Você está na página 1de 3

Racismos Lá e cá

Tenho uma infinidade de razões para lamentar a precariedade das instituições brasileiras – da qual o
“jeitinho” é de longe a mais notória – mas não compartilho do deslumbramento da quem gosta de
desvalorizar nossas coisas e jeitos enaltecendo o que existe em outros países. O aparente paradoxo é
que na imensa maioria das vezes o enaltecimento do que existe “lá fora” é feito pelas pessoas que
mais contribuem para que tenhamos tantas mazelas institucionais por aqui.
O paradoxo só é aparente porque na verdade tem profundas raízes históricas, fez parte dos
mecanismos da dominação colonial e da integração dependente pós-independência uma concepção
ideológica de valorização da metrópole em relação à colônia resultando em um esforço quase
desesperado para se desvincular do que era nativo reforçado por um sentimento de inferioridade
fortemente reforçado pela maquina administrativa portuguesa e pela origem mestiça de
praticamente toda a população local.
Mesmo entre os paulistas - onde o grau de mestiçagem era ainda maior, a importância econômica
era mais marginal e a necessidade de adaptação ecológica dos hábitos indígenas era mais central –
para não mencionar o próprio uso da língua de base indígena – a desvalorização do local em relação
ao metropolitano, que vai redundar no racismo sem pé nem cabeça de uma elite mameluca que
deseja branquear-se e para isto precisa distanciar-se do seu patrimônio genético com um discurso
que esconda sua origem mestiça repleto de tal virulência para que ninguém ouse apontar a
contradição evidente.
Muito se tem dito, ainda mais recentemente, dos paralelos e divergências do racismo fortemente
segregacionista norte-americano e do “racismo cordial” brasileiro. Algo que talvez seja muito pouco
dito é que o “status social” de ambos é radicalmente diverso. O racismo americano – em especial a
partir da segunda metade do século XX – é essencialmente uma ideologia dos estratos inferiores da
sociedade branca, marginais social e economicamente. O “público” típico da KU Klux Klan é o
redneck – equivalente ecológico do nosso “Jeca Tatu” e bem tipificado no Cletus dos Simpsons - e o
único espaço no qual a ideologia racista tem alguma relevância por lá é nas prisões, única fonte que
restou para recrutar quadros racistas.
Por motivos diversos os segmentos da elite e classes médias formadoras de opinião americana não
são ou vão deixando de ser conceitualmente racistas. Seitas pietistas – como os quackers – que vão
se tornar – e ainda são - o centro da elite combatem a escravidão desde o primeiro momento, assim
como a comunidade judaica – da qual sai outra parte desta elite – pela sua própria situação de
minoria não tem afinidade com o discurso discriminatório.
Evidente que nada disto significa que não reinou e ainda reina um racismo feroz nos Estados
Unidos e que o sistema de segregação só começou a ser solapado estruturalmente com o aumento na
necessidade de mão de obra a partir dos anos da 2a. Guerra. Ao mesmo tempo o que recrudesceu o
racismo até os combates da luta pelos direitos civis na década de 60-70 foi exatamente a competição
por empregos e o início do surgimento de uma classe média negra.
Mas este baixo status social do racismo explicito americano tem uma importância política
fundamental, sem ele, por exemplo, talvez jamais tivesse sido travada a luta pelo fim da segregação
e pelos direitos civis nas regiões dos “jecas-tatu” do Sul pelas elites e classes médias cultas da Nova
Inglaterra e regiões industriais. Colocar a mão nesta “caixa de marimbondos” política revela a força
política, social e econômica do pensamento antiracista.
Uma comparação com a nossa situação revela quão pouco cordiais é o nosso racismo. Enquanto nos
EUA ser racista “é brega” aqui nem mesmo as leis severas evitam que mais do que socialmente
aceito ele seja sinal distintivo. Fiquei chocado na última vez que estive em Salvador – em muitos
sentidos capital da cultura e da identidade negra no país, em grande parte proque foi o único lugar
onde as condições sociais permitiram uma cultura negra urbana durante a escravidão (como já
apontei no post Mandinga” - e vi que há por lá ainda muitos lugares onde raramente se vê um negro
como cliente, a despeito deles serem a maioria da população, e não se vê um branco como
empregado, salvo algum gerente. Mesmo aquela questão que antropólogos como Darcy Ribeiro
sempre apontaram da gradação da cor correspondendo fortemente à posição social pode ser
facilmente percebível, quase e possível medir com um colorímetro o gabarito social, coisa que ao
menos nas áreas mais modernas como São Paulo felizmente já não acontecem, salvo em um ou
