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A Última Pétala | Walace Rocha

Walace Rocha

A Última Pétala

2022

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A Última Pétala | Walace Rocha

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A Última Pétala | Walace Rocha

CAIXA POSTAL
Contato: Cronica.elizir@gmail.com
Travessa Pau Brasil — Vila Rica
Extrema —MG
CEP 37640-000
CAPA: Fabíola Lauton de Jesus
DESIGN DE CAPA: Fabíola Lauton de Jesus
DIAGRAMAÇÃO E REVISÃO: Walace Rocha
A ÚLTIMA PÉTALA
Rocha, Walace
1ª Edição
Maio de 2022

R672s Walace Rocha


A Última Pétala
1. ed — Extrema, MG
Copyright©2022 by Walace Rocha
Todos os direitos desta edição reservados ao autor da obra.
/Literatura Juvenil

Índice para catálogo sistemático


1. Ficção: Literatura Juvenil CDD 028.5
2. Literatura Brasileira CDD B869
ISBN ?

Todos os direitos reservados ao autor da obra.


É proibida a reprodução total ou parcial deste livro com fins comerciais
sem prévia autorização do autor.
Os infratores serão processados na forma da Lei.

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“Podes cortar todas as flores,


mas não podes impedir a Primavera de aparecer.”
— Pablo Neruda

“Ela ainda se lembra de tempos como esses?


Para pensar novamente em nós?
E eu lembro, sim”
— Tangerine, Led Zeppelin

“Nenhum homem escolhe o mal por ser o mal;


mas apenas por confundi-lo com a felicidade.”
— Mary Shelley

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PRIMEIRO
ATO

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Capítulo 1

11 de maio, 1910.

A manhã estava quente, e, ao fitar o céu extremamente azul e sem nuvens, o


pequeno Uziel sabia que seria um dia abafado. O garoto de olhos
amendoados virou-se para trás no banco da carroça, observando seus
vizinhos e amigos que acenavam, despedindo-se. Para Uziel e sua família,
assim como alguns outros daquela humilde aldeia, aquele 11 de maio era
sinônimo de recomeço, uma vida nova. Pouco mais de uma dúzia de famílias
dirigiam-se para o centro do estado, para um lugar melhor, onde poderiam
trabalhar, viver e cogitar a possibilidade de um futuro diferente do que
esperavam. O garoto levantou uma das mãos, acenou, sorriu, e voltou-se à
frente, mirando a estrada de terra batida. A seu lado, seu pai, Benedito,
segurava as rédeas, enquanto atrás, sua mãe, Lira, murmurava de olhos
fechados, presa em alguma oração. À frente e atrás, mais um punhado de
carroças seguiam, todos em fila, todos com um único destino.
Sem tirar os olhos escuros da estrada, o homem simples e de vestes
gastas disse:
— Uziel... você está animado?
O garoto de cabelo crespo levou alguns segundos para responder o pai,
volvendo-se uma última vez à aldeia, às pessoas que ficavam à distância, no
horizonte desértico do sertão.
— Um pouco — Uziel voltou-se à frente, os olhinhos concentrados na
estrada, ignorando os dois cavalos magricelas. — Não queria deixar a aldeia.
— Também não queria — Benedito disse. — Mas... é por uma boa
causa. Um dia você entenderá.
Uziel aquiesceu, agora levando os olhos à paisagem que os cercava;
terra seca, ar abafado e uma vastidão interminável de puro nada. A caravana
seguiu pelas estradas o dia inteiro, parando apenas duas vezes para alimentar
os cavalos. Quando o sol tocou o horizonte, manchando o céu de laranja,
carmesim e roxo, avistaram os extensos campos da Fazenda Santana, e
poucos metros adiante, a casa grande. Em fila, as carroças adentraram o
espaço da propriedade, parando, uma a uma, à frente da casa de três andares.
Da varanda, um homem bem-vestido de meia-idade, pele queimada de sol e

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cabelos encaracolados desceu; César Santana, o senhorio. Em seu encalço,


um homem calvo e franzino acompanhou-o, provavelmente um de seus
capachos.
— Sejam bem-vindos, sejam bem-vindos! — Exclamou César, a voz
retumbante. Seus olhos escuros passaram sobre cada carroça, sobre cada
família que estava prestes a acolher, analisando-as. — Este ao meu lado é
José, meu ajudante. Ele apresentará a vocês onde se encontra a vila... com
suas novas moradas. Acredito que, após viajarem o dia inteiro, devem estar
cansados.
De uma das carroças, um homem robusto desceu, um conhecido da
aldeia de Uziel. Ele avançou um passo, prostrando-se à frente de César.
— Somos gratos pela oportunidade, senhor — disse ele, tirando o
chapéu gasto. — Não sabe o quão felizes estamos...
Com um meio-sorriso, César gesticulou.
— Tudo bem... tudo bem. Eu precisava de trabalhadores, e aqui estão —
girou a mão, indicando todas as carroças paradas. — Vocês terão muito
tempo para agradecer... — o homem robusto aquiesceu, retornando à sua
carroça. — Pois bem, depois alinhamos as regras etc, etc. Por ora, não
tomaremos mais tempo, as estrelas estão nascendo! José, leve-os à vila, sim?
Assentindo, o capacho franzino desatou a andar, distanciando-se da casa
grande, gesticulando para que os novos trabalhadores seguissem-no. Uziel
estava impressionado com a residência de César, nunca vira uma casa tão
grande, nunca estivera em uma fazenda. Movia os olhinhos com rapidez, ora
fitava o pai, animado, ora fitava as carroças que vieram junto em sua jornada
e ora... os olhos escuros cravaram-se em duas figuras acanhadas na varanda;
uma mulher negra e uma garotinha. Um instante depois, sentindo-se culpado,
retornou os olhos ao novo caminho que o capacho indicava.

A vila mencionada por César tratava-se de um lugar amuado, localizado a


três quilômetros das plantações e a quatro da casa grande. Ali, pouco mais de
quinze cabanas se amontoavam, divididas por três ruas de terra. José gritou
algumas palavras de apresentação, fez a divisão entre as famílias e finalizou
discursando sobre algumas regras. Após escutar o capacho, Benedito
escolheu a primeira cabana da terceira rua, e descendo da carroça,
descarregou a bagagem com Uziel e ajudou a esposa na organização do novo
lar. Uziel caminhou pela rua de terra batida, e riu ao ver que todos os filhos
dos amigos de seus pais jaziam tão, senão mais perdidos e impressionados
que ele.

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Animado com o lugar, virou-se à casa nova: uma cabana de madeira


escura, contando apenas com um quarto, uma cozinha e um banheiro; chão de
cimento queimado e telhas de barro vermelho. Entrou na morada, analisando
cada canto, e caminhou rumo ao quarto, este com duas camas de colchão de
palha — uma delas era de solteiro.
— Gostou da casa nova, filho? — Benedito perguntou com um ar
orgulhoso.
— Um pouco menor que a nossa antiga... — Uziel saiu do quarto,
parando à porta.
Sua mãe examinava o fogão à lenha, enquanto seu pai retornava para
acender a lamparina.
— Você acabará se acostumando, espaço não é problema. Agora, que tal
me ajudar com estas caixas enquanto sua mãe prepara o jantar?
Assentindo, o garoto ajudou o pai a abrir as caixas — panelas, trapos,
água — e organizar os itens na cozinha. Minutos depois, jantaram uma sopa
improvisada e deitaram-se em suas camas. Mas mesmo com o cansaço
correndo por suas células, Uziel não conseguia dormir, tamanha era sua
animação.
Fechou os olhos, encolheu-se na cama de palha e escutou Benedito
sussurrando algo à Lira.
— Aqui, nossas vidas mudarão...
Ao escutar tais palavras, Uziel sentiu certa tranquilidade e paz. Sua
respiração se amainou, e dormindo, foi levado à terra do sonhar. E lá,
perambulou por campos de rosas do deserto.

Uziel abriu os olhos, virando na cama de palha. Dormira um sono profundo,


sentia-se completamente descansado e renovado. Sentou-se, olhando ao redor
e notando que o quarto apertado jazia vazio. Rolou, pulou da cama e
atravessou o cômodo, chegando à cozinha. Ao lado do fogão, a mulher de
pele morena e cabelos cacheados mexia uma panela, alheia ao mundo. Ao
escutar os passos do filho, Lira virou-se.
— Bom dia, filho. Como passou à noite?
Uziel acercou-se da mãe, estendendo a mão.
— Bênção, mãe.
— Deus te abençoe.
— Eu dormi bem — Uziel voltou-se à mesa, sentando-se. — Onde está
o senhor meu pai?

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— Foi conhecer a fazenda, aquele José chegou cedo aqui. Hoje mesmo
já começam a trabalhar — Lira pegou o bule sobre a chapa do fogão e
depositou-o à mesa.
— Pai deve estar animado — o garoto pegou uma xícara de porcelana e
serviu-se do café ralo e doce. Sua mãe agachou, vasculhando uma das caixas
e retirando um pedaço de pão. Ergueu-se e entregou-o ao filho, que aceitou
de bom grado.
— Sim, ele e todos os outros — Lira fitou o garoto, carregando o cenho.
— José falou algumas coisas... regras da fazenda. Resumindo para que você
compreenda... pode se reunir com as demais crianças e brincar à vontade.
Mas não chegue perto das plantações, sim?
Uziel aquiesceu, bebericando o café e mordendo o pão duro. Lira
voltou-se ao fogão, mexendo no conteúdo da panela. Por um momento, o
garoto se perguntou como estariam as coisas na vila onde morava. Vazio,
parado. Estamos todos aqui, afinal. Meneando a cabeça, terminou de comer
o pão e de beber o café. Levantou-se, observando a paisagem através da
janela. A manhã estava ensolarada, quente.
— Vou sair, mãe. Ver meus amigos.
Lira gesticulou.
— Tome cuidado.
— Não se preocupe — animado, Uziel atravessou a porta, saindo na rua.
De imediato, seus olhos pousaram em Nero e Sofia, seus melhores
amigos. Acercou-se, então, dos dois, sorrindo.
— Arre! Olha só quem acordou — Nero disse. O garoto era poucos
centímetros mais alto que Uziel, tinha a tez clara e cabelo liso cortado curto.
Filho de Matheus, amigo de seu pai.
— Vejo que estão animados — Uziel disse, virando-se à Sofia e
reparando, de canto de olho, o grupo de crianças que se reunia na outra rua.
A garota de pele escura e cabelos crespos torceu o nariz numa careta.
— Estamos todos animados, você sabe bem disso, Uziel — Sofia disse.
— Queremos explorar este lugar, vamos descobrir o que ganhamos com essa
nova vida.
— Mas temos de ter cuidado, minha mãe disse que o capacho de César
alertou as crianças...
— Não seja chato, Nero — cortou Sofia, dando um soquinho no braço
do garoto.
— Certo... estou animado. Vamos nos reunir com os outros, então? —
Uziel disse, observando o grupo na outra rua, seus conterrâneos.
— Vamos! — Nero se virou, rumando ao grupo, seguido de Sofia.

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Uziel desatou a andar, mas parou ao ver, na primeira rua, uma garota de
pele levemente bronzeada, da mesma idade que ele, cabelos castanhos e
olhos claros. Imediatamente, recordou-se dela, era a mesma menina da casa
grande, que saiu na varanda no dia anterior. O que ela faz aqui? Nero parou
de caminhar, volvendo-se a ele.
— Vamos, amigo. O que faz aí parado feito um bobo?
— Aquela garota... o que ela faz aqui?
Com uma expressão azeda, Sofia respondeu:
— Ela é filha do patrão. Deve estar aqui para se certificar... de que... nós
não faremos nada de errado. Uma chata, uma xaropona, essa daí!
— Ela... ela só quer brincar conosco — Uziel disse. — Vou chamá-la.
— Não faça isso — resmungou Sofia. Entretanto, Uziel caminhou em
direção à garota. — Ah, eu não acredito!
— Deixa, talvez ela se sinta solitária — comentou Nero. — Antes de a
gente chegar, não havia criança alguma aqui.
— Ha! Problema dela.
Acercando-se da filha do patrão, o garoto moreno parou.
— Olá, me chamo Uziel. Você... quer brincar com a gente?
Acanhada, a garota assentiu, desviando o olhar.
— Me... me chamo Luana.
— Luana... — Uziel semicerrou os olhos, reparando que os olhos da
garota eram de um agradável tom cor de mel. — Você veio sozinha?
— S-sim...
— Ah... é uma boa caminhada. Certo, vamos... meus amigos querem
explorar este lugar. Estão animados!
E, timidamente, Luana seguiu Uziel pela rua de terra batida, banhados
pelo sol matinal.

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Capítulo 2

Sentada em seu sofá, com o colo coberto por um manto esverdeado, Abigail
tricotava sob à luz matinal que trespassava a janela quadrada da sala,
banhando-a com uma claridade morna. Pela primeira vez em meses, a mulher
robusta estava despreocupada, pois a fazenda era vazia demais, não havia
criança alguma. E Luana passava seus dias trancada em seu quarto, não
ousando sair. Mas agora ela pode fazer muitos amigos. Abigail ergueu os
olhos à janela, observando o céu azul, presa num leve estupor. De chofre, a
porta lateral se abriu, e um César carrancudo entrou, tirando o chapéu.
— Querido, já veio almoçar? — Abigail perguntou, sua voz saiu trêmula.
Ainda carrancudo, o homem de cabelos cacheados atravessou o cômodo,
parando e fixando os olhos escuros na esposa.
— Não, ainda é cedo.
— Ah, certo... e... o que está achando dos novos... trabalhadores?
César correu os olhos pela sala, franzindo o cenho.
— É... vão servir. Espero que durem mais que os anteriores. Mulher,
onde Luana está?
Abigail largou as agulhas de tricô, desviando o olhar.
— Luana está brincando... com as crianças novas.
Ao ouvir as palavras da esposa, César enrubesceu, irado. Cerrou os
punhos e avançou um passo, suas pupilas tremiam.
— Como é que é? — Rosnou. — Como você pôde deixar minha filha
sair e se misturar com aquelas... coisas?!
Abigail sentiu o coração acelerar. Respirou fundo, virou-se ao marido e
disse:
— Não são... coisas... são apenas crianças. Ela estava muito sozinha,
precisava de companhia.
— A companhia dela somos nós — César disse, pausadamente. — Quer
saber? À noite conversamos a respeito disso. Estou atrasado — voltou a
colocar o chapéu sobre os cabelos cacheados e saiu da sala pela porta que
levava ao corredor.
Assim que o homem saiu, Abigail sentiu a pressão do ar voltar ao
normal. Resfolegando, ergueu os olhos novamente à janela. Ave Maria... Do

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corredor, a empregada veio entrando na sala. A negra de olhos brilhantes


pigarreou, chamando a atenção da patroa.
— Senhora... — Carmela acercou-se do sofá. — Senhora, está bem?
Dobrando a coberta e deixando as agulhas de lado, Abigail se levantou,
virando-se à Carmela.
— E-estou. Faça um chá, sim?
A empregada aquiesceu, virou-se e dirigiu-se à cozinha, deixando uma
Abigail consternada para trás.

A vastidão do campo seco apertava o coração de Benedito, causando-lhe uma


dose de vertigem. O homem meneou a cabeça, ajeitou o chapéu e voltou a se
concentrar. A seu lado, Matheus, seu amigo, guiava a mula presa ao arador
de madeira, enquanto Tadeu ajudava-o a abrir o chão fofo e semear com uma
pá. À esquerda e à direita, seus conterrâneos espalhavam-se, presos à mesma
tarefa: guiavam os burros e mulas presos aos aradores, jogavam sementes e
fechavam as covas. De tempo em tempo, o trio de Benedito revezava,
deixando a tarefa menos maçante.
Adiante, o capacho de César, o homem franzino chamado José, se
aproximou, supervisionando o trabalho dos novatos. Ajeitou chapéu preto, e
sorrindo, disse:
— Vocês três fazem um bom trabalho. Se esforcem mais, e o patrão os
recompensará.
Tadeu sorriu, animado com o som das palavras.
— Isso é ótimo, senhor — Tadeu espichou um sorriso amarelado,
passando uma mão na cabeça careca. — Ótimo de verdade. Que Deus possa
abençoar o patrão.
— Amém — José passou os olhos redor, pousando-os em outro trio. —
Passei para deixar um recado.
— Que seria? — Matheus perguntou, franzindo a testa.
— De que... — José volveu-se ao trio. — Como vocês começaram a
trabalhar tarde hoje, então terão de ficar até o ocaso. O patrão tá com pressa,
ele quer colher logo. Já perdemos tempo demais.
— Certo... — Tadeu voltou a trabalhar, desta vez de maneira frenética.
José moveu os olhos a Matheus, desviando-os a Benedito.
— Algum problema?
— Não, sem problema — e, imitando Tadeu, Benedito voltou a
trabalhar. Matheus olhou para José de soslaio, e suspirando, voltou a guiar a
mula.

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Algumas centenas de metros após a vila, um pasto deserto estendia-se até os


olhos perderem-no de vista. E, mesmo com o sol a pino, a dezena de crianças
brincavam de pega-pega, correndo energicamente de um lado a outro. Com
seus amigos, Uziel se divertia, avançando pelo pasto de braços abertos,
sentindo o vento refrescante chocando-se contra sua face morena. Ali, a
vastidão animava-o, com o verde assomando-se às cores secas do tradicional
sertão que sempre conhecera. Por um momento, preso naquele sentimento
efêmero, viu-se livre de qualquer grilhão do passado de seu avô. Fechou os
olhos, baixou os braços e reduziu a velocidade. De chofre, voltou a abrir os
olhos amendoados, levantando-os ao céu sem nuvens. Meu pai estava certo...
este, é um novo começo. O toque de uma das crianças tirou-o do devaneio.
— Tá com você!
Uziel baixou os olhos, vendo o grupo de pequeninos se afastando para o
lado contrário.
— Ah... — virou-se e pôs-se a correr, avançando o mais depressa
possível. De todas as crianças, era o mais rápido.
O grupo, antes distante, ficava mais perto. Uziel estendeu a mão, a fim
de tocar num garoto, mas este, com um reflexo impressionante, agachou-se
no último instante. Fazendo uma curva, Uziel travou sua mira em um novo
alvo: a filha de César. Luana corria de maneira desajeitada, com o vestido
longo ondulando ao redor de seu corpo diminuto, as mexas esvoaçando.
Estou perto... estou perto... Sorrindo, Uziel apertou ainda mais o passo,
tocando-a no ombro. A garota se desequilibrou e caiu no verde, rolando.
Parando de correr, Uziel voltou-se para trás.
— Ei, você está bem? — Ofereceu uma mão, ajudando-a a ficar de pé.
A garota bateu as mãos nas roupas manchadas, tirando terra e capim.
— Estou, sim. Você me sujou.
Uziel recuou um passo, fazendo uma careta de preocupação. Não podia
arrumar problema algum. Atrás, o grupo de crianças se aproximava,
murmurando.
— Desculpa... não foi minha intenção — disse ele, a voz baixa.
Luana olhou-o de soslaio, mas não disse nada. Sua face era uma
máscara inexpressiva. Ao longe, uma mulher negra se aproximava, gritando.
— Luana! Luana! Sua mãe a chama, é hora de almoçar!
— Carmela — Luana girou o corpo, e sem se despedir, correu rumo à
empregada.
Amuado, Uziel observou-a em silêncio. Diferente de poucos minutos
atrás, a garota corria agora com mais desenvoltura. Ela aprendeu... Nero e
Sofia acercaram-se, prostrando-se à frente.

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— Que garota ridícula — comentou Sofia.


— Que tal a gente retornar à vila? — Nero disse, pousando a mão sobre
a barriga vazia. — Almoçar seria bom.
— Acho uma ideia boa, Nero — despregando os olhos de Luana, Uziel
pousou-os sobre os dois amigos. — Vamos... tenho sede, também.
— Hoje está quente... mas não tanto quanto onde morávamos.
— Pois é.
— Ah... depois do almoço será apenas a gente — Sofia pousou a mão
sobre o ombro de Uziel. — Se eu caísse nesse verde, não reclamaria.
Também não ficaria brava, Uziel...
— É... eu sei que não. Mas você é diferente, Sofia.
Sofia torceu o nariz.
— Ah... está defendendo aquela...
— Ele não está defendendo ninguém — cortou Nero, a atenção fixa no
caminho adiante. — Mas é... diferente, ainda assim. Somos novos aqui, e se
aquela garota arrumar confusão pro nosso lado?
— É, ao menos você me entende em partes! — Bradou Sofia.
Em silêncio, Uziel seguiu pelo pasto de volta à sua casa, com seus
amigos. Por um momento, sentiu medo de que algo pudesse acontecer... mas
Luana caiu sozinha, caiu porque se desequilibrou. Ele não tinha culpa de
nada. Escutando mais alguns comentários de Sofia e poucas palavras de Nero,
chegaram à vila. Despedindo-se, o garoto seguiu à sua casa. Ao atravessar a
porta, o cheiro do tempero de sua mãe invadiu suas narinas, fazendo seu
estômago roncar.
— Ah, que cheiro ótimo! — Rapidamente, sentou-se à mesa.
Lira se virou, sorrindo ao ver o filho.
— Brincou muito?
— Sim... aqui é muito diferente de onde morávamos... tanto verde por aí,
tanto espaço. É vasto.
— Me alegro com isso... — Lira pegou um prato azulado, despejou
alguns grãos e pedaços de galinha e depositou-o sobre a mesa. — Acho
melhor você lavar essas mãos antes de comer — Uziel afastou a cadeira,
caminhou à pia e ensaboou as mãos. Observando-o com certa relutância, Lira
voltou a falar: — Vi a empregada da família Santana passando por aqui...
com a filha do patrão. Olha, crianças devem brincar... mas peço a ti, Uziel,
para que tenha cuidado. Essa gente...
Enxaguando as mãos e secando-as num pano de prato, Uziel volveu-se à
mãe.

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— Eu sei. Estamos aqui para trabalhar, somos os... mandados, não é? Eu


sei, mãe... eu sei... — devagar, voltou à mesa. — E quanto ao senhor meu pai,
não virá almoçar?
— Não, ele comerá por lá mesmo, na plantação.
— Ah...
— Uziel, você terá cuidado? Prometa-me isso.
— Sim, mãe... terei cuidado.
Agradecendo a Deus, Uziel deu início ao seu almoço. Que Maria possa
interceder por essas crianças, pensou Lira.

O sol encostava no horizonte, um disco dourado que perdia sua força,


cedendo espaço às estrelas. Benedito sentia suas pernas bambas, seus dedos
ao redor do cabo da pá formigavam. Mas não podiam parar, ainda havia
muito trabalho. Acabara de trocar de lugar com Matheus, e agora, era a vez
de Tadeu guiar a mula. Só mais um pouco. Levou a mão à bolsa de couro
atada ao pescoço, pescou as sementes e lançou-as às covinhas, fazendo
movimentos mecânicos. À frente, um burro emitiu um som estranho,
tombando de lado logo em seguida. O ocorrido assustou alguns trabalhadores
próximos, chamando a atenção do capacho, que patrulhava dali a poucos
metros.
Ensandecido, José se aproximou, encarando o homem que guiava o
burro que acabara de morrer.
— O que você fez?
— E-eu não fiz nada, senhor... eu juro!
José encarou o burro com uma expressão de nojo.
— Desgraça... ah, mas vamos resolver este problema agora! — Virou-se
para os outros dois amigos do homem de meia-idade. — Vocês dois aí,
prendam seu amigo no arador, no lugar do burro. Ele puxará esse troço de
madeira até eu dizer chega.
— Mas... senhor... — o trabalhador de meia-idade se encolhia.
— Nada de “mas”, ou você quer que o patrão fique sabendo? Agora,
rápido, fique no lugar do burro!
Com movimentos ágeis, tiraram o burro morto do arador e prenderam o
homem. Benedito desviou olhar, fingindo indiferença, fingindo que tudo
estava normal, como era para ser.

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Capítulo 3

Ao se deitar sobre o colchão de palha, todo o cansaço invadiu o corpo de


Benedito de uma só vez. O homem relaxou, agradecendo por mais um dia na
fazenda. Fechou os olhos, amainando a respiração, mas voltou a abri-los ao
se lembrar da cena que vira há poucas horas; o companheiro sendo amarrado
à força no arador de madeira. Estalou a língua, sentindo-se, de repente,
fadigado. A seu lado, Lira se remexeu.
— Como foi o primeiro dia? — Murmurou ela.
— Foi... bom — respondeu ele, simplesmente. Voltou a fechar os olhos,
o quarto estava imerso num silêncio profundo. — Uziel dorme.
— Sim... ele brincou o dia inteiro com as demais crianças, correndo de
lá pra cá... estava exausto.
No escuro, Benedito permitiu-se sorrir.
— Aproveite, filho...

Numa cidadezinha próxima à Fazenda Santana, César trotava a cavalo pelas


ruas de paralelepípedos, junto de José. Àquela hora, o lugar se encontrava
praticamente vazio, com exceção de alguns bares e bórdeis abertos. A dupla
virou à direita, um leve som de conversas e gritinhos começou a pairar no ar
noturno, vindos do estabelecimento no final da rua. César avançou com seu
garanhão, parou à frente do bordel e desceu do cavalo, amarrando-o ao poste.
Atrás, o capacho imitou-o.
— Nada como uma visita à cidade para desestressar, hein, patrão? —
José ajeitou o chapéu, escondendo o sorriso ordinário.
— Ah, sim... é sempre bom vir aqui. Aquela casa... Abigail e a negra me
tiram do sério. E agora que temos esses novos... trabalhadores, será mais dor
de cabeça.
Ainda sorrindo, José avançou à frente do patrão, subindo os degraus de
madeira e atravessando a entrada estreita. Ao pisar no pequeno cômodo que
servia como saguão improvisado, o cheiro de carne pecaminosa e o odor da
cerveja velha socaram suas narinas, deixando-o zonzo por um instante.
Recuperando-se, José se acercou do balcão, onde uma mulher rechonchuda,
de pele pálida e cabelos grisalhos mirava-o com um par de olhos verdes.

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A Última Pétala | Walace Rocha

— Patrão, esqueça sua esposa. Esqueça a empregada e os trabalhadores...


— José disse, pousando as mãos sobre a madeira escura. — Por hoje, vamos
apenas aproveitar. Arre!
A mulher rechonchuda sorriu perante a felicidade do capacho, desviando
os olhos verdes a César.
— É... mas você tem de me prometer que vai fazer de tudo para que a
colheita deste ano seja a melhor...
Alargando ainda mais o sorriso, José respondeu:
— Pode deixar, patrão.
— Boa noite, cavalheiros. O mesmo de sempre? — A mulher
rechonchuda perguntou, os olhos brilhando. — Temos algumas mulatas
novas...
José deu um riso seco.
— Espero que não peça tantos réis por elas.
— Vocês são clientes especiais. Preços especiais.
— É bom ouvir isso — César disse, levando uma mão ao bolso.

O novo dia estava igual ao anterior; o sol ascendia no céu sem nuvens,
despejando seu calor matinal sobre a Fazenda Santana. Na vila dos
trabalhadores, Uziel e Nero caminhavam pela estrada de terra, em direção aos
campos onde as demais crianças se encontravam. Apesar do susto do dia
anterior, Uziel estava calmo, indiferente ao que acontecera à Luana. Mas, em
seu âmago, sentia uma pontada de medo. Ela não fará mal algum... caiu
sozinha enquanto brincávamos. Apenas isso. Mas e se ela contasse outra
história aos pais? Bastava uma palavra, e Uziel e todos os seus conterrâneos
voltariam para casa, para a aldeia medíocre que abandonaram. Mas, uma vez
lá, seriam bem-recebidos? Meneando a cabeça, voltou sua atenção a Nero,
que falava algo.
— Você parece estar gostando daqui, Uziel.
— Eu? É... um pouco. Acho este lugar um tanto melhor que nosso
antigo lar. Meu pai disse que é uma terra de oportunidades.
Os dois garotos desceram um declive, deixando as casas à distância. À
frente, as terras de César se estendiam; uma estranha mistura de verde e cores
secas, calor e vento agradáveis. Uma sintonia natural, convidativa e especial.
— Meu pai não aparenta estar muito contente — Nero ergueu os olhos
ao azul eterno do céu. — Ele estava animado, sim, mas... — baixou os olhos.
— Não sei, não sinto verdade em suas declarações.
— Não se preocupe. É apenas... costume — Uziel sorriu, Nero
aquiesceu. Ambos apertaram o passo, terminando o declive e avançando pelo

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A Última Pétala | Walace Rocha

chão plano. À frente, vultos moviam-se ao redor de algumas árvores;


formigas agitadas atrás do mel. — O que eles estão fazendo?
— Pegando frutos das árvores. Dizem que estão docinhos, docinhos.
— Então vamos nos apressar — dizendo isso, Uziel correu,
aproximando-se do grupo de crianças com Nero logo atrás.
Ao chegar junto à árvore, o garoto foi sacudido novamente pela vista
daquelas crianças felizes, sorridentes, mastigando os frutos e correndo,
errantes, agitadas. No alto, mais alguns garotos retiravam frutos e jogavam-
nos para os que estendiam suas camisas abaixo. Uziel passou os olhos ao
redor, analisando as árvores, seus amigos, e afastou o olhar, parando numa
figura isolada. Ao reconhecê-la, sentiu um calafrio subir-lhe à espinha. O que
ela faz aqui? Mas, antes de pensar numa resposta para o próprio
questionamento, Uziel já se acercava da garota. O que eu estou fazendo?
Num piscar de olhos, prostrava-se à frente de Luana. A garota de pele
bronzeada usava um vestido amarelo, suas mexas castanhas jaziam presas
num rabo-de-cavalo, os olhos cor de mel cintilavam, misteriosos.
— Não pensei que você voltaria para cá, após ontem — Uziel disse, a
voz estranhamente fria. Nunca usara tal tom com ninguém, e, naquele
momento, assustou-se consigo mesmo. Recuou um passo. — Você... você se
machucou? — Apressou-se em consertar o tom, agora soando mais amigável.
Luana balançou a cabeça numa negativa.
— Não, apenas sujei meu vestido. Mas Carmela fez questão de escondê-
lo... Se pensou que iria te prejudicar, então pensou errado... Uziel.
O garoto desviou o olhar, virando-se às árvores apinhadas de crianças.
— Por que não se junta aos demais?
— Elas não me querem por perto. Parecem... me temer. E, mesmo que
eu me aproximasse, não dividiriam os frutos.
Uziel riu, volvendo-se a ela.
— Mas este lugar é seu... digo, de seu pai. Venha... — o garoto se virou,
e sem olhar para trás, avançou rumo a uma das árvores. Escalou-a de maneira
precisa, desviou de alguns colegas, arqueou os joelhos, pulou em outro galho
e, com um movimento ágil, enlaçou os dedos ao redor de um fruto. Pulou da
árvore, aterrissando de maneira desajeitada. Ao redor, Nero e as outras
crianças fitavam-no, curiosas. Ágil, Uziel se aproximou de Luana,
entregando-lhe o presente. — Aqui está.
A garota sorriu, pegou o fruto e levou-o à boca, mordendo. Contente,
Uziel se afastou, voltando aos amigos. Nero observava-o com atenção,
confuso com a atitude do amigo. Quase que imediatamente, Sofia surgiu de
entre as árvores, carrancuda.

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— Uziel, o que foi isso? Fará tudo que essa... garota pedir?
Uziel ergueu as mãos.
— Não... ela queria comer um dos frutos. Apenas isso. Não gostei de
vê-la isolada...
— Ah... agora entendi — Sofia cruzou os braços, arqueando uma
sobrancelha. — Você se transformou no capachozinho dela, ah, virou, sim...
Ignorando Sofia, Uziel disse a Nero:
— E então, vamos pegar mais algumas?
Nero sorriu.
— Quer apostar pra ver quem pega mais?
E os dois desataram a correr, deixando uma Sofia taciturna para trás,
dirigindo um olhar de soslaio à Luana, que voltava ao isolamento,
saboreando o fruto dado por Uziel.

Com o sol a pino, Benedito guiava o burro; o arador vibrava ao passar sobre
o chão seco. De ambos os lados, Matheus e Tadeu dividiam na semeadura.
De todos os cantos, os demais trabalhadores espalhavam-se. Adiante, um
José carrancudo supervisionava o trabalho, fingindo autoridade, de peito
estufado. De chofre, o homem franzino pôs-se a caminhar, aproximando-se
do sujeito que ficara atado ao arador no dia anterior. Assim que José se
acercou, o trabalhador se encolheu.
— Você... se lembra do que fez ontem, não é?
— S-sim, senhor. Mas hoje estou sendo cuidadoso, estou me esforçando.
— É o mínimo. Para pagar o burro, terá de trabalhar muito, um bocado!
Então se esforce, tá me ouvindo?
Assentindo, o trabalhador voltou a trabalhar, agora com mais energia.
Vendo a cena, Matheus se adiantou, bradando a pá.
— Você sabe que ele não tem culpa alguma a respeito da morte do burro!
— Matheus disse num tom afiado. José se surpreendeu, sorrindo.
— Ora, parece que temos um cão selvagem no meio desta matilha
imunda. Pois saiba, cão, que é graças ao meu patrão que você tem comida na
mesa, um teto e uma cama! — Num ágil movimento, José sacou um chicote
atado à cintura. — E refira-me como senhor, seu bastardo! — E num
segundo, o chicote estalou contra as costelas de Matheus, fazendo-o largar a
pá e cair no chão, uivando de dor.
Imediatamente, Benedito largou a rédea do burro, aproximando-se do
amigo. José enrolou o chicote e guardou-o na cintura, ainda sorrindo com a
exibição de seu poder autoritário. Alguns trabalhadores despejaram olhares
de soslaio, temerosos.

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— Isso foi apenas um aviso... cães imundos — gargalhando, José se


virou. — Vamos, voltem ao trabalho! Voltem ao maldito trabalho!
Ajoelhando-se ao lado de Matheus, Benedito ajudou-o a se erguer.
— Você está bem?
Com caretas de dor, Matheus respondeu:
— S-sim... sim... — semicerrou os olhos e fixou-os em José, um olhar
cheio de ódio.

O sol se escondia no horizonte, manchando o céu escuro. De barriga cheia,


Uziel e Nero retornavam à vila dos trabalhadores. O restante das crianças
continuavam rodeando as árvores, agitadas e pouco se importando com a
chegada do ocaso. Subiram um aclive e, ao verem as luzes fosforescentes dos
lampiões arranhando à noite, diminuíram o passo. Poucos metros adiante,
viram uma leve agitação numa das ruas; capachos de César arrastavam uma
mulher para um canto escuro, esta se debatendo, mas não era capaz contra as
mãos fortes que seguravam-na. Assustados, os dois garotos se despediram e
correram rumo às suas casas.
Desta vez, ao chegar, Uziel se impressionou ao ver o pai sentado à mesa,
jantando. Pedindo-lhe bênção, correu ao banheiro, preparando os baldes e se
lavando. Trocou de roupa e rumou-se à cozinha, juntando-se à refeição. Os
três conversavam ligeiramente, pois Lira estava cansada, e Benedito, mesmo
com os sorrisos, não sustentava uma vontade concreta de conversar. Ainda
cedo, então, se deitaram. E, com as pálpebras pesadas, o pequeno Uziel
perguntou:
— Pai, este lugar... é mesmo o que desejávamos?
E, num tom lúgubre, Benedito respondeu:
— Eu não sei...

