
mais popular recorrendo, sobretudo, à linguagem e às técnicas cénicas do teatro. Ficaram
célebres as rábulas criadas por Buster Keaton (1895-1966) e, principalmente, Charlie Chaplin
(1889-1977), com a sua criação Charlot. É com autores como D. W. Griffith (1875-1948) que o
cinema se emancipa e adquire uma linguagem pró pria, sendo notáveis os seus planos
vertiginosos, os movimentos de câmara, o travelling (realização de uma cena com a câmara
em movimento), o tratamento da luz, a interpretação dos atores e, sobretudo, a montagem
paralela – na qual duas açõ es simultâneas surgem alternadamente na tela –, técnicas que
abrirão os caminhos do cinema moderno.
Numa das suas obras mais importantes, Nascimento de uma Nação (1915), Griffith
desenvolveu a montagem com uma função narrativa, isto é, alternando várias dimensões do
plano, aproximando e distanciando as personagens e quebrando a monotonia da câmara fixa
no centro da ação que era utilizada até então. Influenciado pelo Futurismo russo, também
Sergei Eisenstein (1898-1948) desenvolveu estas técnicas com elevada sofisticação em filmes
como O Couraçado Potemkin (1925), uma interpretação poética da fracassada Revolução de
1905, aqui entendida como a precursora da Revolução Socialista de 1917 que levaria o regime
soviético ao poder.
Com a recessão do cinema europeu durante a I Guerra Mundial, Hollywood impô s-se como a
«cidade do cinema» por excelência, através da concentração dos grandes estú dios
cinematográficos e da afirmação do cinema como uma indú stria. Então, institui-se o star-
system, um sistema de «fabrico» de estrelas (divas e heró is) que encantam plateias,
protagonizando papéis fixos e repetindo atuaçõ es através das quais são consagrados. É o caso,
por exemplo, de Mary Pickford, Tom Mix, Douglas Fairbanks ou Rodolfo Valentino.
Os anos de ouro de Hollywood acontecem apó s a Grande Depressão, a recessão econó mica
que atinge a América durante a década de 1930. Distinguem-se, então, grandes produçõ es
como A Dama das Camélias (George Cukor, 1937), E Tudo o Vento Levou (Victor Flemming,
1939) ou O Monte dos Vendavais (William Wyler, 1939), entre muitas outras. Isto num
Cartaz do filme «The Jazz Singer», momento em que a indú stria cinematográfica era dominada mundialmente pela produção
deAlan Crosland, com Al Jolson, 1927.
O advento do cinema sonoro vai,
americana e em que o cinema se confundia com o american way of life, difundindo os seus
entretanto, revolucionar a produção costumes, os seus valores e a sua cultura.
cinematográfica e é a Warner
Brothers que produz o primeiro filme Por outro lado, o prestígio de Chaplin afirma-se em obras de grande atualidade política, com
com efeitos sonoros sincronizados, Don obras como Tempos Modernos (1936) e O Grande Ditador (1940). É o tempo do «cinema de
Juan (1926), assim como o primeiro
filme com cenas faladas, The Jazz Singer
autor», com realizadores como Orson Welles (1915-1985), John Ford (1894-1973) ou Alfred
(1927), de Alan Crosland (1894-1936) Hitchcock (1899-1980) a revolucionar a estética do cinema.
com Al Jolson, e o primeiro filme
totalmente falado, Luzes de Nova Iorque,
de Brian Foy (1928).

John Ford (1894-1973).


