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Relato da Biblioteca #1

09 de junho de 2022

Uma vida na biblioteca pode parecer expressão um tanto exagerada de quem apenas
frequenta bibliotecas e convive com livros desde que nasceu, afinal, não sou nenhum
bibliotecário ou fiz curso de biblioteconomia, mas minha memória de convivência
com livros de fato pode retroceder desde os primeiros momentos de consciência
nessa vida tão curta, tão longa, tão pobre, tão privilegiada.

No dia de hoje convidei minha turma de linguística comparada para uma visita à
biblioteca da universidade. Entre meus objetivos, além de fugir um pouco do terreno
um tanto árido da reflexão linguística, estava incluído a possibilidade de conhecer
um pouco as orientações e tendências de leitura dos alunos.

E, como eu esperava, eles mostraram seus interesses e pra mim é uma forma de
conhecer eles melhor. Alguns procuraram livros com histórias românticas, outros
com histórias distópicas. Entre as escolhas feitas pelos alunos estavam livros de
psicologia, análise do discurso, realismo fantástico, literatura brasileira e outros
que neste momento não consigo recordar.

O comportamento em biblioteca ainda é algo que precisa ser melhor cultivado,


assumindo que vamos lá para estudar, ler e, especialmente, fazer silêncio para
podermos nos concentrar. Com o tempo eles vão aprender, espero que não demore
muito, porque já está na hora.

De minha parte, minha experiência, peguei O Som e a Fúria publicado em 1929 por
William Faulkner. Sendo este autor ainda uma espécie de lacuna na minha
experiência de formação em leitura., li muito pouco. E este título em específico é

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Este relato foi redigido utilizando o masculino genérico do português brasileiro que desde o tempo
de Mattoso Câmara vem caindo em desuso, em especial nos últimos cinquenta anos.

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uma das lacunas, sabido que é um dos títulos mais importantes do autor e que eu
mesmo tenho um longo histórico de relação com o título em minha vida de leitor.

Pedi aos alunos que em suas escolhas fizessem algum tipo de relação com o
contexto de reflexão que estávamos desenvolvendo na disciplina, sem
necessariamente precisar ser uma reflexão específica em linguística comparada.
Alguns rapidamente entenderam a sugestão e apresentaram suas ideias mesmo
antes de partirmos para a biblioteca.

Durante o tempo em que estivemos na biblioteca, além de assistir e observar os


alunos, fiz a leitura das primeiras páginas do capítulo inicial do volume que
mencionei. A biblioteca possui um exemplar da tradução de Paulo Henriques Britto,
publicado pela desaparecida Cosac & Naify, esta tradução parece ser a de maior
circulação no momento no contexto de recepção brasileiro, visto que a edição
publicada pela Companhia das Letras foi feita pelo mesmo tradutor.

Vou passar, agora, diretamente, para minhas impressões de leitura, gostaria ainda
de ressaltar que ao mesmo tempo em que lia a tradução que mencionei,
acompanhava a leitura com o texto em inglês na minha frente, fazendo uma
comparação de passagens aqui e ali.

O texto em inglês procura reproduzir uma certa forma de oralidade coloquial


marcada por traços de variedades linguísticas étnicas rurais do sul dos Estados
Unidos.

É de se supor que a composição marcada desta forma tenha sido elaborada a partir
da percepção do escritor, de sua percepção pessoal, de sua experiência de contato
com o inglês do tipo especificado, isto é, levando em consideração que marcas de
oralidade transpostas para a escrita sem sempre correspondem a alguma variedade
sociolinguística como esta se mostraria em uma análise linguística.

Já na tradução, estas marcas foram em grande parte mitigadas, diminuídas pelo


tradutor para alguma forma coloquial do português falado que procura denotar

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traços da fala rural de baixa escolarização ou apenas o coloquial de uma classe
socioeconômica menos privilegiada.

A transposição sugerida e implementada pelo tradutor não parece ter alcançado o


grau de sucesso que poderia, pois não chama a atenção de maneira sistemática
para a fala construída no texto de partida, não acompanhando as formas da
composição na língua de partida.

Tudo isso me levou ainda a pensar em como a língua escrita pode ser enganosa no
trabalho de reconstrução de proto-línguas, ou no mínimo impôr um trabalho que
muitas vezes pode ser insuplantável.

E me vem à mente a discussão em linguística românica da existência do latim


africano e das línguas românicas da África que desapareceram e que são
conhecidas apenas por menção indireta na obra de autores como Santo Agostinho.

Prof. Rodrigo Faveri

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