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Capítulo 4

Alguns dias se passaram desde que Benedito e seus conterrâneos se mudaram


para a Fazenda Santana a fim de trabalhar e dar um futuro menos sofrível aos
filhos. E, em todos aqueles dias sob o sol inclemente, trabalhou arduamente
sob o olhar superior de José, o capacho-líder. Agora, sob o novo véu da
manhã, brandia sua pá ao lado de Tadeu, enquanto Matheus guiava o burro
atado ao arador de madeira. Todos trabalham arduamente, mas aquela
animação inicial ficou para trás, nos primeiros dias. Observou Benedito,
olhando ao redor de soslaio. De fato, ali possuíam comida na mesa, cama e
algumas dezenas de réis no final de cada semana. Mas, em troca, trabalhavam
o dobro ou até mesmo o triplo do que costumavam trabalhar na antiga vila. O
trabalho dignifica o homem, não é o que dizem? Voltou-se a se concentrar no
chão à frente.
Adiante, José se aproximava, falando alto. De chofre, Matheus baixou a
cabeça. Não suportava encarar o capacho nos olhos.
— Atenção! Atenção! O patrão realizará uma festa em sua residência;
todo tipo de figurão está convidado... políticos, coronéis, e até mesmo o
padre da arquidiocese! Para tanto, o patrão solicitou a ajuda de suas esposas
para os preparativos. — José continuava falando enquanto avançava. — No
dia em questão, vocês serão dispensados mais cedo. Veem como o patrão é
bondoso? Então, vamos, vamos! Vamos adiantar o trabalho! — O capacho
passou pelo trio de Benedito, espalhando o recado para o restante do campo.
— Pedem ajuda às nossas esposas — Tadeu comentou. — Será uma
baita festa.
— Será, mesmo — grunhiu Matheus, erguendo os olhos. — Certamente
o patrão apresentará a fazenda aos investidores... vender alguma parte ou até
mesmo melhorar as coisas — suspirou, voltando sua atenção ao burro.
— Chega de falar... acho melhor nos concentrarmos nos afazeres de hoje
e deixar José o mais calmo possível — Benedito disse num tom azedo.
Tadeu aquiesceu, e com uma careta estampada em seu rosto magro,
dobrou seus esforços.

Afastados das vilas dos trabalhadores, Uziel e Nero caminhavam por uma
trilha de terra estreita, cercados pelo mato alto. A manhã estava amena,

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algumas nuvens corriam no céu, levadas pela leve brisa. O garoto negro
carregava dois baldes entupidos de minhoca, enquanto o outro carregava
varas de bambu com argolas de arame improvisadas. Ziguezagueavam pelo
caminho, memorizando a trilha.
— Há mesmo um rio bom por aqui? — Perguntou Uziel, franzindo o
cenho.
— Sim... ouvi meu pai comentando outro dia — Nero adiantou-se
alguns passos, guiando o amigo. — Com sorte, pegaremos muitos peixes.
— É... espero que sim. Deu trabalho pegar todas estas minhocas —
resmungou Uziel, fitando os baldes.
Os dois desceram um declive, e, por fim, escutaram o leve som do rio.
Cuidadosamente, seguiram pela terra molhada, parando à margem. À frente,
o rio de água límpida corria de maneira calma. Agilmente, os dois garotos
puseram-se a preparar as varas, prendendo as minhocas nas argolas.
Sentaram-se e lançaram as linhas. O vento aumentou seu sopro, fazendo as
poucas árvores ao redor tremularem, despejando suas folhas. Uziel respirou
fundo, enchendo seus pulmões com o ar úmido, o cheiro de terra molhada
relaxando-o. Era estranho estar tudo quieto, sem as demais crianças correndo,
pulando e gritando ao redor.
E, como que lendo sua mente, Nero disse:
— Devíamos voltar aqui com os outros. Sabe, nadar...
— É, talvez.
Nero fincou a ponta da vara na margem e esticou as pernas, levantando
os olhos.
— Sabe, na maior parte do tempo, eu gosto deste lugar. Me passa uma
sensação de... calmaria.
— É, mas não para todos. Percebi que... meu pai já não anda tão
animado como antes. Todas as noites ele agradece a Deus pelo trabalho, são
orações incessantes à Virgem, mas... suas palavras...
— Arre! Deixa disso, Uziel. É coisa de adulto, eu aqui já estou tendo
dor de cabeça. Minha mãezinha disse que um dia vou entender... só não sei se
quero. Aliás, um dos capachos de César passou mais cedo em casa. Terá uma
festa no casarão de sua amiga...
Uziel carregou o cenho.
— Ela não é minha amiga. Você é meu amigo, assim como Sofia e os
outros...
Nero abafou um riso, voltando os olhos ao rio.
— Se não é sua amiga, é o quê? Sua futura chefia? Pensando bem...
acredito que todos nós seremos os futuros funcionários desta fazenda.

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— Funcionários? Que palavra engraçada, acho que nunca escutei ela


antes.
— Tem muita coisa nova por aí, Uziel. E espero conseguir conhecer
todas.
Uziel suspirou novamente, baixando os olhos.
— Também espero.

Trotando calmamente em seu cavalo preto, César dirigia-se ao estábulo,


cercado pela calmaria vespertina. Passou por alguns criados e capachos, mas
não dirigiu-lhes palavra alguma — também não costumava perder seu tempo
olhando-os. Um homem baixo abriu a porta do paiol, o patrão desceu da
montaria e gesticulou para que ele se aproximasse.
— Senhor?
— Dê água e comida a este cavalo, sim? — César estendeu a rédea. —
Se possível, escove-o.
— Sim, senhor — o homem baixo pegou a rédea e, guiando o cavalo,
entrou no paiol.
César girou os calcanhares e pôs-se a caminhar rumo à casa grande.
Estava um tanto nervoso com o jantar que daria, pois muitos seriam os
doutores que viriam. Tinha de impressioná-los, e faria isso. Apertou o passo e
subiu os degraus da varanda leste, passando por mais alguns criados.
Chegando ao piso, seguiu pelo corredor e saiu na cozinha, deparando-se com
Carmela à beira do fogão à lenha e Abigail, encolhida num canto da mesa,
bebericando seu chá de erva-doce. Ao vê-lo, a mulher se encolheu ainda mais.
— Boa tarde — César disse, passando os olhos de sua esposa à Carmela.
— Carmela, as esposas dos trabalhadores já foram avisadas sobre a festa.
Você terá total suporte, muitas mãos ajudando-a para preparar um banquete.
Carmela afastou-se do fogão, virando-se ao patrão com um sorriso
contente no rosto escuro.
— Boa tarde, senhor. De fato, é uma notícia muito boa. Acredito que
todas essas mulheres serão de grande ajuda.
— Ótimo... então se prepare. Chame alguns dos capachos, caso queira
ajuda com a leitoa, as galinhas e o bezerro. — Carmela aquiesceu, e num
movimento, voltou-se ao fogão. — Abigail — chamou César, voltando a se
mover, saindo da cozinha. A mulher empurrou o chá, agradeceu Carmela e
seguiu o marido casa adentro.
Atravessaram a sala, passaram pelo corredor e entraram no quarto. César
prostrou-se ao lado da janela, pousando os olhos sobre a paisagem alaranjada.
Ao entrar no cômodo, Abigail fechou a porta.

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A Última Pétala | Walace Rocha

— Faz quase duas semanas desde que os novos trabalhadores chegaram


— começou o marido, os olhos ainda presos à vista vespertina. — Gosta
deles?
Abigail caminhou pelo quarto espaçoso, dando a volta na cama e
parando a um metro de César.
— Pelo que dizem, são muito bons. José disse que a próxima colheita
será a melhor. E também tem as crianças...
César abandonou a vista, virando-se à esposa.
— Ah, sim, as crianças. Você insiste em deixar que Luana se misture...
o que pensa sobre isso? Que ela é igual a eles? Tenho ignorado esse fato,
mas... depois da festa, espero que ela não saia do quintal.
Abigail forçou-se a manter os olhos erguidos, encarando o marido.
— Brincar com as outras crianças faz bem a ela... não tem notado o
quão contente nossa filha está? Ela não se importa com essa diferença toda
que você tanto diz... — De súbito, César ergueu a mão, levando-a ao rosto de
Abigail num tapa, fazendo-a recuar e cair no chão.
— Chega! Chega de tolices, mulher! Minhas ordens foram claras como
o sol... Não quero saber de mais nenhum deslize, sim? — Enrubescendo,
César passou pela mulher, ainda no chão, e avançou à porta. —
Recomponha-se para a festa, vista algo bonito e seque esse rosto. É a minha
esposa, não me faça passar ainda mais vergonha na frente dos doutores. E
considere-se avisada, Abigail — dito isto, abriu a porta e saiu do quarto,
fechando-a com força.
Abigail se levantou do chão, secando as lágrimas com as costas da mão.
E, no quarto ao lado, Luana encolheu-se em sua cama.

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Capítulo 5

Benedito acordou com o corpo dolorido, como se tivesse sido estapeado


durante o sono — que, por sinal, fora o pior que tivera desde que chegara ali,
na fazenda. Levantou-se, e a tontura rodeou-o. Respirando fundo, fechou os
olhos e voltou a abri-los. Saiu da cama, vestiu suas roupas e rumou-se à
cozinha a fim de preparar o café e comer algo. Naquela manhã, não estava
com apetite. Estou me deixando abalar. Perdão, Deus. Perdão, Deus... não
quero ser um filho ingrato. Sob a densa onda do devaneio, passou o café no
coador de pano. Tragou um gole, pegou o chapéu e saiu da cozinha,
encontrando Tadeu e Matheus à sua espera.
O homem robusto de pele queimada tentava disfarçar sua face cansada,
mas não conseguia, tamanha era sua apreensão. Ao ver Matheus em tal
estado, Benedito foi acometido por uma fraca tristeza, penetrando e cortando
seu peito. Este lugar está acabando com a mente de meu amigo. Benedito
cerrou os punhos. Será que sou culpado até mesmo disso? Moveu seus olhos
a Tadeu, o sujeito careca continuava sustentando seu olhar malicioso,
brilhante. Mas por mais quanto tempo ostentaria-o?
— Bom dia, meus amigos — Benedito disse, apertando a mão de cada
um. — Estão prontos para mais um dia?
Os três desataram a caminhar sob o céu mazelado, ainda com sua fraca
cor azulada.
— Mais um dia... — Matheus disse, o olhar perdido no caminho à frente.
— Mas mais um dia de quantos?
— Muitos — respondeu Tadeu, olhando para o amigo de soslaio. — E
devemos agradecer a Deus por essas coisas... trabalho, casa...
— É, agradeço a Deus e à Virgem, todos os dias — resmungou Matheus,
carregando o cenho. — Mas há coisas que não devíamos agradecer... ou
melhor, será que temos de agradecer tudo?
— Meu pai dizia que sim — Benedito falou. Os três homens dobraram a
rua e subiram a estrada principal em direção aos campos, a vila ficando para
trás. — Agradecer tudo, daí graças a tudo. A vida é mais do que dor...
Matheus forçou um riso.
— Ora, pois então você está no lugar errado, meu amigo! Filosofando
desse jeito, aqui conosco; cavando buracos e semeando! — Resfolegando,

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A Última Pétala | Walace Rocha

Matheus apertou o passo. — Pois vamos, estou cansado de tentar me abrir, e


vocês aí, bancando os pensadores!
Tadeu riu, cutucando Benedito, que esboçou um leve sorriso.
— Então vamos, José deve estar fadigado. Amanhã é a tal festa, não é?
Pois vamos.
E, na longa estrada, os três seguiram, com o sol ameno a regar-lhes.

Sentada em sua cadeira de balanço, Abigail observava os raios dourados do


sol limpando o orvalho que repousava sobre as plantas, a casa de ferramentas
e o telhado do estábulo. Fechou os olhos, absorta em pensamentos, e voltou a
abri-los. Em sua mão direita, ergueu a xícara de chá, sorvendo um gole. Doce
e ao mesmo tempo forte. Mas não é disso que preciso. Da entrada da varanda,
Carmela surgiu. Um pano rosa cobria a cabeça da criada, enfiada em seu
avental grosso de pano claro. A mulher negra fitou a paisagem durante alguns
segundos, matutando algo, então, volveu-se à patroa.
— A senhora está bem?
Abigail tragou mais um gole do chá.
— Sim, Carmela. Apenas um pouco... ansiosa com a festa de amanhã.
— Ah, sim, muitos doutores estarão presentes. Mas não se preocupe...
— Carmela baixou os olhos. — Se a senhora me permite dizer, acho que
seria melhor deixar Luana presa aqui. Ao menos, não deixará o patrão
estressado.
Abigail sorveu todo o chá num único gole, baixou a xícara e dirigiu um
olhar cortante à criada.
— Você acha? Pensa que está em posição de... ditar algo? Luana
continuará saindo, continuará brincando por aí, saltitando como uma criança
comum! — Impressionada com a cólera de Abigail, Carmela recuou,
assustada.
— Perdão, patroa, perdão. Não quis dizer por mal...
— Sei que não. Olha... que tal você se adiantar, os preparativos...
— Oh, sim, sim. E peço o seu perdão mais uma vez, senhora —
assentindo freneticamente, Carmela virou-se, saindo da varanda e deixando
Abigail sozinha com seus pensamentos.

A caminho do rio, Sofia se agitava, ansiosa e animada. Nero contara às outras


crianças sobre sua descoberta com Uziel, no dia anterior. E agora, com o sol
a pino, as crianças se divertiam com a ideia de se refrescarem na água
cristalina. Saltitando, a garota avançou à frente dos dois amigos.

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A Última Pétala | Walace Rocha

— Ah, isso animou muito o meu dia, meninos! — Sofia dobrou uma
trilha. — Espero que saibam nadar!
— Eu não vou entrar na água — comentou Uziel, o olhar perdido.
— Eu também não, ficarei apenas na margem, observando... — Nero
falou, rindo.
— Ah, como vocês são chatos — resmungou Sofia. Agora, era possível
ouvir o som da agitação infantil que cercava o campo. Os três apertaram o
passo, atravessando os últimos metros e chegando à margem; à esta altura,
apinhada de crianças.
— Minha mãe disse para não tirarmos as roupas, apenas os calçados —
Nero comentou, franzindo o cenho. — Vejo que todas as outras mães
disseram o mesmo.
Rindo, Sofia analisou o cenário de olhos semicerrados. E com um
sorriso largo, voltou-se a Uziel.
— Vejo que sua amiga não veio — disse ela num tom jocoso. — Talvez
tenha se cansado de brincar com a gente, afinal...
— Não diga nada — resmungou, de chofre, Uziel. — Sabemos qual é a
diferença. Eu sei a diferença... tenho doze anos. Sou um rapaz.
Ignorando o comentário azedo de Uziel, Sofia deu de ombros. Tinha dó
do amigo, pois estava preso num mundo de sonhos. Ele não sabe o que é
realidade. E ainda se acha esperto! Olhando para Nero de soslaio, Sofia
tirou o par de sapatilhas e correu até o rio, misturando-se às demais crianças.
— Você não vai pular? — Nero perguntou a Uziel, abandonando o riso,
adotando uma feição séria.
— Sabe bem que não estou com vontade. Aliás, acho que deveria
voltar... Desculpa — e, sem esperar pela resposta do amigo, Uziel se virou e
se afastou do rio a passos largos, deixando toda aquela gritaria animada para
trás, no lugar onde não deveria ter ido.
Fez o caminho de volta rapidamente, como que fugindo do sol
fustigante, carregando em seu âmago algo estranhamente amargo. Ao avistar
a vila de trabalhadores, desatou a correr sem motivo algum. E, ao entrar na
cabana apertada, parou, arregalando os olhos. Sentada à mesa, uma mulher
negra conversava com sua mãe, que estava de pé, ao lado do fogão. Mas não
foi a mulher desconhecida que fez Uziel se espantar, e sim a figura a seu lado;
uma garotinha de pele bronzeada e cabelos castanhos, rosto tal qual uma
boneca, exótica. Ao vê-lo, sua mãe gesticulou às visitas.
— Uziel, meu bem, já voltou? Estas duas senhoritas vieram nos visitar.
Esta é Carmela, trabalha na casa grande. E a outra — Lira sorriu —, você já
conhece... a filha de César, Luana.

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A Última Pétala | Walace Rocha

Neste instante, Uziel sentiu o coração tremer, gélido de medo. Será que
ela contou ao pai sobre sua queda, há tantos dias? Seremos expulsos... por
minha causa? Notando sua palidez, Carmela riu e disse:
— Calma, garoto. Parece que viu uma assombração. Estou cá apenas
dizendo à sua mãe uma coisa importante...
Lira continuou:
— A senhora Carmela veio aqui justamente para dizer que, tanto eu,
quanto às outras mulheres, teremos o prazer de dormir esta noite na casa
grande, a fim de ajudar na festa de amanhã. Então, você e seu pai terão de se
virar sem mim... — Lira transmitia a notícia como se fosse uma boa nova. E,
para ela, talvez fosse.
Acanhado, Uziel recuou um passo, baixando os olhos.
— Ah, eu já... imaginava isso.
— Bom, que tal deixar sua mãe e eu espalharmos o aviso? Luana, pode
sair na rua, se quiser, querida.
De maneira mecânica, Luana se levantou da cadeira, dando a volta na
mesa e se aproximando de Uziel. De supetão, este se virou, atravessando a
porta e saindo da casa, ainda sentindo calafrios.
— Para que apressar os passos? — Luana questionou, apertando o passo
a fim de acompanhar Uziel.
O garoto parou, mas não se virou.
— Por que você veio aqui? Achei que tivesse se cansado da gente...
— Ora, vim porque queria sair um pouco daquela casa. Ela é grande e
vazia. E tão solitária...
— Mas para que vir aqui?
— Não questione. Estas terras são minhas, não é?
Uziel calou-se. Luana avançou, prostrando-se à frente dele.
— Perdão.
— Não me peça perdão, Uziel. Vamos, acho que você ainda não
explorou todo este lugar... venha — e sem olhar para trás, Luana correu pela
estrada.
Ah... Deus... Hesitante, o garoto seguiu-a. Deixaram a vila e viraram
numa trilha quase que oculta. Sem questionar e em silêncio, Uziel seguiu-a
morro acima durante alguns minutos. Por fim, Luana parou de se mover,
virando-se para encará-lo.
— O que achou deste lugar? — Luana abriu os braços, rodopiou e
voltou-se à frente. — É o meu predileto.
De olhos abertos, Uziel se aproximou, caminhando sobre o novo terreno.
Era completamente diferente de todos os lugares vistos até então, com uma

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A Última Pétala | Walace Rocha

grama extremamente verde a correr para lá e para cá, com algumas fileiras de
flores enfeitando a paisagem. Adiante, uma ladeira descia, revelando uma
vastidão ainda mais bela, um prólogo de um mundo utópico criado por Deus,
onde pessoas como Uziel eram banidas antes mesmo de nascer.
— Como pode existir um lugar assim? — Disse ele para ninguém em
especial, maravilhado. Luana voltou-se a ele.
— Sabia que você se alegraria. Estava todo pálido! Venha, aproxime-se
da beira e contemple o vale!
Obediente, Uziel caminhou até a beirada, fitando o morro abaixo, suas
flores e o gramado verde.
— Não sei exatamente como me sentir. Antes de vir para cá, nunca
havia visto tal coisa. Mas mesmo assim, às vezes sinto saudades de casa.
Sentir isso é pecado?
— Acho que não, todos nós sentimos saudade de algo.
— Por que... você não foi brincar hoje?
— Ficarei um tempo na... — Luana suspirou — casa fria e solitária.
Meu pai anda bravo.
Uziel franziu o cenho, preocupado.
— Bravo, por quê?
— Porque eu não me vinguei — de súbito, Luana empurrou Uziel, e este,
por reflexo, grudou suas mãos nos braços da garota.
E, de cima do elevado, ambos rolaram gramado abaixo; chegando à
parte plana, sujos de terra e grama. Os dois riram, deitados lado a lado. Luana
rolou, pondo-se a fitar o céu vespertino.
— Sabe — começou ela, parando de rir. — A chegada de vocês... foi a
melhor coisa que aconteceu.
— A nossa... chegada... — balbuciou Uziel, também contemplando o
céu. — Antes da gente chegar, havia outras crianças?
Luana ignorou a pergunta, ficando em silêncio. Uziel respeitou sua
decisão, e juntos, ficaram a observar o céu pelo resto da tarde.

Assim que o sol encostou no limiar do horizonte serrilhado, Benedito e seus


amigos diminuíram o ritmo, pois estavam drenados após aquele — o mais
puxado de todos, até então — dia. Mas tinham de se manter firmes, tinham
de continuar trabalhando, pois José assim exigia. Entretanto, nem todos
conseguiam manter tal ritmo, e um homem miúdo, que lavrava à frente, foi o
infortunado. De chofre, largou a pá e desabou de joelhos. Estranhando, José
se acercou, carrancudo.

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A Última Pétala | Walace Rocha

— Amanhã vocês trabalharão apenas algumas horas por conta da festa


— disse o capacho, passando os olhos sobre o homem miúdo, ainda
ajoelhado. — Corpo mole? Está bem, está bem! — Girou o corpo,
gesticulando para os demais capachos. — Vamos aquecê-lo? — Levou uma
das mãos à cintura, e num movimento, sacou o chicote.
Bendito estava de boca aberta, sabia bem o que estava prestes a
acontecer. Mas, antes que qualquer tipo de pensamento passasse por sua
cabeça, Tadeu segurou-o pelo braço, balançando a cabeça de um lado a outro.
E, quando se voltou à frente, Benedito deslumbrou a imagem de seis
capachos cercando o homem miúdo, e num piscar de olhos, os seis estalaram
seus chicotes no desgraçado. Gritos soaram, rasgando o ar do ocaso, e
Benedito sentiu-se paralisado. Assim como os outros que assistiam tal
atrocidade. E, em seu coração, Benedito sabia que, naquela noite, quando
fosse se deitar, não conseguiria dormir.

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A Última Pétala | Walace Rocha

Capítulo 6

Antes mesmo de o sol raiar, a casa grande de César encontrava-se


completamente agitada, com a dezena de esposas dos trabalhadores
organizando o espaço, limpando e ajudando Carmela na preparação dos
petiscos e demais pratos.
Mesmo dormindo numa cama de verdade, Lira sentia-se cansada com
toda aquela agitação. E agora que o dia da festa chegou, começava a ficar
ansiosa, pois nunca tivera a oportunidade de ver tantos doutores e membros
da alta-sociedade antes. Meneando a cabeça, a mulher pôs-se a fitar a
paisagem através da janela quadrada da cozinha, enquanto suas mãos
trabalhavam de maneira habilidosa na massa de bolo.

Mais uma vez, Benedito se aproximava da plantação, ao lado de Tadeu e


Matheus. A ideia do turno reduzido não o animava, ainda mais após ver o
que acontecera ao pobre homem miúdo no dia anterior. Os três caminhavam
pela estrada em silêncio, observando os trabalhadores que chegavam cada
vez mais. Todos chegam, mas e o miúdo? Benedito suspirou, torcia para que
o homem pudesse estar bem.
— Matheus, Tadeu — chamou Benedito, baixinho. — Vocês podem me
fazer um favor?
Tadeu arqueou uma sobrancelha, mas foi Matheus quem respondeu:
— Qual? Diga, Benedito, e nós faremos.
— Convide cada trabalhador desta plantação — chichiou o homem, o
olhar preso à frente. — Diga a eles que estou chamando-os para uma...
conversa. Mas que fique apenas entre nós, ninguém pode ficar sabendo.
Matheus aquiesceu, Tadeu franziu o cenho.
— No que está pensando, Benedito? — Perguntou ele.
— Venha, e verá — e Benedito avançou à frente, preparando-se para
mais um dia de trabalho.

O sol da manhã avançava sobre a vila dos trabalhadores, de maneira


extremamente lenta e arrastada. Diferente dos demais dias, a maioria das
crianças jaziam em suas casas, outras simplesmente encontravam-se sentadas
nas calçadas, dominadas pelo desânimo. À frente de sua morada vazia, Uziel

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A Última Pétala | Walace Rocha

estava repousado, observando o tempo. A seu lado, Nero fazia companhia,


igualmente em silêncio, contemplando a manhã, evitando a fadiga. À
esquerda, Sofia se remoía, não importando em mostrar todo seu
descontentamento. A garota murmurava e rolava na calçada, demasiadamente
inquieta.
— Ah, como queria estar nessa festa, com esses figurões! — Exclamou
ela, partindo o silêncio.
Uziel baixou os olhos ao chão, suspirando.
— Eu não faço questão...
— E por que não, Uziel? — Nero perguntou, fitando-o de soslaio.
— Será uma festa de adultos, com todas aquelas chatices...
Sofia rolou mais uma vez na calçada, resmungando.
— Ah — ela arregalou os olhos, levantando-se. — Mas ainda há
esperança!
— Hã? — Uziel franziu o cenho.
— Sim... sim... — Sofia virou-se a ele, os olhos luzindo. — Dia de São
João. Fiquei sabendo que será uma baita festa, e nós... talvez nós possamos ir!
— Ah... não sei, não... — Nero se levantou. — Acho que vou pra casa.
Está ficando quente — despediu-se dos amigos e se retirou.
Os dois amigos restantes ficaram em silêncio durante alguns minutos.
Sofia se virou, os olhos presos em Uziel, e sorrindo, disse:
— Ora, Uziel... eu já sei no que você está pensando — Sofia murmurou.
— Sabe?
— Sim... — a garota riu. — Você está pensando em participar daquela
brincadeira de casamento, e será meu noivo!
De chofre, Uziel se ergueu, os olhos trêmulos.
— Não diga essas coisas. Somos jovens demais para ficarmos falando
disso, mesmo que de brincadeira... Olha, acho que vou me deitar. Meu pai
chegará mais cedo... — Deixando Sofia cabisbaixa, Uziel rumou à porta, mas
parou, olhando para a amiga com certo remorso. Ah... exagerei. — Mudei de
ideia. Que tal caminharmos um pouco para esquecermos essa festa de adultos
e espairecer a cabeça?
Imediatamente, Sofia ergueu-se num pulo, animada.
— É uma ótima ideia, Uziel! Vamos!
Levantando os olhos uma última vez às nuvens, o garoto seguiu pela
estrada.

De frente à casa grande, dezenas de carroças chegavam a cada instante,


parando e sendo auxiliadas pelos capachos de César. Os convidados desciam

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A Última Pétala | Walace Rocha

e, impressionados, moviam seus olhos de um canto a outro. De uma


carruagem vermelha, um homem gorducho saiu, os olhos miúdos fundos em
seu rosto oval coberto por uma camada de barba rala. Da escada do portal de
entrada, o anfitrião desceu; trajava uma bela vestimenta escura, coturnos
pretos e cabelos penteados para trás.
— Oh, grande César! — Cumprimentou o homem gorducho, levando
uma mão à carruagem e enlaçando-a na de uma mulher magra, de cabelos
cacheados e vestido amarelo. — É uma honra vê-lo, e uma maior ainda ser
recebido em vossa casa.
— A honra é minha, doutor Ramirez — César apressou-se em apertar a
mão suada do gorducho. — E esta deve ser sua esposa — César arqueou uma
sobrancelha e gesticulou à mulher dentro do vestido amarelo.
— Sim, sim. Senhora Ramirez; César.
— Meu bom marido sempre fala de ti, és um bom homem — disse a
mulher, sorrindo.
— Ah, é bom saber disso. Pois bem, venham, subam, o ocaso está
caindo.
E coberto de risos, o doutor e sua esposa subiram os degraus, enquanto
César recebia mais convidados ali, no sopé da escada.
Da janela de seu quarto, a pequena Luana observava atentamente.
Suspirou, fechou a janela de madeira e se virou à Carmela. A criada
analisava-a com curiosidade, segurando um par de sapatilhas azuis.
— Tem muita gente chegando, Carmela — comentou Luana, acanhada.
— O jantar será longo.
— Sim, querida. Será um jantar de extrema relevância. Muitos nomes da
lei jazem aqui neste momento — Carmela pousou as sapatilhas aos pés da
garota e suspirou. — Ainda bem que sua mãe e seu pai tiveram a ideia de
chamar as esposas dos trabalhadores...
Luana calçou as sapatilhas, e acompanhada de Carmela, saiu do quarto,
mas não antes de dirigir uma rápida olhadela à janela fechada.

Benedito terminava de lavar os pratos e talheres, empilhando-os num canto


da pia. Secou as mãos calejadas e se virou para trás. De súbito, seus olhos
fixaram-se em Uziel. O garoto de pele escura terminava de beber seu chá de
erva-doce, o olhar perdido. Sob à luz cintilante do lampião, sua feição infantil
ficava ainda mais inocente, quase que angelical. Benedito sorriu, mas não
sentia alegria alguma. Um garoto imaculado, assim como todas essas
crianças que vieram com a gente. Cabe a mim deixá-lo assim até o fim de

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sua infância, pelo menos... Resfolegando, o homem se distanciou, dando a


volta na mesa.
— Filho, está pensativo. Aconteceu alguma coisa?
Uziel moveu os olhos ao pai.
— Não é nada... só... — ergueu o copo, agora vazio. — Penso em nosso
antigo lar. Lá era pior, mas mesmo assim, não consigo parar de sentir tanta
saudade. Estou errado em sentir isso?
Benedito puxou uma cadeira, sentando-se.
— Não, você não está errado... Não se sinta culpado por sentir saudade
do antigo lar. Às vezes, também sinto.
Uziel esboçou um leve sorriso.
— Ah, você sente? Achava que adultos não sentissem essas coisas.
Você tem medo, pai?
Ao escutar as palavras do filho, Benedito torceu o rosto numa careta,
sentindo o gosto azedo do desgosto contaminando sua língua.
— Acho que está tarde, e sua mãe não gostaria de vê-lo aí, acordado —
o homem se levantou. — Vamos, vamos, menino.
Aborrecido e sem compreender a mudança repentina de humor do pai,
Uziel se levantou. Despediu-se e rumou ao quarto, parando ao lado da cama.
— O senhor também não vai dormir?
— Não... ainda não. Tenho algumas coisas de adulto... Fique em casa,
deitado. Não me demoro — dito isso, Benedito apressou-se em pegar seu
casaco. Girou o corpo e saiu caminhando a passos largos cozinha afora.
Dando de ombros, Uziel se deitou, perguntando-se aonde o pai iria
àquela hora.

De pé, à frente da longa mesa apinhada de convidados, César palestrava


sobre sua grandiosa fazenda, sobre as colheitas vindouras, sobre os
trabalhadores que — de grande coração — acolheu, assim como seus filhos e
esposas. Seus olhos fosforescentes moviam-se de um lado a outro, pousando
durante alguns segundos sobre cada convidado. E eles sorriam de volta,
contentes com as doces palavras e entorpecidos pelo aroma do jantar que
pairava sobre o cômodo, possuindo-os. Por fim, César ergueu uma taça e
brindou, convidando-os para a próxima festa. E, na cozinha ao lado, as
esposas se emocionavam com tais palavras na companhia de Carmela; esta,
indiferente.

Uma única vela iluminava o cômodo apertado, depositada no centro de uma


velha mesa redonda. Ao redor, Benedito passava seus olhos cansados sobre

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cada rosto arruinado. Cansados, assim como ele. Após alguns minutos em
silêncio, desatou a falar:
— Meus amigos, meus conterrâneos... — iniciou ele numa voz baixa. —
Estamos aqui reunidos para... conversarmos sobre algo... — passou os olhos
novamente sobre cada rosto. — Nós temos de fugir deste lugar...

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Capítulo 7

Sentado à mesa, Uziel observava sua mãe palestrar sobre como a festa na
casa grande fora magnífica, com todos os membros da alta-sociedade. Lira
falava sem pausa, as palavras jorravam de seus lábios, seus olhos fumegavam
de emoção. Encostou-se na pia, suspirou e voltou a fixar o olhar no garoto.
— Bom... chega de falar da festa... Como passaram à noite? —
Perguntou ela, após tomar fôlego.
— Papai e eu cuidamos de tudo — Uziel respondeu, simplesmente. —
Ele voltou mais cedo... jantamos e fomos dormir — não contaria a Lira sobre
o passeio noturno de seu pai. Sabia que era algo sobre adultos, e manteria a
coisa desse jeito. — Mas... sinto-me feliz que tenha se divertido. Disseram
que na próxima festa todos estarão convidados.
Lira levantou uma sobrancelha, a animação retornando.
— Ótimo, ótimo! Quando for, compreenderá minha emoção!
Uziel riu, há muito não via a mãe tão feliz. À porta, Nero surgiu.
— Bom dia, senhora Lira.
— Ah, olá, Nero. Entre, entre. Estava contando a Uziel como foi bom
ter feito parte da festa.
Nero esboçou um leve sorriso.
— Minha mãe também está contente. Demasiadamente feliz.
— É! Ela compreende, compreende! Mas... — Lira baixou os olhos,
fixando-os nas varas de pesca que o garoto segurava. — Veio chamar Uziel
para pescar tão cedo?
Nero ergueu as varas, o barbante enrolado ao redor.
— Sim, talvez peguemos alguns peixes.
Lira assentiu, gesticulando para o filho.
— Vá, vá com teu amigo. Está muito desanimado pro meu gosto.
Rindo, Uziel despediu-se de sua mãe, e junto de Nero, rumou-se ao rio.

Sob o céu matutino, Benedito trabalhava com sua pá, os olhos atentos
passando de um lado a outro, nervosos. Tadeu guiava o burro, o arador
tremendo. Ao lado, Matheus estava imerso em silêncio. Do outro lado, a
poucas dezenas de metros, um homenzinho se aproximou, trêmulo. Ao vê-lo,
Benedito pausou seu trabalho e acercou-se do sujeito.

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A Última Pétala | Walace Rocha

— Benedito, teremos outra... sessão? — Perguntou o homenzinho num


sussurro.
— Sim — respondeu ele, e o homenzinho se retirou, tomando cuidado
para não chamar a atenção de nenhum capacho.

Uziel não demorou em sua pescaria com Nero. A dupla ficou na margem do
rio durante alguns minutos e, ao verem que não pegariam nada, retornaram à
vila. Ao longe, deslumbraram as demais crianças correndo de um lado a
outro, escondendo-se de maneira frenética. Como que lendo os pensamentos
de Uziel, Nero depositou as varas entre algumas raízes, o amigo fez o mesmo,
e sem perder tempo, correram em direção às crianças.

Criados limpavam e organizavam o terreno ao redor da casa grande,


despreocupados com o olhar cortante de César. O homem caminhava
calmamente, contente com o sucesso da noite anterior. Conseguira muito
apoio, investimentos para a infraestrutura da fazenda e, mais que isso,
conseguira esboçar planos para o futuro. Conseguira uma posição no Senado,
casaria sua filha — quando esta completasse 16 anos — e expandiria ainda
mais seu território. Contendo a felicidade, subiu os degraus da entrada
rapidamente, atravessando a porta. Avançou pela sala vazia, escutando vozes
na cozinha, e se aproximou. Sentada à mesa, Carmela bebericava seu café,
enquanto à janela, Abigail fitava a paisagem. Ao escutá-lo chegando, virou-
se.
— Senhor, bom dia — Carmela cumprimentou-o, ainda sentada.
César analisou o cômodo, aproximou-se da mesa e puxou uma cadeira,
sentando-se.
— Bom dia, Carmela. Pode continuar tomando seu café, não se
preocupe. Vim apenas agradecer seu trabalho. Foi uma noite fenomenal...
espero que isso possa se repetir no dia de São João.
Ao ouvir as palavras do patrão, Carmela deixou-se sorrir. Em todos
aqueles anos trabalhando naquela casa, foi a primeira vez que presenciou um
elogio, sobretudo à ela.
— Ora, patrão, não se preocupe. Sinto-me feliz em saber que gostou...
— alargando o sorriso, a mulher negra fez uma careta. — E pode deixar que
no dia de São João será ainda melhor!
— Assim espero — César aquiesceu, erguendo-se da mesa. Dirigiu um
olhar de esguelha à Abigail, mas não disse nada. Virando-se, saiu da cozinha,
voltando a atravessar a sala. Parou, e ao mover os olhos a uma das varandas,
viu Luana, prostrada diante da mureta. O que faz aí, quietinha? Caminhou até

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A Última Pétala | Walace Rocha

a filha, a garota continuava observando o horizonte com um olhar fixo. —


Olá, filha. O que tanto vê?
— Seus trabalhadores... eles não param, mesmo sob o sol — respondeu
ela, os olhos distantes.
— Ah, mas eles estão aqui para isso. Eles nasceram para isso... e, um
dia, quando for adulta, tudo isto será seu.
— Eu... não sei...
— Não sabe? — César pousou uma mão sobre o ombro da filha. — É
criança, por isso não sabe. Mas um dia entenderá, e você vai querer, sim.
Luana assentiu, César fitou seus olhos, e neles notou uma espécie de
tristeza. O que há?
— Você está bem?
Luana abandonou a vista e ergueu os olhos ao pai.
— Me sinto... sozinha. Queria brincar com as crianças... as crianças que
vieram.
César carregou o cenho, sentindo-se irado por um instante. Suspirou e,
com uma voz mansa, voltou a falar:
— Se diverte com elas, não é? Pois saiba que... se for para te deixar
contente, então sinta-se livre para brincar com aquelas... — forçou um sorriso
— crianças. Mas tenha cuidado, digo apenas isso.
Os olhos da garota brilharam.
— Sério? — César aquiesceu. — Obrigada, pai! — E deu um abraço
desajeitado em César, que ficou contente ao ver a filha feliz.