Fotograma do filme «Queen Christina», de Rouben Mamoulian, com Greta Garbo, 1933.
MÓ DULO 9 As origens da arte abstrata
A CULTURA DO CINEMA
As origens da arte abstrata nas primeiras décadas do século XX só podem ser encontradas,
sem dú vida, na atitude de rutura e no experimentalismo desencadeado pelas vanguardas. A
destruição dos conceitos e dos valores estéticos académicos e oficiais, e a criação de novas
linguagens artísticas, conduzidas por um indicador comum – a progressiva destruição da
imagem tradicional –, haveriam de destruir definitivamente toda a figuração e abandonar
qualquer inspiração no mundo real.
Neste contexto, quem primeiro se aproximou tanto num sentido prático como teó rico de uma
noção de arte abstrata foi Kandinsky. Desde logo, nas experiências realizadas com o grupo Der
Blaue Reiter o pintor estabelece que a pintura pode dispensar a representação do mundo real.
E, na sua obra teó rica de referência Do Espiritual na Arte, Kandinsky preconiza uma analogia
entre a pintura e a mú sica para justificar as potencialidades comunicativas da não-figuração,
como de resto executou na sua Primeira Aguarela Abstrata.
Numa visão alargada da Histó ria da Arte e da atividade artística do Homem, verificamos que
os conceitos de «arte representativa» e «arte presentativa», por outras palavras, de «arte
figurativa» e «arte abstrata», nunca se encontraram assim tão afastados. Já nas
representaçõ es parietais dos povos primitivos, da arte pré-histó rica (no Neolítico), nas
representaçõ es de alguns momentos da Antiguidade, do período do Românico e do Gó tico, a
forma afastava-se de uma representação naturalista, tendendo para uma aparência abstrata.
Porém, nesta tendência para transformar, estilizar ou contrair a forma realista, conduzindo ao
signo, persistia a presença da realidade objetiva, o que nos leva a concluir que a criação
abstrata que surge no século XX, totalmente não figurativa e nascida na essência da própria
arte, não tem precedentes na Histó ria.
O primeiro passo em direção a uma «arte presentativa» foi dado por Wilhelm Worringer
(1885-1965) na obra Abstraktion und Einfühlung (Abstração e Empatia), de 1908, ao
considerar que a obra deve ser analisada sob o ponto de vista da intenção do artista, e não do
que está representado. Esta dissertação constitui a primeira reflexão moderna sobre a
«expressão», considerando que segundo o princípio de Einfühlung a obra se deve explicar
pelas sensaçõ es que as formas despertam em nó s, de modo intuitivo e «empático». O segundo
passo em direção à arte abstrata deve-se a Kandinsky, ao entender a arte, acima de tudo,
como um meio de expressão do Homem e como veículo privilegiado do seu universo
consciente ou inconsciente.
Com as «vanguardas», os artistas passaram a exaltar os valores plásticos da linha, da forma ou
da cor, os aspetos compositivos e iconográficos, começando a propor formas artísticas que se
bastavam a si pró prias e que se impunham, tão-somente, pelas formas, cores e estrutura dos
Nu Feminino, Pablo Picasso, 1910. meios nelas presentes.
Foram diversas as vias seguidas pelos
artistas para chegar à arte
abstrata. Neste período do Cubismo
designado «fase analítica», ao qual
pertence este Nu Feminino, as formas
acabam mesmo por se desintegrar em
função da «excessiva» análise de
sucessivos pontos de vista a que o
modelo é submetido, resultando numa
sobreposição de planos e numa
estrutura geométrica ambígua já com
poucas sugestões relativamente à
forma original.
Raionismo Vermelho, Mijail Larionov, 1911.
Outra via de exploração plástica que conduziu à arte
abstrata foi o Raoinismo, uma tendência surgida no
contexto das «vanguardas russas».
Fundamentada nas leis físicas da cor e da luz, o
Raionismo pretendia reduzir a forma a uma série de
linhas dinâmicas, segundo uma explosão
de cor, evocando os raios luminosos refletidos pelos
objetos. O Raionismo acabou por constituir uma
síntese do Futurismo, do Cubismo e do Orfismo, mas
com uma maior aproximação à abstração.

Champs de Mars. A Torre Eiffel Vermelha, Robert


Delaunay, 1910-1911.
Para além da contínua e enorme influência sobre a
evolução da arte moderna, o Cubismo gerou de
imediato outros movimentos que aprofundaram as
suas pesquisas estéticas e que, de uma maneira ou
outra, se lhe encontram associados.
Desses movimentos de curta duração,
Guillaume Apollinaire (1880-1918), um proeminente
escritor e crítico de arte que acompanhou o Cubismo
e foi seu teórico, distinguiu as obras de Robert
Delaunay (1885-1941) a que assistiu numa exposição
em
1913, designando-as «cubismo órfico». Recuperando
o mito de Orfeu, Apollinaire referia-se aos ritmos e
aos efeitos cromáticos puramente abstratos criados
por Delaunay, e às formas circulares com referências
líricas e musicais preenchidas com cores lisas.
Mas, antes de ter desenvolvido o Orfismo, Delaunay
fez algumas experiências no seio do Cubismo
analítico, como é exemplo esta Torre Eiffel Vermelha.
MÓ DULO 9 A vanguarda russa: os fundamentos do Suprematismo e do
A CULTURA DO CINEMA
Construtivismo
O ambiente de transformação político-econó mica vivido na Rú ssia no início do século XX, e
que conduziria à Revolução Bolchevique de 1917, favoreceu igualmente a abertura cultural do
país às novas experiências que se estavam a operar na arte europeia. Partindo das naturais
influências de Cézanne ou de Picasso, cujos trabalhos os artistas russos puderam ver em Paris,
uma nova geração de artistas – a «vanguarda russa» – irá desencadear alguns dos
movimentos artísticos mais importantes do século XX.
Para além da influência do Cubismo, cujos princípios foram assimilados pelo casal Natalia
Gontcharova (1881-1962) e Mijail Larionov (1881-1964) apó s uma estada em Paris, o
documento de referência desta geração foi o Manifesto do Futurismo de Marinetti, cuja
tradução para russo ocorreu logo apó s a sua publicação em 1909. De modo que, mais do que
as inovaçõ es plásticas e pictó ricas trazidas pela pintura cubista, o Futurismo encontrou um
campo fértil para se desenvolver no meio artístico e cultural russo, pela sua dimensão social,
pelo espírito de rutura e pela mitificação da máquina e da tecnologia. A estes aspetos, a
vanguarda russa acrescentou a ideologia marxista, o materialismo e o apelo inabalável ao
progresso fundado na sociedade industrial, caracterizando uma vertente de expansão do
Futurismo designada pelo termo Cubo-Futurismo.

