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Haroldo Lobo: músicas eram verdadeiras reportagens sobre a realidade da época
O grande som da pequena caixa
O fósforo de segurança foi criado em 1844 por um sueco, mas a caixa de fósforos só surgi
u nos anos 1890 nos Estados Unidos. Ninguém imaginaria que o pequeno objeto (48 x 36
x 17mm) se tornaria, nas mãos criativas dos sambistas brasileiros, um instrumento
musical indispensável.
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Entre Rio e São PauloNovas vozes subvertem o gêneroCom sabor de pinhãoEm 1935, quando
apesar do modernismo nossa poesia ainda se atrelava aos preciosismos parnasianos
, Noel de Medeiros Rosa (11 de dezembro, Sagitário) arrancava lirismo de temas ban
ais do cotidiano, em Conversa de Botequim , com uma letra cinematográfica: Seu garçom faç
o favor de me trazer depressa/Uma boa média que não seja requentada/Um pão bem quente
com manteiga à beça/Um guardanapo e um copo d água bem gelada. Era o samba do asfalto ,
havia descido o morro para a cidade e retratava com arte e percepção a nova realida
de urbana. Poesia pura.
Muitos desses sambinhas eram feitos no calor da hora em botequins, ao ritmo de vio
lão, cavaquinho e da caixinha de fósforo(texto abaixo). Rabiscados com a ponta rombu
da de um lápis nas toalhas das mesas ou nos guardanapos de papel, adquiriram com o t
empo status de verdadeiras obras-primas. Como em Dama do Cabaré , do mesmo Noel: A car
ta que recebi, não me lembro de quem/Você nela dizia que quem é da boemia/Usa e abusa
da diplomacia/Mas não gosta de ninguém.
Vinte e sete anos incompletos foi o tempo da passagem de Noel: nasceu, viveu e m
orreu no mesmo chalé de Vila Isabel. A movimentação em sua vida ficou por conta da músic
a. O queixo torto, consequência do parto difícil, não lhe trouxe complexos . Era líder e r
belde já nos tempos do Ginásio de São Bento. Não deu muita bola para a escola, sabendo q
ue samba não se aprende na escola.
A escolha da profissão foi, segundo o pesquisador João Máximo, uma fatalidade: em Vila
Isabel, bairro da baixa classe média, jovens talentos tinham como principal, senão úni
co, lazer a música . Apesar do sucesso de Com Que Roupa no carnaval de 1931, Noel entr
ou para a Faculdade de Medicina. Saiu seis meses depois: Como médico, jamais serei
um Miguel Couto. Mas quem sabe não poderei ser o Miguel Couto do samba? Acabou send
o muito mais, chegou até a fazer crítica social: Quanto a você/Da aristocracia/Que tem
dinheiro/Mas não compra alegria.
Noel casou com Lindaura em 1934, mas sua paixão era mesmo a dama de cabaré Ceci. Cor
roído pela tuberculose, morreu em 1937. Deixou 250 canções, uma verdadeira Comédia Human
a musical que descreve os dramas e o cotidiano da pequena gente carioca. Ninguém ca
ntou o Rio melhor do que ele , afirmou Tom Jobim. E Rubem Braga: Vendo essas letras
eu me pergunto se Noel Rosa não foi, tanto quanto sambista, um cronista e um poet
a. E o próprio Noel, mostrando a sutileza do seu pensamento no menor detalhe: A vocação é
necessária até para se dar o laço na gravata .
Cronista
Autor de um dos sambas de carnaval mais lindos, Tristeza , Haroldo Lobo (22 de julho
, Câncer) foi o rei das marchinhas, estourando já em 1941 com Alalaô (parceria com Náss
arranjo de Pixinguinha): Alá-lá-ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô,/Mas que calor, ô, ô, ô, ô, ô, ô./Atr
e Saara/O sol estava quente e queimou a nossa cara... A certa altura a letra cita
com intimidade o deus islâmico: Alá, meu bom Alá. Em outra marcha, Haroldo canta: Vem,
dalisca, pro meu harém, vem,vem, vem./Faço o que você quiser,/Pelas barbas de Maomé/Não ol
ho mais pra outra mulher. Por muito menos, o escritor Salman Rushdie foi condenado à
morte pelos fundamentalistas...
De uma família de músicos (o pai tocava flauta e violão; o irmão era baterista e composi
tor), começou os estudos de música na América Fabril. Aos 13 anos já compunha sambas par
a o Bloco do Urso. Conheceu a vida cedo, foi até vigilante, depois caiu na boemia,
onde ficou conhecido como Clarineta, pela voz com a tessitura do instrumento. S
ua primeira música, gravada por Aurora Miranda (irmã de Carmen) em 1934, Metralhadora ,
aludia à Revolução Constitucionalista. Criticou também o Eixo com Que Passo É Esse Adolfo
e As Ruas do Japão . Mas sua verve se concentrava mesmo na crônica de costumes. Suas músi
cas eram verdadeiras reportagens sobre a realidade brasileira da época, como A Mulh
er do Leiteiro , Alô Padeiro (Não É Economia) e Cabo Laurindo .
