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Walace Rocha
A Última Pétala
2022
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A Última Pétala | Walace Rocha
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A Última Pétala | Walace Rocha
CAIXA POSTAL
Contato: Cronica.elizir@gmail.com
Travessa Pau Brasil — Vila Rica
Extrema —MG
CEP 37640-000
CAPA: Fabíola Lauton de Jesus
DESIGN DE CAPA: Fabíola Lauton de Jesus
DIAGRAMAÇÃO E REVISÃO: Walace Rocha
A ÚLTIMA PÉTALA
Rocha, Walace
1ª Edição
Maio de 2022
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PRIMEIRO
ATO
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Capítulo 1
11 de maio, 1910.
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— Foi conhecer a fazenda, aquele José chegou cedo aqui. Hoje mesmo
já começam a trabalhar — Lira pegou o bule sobre a chapa do fogão e
depositou-o à mesa.
— Pai deve estar animado — o garoto pegou uma xícara de porcelana e
serviu-se do café ralo e doce. Sua mãe agachou, vasculhando uma das caixas
e retirando um pedaço de pão. Ergueu-se e entregou-o ao filho, que aceitou
de bom grado.
— Sim, ele e todos os outros — Lira fitou o garoto, carregando o cenho.
— José falou algumas coisas... regras da fazenda. Resumindo para que você
compreenda... pode se reunir com as demais crianças e brincar à vontade.
Mas não chegue perto das plantações, sim?
Uziel aquiesceu, bebericando o café e mordendo o pão duro. Lira
voltou-se ao fogão, mexendo no conteúdo da panela. Por um momento, o
garoto se perguntou como estariam as coisas na vila onde morava. Vazio,
parado. Estamos todos aqui, afinal. Meneando a cabeça, terminou de comer
o pão e de beber o café. Levantou-se, observando a paisagem através da
janela. A manhã estava ensolarada, quente.
— Vou sair, mãe. Ver meus amigos.
Lira gesticulou.
— Tome cuidado.
— Não se preocupe — animado, Uziel atravessou a porta, saindo na rua.
De imediato, seus olhos pousaram em Nero e Sofia, seus melhores
amigos. Acercou-se, então, dos dois, sorrindo.
— Arre! Olha só quem acordou — Nero disse. O garoto era poucos
centímetros mais alto que Uziel, tinha a tez clara e cabelo liso cortado curto.
Filho de Matheus, amigo de seu pai.
— Vejo que estão animados — Uziel disse, virando-se à Sofia e
reparando, de canto de olho, o grupo de crianças que se reunia na outra rua.
A garota de pele escura e cabelos crespos torceu o nariz numa careta.
— Estamos todos animados, você sabe bem disso, Uziel — Sofia disse.
— Queremos explorar este lugar, vamos descobrir o que ganhamos com essa
nova vida.
— Mas temos de ter cuidado, minha mãe disse que o capacho de César
alertou as crianças...
— Não seja chato, Nero — cortou Sofia, dando um soquinho no braço
do garoto.
— Certo... estou animado. Vamos nos reunir com os outros, então? —
Uziel disse, observando o grupo na outra rua, seus conterrâneos.
— Vamos! — Nero se virou, rumando ao grupo, seguido de Sofia.
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Uziel desatou a andar, mas parou ao ver, na primeira rua, uma garota de
pele levemente bronzeada, da mesma idade que ele, cabelos castanhos e
olhos claros. Imediatamente, recordou-se dela, era a mesma menina da casa
grande, que saiu na varanda no dia anterior. O que ela faz aqui? Nero parou
de caminhar, volvendo-se a ele.
— Vamos, amigo. O que faz aí parado feito um bobo?
— Aquela garota... o que ela faz aqui?
Com uma expressão azeda, Sofia respondeu:
— Ela é filha do patrão. Deve estar aqui para se certificar... de que... nós
não faremos nada de errado. Uma chata, uma xaropona, essa daí!
— Ela... ela só quer brincar conosco — Uziel disse. — Vou chamá-la.
— Não faça isso — resmungou Sofia. Entretanto, Uziel caminhou em
direção à garota. — Ah, eu não acredito!
— Deixa, talvez ela se sinta solitária — comentou Nero. — Antes de a
gente chegar, não havia criança alguma aqui.
— Ha! Problema dela.
Acercando-se da filha do patrão, o garoto moreno parou.
— Olá, me chamo Uziel. Você... quer brincar com a gente?
Acanhada, a garota assentiu, desviando o olhar.
— Me... me chamo Luana.
— Luana... — Uziel semicerrou os olhos, reparando que os olhos da
garota eram de um agradável tom cor de mel. — Você veio sozinha?
— S-sim...
— Ah... é uma boa caminhada. Certo, vamos... meus amigos querem
explorar este lugar. Estão animados!
E, timidamente, Luana seguiu Uziel pela rua de terra batida, banhados
pelo sol matinal.
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Capítulo 2
Sentada em seu sofá, com o colo coberto por um manto esverdeado, Abigail
tricotava sob à luz matinal que trespassava a janela quadrada da sala,
banhando-a com uma claridade morna. Pela primeira vez em meses, a mulher
robusta estava despreocupada, pois a fazenda era vazia demais, não havia
criança alguma. E Luana passava seus dias trancada em seu quarto, não
ousando sair. Mas agora ela pode fazer muitos amigos. Abigail ergueu os
olhos à janela, observando o céu azul, presa num leve estupor. De chofre, a
porta lateral se abriu, e um César carrancudo entrou, tirando o chapéu.
— Querido, já veio almoçar? — Abigail perguntou, sua voz saiu trêmula.
Ainda carrancudo, o homem de cabelos cacheados atravessou o cômodo,
parando e fixando os olhos escuros na esposa.
— Não, ainda é cedo.
— Ah, certo... e... o que está achando dos novos... trabalhadores?
César correu os olhos pela sala, franzindo o cenho.
— É... vão servir. Espero que durem mais que os anteriores. Mulher,
onde Luana está?
Abigail largou as agulhas de tricô, desviando o olhar.
— Luana está brincando... com as crianças novas.
Ao ouvir as palavras da esposa, César enrubesceu, irado. Cerrou os
punhos e avançou um passo, suas pupilas tremiam.
— Como é que é? — Rosnou. — Como você pôde deixar minha filha
sair e se misturar com aquelas... coisas?!
Abigail sentiu o coração acelerar. Respirou fundo, virou-se ao marido e
disse:
— Não são... coisas... são apenas crianças. Ela estava muito sozinha,
precisava de companhia.
— A companhia dela somos nós — César disse, pausadamente. — Quer
saber? À noite conversamos a respeito disso. Estou atrasado — voltou a
colocar o chapéu sobre os cabelos cacheados e saiu da sala pela porta que
levava ao corredor.
Assim que o homem saiu, Abigail sentiu a pressão do ar voltar ao
normal. Resfolegando, ergueu os olhos novamente à janela. Ave Maria... Do
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Capítulo 3
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O novo dia estava igual ao anterior; o sol ascendia no céu sem nuvens,
despejando seu calor matinal sobre a Fazenda Santana. Na vila dos
trabalhadores, Uziel e Nero caminhavam pela estrada de terra, em direção aos
campos onde as demais crianças se encontravam. Apesar do susto do dia
anterior, Uziel estava calmo, indiferente ao que acontecera à Luana. Mas, em
seu âmago, sentia uma pontada de medo. Ela não fará mal algum... caiu
sozinha enquanto brincávamos. Apenas isso. Mas e se ela contasse outra
história aos pais? Bastava uma palavra, e Uziel e todos os seus conterrâneos
voltariam para casa, para a aldeia medíocre que abandonaram. Mas, uma vez
lá, seriam bem-recebidos? Meneando a cabeça, voltou sua atenção a Nero,
que falava algo.
— Você parece estar gostando daqui, Uziel.
— Eu? É... um pouco. Acho este lugar um tanto melhor que nosso
antigo lar. Meu pai disse que é uma terra de oportunidades.
Os dois garotos desceram um declive, deixando as casas à distância. À
frente, as terras de César se estendiam; uma estranha mistura de verde e cores
secas, calor e vento agradáveis. Uma sintonia natural, convidativa e especial.
— Meu pai não aparenta estar muito contente — Nero ergueu os olhos
ao azul eterno do céu. — Ele estava animado, sim, mas... — baixou os olhos.
— Não sei, não sinto verdade em suas declarações.
— Não se preocupe. É apenas... costume — Uziel sorriu, Nero
aquiesceu. Ambos apertaram o passo, terminando o declive e avançando pelo
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— Uziel, o que foi isso? Fará tudo que essa... garota pedir?
Uziel ergueu as mãos.
— Não... ela queria comer um dos frutos. Apenas isso. Não gostei de
vê-la isolada...
— Ah... agora entendi — Sofia cruzou os braços, arqueando uma
sobrancelha. — Você se transformou no capachozinho dela, ah, virou, sim...
Ignorando Sofia, Uziel disse a Nero:
— E então, vamos pegar mais algumas?
Nero sorriu.
— Quer apostar pra ver quem pega mais?
E os dois desataram a correr, deixando uma Sofia taciturna para trás,
dirigindo um olhar de soslaio à Luana, que voltava ao isolamento,
saboreando o fruto dado por Uziel.