A Vida no Grande Hotel, Malevitch,


Depois de Gontcharova e Larionov, ao Cubo-Futurismo aderiram, entre outros, Vladimir
1913-1914. Maïakovski (1893-1930), Vladimir Tatlin (1885-1953) e Casimir Malevitch (1878-1935),
partilhando a vontade de renovação do sistema artístico russo.
Também de herança futurista foi o Raionismo, uma doutrina divergente da anterior,
concebida por Gontcharova e Larionov em 1913, também como uma síntese do Cubismo, do
Futurismo e do Orfismo, mas com uma maior aproximação à abstração. Fundamentando-se
nas leis físicas da cor e da luz, o Raionismo pretendia reduzir a forma a uma série de linhas
dinâmicas, segundo uma explosão de cor, evocando os raios luminosos refletidos pelos
objetos. Segundo Larionov, que redigiu o Manifesto do Raionismo em 1913, o objetivo era «a
representação de formas espaciais que surgem da interseção dos raios refletidos em diversos
objetos ou formas escolhidas segundo a vontade do artista».
Quando o Raionismo foi exibido em Paris em 1914, no ano da sua extinção, Apollinaire
afirmou que o estilo «transportava um novo apuro não só em relação à pintura russa, como
também a toda a pintura europeia». De facto, as suas teorias serviriam de fundamento ao
Suprematismo (de Malevitch) e ao Construtivismo (de Tatlin). Movimentos pioneiros da
vanguarda russa, procuraram conduzir a pintura a «uma pureza temática e dos meios
expressivos», no caso do Suprematismo, ou «uma arte de sentido ú til e funcional, empenhada
Retrato Futurista, Liubov Popova, 1915. no progresso trazido pelas novas tecnologias», no caso do Construtivismo.
Surgido cerca de 1912, o Cubo-
-Futurismo representava uma síntese
criativa: do Cubismo importou as
preocupações acerca do espaço
pictórico, a fragmentação do objeto e a
ênfase na forma geométrica; do
Futurismo, buscou a tendência para a
abstração, a inspiração nos temas
urbanos e industriais e o dinamismo da
experiência do tempo
e do espaço.
Cidade em chamas, Olga Rózanova, 1916.
Para além do Cubismo, também o Futurismo foi
muito bem aceite no meio cultural e artístico russo,
sobretudo pela sua dimensão social, pelo espírito de
rutura e pelas alusões
à máquina e à tecnologia.
Também Olga Rózanova enquadrou o seu trabalho
num campo de pesquisa que, partindo do
Futurismo, chegaria à abstração e ao dinamismo da
experiência do tempo e do espaço, de inspiração
cubista.

Arquitetónica Pictórica, Liubov Popova, 1918.