outro ambiente de “jecas-tatu” mais bem sucedidos. E o pior é que ninguém parece se dar conta da
lei invisível que está em ação ali mas que me saltou aos olhos de cara.
Minha tese é que o racismo está profundamente ligado a competição por status econômico, social e
político. No Brasil colonial eramos todos mestiços e sujeitos a um completo arbítrio pelos senhores
– também eles mestiços – e na verdade poucas coisas diferenciavam de fato o índio, o negro e a
maioria mestiça. Não havia diferença educacional – eramos todos analfabetos e em alguns casos
como na Salvador do Século XIX os negros muçulmanos eram praticamente os únicos alfabetizados
salvo alguns poucos funcionários - de qualificação profissional ou alguma outra característica
distintiva salvo a atenção dada pelo senhor. As poucas posições de distinção pela educação existente
eram apanágio dos portugueses natos de boa origem ou dos mercadores com ligações externas e
capital e portanto as primeiras eram inacessíveis e as segundas muito restritas – mas se destacando
que mesmo estas poucas oportunidades foram bem aproveitadas por alguns integrantes da
comunidade negra, inclusive como traficantes de escravos, que com o Império puderam comprar
títulos de nobreza e integrar-se ao sistema.
Um racismo feroz era, assim, um dos poucos mecanismos de distinção social destes segmentos
intermediários entre a casa-grande e a senzala, e uma pele acidentalmente mais clara acabava por
ser um diferencial relevante neste processo totalmente casual de distinção, seleção e recrutamento
dos segmentos médios. Nesta linha tênue de separação – tão oposta a meritocracia que ganhava
cada vez mais espaço – o racismo passava a ser um elemento importante para distinguir-se da
massa.
Nossos “jecas-tatu” não introjetaram um racismo como os americanos dos estratos mais baixos – a
despeito de suas similaridades “ecológicas” por um conjunto de fatores, entre eles pela própria
origem mameluca, segundo porque vivendo na maior parte do tempo à margem do sistema
econômico em terras de fronteira não competiam com as populações negras e terceiro porque salvo
os quilombos criados por vontade própria dos movimentos revoltosos negros não houve por aqui
comunidades agrícolas negras em competição e interação com as comunidades de brancos pobres.
O elemento final deste processo vem com a imigração europeia a partir dos fins do século XIX.
Nele se somam aquele racismo antigo vindo da necessidade de se distinguir daquele que é visível e
estruturalmente igual do racismo novo daquele que vindo fazer o que o escravo fazia precisa com
urgência buscar meios de diferenciar-se para assegurar seu status e direitos.
Paralelo a isto ocorre uma degradação econômica da situação dos negros – que a abolição e a
imigração não pretende libertar, mas sim erradicar – em grande parte privados de terra e trabalho –
e aqui há uma diferença essencial do processo norte-americano. Parte deles incorpora-se no sistema
marginal “caipira” mas a maioria é obrigada a habitar as periferias urbanas – em bairros que em
geral eram guetos com nome de “Vila Isabel” ou similares como há em muitas cidades do século
XIX nas áreas que eram economicamente dinâmicas à época. O resultado deste “esmagamento” da
comunidade negra é em grande parte o motivo do que chamam de “racismo cordial”, sem a
competição direta não há o confronto cotidiano que torna o racismo um elemento ideológico
importante no dia a dia, ainda que sobrevivam os dogmas racistas dos períodos anteriores.
A universalização do ensino, a modernização e racionalização das estruturas econômicas em
modelos meritocráticos, o processo de urbanização e industrialização e o aumento do nível cultural
médio da população criaram condições para uma redução das desigualdades raciais e a consolidação
de uma classe média negra. O “mercado” - que pode até ser este ente malévolo dos discursos, mas
que não é bobo – percebeu isto mais rapidamente do que muitos segmentos sociais e políticos e
apoiou esta consolidação, ainda mais em tempos no qual a “desmassificação” torna muito atraente
qualquer mercado de nicho que possa ser criado ou desenvolvido.
O resultado desta situação de menos desigualdades entre a população negra e as demais – que só se
pode chamar de “brancas” pela necessidade ideológica de antítese, porque certamente não o é
geneticamente falando – e o que já se começa a ver há alguns anos e deve piorar, um redespertar
dos velhos discursos racistas e a “cordialidade” perdendo o véu daquilo que realmente é – uma falta
de preocupação com o próprio status social, político e econômico em relação à população negra.
Assim na contramão da história e na negação da genética – diria até da ecologia – reciclamos
discursos do feitor.

Você também pode gostar