Com o sol a pino, Benedito guiava o burro; o arador vibrava ao passar sobre
o chão seco. De ambos os lados, Matheus e Tadeu dividiam na semeadura.
De todos os cantos, os demais trabalhadores espalhavam-se. Adiante, um
José carrancudo supervisionava o trabalho, fingindo autoridade, de peito
estufado. De chofre, o homem franzino pôs-se a caminhar, aproximando-se
do sujeito que ficara atado ao arador no dia anterior. Assim que José se
acercou, o trabalhador se encolheu.
— Você... se lembra do que fez ontem, não é?
— S-sim, senhor. Mas hoje estou sendo cuidadoso, estou me esforçando.
— É o mínimo. Para pagar o burro, terá de trabalhar muito, um bocado!
Então se esforce, tá me ouvindo?
Assentindo, o trabalhador voltou a trabalhar, agora com mais energia.
Vendo a cena, Matheus se adiantou, bradando a pá.
— Você sabe que ele não tem culpa alguma a respeito da morte do burro!
— Matheus disse num tom afiado. José se surpreendeu, sorrindo.
— Ora, parece que temos um cão selvagem no meio desta matilha
imunda. Pois saiba, cão, que é graças ao meu patrão que você tem comida na
mesa, um teto e uma cama! — Num ágil movimento, José sacou um chicote
atado à cintura. — E refira-me como senhor, seu bastardo! — E num
segundo, o chicote estalou contra as costelas de Matheus, fazendo-o largar a
pá e cair no chão, uivando de dor.
Imediatamente, Benedito largou a rédea do burro, aproximando-se do
amigo. José enrolou o chicote e guardou-o na cintura, ainda sorrindo com a
exibição de seu poder autoritário. Alguns trabalhadores despejaram olhares
de soslaio, temerosos.
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Capítulo 4
Afastados das vilas dos trabalhadores, Uziel e Nero caminhavam por uma
trilha de terra estreita, cercados pelo mato alto. A manhã estava amena,
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algumas nuvens corriam no céu, levadas pela leve brisa. O garoto negro
carregava dois baldes entupidos de minhoca, enquanto o outro carregava
varas de bambu com argolas de arame improvisadas. Ziguezagueavam pelo
caminho, memorizando a trilha.
— Há mesmo um rio bom por aqui? — Perguntou Uziel, franzindo o
cenho.
— Sim... ouvi meu pai comentando outro dia — Nero adiantou-se
alguns passos, guiando o amigo. — Com sorte, pegaremos muitos peixes.
— É... espero que sim. Deu trabalho pegar todas estas minhocas —
resmungou Uziel, fitando os baldes.
Os dois desceram um declive, e, por fim, escutaram o leve som do rio.
Cuidadosamente, seguiram pela terra molhada, parando à margem. À frente,
o rio de água límpida corria de maneira calma. Agilmente, os dois garotos
puseram-se a preparar as varas, prendendo as minhocas nas argolas.
Sentaram-se e lançaram as linhas. O vento aumentou seu sopro, fazendo as
poucas árvores ao redor tremularem, despejando suas folhas. Uziel respirou
fundo, enchendo seus pulmões com o ar úmido, o cheiro de terra molhada
relaxando-o. Era estranho estar tudo quieto, sem as demais crianças correndo,
pulando e gritando ao redor.
E, como que lendo sua mente, Nero disse:
— Devíamos voltar aqui com os outros. Sabe, nadar...
— É, talvez.
Nero fincou a ponta da vara na margem e esticou as pernas, levantando
os olhos.
— Sabe, na maior parte do tempo, eu gosto deste lugar. Me passa uma
sensação de... calmaria.
— É, mas não para todos. Percebi que... meu pai já não anda tão
animado como antes. Todas as noites ele agradece a Deus pelo trabalho, são
orações incessantes à Virgem, mas... suas palavras...
— Arre! Deixa disso, Uziel. É coisa de adulto, eu aqui já estou tendo
dor de cabeça. Minha mãezinha disse que um dia vou entender... só não sei se
quero. Aliás, um dos capachos de César passou mais cedo em casa. Terá uma
festa no casarão de sua amiga...
Uziel carregou o cenho.
— Ela não é minha amiga. Você é meu amigo, assim como Sofia e os
outros...
Nero abafou um riso, voltando os olhos ao rio.
— Se não é sua amiga, é o quê? Sua futura chefia? Pensando bem...
acredito que todos nós seremos os futuros funcionários desta fazenda.
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Capítulo 5
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— Ah, isso animou muito o meu dia, meninos! — Sofia dobrou uma
trilha. — Espero que saibam nadar!
— Eu não vou entrar na água — comentou Uziel, o olhar perdido.
— Eu também não, ficarei apenas na margem, observando... — Nero
falou, rindo.
— Ah, como vocês são chatos — resmungou Sofia. Agora, era possível
ouvir o som da agitação infantil que cercava o campo. Os três apertaram o
passo, atravessando os últimos metros e chegando à margem; à esta altura,
apinhada de crianças.
— Minha mãe disse para não tirarmos as roupas, apenas os calçados —
Nero comentou, franzindo o cenho. — Vejo que todas as outras mães
disseram o mesmo.
Rindo, Sofia analisou o cenário de olhos semicerrados. E com um
sorriso largo, voltou-se a Uziel.
— Vejo que sua amiga não veio — disse ela num tom jocoso. — Talvez
tenha se cansado de brincar com a gente, afinal...
— Não diga nada — resmungou, de chofre, Uziel. — Sabemos qual é a
diferença. Eu sei a diferença... tenho doze anos. Sou um rapaz.
Ignorando o comentário azedo de Uziel, Sofia deu de ombros. Tinha dó
do amigo, pois estava preso num mundo de sonhos. Ele não sabe o que é
realidade. E ainda se acha esperto! Olhando para Nero de soslaio, Sofia
tirou o par de sapatilhas e correu até o rio, misturando-se às demais crianças.
— Você não vai pular? — Nero perguntou a Uziel, abandonando o riso,
adotando uma feição séria.
— Sabe bem que não estou com vontade. Aliás, acho que deveria
voltar... Desculpa — e, sem esperar pela resposta do amigo, Uziel se virou e
se afastou do rio a passos largos, deixando toda aquela gritaria animada para
trás, no lugar onde não deveria ter ido.
Fez o caminho de volta rapidamente, como que fugindo do sol
fustigante, carregando em seu âmago algo estranhamente amargo. Ao avistar
a vila de trabalhadores, desatou a correr sem motivo algum. E, ao entrar na
cabana apertada, parou, arregalando os olhos. Sentada à mesa, uma mulher
negra conversava com sua mãe, que estava de pé, ao lado do fogão. Mas não
foi a mulher desconhecida que fez Uziel se espantar, e sim a figura a seu lado;
uma garotinha de pele bronzeada e cabelos castanhos, rosto tal qual uma
boneca, exótica. Ao vê-lo, sua mãe gesticulou às visitas.
— Uziel, meu bem, já voltou? Estas duas senhoritas vieram nos visitar.
Esta é Carmela, trabalha na casa grande. E a outra — Lira sorriu —, você já
conhece... a filha de César, Luana.
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Neste instante, Uziel sentiu o coração tremer, gélido de medo. Será que
ela contou ao pai sobre sua queda, há tantos dias? Seremos expulsos... por
minha causa? Notando sua palidez, Carmela riu e disse:
— Calma, garoto. Parece que viu uma assombração. Estou cá apenas
dizendo à sua mãe uma coisa importante...
Lira continuou:
— A senhora Carmela veio aqui justamente para dizer que, tanto eu,
quanto às outras mulheres, teremos o prazer de dormir esta noite na casa
grande, a fim de ajudar na festa de amanhã. Então, você e seu pai terão de se
virar sem mim... — Lira transmitia a notícia como se fosse uma boa nova. E,
para ela, talvez fosse.
Acanhado, Uziel recuou um passo, baixando os olhos.
— Ah, eu já... imaginava isso.
— Bom, que tal deixar sua mãe e eu espalharmos o aviso? Luana, pode
sair na rua, se quiser, querida.
De maneira mecânica, Luana se levantou da cadeira, dando a volta na
mesa e se aproximando de Uziel. De supetão, este se virou, atravessando a
porta e saindo da casa, ainda sentindo calafrios.
— Para que apressar os passos? — Luana questionou, apertando o passo
a fim de acompanhar Uziel.
O garoto parou, mas não se virou.
— Por que você veio aqui? Achei que tivesse se cansado da gente...
— Ora, vim porque queria sair um pouco daquela casa. Ela é grande e
vazia. E tão solitária...
— Mas para que vir aqui?
— Não questione. Estas terras são minhas, não é?
Uziel calou-se. Luana avançou, prostrando-se à frente dele.
— Perdão.
— Não me peça perdão, Uziel. Vamos, acho que você ainda não
explorou todo este lugar... venha — e sem olhar para trás, Luana correu pela
estrada.
Ah... Deus... Hesitante, o garoto seguiu-a. Deixaram a vila e viraram
numa trilha quase que oculta. Sem questionar e em silêncio, Uziel seguiu-a
morro acima durante alguns minutos. Por fim, Luana parou de se mover,
virando-se para encará-lo.