A partir de 1916, Popova ensaiou uma série de
composições que intitulou de «arquitetónica
pictórica», numa síntese cubo-futurista que
conduziria à sua integração no Suprematismo.
A fragmentação do objeto, a ênfase na forma
geométrica e a tendência para a abstração são
características de uma obra que procurava a
renovação do sistema artístico russo.
MÓ DULO 9 A «Escola de Paris»: à margem das vanguardas
A CULTURA DO CINEMA
No início do século, o impacto provocado pelas vanguardas transformou Paris num
estimulante e prestigiado centro intelectual e artístico. Entre 1905 e 1913, atraídos pelo
ambiente favorável de liberdade e experimentalismo que aí se vivia, numerosos artistas
estrangeiros instalaram-se nos bairros de Montmartre e Montparnasse, apostados em
impulsionar a revolução artística em curso. Em comum, esta geração lendária de «pintores
malditos», que acabou por ser designada «Escola de Paris», partilhava o gosto pela vida
boémia e excêntrica, o espírito inquieto e transgressor, a busca incessante da originalidade e o
empenho absoluto na arte como forma de vida.
Quanto às opçõ es artísticas, estes artistas privilegiaram um estilo figurativo e à margem das
vanguardas com cujos representantes conviviam e trocavam opiniõ es. Todavia, e apesar das
características tão díspares e pessoais das suas obras, não conseguem esconder as raízes no
Fauvismo e no Expressionismo, pelo valor expressivo consignado à cor, pelo dinamismo das
formas, pela exacerbação emocional de alguns temas e pelo forte lirismo das composiçõ es.
De entre eles, destacaram-se nomes como o italiano Amedeo
Modigliani (1884-1920), o russo Marc Chagall (1887-1985), o
lituano Chaïm Soutine (1894-1943), o polaco Moïse Kisling
(1891-1920), o bú lgaro Jules Pascin (1885-1930) e o japonês
Tsuguharu Foujita (1886-1968), entre muitos outros.
Obcecados pela inovação e pela vertigem da mudança, as suas
obras refletem tanto a lucidez, o ceticismo e o desencanto com
que olham a vida e o mundo, como o mistério, o drama e a
tragédia que percorreu as suas vidas. Isto mesmo se revela, por
exemplo, no trajeto atormentado e trágico de Modigliani: a sua
morte prematura aos 36 anos, apó s uma vida de miséria e
dependente de drogas e álcool, seguida do suicídio da sua
O Violinista, Marc Chagall, 1911- - companheira Jeanne Hébuterne, contribuiu para o mito criado
1914. em torno da sua obra. Enquanto os seus retratos se traduzem
Beneficiando do contacto com as em intensas reflexõ es sobre a figura humana, os seus nus
vanguardas parisienses do início do
século XX, Marc Chagall estabeleceu elegantes e estilizados, de índole quase maneirista, têm tanto de
uma síntese original entre a mistério como de sensual, na época, considerado imoral e
geometrização formal cubista e uma
obsceno.
linguagem muito própria inspirada
nos ambientes rurais da Rú ssia onde
nascera.
Também Soutine, que desenvolveu uma pintura de acentuada
Chagall acabou por criar um mundo expressividade, deixou evidências de uma estranha inquietação
muito próprio, repleto de estranhas e de uma personalidade marcada pela melancolia e pela solidão.
criaturas e ambientes mágicos,
inspirado em memórias da sua
As formas delirantes, as tintas bruscamente projetadas sobre as
terra natal e das suas experiências telas, as cores saturadas e contrastantes ou o vigor dramático
pessoais, partindo das experiências das pinceladas, evocam um mundo de excessos e emoçõ es
formais de matriz cubista até se
aproximar do universo onírico do
fortes, mas desencantado e desolado.
Surrealismo, sem, no entanto, ter
pertencido a nenhum desses grupos.
Quanto a Chagall, foi aquele que preservou maior
independência, não só em relação às vanguardas, como em
relação aos seus companheiros. O seu estilo original, insubmisso
a quaisquer referências ou influências, remete-nos para um
universo onírico, fantasioso e mágico, no qual as personagens,
os animais e os objetos se dispõ em alheios a leis ou normas pré-
estabelecidas. Os seus temas, enigmáticos, místicos e
metafó ricos evocam o mundo dos sonhos, do subconsciente ou
das memó rias de infância.
O Grande Nu, Amedeo Modigliani, 1917.
Modigliani foi um dos artistas mais ativos da
geração da «Escola de Paris».
Sem nunca ter integrado nenhuma corrente
específica das vanguardas que se assumiram
em Paris nas primeiras décadas do século XX,
Modiglani desenvolveu uma plástica muito
característica, de que os nus femininos
elegantes, estilizados e sensuais constituem o
melhor exemplo.

Boi Esquartejado, Chaïm Soutine, 1925.