O silêncio cobria a cabana de Benedito, e o vento suave que soprava tornava


a noite agradável. Sentado em sua cama, segurava um lampião. Ao lado, Lira
se remexia, imersa em um sono profundo. A poucos metros, Uziel imitava
sua mãe; as pálpebras cerradas, a respiração leve. Voltarei em poucos
minutos. Levantou-se da cama, e cuidadoso, atravessou a casa, abrindo a
porta e saindo na rua de terra batida. Num piscar de olhos, avistou Matheus e
Tadeu. E, a passos largos, acercou-se dos dois, rumando em direção à cabana
onde fariam a reunião daquela noite.

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A Última Pétala | Walace Rocha

Capítulo 8

Alguns dias se passaram desde à festa na casa grande. Assim como nas
primeiras semanas, aqueles dias passavam rapidamente, com o sol
extremamente dourado iluminando os dias, e as milhares de estrelas, às noites.
No entanto, a sequência de dias não foi suficiente para acabar com o
sentimento de saudade que Uziel sentia. Gostava, sim, do novo lugar, mesmo
ficando com medo algumas vezes e estranhando certas atitudes adultas que
cercavam-no, como se tomassem-no como um tolo. Forçava-se a ignorar isso,
fingia indiferença, e conseguia na maior parte do tempo, graças a Nero, Sofia
e as demais crianças. Um dia de cada vez, como costumam dizer. O garoto
espreguiçou-se na cama de palha; lentamente, abriu os olhos, encarando o
teto já tão conhecido. Levantou-se, calçou as botinhas surradas e dirigiu-se ao
banheiro. Lavou o rosto, escovou os dentes e penteou o cabelo.
À cozinha, Lira depositou uma xícara de café sobre a mesa, ao lado de
um prato contendo uma fatia de queijo. Uziel entrou no cômodo, e com
poucos passos, sentou-se à mesa.
— Bênção, mãe — disse ele.
— Deus te abençoe. Dormiu bem?
Uziel pescou a fatia de queijo, e de maneira mecânica, desatou a
bebericar o café.
— Sim... mesmo com toda essa quentura — começou a morder o queijo,
enquanto Lira voltava a se concentrar nas tarefas da cozinha. — Pai está...
— No trabalho, você sabe — Lira respondeu.
Uziel terminou de comer o queijo, pegou a xícara e tragou um longo
gole do café doce. Baixou a mão, e sem querer, disse:
— Aonde ele vai todas as noites?
Ao escutar tais palavras, Lira sentiu um calafrio subir-lhe à espinha.
Sem se virar, respondeu:
— Coisa de adulto. Você não deveria ficar prestando atenção na
conversa dos outros... é falta de educação.
— Perdão, é que... — fechando os olhos, Uziel se levantou. — Vou
brincar lá fora.
— Vá, meu filho... — Lira volveu-se a ele. — E vê se para de curiar a
conversa dos outros.

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A Última Pétala | Walace Rocha

Permitindo-se sorrir, Uziel saiu de sua casa, pisando na rua de terra.


Caminhou poucos metros, e à frente, avistou Nero. Apertou o passo,
cumprimentou o amigo e, juntos, seguiram ladeira abaixo.
— Onde os outros estão? — Uziel perguntou.
Nero semicerrou os olhos, arqueando uma sobrancelha.
— Acredito que foram para o rio. Desde que fomos pescar e o pessoal
soube do lugar... — Nero riu, dando de ombros. — Arrisco dizer que é o
lugar favorito dos nossos amigos. Você vem?
Os dois terminaram de descer o morro, virando à esquerda numa trilha
que saía da estrada. Antes de Uziel responder, sua atenção foi atraída por um
rouxinol que sobrevoava as poucas árvores. Seus olhos seguiram-no até o
horizonte, e ali, fixaram-se. Com um ar sonhador, forçou-se a responder.
— Mais tarde.
— Mais tarde? Vamos, todos esperam por ti. Inclusive Sofia. Aquela lá
está brava contigo, amigo.
— É... é... mas já vou, Nero. Vá na frente, sim?
Estranhando a atitude repentina do amigo, Nero deu de ombros e seguiu
trilha adentro, deixando Uziel sozinho. Mas o que você faz aqui?
Semicerrando o cenho, o garoto voltou à estrada, caminhando a passos largos
em direção ao vulto prostrado no limiar do horizonte, revelando-se pouco a
pouco de quem se tratava. Minutos depois, o garoto se encontrava à frente da
garota de olhos cor de mel, pele bronzeada e cabelos castanhos. Luana usava
um vestido amarelo que chegava aos joelhos, sapatilhas pretas e uma faceta
de pura ironia.
— O que faz aqui? Pensei que não voltaria mais — Uziel disse, fixando
os olhos no olhar da garota.
— Ué, mas eu havia dito que ficaria um tempo sem vir brincar — Luana
girou o corpo e desatou a andar. Uziel seguiu-a. — Vamos... já visitou o meu
milharal?
Uziel riu.
— Seu? É, você não está errada. Um dia será seu.
Palavras minaram na boca da garota, mas esta as conteve.
— Talvez — apertando o passo, Luana saiu de onde estava, adentrando
uma trilha até então desconhecida a Uziel. Em silêncio, subiram um aclive, e
algumas centenas de metros depois, chegaram ao milharal. — Verde e
amarelo — a colheita será daqui a alguns dias. Acredita que gosto mais dessa
vista do que aquele campo de flores?
Hesitante, Uziel se aproximou, parando ao lado da garota.
— Você só pode estar louca.

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A Última Pétala | Walace Rocha

— Eu, louca? Não, não... — Luana virou-se para encará-lo. — A festa


de São João está próxima. Vocês estão convidados...
Uziel baixou os olhos, prendendo-os num ponto distante.
— Estamos, é? Não sei... não sei porque não consigo sentir ânimo
algum.
Luana arqueou uma sobrancelha.
— Pois, então, se alegre. Como... como você está?
Por um momento, Uziel sentiu uma leve confusão consumindo-o.
— Está preocupada comigo?
Luana fechou a cara e acertou-lhe um soco no braço.
— Estou preocupada com meus futuros... trabalhadores. Não se engane.
Uziel riu.
— Estou bem, agradeço por sua preocupação, Luana. E... pode deixar,
sim, que irei à festa.
Luana esboçou um leve sorriso.
— Te vejo lá, garoto. E ai se você não for, terei de ser uma patroa cruel.
Sem jeito, Uziel observou Luana se virar e caminhar ladeira abaixo, sem
olhar para trás.

Na casa grande, César realizava mais uma de suas sessões de elogios à


Carmela, cobrindo a criada de felicidade e excitação. Compartilhara com ela
uma ideia que muitos já sabiam, inclusive ela própria — chamar os
trabalhadores e seus filhos à festa de São João —, e deixava claro para que
fizesse o mesmo planejado da festa anterior. Dito isso, saiu da cozinha,
atravessou o cômodo calmamente, chegando à sala de estar e encontrando
uma Abigail confusa; os olhos da mulher cintilavam com um ar ensandecido.
— O que há, mulher? — César perguntou, sentando-se no sofá e
cruzando as pernas. — Está doente, por acaso?
Meio trêmula, contendo certa ansiedade, Abigail sentou-se no sofá à
frente do marido.
— Luana saiu hoje. Será que finalmente deixou-a ir e se divertir como
uma criança de verdade faz?
César bufou, mirando os olhos à janela.
— Não faço isso por você, e sim por ela. Nossa filha vagava por aí, solta,
completamente perdida... — voltou os olhos à esposa. — O que fiz foi apenas
vista-grossa.
Abigail arregalou os olhos e respirou fundo. Por um momento, sentiu-se
completamente aliviada.

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A Última Pétala | Walace Rocha

O silêncio pairava sobre o quarto, denso, com sua escuridão morna. Benedito
abriu os olhos, moveu-os de um canto a outro e, lentamente, se ergueu. Ao
lado, Lira se contorceu. Ah, Deus... Fechou os olhos, e por instinto, prendeu a
respiração. Por fim, a voz sussurrante da esposa chegou aos seus ouvidos.
— Aonde vai?
Benedito ficou de pé, e com outro sussurro, respondeu:
— Prepare-se.

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A Última Pétala | Walace Rocha

Capítulo 9

Naquela sexta-feira, 24 de julho de 1910, o pátio que cercava a casa grande


da Fazenda Santana encontrava-se entupido de crianças — filhos dos
trabalhadores de um lado e filhos da alta-sociedade do outro, como água e
óleo. Adultos iam e vinham das barracas improvisadas, comendo e bebendo
enquanto o ocaso terminava de se estabelecer. Na cozinha, Carmela não
parava um segundo sequer, sendo auxiliada pelas esposas dos funcionários de
César, assim como fora na última festa.
Da janela de seu quarto, Luana observava cada face contente, movendo
os olhos de um canto a outro. Como está cheio. Afastando-se da janela,
fechou-a. Agachou-se, calçou as sapatilhas vermelhas, combinando com o
vestido de mesma cor, e saiu do cômodo. A casa, assim como a área externa,
encontrava-se igualmente agitada. Desviando dos adultos, a garota seguiu
sala de estar afora, prostrando-se na escada.
Algumas pessoas olharam para ela de esguelha, alguns adultos — os tais
doutores que vieram anteriormente —, e acenaram. Ignorando-os, Luana
desceu os degraus, chegando ao pátio. Avistou o primeiro grupo de crianças;
todas bem-vestidas, crianças de um patamar elevado; segundo seu pai, a ideia
concreta de amigos. Contornou a fogueira que ficava maior a cada instante, e,
por fim, seus olhos encontraram o segundo grupo de crianças. As crianças
proibidas de brincar, de se juntar, de se misturar. Mas ali estavam elas,
correndo aqui e acolá, divertindo-se mais que o outro grupo. Apertando o
passo, a garota se aproximou. Mostrou-lhes um sorriso, e ao ver Uziel,
acercou-se do garoto, ignorando os olhares estranhos que lhe eram dirigidos.
— Eu sabia que você viria — disse ela.
Uziel deu um sorriso torto.
— Me vi obrigado. Minha mãe e meu pai me convenceram... — Uziel
fitou a casa grande, levemente incomodado por estar ali, trajando vestes
simples. — Então é aqui que você vive, nesta... casa enorme.
— Mas vazia — balbuciou Luana, sem olhar para Uziel. — Já caminhou
pelo pátio? Explorou o lugar, como costuma fazer?
— Ainda não... — Uziel levantou os olhos, viu Nero e Sofia num canto,
fingindo indiferença, mas sabia que os amigos prestavam atenção nele. —
Mas se quiser, fique à vontade para mostrar o caminho.

46
A Última Pétala | Walace Rocha

Luana aquiesceu.
— Vamos, antes que a festa comece de verdade.
E, sentindo um calafrio, Uziel seguiu-a.

Lira se impressionava com a velocidade em que os capachos e criados iam e


vinham, ávidos por mais pratos para abastecer as barracas. Toda aquela
agitação na cozinha animava-a de tal maneira que se orgulhava do trabalho. E,
ao passar os olhos sobre as demais mulheres, pôde sentir a mesma sensação,
a excitação à flor da pele. Sorrindo, virou-se à Carmela.
— Está sendo uma honra poder trabalhar aqui em mais uma festa.
Igualmente animada, Carmela virou o rosto para encará-la, enquanto
mexia um tacho.
— O prazer é todo nosso. Se não fossem vocês... E o seu marido, está lá
fora?
— Eu... eu acho que sim — Lira voltou a se concentrar em sua canjica,
movendo a colher de pau num ritmo contínuo. — Benedito não é muito
chegado à festas.
— E o seu filho?
— Ah, Uziel deve estar correndo por aí, com os amigos...
Neste momento, Tadeu entrou na cozinha, atraindo olhares.
Rapidamente, o homem se aproximou de Lira, cochichou algo em seu ouvido
e se retirou quase que imediatamente. Ao escutar o recado, a mulher fechou a
cara. Notando sua súbita mudança de humor, Carmela perguntou:
— Está tudo bem?
Lira resfolegou, parando de mexer a panela um instante.
— S-sim... está tudo bem...

Além das cercas da casa grande, prostrado ao lado de uma carroça, oculta
pela noite, Benedito observava a cantoria, a animação e a felicidade daquelas
pessoas. E, tocado pela curiosidade, permitia-se perguntar o porquê de todos
aqueles homens e mulheres estarem daquela maneira, usufruindo da vida.
Deus sabe o que faz. Cada homem possui a rede que deve ter... Meneando a
cabeça e afastando todos os pensamentos malditos, recuou. Girou os
calcanhares, fixando o olhar em Matheus. O amigo estava nervoso, mas
tentava disfarçar seu estado.
— As carroças estão prontas? — Benedito perguntou.
— Sim... está tudo saindo como planejado. Esta noite... seremos livres,
meu amigo.

47
A Última Pétala | Walace Rocha

Benedito ergueu os olhos ao céu estrelado, voltando a ficar pensativo.


Não compreendia a razão daquilo tudo, e a ideia de liberdade não o agradava.

De cima da elevação, Uziel fitava o brilho fosforescente da fogueira alta. Ao


redor, pontinhos dançavam, extremamente agitados. Espalhados, outros
pontos se moviam, e Uziel não duvidava da felicidade de cada um. Imóvel,
deixou que os olhos bailassem, cintilantes. O que via abaixo, a pouco mais de
algumas dezenas de metros, não parecia ser real. Também não se parecia com
pintura alguma, pois era poético demais, perfeito e utópico. Não domando
seus pensamentos, disse para si mesmo.
— É uma perfeição, e como perfeição alguma existe em nosso mundo,
então não passa de uma mentira.
Ouvindo-o, Luana se aproximou, juntando-se à vista.
— Pare de dizer tantas palavras azedas, Uziel. O mundo sempre foi
assim, alegre, animado e contente. Devia repensar sua visão sobre as coisas.
Uziel arqueou uma sobrancelha, virando-se a ela.
— Mas não é você quem fala sobre casa vazia e companhia? Ou por
acaso acha que sou burro?
— Não, não acho. Para um garoto que vagabundeia o dia inteiro, até que
é bem esperto.
— Ah, é?
— É... e não menti quando disse aquelas palavras. Este lugar é vazio, é
triste... mas a companhia das outras crianças deixa tudo... suportável —
Luana acercou-se de Uziel, parando a centímetros, encarando seus olhos. —
Em especial, a sua presença me anima, Uziel.
As últimas palavras de Luana pairaram no ar noturno, os dois ficaram
alguns segundos imersos num estranho silêncio.
— Admito que também gosto de sua presença — disse, por fim, Uziel.
— Eu não sei descrever o que sinto. Uma ansiedade sempre que penso em
você, uma inquietação sempre que vejo você. Algo dentro de mim diz que é
errado, e que tal coisa me fará apenas me sentir mal... mas sou teimoso, e
insisto em continuar sentindo essa ansiedade doentia, e... — antes que
pudesse continuar, Luana aproximou seus lábios do rosto escuro de Uziel,
dando um beijo rápido em sua bochecha.
— Talvez... quando a gente crescer... — balbuciou ela, Uziel estava de
olhos arregalados.
De supetão, Nero surgiu, interrompendo os jovens. Ignorando seja lá o
que estivesse acontecendo entre os dois, o menino se aproximou de Uziel,
arfando.

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— Uziel... seu pai o chama. Ele está na estrada, ao lado do portão


principal.
Tomado por uma confusão inimaginável, Uziel gaguejou.
— M-mas o que ele quer? Aconteceu algo?
— Apenas venha, e rápido! — Girando os calcanhares, Nero pôs-se a
andar.
— Eu... eu já volto — Uziel disse à Luana, arqueando os joelhos e
acompanhando o amigo.
Imóvel, a garota fitou-o se afastar.

Tragando longos goles do quentão, César divertia-se numa rodinha de amigos.


Comiam e bebiam, enquanto palavras seguidas de palavras eram trocadas a
respeito do grande futuro. E aquela sensação de felicidade poderia durar
horas, até o amanhecer, se não fosse por José. O capacho arfava, e sua face
transmitia uma urgência fora do comum.
— Senhor — José aproximou-se do ouvido do patrão, e o que cochichou
em seguida, alegrou César ainda mais.

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Capítulo 10

Seguindo Nero terreno abaixo, Uziel não parava de sentir calafrios; seus
olhos iam e vinham de um lado a outro, notando a leve agitação que
maculava o ar noturno. Adiante, ao lado do casarão, os adultos importantes,
amigos de César, continuavam sua prosa, assim como suas proles. Mas onde
estão os outros... os meus amigos? Com um cutucão, Nero tirou-o do
devaneio. Os dois atravessaram o local, abandonando os comes e bebes, a
fogueira, a animação, e chegaram à estrada. Poucas dezenas de metros depois,
o menino guiou-o por uma trilha cercada de árvores secas e, ocultas entre elas,
meia dúzia de carroças. Espantado, Uziel parou de se mover, boquiaberto.
Benedito se aproximou, saindo de entre os veículos, sustentando um
olhar perturbado.
— Pai, o que está acontecendo? O que são essas carroças?
Benedito ajoelhou-se diante do filho.
— Apenas suba em uma das carroças, sim? Fique quieto, assim como as
outras crianças.
— Mas...
— Vamos, Uziel, obedeça seu pai — Nero disse, agarrando-o pelo braço
e levando-o à carroça mais próxima.
Benedito assobiou e gesticulou, os adultos ao redor se agitaram. Contra
sua vontade, Uziel sentou-se no canto do veículo, encarando Nero com um
olhar perfurante; o menino desviou os olhos, envergonhado. Ele sabia disso...
e não me disse nada? E, com mais um assobio, Benedito subiu na carroça,
pondo-a em movimento.

Saindo da cozinha e atravessando a sala de estar, Abigail fitava o pátio


festivo, contente. Passou os olhos sobre algumas crianças e o grupo de
amigos de César — franziu o cenho ao notar a ausência do marido.
Engolindo em seco, ergueu os olhos, pousando-os em Luana. Sua filha se
acercava, sozinha. Com Carmela, Abigail desceu os degraus, caminhando
rumo à filha.
— Querida... o que faz sozinha?
— As crianças foram embora — Luana disse, simplesmente.

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Ao escutar a afirmação, a mulher arregalou os olhos, sentindo o coração


disparar contra o peito.
— Carmela... sente algo estranho?
A criada avançou, movendo os olhos.
— Algo está acontecendo... a festa parece... vazia.
De súbito, Abigail sentiu o mundo girar ao redor, sentia-se sufocada.
Meu Deus... meu Senhor Jesus... Resfolegando, voltou-se à Carmela.
— Algo... algo de ruim está prestes a acontecer!
— Não diga isso, senhora. Está assustando Luana... — Porém, as
palavras de Carmela de nada serviam, pois sabia que sua patroa estava certa.

As carroças seguiam a estrada coberta pela noite, distanciando-se cada vez


mais da Fazenda Santana. Maridos, esposas e filhos seguiam em silêncio,
acuados, amedrontados. Sentiriam-se seguros uma vez distantes dali, em
outra cidade. Benedito guiava a fila, segurando as rédeas, os olhos atentos.
Vamos... vamos conseguir... retornaremos à nossa terra... Fechou os olhos
por um instante e respirou fundo. Não deviam ter se deixado iludir pela oferta
de emprego, pela promessa de uma vida melhor. Afinal, o que define uma
vida melhor? O que era necessário para tal coisa? Benedito não sabia dizer, e
não tinha pressa para isso. Voltou a se concentrar no caminho à frente, e, de
supetão, notou algumas luzes bruxuleantes. Não. Lampiões, tochas. Puxou as
rédeas, parando a carroça. Atrás, os demais que seguiam-no estranharam a
ação.
Matheus pulou de sua carroça e correu até o amigo, preocupado.
— Benedito, por que paramos?
Benedito apontou, e o amigo seguiu a direção indicada. Ao ver as luzes
se movendo, Matheus recuou. Segundos depois, identificaram os cavaleiros
que se acercavam do grupo, armados com espingardas e carabinas. Os
capachos de César. E, entre eles, montado em um cavalo branco, o próprio
senhor Santana vinha trotando.
— Ora... aonde pensam que vão? — César perguntou, parando seu
cavalo a dez metros da fila de carroças fugitivas. Sorria com escárnio, seus
olhos brilhavam num tom maligno. — Se cansaram da comida? Da moradia?
— O homem elevava sua voz, cada palavra percorria o ar sufocante como um
trovão. — Se cansaram da vida boa que lhes proporcionei?! Hein?! são uns
ratos ingratos, uns vermes! Agora, deem meia-volta, e fingirei que não vi isto,
que tudo não passou de um mal-entendido!
Matheus olhou para Benedito de soslaio, como que pedindo um
conselho. Benedito virou o rosto, encarando o filho assustado, Nero e a

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esposa, e atrás deles, as demais carroças; mais mulheres, crianças e maridos.


Num ato de coragem, o homem voltou-se à frente, largou as rédeas e pulou
da carroça, indiferente aos capachos armados que cercavam-nos.
— Não voltaremos. Somos livres, agora. Todo homem... e toda mulher...
César abriu a boca, soltando uma gargalhada.
— Certo, chega de perder tempo. Estamos em festa, afinal — César
ergueu uma mão e gesticulou. — Tadeu, você pode sair com sua família.
Voltem à casa grande...
Obediente, Tadeu puxou as rédeas, pondo sua carroça em movimento,
saindo da fila cabisbaixo, sem dizer palavra alguma. Deu a volta e retornou.
Matheus estava sem reação, assim como Benedito e os outros. Montado em
seu cavalo branco, César desatou a rir perante a confusão dos trabalhadores.
— O mundo é um lugar magnífico... talvez porque, mesmo em um
grupo de ratos, ainda assim é possível encontrar um esperto — César puxou a
rédea e fez o cavalo voltar a trotar. — José — chamou —, cerque eles, e
certifique-se de terminar o trabalho de maneira rápida.
Dito isso, César passou por Benedito e Matheus, trotando em direção à
casa grande. O homem simples, de pele escura e de família mestiça, ficou
exaltado, preso num pesadelo irreal. Mil pensamentos corriam em sua mente
arruinada enquanto José liderava os capachos, cercando-os como se fossem
animais. Não... não... E num estalo, retornou à realidade. E o pandemônio
deu-se por iniciado. As pessoas começaram a gritar, os cavalos se agitavam.
E o barulho ensurdecedor dos disparos rasgava à noite. Ainda digerindo o
que acontecia, Benedito correu à sua carroça.
— Saiam daqui! Saiam daqui! — Gritava ele, mas seu filho estava
congelado, tão perdido quanto ele. Foi Nero quem tomou à frente, passando
por Lira e agarrando as rédeas. — Saiam! Saiam! — Berrava Benedito.
A carroça saiu disparada, assim como mais uma e outra em seguida.
Mas as que ficaram presas pelos cavalos malignos, cercadas pelas
espingardas, conheceram o fim.

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SEGUNDO
ATO

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Capítulo 11

20 de agosto, 1918.

Logo após o incidente na Fazenda Santana — o desaparecimento de uma


dezena de trabalhadores numa única noite —, o rumo de César foi incerto. O
mundo conheceu a sua primeira guerra de categoria global, e como seu país
se manteve neutro na maior parte do tempo, acabou ocasionando em certas
decepções por parte dos investidores. Ali, encontrava-se a chance de fazer
dinheiro, mas não souberam tirar proveito algum. Mas, mesmo com algumas
peças fora do tabuleiro, César conseguira contornar a situação, e a expansão
de sua fazenda voltou a seguir adiante, e as pessoas, acompanharam-no.
De sua varanda, o homem de meia-idade continuava com sua aparência
dura, bruta, com os cabelos começando a ficar grisalhos. Seus olhos de pedra
exalavam autoridade e orgulho. Virou-se para trás, fitando Abigail sentada no
sofá, tricotando num silêncio frio, ao lado de sua filha e da sobrinha de
Carmela — Alícia. Sua esposa tentava esconder seu nervosismo, mas a
mulher de face magra, tez estranhamente pálida e grisalha deixava
transparecer sua angústia. Com desdém, César moveu os olhos à filha, seu
orgulho. Luana crescera bastante, adquirindo um rosto anguloso e um corpo
esguio; sua cabeleira caía-lhe sobre os ombros, e assim como o pai,
sustentava um par de olhos imponentes. E, ao lado, a sobrinha de Carmela,
com quase a mesma idade. A moça negra se tornara a melhor companhia da
filha, que sempre reclamava da falta de amigos. E vendo-as juntas, César não
pôde deixar de sentir ainda mais orgulho de sua jogada. Com um leve suspiro,
voltou-se à varanda. Abaixo, avistou José, seu capacho predileto.
Passo a passo, desceu a escada; cada degrau parecia ranger sob seus pés.
Num longo suspiro, encheu seus pulmões com o ar da manhã, fazendo-o
sentir vida em cada parte de seu corpo. Mas, ao pisar no pátio de terra batida,
seus pensamentos tomaram um rumo sombrio, César semicerrou os olhos,
levantando-os. Analisou sua propriedade, e um gosto amargo invadiu seu
paladar. O mundo vinha seguindo adiante, sim, com todas aquelas mudanças.
Mas mudança não é sinônimo de melhoria. Maldição... Nos últimos anos,
bandidos vinham invadindo suas terras, e o prefeito não conseguia manter
policiamento algum. César cogitara a ideia de colocar seus capachos para

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defender a área, mas não foram treinados para tal coisa. Estou sem opções.
Meneando a cabeça, voltou sua atenção a José, parado a poucos metros, ao
lado da carruagem.
O capacho continuava com o físico franzino, mesmo após todos aqueles
anos. Seus olhos estavam fundos no rosto magro, quase cadavérico, mas tão
negros quanto a noite. Ainda assim, uma certa animação corria por suas
células. E ao ver o patrão, abriu um largo sorriso.
— Senhor — gesticulou para o veículo, atado em dois garanhões.
— Vamos logo à cidade, José. Não quero ficar tanto tempo longe daqui.
— Sim, senhor — o capacho escalou a carruagem, sentando-se no banco
elevado e pegando as rédeas. César entrou e fechou a porta.
José pôs o veículo em movimento, saindo do pátio. E com uma olhadela
rápida através da janela, César viu sua filha à varanda, observando-o se
afastar.

Ao redor da pequena cidade, diversas vilas se espalhavam; construções


ilegais, barradas pela prefeitura e pelos policiais. Nos últimos anos, lugares
do tipo haviam se tornado cada vez mais comuns, especialmente à beira de
estradas. Mas, com inúmeras expedições do governo, os cidadãos sem
registros foram retirados — expulsos. Agora, era comum encontrar pequenas
casas e até mesmo construções de dois e três andares abandonadas ao léu.
Numa dessas construções, um homem de pele escura, cabelo cortado
curto e vestes pretas empunhava uma espingarda, sentado abaixo da janela
estourada do segundo andar. Os raios dourados do sol matinal atravessavam
as brechas da parede, iluminando o cômodo empoeirado e silencioso. A seu
lado, um outro homem recarregava seus revólveres; era parrudo, tinha a pele
clara e cabelos escuros e lisos.
— Ele passará por aqui daqui a pouco — disse o homem branco num
tom afirmativo. Terminou de recarregar as armas e pousou-as sobre seu colo.
— Este prédio à beira da estrada é um bom ponto.
O sujeito de pele escura passou os dedos sobre a espingarda fria, o olhar
distante.
— Não é à toa que muitos bandidos vêm pra cá... — Uziel suspirou. —
Há quantos anos estamos planejando isto?
Nero largou as armas no chão, erguendo os olhos ao teto arruinado.
— Cinco? Seis? Difícil dizer... os primeiros anos após aquela noite
foram cruéis.
— Ainda não acredito nisso... como a gente... como...

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— Calma, amigo — Nero pousou a mão sobre o ombro de Uziel. —


Não deixe o passado te abalar. Agora, devemos focar no presente.
— E no futuro — Uziel baixou os olhos ao amigo. Tentou sorrir. —
Certo...
Um assobio preencheu o ar, e imediatamente, a dupla se aprumou à
janela, observando a estrada. No horizonte seco, um ponto se aproximava, a
carruagem de César, de acordo com as informações. Mesmo à distância,
Uziel sentiu seu coração disparar. Por anos, pensaram naquela dia, sonharam
com o momento em que extinguiriam a maldita vida de César. Calma... não
se deixe afobar. Não posso deixar a ansiedade estragar meu plano.
Respirando fundo, Uziel se acalmou. A carruagem de César ficava cada vez
mais próxima, possibilitando a distinção de uma figura sentada no assento
elevado. Na mesma hora, Uziel e Nero reconheceram-no. José... Sorrindo,
afastaram-se da janela.
Na carruagem, José começava a sentir calafrios. Os cavalos galopavam
rapidamente, aproximando-se do amontoado de cabanas e prédios que
cercavam a estrada seca e vazia. Não gostava do trecho, mas sabia que de
nada adiantava reclamar, pois o prefeito nada fazia. Engolindo em seco,
concentrou-se no caminho à frente, torcendo para que a travessia ocorresse
normalmente, no entanto, continuava sentindo calafrios.
De súbito, duas figuras saíram de uma casa à direita, erguendo
espingardas. O capacho puxou as rédeas, tentando desviar, mas um dos
bandidos disparou para o alto; o estrondo ecoou, e José puxou ainda mais as
rédeas, parando a carruagem. O desespero corria por suas veias, sentia cada
músculo de seu corpo atrofiando. Meu Deus! Meu Deus! De olhos
arregalados, olhava de um bandido a outro. De dentro da carruagem, César
abriu a porta, assustado, saindo na estrada. Ao se deparar com a dupla armada,
arregalou os olhos.
— Santa Maria! O que vocês querem?!
— Calado! — Chiou um dos bandidos, um homem estranhamente
amarelo. — Calado aí!
José segurou uma oração, forçando-se a ficar calado. Os bandidos
analisaram a carruagem, animados. César olhou para o capacho de esguelha,
mantendo-se firme, mas seu coração sambava.
— Se querem a carroça, basta levar. Mas não...
— Calado! — O homem de pele amarela gritou, efetuando mais um
disparo contra o céu.
César fechou os olhos, orando para que saísse vivo daquele pesadelo. De
súbito, mais dois homens surgiram, desta vez do prédio de três andares à

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esquerda. José gritou, caindo ainda mais no desespero. Mas, para sua
surpresa, aqueles dois novos sujeitos não faziam parte do grupo de bandidos
— ao menos, não daquele que se prostrava à frente. De maneira rápida e
difícil de acompanhar, um tiroteio entre as duas duplas deu-se por iniciado.
Por instinto, o capacho e seu patrão correram para de trás da carruagem,
abrigando-se da chuva de chumbo; cada disparo parecia rasgar o ar, ecoando
no sertão. Por fim, os disparos cessaram, e o silêncio seco voltou a pairar
sobre a estrada. Acabou? Eles se mataram? Tomando coragem, César saiu do
abrigo, caminhando de volta à estrada, enquanto José continuava escondido.
Seus olhos escuros pousaram nos dois cadáveres estatelados — o
homem de pele amarela e seu amigo de face arruinada pelo disparo da
espingarda. Parados ao lado dos corpos, o homem de pele escura e seu
parceiro parrudo encaravam-no com curiosidade. Forçando-se a abrir a boca,
César disse:
— Vocês... vão nos matar, agora? — Sua voz saiu firme, deixando-o
orgulhoso.
O homem de pele escura pousou sua espingarda sobre o ombro, sorrindo.
— Não... somos apenas... defensores desta região. O senhor sabe bem
que é perigoso passar por esta estrada, ainda mais sob essas construções
abandonadas.... são ótimas tocas de bandidos.
Aliviado, César chamou José, avisando que estava tudo bem. Contente,
o capacho saiu de seu abrigo, estufando o peito, examinando os dois
pistoleiros de olhos semicerrados.
— É, vejo que vocês sabem usar esses ferros — comentou ele, olhando
de soslaio para os corpos estirados. — Se eu estivesse armado...
— Calma, José... — César ergueu uma mão, pedindo silêncio, uma ideia
se formando em sua mente. — Vocês dois... vejam bem... ando enfrentando
problemas com esses bandidos. Andam invadindo minhas terras com
frequência...
Compreendendo aonde o patrão queria chegar, José chichiou:
— Não é possível que o senhor esteja pensando nisso.
Ignorando as palavras do capacho, César continuou falando sua ideia, os
olhos brilhando de animação.
— Vocês fazem parte de algum grupo? Eu pago bem, preciso de ajuda.
É sabido que o policiamento da região é ruim.
Foi Nero quem respondeu:
— Olha, fazemos isso por justiça, não por dinheiro — ameaçou se virar,
César exclamou.

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A Última Pétala | Walace Rocha

— Não! Calma! Eu preciso de uma guarda, preciso de defensores em


minha fazenda: esposas, maridos, crianças... eles necessitam de proteção.
Uziel sorriu.
— Acho esse um bom motivo... nós não fazemos isso por dinheiro,
mas... aparenta ser um motivo nobre.
Nero voltou-se a César e José, a face inexpressiva.
— Ótimo... sei que foi uma surpresa, mas que tal conversarmos melhor
mais tarde? — César ergueu as mãos. — Em minha fazenda, hã? — O
homem passou o endereço. — Apareçam por lá ao entardecer... acredito que
nos daremos muito bem.
— É... — Nero cruzou os braços. — Acho que sim.
— Ótimo — César irradiava felicidade, enquanto José, parado ao lado,
mantinha uma expressão cerrada. — Aliás, me chamo César. Este ao meu
lado é José.
— Me chamo Benedito — Uziel disse. Apontou para Nero. — Este é
Matheus. Nos reuniremos com o grupo, e mais tarde, trataremos de negócios.
— Gesticulando, Uziel se virou, saindo da estrada seguido de Nero.
Sorrindo, César voltou à carruagem.
— O destino faz coisas boas para quem é bom, José.
— Ah... acho que o senhor foi precipitado demais ao pedir ajuda a esses
dois.
— Ora, mas precisamos de defensores. E o seu trabalho é outro, meu
amigo... Bom, já estamos atrasados demais. Vamos... — César fechou a porta
da carruagem e se acomodou.
Com uma expressão azeda, o capacho subiu no assento, pegou as rédeas
e pôs o veículo novamente em movimento, passando pelos corpos estatelados.

De volta ao terceiro andar da construção arruinada, Uziel ignorava os dois


cadáveres ainda estatelados, pousando seus olhos à distância, no ponto
diminuto que era a carruagem de César. Atrás, Nero resmungava, descontente
com a primeira fase do plano. O ponto desapareceu no horizonte seco, Uziel
se afastou da janela e pôs-se a fitar Nero, que ostentava uma carranca de
poucos amigos.
— Ei, foi mais fácil do que imaginávamos. Com um pequeno ato de
justiça, ganhamos ele. Hoje mesmo estaremos de volta à Fazenda Santana.
Inquieto, Nero caminhou pelo cômodo empoeirado, as armas
depositadas sobre uma mesa velha.
— É... o que você queria deu certo — Nero disse num tom afiado, sem
olhar para o amigo. — Mas tivemos de matar Frederico e Marcos... — de

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A Última Pétala | Walace Rocha

chofre, volveu-se a Uziel, os olhos faiscando. — E que porcaria foi aquela


dos nomes?
— Uma homenagem, apenas — Uziel arregalou os olhos, aproximando
alguns passos do amigo inquieto. — Nero, infelizmente tivemos de fazer
esse... pequeno sacrifício. Mas o ponta-pé inicial já foi dado. Estamos aqui...
— semicerrou os olhos. — Estamos aqui, e somos fantasmas que vieram do
passado para fazer justiça na vida daquele homem que diz ser temente a Deus
e à Virgem.
Nero fechou os olhos e respirou fundo. Girou o corpo e fitou as armas
depositadas à mesa.
— Será?
Uziel pousou a mão sobre o ombro do amigo.
— Sim... você está com a cabeça quente... mas tudo dará certo. Vamos,
vamos encontrar o pessoal. Finalmente sairemos daquele buraco fedorento....
Uziel pegou sua espingarda e se afastou. Nero pegou os revólveres,
examinando-os com certa aversão. Guardou-os na cintura e acompanhou o
amigo prédio afora.