— O que achou deste lugar? — Luana abriu os braços, rodopiou e
voltou-se à frente. — É o meu predileto.
De olhos abertos, Uziel se aproximou, caminhando sobre o novo terreno.
Era completamente diferente de todos os lugares vistos até então, com uma
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grama extremamente verde a correr para lá e para cá, com algumas fileiras de
flores enfeitando a paisagem. Adiante, uma ladeira descia, revelando uma
vastidão ainda mais bela, um prólogo de um mundo utópico criado por Deus,
onde pessoas como Uziel eram banidas antes mesmo de nascer.
— Como pode existir um lugar assim? — Disse ele para ninguém em
especial, maravilhado. Luana voltou-se a ele.
— Sabia que você se alegraria. Estava todo pálido! Venha, aproxime-se
da beira e contemple o vale!
Obediente, Uziel caminhou até a beirada, fitando o morro abaixo, suas
flores e o gramado verde.
— Não sei exatamente como me sentir. Antes de vir para cá, nunca
havia visto tal coisa. Mas mesmo assim, às vezes sinto saudades de casa.
Sentir isso é pecado?
— Acho que não, todos nós sentimos saudade de algo.
— Por que... você não foi brincar hoje?
— Ficarei um tempo na... — Luana suspirou — casa fria e solitária.
Meu pai anda bravo.
Uziel franziu o cenho, preocupado.
— Bravo, por quê?
— Porque eu não me vinguei — de súbito, Luana empurrou Uziel, e este,
por reflexo, grudou suas mãos nos braços da garota.
E, de cima do elevado, ambos rolaram gramado abaixo; chegando à
parte plana, sujos de terra e grama. Os dois riram, deitados lado a lado. Luana
rolou, pondo-se a fitar o céu vespertino.
— Sabe — começou ela, parando de rir. — A chegada de vocês... foi a
melhor coisa que aconteceu.
— A nossa... chegada... — balbuciou Uziel, também contemplando o
céu. — Antes da gente chegar, havia outras crianças?
Luana ignorou a pergunta, ficando em silêncio. Uziel respeitou sua
decisão, e juntos, ficaram a observar o céu pelo resto da tarde.
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cada rosto arruinado. Cansados, assim como ele. Após alguns minutos em
silêncio, desatou a falar:
— Meus amigos, meus conterrâneos... — iniciou ele numa voz baixa. —
Estamos aqui reunidos para... conversarmos sobre algo... — passou os olhos
novamente sobre cada rosto. — Nós temos de fugir deste lugar...
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Capítulo 7
Sentado à mesa, Uziel observava sua mãe palestrar sobre como a festa na
casa grande fora magnífica, com todos os membros da alta-sociedade. Lira
falava sem pausa, as palavras jorravam de seus lábios, seus olhos fumegavam
de emoção. Encostou-se na pia, suspirou e voltou a fixar o olhar no garoto.
— Bom... chega de falar da festa... Como passaram à noite? —
Perguntou ela, após tomar fôlego.
— Papai e eu cuidamos de tudo — Uziel respondeu, simplesmente. —
Ele voltou mais cedo... jantamos e fomos dormir — não contaria a Lira sobre
o passeio noturno de seu pai. Sabia que era algo sobre adultos, e manteria a
coisa desse jeito. — Mas... sinto-me feliz que tenha se divertido. Disseram
que na próxima festa todos estarão convidados.
Lira levantou uma sobrancelha, a animação retornando.
— Ótimo, ótimo! Quando for, compreenderá minha emoção!
Uziel riu, há muito não via a mãe tão feliz. À porta, Nero surgiu.
— Bom dia, senhora Lira.
— Ah, olá, Nero. Entre, entre. Estava contando a Uziel como foi bom
ter feito parte da festa.
Nero esboçou um leve sorriso.
— Minha mãe também está contente. Demasiadamente feliz.
— É! Ela compreende, compreende! Mas... — Lira baixou os olhos,
fixando-os nas varas de pesca que o garoto segurava. — Veio chamar Uziel
para pescar tão cedo?
Nero ergueu as varas, o barbante enrolado ao redor.
— Sim, talvez peguemos alguns peixes.
Lira assentiu, gesticulando para o filho.
— Vá, vá com teu amigo. Está muito desanimado pro meu gosto.
Rindo, Uziel despediu-se de sua mãe, e junto de Nero, rumou-se ao rio.
Sob o céu matutino, Benedito trabalhava com sua pá, os olhos atentos
passando de um lado a outro, nervosos. Tadeu guiava o burro, o arador
tremendo. Ao lado, Matheus estava imerso em silêncio. Do outro lado, a
poucas dezenas de metros, um homenzinho se aproximou, trêmulo. Ao vê-lo,
Benedito pausou seu trabalho e acercou-se do sujeito.
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Uziel não demorou em sua pescaria com Nero. A dupla ficou na margem do
rio durante alguns minutos e, ao verem que não pegariam nada, retornaram à
vila. Ao longe, deslumbraram as demais crianças correndo de um lado a
outro, escondendo-se de maneira frenética. Como que lendo os pensamentos
de Uziel, Nero depositou as varas entre algumas raízes, o amigo fez o mesmo,
e sem perder tempo, correram em direção às crianças.
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Capítulo 8
Alguns dias se passaram desde à festa na casa grande. Assim como nas
primeiras semanas, aqueles dias passavam rapidamente, com o sol
extremamente dourado iluminando os dias, e as milhares de estrelas, às noites.
No entanto, a sequência de dias não foi suficiente para acabar com o
sentimento de saudade que Uziel sentia. Gostava, sim, do novo lugar, mesmo
ficando com medo algumas vezes e estranhando certas atitudes adultas que
cercavam-no, como se tomassem-no como um tolo. Forçava-se a ignorar isso,
fingia indiferença, e conseguia na maior parte do tempo, graças a Nero, Sofia
e as demais crianças. Um dia de cada vez, como costumam dizer. O garoto
espreguiçou-se na cama de palha; lentamente, abriu os olhos, encarando o
teto já tão conhecido. Levantou-se, calçou as botinhas surradas e dirigiu-se ao
banheiro. Lavou o rosto, escovou os dentes e penteou o cabelo.
À cozinha, Lira depositou uma xícara de café sobre a mesa, ao lado de
um prato contendo uma fatia de queijo. Uziel entrou no cômodo, e com
poucos passos, sentou-se à mesa.
— Bênção, mãe — disse ele.
— Deus te abençoe. Dormiu bem?
Uziel pescou a fatia de queijo, e de maneira mecânica, desatou a
bebericar o café.
— Sim... mesmo com toda essa quentura — começou a morder o queijo,
enquanto Lira voltava a se concentrar nas tarefas da cozinha. — Pai está...
— No trabalho, você sabe — Lira respondeu.
Uziel terminou de comer o queijo, pegou a xícara e tragou um longo
gole do café doce. Baixou a mão, e sem querer, disse:
— Aonde ele vai todas as noites?
Ao escutar tais palavras, Lira sentiu um calafrio subir-lhe à espinha.
Sem se virar, respondeu:
— Coisa de adulto. Você não deveria ficar prestando atenção na
conversa dos outros... é falta de educação.
— Perdão, é que... — fechando os olhos, Uziel se levantou. — Vou
brincar lá fora.
— Vá, meu filho... — Lira volveu-se a ele. — E vê se para de curiar a
conversa dos outros.
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O silêncio pairava sobre o quarto, denso, com sua escuridão morna. Benedito
abriu os olhos, moveu-os de um canto a outro e, lentamente, se ergueu. Ao
lado, Lira se contorceu. Ah, Deus... Fechou os olhos, e por instinto, prendeu a
respiração. Por fim, a voz sussurrante da esposa chegou aos seus ouvidos.
— Aonde vai?
Benedito ficou de pé, e com outro sussurro, respondeu:
— Prepare-se.
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Capítulo 9
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Luana aquiesceu.
— Vamos, antes que a festa comece de verdade.
E, sentindo um calafrio, Uziel seguiu-a.
Além das cercas da casa grande, prostrado ao lado de uma carroça, oculta
pela noite, Benedito observava a cantoria, a animação e a felicidade daquelas
pessoas. E, tocado pela curiosidade, permitia-se perguntar o porquê de todos
aqueles homens e mulheres estarem daquela maneira, usufruindo da vida.
Deus sabe o que faz. Cada homem possui a rede que deve ter... Meneando a
cabeça e afastando todos os pensamentos malditos, recuou. Girou os
calcanhares, fixando o olhar em Matheus. O amigo estava nervoso, mas
tentava disfarçar seu estado.
— As carroças estão prontas? — Benedito perguntou.
— Sim... está tudo saindo como planejado. Esta noite... seremos livres,
meu amigo.