A pintura de Soutine evidencia uma forte
expressividade, acentuada pelas cores
saturadas e pelo vigor das pinceladas com
que traça as formas.
Também os motivos a que dava preferência,
por exemplo, animais mortos como este Boi
Esquartejado, contribuíram para evocar o
mundo delirante, excessivo e desencantado
que percorreu.
MÓDULO 9 Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918)
A CULTURA DO CINEMA
Amadeo nasceu a 14 de novembro de 1887 em Manhufe, freguesia de Mancelos (Amarante).
Apó s os normais estudos liceais, muda-se para Lisboa em 1905 onde vem a frequentar o
curso de Arquitetura na Academia de Belas-Artes de Lisboa. Porém, insatisfeito com o curso
interrompe-o no ano seguinte, mudando-se para Paris e instalando-se em Montparnasse, num
momento de grande efervescência cultural e artística em que as vanguardas começavam a
despontar.
Certamente contagiado pelo ambiente de vanguardismo que encontra em Paris, Amadeo
dedica-se exclusivamente à pintura, vindo a frequentar a Academia Viti do pintor espanhol
Anglada Camarasa, e a conviver num círculo de artistas onde marcam presença Archipenko,
Brancusi, Juan Gris, o casal Sonia e Robert Delaunay e Amedeo Modigliani, com quem chega a
partilhar o ateliê. O ecletismo deste grupo proporcionou-lhe o contacto com as principais
tendências modernistas que marcaria o seu trabalho inicial. Mantendo uma intensa atividade,
são estas experiências que expõ e no Salão dos Independentes (1911, 1912 e 1914), no Salão
de Outono (1912, 1913 e 1914), no Herstsalon da Galeria Der Sturm, em Berlim, e no célebre
Armory Show de Nova Iorque (1913). Curiosamente, quando esta mesma exposição foi
apresentada em Chicago, o colecionador Arthur Jerome Eddy comprou três das oito obras,
tendo-as posteriormente cedido ao Art Institute of Chicago, onde ainda se encontram
Souza-Cardoso, 1913.
Esta obra pertence a um conjunto de
atualmente.
telas que correspondem às pesquisas
abstratas de Amadeo, em domínios
Em 1914, Amadeo encontra-se em Barcelona com Gaudí, vindo a ser surpreendido pela
próximos da esquematização eclosão da I Guerra Mundial quando se encontrava em Madrid. De regresso a Manhufe, será
geométrica do Orfismo de Robert no seu ateliê da Casa do Ribeiro que executará os trabalhos mais inovadores. Aproxima-se dos
Delaunay.
modernistas em Lisboa, Eduardo Viana, Almada Negreiros e Santa-Rita Pintor, a quem
introduz os Delaunay que entretanto se tinham instalado em Vila do Conde. Depois de ter
pesquisado o formalismo cubista de inspiração «cézanniana» em obras como O Castelo, ou
investido numa análise cubista mais convencional, como em Cozinha de Manhufe, Amadeo
percorre os caminhos da arte abstrata sob os auspícios do Orfismo, adotando a geometria
como elemento estruturante, ou do Fauvismo, explorando as plenas potencialidades plásticas
da cor. São fundamentalmente estas pesquisas que estão patentes na exposição
Abstracionismo que, em 1916, promove em Lisboa e no Porto, despertando simultaneamente
novidade e escândalo, e que motivará a célebre declaração de Almada Negreiros: «Amadeo é a
primeira descoberta de Portugal na Europa do século XX.»
Os ú ltimos anos da sua vida são marcados por uma produção tão intensa quanto complexa,
patenteando uma pluralidade de influências que vão desde o Cubismo ao Futurismo, do
Expressionismo ao Dadaísmo, da arte abstrata ao primitivismo, conjugadas com uma
iconografia de raízes populares e um colorido virtuoso. Com uma obra pioneira e profícua,
Amadeo veio a morrer prematuramente aos 31 anos vitimado pela «pneumó nica», uma
doença que então grassava em Portugal.