No alto do campo florido, Luana observava o céu vespertino perder sua força
a cada instante que se passava. Desde àquele dia, colocara a visita ao lugar à
sua grade de tarefas diárias. Na verdade, era mais do que isso, visitar o
campo era uma terapia — ou ao menos, pensava que fosse. Continuava
sonhando com os dias passados de sua infância, sonhava com as poucas
brincadeiras que tivera e dos poucos amigos. Mas, por vezes, tais sonhos não
passavam de pesadelos, ao invés de boas lembranças. Cerrou os punhos e
respirou fundo, fechando os olhos por um instante. Quais seriam seus planos
dali em diante? Sabia bem que seu pai pretendia casá-la com alguém, mas...
O som dos passos leves de Alícia tiraram-na do devaneio. Luana virou-se,
encarando a amiga de pele escura, voluptuosa para sua idade, a face redonda
e um par de olhos brilhantes; pérolas noturnas. A sobrinha de Carmela,
trazida de longe apenas para ser sua amiga, mais uma das artimanhas de seu
pai. No entanto, gostava muito da moça.
— Fica cada vez mais fácil descobrir onde você está — Alícia disse,
com uma voz doce.
Luana forçou um sorriso.
— Tenho de melhorar, não é? Mas eu gosto deste lugar...
— Te faz lembrar daqueles seus amigos de infância? Devia parar de
pensar neles com tanta frequência. Digo... perdão.

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A Última Pétala | Walace Rocha

— Tudo bem — Luana voltou a fitar o céu. — É difícil se esquecer de


tudo que já passei... eu... eu... — Luana arquejou, voltando a cerrar os punhos.
— Aqui consigo aliviar meus pesares. Mas tudo bem... tudo bem... — voltou
a pousar os olhos sobre Alícia. — Acredito que você tenha algum recado.
Alícia sorriu.
— Sim... seu pai a chama. Parece que tem um comunicado importante...
Assentindo, Luana despediu-se do campo florido, e a passos largos,
desceu a ladeira, seguida de Alícia.

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A Última Pétala | Walace Rocha

Capítulo 12

Sob o sol poente, o homem de pele negra e cabelo curto se aproximava da


casa grande, atravessando a vasta Fazenda Santana. Uziel vinha
acompanhado de Nero e de outros dois amigos do bando, trotando em seus
cavalos. O rapaz analisava cada ponto do lugar, e ficara surpreso com as
mudanças. César realmente conseguiu investidores naquele jantar em que
minha mãe e tantas outras mulheres ajudaram a preparar. Levantando os
olhos, surpreendeu-se ainda mais ao deslumbrar as plantações; formiguinhas
moviam-se freneticamente, enquanto outras jaziam paradas, supervisionando.
Será que esses trabalhadores também passam pelo que meu pai passou?
Voltou os olhos, passando pelos dois amigos e, por fim, pousando-os em
Nero. O homem de rosto duro trotava calado, o olhar perdido à medida que
se aproximava da casa grande. Ele ainda não... está preparado. Uziel voltou
os olhos à frente. Mas eu estou. Pouco a pouco, a casa grande se destacava no
horizonte, preenchendo-o.
Os quatro cavaleiros atravessaram a entrada, e uma vez no pátio leste,
depararam-se com César, aguardando-os, imóvel e muito sorridente.
— Sejam bem-vindos! Desçam, sintam-se à vontade! — César irradiava
animação. Virou-se e gesticulou para que um criado viesse pegar os cavalos.
— Leve-os para o estábulo, sim? Cuide bem deles.
O criado assentiu, silencioso. Uziel e seus amigos desceram de suas
montarias, analisando o local.
— O senhor tem um belo pedaço de terra — Uziel comentou, passando
os olhos pelo pátio, recordando-se da última festa de São João que tivera de
participar.
Orgulhoso, César respondeu:
— Sim, tenho... trabalhei muito para conseguir chegar onde cheguei.
Mas... — baixou os olhos — são terras que estão ameaçadas, infelizmente.
— Imagino... — Nero disse, observando a casa grande.
— Bom... vamos subir. Temos muito o que conversar, senhores! —
César se virou e pôs-se a subir os degraus da mesma escada onde Uziel vira
Luana pela primeira vez, há oito anos.
E, enquanto seguia César escada acima, não pôde deixar de sentir certa
ansiedade e medo. Luana continuava vivendo ali, após todos aqueles anos?

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A Última Pétala | Walace Rocha

Se casara? Tornara-se mãe? Uziel engoliu em seco. Ela continuava... viva?


Meneando a cabeça e afastando todos os pensamentos, forçou-se a terminar
de subir os degraus. César terminou os degraus e atravessou a porta, parando
no meio da sala de estar. Volveu-se aos convidados, sorridente.
— Por favor, sentem-se.
Uziel fez como pedido. Atravessou o cômodo, escolheu um dos assentos
e, antes de se sentar, fitou uma jovem dama negra de soslaio. Quem é essa?
A moça em nada se parecia com uma criada. Vestia-se bem, como se fosse
filha de César.
— Ótimo... vocês querem beber algo?
Nero cruzou as pernas, os olhos flutuando pelo local.
— Um chá seria bom — disse ele.
— Excelente! Carmela, traga um bule de chá para cinco! — Gritou
César, e poucos minutos depois, a criada chegou.
Uziel carregou o cenho ao vê-la. Carmela continuava com seu físico
rechonchudo, parrudo, o rosto escuro firme, a pele esticada. A única
diferença notável eram seus cachos; fios grisalhos misturavam-se aos escuros.
A criada pousou a bandeja na mesa de centro, com o bule e os copos, e, ao se
levantar, passou os olhos escuros rapidamente pelos convidados, demorando-
se em Uziel, que não evitou seu olhar. Por fim, pedindo licença, a velha
criada se retirou do cômodo. Um César animado desatou a falar:
— Vamos, vamos, sintam-se à vontade para beber esse chá maravilhoso!
— E enquanto os homens se serviam, César continuava seu discurso. —
Como já adiantei a Benedito e Matheus, venho sofrendo algumas invasões de
bandidos... e como é sabido, o policiamento da cidade não é bom o suficiente
para cobrir todas as áreas rurais — semicerrou os olhos, passando pelos
pistoleiros. — Venho há muitos meses pensando numa solução... e eis que
Deus me coloca à prova! Bandidos queriam roubar minha carroça, mas fui
salvo pelas mãos da justiça de seus amigos — gesticulou para Uziel. —
Benedito tomou à frente e mostrou àqueles bandidos o castigo da lei — César
respirou fundo, erguendo ambas as mãos. — Então pensei... por que não
contratar esse jovem e seu bando de pistoleiros para ser minha guarda?
Ofereço muitos réis, comida e moradia. O que acham?
Nero pigarreou.
— Essa moradia... seria onde?
— Oh, vocês vão morar num novo espaço, construído há poucos anos.
Não fica tão longe daqui, e acredito que a localização seja ideal para realizar
patrulhas.

63
A Última Pétala | Walace Rocha

— Réis, moradia, comida... — Uziel tragou seu chá, pousou o copo


sobre a mesa e ergueu os olhos a César. — É algo realmente tentador...
Todos ficaram em silêncio, o nervosismo começava a tomar conta de
César. Por mais que José reprovasse a ideia da contratação dos pistoleiros,
eram a única opção real que tinham. E César não podia perdê-la. Pigarreando,
acabou com o silêncio.
— E então... se quiser, posso aumentar a quantia de réis.
— Acredito que está de bom tamanho — Uziel levantou-se. — Me
parece ótimo.
— Oh, excelente! — Animado, o Senhor da Fazenda se ergueu. —
Pedirei para que José os leve aos aposentos. Amanhã vocês podem dar uma
volta por aí, examinar e analisar a propriedade...
— Ótimo, realmente será muito divertido — Nero comentou, sem olhar
para César. — Mal sei como agradecer...
— Vocês terão muito tempo para agradecer — César disse, guiando-os
sala de estar afora, muito sorridente.
Em fila, seguiram o homem. E ao passar pelo umbral, Uziel virou o
rosto, vendo no corredor uma mulher esguia, de pele bronzeada e longos
cabelos cacheados. E ao vê-lo, seu par de olhos cor de mel cintilaram.

Em seu quarto, observando o ocaso, Luana continuava sem acreditar no que


vira. Fora um olhar de relance, sim, mas seu coração palpitou no mesmo
instante. Seria possível, após tantos anos, aquele homem ser Uziel, o garoto
que escalava árvores para ela? O garoto que... Não é possível. Não, não é. Os
anos podem tê-lo espichado, esculpido sua face e mudado a maneira como
olha para o mundo, mas os olhos, estes continuam os mesmos. Alguém bateu
à porta, fazendo-a se virar. Uma Carmela estranhamente preocupada se
aproximou, sustentando uma carranca amarelada.
— Senhorita...
— O que te preocupa, Carmela? — A dama se acercou da criada,
guiando-a à sua cama. As duas se sentaram. — Parece que viu um fantasma
— brincou Luana.
— Oh, Maria de Deus, acho que vi! — Exclamou Carmela num sussurro
apavorado. — Ouvi muitos rumores hoje dos demais empregados... seu
paizinho estava pensando em contratar pistoleiros para defender nossa terra...
e ele realmente... realmente os contratou.
— Eu sei...
Carmela aproximou seus lábios grossos da orelha da garota.

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— Sim... sim... mas quando servi o chá... um deles chamou minha


atenção. O pistoleiro negro... ele me lembrou daquele garoto que viveu aqui
há alguns anos... no mesmo instante, tive a certeza de que era ele! Certeza
absoluta! Mas... mas... — a respiração de Carmela começava a ficar pesada.
— Também tive essa impressão, Carmela... por ora, acho melhor manter
isso em segredo. Só entre nós, sim? Não quero arrumar confusão alguma.
Ainda arfando, Carmela aquiesceu, distanciando-se da dama e se
levantando da cama. À porta, uma Alícia agitada entrou.
— Vou... vou deixar Alícia com você — Carmela disse, ainda atordoada,
e se retirou do cômodo.
A sobrinha da criada acercou-se de Luana, sorrindo.
— Você viu os pistoleiros? — Disse ela, exaltada. — São bonitões, hein?
Especialmente o de pele escura... ele me passou um ar de... vingador, sabe?
— Alícia tremelicou ao se lembrar da bela visão que tivera.
— Hm.... é... — Luana se levantou, voltando à janela. Teria de se
encontrar com Uziel e ter certeza se realmente era ele.... e faria isso.
Às suas costas, Alícia continuava mergulhada em seu sonho de
pistoleiros.

Contra sua vontade, o capacho-líder guiou os quatro homens aos seus


aposentos; uma casa comprida, com inúmeros dormitórios, um pequeno
estábulo, um poço artesiano e uma boa localização na propriedade —
próximo à casa grande, da vila dos trabalhadores e das plantações. Ao descer
do cavalo e gesticular para a casa, José sentiu o estômago embrulhar. Como
alguém podia ser tão cego? Trabalhava na fazenda há mais de uma década, e
nunca tivera a oportunidade de dormir numa cama de verdade. No entanto, ali
estavam eles, os recém-chegados sentando-se à janela e contemplando a vista
que sempre batalhou para ver. Tudo bem, o patrão está coberto de animação.
Quando despertar, verá a realidade. Forçando um riso, começou a falar.
— Aqui estamos. Dentro da casa vocês encontrarão lampiões... acredito
que na cozinha deva ter algo para comer. Sintam-se à vontade. Amanhã
retorno para apresentar o local...
Uziel ergueu uma mão.
— Agradecemos muito, mas acredito que você já fez o bastante, José.
Pode deixar que, de agora em diante, nos viramos por aqui.
Dando de ombros, José assentiu. Gesticulou numa despedida, e dando
meia-volta com o cavalo, retornou à casa grande. Exibido.
Examinando a casa, Uziel desceu do cavalo. Levou-o a um ponto perto e
atou-o. Aquele lugar era no mínimo cem vezes melhor que o barraco em que

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viveram, na vila dos trabalhadores. E pôde sentir no ar a inveja de José.


Sorrindo, aproximou-se da porta de entrada, seguido de Nero.
— Você deve estar se divertindo — disse ele num tom indiferente. —
Assumo que também estou.
— Eu sei, meu amigo. Eu sei... — Uziel avançou pelo cômodo, parando
ao lado de uma mesa. Como José havia dito, um lampião jazia depositado
sobre sua superfície. Acendendo-o, Uziel voltou a falar: — Até então o plano
segue como planejado... vamos nos estabelecer aqui, somente nós quatro.
César gostou da gente, isso é inegável. Porém, sabemos que ele é sagaz...
— Então faremos o trabalho, e ganharemos ainda mais confiança dele,
até...
Uziel riu.
— Sim... até o momento em que faremos aquilo — levantou os olhos,
sua face era banhada pela luz bruxuleante. Os outros dois pistoleiros
entraram na casa. — Gabriel — chamou. — Providencie uma carta para
enviar ao restante do bando.
— Sim, senhor. O que deseja dizer?
— Um recado... — Uziel contornou a mesa. — Peça para que deixem a
área.
Nero arregalou os olhos, surpreso.
— Mas... por quê?
— Porque assim, os demais bandos se sentirão à vontade para invadir
qualquer propriedade. E certamente, invadirão esta fazenda — Uziel parou de
se mover, passando os olhos sobre cada rosto. — E com isso, poderemos
matar sem remorso.

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Capítulo 13

Assim que o sol se ergueu no horizonte serrilhado, César já se encontrava à


porta da nova casa de Uziel, extremamente animado. Montado em seu cavalo,
o Senhor da Fazenda fazia questão de mostrar seus setores aos defensores.
Disfarçando a expressão azeda, Uziel e Nero pegaram seus cavalos, e o
passeio deu-se por iniciado.
— José havia me dito que vocês queriam sair por aí e explorar todo o
lugar sozinhos... e não ligo, juro! Mas vocês são mais que convidados, vejam
bem! — Trotando pela estrada, César seguia à frente dos dois.
— Sem problema, o senhor é quem manda — Nero disse, os olhos
pousados no horizonte.
— Certo... vamos lá — elevando a velocidade do cavalo, César guiou os
dois pistoleiros por uma trilha até então desconhecida a Uziel.
Deve ser nova, pensou ele. César levou-os à vila dos trabalhadores,
passando por mais algumas trilhas inéditas. Lá, uma certa gama de
sentimentos apertou o coração de Uziel. Olhou para o amigo, e viu que o
mesmo acontecia com Nero. Tentando manter uma expressão indiferente,
atravessaram a vila, atraindo olhares — crianças animadas e esposas
assustadas. Por um caminho conhecido, rumaram em direção às plantações. E,
assim como na vila dos trabalhadores, Uziel sentiu-se desanimado ao ver que
quase nada mudara: homens semeavam, mulas puxavam aradores e capachos
gritavam ordens. Semicerrando os olhos, pôde distinguir José. O homem
franzino notou a visita, mas ignorou-os. César voltou a elevar a velocidade
do cavalo, gesticulando de um lado a outro os novos pedaços de terra.
— Expandi muito esta área nos últimos anos — disse ele. — Mas
assumo que não consegui deixar a infraestrutura da fazenda do jeito que
queria. A guerra atrapalhou um pouco... e até mesmo perdi um cargo político,
dá pra acreditar?!
— É... foi algo inesperado — comentou Nero.
Os três fizeram uma curva à direita, e puseram-se a subir um morro.
Uziel olhou ao redor mais uma vez, e em todos os cantos, haviam grupos de
trabalhadores. Lembrou-se da pequena vila, e o pensamento de punhados
sobre punhados de pessoas vivendo em cada cabana apertada causou-lhe
ânsia. Estes desgraçados devem estar vivendo como ratos. Os olhos

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continuaram correndo, parando numa área afastada da plantação,


estranhamente deserta. Nero acompanhou seu olhar, e com uma voz baixa e
extremamente controlada, perguntou:
— Aquela área afastada...
César carregou o cenho; sem olhar para a direção indicada, respondeu:
— Um lugar de mau-agouro. Um cemitério improvisado.
Um cemitério? Então... Cerrando os punhos e controlando-se ao
máximo, Nero falou.
— Interessante. Podemos dar uma olhada?
— Não faço questão de ir até lá... mas sintam-se à vontade. Depois do
almoço, podemos continuar o passeio.
— Ótimo... não vamos demorar — Uziel disse.
Abandonando a feição fechada e voltando a sorrir, César aquiesceu.
— Excelente, senhores! Tomem cuidado... estarei na casa grande, caso
precisem de algo — dito isso, voltou a trotar aclive acima.
Assim que o homem desapareceu, os dois amigos viraram-se em direção
ao cemitério, e apressados, galoparam. Cruzes mal-feitas cobriam a área
desolada, extremamente seca, causando arrepios em Uziel. Parou o cavalo e
desceu, sendo assolado por uma onda de tristeza repentina.
— É longo, não? — Comentou Nero, examinando as dezenas e dezenas
de cruzes que pareciam estender-se sem fim no horizonte inóspito. —
Quantas... pessoas morreram aqui?
Uziel pôs-se a caminhar por entre as cruzes não-identificadas, sendo
tragado ainda mais pela tristeza absoluta e por um remorso demoníaco.
— Nossos pais morreram... e foram enterrados aqui. Como se não
fossem ninguém. Aqui vieram pela esperança de uma vida melhor, e aqui
morreram com esse sonho... — parou de caminhar, os olhos agitados indo de
uma cruz à outra. — Aqui, foram assassinados! — Mordeu os lábios e se
virou a Nero, o olhar chispando de ódio. — Vê?! vê, Nero?!
Nero recuou um passo, assustado com a cólera súbita do amigo.
— Sim, eu vejo... vamos... continuar caminhando.
Aquiescendo, voltaram a caminhar por entre as cruzes. De fato, aquela
área parecia possuir algo maligno, uma energia negativa. Ignorando os
calafrios, Uziel contava as cruzes. E perdeu a conta. À frente, alguém jazia
ajoelhado, orando de frente a uma das cruzes.
— Aquele... aquele rapaz — apertando o passo, Nero avançou à frente.
Escutando os passos agitados sobre a terra seca, o rapaz de pele clara e
rosto oval interrompeu sua oração, levantando a cabeça e se virando aos dois
pistoleiros.

68
A Última Pétala | Walace Rocha

— Quem... quem são vocês? — Perguntou ele, assustado.


— Não se lembra da gente? — Nero sorriu. — Pois nós nos lembramos
bem de você, Rafael, filho de Tadeu.
Ao escutar as palavras de Nero, Uziel foi acometido por uma paralisia.
À frente encontrava-se o filho de Tadeu... Tadeu, o traidor. Tadeu, o bastardo.
Sem controlar os lábios, Uziel disse num jorro.
— Leve-nos ao seu pai. Acredito que no caminho dê para conversarmos
um pouco...
Ainda assustado, o rapaz acanhado aquiesceu, compreendendo, aos
poucos, o que estava acontecendo.

Dopado por uma angústia anormal, Uziel seguiu Rafael pela estrada da
fazenda até a vila dos trabalhadores. Com Nero a seu lado, voltaram mais
uma vez a passar pelo antigo pedaço de terra apinhado de novas pessoas — e
ainda assim com tantas lembranças. Seguiram pela primeira rua e viraram na
segunda, parando diante de uma cabana onde Rafael morava. O rapaz estava
inquieto, e agora, sob à forte luz matinal, Uziel pôde notar sua estranha feição;
trêmulo e levemente contorcido, como se o rapaz estivesse sentindo dores no
estômago.
— Ainda mora aqui? — Comentou Nero, examinando a moradia com
olhos injetados. — Após tudo aquilo... continuam morando aqui? — Esboçou
um leve sorriso de escárnio. — Ah...
— Espero que seu pai esteja acordado — falou Uziel, passando à frente
de Rafael e dirigindo-se à porta de entrada. Pousou a mão na velha maçaneta
e girou-a, abrindo-a e entrando na cozinha de supetão.
— Filho, já voltou? — Perguntou um homem franzino e careca,
virando-se para trás. Ao ver que não se tratava de seu filho, arregalou os
olhos miúdos, fundos em seu rosto arruinado pela insônia e o cansaço sem
limite. — Você... quem é você...? — Tadeu recuou um passo, batendo as
costas na pia.
— Quem eu sou? Não reconhece? — Uziel avançou um passo. Um
instante depois, Nero entrou, seguido de Rafael, este ainda mais inquieto. —
Mas e ele, reconhece? — Apontou para Nero.
Tadeu continuava de olhos arregalados, movendo-os de Nero a Uziel. E,
assim como seu filho no cemitério, aos poucos, ia associando o que estava
acontecendo.
— Não... não é possível... não é possível! — Gaguejou ele.
— Ah, mas é muito possível, sim! — Uziel voltou a avançar mais um
passo. — Olha, sinceramente... pensei que estivesse em um lugar melhor.

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A Última Pétala | Walace Rocha

Mas me enganei... após aquela noite, você retornou para cá, retornou à velha
rotina. Não se deu bem.
— Eu... eu escolhi viver.
Foi a vez de Nero avançar alguns passos em direção ao homem, o cenho
carregado.
— Escolheu viver, mas parece que continua preso. Talvez a morte pela
liberdade teria sido melhor.
— Vocês... — Tadeu suspirou, criando coragem para avançar pela
cozinha. Puxou uma cadeira e se sentou, arfando. — Eu paguei por aquela
escolha... minha esposa morreu de tísica há alguns anos. E Rafael está
doente... Fui dispensado do trabalho no campo, mas como podem ver, não me
encontro numa situação muito melhor — Tadeu resfolegou, fechou os olhos
por alguns segundos e voltou a abri-los, levantando-os aos dois fantasmas do
passado. — Vieram me matar?
Uziel virou-se à mesa, aproximando-se de Tadeu.
— A minha vontade era essa, tenho de ser sincero. Mas... me parece que
a vida já cuidou disso. Você já sofreu quase o suficiente.
— Quase? — Tadeu franziu o cenho, e um segundo depois, foi acertado
por um soco de Uziel; o punho cerrado chocou-se contra seu rosto, fazendo-o
ver estrelas. O homem foi arremessado contra o chão.
— Meu Deus, pai! — Rafael gritou, assustado, e correu para socorrê-lo.
— O que vocês querem, o que... o que...
— Limpe esse sangue da boca de seu pai — Nero disse, olhando para
Tadeu com desprezo. — E fiquem calados... se alguém souber da gente —
gesticulou para Uziel, que se aproximara —, então voltaremos aqui para
finalizar o que a vida ainda não teve a decência de terminar.
E deixando um Tadeu ensanguentado no chão e seu filho assustado, os
dois pistoleiros deixaram a cabana, batendo a porta. Uziel queria mais, queria
voltar e esmurrar Tadeu por mais alguns minutos, mas sabia bem que tal
coisa não lhe traria prazer algum. Talvez, quando matarmos José, a coisa
toda possa ser mais divertida. Afastaram-se da cabana, atraindo olhares, e
seguiram pela rua de terra. Adiante, a duas dezenas de metros, duas moças
encontravam-se paradas, fitando-os.
— Aquela...
— Sim — Uziel disse. — Nero... me espere na saída da vila, ao lado dos
cavalos, sim?
Aquiescendo, o amigo continuou seguindo, enquanto Uziel se acercava
das duas mulheres com uma expressão resoluta. Alícia mantinha-se neutra,
mas seus olhos cintilantes denunciavam o prazer da moça em vê-lo. No

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A Última Pétala | Walace Rocha

entanto, Uziel ignorou-a, fixando seus olhos e toda sua atenção na mulher
esguia de pele bronzeada e olhos cor de mel à sua frente. Os cabelos
cacheados agitavam-se sob a leve brisa matinal. Os dois se encararam durante
alguns segundos, analisando-se em silêncio. Por fim, Luana pediu a Alícia
para que ficasse ali, aguardando-a, e começou a caminhar. Uziel seguiu-a. E
mergulhados em silêncio, caminharam vila afora, por uma trilha há muito
conhecida por ele, chegando, poucos minutos depois, ao campo florido.
Ali, Uziel se impressionou ao ver como o lugar continuava belo; um
espaço deslocado da realidade cruel a qual estavam habituados a viver. Em
seu vestido longo e pesado, Luana se virou, os olhos trêmulos em sua face
angulosa.
— Este à minha frente... é o mesmo Uziel de que me lembro? —
Perguntou ela numa voz calma, mas que escondia desespero.
— Esta à minha frente é a mesma Luana? — Uziel avançou um passo.
— Acredito que a resposta seja sim e não. O tempo tratou de mudar seu
corpo e refinar sua alma, para o bem ou para o mal...
Novamente, o silêncio voltou a pairar entre os dois. Então, Luana
desviou o olhar, voltando a falar.
— Só fui saber o que realmente havia acontecido naquela noite alguns
anos depois. Antes disso, ficava me perguntando... — voltou a encarar Uziel
— aonde você tinha ido, por que me abandonou... mas...
— Sabe bem que jamais lhe abandonaria. Mas... — cerrou os punhos. —
Realmente, após aquela noite, muita coisa aconteceu. Poucas crianças e mães
escaparam. Minha mãe morreu algumas semanas depois... acredito que ela
quis partir para se reencontrar com meu pai. E as coisas que tivemos de
fazer... — fechou os olhos, suspirando. — Praticamente, me tornei um
bandido. Tudo que o meu pai mais desprezava...
— Eu... eu... — Luana balbuciava, seus olhos lacrimejaram. — E os
seus amigos? Nero e Sofia?
— Nero me acompanhou nessa vida de armas... Sofia não se deu tão
mal... engravidou de um lojista qualquer e foi morar em algum estado do
sudeste. Perdi contato com o restante, mas não importa. Aqui estamos nós.
— É... aqui estamos nós... meu pai não o reconheceu. Que nome deu a
ele?
— Benedito. Nero se chama Matheus.
Luana esboçou um leve sorriso.
— Ironia do destino.
Sem se conter, Uziel se aproximou, envolvendo Luana com seus braços
e aproximando seus lábios, mas a mulher se desvencilhou, recuando.

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A Última Pétala | Walace Rocha

— Perdão... é que... estou prometida.


Uziel arregalou os olhos por um instante, então carregou o cenho.
— Imaginei...
— Meu pai ainda sonha com uma vida política. E garantiu isso me
oferecendo em troca... um homem da alta-sociedade...
— E aposto que é muito melhor do que um pistoleiro. Olha... foi bom te
ver... se me dá licença, retornarei à vila. Nero me espera, e temos muito o que
fazer — virando-se, Uziel deixou o campo; seu coração se apertava contra
seu peito, e por um momento, nem mesmo a ideia de vingança lhe pareceu
trazer felicidade.

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A Última Pétala | Walace Rocha

Capítulo 14

Uziel analisava a planta da Fazenda Santana esticada sobre a mesa de centro,


sentado num canto do sofá. À sua frente, um de seus subordinados e Nero
franziam o cenho, acompanhando a lógica do líder. Agora que já haviam
concluído a fase inicial de reconhecimento, era o momento de iniciar as
rondas.
— Por enquanto, somos apenas quatro — Uziel disse, semicerrando os
olhos enquanto passava-os sobre os desenhos da planta. — Teremos de cobrir
um belo espaço... dividiremos toda a propriedade em quatro partes, e faremos
rondas a cada intervalo de horas. À noite, apenas dois de nós faremos essas
rondas, mas cobriremos um espaço maior.
— Então essas rondas noturnas... serão escaladas? — Perguntou o
subordinado.
— Sim — respondeu Uziel, sem despregar os olhos da planta. — Uma
dupla por noite.
Nero cruzou os braços, erguendo os olhos a Uziel.
— Acredito que quando o restante do bando estiver aqui, a coisa toda
ficará mais fácil.
— Sim, mas por ora não podemos fazer isso... confiança, é disso que
precisamos — Uziel se levantou, afastando-se da mesa de centro. — Vamos
começar, depois planejamos os próximos passos. Avise seu amigo, sim? —
Disse ao subordinado, que se ergueu, assentindo, e saiu da sala. Uziel girou
os calcanhares e dirigiu-se à porta, Nero veio em seu encalço.
Atravessaram a porta e pisaram na terra úmida da manhã, o ar fresco
preencheu os pulmões dos dois homens. De chofre, um homem franzino
surgiu, saindo de trás do estábulo. José. Ao vê-lo, Uziel parou, mantendo-se
indiferente.
— Bom dia, bom dia, senhores!
— Bom dia — respondeu Nero, cruzando os braços. — O que faz aqui
tão cedo?
— Ora, o mesmo que vocês: trabalhando! — Respondeu o capacho de
César, os olhos brilhando de maneira ordinária. — Vão começar as rondas?
— Sim — Uziel voltou a caminhar, passando pelo homem franzino. —
Temos um perímetro extenso para cobrir... temos de começar cedo — parou

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A Última Pétala | Walace Rocha

de frente à porta do estábulo, virando-se para encarar o capacho. — Precisa


de algo?
— Oh, não, não... apenas passei para conferir como estavam. Não vou
atrapalhar... — ajeitou o chapéu. — Tenham um bom dia... Matheus e
Benedito — dito isso, girou os calcanhares e seguiu pela estrada, afastando-
se da residência dos pistoleiros.
Voltando a se mover, Nero acercou-se do amigo.
— Ele estava nos espionando.
— Eu sei... vamos ignorá-lo e fazer o nosso trabalho. Apenas isso —
Uziel abriu a porta-dupla do estábulo e entrou, aproximando-se de seu cavalo.
Aquele seria um dia longo.

Os capachos supervisionavam os trabalhadores; aradores eram puxados,


covas abertas e fechadas ritmicamente. Trotando em seu cavalo, César
observava-os, orgulhoso. Agora, possuía ainda mais empregados, cobrindo
centenas e centenas de metros quadrados. E, naquele ano, a colheita seria
ainda maior. Um recorde a cada ano. Aquilo alegrava-o imensamente,
fazendo-o se esquecer dos problemas, dos planos que não seguiram
corretamente. Moveu os olhos e, ao longe, viu um dos pistoleiros fazendo sua
ronda. Não pôde deixar se sorrir. Puxou a rédea e se afastou da plantação,
entrando numa trilha e elevando o trote a galope.
Passou pelo pistoleiro de Benedito, cumprimentando-o com um aceno
de mão, e continuou seguindo pela trilha. Metros depois, saiu na estrada,
ainda galopando avidamente enquanto contemplava o céu absurdamente azul
e sem nuvens. Pela primeira vez em anos, o Senhor da Fazenda sentia-se
pleno, extasiado. E as coisas continuarão assim. Baixou os olhos à estrada,
reduzindo a velocidade do galope. À frente, sua casa se estendia,
preenchendo a paisagem. Trotando, aproximou-se, saindo da estrada e
entrando no pátio da residência.
Um homem se aproximou, César desceu do cavalo e gesticulou para que
ele levasse o garanhão para o estábulo. Enérgico, atravessou o pátio, subindo
os degraus de entrada e parando à varanda. Abigail, sua esposa, jazia sentada
na cadeira de balanço, quieta, o olhar perdido.
— Mulher, a partir de hoje, todos nós estaremos plenamente seguros!
Defensores rondam nossas terras, os invasores não ousarão pisar aqui
novamente! — Exclamou César.
Abigail virou o rosto, os olhos semicerrados numa expressão de tédio
absoluto.
— Oh... acredito que... isso seja bom.

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A Última Pétala | Walace Rocha

Aborrecendo-se com a falta de animação da esposa, César deixou-a na


varanda, entrando na casa. Atravessou os cômodos e prostrou-se à frente do
quarto de Luana. Bateu na porta e entrou, encontrando sua filha sentada na
beirada da cama. Moveu os olhos e viu que Alícia também se encontrava no
cômodo, ao lado da janela.
— Perdão, não queria interrompê-las.
— Tudo bem, senhor — Alícia se afastou da janela, mas César ergueu
uma das mãos.
— Tudo bem, fique, fique. O assunto será rápido... — César pousou os
olhos sobre Luana, a jovem mulher começava a se sentir nervosa. — Filha...
agora que tudo está finalmente se resolvendo, poderíamos seguir com aquele
combinado.
Luana se remexeu, incomodada com o assunto.
— Papai... o senhor fala de casamento, mas nem mesmo sei quem será o
noivo.
César caminhou pelo quarto, desviando o olhar para o chão.
— Como bem sabe, planejei esse casamento com o intuito de fazer o
nome de nossa família crescer — voltou-se à filha, ignorando a presença de
Alícia. — Uma pessoa da alta-sociedade... é sabido que o plano original não
pôde ser seguido, mas graças às minhas orações, Deus colocou um homem
em meus planos...
— E que seria...?
— Doutor Ramirez. Ele ficou viúvo recentemente. Sabe bem disso... ele
precisa de uma nova esposa, e você.... você é a opção perfeita.
Luana voltou a se remexer, sentindo-se ainda mais incomodada.
Ramirez era muitos anos mais velha do que ela, tinha idade para ser seu pai,
talvez seu avô. Sabia, sim, que seu pai pretendia casá-la com um homem
maduro, mas ao escutar o nome do doutor, foi tomada pelo desânimo.
Notando sua expressão de tristeza, César recuou um passo, tentando sorrir.
— Pode parecer ruim agora, filha, mas pense nas inúmeras vantagens
que essa união trará a nós! — César exclamou. — Bom... deixarei que
absorva essa ideia. Sei que o baque é forte... — assentindo para si mesmo,
César despediu-se das garotas e saiu do quarto, fechando a porta.
Luana continuava absorta, entorpecida pela revelação. Alícia se
aproximou, sorrindo.
— Luana... isso é ótimo. Ramirez é bem-falado, um homem da
sociedade mais fina, de fato.
E um velho. Luana se ergueu, caminhando até a janela. Precisava de ar,
precisava organizar os pensamentos. Mesmo tendo a ideia do casamento em

75
A Última Pétala | Walace Rocha

mente, foi um choque, ainda assim... Um choque... Respirou fundo,


observando o céu mazelado, enquanto Alícia continuava falando sobre a
grandiosidade que era se casar com um homem renomado. Perdendo a
paciência, virou-se, arregalando os olhos para a amiga.
— Alícia... acho melhor você se retirar. Estou precisando ficar um
tempo sozinha...
Abandonando a expressão alegre, Alícia se retraiu.
— Sim... perdão — acanhada, a garota se virou, dirigindo-se à porta. —
Se precisar de algo... — não terminou a frase, apenas abriu a porta e saiu do
quarto, deixando Luana sozinha com sua sina.