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Capítulo 10
Seguindo Nero terreno abaixo, Uziel não parava de sentir calafrios; seus
olhos iam e vinham de um lado a outro, notando a leve agitação que
maculava o ar noturno. Adiante, ao lado do casarão, os adultos importantes,
amigos de César, continuavam sua prosa, assim como suas proles. Mas onde
estão os outros... os meus amigos? Com um cutucão, Nero tirou-o do
devaneio. Os dois atravessaram o local, abandonando os comes e bebes, a
fogueira, a animação, e chegaram à estrada. Poucas dezenas de metros depois,
o menino guiou-o por uma trilha cercada de árvores secas e, ocultas entre elas,
meia dúzia de carroças. Espantado, Uziel parou de se mover, boquiaberto.
Benedito se aproximou, saindo de entre os veículos, sustentando um
olhar perturbado.
— Pai, o que está acontecendo? O que são essas carroças?
Benedito ajoelhou-se diante do filho.
— Apenas suba em uma das carroças, sim? Fique quieto, assim como as
outras crianças.
— Mas...
— Vamos, Uziel, obedeça seu pai — Nero disse, agarrando-o pelo braço
e levando-o à carroça mais próxima.
Benedito assobiou e gesticulou, os adultos ao redor se agitaram. Contra
sua vontade, Uziel sentou-se no canto do veículo, encarando Nero com um
olhar perfurante; o menino desviou os olhos, envergonhado. Ele sabia disso...
e não me disse nada? E, com mais um assobio, Benedito subiu na carroça,
pondo-a em movimento.
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SEGUNDO
ATO
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Capítulo 11
20 de agosto, 1918.
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defender a área, mas não foram treinados para tal coisa. Estou sem opções.
Meneando a cabeça, voltou sua atenção a José, parado a poucos metros, ao
lado da carruagem.
O capacho continuava com o físico franzino, mesmo após todos aqueles
anos. Seus olhos estavam fundos no rosto magro, quase cadavérico, mas tão
negros quanto a noite. Ainda assim, uma certa animação corria por suas
células. E ao ver o patrão, abriu um largo sorriso.
— Senhor — gesticulou para o veículo, atado em dois garanhões.
— Vamos logo à cidade, José. Não quero ficar tanto tempo longe daqui.
— Sim, senhor — o capacho escalou a carruagem, sentando-se no banco
elevado e pegando as rédeas. César entrou e fechou a porta.
José pôs o veículo em movimento, saindo do pátio. E com uma olhadela
rápida através da janela, César viu sua filha à varanda, observando-o se
afastar.
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esquerda. José gritou, caindo ainda mais no desespero. Mas, para sua
surpresa, aqueles dois novos sujeitos não faziam parte do grupo de bandidos
— ao menos, não daquele que se prostrava à frente. De maneira rápida e
difícil de acompanhar, um tiroteio entre as duas duplas deu-se por iniciado.
Por instinto, o capacho e seu patrão correram para de trás da carruagem,
abrigando-se da chuva de chumbo; cada disparo parecia rasgar o ar, ecoando
no sertão. Por fim, os disparos cessaram, e o silêncio seco voltou a pairar
sobre a estrada. Acabou? Eles se mataram? Tomando coragem, César saiu do
abrigo, caminhando de volta à estrada, enquanto José continuava escondido.
Seus olhos escuros pousaram nos dois cadáveres estatelados — o
homem de pele amarela e seu amigo de face arruinada pelo disparo da
espingarda. Parados ao lado dos corpos, o homem de pele escura e seu
parceiro parrudo encaravam-no com curiosidade. Forçando-se a abrir a boca,
César disse:
— Vocês... vão nos matar, agora? — Sua voz saiu firme, deixando-o
orgulhoso.
O homem de pele escura pousou sua espingarda sobre o ombro, sorrindo.
— Não... somos apenas... defensores desta região. O senhor sabe bem
que é perigoso passar por esta estrada, ainda mais sob essas construções
abandonadas.... são ótimas tocas de bandidos.
Aliviado, César chamou José, avisando que estava tudo bem. Contente,
o capacho saiu de seu abrigo, estufando o peito, examinando os dois
pistoleiros de olhos semicerrados.
— É, vejo que vocês sabem usar esses ferros — comentou ele, olhando
de soslaio para os corpos estirados. — Se eu estivesse armado...
— Calma, José... — César ergueu uma mão, pedindo silêncio, uma ideia
se formando em sua mente. — Vocês dois... vejam bem... ando enfrentando
problemas com esses bandidos. Andam invadindo minhas terras com
frequência...
Compreendendo aonde o patrão queria chegar, José chichiou:
— Não é possível que o senhor esteja pensando nisso.
Ignorando as palavras do capacho, César continuou falando sua ideia, os
olhos brilhando de animação.
— Vocês fazem parte de algum grupo? Eu pago bem, preciso de ajuda.
É sabido que o policiamento da região é ruim.
Foi Nero quem respondeu:
— Olha, fazemos isso por justiça, não por dinheiro — ameaçou se virar,
César exclamou.
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No alto do campo florido, Luana observava o céu vespertino perder sua força
a cada instante que se passava. Desde àquele dia, colocara a visita ao lugar à
sua grade de tarefas diárias. Na verdade, era mais do que isso, visitar o
campo era uma terapia — ou ao menos, pensava que fosse. Continuava
sonhando com os dias passados de sua infância, sonhava com as poucas
brincadeiras que tivera e dos poucos amigos. Mas, por vezes, tais sonhos não
passavam de pesadelos, ao invés de boas lembranças. Cerrou os punhos e
respirou fundo, fechando os olhos por um instante. Quais seriam seus planos
dali em diante? Sabia bem que seu pai pretendia casá-la com alguém, mas...
O som dos passos leves de Alícia tiraram-na do devaneio. Luana virou-se,
encarando a amiga de pele escura, voluptuosa para sua idade, a face redonda
e um par de olhos brilhantes; pérolas noturnas. A sobrinha de Carmela,
trazida de longe apenas para ser sua amiga, mais uma das artimanhas de seu
pai. No entanto, gostava muito da moça.
— Fica cada vez mais fácil descobrir onde você está — Alícia disse,
com uma voz doce.
Luana forçou um sorriso.
— Tenho de melhorar, não é? Mas eu gosto deste lugar...
— Te faz lembrar daqueles seus amigos de infância? Devia parar de
pensar neles com tanta frequência. Digo... perdão.
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Capítulo 12
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Capítulo 13
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Dopado por uma angústia anormal, Uziel seguiu Rafael pela estrada da
fazenda até a vila dos trabalhadores. Com Nero a seu lado, voltaram mais
uma vez a passar pelo antigo pedaço de terra apinhado de novas pessoas — e
ainda assim com tantas lembranças. Seguiram pela primeira rua e viraram na
segunda, parando diante de uma cabana onde Rafael morava. O rapaz estava
inquieto, e agora, sob à forte luz matinal, Uziel pôde notar sua estranha feição;
trêmulo e levemente contorcido, como se o rapaz estivesse sentindo dores no
estômago.
— Ainda mora aqui? — Comentou Nero, examinando a moradia com
olhos injetados. — Após tudo aquilo... continuam morando aqui? — Esboçou
um leve sorriso de escárnio. — Ah...
— Espero que seu pai esteja acordado — falou Uziel, passando à frente
de Rafael e dirigindo-se à porta de entrada. Pousou a mão na velha maçaneta
e girou-a, abrindo-a e entrando na cozinha de supetão.
— Filho, já voltou? — Perguntou um homem franzino e careca,
virando-se para trás. Ao ver que não se tratava de seu filho, arregalou os
olhos miúdos, fundos em seu rosto arruinado pela insônia e o cansaço sem
limite. — Você... quem é você...? — Tadeu recuou um passo, batendo as
costas na pia.
— Quem eu sou? Não reconhece? — Uziel avançou um passo. Um
instante depois, Nero entrou, seguido de Rafael, este ainda mais inquieto. —
Mas e ele, reconhece? — Apontou para Nero.
Tadeu continuava de olhos arregalados, movendo-os de Nero a Uziel. E,
assim como seu filho no cemitério, aos poucos, ia associando o que estava
acontecendo.
— Não... não é possível... não é possível! — Gaguejou ele.
— Ah, mas é muito possível, sim! — Uziel voltou a avançar mais um
passo. — Olha, sinceramente... pensei que estivesse em um lugar melhor.
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Mas me enganei... após aquela noite, você retornou para cá, retornou à velha
rotina. Não se deu bem.
— Eu... eu escolhi viver.
Foi a vez de Nero avançar alguns passos em direção ao homem, o cenho
carregado.
— Escolheu viver, mas parece que continua preso. Talvez a morte pela
liberdade teria sido melhor.
— Vocês... — Tadeu suspirou, criando coragem para avançar pela
cozinha. Puxou uma cadeira e se sentou, arfando. — Eu paguei por aquela
escolha... minha esposa morreu de tísica há alguns anos. E Rafael está
doente... Fui dispensado do trabalho no campo, mas como podem ver, não me
encontro numa situação muito melhor — Tadeu resfolegou, fechou os olhos
por alguns segundos e voltou a abri-los, levantando-os aos dois fantasmas do
passado. — Vieram me matar?
Uziel virou-se à mesa, aproximando-se de Tadeu.
— A minha vontade era essa, tenho de ser sincero. Mas... me parece que
a vida já cuidou disso. Você já sofreu quase o suficiente.