A Máscara de Olho Verde, Amadeo


de Souza-Cardoso, c. 1915.
Esta é, talvez, uma das obras mais
representativas das correspondências
expressionistas na utilização da cor e,
sobretudo, da influência do
«primitivismo» no tratamento da forma
que marcou esta fase do trabalho de
Amadeo.
Pintura: Coty, Amadeo de Souza-Cardoso, c.
1917.
Após as experiências abstratas decorrentes do
universo cubista, expressionista e futurista,
Amadeo empreendeu nos ú ltimos três anos da
sua vida um processo de reflexão muito pessoal
que se traduziu numa vasta obra de fusão de
tendências dadaístas e cubistas com motivos
tradicionais recolhidos na região onde vivia
(Manhufe).
Desta fase é Pintura: Coty, um título que resulta
do nome de um perfume francês. Esta é uma
obra de enorme invenção pictórica, de fusão de
diversas tendências de vanguarda.
A tela utiliza técnicas de colagem e uma
iconografia desconcertante, em torno de um nu
feminino imerso em objetos e planos
fragmentados, criando ritmos, movimentos e
tensões.
Encontrando-se em plena metamorfose,
incorporando memória e atualidade, a ideia
principal, no entanto, sugere mais um universo
de natureza lú dica e onírica, numa
desconstrução de (des)ordem dadaísta.
MÓDULO 9 Santa-Rita Pintor (1889-1918)
A CULTURA DO CINEMA
«Santa-Rita Pintor começa por nos surpreender. Uma oculta energia afirma-se,
desenvolve-se e prende-nos os sentidos. É uma sensibilidade mediú nica a sua – uma
sensibilidade antena da sensibilidade universal…». Assim se referia Bettencourt-
Rebello ao «grande iniciador do movimento futurista em Portugal» na revista
Portugal Futurista, publicada em 1917. Guilherme de Santa-Rita, mais tarde
adotando o nome de Santa-Rita Pintor, salienta-se no panorama artístico nacional já
em Paris, a partir de 1910, usufruindo de uma bolsa estatal na Academia de Belas-
Artes, protagonizando um conflito que o opõ e ao embaixador republicano João
Chagas que culmina na perda da bolsa em 1912. Este episó dio irreverente, que partiu
da manifestação impulsiva das suas convicçõ es monárquicas com insultos ao
ministro, resultou certamente do contágio das vanguardas que proliferavam na
capital francesa e da sua declarada simpatia pelo Futurismo, recentemente
apresentado por Marinetti, o fundador do movimento que Santa-Rita contactara de
perto assistindo às suas conferências na Galeria Bernheim-Jeune.
Tendo a sua obra, a pedido do artista, sido destruída pela família apó s a sua morte
prematura aos 29 anos, apenas restaram estes trabalhos: uma có pia de Olympia
(Manet) e o quadro expressionista Orpheu nos Infernos (do seu período escolar), os 4
hors-texte duplos publicados na revista Orpheu 2, três reproduçõ es publicadas na
revista Portugal Futurista e um ó leo original que, a despeito das incertezas de autoria
e datação, lhe é atribuído: Cabeça Cubo--Futurista.
Quando regressa a Lisboa em 1914, no alvor da I Guerra Mundial, Santa-Rita vem
cheio de planos: «impor-se socialmente», contribuir para «o regresso da monarquia
para dominar», dirigir um museu, fazer regressar os jesuítas e reinstaurar a
Inquisição. Ideias peregrinas que, no entanto, se justificavam no contexto do combate
estético e ideoló gico futurista que o pintor vem dinamizar em Lisboa. Corporizando a
forma «violenta, subversiva e incendiária» através da qual Marinetti propunha a
renovação radical e regeneradora das linguagens artísticas, Santa-Rita aglutina
Caricatura Futurista de Santa-Rita Pessoa, Sá-Carneiro, Almada e Amadeo em torno dos seus ideais e afirma: «Futurista
Pintor, revista Em Foco, Stuart
Carvalhais, 1915.
declarado em Portugal há um, que sou eu.»
As primeiras obras declaradamente
«futuristas», motivaram esta caricatura de O denominado «futurismo português» era um fenó meno circunscrito ao grupo do
Stuart Carvalhais que, em espírito jocoso, Orpheu (e ao Chiado), uma revista literária que na segunda edição anunciava uma
glosa a tão proclamada estética futurista.
De resto, na época também o jornal
série de «conferências de afirmação futurista». No entanto, esta orientação não
O Século se referiria «aos rapazes do satisfazia Santa-Rita, que impulsionou uma publicação mais fiel aos seus princípios: a
Orpheu que, em vez de virem nus para
o meio da rua darem cambalhotas,
revista Portugal Futurista. Epílogo do movimento, em abril de 1917 teve lugar a
lançam ao papel várias maluquices «tumultuosa apresentação do futurismo ao povo português» na I Conferência
e esperam, a esfregar as mãos, que o Futurista no Teatro Repú blica. Porém, o suicídio de Mário de Sá Carneiro (1916) e as
burguês escandalizado os
descomponha…». mortes prematuras de Amadeo e Santa-Rita (1918) encerram a primeira fase do
Modernismo português. Sobre Santa-Rita, Raul Leal dirá: «E porque tomava
realmente a sério a vida e a arte, não quis que nada da sua obra lhe sobrevivesse,
visto não haver atingido o nível por ele desejado.»
Cabeça Cubo-Futurista. Santa-Rita Pintor, 1912 (?).
Em 1912 Santa-Rita declarou: «Futurista declarado
há só um, que sou eu.»
Esta frase contém muito do que foi a polémica, a
provocação e a impertinência de um dos mais
carismáticos artistas do Modernismo português.
Exemplo disto mesmo é a referência que, neste
mesmo ano de 1912, Mário de Sá-Carneiro faz a
três obras suas intituladas Portugal, Ruído num
Quarto sem Móveis e uma outra representando um
WC que, segundo o pintor, «só dez pessoas no
mundo podiam, não só compreender, como ver».
Da obra produzida, se a houve, pouco restou. A seu
pedido, todos os trabalhos disponíveis foram
destruídos após a sua morte, e mesmo esta Cabeça
Cubo-Futurista não lhe é atribuída com muita
segurança.
Sabe-se que terá assimilado com fervor o ideário
futurista, a avaliar pelas suas declarações: «Ah! Meu
caro amigo, você não sabe como a originalidade me
preocupa. É uma necessidade moral e física de ser
outro Eu. Eu queria falar como ninguém fala, com
palavras que ninguém mais empregasse; vestir-me
de outra maneira, viver numa casa como nunca
existisse.»
Como também deixou explícito nos títulos dos seus
hors-textes do Orpheu 2: por exemplo, «Síntese
Geometral de Uma Cabeça x Infinito Plástico de
Ambiente x Transcendentalismo Físico
(Sensibilidade Radiográfica)».
Quanto à Cabeça, cuja análise continua a ocupar os
historiadores, manifesta uma inequívoca
modernidade e uma interessante síntese entre
o Cubismo Analítico e o Dinamismo Futurista, com
pertinentes evocações ao Raionismo russo.
Como referiu Bettencourt-Rebelo, «Santa-Rita é em
Portugal a mais completa síntese desta época de
estranhas manifestações que Picasso
surpreendeu no seu alvorecer. Santa-Rita traz
consigo a coragem e o orgulho de uma raça».
A pose dândi, as vestes provocatórias e a atitude
negligente que o caracterizavam não eram senão
partes de um todo que desafiava o
meio cultural lisboeta demasiado tradicionalista e
avesso à mudança.
MÓ DULO 9
A CULTURA DO CINEMA