Tadeu mantinha os olhos fixos na superfície lisa da mesa escura, pensando no


retorno dos garotos que conseguiram escapar do fim. E agora voltaram para
me punir. Vinha sonhando com Matheus e Benedito há meses, sonhos
comuns, mas quando acordou naquela manhã, estava trêmulo, sentindo
calafrios. Queria deixar de sonhar com os amigos. No entanto... retornaram
para assombrar minhas noites. Resfolegando, afastou-se da mesa,
levantando-se. Seu rosto ainda doía por conta do murro que levara de Uziel.
O garoto ainda foi bondoso... eu merecia mais. Absorto em pensamentos,
dirigiu-se à porta, saindo de sua velha casa apertada. Seu filho estava fora,
provavelmente mendigando pão aos vizinhos. Tadeu odiava isso, odiava o
fato de tanto ele, quanto o filho, não passarem de inválidos. César enviava
uma espécie de cesta quinzenal, mas a comida era pouca, e tinham de
racioná-la para durar os quinze dias.
Meneando a cabeça, Tadeu forçou-se a apertar o passo, seguindo pela
rua de terra batida. Passou pelas crianças, pelos olhares perfurantes das
esposas dos trabalhadores, e saiu da vila, caminhando errantemente.
Precisava pensar, precisava arcar com o peso dos erros passados. Mas como?
Moveu os olhos até o horizonte, e, como que vendo toda a apreensão de seu
coração, Deus enviou uma solução. É isso! Abriu um sorriso. É isso! E
aumentou a velocidade de sua caminhada, desatando a correr pela estrada.

Uziel terminava de limpar sua espingarda, virou-a sobre a mesa e finalizou os


últimos ajustes. Atou-a ao ombro, esticou a mão e pegou o chapéu,
colocando-o sobre a cabeça. Do corredor, Nero se aproximou, fitando-o com
curiosidade.
— Fará outra ronda?
— Sim — Uziel se afastou da mesa de centro. — A última antes do
ocaso. Quer vir?

76
A Última Pétala | Walace Rocha

— Sim... vou, sim. Sinceramente, estou começando a me sentir


entediado.
Uziel assentiu. Nero pegou seu chapéu, conferiu o revólver no coldre e
caminhou sala afora.

Carmela ajeitava seu travesseiro, depositando-o sobre a cama. Tivera um dia


tranquilo na casa, mas sentia-se estranhamente cansada. Sentia-se preocupada,
também. Abigail, sua patroa, vinha se afastando nas últimas semanas, ficando
reclusa em seu próprio mundo, quase como se... Não, nada de pensar
besteira, Carmela. A mulher se afastou da cama e virou-se ao guarda-roupa,
abrindo-o e pegando um cobertor. Ao aproximar-se novamente da cama,
escutou toques rápidos contra sua porta. Será Alícia? Suspirando, abriu-a,
deparando-se com uma Luana de expressão cansada.
— Oh, Luana... entre — gesticulou, a moça entrou e Carmela fechou a
porta. — O que a trás ao meu humilde quarto? Está passando mal?
A garota simplesmente atravessou o cômodo, prostrando-se ao lado da
janela fechada, sem olhar para a criada.
— Eu.. eu estou bem — suspirou e levantou os olhos à Carmela. — Vim
apenas desabafar sobre algo que vem me incomodando...
Carmela se acercou da dama, pousando uma das mãos sobre seu ombro.
— Imagino o que seja.. sente-se, vamos conversar... — as duas
sentaram-se na beirada da cama. — Desabafe... fará bem. Sabe que pode
contar comigo.
Luana suspirou.
— É... pode parecer tolice... mas eu sentia algo a respeito daquelas
crianças que viveram aqui, há oito anos. Eu gostava delas. Em especial...
— Sim, sim, prossiga...
— Por anos, pensei que todas estivessem mortas, ou simplesmente
desaparecidas. E após algum tempo, me contentei com essa ideia, e tomei a
decisão de seguir em frente, uma nova vida. E foi o que fiz. Até mesmo
aceitei a ideia do tal casamento de meu pai. Mas... — fechou os olhos. — Ele
voltou. Uziel voltou, e com ele, tudo aquilo que sentia. Por um instante, me
senti dividida... confusa. Digo, estou prometida ao velho médico, e...
Instintivamente, Carmela puxou a garota num abraço afetivo, fazendo-
lhe carinho.
— Oh, querida... imagino bem o que esteja sentindo. De um lado, a
vontade de seu pai. E do outro, sua própria vontade. Você quer seguir uma
nova vida, e pode muito bem fazer isso, mas... acredito que, antes de seguir

77
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com algo novo, antes de qualquer coisa... é necessário se ajustar com as


pendências do passado.
Luana resfolegou e se desvencilhou do abraço, encarando Carmela com
olhos trêmulos.
— Tem razão... preciso resolver essas pendências... Carmela, a senhora
poderia me ajudar?
A criada sorriu.
— É claro, querida. É claro...

Sob à luz das estrelas, Tadeu continuava caminhando errantemente pelas


terras de César, pensativo. Vagava pelo mato, cortando trilhas e parando para
respirar vez ou outra. Então, voltou a seguir novamente, avançando a passos
largos. Um som leve sussurrava no ar, e de imediato, reconheceu-o,
dirigindo-se a ele. O rio. Parou à margem, fitando-o correr calmamente. Água.
Estou sujo, sim... estou muito sujo. Acho que poderia me lavar... eu tô sujo
demais... Retirando seus sapatos gastos, Tadeu arqueou os joelhos e pulou
para dentro da água fria. Estava, de fato, muito sujo, e precisava se lavar.

Uziel e Nero contornaram uma das alas da plantação, trotando sob o véu da
noite. Um silêncio aterrador dominava a Fazenda Santana, assim como o breu
praticamente absoluto. De olhos semicerrados, os dois analisavam o cenário
de um canto a outro. Avançaram mais alguns metros, e de esguelha, Nero
notou algo estranho ao longe. Concentrou-se, sacando suas armas. Uma luz
bruxuleante parecia flutuar, e, de supetão, mais luzes surgiram estrada abaixo.
Imediatamente, o homem engatilhou seus revólveres, preparando-se.
— Uziel — chamou Nero. — Invasores!
Uziel moveu seus olhos, sacando a espingarda. O grupo de luzes se
aproximava, e como que ensaiado, a dupla de pistoleiros pôs-se a disparar,
iniciando um tiroteio.

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A Última Pétala | Walace Rocha

Capítulo 15

Cada disparo parecia rasgar o céu noturno. Com seu cavalo, Uziel galopava
ferozmente estrada abaixo, rotacionando o grupo invasor enquanto executava
seus disparos com precisão. Engatilhar, disparar, recarregar. Do outro lado,
Nero efetuava disparos rápidos com seus revólveres. A dupla aproveitara o
fator surpresa, e, aos poucos, os bandidos recuavam. O ar tremulou, e Uziel
sentiu um tiro passar de raspão em seu braço direito. No entanto, o susto não
fora suficiente para fazê-lo parar. Continuou sua tarefa de se cercar do grupo.
Por fim, recuaram, gritando, o pandemônio preenchendo à noite. Uziel
parou de galopar, semicerrando os olhos e se divertindo com a visão das
luzes bruxuleantes ficando cada vez mais distantes, desaparecendo fazenda
afora. Gritou para o amigo, e este se aproximou, trotando.
— Eles não esperavam por isso, hein? — Nero disse, rindo, as armas
ainda empunhadas.
— Não, não esperavam — Uziel sorria. Há muito não se divertia numa
troca de tiros. Voltou a atar a espingarda às costas. — Mas eles voltarão, e
mais preparados.
— Precisamos chamar os outros.
— Sim — Uziel assentiu.
— Ei! — Gritou alguém, estrada acima. Os dois se viraram,
semicerrando os olhos. — Dava para escutar os disparos da casa grande —
César disse, aproximando-se em seu cavalo, junto de José. — Eram eles, não
é? — Parou seu cavalo a poucos metros da dupla.
— Sim — respondeu Nero. — Eram eles, os seus invasores, mas... —
riu. — Eles não esperavam nos encontrar.
— É... — a animação de César era palpável. — Fizeram um bom
trabalho colocando-os pra correr.
— Sim, mas como dizia a... Matheus — Uziel disse —, acredito que
voltarão. E voltarão preparados.
— É, mas nada que vocês não deem conta, acredito — César disse,
descontraído. — Vocês fizeram um trabalho excelente! Não é, José?
José fitava o horizonte tomado pelo breu. Com um grunhido, respondeu:
— É...

79
A Última Pétala | Walace Rocha

— Bom, não precisa se preocupar, senhor César — Nero disse. —


Voltaremos a patrulhar, então pode voltar a dormir tranquilamente.
Aquilo soou como música aos ouvidos do homem.
— Isto é ótimo.
E com um José carrancudo, o Senhor da Fazenda retornou, enquanto
seus pistoleiros voltavam ao trabalho.

Ao acordar, Rafael sentiu a realidade a seu redor tremular. Voltou a se deitar


e respirou fundo, tentando, mais uma vez, repetir o processo. Levantou-se
devagar, virou o corpo e pousou os pés no chão. Por conta de sua doença,
sentia-se cada vez mais fraco, e temia o dia em que levantar não seria mais
possível. Passou os olhos pelo quarto silencioso, e franziu o cenho ao ver a
cama de seu pai vazia. Ele já acordou? De pé, caminhou à cozinha. Não, ele
nem ao menos dormiu aqui. Ignorando o fogão à lenha, bebericou apenas um
gole d’água. Virou-se e saiu do cômodo, pisando na rua de terra já agitada
àquela hora. Olhou de um lado a outro, e vendo uma das vizinhas,
aproximou-se.
— Bom dia — cumprimentou ele. A vizinha, uma mulher de meia-idade,
recuou um passo ao vê-lo. — Por acaso, viu meu pai?
— Bom dia, Rafael — disse ela num tom indiferente. — Eu...
sinceramente, não sei dizer. As crianças disseram que ele estava vagando por
aí ontem — a mulher semicerrou os olhos. — Elas estavam assustadas, então
se o ver, peça-o para não fazer mais isso, sim?
Rafael aquiesceu, afastando-se e se virando, distanciando-se da mulher.
Seu pai vagava há mais de um dia, e seu peito começava a queimar, temendo
o pior. E agora... onde conseguirei ajuda? Ergueu os olhos ao céu e, um
segundo depois, teve uma ideia.

Uziel bebericava seu café quente e amargo, sentado em sua varanda.


Patrulhara as terras de César até pouco antes de o sol raiar, dormira pouco
mais de três horas e já se encontrava ali, desperto. Observava a estrada vazia
que passava pela sua residência, o horizonte calmo. Fechou os olhos e tragou
mais um gole do café. Escutou a porta se abrindo, e um Nero contente saiu,
parando no meio da varanda.
— Que noite, hein?
— Sim... que noite.
Na estrada até então vazia, alguns dos trabalhadores de César surgiram,
aproximando-se de maneira tímida da varanda dos pistoleiros. E

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A Última Pétala | Walace Rocha

respeitosamente, pararam à entrada. Uziel e Nero fitaram-nos com


curiosidade.
— Bom dia — disse um homem de aparência cansada. — Soubemos do
que aconteceu nessa noite... e gostaríamos de agradecer. Vocês defenderam
estas terras... — sorriu. — Obrigado!
Uziel gesticulou, agradecendo o elogio.
— Eu sou apenas mais um nesta fazenda. Fiz meu trabalho, assim como
meu amigo aqui. Mas sinto-me feliz em saber que sentem-se seguros —
sorriu.
O homem e seu grupo retribuíram o sorriso, assentiram e se retiraram,
descendo estrada abaixo. Nero assobiou, surpreso.
— Somo heróis?
— Filosoficamente, estamos longe disso. Mas, sim, somos — respondeu
Uziel, terminando de tragar seu café.
— Ótimo, acho que nossos pais... sentiriam orgulho — saiu da varanda.
— Vou trotar um pouco... qualquer coisa, dê um jeito de me chamar, sim?
Uziel gesticulou, despreocupado, e Nero seguiu até o estábulo. Heróis?
Uziel se levantou, e com um riso amargo, voltou a entrar em sua casa.

O sol ascendia no céu, tornando a manhã quente. Com o pouco vento que
soprava, José ajeitou o chapéu, movendo os olhos sobre os trabalhadores.
Agora, eram mais do que foram em anos, mas sua supervisão era a mesma.
Ali, nas plantações, todos o temiam, e gostava disso. Mas estão começando a
perder esse medo. Girou os calcanhares e desatou a andar, contornando um
grupo de trabalhadores, que olhavam-no de esguelha. O que incomodava o
capacho era o fato de perder sua relevância como homem perante César;
sempre cuidou de tudo na fazenda, incluindo a segurança, mas... cerrou os
punhos, e vendo um outro capacho, aproximou-se.
— José — o capacho alto cumprimentou-o com um aceno de cabeça.
— Maicon... estamos com um problema — José disse num tom baixo.
— Estamos? — Maicon franziu o cenho.
— Sim. Estamos perdendo nosso valor neste lugar. E os culpados são
aqueles pistoleiros que o patrão contratou. Pode não confiar em mim agora,
mas verá que, pouco a pouco, estas pessoas — apontou para os trabalhadores
— perderão o medo que sentem de nós.
Maicon desviou o olhar, incomodado com o fato.
— E o que podemos fazer a respeito?
— O que podemos fazer? — José arregalou os olhos, fixando-os em
Maicon. — Um plano para atrapalhá-los seria bom... fazer César enxergá-los

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A Última Pétala | Walace Rocha

de outra forma. É... seria algo excelente — José esboçou um leve sorriso,
amenizando sua expressão ensandecida. — Reúna os demais para uma
conversa mais tarde, sim?
Maicon assentiu, e José se distanciou, voltando a supervisionar os
trabalhadores.

César saboreava seu café na sala de estar, acomodado em seu sofá macio.
Estava contente, sim, com o resultado da noite passada. Novamente,
invadiram sua propriedade, mas, daquela vez, se surpreenderam com os
pistoleiros. Cruzou as pernas, terminando de tragar seu café. Ah... foi a
melhor coisa que fiz. Chamou Carmela, e a criada surgiu com um bule,
servindo mais café ao patrão. Da porta de entrada, um homem chamou-o.
Carmela recuou, e vendo de quem se tratava, gesticulou para que entrasse.
Ao ver Uziel, César abriu um sorriso.
— Benedito! Estava pensando em você neste instante! — Apontou
alegremente para o sofá à frente. — Sente-se, não se sinta acanhado.
Uziel se sentou, Carmela ofereceu café, mas o pistoleiro recusou de
maneira educada.
— O café está muito bom, tem certeza de que não quer um pouco? —
Perguntou César, os olhos brilhando de emoção.
— Sim, certeza absoluta.
— Certo, certo. Mas não sabe o que está perdendo. Pois bem, a que
devo a honra desta bela visita? Aliás, devo agradecer novamente por ontem.
Foi sensacional.
Uziel sorriu.
— Apenas fiz o meu trabalho, senhor. Mas... vim aqui para comunicar
de que precisarei de mais homens. Após essa noite, aqueles bandidos voltarão
preparados, com mais gente...
César assentia, bebericando seu café.
— Entendo, entendo. E você conhece mais homens... de confiança?
— Sim, senhor. Conheço alguns que seriam de grande ajuda. Bons
homens.
— Ótimo, ótimo — César terminou seu café, levantando-se. —
Aprovado, Benedito. Tem carta branca para aumentar o time de defensores
— riu. — Posso lhe ajudar com mais alguma coisa?
Uziel se levantou, aproximando-se de César para um aperto de mão.
— Não, senhor. Era apenas isso... muito obrigado — sorrindo, afastou-
se do patrão, que também sorrindo, se despediu. Atravessando o cômodo,

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A Última Pétala | Walace Rocha

Uziel viu Alícia de esguelha, junto de Carmela. Passou pela porta e desceu os
degraus, chegando ao pátio.
Escutou o som de passos apressados, mas não se virou. De chofre,
Carmela passou por ele, aproximando-se de seu ouvido e sussurrando um
recado: No elevado, o mesmo daquela noite. Mudando o rumo de seus passos,
Uziel virou-se à esquerda, dirigindo-se ao último lugar onde tivera a
oportunidade de ter boas lembranças naquela fazenda. Enquanto caminhava
aclive acima, não pôde deixar de sorrir, e, em seu âmago, sentir uma pequena
mistura de medo e ansiedade. Poucos metros depois, estava no elevado,
fitando as costas de Luana. Calmamente, acercou-se da mulher.
— Que lugar estranho para uma conversa — Uziel disse, parando ao
lado da dama.
— Também acho, mas também é o mais propício — Luana se virou,
encarando-o com seu belo par de olhos. — A vista aqui de cima é ótima,
mesmo não sendo tão alto. Fiquei sabendo de seu ato heroico... parabéns.
— Aquilo não foi nada.
De supetão, Luana disse:
— Eu já sei quem será o meu marido, Uziel.
Aquelas palavras atingiram Uziel como se fossem agulhas, mas não
recuou. Permaneceu imóvel, fitando-a com ternura.
— Isso é ótimo.
— De fato, ele é... um homem da alta-sociedade. É o que importa, você
sabe. Olha... — Luana desviou o olhar à casa grande abaixo. — Pensei muito
sobre minhas escolhas, pensei sobre uma vida nova... mas parece que esse é
meu destino.
— Mas quem fez esse destino foi seu pai ou você? César não é seu dono,
você é livre para tentar seguir outros rumos, Luana.
— Mas eu não sei se consigo. Se... se...
— Que tal se a gente terminasse o que começamos há oito anos?
— O que começamos...? — Uziel não deixou Luana finalizar sua frase;
aproximou-se ainda mais da mulher, envolveu-a com seus braços e puxou-a
contra si. Um instante depois, beijava-a com fervor.

À frente da residência dos pistoleiros, Rafael e Nero conversavam de maneira


agitada. O homem doente, filho de Tadeu, se distanciou, parando no meio da
estrada. Sendo afetado pela preocupação do homem, Nero veio em seu
encalço, mas, ao ver Uziel se aproximando em seu cavalo, parou. Ao vê-los,
no meio da estrada, o pistoleiro de pele escura enrugou a testa.
— O que está acontecendo? — Uziel perguntou, parando de trotar.

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A Última Pétala | Walace Rocha

— Tadeu sumiu, Uziel — Nero disse. — Rafael está desesperado.


Como que vendo um santo, o filho do traidor se acercou de Uziel, o
rosto torcido numa expressão de pura preocupação.
— Uziel... você tem de me ajudar, por favor!
Uziel levantou os olhos, pousando-os em Nero, depois voltou a encarar
o pobre coitado. Pensou durante alguns segundos, e contra sua vontade,
estendeu a mão.
— Vamos, suba. Ajudaremos a encontrar seu pai.
— Ajudaremos? — Nero fez uma careta.
— Sim, ajudaremos.
Amainando o rosto torcido pela preocupação, Rafael aceitou a mão de
Uziel, subindo na garupa. Nero buscou seu cavalo no estábulo e, juntos,
desceram a estrada sob o céu vespertino. Trotaram pelas plantações,
passaram pela vila dos trabalhadores, pelos dormitórios dos capachos e nas
cercanias da casa grande. E a cada lugar sem o paradeiro do homem, o
coração de Rafael ficava cada vez mais apertado. Por fim, Nero teve a ideia
de descer ao rio, e galopando, rumaram ao local. Ao chegarem lá, Uziel foi
invadido por uma dezena de lembranças, e todas deixaram um gosto amargo.
— Vamos seguir a correnteza — Nero disse, tomando à frente.
— Para que o meu pai viria tão longe? — Balbuciou Rafael, trêmulo.
Uziel cerrou os lábios, o gosto amargo ficava mais forte.
— Ali! — Nero gritou, apontando para um ponto à frente. Desceu do
cavalo e se aproximou.
— Pai! — Gritou Rafael, pulando do cavalo assim que Uziel parou,
acercando-se de Nero. — Pai! — Parou ao lado do homem, arfando, e se
ajoelhou. O corpo de Tadeu jazia esticado à beira da margem, encharcado e
imóvel. — Pai! — Gritava Rafael, mas o corpo continuava imóvel, mesmo
perante os gritos estrondosos. — Pai! — Nero se afastou, olhando para Uziel
de soslaio. E um último grito pairou sobre o rio, levando consigo os últimos
resquícios da sanidade de Rafael.

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A Última Pétala | Walace Rocha

Capítulo 16

Nero caminhava sem rumo, os pensamentos distantes. Alguns dias se


passaram desde à morte — suicídio — de Tadeu. E desde então, os dias
pareciam se arrastar. Enterraram o corpo no cemitério amaldiçoado, distante
de todos os demais, e Rafael concordara com tal coisa. Uziel aumentou o
bando, também, trazendo mais pistoleiros e aumentando as rondas, ganhando
ainda mais confiança de César. No entanto, nada disso animava Nero,
inclusive, pegava-se pensando se devia continuar atuando naquele plano.
Pela alma de meu pai, eu sei que devo. Parou de caminhar e ergueu os olhos,
observando o céu vespertino e notando o quão silenciosa aquela tarde estava.
Talvez... devesse visitar Rafael. Baixando os olhos, desatou a seguir pela
estrada em direção à vila dos trabalhadores.
Poucos minutos depois, vislumbrava as três ruas que dividiam as casas
apertadas, apinhadas de crianças. Ao passar por ali, atraiu alguns olhares,
mas não eram de medo, e sim de respeito. Era um herói, afinal. Acenando
para algumas mulheres e crianças, rumou-se à casa de Rafael, batendo na
porta e entrando. Encontrou-o sentado à mesa, com o olhar perdido e uma
expressão arruinada. Ele se juntará ao pai em breve, pensou Nero com
amargura.
— Como você está, Rafael?
O homem ergueu os olhos cansados, indiferente à presença de Nero.
— Vivendo um dia de cada vez, mas... me sinto tão cansado, mesmo
dormindo muito. Acho que...
— O que você acha? — Nero puxou uma cadeira, sentando-se e olhando
com preocupação para o homem doente à frente. — Devia parar de ficar
trancafiado aqui dentro, pensando e pensando... isso não faz bem.
— É, sei disso, mas... não sei dizer se... — levou os olhos a Nero — se
este é o rumo certo. Afinal, o que era para ter acontecido se... meu pai não
tivesse tomado aquela escolha, oito anos atrás? Era para estarmos mortos?
Vivos, mas morando em outro estado? De uma coisa eu sei — a feição de
Rafael se tornou sombria —; a decisão de meu pai foi a mais vergonhosa
possível. E acho que... — Nero pousou sua mão sobre a de Rafael.
— Pare de achar, pare de ficar matutando sabe-se-lá-o-quê nessa sua
cabeça. As decisões já foram tomadas, e o que era para acontecer, aconteceu.

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A Última Pétala | Walace Rocha

Ficar pensando nas possibilidades... só o deixará ainda mais doente — Nero


retirou sua mão e se levantou. — Tente relaxar... sei que é absurdo dizer isso,
mas é a única coisa que consigo pensar.
Rafael respirou fundo, assentindo. Nero tinha razão, sim, mas a cada dia
que se passava, parecia que o fardo da decisão tomada pelo seu pai ficava
maior e mais pesada. Erguendo-se, acompanhou o amigo até a porta.
— Vou tentar... vou tentar, Nero.
— Ótimo. Depois volto aqui com Uziel... até lá, fique bem, sim? —
Virou-se e saiu da casa, caminhando pela rua. À frente, um José carrancudo
observava-o. O que ele quer? Apertando o passo, aproximou-se do capacho.
— Veio supervisionar os filhos de seus... trabalhadores?
José torceu o rosto magro numa careta.
— Vocês estão se divertindo, não é? Brincando por aí de salvadores —
José disse num tom jocoso. — Mas sabe de uma coisa, pistoleiro? Eu sei da
verdade, e vocês pagarão por ela.
— Ah, é...? Fique à vontade. Se me dá licença... — Nero deu um
tapinha no ombro do capacho e voltou a seguir pela estrada, saindo da vila.
Porcaria, temos de fazer algo a respeito disso.

Contornando a plantação trotando ao lado de César, Uziel observava os


trabalhadores, recordando de seu pai e seus amigos. Após aquela noite, o que
o Senhor da Fazenda disse sobre a perca repentina de tantas pessoas?
Certamente, alguma frase arrogante e uma história distorcida. E no dia
seguinte, partiu rumo à cidade para recrutar mais pessoas... mais coitados.
Moveu os olhos a César, o homem continuava sorrindo com tudo que vinha
acontecendo.
— Sabe, meu caro Benedito, após tanta tribulação, vejo que meus
planos estão voltando a dar certo. Quem sabe não consigo o tão pretendido
cargo político?
— Isso é ótimo, patrão — Uziel respondeu. — Acredito que... por mais
que leve tempo, as coisas sempre saem como planejado. Paciência é a alma
do negócio.
César arqueou uma sobrancelha.
— Bela observação, Benedito. Você tem algum plano em mente? É um
homem jovem, e bastante promissor.
Uziel desviou o olhar.
— Ora, digamos que sim, tenho alguns planos.
— Bom, bom. Certo, não atrapalharei mais... — César parou de trotar.
— Garoto, você já deve estar sabendo, pois as notícias correm... mas casarei

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A Última Pétala | Walace Rocha

minha filha com o doutor Ramirez. Darei uma festa de noivado... você e os
seus estão convidados.
Uziel forçou um sorriso.
— O senhor gosta de festas, hein?
— É... um pouco. Te vejo lá, Benedito. Até mais ver! — César virou o
cavalo e desatou a trotar na direção contrária.
Luana se casará mesmo... e com esse velho! Cerrando os punhos, o
pistoleiro saiu da plantação, galopando a toda velocidade. Talvez, se
conseguisse cumprir o plano antes do inevitável, pudesse reverter isso, e...
Mas e se eu não conseguir? Meneou a cabeça. Não... Saiu na estrada que
levava à sua residência, e poucos minutos depois, encontrava-se de frente à
varanda de entrada. Desceu do cavalo e levou-o ao estábulo, retornou e
entrou na casa, encontrando um Nero preocupado sentado no sofá.
— Que bicho te mordeu? — Uziel perguntou, estranhando a feição do
amigo.
— Ah, você nem imagina.... Uziel, nós estamos... correndo certo perigo
por aqui.
Uziel sentou-se no sofá, gesticulando para que o amigo prosseguisse.
— E...
— E isso pode acabar nos prejudicando. José me ameaçou hoje, disse
que sabe da verdade. Olha, sei bem que algumas pessoas sabem muito bem
quem nós somos. Outras, não. José sempre foi muito esperto, talvez ele saiba
que nós não somos Matheus e Benedito, e sim, filhos deles.
Uziel estava despreocupado. José não diria nada a César, pois,
orgulhoso como era, faria o trabalho de eliminá-los ele mesmo. Suspirando,
respondeu:
— Ele fará uma armadilha. E... posso até imaginar o dia em que ele
colocará esse plano em prática.
— E o que faremos?
— Simples... usaremos o plano dele para colocar um fim nesses
capachos.
— E se... for algo grave?
— Nós não deixaremos chegar a tanto. Então, Nero, deixe de
preocupação, sim?
Nero aquiesceu, mas não aparentava sentir-se seguro de tal coisa. Uziel
se levantou do sofá, e gesticulando, Nero disse:
— Aquela criada veio hoje... Carmela. Disse muita coisa estranha, como
se falasse em código... disse algo sobre o rio.
— Ah... certo, certo. Posso usar seu cavalo?

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A Última Pétala | Walace Rocha

— Pode, sim. O que planeja?


— Relaxe, meu amigo. Isto não faz parte do plano original... eu acho.
— Certo, então. Cuide-se.
Assentindo, Uziel deixou a casa, dirigindo-se novamente ao estábulo. Lá,
pegou o cavalo de Nero. Colocou a sela, montou e, a galope, seguiu rumo ao
rio. Após o suicídio de Tadeu, muitos passaram a evitar o lugar, por isso era
perfeito para um encontro. Descendo toda a estrada e contornando as
plantações, chegou à vila dos trabalhadores, atraindo olhares curiosos. Sem
tirar a atenção da estrada à frente, cortou a vila, saindo na outra estrada.
Minutos depois, encontrava-se à margem. Desceu do cavalo e amarrou-o em
uma árvore qualquer. Volto logo. Calmamente, pôs-se a caminhar pelo local,
avistando uma Luana imóvel a poucos metros.
Aproximando-se, Uziel parou a um metro da mulher, contemplando-a.
Luana usava um vestido escuro que chegava aos joelhos, seus cabelos
cacheados caíam-lhe sobre os ombros; os olhos cor de mel cintilavam à luz
vespertina. Pela primeira vez, era possível escutar o doce som da água
correndo, deixando a tarde ainda mais imaculada. Então, ao se lembrar das
palavras de César, tudo que era agradável a Uziel murchou. Fechando o rosto
numa expressão séria, desatou a falar.
— Fui convidado hoje para sua festa de noivado. Então a coisa é séria
mesmo.
Luana desviou o olhar.
— Infelizmente. Mas eu não escolhi isso, Uziel. É tudo decisão de meu
pai, pois ele quer muito fazer parte do Senado e...
— E você realmente não tem liberdade de escolha, não é? — Acercou-
se da moça, ficando a centímetros de sua face. — Você tem mesmo de fazer
tudo que ele fala, como se... como se...
— Olhe para mim e veja dentro de meus olhos — Luana pousou seus
dedos sobre a face escura de Uziel. — Acha mesmo que aprovo tudo isto?
Não passo de uma moeda de troca. Em breve, serei noiva de um velho com
idade para ser meu pai... Então, Uziel, mostre-me toda a vitalidade da
juventude. Mostre-me que ainda tenho um mínimo poder de escolha.
— Você quer mesmo isso?
Luana aquiesceu, fechando os olhos. Lentamente, Uziel aproximou seus
lábios, usufruindo da boca doce da jovem dama. Beijou-a demoradamente,
sem pressa, para então, entregar-se ao fervor, como se aquela fosse a última
vez em que os dois pecariam diante dos olhos de Deus. E talvez fosse mesmo
a última vez. Ainda beijando-a, o pistoleiro deitou-a sobre à margem úmida.
Com mãos rápidas, desabotoou o vestido escuro, para em seguida descer sua

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A Última Pétala | Walace Rocha

calça. Luana envolveu sua cintura com seus braços, puxando-o contra si;
soltando um leve gemido, Uziel penetrou-a, e Luana sentiu o líquido
imaculado escorrendo por suas coxas após uma leve dor prazerosa. E à
margem, os dois se amaram sob o céu vespertino.

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A Última Pétala | Walace Rocha

Capítulo 17

A vendedora retornava mais uma vez, agora com um longo vestido vermelho,
prostrando-se a poucos metros das duas damas. A loja do alfaiate jazia
parcialmente vazia àquela hora da manhã, e Luana não se incomodava com
isso. Gostava de ser atendida o quanto antes, pois não gostava de ir à cidade.
Alícia se adiantou; semicerrando os olhos, analisou a peça.
— É um vestido muito bonito — comentou ela, esticando a mão para
tocar o tecido macio. — Acha que combina comigo, Luana?
— É... combina, sim — Luana disse, sorrindo.
— É um ótimo vestido — a vendedora disse, uma mulher parruda de
meia-idade. — E combina muito com você.
Animada, Alícia pegou o vestido, dirigindo-se ao provador mais
próximo. A vendedora moveu os olhos à Luana, aguardando a próxima
ordem.
— Vou querer encomendar dois vestidos... um casual, para a festa de
noivado. E o outro...
A mulher de meia-idade sorriu, prazerosa.
— Oh, o outro para o casamento. Tenho alguns aqui... acredito que a
senhorita gostará bastante — a mulher gesticulou para que Luana
acompanhasse-a. Virou-se e caminhou pela loja, parando num canto. —
Aqui... — estendeu a mão para os vestidos coloridos. — Todos num bom
preço, isso lhe garanto.
Luana analisou os poucos vestidos. Não havia como ficar indecisa,
considerando as opções minguadas. O horror de morar em uma cidade
pequena. Passou os olhos sobre as peças mais uma vez e apontou para um
vestido longo de cor azul com um pequeno decote. A vendedora pegou-o,
tirando-o do suporte.
— Precisará de alguns ajustes, mas garanto que ficará pronto a tempo.
— Certo, certo... agora o essencial. Onde ficam?
— Oh, sim, sim, os brancos — a vendedora girou os calcanhares e
atravessou o espaço da loja a passos largos. — Aqui — voltou a estender
uma das mãos, apresentando o setor à Luana.
Assim como os demais produtos da loja, haviam poucas opções de
vestidos para casamento. Ao passar os olhos sobre eles, Luana sentiu-se

90
A Última Pétala | Walace Rocha

zonza por um instante, com algo remexendo em seu estômago. Fechou os


olhos, respirando fundo, abriu-os e apontou para um vestido qualquer. A
vendedora se adiantou, pegou-o e voltou a falar dos ajustes. Neste instante, o
sino da porta soou, e uma Carmela alegre entrou no estabelecimento.
— Olá, bom dia — cumprimentou ela, a vendedora retribuiu com um
leve aceno de mão. — E então, já escolheram? — Carmela examinou Luana.
— Sim... já estamos indo embora.
Do provador, Alícia surgiu, o vestido vermelho moldava-se ao redor de
seu corpo, atenuando suas curvas. Luana assobiou, a vendedora fez uma
careta de surpresa.
— Ficou excelente, querida — Carmela comentou, aproximando-se da
sobrinha. — Não precisará de ajuste algum.
— Realmente, realmente — a vendedora falava, num tom orgulhoso. —
Bom, agora é a vez da outra dama. Sinta-se à vontade para experimentar.
Assentindo, Luana dirigiu-se ao provador. Mas, ao pensar em provar o
vestido de casamento, uma estranha aversão dominou seu corpo. Como me
sentirei à vontade? Forçando-se a continuar, entrou no vestido azul, este
ficando perfeitamente justo, sem nenhuma necessidade de ajuste. Por fim,
trocou-o pelo vestido branco, apresentando-se diante das mulheres. A
vendedora mediu-a, e esboçou alguns traços num bloco de notas — rápidas
anotações do que melhorar.
— Certo, certo. Tudo será entregue em sua casa — a vendedora disse,
recolhendo os vestidos. — Foi um prazer fazer negócio com os Santana.
Forçando um sorriso, Luana aquiesceu. Pegou sua bolsa e, junto de
Alícia e Carmela, saiu da loja, pisando na calçada pouco movimentada.
Algumas carruagens e carroças passavam pela rua de paralelepípedos,
crianças e mulheres faziam seu passeio matinal por entre as lojas. Todos tão...
calmos. A dama se aproximou da carruagem estacionada a poucos metros,
abriu a porta e se acomodou. Carmela gesticulou para o capacho sentado no
banco elevado, e assim que entrou acompanhada de Alícia, o veículo
começou a se mover.
— Foi uma boa manhã de compras, não? — Alícia disse,
completamente dominada pela alegria.
— Sim, foi — Luana olhava através da janela quadrada. Casas e
pequenos prédios passavam sob seus olhos; vendas de todos os tipos;
barracas e tendas de feira. Esta será uma paisagem comum... viverei aqui,
afinal, na companhia de um doutor. Alícia dizia algo sobre a festa, Luana
voltou seus olhos a ela, assentindo. No canto, Carmela seguia viagem em

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silêncio, os olhos escuros pousados em Luana. Ela sabe da minha


inquietação... oh... Carmela...
Poucos minutos depois, estavam fora da cidade, avançando pela estrada
seca. Alícia se cansou de falar, e mergulhada numa estranha quietude, Luana
entregou-se aos pensamentos, saindo do devaneio assim que a carroça parou
no pátio da casa grande. O capacho que guiava o veículo desceu e abriu a
porta.
— Prontinho... — Carmela disse, levantando-se do banco e saindo do
veículo. Alícia imitou-a, esticando as pernas e dirigindo-se à casa, a alegria
repentina retornando às suas células. Então, a criada esticou uma mão à
Luana. — Vamos, filha.
Luana aceitou-a, saindo da carruagem e aproximando os lábios ao
ouvido da mulher.
— Eu... preciso de mais um encontro com ele...
— Você tem certeza disso? — Carmela perguntou num sussurro.
— Sim... isto está sendo um pesadelo, Carmela. Antes de me casar,
preciso... preciso acertar as coisas.
As duas se afastaram da carruagem.
— Certo, mas será a última vez.
Sorrindo, Luana deu um abraço desajeitado em Carmela, grata por sua
ajuda.