— Quase? — Tadeu franziu o cenho, e um segundo depois, foi acertado
por um soco de Uziel; o punho cerrado chocou-se contra seu rosto, fazendo-o
ver estrelas. O homem foi arremessado contra o chão.
— Meu Deus, pai! — Rafael gritou, assustado, e correu para socorrê-lo.
— O que vocês querem, o que... o que...
— Limpe esse sangue da boca de seu pai — Nero disse, olhando para
Tadeu com desprezo. — E fiquem calados... se alguém souber da gente —
gesticulou para Uziel, que se aproximara —, então voltaremos aqui para
finalizar o que a vida ainda não teve a decência de terminar.
E deixando um Tadeu ensanguentado no chão e seu filho assustado, os
dois pistoleiros deixaram a cabana, batendo a porta. Uziel queria mais, queria
voltar e esmurrar Tadeu por mais alguns minutos, mas sabia bem que tal
coisa não lhe traria prazer algum. Talvez, quando matarmos José, a coisa
toda possa ser mais divertida. Afastaram-se da cabana, atraindo olhares, e
seguiram pela rua de terra. Adiante, a duas dezenas de metros, duas moças
encontravam-se paradas, fitando-os.
— Aquela...
— Sim — Uziel disse. — Nero... me espere na saída da vila, ao lado dos
cavalos, sim?
Aquiescendo, o amigo continuou seguindo, enquanto Uziel se acercava
das duas mulheres com uma expressão resoluta. Alícia mantinha-se neutra,
mas seus olhos cintilantes denunciavam o prazer da moça em vê-lo. No
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entanto, Uziel ignorou-a, fixando seus olhos e toda sua atenção na mulher
esguia de pele bronzeada e olhos cor de mel à sua frente. Os cabelos
cacheados agitavam-se sob a leve brisa matinal. Os dois se encararam durante
alguns segundos, analisando-se em silêncio. Por fim, Luana pediu a Alícia
para que ficasse ali, aguardando-a, e começou a caminhar. Uziel seguiu-a. E
mergulhados em silêncio, caminharam vila afora, por uma trilha há muito
conhecida por ele, chegando, poucos minutos depois, ao campo florido.
Ali, Uziel se impressionou ao ver como o lugar continuava belo; um
espaço deslocado da realidade cruel a qual estavam habituados a viver. Em
seu vestido longo e pesado, Luana se virou, os olhos trêmulos em sua face
angulosa.
— Este à minha frente... é o mesmo Uziel de que me lembro? —
Perguntou ela numa voz calma, mas que escondia desespero.
— Esta à minha frente é a mesma Luana? — Uziel avançou um passo.
— Acredito que a resposta seja sim e não. O tempo tratou de mudar seu
corpo e refinar sua alma, para o bem ou para o mal...
Novamente, o silêncio voltou a pairar entre os dois. Então, Luana
desviou o olhar, voltando a falar.
— Só fui saber o que realmente havia acontecido naquela noite alguns
anos depois. Antes disso, ficava me perguntando... — voltou a encarar Uziel
— aonde você tinha ido, por que me abandonou... mas...
— Sabe bem que jamais lhe abandonaria. Mas... — cerrou os punhos. —
Realmente, após aquela noite, muita coisa aconteceu. Poucas crianças e mães
escaparam. Minha mãe morreu algumas semanas depois... acredito que ela
quis partir para se reencontrar com meu pai. E as coisas que tivemos de
fazer... — fechou os olhos, suspirando. — Praticamente, me tornei um
bandido. Tudo que o meu pai mais desprezava...
— Eu... eu... — Luana balbuciava, seus olhos lacrimejaram. — E os
seus amigos? Nero e Sofia?
— Nero me acompanhou nessa vida de armas... Sofia não se deu tão
mal... engravidou de um lojista qualquer e foi morar em algum estado do
sudeste. Perdi contato com o restante, mas não importa. Aqui estamos nós.
— É... aqui estamos nós... meu pai não o reconheceu. Que nome deu a
ele?
— Benedito. Nero se chama Matheus.
Luana esboçou um leve sorriso.
— Ironia do destino.
Sem se conter, Uziel se aproximou, envolvendo Luana com seus braços
e aproximando seus lábios, mas a mulher se desvencilhou, recuando.
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Uziel e Nero contornaram uma das alas da plantação, trotando sob o véu da
noite. Um silêncio aterrador dominava a Fazenda Santana, assim como o breu
praticamente absoluto. De olhos semicerrados, os dois analisavam o cenário
de um canto a outro. Avançaram mais alguns metros, e de esguelha, Nero
notou algo estranho ao longe. Concentrou-se, sacando suas armas. Uma luz
bruxuleante parecia flutuar, e, de supetão, mais luzes surgiram estrada abaixo.
Imediatamente, o homem engatilhou seus revólveres, preparando-se.
— Uziel — chamou Nero. — Invasores!
Uziel moveu seus olhos, sacando a espingarda. O grupo de luzes se
aproximava, e como que ensaiado, a dupla de pistoleiros pôs-se a disparar,
iniciando um tiroteio.
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Capítulo 15
Cada disparo parecia rasgar o céu noturno. Com seu cavalo, Uziel galopava
ferozmente estrada abaixo, rotacionando o grupo invasor enquanto executava
seus disparos com precisão. Engatilhar, disparar, recarregar. Do outro lado,
Nero efetuava disparos rápidos com seus revólveres. A dupla aproveitara o
fator surpresa, e, aos poucos, os bandidos recuavam. O ar tremulou, e Uziel
sentiu um tiro passar de raspão em seu braço direito. No entanto, o susto não
fora suficiente para fazê-lo parar. Continuou sua tarefa de se cercar do grupo.
Por fim, recuaram, gritando, o pandemônio preenchendo à noite. Uziel
parou de galopar, semicerrando os olhos e se divertindo com a visão das
luzes bruxuleantes ficando cada vez mais distantes, desaparecendo fazenda
afora. Gritou para o amigo, e este se aproximou, trotando.
— Eles não esperavam por isso, hein? — Nero disse, rindo, as armas
ainda empunhadas.
— Não, não esperavam — Uziel sorria. Há muito não se divertia numa
troca de tiros. Voltou a atar a espingarda às costas. — Mas eles voltarão, e
mais preparados.
— Precisamos chamar os outros.
— Sim — Uziel assentiu.
— Ei! — Gritou alguém, estrada acima. Os dois se viraram,
semicerrando os olhos. — Dava para escutar os disparos da casa grande —
César disse, aproximando-se em seu cavalo, junto de José. — Eram eles, não
é? — Parou seu cavalo a poucos metros da dupla.
— Sim — respondeu Nero. — Eram eles, os seus invasores, mas... —
riu. — Eles não esperavam nos encontrar.
— É... — a animação de César era palpável. — Fizeram um bom
trabalho colocando-os pra correr.
— Sim, mas como dizia a... Matheus — Uziel disse —, acredito que
voltarão. E voltarão preparados.
— É, mas nada que vocês não deem conta, acredito — César disse,
descontraído. — Vocês fizeram um trabalho excelente! Não é, José?
José fitava o horizonte tomado pelo breu. Com um grunhido, respondeu:
— É...
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O sol ascendia no céu, tornando a manhã quente. Com o pouco vento que
soprava, José ajeitou o chapéu, movendo os olhos sobre os trabalhadores.
Agora, eram mais do que foram em anos, mas sua supervisão era a mesma.
Ali, nas plantações, todos o temiam, e gostava disso. Mas estão começando a
perder esse medo. Girou os calcanhares e desatou a andar, contornando um
grupo de trabalhadores, que olhavam-no de esguelha. O que incomodava o
capacho era o fato de perder sua relevância como homem perante César;
sempre cuidou de tudo na fazenda, incluindo a segurança, mas... cerrou os
punhos, e vendo um outro capacho, aproximou-se.
— José — o capacho alto cumprimentou-o com um aceno de cabeça.
— Maicon... estamos com um problema — José disse num tom baixo.
— Estamos? — Maicon franziu o cenho.
— Sim. Estamos perdendo nosso valor neste lugar. E os culpados são
aqueles pistoleiros que o patrão contratou. Pode não confiar em mim agora,
mas verá que, pouco a pouco, estas pessoas — apontou para os trabalhadores
— perderão o medo que sentem de nós.
Maicon desviou o olhar, incomodado com o fato.
— E o que podemos fazer a respeito?
— O que podemos fazer? — José arregalou os olhos, fixando-os em
Maicon. — Um plano para atrapalhá-los seria bom... fazer César enxergá-los
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de outra forma. É... seria algo excelente — José esboçou um leve sorriso,
amenizando sua expressão ensandecida. — Reúna os demais para uma
conversa mais tarde, sim?
Maicon assentiu, e José se distanciou, voltando a supervisionar os
trabalhadores.
César saboreava seu café na sala de estar, acomodado em seu sofá macio.
Estava contente, sim, com o resultado da noite passada. Novamente,
invadiram sua propriedade, mas, daquela vez, se surpreenderam com os
pistoleiros. Cruzou as pernas, terminando de tragar seu café. Ah... foi a
melhor coisa que fiz. Chamou Carmela, e a criada surgiu com um bule,
servindo mais café ao patrão. Da porta de entrada, um homem chamou-o.