Tríptico da Gare Marítima da Rocha do


Conde de Óbidos, Almada Negreiros,
Lisboa, 1946-1949.
Nos grandiosos frescos da Gare
Marítima da Rocha do Conde de
Ó bidos, Almada recupera com enorme
vigor a linguagem cubista que, sem
dú vida, o marcara na juventude.
Porém, nesta apropriada abordagem
a cenas relacionadas com o contexto
(o cais, os emigrantes, a partida, os
estaleiros), Almada deixa-se contagiar
por traços expressionistas que não
escondem o afeto pela cidade de
Lisboa que marcou o seu trabalho.
Tríptico da Gare Marítima da Rocha do
Conde de Óbidos, Almada Negreiros,
Lisboa, 1946-1949.
Coerente com a sua estética cubista
que fundamentou esta intervenção,
Almada percorre neste tríptico
cenas típicas do quotidiano alfacinha
acrescentando-lhe a simplicidade,
a naturalidade e a alegria das suas
gentes.
No fundo, o pitoresco que informa
este enorme friso caracterizava
uma cidade oscilando entre
a modernidade e a tradição.
MÓ DULO 9 A escultura na primeira metade do século XX
A CULTURA DO CINEMA
Apesar dos ocasionais contactos entre a pintura e a escultura durante o percurso da arte
moderna, designadamente através de artistas que praticaram ambas as disciplinas, os
processos evolutivos daquelas expressõ es artísticas acabaram por seguir a ritmos distintos.
Mais do que a pintura, a escultura sentiu o peso da tradição académica que a vinculava a
rigorosas conceçõ es, técnicas, temas e materiais.
É um facto que algumas vanguardas histó ricas contribuíram para a renovação das linguagens
na escultura. É o caso do Futurismo (com Boccioni), do Construtivismo (com Tatlin) ou do
Dadaísmo (com Jean Arp, entre outros). No entanto, os protagonistas da «escultura moderna»
na primeira metade do século XX foram também Constantin Brancusi, Alexander Archipenko,
Alberto Giacometti e Henry Moore que, com maior ou menor incidência, estiveram ligados às
vanguardas. De um modo geral, as suas propostas inovadoras consistiram na valorização das
qualidades plásticas dos materiais, na gradual simplificação da figura humana, estilizada e
descaracterizada, e numa tendência cada vez mais forte para a forma pura e abstrata.
Esta foi, de resto, a maior contribuição do escultor romeno Constantin Brancusi (1876-1957):
a procura de uma gradual esquematização dos volumes até atingir a essência da expressão
plástica e a pureza formal absoluta. Estabelecido em Paris em 1904, Brancusi recebeu
influências de Rodin e do «primitivismo» de Gauguin que acabaram por marcar as suas
pesquisas iniciais, reduzindo as suas esculturas aos elementos básicos, primordiais e quase
abstratos. Por exemplo, em Pássaro no Espaço atingiu a suprema simplicidade evocadora de
uma ilimitada serenidade espiritual.
Outra tentativa de rutura com o sistema tradicional de representação da figura humana foi
experimentada por Alexander Archipenko (1887-1964), escultor ucraniano que manteve
relaçõ es com os cubistas e pertenceu ao grupo da Section d’Or. Estas influências
caracterizaram as suas obras, nas quais tentou traduzir o método cubista de fragmentação da
forma e de sobreposição de vistas simultâneas. Para além da geometrização da forma, em
Caminhando introduz o jogo entre vazio e cheio que acentua a tendência para a abstração.
Apesar de se ter envolvido com o Cubismo e com o Surrealismo, a obra do suíço Alberto
Giacometti (1901-1966) é singular e fortemente personalizada. A extrema solidão e
vulnerabilidade da figura humana, como Homem Caminhando, refletem uma visão
intemporal, ambígua e desencantada da natureza humana, num espírito que o aproxima do
existencialismo de Jean-Paul Sartre. Já o britânico Henry Moore (1898-1986) foi um dos mais
notáveis escultores do século XX. Tratando invariavelmente a figura feminina, deitada ou
reclinada, as suas formas maciças e só lidas emanam uma energia e vitalidade, só possível nas
forças da Natureza. Os seus trabalhos de grande escala, como Grupo Familiar, assumem uma
presença predominante, privilegiando também a relação com o espaço e a paisagem
envolvente.

Pássaro no Espaço, Constantin


Brancusi, 1927.
Formas Únicas de Continuidade no Espaço, Umberto Boccioni, 1913. Caminhando, Archipenko, 1912.

Homem Caminhando, Alberto Giacometti, 1960.

Grupo Familiar, Henry Moore, 1948-1949.