José caminhava alegremente pela plantação, passando os olhos sobre os


trabalhadores. Começara a planejar sua vingança contra os pistoleiros, e o
simples fato de que voltariam a ter valor perante os olhos de César enchia seu
coração de felicidade e excitação. Vendo um de seus colegas, aproximou-se,
apertando o passo.
— Ei — chamou. — Você está pronto, está ansioso?
O capacho roliço de meia-idade aquiesceu, rindo.
— Será divertido. Já terminou de pensar em tudo?
José moveu os olhos novamente para os trabalhadores.
— Quase... quase... avise aos demais para se encontrarem no mesmo
lugar doutro dia. Faremos uma última revisão, sim?
O capacho roliço assentiu, e José voltou a se distanciar, extasiado.

Trotando em seu cavalo, Uziel fazia sua ronda após o almoço, ao lado de
Nero. Apesar de o sol estar a pino, sentia-se confortável com o calor.
Desceram um morro e viraram à esquerda, saindo numa trilha estreita.
Espalhados por toda a Fazenda Santana, seus subordinados patrulhavam,

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como combinado. Após a primeira invasão, Uziel aumentara seu grupo,


recrutando mais pistoleiros ao bando, e César gostara de tal coisa. Quanto
mais gente defendendo suas terras, melhor. Tudo vai bem, com exceção de
que... meneando a cabeça, parou de trotar, atraindo o olhar preocupado de
Nero.
— Você está bem?
— Sim, sim... apenas com um pouco de dor de cabeça.
— Quer voltar? Pode deixar que finalizo a ronda.
Assentindo, Uziel deu a volta com o cavalo, e voltando a trotar, retornou
pela trilha, subindo a estrada. Cerrou os punhos, a cada dia que se passava, o
prazo de ter Luana diminuía. Perderia-a para o velho doutor, e não havia mais
nada que pudesse ser feito. Retornara à Fazenda Santana para se vingar, sim,
mas também porque, em seu âmago, possuía certa esperança de que
conseguiria colher bons frutos de seu amor. Mas, como tudo neste mundo, as
coisas são definidas de acordo com seu nascimento. Elevou o trote a galope,
e um momento depois, encontrava-se em sua residência. Desceu do cavalo e
levou-o ao estábulo, deparando-se com um vulto amuado num canto.
Uziel levou uma mão à espingarda atada às costas, mas o vulto se
adiantou, erguendo-se.
— Não precisa atirar, pistoleiro. Calma... — Luana disse, esboçando um
sorriso torto. Aliviado, Uziel afastou a mão da arma.
— O que faz aqui? — O pistoleiro se aproximou de uma portinhola e
guiou o cavalo para seu quadrado. Retirou a sela e pousou-a sobre a divisória
de madeira.
— Vim apenas... — Luana desviou o olhar. — Conversar.
Uziel fechou a portinhola, agora com o cavalo acomodado no espaço
quadrado e se aproximou da mulher, encarando-a com ternura e ao mesmo
tempo tristeza.
— Você me parece... abatida. Está tudo bem?
Luana recuou um passo, voltando os olhos a Uziel.
— Tem mais alguém por aqui?
— Não, os rapazes estão ocupados... patrulhando.
— Bom... — ficando inquieta, Luana desatou a caminhar pelo estábulo.
— Eu... olha, hoje mais cedo comprei meu vestido de noiva.
— Ah, então isso realmente é verdade... você vai se casar. Então, por
que não se sente feliz? Tá aí, com essa expressão abatida à minha frente...
De chofre, Luana arregalou os olhos, fixando-os no pistoleiro.
— Você sabe bem o porquê de eu estar assim... mas... mas... não há
nada que eu possa fazer, Uziel! — Lágrimas começaram a rolar sobre seu

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rosto anguloso, Uziel sentiu seu coração se apertar contra seu peito. — Nós
não nascemos para... Talvez, em outros tempos... olha, este será o nosso
último encontro. Vou me casar, é isso. E você também deveria se casar...
Alícia gosta de você, quem sabe Carmela não aprova a união dos dois?
Foi a vez de Uziel arregalar os olhos, avançando um passo.
— Eu não quero me casar com nenhuma outra pessoa... só quero me
casar com você!
Luana secou as lágrimas com as costas da mão, arfando.
— Perdão... — virou-se e saiu do estábulo, deixando Uziel preso em
pensamentos amargos.
— Luana... — o pistoleiro desabou de joelhos. Por um momento, toda
aquela loucura de retornar àquele lugar pareceu sem sentido, toda a ideia de
vingança pareceu tola. Queria ver José e César mortos, sim, mas acima de
tudo... Cerrando os punhos, Uziel gritou, despejando toda sua amargura,
assustando seu cavalo. Resfolegando, pôs-se de pé, e mal controlando seus
pensamentos, saiu do estábulo, desatando a correr sem rumo.
Uziel não soube dizer por quanto tempo correu, mas, quando deu por si,
estava no meio de um campo deserto. Levou as mãos às costas e sacou sua
espingarda. Apontando-a contra o céu, desatou a disparar, gritando.
— Ela não se casará com ninguém! Ela não se casará com ninguém! —
E cada grito era seguido por um disparo, que estrondava pelo ar.

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Capítulo 18

A música alta da banda preenchia o ar animado da noite, contagiando todos


os convidados no salão improvisado de César. Uziel se impressionava com o
nível da festa, nunca vira nada parecido em toda sua vida. Trajava um terno
preto, cortara o cabelo e se perfumara; caminhava ao lado de Nero,
igualmente bem-vestido. Moveu os olhos, analisando o local que se enchia
cada vez mais de convidados. Membros da alta-sociedade, certamente.
Voltou sua atenção à festa, Nero cutucou-o.
— Você parece tenso. Que tal se divertir? — O amigo disse, sorrindo.
— César fez um bom trabalho aqui... retirou os móveis da sala e expandiu o
cômodo demolindo outra parede. A impressão que passa... é a de que estamos
em um verdadeiro salão.
— E como você sabe disso, já que não estudou arquitetura?
Nero arqueou uma sobrancelha, dando de ombros.
— Poderia ter sido um, caso... o cenário fosse diferente.
Caso o cenário fosse diferente...
— Certo, vamos beber algo, sim?
Nero assentiu, e os dois amigos dirigiram-se à mesa de comes e bebes
mais próxima. No caminho, Uziel viu de esguelha que seus homens se
divertiam, dançando no ritmo da música animada, cantando e até mesmo
paquerando uma mulher ou outra. Sentada no canto extremo do salão,
Abigail jazia imóvel, em silêncio; a seu lado, uma Carmela bem-vestida
sorria — era a primeira vez que a criada participava de uma festa como
convidada, e não como cozinheira, como era de praxe. Movendo mais seus
olhos, o pistoleiro viu Alícia trajada num belo vestido vermelho que se
esculpia ao redor de suas curvas. De chofre, recordou-se das palavras de
Luana sobre se casar com a moça. Meneando a cabeça, Uziel pegou um copo
de aguardente sobre a mesa, e com pequenas goladas, pôs-se a saborear a
bebida forte.
— Todos se divertem — Uziel ouviu-se dizendo. Nero concordou,
acompanhando-o na degustação da bebida. — Isso é bom... acredito que não
tivemos oportunidade alguma de... aproveitar algo do tipo.
— Realmente, não tivemos. Mas agora, temos.
— Mas é uma pena...

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— Uma pena?
Uziel não respondeu, apenas semicerrou os olhos ao ver Luana do outro
lado do salão, prostrada à direita de um homem velho, de cabelos grisalhos e
barriga sobressalente, gordo como um porco. Seu olhar se encontrou com o
da noiva, mas desviou-o imediatamente. Extremamente feliz, César surgiu;
bem-vestido, o cabelo penteado para trás. Parou no meio do salão, ergueu
uma mão, e a banda parou de tocar. Hora do discurso. Pouco a pouco, os
convidados paravam de conversar, e o silêncio se espalhou. Por fim, com a
atenção depositada sobre si, César desatou a falar:
— Boa noite a todos! É uma honra tê-los aqui, na minha humilde
fazenda — sua voz retumbava pelo local, firme e forte. — Como sabem, há
pouco tempo, estávamos passando por um período difícil, complicado. Os
bandidos começaram a invadir nossas terras, e com o fraco policiamento da
cidade, essas invasões aumentaram! — Moveu os olhos sobre os convidados.
— Mas... isso mudou. Deus colocou em meu caminho homens justos...
pistoleiros que aceitaram me ajudar a colocar ordem nestas bandas... são eles
— apontou para Uziel e Nero. — Benedito e Matheus, os líderes do bando da
justiça, os cabeças por de trás da nossa paz nesta terra desolada — e, um
segundo depois, o salão tremeu sob os fortes aplausos. Sem graça, Uziel
apenas ergueu seu copo, assentindo. Espalhados pelo salão, seus homens
assobiavam e riam. Quando as palmas cessaram, César voltou a discursar. —
Graças a eles... pude voltar a planejar a tão sonhada expansão da Fazenda
Santana. Com a ideia de segurança em mente, aumentarei ainda mais as
zonas de plantio, gerando, assim, muitos empregos. E não é só de
infraestrutura de que se vive o homem... afinal, esta festa também é para
comemorar o noivado de minha filha — e o salão foi preenchido novamente
por uma salva de palmas. Uziel tragou o conteúdo de seu copo, fazendo o
máximo possível para ignorar as palmas. Assim que cessaram, César
retornou ao seu discurso mais uma vez, mas à essa altura, o pistoleiro já
sentia desgosto o suficiente para não prestar atenção alguma nas palavras
ditas.
A festa voltou a seu ritmo, com todos dançando e cantando junto da
banda. Acuado, Uziel permaneceu num canto, apenas observando seus
amigos. Vez ou outra, seus olhos encontravam Luana, mas esta parecia fazer
esforço para ignorá-lo, sempre sorrindo ao lado do doutor. Então, sem
conseguir fugir, o gordo velho se aproximou, parando à sua frente.
— Boa noite, senhor Benedito — cumprimentou Ramirez, estendendo
sua mão. Uziel apertou-a. — É uma honra conhecê-lo... César sempre fala
bem de ti.

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A Última Pétala | Walace Rocha

— É bom saber disso — Uziel sorriu, olhou para Luana e depois voltou
sua atenção a Ramirez. — Pretendem se casar quando?
— Hm... — o velho passou o braço pelo ombro da jovem dama. — Em
meados de novembro.
— Falta pouco...
— Oh, sim. Gostaria que o senhor viesse... se é amigo de César, então
também é meu amigo. Quem sabe... poderia trabalhar comigo — o homem se
aproximou e sussurrou: — eu pago mais.
Rindo, se afastou. Uziel aquiesceu, e de esguelha, viu José e um de seus
capachos movendo-se de maneira estranha. Despedindo-se e pedindo licença,
o pistoleiro caminhou até Nero, preocupado. Notando a expressão do amigo,
Nero acercou-se.
— O que está acontecendo?
— Vi José... acredito que seja a armadilha que ele vem planejando.
Alerte César.
Assentindo, Nero saiu a passos largos. Uma leve preocupação começava
a invadir o corpo de Uziel, assim como o gosto amargo em sua boca.

Do lado de fora da casa grande, no pátio, José sorria de maneira maliciosa.


Ficara pouco tempo na festa, mas viu o sorriso nos rostos dos pistoleiros, e
estava curioso para saber até quando continuariam sorrindo e se divertindo.
Ajeitou o chapéu e voltou-se às quatro mulheres trêmulas — incluindo Alícia,
oh, sim — à frente, sendo guiadas à força pelos seus homens em direção ao
estábulo. Todos estavam ocupados demais, ninguém notaria sua ausência,
ninguém notaria a ausência de um simples capacho, ah, não. E quando a
gente terminar, basta seguir com a segunda parte do plano; atrair um dos
pistoleiros e depois César... e a culpa de tal atrocidade recairá sobre
Matheus e Benedito. Rindo, José e seus homens empurraram Alícia e suas
colegas para dentro do estábulo. Dando uma última olhadela, fechou a porta.
— Faremos algo excelente com vocês, garotas — chichiou José,
baixando sua calça.

— Senhor — uma voz disse, mas César estava tão concentrado em sua
conversa sobre os planos na política que mal escutou. — Senhor — desta vez,
parou de falar, virando-se e se deparando com um Nero assustado.
Estranhando, afastou-se do grupo.
— O que está acontecendo, Matheus?
— Preciso que me acompanhe... Benedito suspeita de algo.

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A Última Pétala | Walace Rocha

De súbito, César sentiu toda sua animação ser drenada. Foi tomado por
um calafrio, e gesticulando para que Nero seguisse, acompanhou-o salão
afora. Desceram os degraus da escada rapidamente, chegando ao pátio e
encontrando um Uziel armado. Ao vê-lo, o Senhor da Fazenda ficou pálido.
Meu Deus, o que está acontecendo?
— Benedito... poderia me dizer o que está acontecendo aqui? Estamos
sob ataque? — Balbuciou César, trêmulo.
Uziel jogou um revólver a Nero, que pegou no ar, e engatilhou sua
espingarda.
— José está tramando algo... notei que ele anda agindo de maneira
estranha há semanas... e suspeitando, coloquei um de meus homens em seu
encalço.
O rosto de César era uma máscara de incredulidade.
— Mas isso não é possível... ele trabalha para mim há anos! Por que...
— Não há motivos, eu sei — Nero disse, preparando sua arma. — Mas
ele sente inveja de seu sucesso, senhor. Por isso quer te prejudicar... quer nos
prejudicar.
— Certo, chega disso! — César enrubesceu. — Mostre-me onde ele está,
e vocês verão que tudo não passa de um mal-entendido.
Assentindo, Uziel seguiu pelo pátio, dirigindo-se ao estábulo. Nero e
César seguiram-no, silenciosos. Assim que se aproximaram, escutaram o som
das risadas abafadas seguida pela voz rouca de José. Os três se aprumaram,
cercando o local. Por um momento, tudo pareceu mórbido, e as palavras do
capacho-líder ecoaram.
— Agora, um de nós sai para chamar César. Atraímos um dos
pistoleiros e a coisa tá feita... — voltaram a rir, agora de maneira
estrondeante.
Dominado por uma mistura de sensações conflitantes, César adiantou-se,
correndo até a porta do estábulo e abrindo-a de supetão. Seu olhar nervoso
passou pelo grupo de homens, os capachos que sempre confiou, e parou
sobre as mulheres seminuas estiradas sobre o chão sujo; as vestes rasgadas,
violadas e violentadas. Cerrou os punhos, seu mundo girava, e sentiu o
estômago se revirar. Ao vê-lo, José arregalou os olhos, erguendo a calça num
impulso.
— Mas... mas... o que está acontecendo aqui?! — Rugiu César, furioso,
fitando José com um olhar de puro nojo. — O que vocês fizeram?!
José avançou um passo, o rosto contorcido em culpa.
— Senhor, não é o que está pensando... está interpretando isto de
maneira leviana...

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A Última Pétala | Walace Rocha

— De maneira leviana?! — César apontou para as mulheres violadas,


praticamente inconscientes. — Vocês cometeram uma atrocidade, meu Deus!
Até mesmo a sobrinha de Carmela... — César estava com a respiração pesada,
sentia pontadas no peito esquerdo. Atrás, Uziel e Nero se aproximaram com
rostos inexpressivos. — Meu Deus...
— Ali, ali! — Gritou José, trêmulo, apontando para os dois pistoleiros.
— É tudo culpa deles, meu senhor, eles não são quem você pensa!
— Não... não... é você quem não é o que pensei! Santo Deus... — César
se virou, caminhando estábulo afora, os pensamentos revoando num turbilhão.
— Benedito, Matheus... matem-nos.
— Nós... não, não, meu senhor! — Berrou José, desabando de joelhos,
chorando. Mas a ordem foi dada, e Uziel e Nero se adiantaram.
Ignorando as mulheres violadas, a dupla de pistoleiros desatou a
disparar contra os capachos, imersos num estranho prazer. José gritava,
desesperado, enquanto seus amigos tombavam, e num impulso, tentou correr.
Sentiu as mãos pesadas de Nero, e um instante depois, estava no chão.
Choramingando, virou-se para o lado, tentando escapar, deparando-se com a
face bestial de Uziel.
— Por favor, não... por favor — o cano da espingarda foi pressionado
contra sua testa, e assim que o gatilho foi puxado, a voz de José foi silenciada.

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A Última Pétala | Walace Rocha

Capítulo 19

Pela primeira vez em muito tempo, um garoa caía sobre a Fazenda Santana,
cobrindo-a como um véu. Um vento frio soprava, trazendo consigo uma
sensação de absoluta desolação. Observando a paisagem cinzenta, César se
virou, fitando uma Carmela irada, de rosto fechado. A criada segurava uma
mala, pronta para partir, preparada para deixá-los para sempre. A seu lado,
uma Alícia quieta mantinha o olhar fixo no chão, presa num estado
catatônico. Com a voz embargada, o Senhor da Fazenda desatou a falar
pausadamente.
— Vai mesmo nos deixar, Carmela?
— Já passei tempo demais aqui, vi coisas demais... devia ter ido embora
há muito tempo.
— Mas a justiça foi feita.
— Não quero justiça alguma vinda de ti. Adeus, e espero nunca mais vê-
lo — dito isso, Carmela passou por César, puxando Alícia pela mão.
Sentindo-se culpado, César observou as duas mulheres descerem os
degraus sem olhar para trás. Uma carruagem aguardava-as, e sob à garoa,
Carmela deixou a Fazenda Santana, embarcando numa viagem só de ida para
algum estado do sudeste. Respirando fundo, César deixou o sentimento de
derrota de lado, voltou-se para a casa e atravessou o cômodo, passando por
Luana — esta mergulhada num silêncio aterrador — e entrando em seu
quarto. Deitada na cama, Abigail sustentava um olhar mórbido, perdido. A
mulher piorara após o episódio de José, entregando-se à tristeza profunda do
desgosto. O marido parou ao seu lado, passou os dedos sobre o cabelo de
maneira delicada, murmurando preces à Virgem. Fechou os olhos e se
afastou da cama. Chamaria o doutor Ramirez, e o homem ajudaria-o com a
esposa, tinha plena certeza disso. Carmela foi embora, sim, mas isso não
passa de uma fase. Abigail ficará bem, e tudo se resolverá. Arriscando-se a
ficar animado, César correu em busca de Ramirez.

A garoa cessou, deixando apenas o céu cinzento com seu vento frio a soprar.
Sentado num tronco, Uziel observava o horizonte estranhamente mazelado,
pensativo. Agora, estava quase no fim, mas não conseguia sentir prazer
algum, por mais que se esforçasse. Após a noite em que mataram José, vinha

100
A Última Pétala | Walace Rocha

tendo dificuldade para dormir, sempre recordando-se da imagem de Alícia


ferida, estatelada sobre o chão coberto de palha, e as risadas dos capachos.
Cerrou os punhos, resfolegando. Atrás, passos pairaram no ar, e um homem
de pele clara se aproximou.
— Em que tanto pensa? — Nero perguntou.
— Estamos no final... penso apenas nisso.
Nero continuou de pé, levando os olhos ao horizonte, passando pelo
pasto seco, pelas árvores diminutas. Todo o lugar jazia vazio, e isso
incomodava-o.
— Olha... se quiser, podemos abandonar essa ideia. Nós conseguimos
juntar uma boa quantia em dinheiro, Uziel. Poderíamos... sair deste lugar e
viver em outra cidade.
— Nós não podemos sair — Uziel chichiou, ainda sentado no tronco. —
Voltamos, e já fizemos metade do trabalho.
— E você viu no que resultou. Violaram Alícia e mais três mulheres
inocentes. Ouvi dizer que a pobre coitada está catatônica... isso só aconteceu
porque nós voltamos. Temos parte nisso. E... venho evitando falar, mas o
suicídio de Tadeu...
Resfolegando, Uziel virou o rosto para encarar o amigo, os olhos
trêmulos.
— Isso só aconteceu porque César assassinou os nossos pais. Então, não
teríamos de voltar atrás de vingança. Esse homem está colhendo apenas o que
plantou.
— Certo, você tem razão, você tem toda a razão... quer continuar com
isso? Tudo bem, mas lhe adianto que não sou mais a favor dessa ideia.
Muitas pessoas estão sendo feridas nessa vingança... Quando tudo acabar,
você acha que se sentirá como? Prazeroso? Feliz? As almas de nossos pais
sorrirão de onde estão? Acho que não... também queria isso, pensei por um
momento que fosse a cura, a solução. Mas não é. Tô vendo que falar com
você não adiantará de nada... quer fazer isso? Então faremos. — Nero
respirou fundo, fechando os olhos. Reuniu toda sua força, e expeliu suas
últimas palavras. — Quando seu desejo se realizar, saiba que eu vou embora
deste lugar, vou embora para longe, Uziel.
Ao se calar, um novo silêncio subiu no ar frio, e Nero desatou a andar,
afastando-se do amigo, deixando-o sozinho com sua paisagem cinzenta.
Sentia pena de Uziel, mas também sentia medo; não do que ele fosse capaz
de fazer, mas do que restaria do velho Uziel após tudo aquilo.

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A Última Pétala | Walace Rocha

Concentrado, o doutor Ramirez examinava Abigail, franzindo o cenho. A


mulher estava muito abatida, de fato, mas àquela hora, era impossível levá-la
para outra cidade a fim de providenciar um bom tratamento. Com isso em
mente, o homem se afastou da cama, pediu para que uma das empregadas da
casa preparasse um remédio, um chá forte, e trouxesse a ele. Com calma,
auxiliou a mulher fraca a tragar alguns goles. Deixou o copo quase vazio
sobre o criado-mudo e se retirou do quarto, encontrando um César
preocupado à porta.
— E então? Ela ficará bem?
Ramirez suspirou.
— Ela está bastante abatida. Mandei prepararem um chá, misturei com
alguns remédios e dei para ela beber. Sua esposa sentirá sono, mas assim que
acordar, estará renovada — disse o doutor, mas não sentia verdade alguma
em suas palavras. Estava sendo otimista, queria acalmar César e Luana, sua
noiva. Mas sejamos francos... O doutor voltou a suspirar. Despediu-se de
César, passou por Luana, gesticulando, e deixou a casa.
César entrou no quarto, e um segundo depois, Luana juntou-se a ele,
observando Abigail. A jovem dama falava pouco desde à morte de José, e o
estado lastimável da mãe deixara-a ainda mais abalada — a ideia do
casamento não lhe trazia conforto algum. A seu lado, seu pai suspirou —
preocupação e culpa, talvez. Com a voz embargada, o homem começou a
falar:
— O doutor disse que ela ficará bem... precisamos ter fé, apenas isso.
— Fé... — Luana fechou os olhos, segurando as lágrimas. Poderia se
ajoelhar ali mesmo e orar à Virgem, mas sabia bem que nada daquilo
adiantaria. Trêmula, aproximou-se da cama, sentando na beirada e passando
as mãos sobre os cabelos da mãe. Abigail parecia cochilar, tranquila. E ao vê-
la em tal estado, Luana de fato acreditou nas palavras do doutor. Abigail
dormiria e, no dia seguinte, acordaria renovada. — Mãe... mãe... fique bem,
tá legal? Descanse um pouco, recupere as energias... fique bem... fique bem...
— Luana se levantou, beijou a testa de sua mãe e se afastou. Virou-se e saiu
do quarto, passando por César, que continuava imóvel.
O homem fechou a porta do quarto assim que a filha saiu. Suspirando,
voltou-se à cama, aproximando-se de Abigail. A mulher, ao ouvi-lo, forçou-
se a abrir os olhos para encará-lo.
— Você ficará bem... viu o quanto nossa filha te ama? — César disse,
os olhos lacrimejando. — Você ficará bem...
— Eu... ficarei bem, sim... descansando...
— Sim, você...

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A Última Pétala | Walace Rocha

— Calado — Abigail disse, abruptamente, assustando César. Então, seu


tom de voz voltou a ser um mero sussurro. — Tudo que está acontecendo é
culpa sua, seu demônio. Está colhendo o que plantou todos estes anos, seu
demônio. Espero que fique feliz com isso... pois sua colheita ainda não
terminou — dizendo as ultimas palavras, Abigail esboçou um sorriso de
alegria, e lentamente, fechou os olhos, caindo num sono em que jamais
acordaria.

103
A Última Pétala | Walace Rocha

Capítulo 20

O que fiz de errado? Essas cinco palavras flutuavam eternamente na mente


de César desde que sepultaram Abigail. As últimas palavras da mulher
sempre retornavam, também, assustando-o. Sentado no canto de seu quarto
escuro, suava aos borbotões. Não se alimentava de maneira decente há dias,
pois não sentia apetite. Sabia bem o estado em que se encontrava, mas
mesmo assim... Meu Deus... Cortou o pensamento. Não clamava mais a Deus,
pois não se sentia merecedor de pensar ou pronunciar Seu nome. Fechou os
olhos, apertando-os com força. Queria gritar, mas não conseguia. Queria
clamar por ajuda, mas nenhum homem estava em condição de ajudá-lo.
Então, abraçou a escuridão silenciosa de seu quarto, questionando a mesma
pergunta: o que fiz de errado?

No campo florido, Luana perguntava-se o porquê de não achar o lugar belo e


agradável, como antes. O lugar manteve-se conservado, com seu vale cheio
de verde, cheio de uma certa alegria que ela, em seu estado atual, não era
merecedora. Respirou fundo; por um momento, chegara a pensar que se se
dirigisse até ali, sentiria algum alívio, mas estava redondamente enganada.
Atrás, Uziel se aproximou, juntando-se a ela na vista nostálgica.
— Faz tempo que não venho aqui. Estes últimos dias têm sido uma
completa loucura — disse ele, semicerrando os olhos.
— Sim... muita coisa aconteceu. Isso me faz... isso me faz pensar em
minha infância. Queria voltar a ser criança.
— Infelizmente, não queria voltar a ser criança — Uziel ficou em
silêncio durante alguns segundos, então voltou a falar. — Você está bem?
Luana virou-se a ele, encarando-o com um par de olhos cansados de
tanto chorar.
— Superar o luto é difícil — disse ela num sussurro.
— Sei bem como é...
— Seu pai... sua mãe fugiu com vocês, não é?
— Sim, mas ela não durou muito.

104
A Última Pétala | Walace Rocha

Um novo silêncio caiu entre os dois, e naquele momento, Uziel


compreendeu que Luana não sabia de toda a verdade sobre seu pai. Aquilo
deixou-o aliviado por um instante. Por fim, Luana quebrou o silêncio.
— Você sentiu prazer ao matar José? — Perguntou ela, subitamente,
surpreendendo Uziel.
Fechando os olhos por um momento, o pistoleiro respondeu:
— Não... não sei dizer. No momento em que puxei o gatilho, até posso
dizer que senti certa alegria, um momento efêmero de felicidade. Mas depois
que o calor do momento passou... toda a felicidade, todo o excstase, pareceu
desaparecer. E o que sobra é um grande vazio. Fora que... — Uziel deu uma
risadinha. — Fora que meu pai não se orgulharia nem um pouco disso, não se
orgulharia do que me tornei... — lágrimas verteram de seus olhos.
— Mas você pode mudar isso, Uziel. Olhe para nós... eu posso mudar,
não é?
— Não é tão fácil como pensa... Às vezes, a vida te coloca em um
caminho que é difícil voltar. E às vezes, o tal caminho para voltar nem sequer
existe.
Luana encarou-o com seus olhos que ele tanto amava quando mais novo.
Por um pequeno segundo, ela pôde sentir toda a tristeza que assolava a alma
de Uziel, infinitamente maior que a sua. Sentiu pena do pistoleiro, mas, assim
como ele, nada podia fazer. A ela, restava o casamento com Ramirez, o
último ato para animar e orgulhar seu pai. Faria isso pelo dever, sim, mas a
verdade era difícil de esconder. O homem de que precisava estava à sua
frente, seu complemento de vida, seu alívio para mitigar as dores. Talvez
pudesse sonhar com isso, talvez não... meneando a cabeça, desatou a
caminhar, saindo do estupor.
— Voltarei para casa...
— Eu... te acompanho até lá — Uziel disse, secando as lágrimas com as
costas da mão.
Em silêncio, os dois seguiram pela trilha de volta à estrada. E da estrada,
até a casa grande. Ao entrar no pátio da propriedade, Uziel estranhou a
mudança no ar. Os criados pareciam completamente desanimados, moviam-
se à força, entristecidos com tudo que os cercava. Uziel parou de caminhar,
viu um César de face inexpressiva na varanda. Ergueu a mão num
cumprimento, virou-se e deixou o pátio, entrando na estrada e seguindo em
direção ao seu aposento. No caminho, pensou na conversa que tivera com
Nero, há poucos dias. Cogitou a possibilidade de ir embora daquele lugar,
fugir para longe. Mas fugir não era uma opção. Estava ali apenas pelo dever
de resolver as pendências do passado. E faria isso.

105
A Última Pétala | Walace Rocha

Poucos minutos depois, chegou à sua morada, a melhor casa da Fazenda


Santana cedida por César. Ao entrar, deparou-se com todo o seu bando à sua
espera, na sala de estar. Dentre eles, Nero se levantou, quieto, aguardando a
próxima ordem.
— Preparem-se... será esta noite — Uziel disse, desviando o olhar.

106
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Capítulo 21

Pela primeira vez desde que Abigail falecera, César dormia uma boa noite de
sono — e desta vez, sem sonhos. Desfrutava de seu descanso, quando alguém
bateu à porta, interrompendo-o. Acordou sobressaltado, assustado. Virou-se e
saiu da cama, aproximando-se da porta e abrindo-a. Do outro lado, um de
seus criados segurava um lampião; a luz bruxuleante arranhava a escuridão
da noite, banhando sua face preocupada. Aquilo deixou César temeroso, mas
ao ver Benedito num canto, seu coração acelerou.
— O que está acontecendo? — Perguntou o Senhor da Fazenda, trêmulo.
— Uma invasão, e das grandes — Benedito disse, acercando-se da porta
do patrão. — Vamos, precisarei de ajuda.
César, não compreendendo o pedido do pistoleiro, seguiu-o, sentindo
pressa e clamor. Atravessaram a sala e desceram os degraus, saindo no pátio,
surpreendendo-se com a velocidade dos criados, pois os cavalos já se
encontravam preparados.
— Para você vir me chamar, Benedito, então esta invasão... deve ser
grande. Muitos bandidos? — César subiu no cavalo. Poucos metros adiante,
o pistoleiro fez o mesmo, montando em seu garanhão prostrado ao lado de
outro criado.
— Sim... desta vez, veio o bando inteiro — virando o cavalo, Uziel pôs-
se a galopar pátio afora, saindo na estrada com César em seu encalço. — Eles
atearam fogo numa das plantações.
— Caos... vieram trazer caos, esses malditos — rosnou César.
Os dois homens galoparam estrada acima. Poucos minutos depois, César
pôde ver o clarão alaranjado que fervia no horizonte tocado pela noite,
expelindo fumaça contra o céu. Viraram à direita, entrando na plantação,
acercando-se do pandemônio. As chamas altas se alastravam ferozmente, e o
cenário fazia o estômago do Senhor da Fazenda revirar. Reduziram a
velocidade, trotando agora sob à luz cintilante das chamas. À frente, diversos
homens encontravam-se de pé, imóveis. Franzindo o cenho, César parou o
cavalo e desceu.
— Vocês espantaram o bando inimigo? — Perguntou, passando os olhos
sobre os pistoleiros. Encontrou Matheus e repetiu a pergunta, mas foi
Benedito quem respondeu, descendo de sua montaria.

107
A Última Pétala | Walace Rocha

— Ah, sim, acredito que espantamos... — Uziel esticou sua mão, e um


de seus homens entregou-lhe sua espingarda. — Mas o nosso trabalho está
longe de chegar ao fim.
Estranhando a atitude do pistoleiro, César semicerrou os olhos.
— O que está acontecendo aqui? — César preparava-se para fazer outra
pergunta, mas alguém o derrubou no chão seco com uma rasteira.
— Sabe de um fato engraçado? — Uziel engatilhou sua arma. — José
estava certo. Nós não somos quem dizemos ser — o pistoleiro prostrou-se
diante de César, este ainda esticado no chão. Nero deu a volta, caminhando e
parando ao lado do amigo. — Benedito e Matheus... esses nomes não te
fazem recordar de algo? Olha... acredito que não. Te ajudarei a lembrar...
César estava paralisado, sua mente era um turbilhão.
— Vocês... — balbuciou ele, os olhos arregalados.
— Nós somos os filhos dos trabalhadores inocentes que você mandou
matar, há oito anos — Nero disse. — Matheus e Benedito eram dois deles;
nossos pais.
— Oh... Santo Deus... por um momento eu havia reconhecido vocês,
mas... mas... mas como algo do tipo... como algo do tipo pode ser possível?
— Trêmulo, César rolou no chão, debatendo-se.
— Vamos terminar logo isso — Uziel disse, apontando sua arma. —
Naquela noite, quantos homens, mulheres e crianças morreram? —
Perguntou para ninguém em especial.
— Dezenas — Nero respondeu, desgostoso.
— Certo... então vamos atirar todos juntos, dezenas de vezes. Cada bala
representa uma alma ceifada naquela sexta-feira — dito isso, os pistoleiros de
Uziel se reuniram ao redor de César, cercando-o enquanto este continuava se
debatendo de maneira frenética contra o chão, chorando. E quando Uziel
acenou, todas as armas foram disparadas. E se contorcendo perante tanta dor,
a imagem das chamas consumindo as plantações foi a última vista pelo
Senhor da Fazenda.

A coluna de fumaça se erguia no horizonte, destacando-se contra o céu claro


da manhã. O vento frio soprava, trazendo consigo um cheiro azedo de morte
e desolação. Na varanda, Luana observava, atentamente. Os criados corriam
de um lado a outro, preocupados, murmurando pelos cotovelos. Por fim, a
mulher desceu os degraus, devagar, chegando ao pátio e, ao longe,
deslumbrou da imagem de um vulto se aproximando. Era Uziel, o rapaz
caminhava lentamente, visivelmente abatido. Imediatamente, Luana
compreendeu o que estava acontecendo, e seu coração disparou.

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A Última Pétala | Walace Rocha

Não contendo a preocupação, correu em direção ao pistoleiro,


prostrando-se à sua frente.
— Uziel... o que aconteceu?
Fitando-a em seus olhos, ele respondeu:
— Sofremos uma invasão essa noite... fui com seu pai checar. Não
queria levá-lo, mas ele insistiu e... — desviou o olhar. — Sofremos uma
emboscada. Fomos cercados, tentei proteger seu pai, mas ele foi alvejado.
Infelizmente...
— Não... não... não diga isso! Meu Jesus, Jesus... — Luana balbuciava,
trêmula. Não suportando mais, entregou-se à tristeza, abraçando Uziel
enquanto chorava e soluçava. — Meu Deus... o que farei agora? O que farei,
Uziel?
Envolvendo-a em seus braços, Uziel confortou-a. Aproximou os lábios
de seu ouvido, e sussurrou.
— Não se preocupe... não se preocupe. Estou aqui a partir de agora para
te proteger, para cuidar de ti... para sempre.

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TERCEIRO
ATO

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Capítulo 22

10 de abril, 1934.