Carmela recuou, e vendo de quem se tratava, gesticulou para que entrasse.
Ao ver Uziel, César abriu um sorriso.
— Benedito! Estava pensando em você neste instante! — Apontou
alegremente para o sofá à frente. — Sente-se, não se sinta acanhado.
Uziel se sentou, Carmela ofereceu café, mas o pistoleiro recusou de
maneira educada.
— O café está muito bom, tem certeza de que não quer um pouco? —
Perguntou César, os olhos brilhando de emoção.
— Sim, certeza absoluta.
— Certo, certo. Mas não sabe o que está perdendo. Pois bem, a que
devo a honra desta bela visita? Aliás, devo agradecer novamente por ontem.
Foi sensacional.
Uziel sorriu.
— Apenas fiz o meu trabalho, senhor. Mas... vim aqui para comunicar
de que precisarei de mais homens. Após essa noite, aqueles bandidos voltarão
preparados, com mais gente...
César assentia, bebericando seu café.
— Entendo, entendo. E você conhece mais homens... de confiança?
— Sim, senhor. Conheço alguns que seriam de grande ajuda. Bons
homens.
— Ótimo, ótimo — César terminou seu café, levantando-se. —
Aprovado, Benedito. Tem carta branca para aumentar o time de defensores
— riu. — Posso lhe ajudar com mais alguma coisa?
Uziel se levantou, aproximando-se de César para um aperto de mão.
— Não, senhor. Era apenas isso... muito obrigado — sorrindo, afastou-
se do patrão, que também sorrindo, se despediu. Atravessando o cômodo,
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Uziel viu Alícia de esguelha, junto de Carmela. Passou pela porta e desceu os
degraus, chegando ao pátio.
Escutou o som de passos apressados, mas não se virou. De chofre,
Carmela passou por ele, aproximando-se de seu ouvido e sussurrando um
recado: No elevado, o mesmo daquela noite. Mudando o rumo de seus passos,
Uziel virou-se à esquerda, dirigindo-se ao último lugar onde tivera a
oportunidade de ter boas lembranças naquela fazenda. Enquanto caminhava
aclive acima, não pôde deixar de sorrir, e, em seu âmago, sentir uma pequena
mistura de medo e ansiedade. Poucos metros depois, estava no elevado,
fitando as costas de Luana. Calmamente, acercou-se da mulher.
— Que lugar estranho para uma conversa — Uziel disse, parando ao
lado da dama.
— Também acho, mas também é o mais propício — Luana se virou,
encarando-o com seu belo par de olhos. — A vista aqui de cima é ótima,
mesmo não sendo tão alto. Fiquei sabendo de seu ato heroico... parabéns.
— Aquilo não foi nada.
De supetão, Luana disse:
— Eu já sei quem será o meu marido, Uziel.
Aquelas palavras atingiram Uziel como se fossem agulhas, mas não
recuou. Permaneceu imóvel, fitando-a com ternura.
— Isso é ótimo.
— De fato, ele é... um homem da alta-sociedade. É o que importa, você
sabe. Olha... — Luana desviou o olhar à casa grande abaixo. — Pensei muito
sobre minhas escolhas, pensei sobre uma vida nova... mas parece que esse é
meu destino.
— Mas quem fez esse destino foi seu pai ou você? César não é seu dono,
você é livre para tentar seguir outros rumos, Luana.
— Mas eu não sei se consigo. Se... se...
— Que tal se a gente terminasse o que começamos há oito anos?
— O que começamos...? — Uziel não deixou Luana finalizar sua frase;
aproximou-se ainda mais da mulher, envolveu-a com seus braços e puxou-a
contra si. Um instante depois, beijava-a com fervor.
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minha filha com o doutor Ramirez. Darei uma festa de noivado... você e os
seus estão convidados.
Uziel forçou um sorriso.
— O senhor gosta de festas, hein?
— É... um pouco. Te vejo lá, Benedito. Até mais ver! — César virou o
cavalo e desatou a trotar na direção contrária.
Luana se casará mesmo... e com esse velho! Cerrando os punhos, o
pistoleiro saiu da plantação, galopando a toda velocidade. Talvez, se
conseguisse cumprir o plano antes do inevitável, pudesse reverter isso, e...
Mas e se eu não conseguir? Meneou a cabeça. Não... Saiu na estrada que
levava à sua residência, e poucos minutos depois, encontrava-se de frente à
varanda de entrada. Desceu do cavalo e levou-o ao estábulo, retornou e
entrou na casa, encontrando um Nero preocupado sentado no sofá.
— Que bicho te mordeu? — Uziel perguntou, estranhando a feição do
amigo.
— Ah, você nem imagina.... Uziel, nós estamos... correndo certo perigo
por aqui.
Uziel sentou-se no sofá, gesticulando para que o amigo prosseguisse.
— E...
— E isso pode acabar nos prejudicando. José me ameaçou hoje, disse
que sabe da verdade. Olha, sei bem que algumas pessoas sabem muito bem
quem nós somos. Outras, não. José sempre foi muito esperto, talvez ele saiba
que nós não somos Matheus e Benedito, e sim, filhos deles.
Uziel estava despreocupado. José não diria nada a César, pois,
orgulhoso como era, faria o trabalho de eliminá-los ele mesmo. Suspirando,
respondeu:
— Ele fará uma armadilha. E... posso até imaginar o dia em que ele
colocará esse plano em prática.
— E o que faremos?
— Simples... usaremos o plano dele para colocar um fim nesses
capachos.
— E se... for algo grave?
— Nós não deixaremos chegar a tanto. Então, Nero, deixe de
preocupação, sim?
Nero aquiesceu, mas não aparentava sentir-se seguro de tal coisa. Uziel
se levantou do sofá, e gesticulando, Nero disse:
— Aquela criada veio hoje... Carmela. Disse muita coisa estranha, como
se falasse em código... disse algo sobre o rio.
— Ah... certo, certo. Posso usar seu cavalo?
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calça. Luana envolveu sua cintura com seus braços, puxando-o contra si;
soltando um leve gemido, Uziel penetrou-a, e Luana sentiu o líquido
imaculado escorrendo por suas coxas após uma leve dor prazerosa. E à
margem, os dois se amaram sob o céu vespertino.
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Capítulo 17
A vendedora retornava mais uma vez, agora com um longo vestido vermelho,
prostrando-se a poucos metros das duas damas. A loja do alfaiate jazia
parcialmente vazia àquela hora da manhã, e Luana não se incomodava com
isso. Gostava de ser atendida o quanto antes, pois não gostava de ir à cidade.
Alícia se adiantou; semicerrando os olhos, analisou a peça.
— É um vestido muito bonito — comentou ela, esticando a mão para
tocar o tecido macio. — Acha que combina comigo, Luana?
— É... combina, sim — Luana disse, sorrindo.
— É um ótimo vestido — a vendedora disse, uma mulher parruda de
meia-idade. — E combina muito com você.
Animada, Alícia pegou o vestido, dirigindo-se ao provador mais
próximo. A vendedora moveu os olhos à Luana, aguardando a próxima
ordem.
— Vou querer encomendar dois vestidos... um casual, para a festa de
noivado. E o outro...
A mulher de meia-idade sorriu, prazerosa.
— Oh, o outro para o casamento. Tenho alguns aqui... acredito que a
senhorita gostará bastante — a mulher gesticulou para que Luana
acompanhasse-a. Virou-se e caminhou pela loja, parando num canto. —
Aqui... — estendeu a mão para os vestidos coloridos. — Todos num bom
preço, isso lhe garanto.
Luana analisou os poucos vestidos. Não havia como ficar indecisa,
considerando as opções minguadas. O horror de morar em uma cidade
pequena. Passou os olhos sobre as peças mais uma vez e apontou para um
vestido longo de cor azul com um pequeno decote. A vendedora pegou-o,
tirando-o do suporte.
— Precisará de alguns ajustes, mas garanto que ficará pronto a tempo.
— Certo, certo... agora o essencial. Onde ficam?
— Oh, sim, sim, os brancos — a vendedora girou os calcanhares e
atravessou o espaço da loja a passos largos. — Aqui — voltou a estender
uma das mãos, apresentando o setor à Luana.
Assim como os demais produtos da loja, haviam poucas opções de
vestidos para casamento. Ao passar os olhos sobre eles, Luana sentiu-se
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Trotando em seu cavalo, Uziel fazia sua ronda após o almoço, ao lado de
Nero. Apesar de o sol estar a pino, sentia-se confortável com o calor.
Desceram um morro e viraram à esquerda, saindo numa trilha estreita.
Espalhados por toda a Fazenda Santana, seus subordinados patrulhavam,
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rosto anguloso, Uziel sentiu seu coração se apertar contra seu peito. — Nós
não nascemos para... Talvez, em outros tempos... olha, este será o nosso
último encontro. Vou me casar, é isso. E você também deveria se casar...
Alícia gosta de você, quem sabe Carmela não aprova a união dos dois?
Foi a vez de Uziel arregalar os olhos, avançando um passo.
— Eu não quero me casar com nenhuma outra pessoa... só quero me
casar com você!
Luana secou as lágrimas com as costas da mão, arfando.
