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A última aula de religião

Eu estava no ginásio no início da década de 80 – na verdade não era mais ginásio mas a
mudança da nomenclatura era ainda tão recente que aquela segunda parte do recém
nomeado 1º. Grau era ainda chamada assim – quando as aulas de religião deixaram de existir,
por uma decisão do Conselho Nacional de Educação do regime militar. A piedosa senhora que
nos dava aula, preocupada com nossas almas, ofereceu-se para dar aulas em sua casa aos que
estivesse interessados.

Eu estava na meia dúzia que atendeu ao chamado, enquanto outras centenas de colegas
acharam coisas melhores para fazer. Tudo ia bem até que lá pela terceira aula a professora
ataca violentamente a teoria da evolução, com aqueles argumentos simplórios queainda se
houve por aí.

Eu tinha uma formação científica e uma ligação tão grande com o tema que até, mesmo com
12-13 anos de idade, tinha até a chave dos laboratórios inativos da escola que tentava reativar
e alguma fama de cientista louco entre os colegas. Tinha lido uma versão condensada do livro
de Julian Huxley buscando popularizar a teoria da evolução, de uma edição distribuída nas
escolas na década de 60 (por sinal comecei a reler a versão integral agora, na ressaca destas
lembranças). Para mim aquele debate era uma do passado, já deixada para trás há tempos,
distante como as afirmações de Galileu, cujos opositores tinham ficado para trás e virado
piada.

Então aquele ataque a Evolução foi um choque para mim, algo inesperado, algo que me dizia
que tinha de escolher entre ciência e religião em uma disputa na qual não era possível ser
neutro ou aproveitar o melhor dos dois mundos. Deixei as aulas de religião, o catecismo para a
primeira comunhão e levei mais de uma década para reconciliar-me com a religião e ela voltar
a minha vida.

Ouvir os mesmos argumentos contra a evolução nos dias de hoje – cena comum nesta onda de
obscurantismo pela qual passamos – inclusive de pessoas que respeito muito ainda produzem
algum incômodo, mas não aquela “ira santa” que me afastou da fé no passado. Meditando
sobre isto chego a conclusão que ter resolvido dentro de mim estes conflitos – o que não
ocorreu naquela mente de adolescente – é que provocou uma sobrerreação.

Uma década e meia depois, lendo a Muqadimma de Ibn Khaldun fiquei impressionada que ele
mencione naquele texto do século XV a evolução com naturalidade. Tentando entender achei
uma conclusão quase lógica aquele pioneirismo porque o que havia dado a Darwin o insight
sobre a “Seleção Natural” antes de qualquer conhecimento sobre genética havia sido
exatamente a criação seletiva pelo homem de espécies animais e vegetais – aquilo que se
chama hoje de “melhoramento genético” ou “seleção genética” mas que acompanha
enquanto prática o homem desde as primeiras plantações e criações do neolítico.

E, particularmente, a civilização islâmica, ponte entre vários climas e biomas, tinha uma vasta
experiência prática neste processo de seleção. Não só pelo controle proverbial das linhagens
de cavalos árabes buscando desenvolver as qualidades necessárias de disciplina, docilidade e
agilidade, mas também em cosias muito mais prosaicas como limões e laranjas – não fiquem
chocados, mas a vida não te dá limões, como diz o provérbio, porque o limão não é uma fruta
“natural” mas uma criação humana a partir da seleção genética da cidra, assim como as
demais frutas cítricas, daí o nome.

É evidente que em uma cultura em expansão, confiante em si mesma, na vanguarda do


conhecimento tanto quanto do domínio político e econômico, a reação a esta questão da
ciência e da fé é uma – confiança expressa por exemplo pela frase do filósofo Ibn Rushd de
“que a verdade não contradiz a verdade” e portanto qualquer discordância é apenas uma
imperfeição de observação. Muito distinta é a reação séculos depois quando a civilização
islâmica é acorrentada pelo colonialismo europeu – a discussão sobre os motivos desta
reviravolta, ainda mais que do ponto de vista do conhecimento científico que é o foco todos os
elementos que dão origem a revolução científica, e portanto a industrial, na Europa passaram
pelo mundo islâmico, escapam do objetivo deste pequeno texto, quem sabe se possa voltar a
ele em outro momento. Ainda mais distinta é esta visão em um momento daquilo que vem
sido chamado de “Ressurgimento islâmico”. No próprio ocidente há movimentos similares e é
sintomático que as negações da evolução que hoje ressoam no mundo muçulmano sejam em
grande parte inspiradas e copiadas dos fundamentalistas cristãos, dos jecas do Cinturão da
Bíblia, não mais do esforço de síntese dos grandes pensadores clássicos.

Também não é paradoxal que o esforço antievolucionista do pensamento islâmico – para além
de Isis, Wahabis e Boko Haram que são casos patogênicos à parte – venha de pessoas que vem
se notabilizando pela desonestidade intelectual, pelos truques e trapaças no esforço de provar
seu ponto de vista, como se os fins justificassem os meios e negando um elemento essencial
do Islam que é o apreço a verdade como elemento essencial da ética.

Não é paradoxal que uma das vozes mais sensatas, ainda que angustiadas, nesta discussão
entre Islam e evolução venha justamente de uma biólogo cujo campo de pesquisa é
exatamente a antropologia física, Fatima Jackson. Uma convertida cujo campo de atuação
antes da conversão era, e continua sendo, justamente a evolução e particularmente a
evolução humana – o topo de todas as polêmicas teológicas sobre o assunto.

Ser “ocidental” e cientista não a impediu de se tornar muçulmana, pesquisar e ensinar


evolução não tolheu sua fé, pelo contrário a impulsionou a descobri-la. Mas certamente sua
condição a ajudou em muitos pontos a encontrar suas respostas, aquela superação do conflito
interno que mencionei acima, pois seu foco é exclusivamente a busca da verdade com aquele
rigor da ciência, sem preocupações políticas, econômicas, sociais. Impossível imaginar melhor
descrição do exercício recomendado pelo sagrado alcorão nos versículos 6-7 da Sura Al Mulk:
“tu não acharás imperfeição alguma na criação do Clemente! Volta, pois, a olhar! Vês, acaso,
alguma fenda? 4 Novamente, olha e torna a fazê-lo, e o teu olhar voltará a ti, confuso e
fatigado” ou às muitas passagens que santificam o conhecimento e atestam que aquilo que o
homem sabe foi um presente divino.

A explicação singela de Fatima Jackson de que a ciência diz “como” enquanto a fé diz “porque”
talvez satisfaça pouco tanto a cientistas quanto teólogos, mas certamente concilia o elemento
essencial a ambas: a verdade.

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