A chuva caía pesadamente naquela manhã, encharcando a cidade com seu


poder torrencial. Através da janela do terceiro andar, um homem de face
quadrada observava as poças do jardim se multiplicarem, os olhos claros
semicerrados. No céu, um clarão fez com que se afastasse, fazendo-o passar
uma das mãos no cabelo louro. O homem bem-vestido se virou, e tomado por
um certo pesar, atravessou o cômodo mal-iluminado, saindo no corredor. Um
dos mordomos da casa se aproximou, sustentando uma feição preocupada.
— Senhor Edgar, seu tio o chama — o mordomo de meia-idade disse
num tom baixo.
Apreensivo, Edgar seguiu pelo corredor estreito, os passos sendo
abafados pela tapeçaria antiga. O que ele deseja? Dobrou à direita e entrou
no quarto escuro do tio, parando a poucos metros de seu leito. Duas
enfermeiras jaziam paradas ao lado da cama, e ao vê-lo, se afastaram.
— Tio... — Edgar balbuciou, acercando-se do homem enfermo. Ali,
deitado, encontrava-se a sombra de um grande doutor, o homem que fora
injustiçado por anos naquela cidade. Mas agora, estava preparado para deixar
aquele plano para sempre. Deitado ali, vítima da velhice, jazia Ramirez. —
Tio...
— Sobrinho — gemeu Ramirez, movendo os lábios com dificuldade.
Sua face murchara, os olhos se espremiam contra e pele enrugada, os fios
brancos como a neve pareciam flutuar. — Me faça... me faça... um último
favor, para que assim... possa ir em paz...
Assentindo, Edgar aproximou seu ouvido dos lábios do tio, e Ramirez
desatou a falar suas últimas palavras.
— Antes de partir... quero te pedir para que termine algo que comecei...
quero que descubra a verdade sobre o Senhor da Fazenda... em meu escritório,
encontrará um dossiê contendo todas as informações da investigação...
contendo tudo... descubra a verdade... por mim... — e sua voz foi silenciada.
Edgar fechou os olhos e se afastou da cama, erguendo-se.
— Descanse em paz, tio — gentilmente, fechou os olhos do velho
doutor. As enfermeiras puseram-se a chorar, extremamente emocionadas com

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a partida do bom patrão. Edgar caminhou pelo quarto, e por um longo


momento, apenas o som da chuva preencheu o ambiente.

Uziel caminhava calmamente pela calçada, desviando dos pedestres. O


homem de face dura sustentava uma expressão séria, emitindo um ar de
respeito por onde passava. Trajava um terno escuro, sapatos caros e um corte
de cabelo curto. Uziel era um senhor naquela cidade, um membro da alta-
sociedade. Após a fatídica morte de César, conseguira se casar com Luana,
livrando-a das garras velhas de Ramirez. Tiveram um filho, mudaram-se para
a cidade e assumiram os negócios da fazenda. No começo, Uziel esforçou-se
para consertar tudo, ajudar todos que saíram prejudicados com a presença
diabólica de César e seus planos: tentara ajudar Rafael, mas o rapaz se
suicidou numa manhã de Páscoa, atirando-se de cabeça contra o chão,
pulando da cama. Tentara, também, rastrear Nero, mas não obteve sucesso
algum. E, com os anos, viu-se também enfiado dentro de seus próprios
problemas. Vinha sofrendo de algum tipo de doença que impedia-o de dormir,
dava-lhe pesadelos constantes e até mesmo falta de ar. E, no centro do
furacão, encontrou ajuda — e, ao mesmo tempo, um investimento extra, a
única coisa fora a fazenda que, de fato, rendia-lhe algum dinheiro.
A clínica de Walter.
Uziel conhecera Walter por acaso, enquanto procurava por ajuda
naquela cidade miserável, e talvez tenha conseguido... ou, ao menos, achava
que havia conseguido. Apertando o passo, dobrou à esquerda numa esquina,
avistando a clínica do médico a poucas dezenas de metros. Na rua de
paralelepípedos, alguns carros transitavam — Peugeot Quadrilette, em sua
maioria —, impressionando-o, considerando que até poucos anos atrás, a
maioria dos cidadãos possuíam apenas carruagens. Isso mostra que o futuro
chegou nesta terra. Esboçando um leve sorriso, Uziel parou de frente ao
prédio de dois andares que era a clínica de Walter. A janela larga com vista
para a rua encontrava-se fechada, assim como a porta, mas com um macete
simples na maçaneta, ela era facilmente aberta. Olhando de um lado a outro,
Uziel executou o procedimento, e um segundo depois, estava dentro da
recepção vazia.
Atravessou-a, passando por um corredor largo e chegando numa escada
em caracol que subia até o segundo andar. Passou por mais um corredor e
parou à frente de uma porta escura. Levantou a mão cerrada e bateu duas
vezes. Do outro lado, a voz rasgada de Walter disse algo. Uziel empurrou a
porta e entrou no consultório/escritório do médico roliço de meia-idade.

114
A Última Pétala | Walace Rocha

— Senhor Benedito, é muito bom vê-lo aqui... ainda está chovendo lá


fora?
Uziel caminhou pelo local, pegou uma cadeira e puxou-a para perto da
mesa do médico calvo. Sentando-se, respondeu:
— Não, a chuva cessou. Cadê todo mundo deste lugar?
— Ora, estão trabalhando. O senhor sabe bem que, com o seu
investimento, nós não brincamos...
Uziel cruzou os braços.
— Faço isso pelo tratamento, sabe disso. Conseguiu algo com o seu
amigo de São Paulo?
Walter afastou os papéis sobre sua mesa e abriu uma das gavetas,
retirando um frasco de comprimidos.
— Continua tendo dificuldade para dormir?
— Para respirar, também. Às vezes, fico trêmulo... suando muito.
— E os pensamentos?
— Ruins.
Walter carregou o cenho, estendendo o frasco a Uziel.
— Benedito... já disse para o senhor procurar ajuda médica numa cidade
grande... aqui, infelizmente...
— Ora, não se preocupe, Walter. Sei bem que se eu deixar esta cidade,
sua fonte seca. E com isso, os lucros desaparecerão.
— Eu sei, eu sei... mas me importo com sua saúde.
— Muitos se importam. Pois bem — Uziel guardou o frasco no bolso da
calça —, espero que este remédio faça algum efeito. Tenha um bom dia...
— Mas já vai embora? Não quer saber como estou direcionando o seu
dinheiro?
— A única coisa que me importa — Uziel se levantou da cadeira —, é o
resultado dos investimentos todo dia 20. E os remédios, claro — com uma
piscadela, Uziel se virou, deixando o consultório/escritório de Walter.
— Esse aí... — disse o médico, retornando sua atenção aos recibos sobre
a mesa.

Sob o céu nublado do meio-dia, Uziel retornava em seu carro, guiado por um
chofer. Através do vidro escuro, observava a cidade que tanto mudara nos
últimos anos. Mas pode mudar ainda mais. Havia algo que fazia-o sempre se
recordar de César: fazer planos e cogitar inúmeras possibilidades. Fizera seu
nome na cidade, e agora, inspirado no último desejo do falecido, Uziel queria
ingressar na carreira política, fazer parte da câmara e ditar suas ordens na

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A Última Pétala | Walace Rocha

prefeitura. Suspirou, sonhador, e afastou o olhar da janela. O carro reduziu a


velocidade e virou à esquerda, e a imagem do casarão preencheu a paisagem.
— Chegamos, senhor — o chofer disse, estacionando o carro na frente
do portão escuro.
— Muito obrigado, Alan — Uziel abriu a porta e saiu do veículo,
surpreendendo-se com o ar frio do bairro. Empurrou o portão e entrou em sua
propriedade, seguindo pelo caminho estreito de pedras redondas. Levantou os
olhos e contemplou sua morada de três andares, refinada, como era de praxe
todo membro do alto-escalão ter. Atravessou a porta de entrada, e na sala de
estar, deparou-se com seu filho, Florêncio, um rapaz alto, de pele morena que
sustentava toda a alegria da juventude.
— Pai, chegou cedo — Florêncio disse, fechando o jornal e se
levantando do sofá de couro. — Como foi a consulta?
— Muito boa, filho — Uziel avançou pelo cômodo, aproximando-se do
garoto e dando-lhe um abraço apertado. — Onde está sua mãe?
— Lá em cima, tocando piano.
— Ela ainda não desistiu de tocar Clair de Lune, não é? — Rindo, Uziel
bagunçou o cabelo do filho, e voltou a avançar pelo cômodo, subindo uma
escada em caracol. À medida que subia, as notas do piano ficavam mais altas,
preenchendo cada canto do andar. Ali, o ex-pistoleiro sentia-se
estranhamente contente; ali, abandonava a face dura e a expressão séria.
Seguiu pelo corredor, caminhando em direção à origem das notas. Ao
chegar na sala do piano, parou à porta, pondo-se a examinar a mulher
graciosa que movia seus dedos sobre as teclas. De olhos fechados,
concentrada, Luana esforçava-se para tocar sua melhor versão do clássico; à
luz cinzenta do dia, a mulher de trinta e poucos anos parecia fazer parte de
uma pintura, com sua cabeleira clara caindo-lhe sobre os ombros, tocando a
pele exposta pelo vestido justo que moldava-se ao redor de seu corpo esguio.
Ela abriu os olhos, e finalizou a música. Ao afastar os dedos das teclas, disse
num tom baixo:
— Gostou desta versão? — Perguntou ela, as palavras ecoando pelo
cômodo.
— Como sabia que eu estava aqui? — Uziel se aproximou, Luana se
virou para encará-lo.
— Consigo sentir sua presença, simples assim — Luana sorriu. —
Como foi na consulta?
— Ah, acho que estou melhorando — Uziel levou a mão ao bolso e
pescou o frasco de comprimidos. — Veio diretamente de São Paulo. Com
isso...

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A Última Pétala | Walace Rocha

Luana desfez seu sorriso, desviando o olhar. Passaram por muita coisa
desde à morte de seu pai, há 16 anos, e levou tempo para superar o luto, mas
ela não conseguia entender como o marido continuava doente, como Uziel
continuava sendo afetado por tais eventos. Ele tomava seus medicamentos,
frequentava consultas, mas... Notando sua agitação mental, Uziel guardou o
frasco e mudou de assunto, fazendo Luana se arrepender de ter perdido sua
atenção.
— Estou pensando seriamente na candidatura a prefeito — comentou
ele, ainda sorrindo, como se nada tivesse acontecido, como se os dias fossem,
de fato, feitos de pura alegria. — O que acha da ideia?
Luana voltou a fitar o marido, esboçando um sorriso.
— Acho a ideia fenomenal... devíamos organizar algo. Um jantar, talvez?
— É... um jantar seria uma boa. E Florêncio se divertiria muito... — E
eu estaria realizando um sonho... o sonho de César. Com um gosto amargo
na boca, Uziel voltou-se ao piano. — Que tal mais uma música antes de
descermos para almoçar?
Contente com o pedido, Luana voltou-se às teclas, e com dedos ágeis,
pôs-se a tocar Satie. Uziel fechou os olhos, e por um momento, recordou-se
do rosto de sua mãe.

No fim da tarde, a chuva voltou a cair sobre a cidade, e perdurou por muitas
horas. Em um restaurante, Edgar bebericava sua bebida quente, examinando
a noite encharcada através da larga janela lateral do estabelecimento. Fechou
os olhos por um segundo e pousou-os sobre a clientela do lugar. Analisara o
dossiê comentado por seu falecido tio, e a cada página lida, não deixava de se
sentir instigado pela investigação feita por um detetive particular contratado
por Ramirez que trabalhou por mais de dez anos no caso. O mistério da
morte do Senhor da Fazenda... À frente, um homem bem-vestido, de meia-
idade e pele clara se aproximou, sentando-se à mesa.
— Boa noite, senhor. Posso me sentar aqui? — Perguntou ele.
Edgar voltou sua atenção à frente, abandonando os pensamentos.
— Pode, sim. Acredito que o senhor seja... o investigador Frederico.
— Sim, sou eu mesmo. Me interessei muito pelo que o senhor comentou
naquela carta... — Frederico sorriu, movendo o rosto alguns centímetros à
frente. E com a voz baixa, disse: — Por acaso está com os documentos aí?
— Sim, senhor — Edgar assentiu, baixando a mão e pescando um
envelope pardo dentro de uma bolsa depositada ao pé da mesa. — Uma
investigação que durou mais de dez anos... — depositou o envelope sobre a

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A Última Pétala | Walace Rocha

mesa, e ávido, o investigador pegou-o. — Acredito que para tanto... meu tio
devia suspeitar de algo.
Faminto pelo caso, Frederico analisou alguns papéis, os olhos
arregalados.
— Isso é incrível... precisarei de tempo para analisar tudo, mas farei o
possível para iniciar este trabalho o quanto antes — o investigador espalhou
as folhas sobre a mesa, uma foto caiu. Curioso, pegou-a. Era de um homem
negro, usava um chapéu de vaqueiro e, às costas, algo parecia estar
pendurado. Um pistoleiro? O investigador virou a foto, e no verso, um nome
encontrava-se escrito. — Benedito-Uziel — Frederico franziu o cenho,
esboçando um sorriso. — Sabe, meu caro Edgar, acredito que fiz bem em ter
retornado de minhas férias.

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A Última Pétala | Walace Rocha

Capítulo 23

O som da música preenchia à noite agitada de São João; pessoas pulavam ao


redor da fogueira, contentes, enquanto outras exageravam na comida,
deliciando-se. Todos se divertiam, todos... afastado, sentado no fundo de uma
carroça velha, o pequeno Uziel observava silenciosamente. Nero estava a seu
lado, sua mãe encontrava-se atrás, deitada. O ar tremulou, e a carroça
começou a se mexer, confundindo a criança. Estavam ali porque haviam
ganhado a oportunidade de ter uma vida melhor, então, por que fugiam,
afinal? Ainda confuso, Uziel se virou, abandonando a vista da casa grande,
enquanto a carroça aumentava sua velocidade pela estrada. Então, de maneira
tão repentina quanto começou a se mover, ela parou. O que está acontecendo?
Uziel fitou Nero, o amigo balançou a cabeça numa negativa. Mas eu tenho de
ver o que está bloqueando a estrada, Uziel disse, seus lábios se mexeram,
mas som algum saiu de sua boca. Olhou para Lira de soslaio, e contrariando
o amigo, desceu da carroça.
A estrada estava vazia, e o ar frio da noite parecia se solidificar a cada
passo que a criança avançava. Onde está meu pai? Parou de se mover,
notando que os cavalos que até então puxavam sua carroça haviam
desaparecido, evaporado. Pai? Moveu os olhos, e à frente, distinguiu uma
pessoa caída no chão. Arfando, acercou-se do vulto. Pai! Ajoelhou-se,
pousou uma mão no rosto de Benedito e virou-o para que pudesse encará-lo.
E gritou ao ver que faltava metade da cabeça do homem. Um tiro... de
espingarda? Levantou-se, a respiração pesada. Do canto da estrada, um José
sorridente surgiu.
— Eu matei ele, gostou? Você gostou, criança? Eu matei ele! — E
desatou a gargalhar, fazendo com que Uziel fechasse os olhos. A gargalhada
continuou, e instintivamente, tapou os ouvidos.
E, mesmo após se levantar da cama, encharcado de suor, arfando, as
notas estridentes do riso pareceram ecoar. Não há ninguém aqui. Não há
ninguém... De olhos arregalados, Uziel saiu da cama. Luana, àquela hora,
devia estar no andar de baixo, tomando café. É... O ex-pistoleiro cerrou os
punhos, abriu a boca e respirou fundo, tentando controlar os batimentos
acelerados de seu coração. Rumou-se ao banheiro, lavou o rosto, se vestiu e

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A Última Pétala | Walace Rocha

tragou um dos comprimidos de Walter. Sentindo-se melhor, saiu do quarto e


dirigiu-se à cozinha.
À mesa, Florêncio saboreava seu pão com manteiga, concentrado. Do
outro lado, na pia, Luana ajudava Lucinda — a empregada da família — a
preparar uma massa de bolo.
— Bom dia a todos — cumprimentou ele, sorrindo. — Manhã agitada,
não?
— Bom dia, pai — Florêncio sorriu, erguendo seu pedaço de pão.
— Bom dia, patrão.
— Bom dia, querido — Luana virou-se para encará-lo. — Dormiu bem?
Tive a impressão de que você murmurou à noite inteira. Teve mais um...
Uziel gesticulou com a mão, num gesto para que Luana ignorasse o fato.
— Não se preocupe... — o homem puxou uma cadeira e se sentou,
analisando seu filho. — Parece animado, Florêncio. Tem algum
compromisso hoje?
Florêncio terminou de engolir seu pão, ergueu a xícara de café e sorveu
um gole.
— Sim, tenho uma prova para... ingressar numa outra escola. Na
universidade, na verdade.
Uziel arqueou uma sobrancelha.
— Universidade? Isso me parece interessante... já pensou o que pretende
estudar?
— Ainda não...
— Mas... — Luana voltou a se virar, abandonando a massa de bolo —
ele já pensou em qual universidade ingressar.
— Ah, é? — Uziel sentia-se surpreso, afinal, o filho nunca conversara
sobre o que pretendia estudar.
— Sim — disse Florêncio, acanhado. — Pretendo cursar em alguma
faculdade do sudeste... dizem que são as melhores.
Uziel franziu o cenho, recostando-se na cadeira.
— Sudeste...?
— Deixa o garoto. Ele precisa disso... uma aventura, não é?
— Talvez... mas ainda tenho de pensar nisso.
— Senhor Benedito, antes que me esqueça — Lucinda disse, abrindo a
porta do forno e depositando a forma. Virou-se novamente ao patrão. —
Recebi um telegrama hoje mais cedo... tomei a liberdade de deixá-lo em sua
mesa do escritório.
— Um telegrama? — Com um ar urgente, Uziel se levantou, afastando-
se da mesa. — Sabe quem é o remetente?

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A Última Pétala | Walace Rocha

Lucinda balançou a cabeça numa negativa. Luana franziu o cenho, não


compreendia a preocupação súbita do marido. Dando a volta na mesa, o ex-
pistoleiro subiu a escada em direção ao escritório. Será de Walter? Ou de...
Meneando a cabeça, abriu a porta do escritório, entrando no espaço vazio e
avistando o telegrama depositado sobre a mesa escura. Pegou-o, vendo o
remetente. Walter. Abriu-o e pôs-se a ler o conteúdo.
— Ele quer... mais dinheiro para o investimento de redistribuição de
bens? Ah, não importa... eu mesmo vou tirar isso a limpo, pessoalmente —
rasgou o papel em inúmeros pedaços e jogou-os no lixo. Virou-se e fitou a
rua abaixo, através da janela alta; poucos carros transitavam, os pedestres
começavam a acordar. Semicerrou os olhos. Mas quem é esse? Do outro lado
da rua, um sujeito bem-vestido observava sua casa de maneira curiosa. Deve
ser algum lunático. Dando de ombros, saiu do escritório.

De olhos semicerrados, Walter folheava as páginas rapidamente, conferindo


as cifras dos recibos da redistribuição de dinheiro. Ao terminar, juntou tudo
numa pilha, e coçando os olhos, fitou Uziel, examinando-o com curiosidade.
Ah... ele não está bem... Pigarreando, desatou a falar.
— Com a nova estratégia, o dinheiro renderá mais, Benedito — Walter
esboçou um leve sorriso. — É o seu dinheiro trabalhando duro para você
mesmo.
— É... espero que seja isso mesmo. Sabe bem que atualmente este seu
negócio me rende mais que a Fazenda Santana — Uziel desviou o olhar. —
Consegue reduzir o tempo de espera?
— Oh... posso tentar. Mas deixando os negócios de lado... você está
bem? Já começou a tomar o novo medicamento?
Uziel voltou a fitar o médico.
— Sim, comecei. Mas aquele frasco é muito pequeno, vou precisar de
mais.
— Isso não é problema — Walter alargou o sorriso. — Encomendei
mais, somente para você. E... então, pretende aumentar o valor investido?
Suspirando, Uziel se levantou da cadeira.
— Sim... se isso te fizer parar de ficar me enviando telegramas...
Walter riu.
— É sempre bom poder contar contigo, Benedito.
— ... e me retornar um valor considerável...
Walter voltou a rir, aquiescendo.
Dando de ombros, Uziel se virou, atravessando o escritório e saindo no
corredor. Como sempre, o prédio jazia vazio, somente com a poeira

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A Última Pétala | Walace Rocha

flutuando pelo ar de cheiro forte. Desceu a escada, e uma vez no primeiro


andar, avançou a passos largos à porta, pousando a mão lentamente sobre a
maçaneta. Girou-a, e antes de sair na rua, pôs-se a pensar se os remédios de
Walter realmente fariam algum tipo de efeito. Tem de fazer. Saiu na calçada,
agora movimentada, e seguiu rua abaixo. Carros passavam, emitindo sua
poluição sonora; pessoas conversavam nas vendas de esquina. Mais uma
manhã normal. Uziel reduziu o passo ao atravessar um cruzamento, e de
soslaio, viu uma figura avançando pela calçada, em sua direção. Estranhando,
atravessou a rua, chegando ao outro lado da calçada e parando mais uma vez.
De chofre, virou-se para trás e notou que o homem que o seguia disfarçava,
desviando o olhar. Ah... Santo Deus. O ex-pistoleiro aguardou alguns
segundos, imóvel no meio da calçada, então, voltou a se mover, agora a
passos largos. Enfiou-se no meio de alguns pedestres e dobrou à direita. E
voltou a parar, entrando num estabelecimento qualquer. Fechou os olhos e
repôs o ar dos pulmões, resolvendo contar até cem mentalmente. Por fim,
abriu os olhos.
— Senhor? — Disse um rapaz de vinte e tanto anos, o vendedor da loja.
— O senhor está bem?
— Ah... sim, sim. Estou. Fiquei zonzo por um instante... apenas isso.
— Se quiser, eu chamo o doutor.
Acabei de sair da clínica de um.
— Agradeço, meu jovem, mas realmente não precisa. Passar bem —
Uziel acenou com a cabeça, olhou para a calçada e arriscou-se a sair do
estabelecimento. Olhou de um lado a outro, e contente, reparou que seu
perseguidor havia-o perdido de vista. — Ótimo... — Novamente, voltou a
caminhar, agora na direção de onde viera.
Virou uma esquina à esquerda, saindo numa calçada com poucos
pedestres. Adiante, alguns mendigos se espalhavam, e ignorando-os, Uziel
passou por eles. No entanto, a última da fileira, uma mulher suja de fuligem e
poeira, de vestes rasgadas e cabelo ensebado chamou-lhe a atenção. Curioso,
parou, examinando-a com olhos incrédulos. A mendiga esfarrapada de pele
escura emitia um ar familiar, e abrindo sua boca, Uziel não conseguiu dizer
nada. Foi ela quem disse, reconhecendo o homem diante de si.
— Santa Maria... Uziel, é você? — Trêmula, Sofia se ergueu usando a
parede como apoio. — Eu não acredito...
Completamente incrédulo, Uziel fitou a amiga de infância com olhos
arregalados.
— Sofia... o que faz aí? Você não estava morando no sudeste?
Uma feição triste tomou o rosto da mulher arruinada.

122
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— Estava... mas...
— Calma... consegue caminhar? Já comeu algo hoje?
Balançando a cabeça, a mulher suspirou. Uziel ajudou-a a caminhar,
afastando-se dos demais mendigos. Poucos metros depois, entraram num
restaurante qualquer. No balcão, um homem gordo bufou ao vê-los —
provavelmente o dono do estabelecimento. Mas, ao ver a face raivosa de
Uziel, se manteve calado.
— Aqui, vamos nos sentar aqui — Uziel ajudou Sofia a se sentar, depois,
ele mesmo puxou uma das cadeiras da mesa quadrada, acomodando-se. — Ei,
você aí! — Gritou para o balconista gordo. — Dois pratos da casa, por favor
— feito o pedido, voltou sua atenção à mulher sofrida à sua frente. — Pois
bem... descanse, Sofia, velha amiga. Enquanto o almoço não chega, você
poderia me contar como veio parar aqui...
Sofia passou as costas da mão contra o rosto sujo, como se sentisse
envergonhada. Suspirando, fixou os olhos cansados em Uziel, reunindo
coragem para falar.
— Ah... tanta coisa aconteceu... tudo estava indo bem... até que meu
marido pegou febre amarela. Perdeu o emprego e... — baixou os olhos. —
Passamos por certa dificuldade. Meu filho tentou arrumar trabalho, mas
rapidamente se envolveu com gente que não devia — seus olhos começaram
a lacrimejar. — Eu pedi a ele... eu implorei para que parasse... mas não
adiantou. Pouco tempo depois, foi morto por um tiro de soldado. Foi um
choque, mas... não sei... ao mesmo tempo me senti aliviada.
— E o seu marido?
— O meu marido? — Sofia secou as lágrimas com as costas da mão. —
Ele se recuperou da febre, e me abandonou logo em seguida. Então... —
Sofia arregalou os olhos, brilhando de emoção. — Então eu ouvi falar que no
sertão, um novo senhor surgia, regando almas feridas como a minha com
dezenas de oportunidades. Eu não sei dizer, mas algo dentro de mim disse
que era você. Então me diga, Uziel... você se tornou o novo César?
Uziel franziu o cenho, desgostoso.
— Não... isso é o que dizem — ao lado, um garçom trouxe os pratos. —
Ah, vamos comer. Parece ótimo.
Os dois pegaram os talheres, e poucos segundos depois, saboreavam o
almoço. Entre uma garfada e outra, os dois amigos trocaram mais algumas
palavras, colocando o assunto em dia — mas evitando certos tópicos que não
vinha a calhar. Por fim, Uziel afastou sua cadeira.
— Sofia... fico muito feliz de tê-la reencontrado após todos estes anos. E
desejo muito ajudá-la a recomeçar uma nova vida... — enfiou a mão no bolso

123
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e sacou um maço de notas. — Pague o almoço, e faça bom uso desta quantia
— depositou o maço sobre a mesa. Sofia sorriu, e com um aceno de cabeça,
Uziel deixou o restaurante, voltando à rua e seguindo rumo à sua casa.

Uziel bebericava uma xícara de café, sentado à beira da mesa. Àquela hora,
Lucinda já havia ido embora, e seu filho, Florêncio, jazia em seu quarto,
dormindo após estudar muitas horas. O silêncio o cercava, mas nem mesmo a
quietude era suficiente para fazê-lo relaxar. Bebericou mais um gole de café,
fechou os olhos e suspirou. Abriu-os, e à sua frente, a imagem de Luana se
formou. A mulher atravessou o cômodo, aproximando-se e sentando-se na
cadeira ao lado. Com uma expressão séria, começou a falar:
— Você passou a maior parte do dia fora... aconteceu algo?
Uziel terminou de tragar seu café, pousou a xícara vazia sobre a mesa e
tentou relaxar antes de falar. No entanto, sua voz saiu tensa.
— Não, não aconteceu nada fora do comum, querida. Estou apenas
ansioso com essa história de entrar na prefeitura... essa ideia de me
candidatar parece loucura — moveu os olhos à Luana. — Mas vou tentar...
um jantar beneficente parece um bom passo, não acha?
— Sim, atrairá muitas pessoas.
Uziel esboçou um leve sorriso, mas o desfez assim que se lembrou do
homem que o seguiu pela rua mais cedo. Torcendo a boca, voltou a falar.
— Às vezes... pego me perguntando no quão pequeno o mundo é. Sabe
quem encontrei hoje? — Luana balançou a cabeça, o marido continuou: —
Sofia. Aquela Sofia de quando era criança, a Sofia que brincava com a gente...
Luana pareceu espantada, arqueando uma sobrancelha.
— Ela se mudou para cá?
— Não... — Uziel desviou os olhos, fitando o chão brilhante. — Ela
estava morando na rua. O filho morreu, e o marido a abandonou, então... —
voltou a levantar os olhos. — Ela disse que ouviu histórias sobre mim... e
veio para cá, em busca de alguma oportunidade. De imediato, não havia
muito o que fazer, então dei a ela uma quantia em dinheiro, apenas para sair
da rua, tomar um banho, comprar roupas... e dormir numa cama.
Luana sorriu.
— Você fez bem, Uziel. É um homem bondoso... agora, vamos subir...
ficar matutando aqui até tarde não te fará bem — Luana se levantou e esticou
a mão.
Sorrindo, Uziel aceitou-a, e os dois se retiraram da cozinha.
Eu sou um homem bondoso... Com esse pensamento, Uziel se preparou
para mais uma noite de sono.

124
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— Eu tenho de parar de ficar vindo aqui — Edgar comentou, bebericando um


gole de aguardente, os olhos pousados em Frederico.
O investigador riu, fincou o garfo no bife, e com a faca, desatou a cortar
uma tira.
— Enquanto você estiver pagando o jantar, não vejo problema algum —
Frederico levou o pedaço de carne à boca. Mastigou, saboreando, e engoliu.
— Mas vamos direto ao ponto... posso ver no seu olhar o quão ansioso está.
— Leu meus pensamentos.
— Segui Benedito hoje. Fiz uma perguntas aqui e ali... Ele frequenta
bastante a clínica de um tal doutor Walter.
Edgar carregou o cenho.
— Certo, mas o que isso tem a ver com a investigação que meu tio
começou?
— Hm... no momento, nada. Mas o fato curioso aqui é Benedito ser o
único cliente de Walter. E como apenas uma pessoa consegue sustentar um
consultório inteiro? Bom... comecei a investigar esse Walter. Acredito que
chegaremos a uma conclusão incrível.
— Olha, só quero que você chegue ao fim, sim? Está me custando caro,
investigador.
Ao escutar as palavras, Frederico apenas riu, deliciado com o caso.

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Capítulo 24

A música preenchia o salão abarrotado de pessoas — políticos, figuras


públicas de organizações e líderes religiosos. Ao lado de Luana, Uziel
observava-os com curiosidade. Andam de um lado a outro, se empanturrando,
jogando conversa fora... mas, afinal, todo este desperdício de tempo
resultará em algo? Seguindo o conselho da esposa, perdera certo tempo
jogando conversa fora com cada um deles, até mesmo fez um breve discurso
— como César costumava fazer. Agora, com o cansaço batendo à porta,
forçava-se a continuar sorrindo e acenando. Ah... vou dormir em pé.
Gesticulando para Luana, pôs-se a andar pelo salão enquanto a banda
continuava tocando. Examinava os rostos — todos conhecidos. E, no meio do
amontoado de faces, uma em questão chamou sua atenção. Ele... Aproximou-
se do desconhecido, fazendo uma careta simpática.
— Boa noite, senhor. Por acaso... te conheço?
O homem bem-vestido se virou, sorridente. Uziel disfarçou o choque ao
reconhecê-lo — tratava-se do mesmo homem que espiara-o pela janela, há
poucos dias.
— Ah, boa noite, senhor Benedito. Perdão não ter me apresentado
antes... cheguei há pouco. Me chamo Frederico. Investigador Frederico.
Uziel franziu a testa.
— Investigador...? Nunca te vi aqui na cidade.
— Ah, fui transferido recentemente. Estou... — Frederico se aproximou
para falar, sussurrando: — investigando um caso muito complexo. Acredito
que ganharei uma promoção quando chegar ao fim.
— Oh... parece ser algo interessante.
— Coloca interessante nisso.
— Bom... investigador... sinta-se à vontade. Aproveite a música, a
comida...
— Ah, pode deixar!
Dito isso, Uziel se afastou do homem, avistando a esposa e retornando à
ela. Que homem mais salafrário! Como ousa pisar na minha casa e...
Meneando a cabeça, Uziel tentou se esquecer do investigador e se concentrar
na festa. Perambulou com a esposa, cumprimentou e conversou com mais
alguns convidados. Por fim, pouco antes da meia-noite, as pessoas

126
A Última Pétala | Walace Rocha

começaram a ir embora. À uma da manhã, o salão estava completamente


vazio.
Às duas em ponto, o novo senhor da fazenda jazia deitado em sua cama,
completamente esgotado. Fechou os olhos, amainou a respiração, mas os
pensamentos ferviam, a ansiedade devorava sua alma. Pois, em seu âmago,
sabia que estava sendo investigado.

Ao escutar os passos pesados de Benedito, Walter ergueu os olhos da mesa,


surpreso ao ver o paciente tão cedo.
— Ora, bom...
— Ah, chega disso, Walter! — Uziel gritou numa cólera súbita, os olhos
arregalados. — Esse seu tratamento não está dando certo! Ainda estou tendo
dificuldades para dormir, para... para... — afobado, Uziel desatou a caminhar
em círculos pelo cômodo, a respiração pesada.
Vendo-o, Walter ficou quieto, aguardando a raiva repentina — mais um
de seus sintomas — passar. Alguns minutos depois, Uziel resfolegou; virou-
se para o médico e puxou a cadeira, sentando-se.
— Perdão...
Walter aquiesceu.
— Tudo bem... coloque tudo pra fora, tudo pra fora...
— Só é que... ah, eu queria ter apenas uma boa noite de sono. Apenas
isso — Uziel cobriu os olhos com a mão. — Uma boa noite...
— Certo, calma. Tudo vai se resolver...
Uziel tirou a mão dos olhos, e controlando uma nova onda de irritação,
desatou a falar:
— Não sei... desconfio de que eu esteja sendo investigado.
Walter torceu o rosto numa careta.
— Investigado? Por quem?
— Ah... um tal de Frederico. É novo na cidade... ele estava rondando o
quarteirão outro dia. E teve a safadeza de comparecer ao meu jantar
beneficente, acredita?
— Acredito... olha, acho melhor... nos precavermos, Benedito. Não sei o
que esse estranho deseja, mas se ele descobrir os nossos planos de
redistribuição...
Uziel assentiu, levantando-se da cadeira, respirando fundo.
— É, pode deixar... vou esfriar a cabeça. Dar uma volta...
— Faça isso, faça isso... recomendação médica. Mas leve um guarda-
chuva...

127
A Última Pétala | Walace Rocha

Rindo, Uziel se virou, deixando o cômodo. E um Walter profundamente


preocupado.

Trotando sob o céu cinzento, Uziel observava os campos da Fazenda Santana.


Mesmo sob à garoa, os trabalhadores cultivavam, trabalhando duro. Mas
agora, ao contrário de antes, são livres. Semicerrando os olhos, o novo
senhor da fazenda desceu a estrada, fitando, ao longe, as ruínas da casa
grande. Sentindo um gosto amargo na boca, entrou no velho pátio — palco
de muitas festas. Desceu do cavalo e levou-o ao estábulo. A cada passo,
recordava-se de um dia passado naquela fazenda, como criança e como
homem. Mas agora... Torcendo o nariz a respeito dos próprios pensamentos,
atou o cavalo no travessão. Girou os calcanhares e saiu novamente para o véu
frio da garoa, dirigindo-se aos degraus de entrada da ruína.
Passo a passo, venceu a escada, saindo na sala de estar esburacada, o
antigo espaço para festas de César. O ex-pistoleiro ergueu os olhos; dos
rombos do telhado, feixes claros de luz desciam, iluminando a ruína —
preenchendo-a com um ar ainda mais frio.
— Ah... muitas lembranças — baixou os olhos e examinou o cenário.
Após tantos anos, as únicas coisas que perduravam eram as pedras e as
camadas de poeira. Então, algo quebrou o silêncio. Passos. Uziel se virou à
entrada, e se surpreendeu ao ver um homem alto e bem-vestido, de pele clara
e cabelo louro se aproximar, sorridente. — Quem é você? Esta é uma
propriedade privada.
Edgar fez uma careta.
— Calma, senhor... estava apenas de passagem... fiquei curioso para ver
como era a fazenda do lendário César. Aliás, me chamo Edgar. Sou sobrinho
do falecido doutor Ramirez.
Ao escutar o nome do doutor, Uziel sentiu um calafrio correr por seu
corpo.
— Ramirez...
— Sim, acredito que o senhor chegou a conhecê-lo. Afinal, roubou sua
noiva.
Cerrando o punho, Uziel respondeu num rosnado.
— Eu não roubei nada. César havia feito um trato... e o trato, se foi com
sua morte.
— Ora, interessante.... — Edgar desatou a caminhar pela sala arruinada,
examinando-a. — O senhor roubou a noiva. E não contente, a fazenda.
Uziel fechou os olhos, respirou fundo, e forçou-se a fitar Edgar.
— Saia daqui. Agora.

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A Última Pétala | Walace Rocha

— Calma, calma — Edgar encarou-o, os olhos brilhando. — Como


devo chamá-lo? Não sei qual nome você usa agora... Uziel? Benedito?
Sem pensar duas vezes, Uziel enfiou a mão na cintura. E, para a surpresa
de Edgar, sacou uma arma.
— Ah... calma, calma...
— Saia daqui — Uziel apontou-a para o homem louro.
— Não precisa atirar... só quero lhe dizer uma coisa... — Edgar desfez o
sorriso. — Meu tio estava te investigando. Descobriu muita falcatrua sua.
Agora, quem está terminando o trabalho é o investigador Frederico. Acredito
que já o tenha conhecido... pode tentar fugir, mudar de nome... mas a verdade
liberta, Uziel — voltando a sorrir, Edgar se virou, deixando o cômodo
arruinado.
Alguns segundos depois, Uziel baixou a arma. Resfolegando, ergueu os
olhos, fitando o céu cinzento pelos rombos do teto.