— Perdão... — virou-se e saiu do estábulo, deixando Uziel preso em
pensamentos amargos.
— Luana... — o pistoleiro desabou de joelhos. Por um momento, toda
aquela loucura de retornar àquele lugar pareceu sem sentido, toda a ideia de
vingança pareceu tola. Queria ver José e César mortos, sim, mas acima de
tudo... Cerrando os punhos, Uziel gritou, despejando toda sua amargura,
assustando seu cavalo. Resfolegando, pôs-se de pé, e mal controlando seus
pensamentos, saiu do estábulo, desatando a correr sem rumo.
Uziel não soube dizer por quanto tempo correu, mas, quando deu por si,
estava no meio de um campo deserto. Levou as mãos às costas e sacou sua
espingarda. Apontando-a contra o céu, desatou a disparar, gritando.
— Ela não se casará com ninguém! Ela não se casará com ninguém! —
E cada grito era seguido por um disparo, que estrondava pelo ar.
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A Última Pétala | Walace Rocha
Capítulo 18
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A Última Pétala | Walace Rocha
— Uma pena?
Uziel não respondeu, apenas semicerrou os olhos ao ver Luana do outro
lado do salão, prostrada à direita de um homem velho, de cabelos grisalhos e
barriga sobressalente, gordo como um porco. Seu olhar se encontrou com o
da noiva, mas desviou-o imediatamente. Extremamente feliz, César surgiu;
bem-vestido, o cabelo penteado para trás. Parou no meio do salão, ergueu
uma mão, e a banda parou de tocar. Hora do discurso. Pouco a pouco, os
convidados paravam de conversar, e o silêncio se espalhou. Por fim, com a
atenção depositada sobre si, César desatou a falar:
— Boa noite a todos! É uma honra tê-los aqui, na minha humilde
fazenda — sua voz retumbava pelo local, firme e forte. — Como sabem, há
pouco tempo, estávamos passando por um período difícil, complicado. Os
bandidos começaram a invadir nossas terras, e com o fraco policiamento da
cidade, essas invasões aumentaram! — Moveu os olhos sobre os convidados.
— Mas... isso mudou. Deus colocou em meu caminho homens justos...
pistoleiros que aceitaram me ajudar a colocar ordem nestas bandas... são eles
— apontou para Uziel e Nero. — Benedito e Matheus, os líderes do bando da
justiça, os cabeças por de trás da nossa paz nesta terra desolada — e, um
segundo depois, o salão tremeu sob os fortes aplausos. Sem graça, Uziel
apenas ergueu seu copo, assentindo. Espalhados pelo salão, seus homens
assobiavam e riam. Quando as palmas cessaram, César voltou a discursar. —
Graças a eles... pude voltar a planejar a tão sonhada expansão da Fazenda
Santana. Com a ideia de segurança em mente, aumentarei ainda mais as
zonas de plantio, gerando, assim, muitos empregos. E não é só de
infraestrutura de que se vive o homem... afinal, esta festa também é para
comemorar o noivado de minha filha — e o salão foi preenchido novamente
por uma salva de palmas. Uziel tragou o conteúdo de seu copo, fazendo o
máximo possível para ignorar as palmas. Assim que cessaram, César
retornou ao seu discurso mais uma vez, mas à essa altura, o pistoleiro já
sentia desgosto o suficiente para não prestar atenção alguma nas palavras
ditas.
A festa voltou a seu ritmo, com todos dançando e cantando junto da
banda. Acuado, Uziel permaneceu num canto, apenas observando seus
amigos. Vez ou outra, seus olhos encontravam Luana, mas esta parecia fazer
esforço para ignorá-lo, sempre sorrindo ao lado do doutor. Então, sem
conseguir fugir, o gordo velho se aproximou, parando à sua frente.
— Boa noite, senhor Benedito — cumprimentou Ramirez, estendendo
sua mão. Uziel apertou-a. — É uma honra conhecê-lo... César sempre fala
bem de ti.
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— É bom saber disso — Uziel sorriu, olhou para Luana e depois voltou
sua atenção a Ramirez. — Pretendem se casar quando?
— Hm... — o velho passou o braço pelo ombro da jovem dama. — Em
meados de novembro.
— Falta pouco...
— Oh, sim. Gostaria que o senhor viesse... se é amigo de César, então
também é meu amigo. Quem sabe... poderia trabalhar comigo — o homem se
aproximou e sussurrou: — eu pago mais.
Rindo, se afastou. Uziel aquiesceu, e de esguelha, viu José e um de seus
capachos movendo-se de maneira estranha. Despedindo-se e pedindo licença,
o pistoleiro caminhou até Nero, preocupado. Notando a expressão do amigo,
Nero acercou-se.
— O que está acontecendo?
— Vi José... acredito que seja a armadilha que ele vem planejando.
Alerte César.
Assentindo, Nero saiu a passos largos. Uma leve preocupação começava
a invadir o corpo de Uziel, assim como o gosto amargo em sua boca.
— Senhor — uma voz disse, mas César estava tão concentrado em sua
conversa sobre os planos na política que mal escutou. — Senhor — desta vez,
parou de falar, virando-se e se deparando com um Nero assustado.
Estranhando, afastou-se do grupo.
— O que está acontecendo, Matheus?
— Preciso que me acompanhe... Benedito suspeita de algo.
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De súbito, César sentiu toda sua animação ser drenada. Foi tomado por
um calafrio, e gesticulando para que Nero seguisse, acompanhou-o salão
afora. Desceram os degraus da escada rapidamente, chegando ao pátio e
encontrando um Uziel armado. Ao vê-lo, o Senhor da Fazenda ficou pálido.
Meu Deus, o que está acontecendo?
— Benedito... poderia me dizer o que está acontecendo aqui? Estamos
sob ataque? — Balbuciou César, trêmulo.
Uziel jogou um revólver a Nero, que pegou no ar, e engatilhou sua
espingarda.
— José está tramando algo... notei que ele anda agindo de maneira
estranha há semanas... e suspeitando, coloquei um de meus homens em seu
encalço.
O rosto de César era uma máscara de incredulidade.
— Mas isso não é possível... ele trabalha para mim há anos! Por que...
— Não há motivos, eu sei — Nero disse, preparando sua arma. — Mas
ele sente inveja de seu sucesso, senhor. Por isso quer te prejudicar... quer nos
prejudicar.
— Certo, chega disso! — César enrubesceu. — Mostre-me onde ele está,
e vocês verão que tudo não passa de um mal-entendido.
Assentindo, Uziel seguiu pelo pátio, dirigindo-se ao estábulo. Nero e
César seguiram-no, silenciosos. Assim que se aproximaram, escutaram o som
das risadas abafadas seguida pela voz rouca de José. Os três se aprumaram,
cercando o local. Por um momento, tudo pareceu mórbido, e as palavras do
capacho-líder ecoaram.
— Agora, um de nós sai para chamar César. Atraímos um dos
pistoleiros e a coisa tá feita... — voltaram a rir, agora de maneira
estrondeante.
Dominado por uma mistura de sensações conflitantes, César adiantou-se,
correndo até a porta do estábulo e abrindo-a de supetão. Seu olhar nervoso
passou pelo grupo de homens, os capachos que sempre confiou, e parou
sobre as mulheres seminuas estiradas sobre o chão sujo; as vestes rasgadas,
violadas e violentadas. Cerrou os punhos, seu mundo girava, e sentiu o
estômago se revirar. Ao vê-lo, José arregalou os olhos, erguendo a calça num
impulso.
— Mas... mas... o que está acontecendo aqui?! — Rugiu César, furioso,
fitando José com um olhar de puro nojo. — O que vocês fizeram?!
José avançou um passo, o rosto contorcido em culpa.
— Senhor, não é o que está pensando... está interpretando isto de
maneira leviana...
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Capítulo 19
Pela primeira vez em muito tempo, um garoa caía sobre a Fazenda Santana,
cobrindo-a como um véu. Um vento frio soprava, trazendo consigo uma
sensação de absoluta desolação. Observando a paisagem cinzenta, César se
virou, fitando uma Carmela irada, de rosto fechado. A criada segurava uma
mala, pronta para partir, preparada para deixá-los para sempre. A seu lado,
uma Alícia quieta mantinha o olhar fixo no chão, presa num estado
catatônico. Com a voz embargada, o Senhor da Fazenda desatou a falar
pausadamente.
— Vai mesmo nos deixar, Carmela?
— Já passei tempo demais aqui, vi coisas demais... devia ter ido embora
há muito tempo.
— Mas a justiça foi feita.
— Não quero justiça alguma vinda de ti. Adeus, e espero nunca mais vê-
lo — dito isso, Carmela passou por César, puxando Alícia pela mão.