Usava também animais em seus temas e O Passo do Canguru fez sucesso nos EUA como Braz
an Willy . Morreu cedo, aos 55 anos, mas deixou 600 canções, entre elas a inesquecível Tr
steza, música que Nilton de Souza (depois Niltinho Tristeza, compôs em 1963 e passou
a cantar no bloco Boêmios de Botafogo. Haroldo gostou tanto que propôs parceria a Nilt
nho e deu o toque de mestre ao suprimir a segunda parte. Gravado por Jair Rodrig
ues, foi o grande sucesso do Carnaval de 1966, mas Haroldo não estava mais aí para s
aborear a sua glória.
Para efeito de economia de espaço (e da paciência dos leitores), cito apenas o excer
to final do texto do compositor/poeta baiano.
O quereres e o estares sempre a fim
Do que em mim é de mim tão desigual
Faz-me querer-te bem querer-te mal
Bem a ti mal ao quereres assim
Infinitivamente pessoal
E eu querendo querer-te sem ter fim
E querendo-te aprender o total
Do querer que há e o que não há em mim
Se compararmos ambos os textos, veremos que o do Caetano contém muitos dos element
os que caracterizam o que se costumou chamar na nossa já longa tradição poética ocidenta
l de poema. Como dissemos na historinha do dinamarquês, o texto em tela é construído e
m versos decassilábicos, possui rimas, cria oxímoros, faz jogos de linguagem etc. et
c. etc.
E o poema de Augusto de Campos, quais as características que, na época em que ele fo
i levado a público (1973), permitiriam aos seus leitores, baseados nos conheciment
os legados pela tradição poética, admitirem aquele objeto gráfico-verbal como sendo um po
ma?
Comparado com o texto de Caetano, Código contém muito menos das características que, na
já citada tradição poética ocidental, identificam um poema. Ele não é feito em versos, não
rimas, nem metrificação etc. etc. etc.
Porém, o fato é que Código foi e é até hoje não só considerado mas também estudado (vide
te Poesia Concreta Brasileira, de Gonzalo Aguiar) como fazendo parte daqueles ob
jetos estéticos denominados poemas.
Portanto, por que Código pode ser denominado poema e O Quereres não pode?
Poderíamos levantar outros argumentos em favor de nossa posição. Por exemplo: Por que
consideramos como poemas as obras dos trovadores provençais se, ao que tudo indica
, eles eram produzidos para serem cantados? Então, por que não chamamos aqueles trov
adores de letristas ? (Para mais informações e muitos e muitos deleites, vide Invenção, de
Augusto de Campos, obra publicada pela Editora Arx.)
Logicamente, e é bom deixar isso muitíssimo claro, não estamos querendo comparar Caeta
no ou outro compositor/poeta, brasileiro ou estrangeiro, com os trovadores prove
nçais (muito menos com Shakespeare, ouviste, Bloom?). O que nos parece claro é que não
querer considerar os textos impressos nos antigos encartes de LP e nos quase ul
trapassados CDs como PODENDO TAMBÉM SER POEMAS é apenas mais uma espécie de pré-conceito
livresco.
E, pra descerrar o encerrado, mais Caetano e um excerto de seu Livros :
Mas os livros que em nossa vida entraram
São como a radiação de um corpo negro
Apontando para a expansão do Universo
Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso
(E, sem dúvida, sobretudo o verso)
É o que pode lançar mundos no mundo.
*Assisti o filme mais ou menos uma semana depois de fechar este artigo. Mas, apesa
r de gostar bastante do documentário, ou melhor, apesar de sair do cinema (en)cant
ado com diversas passagens da obra, esta não modificou em nada a minha opinião sobre
a relação poema x letra de música.
A esperança dança
na corda bamba de sombrinha
e em cada passo dessa linha
pode se machucar
João Bosco/Aldir Blanc em O Bêbado e o Equilibrista, na voz de Elis Regina
Queixo-me às rosas
mas que bobagem, as rosas não falam
simplesmente as rosas exalam
o perfume que roubam de ti
Ô mulata assanhada
que passa com graça, fazendo pirraça,
fingindo inocente
tirando o sossego da gente
Ataulpho Alves em Mulata Assanhada, na voz de Elizeth cardoso, com
Jacob do Bandolim e Conjunto Época de Ouro.
Sabão, um pedacinho assim
A água, um pinguinho assim
o tanque, um tanquinho assim
a roupa, um montão assim
pra lavar a roupa da minha Sinhá
pra lavar a roupa da minha Sinhá
Nilo Chagas/Monsueto Menezes/João Vieira Filho em Lamento da Lavadeira,
na voz de Marlene.
Ai, ai, ai Izaura
hoje eu não posso ficar
se eu cair em seus braços
não há despertador
que me faça acordar
Herivelto Martins/Roberto Roberti, em Izaura, na voz dos Demônios da Garoa.
Te chamei de querida
te ensinei todos os auto-reverses da vida
e o movimento de translação que faz a terra girar
te falei que o importante é competir
mas te mato de pancada se você não ganhar
Dinho/Bento Hinoto, em Uma Arlinda Mulher, com os Mamonas assassinas.
Amor lá no morro
é amor pra chuchu
as rimas do samba
não são y love you
e esse negócio de alô
alô boy, alô Jone
só pode ser conversa de telefone
Noel Rosa em Não tem Tradução, na voz de Aracy de Almeida