129
A Última Pétala | Walace Rocha

Capítulo 25

Naquela mesma tarde, a garoa se intensificou. Uziel trotava pelas ruas da


cidade, quando, por obra do destino ou não, avistou uma cobertura onde
poderia amarrar seu cavalo. Aproximou-se, desceu de sua montaria e
prendeu-a. Virou-se e pôs-se a fitar a cidade tomada pelo cinza. Poucos
carros passavam, as calçadas estavam quase vazias. Então, mais uma
casualidade aconteceu. Da esquina, um homem surgiu, e ao ver Uziel,
aproximou-se, sorridente.
— Ora, mas que felicidade! Que felicidade! — Exclamou o investigador
Frederico, prostrando-se ao lado do ex-pistoleiro e cumprimentando-o. — O
que faz aqui num dia de chuva? — Gesticulou para o cavalo. — E a cavalo,
ainda por cima.
Forçando um sorriso, Uziel respondeu:
— Estou tendo um dia muito estressante... — apontou para o cavalo. —
Pensei que galopar um pouco ajudaria. Mas o clima...
— Ah, o clima... sempre estragando tudo. E está ficando frio, hein?
Olha, conheço um bar que fica aqui perto. Aceita uma rodada?
Arrependendo-se, Uziel aceitou. Deixando seu cavalo para trás, seguiu o
investigador calçada abaixo, parando poucos metros depois. Examinou o
estabelecimento e entrou, sentando-se na mesa mais próxima. Um instante
depois, foram atendidos pelo garçom, que retornou logo em seguida com as
bebidas.
— Vou tomar apenas uma dose — Uziel disse, observando o
investigador com atenção.
— Vejo que é um homem sábio! Senhor Benedito... — Frederico levou
o copo aos lábios, bebericando um gole da aguardente — sempre morou por
estas bandas?
Ah...
— Não. Eu vim de outra cidade... e aqui, conheci César. Pouco tempo
depois, comecei a fazer parte de sua... guarda pessoal.
— Oh... os mais velhos desta cidade dizem que ele era louco —
Frederico bebericou mais um gole da bebida e sorriu, aguardando a resposta
de Uziel.

130
A Última Pétala | Walace Rocha

— Bom... sim, escutei uma história ou outra, mas não acredito nelas.
Enquanto trabalhava para ele... César sempre se mostrou um homem bondoso.
Muito bondoso com todos.
O investigador arqueou uma sobrancelha.
— Ah... sim... bom, eu não o conheci. Digo isso porque tanto aqui,
quanto em muitos outros lugares, não existia lei! As pessoas faziam suas
próprias leis e... — abriu os braços. — Bom, a civilização chegou, não é?
Agora, as pessoas caminham dentro da lei. E eu... eu respiro a lei. Eu vivo
pela lei.
— Então o senhor deve estar um tanto quanto ocupado com essas
pessoas...
— Aí é que tá, Benedito! As pessoas de hoje seguem ela, a lei, porque
elas já nasceram na lei. Mas... homens como eu e você... a coisa toda tende a
ser diferente. Mas isso não importa, não é? Vivemos o presente — Frederico
terminou de tragar sua bebida.
— Sabe... investigador... quero aproveitar o momento para tirar uma
dúvida.
— Ora, vamos, diga, não se acanhe!
— Sinto que... o senhor está me perseguindo.
Um silêncio perturbador pairou entre os dois homens; por fim, o
investigador rompeu numa gargalhada.
— Ah, Benedito... você é um homem interessante. Até mesmo pensa em
se tornar prefeito! Por isso gosto de te ter sob minha mira.
Torcendo o rosto numa careta de desgosto, Uziel se levantou.
— Está tarde. Obrigado pela bebida.
— Mas o senhor nem tocou nela!
Gesticulando, Uziel saiu do estabelecimento, deixando um Frederico
sorridente sentado à mesa.

Do céu escuro, a chuva caía de maneira pesada. Observando-a do degrau de


seu jardim, Uziel navegava em um mar de pensamentos. Afinal, desde que
matara César e mentira para Luana a respeito de sua morte, estava vivendo
pelo quê, senão o passado assombroso? Construíra uma família, estava
concorrendo a um cargo político, tinha dinheiro e uma bela casa, mas ali,
sentado no degrau frio que levava ao jardim, sentia o mais absoluto vazio. O
mar que era sua mente voltava a se tornar escuro, e os pensamentos negativos
iam e vinham como ondas. Iam e vinham, iam e vinham, iam e vinham...
Luana cutucou-o, fazendo-o retornar à realidade ainda mais sombria.

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A Última Pétala | Walace Rocha

— Às vezes me preocupo com você — a mulher se sentou no degrau,


observando a chuva torrencial. — O que tanto remoí? Os medicamentos do
doutor Walter estão fazendo efeito?
— Acho... que leva tempo. Mas continuo tomando.
— Ah... isso é bom. Olha — apontou para a chuva —, faz tempo que
não chove assim... ainda mais fora de época.
— Tem razão... também é a primeira vez que vejo chover tanto assim.
Os dois se calaram, e por alguns minutos, apenas ficaram assistindo o
temporal. Então, Luana se levantou, fazendo Uziel enrugar a testa.
Lentamente, ela ofereceu a mão.
— Vamos dançar?
— É uma boa ideia?
Luana sorriu.
— Sempre é.
Pegando a mão de Luana, Uziel se levantou, e lentamente, o casal
caminhou pelo jardim, parando ao lado de uma mureta de flores. E sob à
chuva forte, os dois deram início a uma valsa suave, sem pressa. Não temiam
à noite que os cercava, não temiam as gotas violentas. Imersos em silêncio e
pelo cheiro de terra molhada, apenas dançavam, e enquanto rodopiava com
sua esposa, Uziel voltou a pensar sobre sua vida. E por um curto momento,
sentiu-se triste ao saber que, amando muito Luana e seu filho, quase não
dedicava seu tempo para com eles. Passava a maior parte do dia imerso em
trabalho, perdendo um tempo que jamais voltaria. Eu tenho de mudar, mas...
Agora, arrependia-se ainda mais, pois o filho, agora crescido, queria se
mudar para outra cidade. E Uziel sabia que segurá-lo seria pior. Ele é livre...
Florêncio é livre... Afastando os pensamentos, Uziel voltou a se concentrar
na valsa, usufruindo a presença da esposa.
Assim que dançaram a valsa completa, retiraram-se do jardim. Tomaram
um banho quente e, assim que o ex-pistoleiro vestiu novas roupas, rumou-se
ao quarto do filho, encontrando-o sentado à escrivaninha. Ao vê-lo entrando
no quarto, Florêncio ergueu os olhos escuros.
— Pai... vi o senhor pela janela — sorriu. — Gostou de dançar com
minha mãe?
— É sempre prazeroso, filho — Uziel caminhou pelo quarto, sentando-
se na cama do garoto. — Escuta... sei que a gente não passa muito tempo
juntos. Eu queria, mas o trabalho me suga... — encarou Florêncio nos olhos.
— E sei também que você quer muito cursar aquela faculdade... — Uziel
cruzou os braços. — Acredito que... talvez dê para pensar seriamente nisso.
Florêncio abriu um sorriso de orelha a orelha.

132
A Última Pétala | Walace Rocha

— É sério, pai?
Uziel assentiu.
— Seríssimo. Quero vê-lo brilhar, filho. Mesmo que isso custe... ficar
sem te ver durante um tempo.
— É... obrigado, pai.
Uziel se levantou, bagunçou o cabelo do filho e beijou sua testa. E
despedindo-se, saiu do quarto.

Seguindo as orientações do investigador, Edgar batia à porta do quarto da


pousada. O assunto estava ficando demasiadamente delicado para ser
conversado em locais públicos, e dava toda a razão ao homem. No terceiro
toque, a porta escura se abriu, e num passo ágil, Edgar entrou no cômodo.
Examinou o quarto perfeitamente organizado, enquanto a porta era trancada
por um Frederico extasiado.
— Ah, chegou num bom momento, meu amigo — o investigador disse,
virando-se para encarar Edgar, os olhos brilhando. — Um bom momento!
— Vejo que você está animado... — Edgar caminhou até a cama e se
sentou na beirada. — O que descobriu?
— Ora, muitas coisas. A investigação avançou bem... e devo lhe
comunicar que darei um tempo. Uma pausa.
Edgar enrugou a testa.
— Uma pausa?
— Sim... hoje realizei uma jogada arriscada. Mas que jogada! Aliás, me
encontrei com Benedito mais cedo. Paguei uma bebida ao homem, mas ele
não aparentava estar tão animado para beber.
Edgar desviou o olhar.
— O que achou dele?
— Hm... — o investigador caminhou pelo quarto, pensativo. — Um
homem irritadiço, mas cheio de uma certa... ambição, por assim dizer. É
imponente... um leão, mas até quando ele será um animal perigoso? —
Encarou Edgar, esboçando um sorriso de orelha a orelha. — Posso afirmar...
que hoje foi o último dia em que Benedito mostrou suas presas. De agora em
diante, se transformará num animal dócil e covarde.
— Garante isso?
— Ha! Pelo meu nome que sim! Agora... trouxe aquilo?
— Sim — Edgar se levantou, levando uma das mãos ao bolso e
pescando um pacote de réis. — Termine o trabalho, e receberá outro pacote
desse.
Frederico riu.

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A Última Pétala | Walace Rocha

— Ah...pode deixar...

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A Última Pétala | Walace Rocha

Capítulo 26

Assim que o dia clareou, Uziel pôs-se a caminhar rumo à clínica de Walter.
Àquela hora, poucas pessoas transitavam; os estabelecimentos estavam
começando a abrir, as ruas começavam a se encher de veículos. Apertando o
passo, dobrou uma esquina, avançou mais alguns metros e parou de frente à
clínica. Levou a mão à maçaneta, e agilmente, usou o macete há muito
conhecido para abri-la. Entretanto, a porta continuou imóvel, trancada. Ele
não está? Arqueando uma sobrancelha, voltou a se aproximar, usando
novamente o macete. E mais uma vez, a porta não se mexeu. Confuso, Uziel
se afastou, olhando de um lado a outro, o coração acelerado. De chofre, se
virou, parando uma mulher qualquer na calçada, assustando-a.
— Senhora, perdão — disse ele, as palavras jorrando de sua boca. — A
clínica... a senhora sabe se tem alguém aí?
Franzindo a testa e recuando um passo, a mulher de meia-idade ergueu
os olhos, fitando o pequeno prédio.
— Olha... pelo que disseram mais cedo... o médico que morava aí foi
embora — a mulher apontou para uma das janelas fechadas do segundo andar.
— Vê? Parece que não tem ninguém aí.
Uziel arregalou os olhos.
— Foi embora...? Mas, por quê?
A mulher deu de ombros.
— Parece que estava envolvido em algum tipo de roubo. Meu Deus...
ele parecia ser um homem tão honesto, um homem tão devoto... Que Deus
possa ter piedade deste mundo — dito isso, a mulher voltou a andar,
passando por um Uziel em choque.
Walter deixou a cidade... Ergueu os olhos, trêmulo. Walter deixou a
cidade...

Sentado à sua mesa do escritório, Uziel fitava a rua abaixo através da janela.
Estava à espera do investigador e Edgar, que a qualquer minuto, surgiriam ali,
famintos para levá-lo à prisão. Não, isso não pode acontecer comigo. Não
pode. À porta, Florêncio bateu, tirando-o do devaneio pessimista. Amainando
sua expressão de desespero, o ex-pistoleiro se virou.
— Olá, filho...

135
A Última Pétala | Walace Rocha

A face de Florêncio era uma mistura de preocupação e confusão. O


rapaz segurava um jornal — provavelmente local —, e a passos lentos,
aproximou-se da mesa do pai.
— Pai — Florêncio entregou-lhe o jornal. — Por que estão dizendo isso?
Abismado, Uziel pegou o jornal, abrindo-o e lendo uma das manchetes.
— “O Senhor da fazenda, o homem mais santo da cidade, é suspeito de
estar envolvido num escândalo de corrupção...” — leu, estupefato. — Ah,
não, não... — com olhos rápidos, Uziel desatou a ler a matéria que acusava-o
de muitas falcatruas envolvendo sua fazenda e uma ligação suspeita com a
clínica de Walter. E a cada linha lida, o desespero e a ansiedade
aumentavam...
— Vou... deixar o senhor sozinho — Florêncio disse, virando-se e
saindo do escritório.
À mesa, ainda incrédulo, Uziel voltou a ler toda aquela calúnia. Por fim,
largou o jornal e fechou os olhos, respirando fundo. Preciso de paz... preciso
de paz... Virou-se novamente à janela, fitando a rua abaixo, à espera de
Frederico e seus homens da justiça. No entanto, não vieram naquela tarde.
À noite, tentou jantar, mas não sentia apetite algum. E, ao se deitar na
cama, o sono não veio, mesmo estando drenado. Então, no silêncio da noite,
a voz preocupada de Luana pairou, seca e arrastada.
— Florêncio me mostrou o jornal — disse ela, tossindo logo em seguida.
— São calúnias... apenas isso. Essa gente... — Uziel reparou que sua esposa
arfava, parecia estar com dificuldade para respirar. — Essa gente... sente
inveja de nós, sempre sentiram inveja dos Santana... e... — um novo acesso
de tosse fez com que parasse de falar.
Uziel respirou fundo, deixando o assunto de lado temporariamente.
— Esqueça, querida... — Uziel se virou no colchão, encarando-a. —
Você está arfante — levantou uma mão e pousou-a sobre a testa da esposa.
— Também está com febre... passou o dia todo assim?
— Ah... apenas tosse. Estou me sentindo um tanto cansada. Deve ser o
estresse.
— Quer um copo de água?
Luana sorriu.
— Seria bom.
Uziel se levantou da cama e saiu do quarto, avançando à cozinha a
passos largos. Pegou um copo na pia, encheu-o de água e retornou ao quarto,
entregando-o à esposa, que sorveu todo o conteúdo num único gole.
— Estava com sede, hein? Bom, agora tente relaxar. Amanhã, se você
continuar doente, vamos levá-la ao médico.

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Sorrindo, Luana puxou a coberta e fechou os olhos. Isso... durma...


Observando-a, Uziel sentiu um aperto no peito. Aproximou-se da cama e se
deitou. Fechou os olhos, tentou esvaziar a mente, mas não conseguiu dormir.
Rapidamente, as horas passaram, adentrando a madrugada. Cansado, o novo
senhor da fazenda se levantou, enquanto Luana dormia profundamente. Ar.
Com passos leves, saiu do quarto, passando pelo corredor e descendo a
escada em caracol em direção ao jardim. A brisa da madrugada estava fria, e
ao respirá-la, sentiu uma pequena onda de energia.
— Era disso que precisava — avançou um passo e se sentou no degrau
cinzento, observando a pequena escultura que enfeitava o lugar, as plantas, as
flores. — Que noite silenciosa...
— Silenciosa? — Uma voz fantasma perguntou, vinda de lugar nenhum.
Uziel semicerrou os olhos, e à frente, um vulto parecido com seu pai se
formou. — É, é uma noite silenciosa, sim. Bem... diferente daquela em que
fomos emboscados. Aliás, pelo que me lembro... era para você ter morrido —
o vulto pareceu rir, um som gorgolejante pairou no ar da madrugada. — Você
ficou todo paralisado, não conseguia segurar as rédeas! Se não fosse por
Nero... Nero que colocou a carroça em movimento. Ah, sim...
— Cale-se — rosnou Uziel. — Você não é meu pai.
— Oh, claro que não — o vulto pareceu se encolher, e a voz mudou,
adquirindo o tom de José. — Eu matei ele, eu matei seu pai. E depois que
Nero te tirou de lá, você remoeu aquela noite na sua cabeça, não é? Ha! Mas
remoeu, sim, e remoeu e remoeu e remoeu por oito anos! E depois voltou...
— Calado.
— Voltou para me matar, e o que aconteceu? Envolveu um monte de
gente, Uziel. Você tem sangue nas mãos.
— Calado. Eu não te matei? Então fique calado — Uziel disse, a voz
firme. Continuava sentado, encarando o vulto com esgar.
— É, você matou ele — o vulto voltou a mudar, a voz era a de César,
agora. — E me matou, também. Matou Abigail. Matou Alícia. Matou
Carmela. Matou sua mãe. Você não queria se tornar uma pessoa como eu —
o vulto voltou a soltar o som gorgolejante que era sua risada. — E não se
tornou, Uziel. Você se tonou uma pessoa pior.
Uziel se ergueu abruptamente, irado.
— Silêncio! — Gritou, fechando os olhos. E quando os abriu, o vulto
não estava mais lá, e sim a figura de uma garotinha ao lado de um animal
grande, uma espécie de cão. Uziel fechou os olhos, e quando os abriu,
percebeu que estava são. Visão alguma o perturbava.
E, com o coração acelerado, fitou as estrelas.

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Capítulo 27

Sentado em sua cadeira, Uziel olhava fixamente para a parede à frente, sendo
consumido pela desolação. Alguns dias se passaram desde que Luana
apresentara os sintomas, e fora diagnosticada com pneumonia. Fizeram o
possível, mas ela não resistiu. Agora, o ex-pistoleiro pensava e se arrependia
de cada ato que tomara em sua vida até aquele momento. Luana cresceu com
a história omitida da morte dos pais de Uziel e dos outros na infância, e
adulta, fora novamente vítima de uma história mal-contada, então, pela
narrativa do marido. Ela morreu achando que o pai fora morto numa
emboscada... ela morreu sem saber que quem matou o pai dela, fui eu. Será
que sua alma descansa em paz, ou arde em fúria? Meneando a cabeça,
voltou a fitar a parede, os olhos lacrimejando. Passos pairaram no ar, e ao seu
lado, Florêncio parou, encarando-o com um par de olhos preocupados.
— Pai... o senhor precisa sair. Tomar um ar... faz dias que não sai deste
escritório.
Uziel não moveu os olhos, continuou concentrado na parede.
— Eu sei... mas não consigo. Ainda... machuca.
— É... também sinto falta dela.
— Eu devia ter passado mais tempo ao lado dela. Eu queria passar mais
tempo com ela, filho... mas... não sou merecedor de nada.
Um silêncio frio começou a pairar entre os dois, e, subitamente,
Florêncio fez algo que assustou Uziel.
Abraçou-o.
— Eu estou aqui, pai. Eu estou aqui...
— Eu sei, filho — lágrimas verteram de seus olhos. — Eu sei... —
respirou fundo, secou as lágrimas com as costas da mão e voltou a falar. —
Você... eu sei que o momento não é propício, mas sinta-se à vontade para
embarcar em sua aventura na universidade.
Florêncio se afastou, desviando os olhos.
— Eu não sei se deveria. Não quero deixar o senhor aqui, sozinho...
Uziel resfolegou, e sorrindo, fitou o filho.
— Tudo bem... acho que essa viagem te fará bem... vamos nos preparar.
Acredito que dê para reservarmos sua passagem.

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Florêncio não sabia o que sentir. Queria, sim, viajar, mas com tudo que
vinha acontecendo nos últimos dias, sentia-se inseguro de tomar qualquer
tipo de decisão. Queria ficar com o pai, vigia-lo, mas sabia que quando Uziel
tomava uma decisão, não voltava atrás.
— Certo... tudo bem, pai.
— Bom... acho que está na hora de fazer uma coisa que deveria ter feito
há muito tempo... Acomode-se, acho que vou te contar as minhas histórias de
infância.
— E as histórias de quando era pistoleiro?
— É... essas talvez conte, mas não a versão integral... você não tem
idade suficiente.
Rindo, Florêncio puxou uma cadeira, e durante toda a tarde,
conversaram sobre as histórias de Uziel e muitas outras. E a cada palavra
trocada com o filho, o ex-pistoleiro sentia-se mais leve e aliviado.

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Capítulo 28

A manhã estava nublada, mas Uziel não se sentia mais incomodado com o
clima. Pelo contrário, estava com o coração cheio de bons sentimentos a
respeito do filho, principalmente orgulho. No terminal ferroviário, despedia-
se de Florêncio, abraçando-o e dizendo que sentiria saudade. Se afastou, e ao
vê-lo embarcando no trem em meio à multidão, sentiu uma sensação de dever
cumprido. Agora, estava se preparando para finalizar sua sina perante a
sociedade. Sorrindo, virou-se, caminhando pelo piso sujo do terminal cheio,
enquanto o trem emitia seu apito agudo e colocava-se em movimento. Adeus,
Florêncio. Subiu alguns degraus e saiu na rua movimentada. Agora, estava
sozinho. Baixando os olhos, avançou pela calçada, os pensamentos negativos
surgindo. Queria caminhar, e assim o fez, seguindo por muitos metros,
durante horas. Por fim, quando se sentiu cansado, dirigiu-se a uma praça. E lá,
sentou-se no banco mais próximo. O dia pode estar nublado, mas isso não
diminui a alegria dessas pessoas... Ao longe, uma mulher de roupas simples
se aproximou, contente ao vê-lo.
— Como é difícil te encontrar — Sofia falou, sentando-se ao seu lado.
— Sei que a cidade está crescendo, mas...
Uziel moveu os olhos à mulher, contente. Agora, ao contrário de quando
a encontrara jogada na rua, Sofia sustentava um vigor acima da média. Estava
limpa, usava roupas novas e o cabelo estava lavado e penteado. Uma nova
mulher. Sorriu.
— Sempre estou por aí, basta perguntar a qualquer um — Uziel riu. —
Você... aparenta estar bem.
Sofia sorriu, encarando-o com certo brilho.
— Seu dinheiro me ajudou muito. Aluguei um quarto numa pousada, me
reestruturei... logo, logo arrumarei algum trabalho. E assim, poderei te
devolver o dinheiro.
Uziel ergueu uma mão.
— Não, não precisa, Sofia. É um presente... é algo que um bom amigo
faz... é algo que qualquer amigo tem de fazer: ajudar.
Então, Sofia abriu os braços, e num gesto súbito, abraçou-o.
— Obrigada, Uziel... obrigada por tudo.

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Uziel retribuiu o abraço, sentindo que devia ter sido mais honesto com a
amiga. Mas agora, era tarde.

Caminhando pela calçada de volta para casa, Uziel mais uma vez amaldiçoou
o destino. À frente, um homem bem-vestido sorria ao vê-lo. E não demorou
para se juntar à caminhada.
— Faz tempo que não o vejo, Benedito. Aliás, meus pêsames — disse
Frederico.
— O que você quer? — Uziel perguntou, o tom cortante.
— Ora, estou apenas... conversando com um homem que se tornou
viúvo. Deve ser triste... — os dois dobraram uma esquina. — O dia hoje está
ótimo, não acha?
— Vá direto ao ponto.
Frederico riu.
— Ah, mas eu vou, sim, senhor, já que persiste — ainda rindo, o
investigador continuou. — Sabe, fico me perguntando quem o senhor é...
Uziel, Benedito, é, por acaso, um maldito fantasma? Como disse outro dia,
acho o senhor um homem interessante... Por 16 anos, Ramirez fez um pobre
detetive vasculhar muita coisa podre, coisa suja, sabe? E tudo porque não se
contentava com a sua versão da morte de César — este, um outro cretino,
veja bem! Por muito tempo, tudo que Ramirez conseguiu fazer foi juntar
provas de como César era um monstro. E só depois... é que conseguiu chegar
em você. Um rapaz que surgiu de maneira heroica... ganhou a confiança do
Senhor da Fazenda rapidamente; como se... já soubesse o que fazer e o que
esperar. E mais rápido ainda foi sua ascensão. Então, Ramirez perdeu sua
noiva, ficou paranoico e veio a falecer remoendo essa mesma história, ano
após ano — Frederico voltou a rir, deliciado. — E eu, sabe-se lá como, fui
metido no meio dessa confusão.
— O que você está querendo dizer? — Chichiou Uziel.
— Ah... o que estou querendo dizer, Uziel... é que você é tão culpado
quanto César. Envolveu-se em inúmeros crimes, e admito que me surpreendi
com sua relação com Walter. Olha — Frederico entrou na frente de Uziel,
forçando-o a parar —, você pode fingir o quanto quiser, pode trocar de nome,
dar jantares beneficentes e até mesmo virar prefeito, mas a conta... uma hora
ela vai chegar, ah, vai chegar, sim!
Irritado, Uziel empurrou o homem para o lado e voltou a caminhar pela
calçada.
— A conta vai chegar? — Disse ele, sem olhar para o investigador. —
Me pergunto o que vão tomar de mim, considerando que já perdi tudo.

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A Última Pétala | Walace Rocha

Sentindo-se extremamente cansado, Uziel dirigiu-se a um restaurante


próximo de sua casa. Sentou-se na primeira mesa que lhe apareceu e pôs-se a
examinar o cardápio. Não estava com tanta fome, mas sentia que precisava
colocar algo no estômago. Escolheu um prato e chamou o garçom; o homem
baixo anotou seu pedido e se retirou. Enquanto aguardava, Uziel moveu os
olhos sobre o local, analisando cada rosto indiferente ao que acontecia;
pessoas comuns, vivendo suas vidas comuns. Por um momento, pensou sobre
Edgar, o tio maluco e o investigador. Afinal, quem, além dos três... além dos
dois, se importava com algo que aconteceu há mais de dez anos numa terra
sem lei? Ninguém. Uziel baixou os olhos, fixando-os na superfície da mesa.
Ninguém se importa... e daqui a dez anos, quem estará vivo para continuar
me procurando? Fechou os olhos, respirou fundo, e o garçom tirou-o dos
pensamentos, depositando seu almoço.
— Obrigado.
O garçom aquiesceu, virou-se e se afastou da mesa. Pegando o garfo,
Uziel pôs-se a comer, tentando saborear cada mordida. Apesar do aroma
prazeroso e do ótimo gosto do tempero, seu apetite não se abriu. Forçando-se
a terminar a refeição, Uziel se levantou, deixando o dinheiro na mesa. Deu
meia-volta e saiu do estabelecimento. Calmo, desceu a calçada. E, do outro
lado da rua, vislumbrou a imagem de um Edgar sorridente. Também sorrindo,
o genro de César ergueu uma das mãos num aceno, e ainda calmo, seguiu
para casa.

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A Última Pétala | Walace Rocha

Capítulo 29

Caminhando pela casa vazia, Uziel era fisgado para o passado; cada cômodo
vazio trazia-lhe uma recordação. Vozes recentes ecoavam; Sofia, Luana,
Florêncio, Walter... Mas, também, vozes de dias passados — César, Abigail,
Alícia, Carmela, Nero. Enquanto avançava pela casa, notava a semelhança
entre ele e o imóvel: ambos eram extravagantes por fora, recebiam elogios.
Mas por dentro, em seu interior, eram ocos; vazios e silenciosos. As últimas
moléculas de vida partiram... A passos largos, entrou na sala onde Luana
costumava passar longas horas tocando piano, preenchendo a casa com as
notas de Chopin. Agora, o instrumento jazia solitário, à espera do próximo
músico, mas nenhum como sua antiga dona. Resfolegando, o ex-pistoleiro
deixou o cômodo, dirigindo-se agora ao quarto de Florêncio.
A cama estava arrumada, as estantes e a escrivaninha jaziam
perfeitamente organizadas. Mas sem a sua presença, filho. Torcendo o rosto
numa expressão de angústia, Uziel caminhou até seu escritório. Sentou-se na
cadeira, pegou uma folha e desatou a escrever uma carta, trêmulo. Alguns
minutos depois, dobrou-a e voltou a se levantar. Resfolegou mais uma vez e
amainou sua expressão abatida. Saiu do escritório, passou pelo corredor e
desceu a escada, chegando à cozinha.
Poucos metros adiante, Lucinda terminava de arrumar a mesa. Ao notar
a presença do patrão, resolveu se aproximar, confusa.
— Olá, senhor Benedito — Lucinda disse, parando a poucos metros. —
Precisa de algo?
— Não... não preciso de nada, Lucinda. Quer se sentar? Vamos, não
sinta receio... você é de casa — Uziel puxou uma cadeira e gesticulou para
que a empregada fizesse o mesmo. Franzindo o cenho perante a atitude do
patrão, Lucinda se acomodou numa das cadeiras. — Precisamos... conversar
sobre algumas coisas.
Lucinda arregalou os olhos, preocupada.
— Fiz algo de errado, senhor? Por acaso... suspeita de algo?
Uziel riu.
— Não, não... nada disso. Você fez um bom trabalho nestes últimos
anos, dona Lucinda, e sinto que devo recompensá-la por tal. Escrevi uma
carta com algumas instruções — Uziel levou a mão ao bolso e pescou-a,

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A Última Pétala | Walace Rocha

depositando-a sobre a mesa. — Um documento legal sobre a sua


aposentadoria. Chega de trabalhar... a senhora merece descansar. Pode ficar
com a casa.
Lucinda empalideceu.
— Não... não posso aceitar, senhor. E Florêncio?
Sorrindo, Uziel respondeu:
— Florêncio só voltará a pisar nesta cidade daqui a cinco ou seis anos,
chutando baixo. E ademais, deixei certas instruções no final da carta para
quando esse dia chegar. Não precisa se preocupar — Uziel se levantou da
cadeira e deu a volta ao redor da mesa, parando ao lado da mulher de meia-
idade, encarando-a nos olhos. — Por hoje, está dispensada. Vá por aquela
porta e saia como empregada... arrume suas coisas na sua casa, e daqui a
cinco dias, volte, mas desta vez, saiba que estará entrando como dona, como
senhora...
Lucinda sentia uma mistura de emoções. O patrão estava louco, afinal,
ela não merecia nada daquilo. No entanto, Uziel continuava de pé, fitando-a
com seriedade. Meu Deus, pensou a mulher, ele fala sério. Não conseguindo
conter as lágrimas, a empregada se levantou, abrindo os braços e envolvendo
o homem num forte abraço. Tentou dizer algo, mas não conseguia parar de
soluçar.
— Calma, Lucinda, calma... Vamos, te acompanharei até a porta em seu
último dia de serviço. E não se esqueça da carta! — Uziel esticou uma das
mãos para pegá-la. — Ainda hoje, passarei na imobiliária. Tudo será seu,
com exceção de uma pequena quantia em dinheiro, que está reservada a
Florêncio.
Os dois avançaram pela casa, parando à porta. Secando as lágrimas,
Lucinda conseguiu dizer, ainda incrédula perante a atitude repentina do
patrão.
— Mas e o senhor? No que está pensando?
— Não se preocupe...
— Mas... mas... ao menos me peça um último pedido. Estou em dívida
com o senhor.
Uziel ficou pensativo durante alguns segundos. Por fim, disse:
— Tome conta de tudo... apenas isso. Em memória de minha esposa,
tome conta de tudo...
Aquiescendo, Lucinda pegou a carta, e ainda sem acreditar, atravessou a
porta, despedindo-se. De maneira educada, Uziel fechou a porta, trancou-a e
se virou. Seus olhos flutuavam, seus ouvidos eram preenchidos pela casa
silenciosa. Ah... era disto que Nero falava? Pé ante pé, o ex-pistoleiro e novo

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A Última Pétala | Walace Rocha

senhor da fazenda, pôs-se a andar, atravessando mais uma vez a cozinha e


subindo a escada. Ah, Luana, como sinto sua falta. Como me arrependo de
não ter conseguido passar mais tempo ao seu lado. Venceu os degraus,
seguindo agora pelo corredor. Ah, meus amigos, como queria ter dado mais
valor a vocês... Diminuindo o passo, parou à frente da porta de seu escritório.
Respirou fundo, e firmou sua decisão final.
Entrou no cômodo e fechou a porta, trancando-a. Virou-se e se
aproximou de uma cômoda, abrindo uma das gavetas compridas e revelando
uma espingarda. A mesma que usara para matar César. A mesma que usara
para matar José. Lentamente, envolveu-a com as mãos, pegando-a. Então,
dirigiu-se à sua mesa e se acomodou.
— Ah... tudo vai acabar. — Acariciando a arma, checou para ver se
estava carregada. Engatilhou-a e deslizou os dedos ao gatilho.
E fechou os olhos.

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A Última Pétala | Walace Rocha

Capítulo 30

Assim que amanheceu, toda a frente da casa de Uziel foi cercada por uma
dezena de viaturas barulhentas, provocando um frenesi na vizinhança. De um
dos carros, um Frederico orgulhoso desceu, contente com o excelente
trabalho. Puxando o grupo, seguiu até o portão trancado, sendo acompanhado
pelos colegas policiais. Uma voz soou, e ao virar o rosto, viu um Edgar
sorridente juntando-se a eles. Sim, haviam feito um bom trabalho. Anos de
investigação, e ali, colhiam o fruto.
— O dia chegou — comentou Edgar, Frederico assentiu.
Um dos policiais arrombou a tranca do portão, e assim que o
investigador deu a ordem, os agentes entraram na propriedade, cercando-a. A
porta de entrada foi aberta com facilidade, e um minuto depois, todos os
homens jaziam dentro dos cômodos, averiguando cada centímetro.
— Vamos, vamos... esta tem de ser uma operação rápida — Frederico
disse, a voz ecoando pelos cômodos.
— Que tal checarmos o segundo andar? — Edgar sugeriu, os olhos
movimentando-se de um lado a outro, ávidos. — Ah, Santo Deus, como
estou contente! Que a justiça seja feita!
Aprovando a ideia e não se preocupando em disfarçar a empolgação,
Frederico avançou até a escada a passos largos. E ao lado de Edgar, subiu os
degraus pulando de dois em dois. Uma vez no segundo piso, desataram a
procurar por Uziel, e demasiadamente empolgado, Edgar pôs-se a avançar
sozinho. Entretanto, a cada cômodo vazio que visitavam, os dois homens
abandonavam a animação, trocando-a pela preocupação. Onde, diabos, estava
o pistoleiro? Por fim, pararam de frente à porta do escritório.
— Ele deve estar aí... — chichiou Edgar, tenso, mas voltando a sorrir de
excitação.
Frederico sacou sua arma, e de supetão, abriu a porta, gritando.
— Acabou, Uziel! — Moveu a arma de um lado para o outro.
E, para sua surpresa, o último cômodo da casa encontrava-se vazio.
Irado, uivou:
— Procurem-no! — O rosto do investigador enrubescia. — Procurem-
no!

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A Última Pétala | Walace Rocha

Dentro de um dos vagões, um homem de sobretudo preto se acomodava


numa das poltronas, relaxado. Com um movimento de mão, retirou o chapéu,
pousando-o sobre o colo. O passageiro de pele escura passou os dedos
nervosos sobre o cabelo crespo cortado curto, e com um aceno, chamou um
dos funcionário do trem; um rapazote de pele queimada de sol e um par de
olhos cintilantes.
— Senhor, precisa de algo?
— Sim — respondeu. — Guarde bem essa minha mala — apontou para
a mala escura. — E... vocês têm algo para comer durante a viagem?
O rapaz pegou a mala, e se virando para o passageiro de pele escura,
disse:
— Trarei o cardápio... garanto que o senhor vai adorar as nossas opções.
— Ótimo — com mais um gesto de mão, dispensou o rapaz, voltando
sua atenção para a janela.
A plataforma começava a ficar vazia, o trem partiria logo. No espaço à
frente, um homem de pele clara se sentou na poltrona; seu rosto oval
sustentava um par de olhos castanhos, fios grisalhos misturavam-se aos
escuros. Atraindo o companheiro de viagem, perguntou num tom de voz
firme:
— Bom dia. Aonde o senhor vai tão cedo?
Sorrindo, o homem de pele escura se virou, encarando seu colega de
viagem.
— Bom dia, senhor. Estou indo para o sul... dizem que lá tem muitas
oportunidades.
— Oh, isso é verdade. Aliás — estendeu a mão. — Me chamo Matheus.
E o senhor, como se chama agora?
O homem de pele escura apertou a mão de Matheus.
— Ora, meu nome? Pode me chamar de — o apito do trem soou, e, aos
poucos, a locomotiva pôs-se em movimento, deixando aquela cidade para
trás.

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