MÓ DULO 9 A génese do Modernismo na arquitetura: a ciência, a
A CULTURA DO CINEMA
técnica e o racionalismo
Uma das consequências da industrialização desenvolvida ao longo do século XIX foi a
acentuação do fosso existente entre arquitetos e engenheiros. Enquanto estes, formados na
École Polytechnique (fundada em 1795), se enquadravam num sistema técnico, pragmático e
científico correspondente às necessidades de uma sociedade urbana e industrial, os
arquitetos frequentavam a École des Beaux-Arts, mais vocacionada para perpetuar um ensino
de bases académicas, assente na tradição clássica e na divulgação dos có digos historicistas.
Porém, a necessidade de atualizar os seus modelos e integrar na sua linguagem princípios e
valores apropriados aos «tempos modernos» começou a evidenciar-se na biblioteca de
Sainte-Geneviève em Paris, de Henri Labrouste (1801-1875), um dos primeiros edifícios a
articular aspetos expressivos com condicionalismos funcionais (iluminação, circulaçõ es,
distribuição interna), e a adotar os novos materiais com fins estruturais plenos.
Os critérios básicos que sustentaram a gradual revisão de princípios da École des Beaux-Arts
foram fixados por Julien Guadet (1834-1908), na sua obra Elementos e Teorias de Arquitetura
(1901-1904), um trabalho que exerceria grande influência nas «escolas modernas» europeias
e norte-americanas. Guadet estabeleceu que na conceção de um edifício deve ser privilegiada
a sua adequação funcional, a sua integração no meio e a adaptação ao clima, a racionalidade
da estrutura e dos materiais (economia de meios e simplicidade estrutural), a sua robustez e a
sua beleza, sendo que o conceito de «belo» se relaciona com o «ú til» e não com aspetos
decorativos ou ornamentais.
Paradoxalmente, esta renovação da arquitetura tem as suas raízes na mais remota tradição da
arquitetura ocidental: às categorias de utilitas, firmitas e venustas definidas por Vitrú vio
(século I a. C.), a arquitetura moderna irá contrapor a função, a técnica e a composição formal.
A função deve responder às necessidades físicas e higiénicas da sociedade industrial; a técnica
deve basear-se nos novos materiais e sistemas de construção; e a forma arquitetó nica deve
basear-se nos arranjos de superfícies, volumes e espaços, rejeitando as referências histó ricas
Armazéns Marshall Field, e todo o tipo de ornamentos.
Henry Richardson, Chicago, EUA,
1885-1887. Na Europa, a corrente renovadora é protagonizada por dois arquitetos do círculo de Viena:
Este foi um dos primeiros edifícios Otto Wagner (1841-1918), arquiteto da Secessão Vienense, que publica o seu manifesto
construídos em altura, utilizando uma
estrutura metálica que seria depois
Arquitetura Moderna em 1895, e Adolf Loos (1870-1933), com o seu documento Ornamento e
revestida a alvenaria sem funções Delito de 1908. Estas são obras pioneiras, cuja expressão arquitetó nica é, por exemplo, a Casa
estruturais. O volume e a elevação da Steiner em Viena, de Loos: a forma é simples e adequa-se à função, os espaços são generosos e
construção em altura exigiam uma
extrema racionalidade no seu traçado, a
«ú teis», e os novos materiais surgem com «sinceridade», sem camuflagens decorativas de
repetição modular de elementos e a qualquer tipo.
exclusão de qualquer elemento
supérfluo, quer construtivo quer
decorativo.
Biblioteca de Sainte-Geneviève, Henri
Labrouste, Paris, França, 1838-1850.
O pioneirismo deste edifício consiste na forma
como Labrouste submeteu a composição formal à
estrita resolução funcional, tentando elevar ao
máximo
as suas condições de utilização.
Para além da integração de materiais como o ferro
e o vidro no sistema construtivo, aspetos como a
iluminação, a circulação e a articulação dos
espaços interiores assumem um papel
privilegiado na conceção do edifício.

Casa Majólica, Otto Wagner, Viena,


Á ustria, 1898.
A Secessão Vienense de 1898 surge a partir do
círculo de Otto Wagner e das Wiener Werkstätten,
o modelo da Arts and Crafts austríacas, reunindo
artistas e artífices na valorização das artes
decorativas.
A Casa Majólica evidencia um correto
entendimento de possibilidades expressivas dos
materiais de revestimento, em equilibrada
articulação com a estrutura (lógica
e racional) e a função do edifício.

Casa Steiner, Adolf Loos, Viena,


Á ustria, 1910.
No seu famoso artigo Ornamento e Delito,
de 1908, Loos reage contra todo o tipo de
ornamentação na arquitetura e nas artes aplicadas
que considera serem reminiscências
das culturas bárbaras.
Ao tradicional conceito de beleza, Loos contrapõe
o de utilidade e de funcionalidade. Aliás, os seus
trabalhos são a melhor expressão das suas ideias:
em obras como a Casa Steiner, Loos eliminou
totalmente os elementos supérfluos, isto é, tudo o
que não tivesse uma função estrutural na
edificação. As suas obras foram pioneiras do
racionalismo
que caracterizou a arquitetura moderna europeia
e influenciaram seguramente mestres como
Gropius, Le Corbusier e J. P. Oud, entre outros.

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