Sentindo-se culpado, César observou as duas mulheres descerem os
degraus sem olhar para trás. Uma carruagem aguardava-as, e sob à garoa,
Carmela deixou a Fazenda Santana, embarcando numa viagem só de ida para
algum estado do sudeste. Respirando fundo, César deixou o sentimento de
derrota de lado, voltou-se para a casa e atravessou o cômodo, passando por
Luana — esta mergulhada num silêncio aterrador — e entrando em seu
quarto. Deitada na cama, Abigail sustentava um olhar mórbido, perdido. A
mulher piorara após o episódio de José, entregando-se à tristeza profunda do
desgosto. O marido parou ao seu lado, passou os dedos sobre o cabelo de
maneira delicada, murmurando preces à Virgem. Fechou os olhos e se
afastou da cama. Chamaria o doutor Ramirez, e o homem ajudaria-o com a
esposa, tinha plena certeza disso. Carmela foi embora, sim, mas isso não
passa de uma fase. Abigail ficará bem, e tudo se resolverá. Arriscando-se a
ficar animado, César correu em busca de Ramirez.
A garoa cessou, deixando apenas o céu cinzento com seu vento frio a soprar.
Sentado num tronco, Uziel observava o horizonte estranhamente mazelado,
pensativo. Agora, estava quase no fim, mas não conseguia sentir prazer
algum, por mais que se esforçasse. Após a noite em que mataram José, vinha
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Capítulo 20
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Capítulo 21
Pela primeira vez desde que Abigail falecera, César dormia uma boa noite de
sono — e desta vez, sem sonhos. Desfrutava de seu descanso, quando alguém
bateu à porta, interrompendo-o. Acordou sobressaltado, assustado. Virou-se e
saiu da cama, aproximando-se da porta e abrindo-a. Do outro lado, um de
seus criados segurava um lampião; a luz bruxuleante arranhava a escuridão
da noite, banhando sua face preocupada. Aquilo deixou César temeroso, mas
ao ver Benedito num canto, seu coração acelerou.
— O que está acontecendo? — Perguntou o Senhor da Fazenda, trêmulo.
— Uma invasão, e das grandes — Benedito disse, acercando-se da porta
do patrão. — Vamos, precisarei de ajuda.
César, não compreendendo o pedido do pistoleiro, seguiu-o, sentindo
pressa e clamor. Atravessaram a sala e desceram os degraus, saindo no pátio,
surpreendendo-se com a velocidade dos criados, pois os cavalos já se
encontravam preparados.
— Para você vir me chamar, Benedito, então esta invasão... deve ser
grande. Muitos bandidos? — César subiu no cavalo. Poucos metros adiante,
o pistoleiro fez o mesmo, montando em seu garanhão prostrado ao lado de
outro criado.
— Sim... desta vez, veio o bando inteiro — virando o cavalo, Uziel pôs-
se a galopar pátio afora, saindo na estrada com César em seu encalço. — Eles
atearam fogo numa das plantações.
— Caos... vieram trazer caos, esses malditos — rosnou César.
Os dois homens galoparam estrada acima. Poucos minutos depois, César
pôde ver o clarão alaranjado que fervia no horizonte tocado pela noite,
expelindo fumaça contra o céu. Viraram à direita, entrando na plantação,
acercando-se do pandemônio. As chamas altas se alastravam ferozmente, e o
cenário fazia o estômago do Senhor da Fazenda revirar. Reduziram a
velocidade, trotando agora sob à luz cintilante das chamas. À frente, diversos
homens encontravam-se de pé, imóveis. Franzindo o cenho, César parou o
cavalo e desceu.
— Vocês espantaram o bando inimigo? — Perguntou, passando os olhos
sobre os pistoleiros. Encontrou Matheus e repetiu a pergunta, mas foi
Benedito quem respondeu, descendo de sua montaria.
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TERCEIRO
ATO
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Capítulo 22
10 de abril, 1934.
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Sob o céu nublado do meio-dia, Uziel retornava em seu carro, guiado por um
chofer. Através do vidro escuro, observava a cidade que tanto mudara nos
últimos anos. Mas pode mudar ainda mais. Havia algo que fazia-o sempre se
recordar de César: fazer planos e cogitar inúmeras possibilidades. Fizera seu
nome na cidade, e agora, inspirado no último desejo do falecido, Uziel queria
ingressar na carreira política, fazer parte da câmara e ditar suas ordens na
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Luana desfez seu sorriso, desviando o olhar. Passaram por muita coisa
desde à morte de seu pai, há 16 anos, e levou tempo para superar o luto, mas
ela não conseguia entender como o marido continuava doente, como Uziel
continuava sendo afetado por tais eventos. Ele tomava seus medicamentos,
frequentava consultas, mas... Notando sua agitação mental, Uziel guardou o
frasco e mudou de assunto, fazendo Luana se arrepender de ter perdido sua
atenção.
— Estou pensando seriamente na candidatura a prefeito — comentou
ele, ainda sorrindo, como se nada tivesse acontecido, como se os dias fossem,
de fato, feitos de pura alegria. — O que acha da ideia?
Luana voltou a fitar o marido, esboçando um sorriso.
— Acho a ideia fenomenal... devíamos organizar algo. Um jantar, talvez?
— É... um jantar seria uma boa. E Florêncio se divertiria muito... — E
eu estaria realizando um sonho... o sonho de César. Com um gosto amargo
na boca, Uziel voltou-se ao piano. — Que tal mais uma música antes de
descermos para almoçar?
Contente com o pedido, Luana voltou-se às teclas, e com dedos ágeis,
pôs-se a tocar Satie. Uziel fechou os olhos, e por um momento, recordou-se
do rosto de sua mãe.
No fim da tarde, a chuva voltou a cair sobre a cidade, e perdurou por muitas
horas. Em um restaurante, Edgar bebericava sua bebida quente, examinando
a noite encharcada através da larga janela lateral do estabelecimento. Fechou
os olhos por um segundo e pousou-os sobre a clientela do lugar. Analisara o
dossiê comentado por seu falecido tio, e a cada página lida, não deixava de se
sentir instigado pela investigação feita por um detetive particular contratado
por Ramirez que trabalhou por mais de dez anos no caso. O mistério da
morte do Senhor da Fazenda... À frente, um homem bem-vestido, de meia-
idade e pele clara se aproximou, sentando-se à mesa.
— Boa noite, senhor. Posso me sentar aqui? — Perguntou ele.
Edgar voltou sua atenção à frente, abandonando os pensamentos.
— Pode, sim. Acredito que o senhor seja... o investigador Frederico.
— Sim, sou eu mesmo. Me interessei muito pelo que o senhor comentou
naquela carta... — Frederico sorriu, movendo o rosto alguns centímetros à
frente. E com a voz baixa, disse: — Por acaso está com os documentos aí?
— Sim, senhor — Edgar assentiu, baixando a mão e pescando um
envelope pardo dentro de uma bolsa depositada ao pé da mesa. — Uma
investigação que durou mais de dez anos... — depositou o envelope sobre a
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mesa, e ávido, o investigador pegou-o. — Acredito que para tanto... meu tio
devia suspeitar de algo.
Faminto pelo caso, Frederico analisou alguns papéis, os olhos
arregalados.
— Isso é incrível... precisarei de tempo para analisar tudo, mas farei o
possível para iniciar este trabalho o quanto antes — o investigador espalhou
as folhas sobre a mesa, uma foto caiu. Curioso, pegou-a. Era de um homem
negro, usava um chapéu de vaqueiro e, às costas, algo parecia estar
pendurado. Um pistoleiro? O investigador virou a foto, e no verso, um nome
encontrava-se escrito. — Benedito-Uziel — Frederico franziu o cenho,
esboçando um sorriso. — Sabe, meu caro Edgar, acredito que fiz bem em ter
retornado de minhas férias.
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Capítulo 23
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— Estava... mas...
— Calma... consegue caminhar? Já comeu algo hoje?
Balançando a cabeça, a mulher suspirou. Uziel ajudou-a a caminhar,
afastando-se dos demais mendigos. Poucos metros depois, entraram num
restaurante qualquer. No balcão, um homem gordo bufou ao vê-los —
provavelmente o dono do estabelecimento. Mas, ao ver a face raivosa de
Uziel, se manteve calado.
— Aqui, vamos nos sentar aqui — Uziel ajudou Sofia a se sentar, depois,
ele mesmo puxou uma das cadeiras da mesa quadrada, acomodando-se. — Ei,
você aí! — Gritou para o balconista gordo. — Dois pratos da casa, por favor
— feito o pedido, voltou sua atenção à mulher sofrida à sua frente. — Pois
bem... descanse, Sofia, velha amiga. Enquanto o almoço não chega, você
poderia me contar como veio parar aqui...
Sofia passou as costas da mão contra o rosto sujo, como se sentisse
envergonhada. Suspirando, fixou os olhos cansados em Uziel, reunindo
coragem para falar.
— Ah... tanta coisa aconteceu... tudo estava indo bem... até que meu
marido pegou febre amarela. Perdeu o emprego e... — baixou os olhos. —
Passamos por certa dificuldade. Meu filho tentou arrumar trabalho, mas
rapidamente se envolveu com gente que não devia — seus olhos começaram
a lacrimejar. — Eu pedi a ele... eu implorei para que parasse... mas não
adiantou. Pouco tempo depois, foi morto por um tiro de soldado. Foi um
choque, mas... não sei... ao mesmo tempo me senti aliviada.
— E o seu marido?
— O meu marido? — Sofia secou as lágrimas com as costas da mão. —
Ele se recuperou da febre, e me abandonou logo em seguida. Então... —
Sofia arregalou os olhos, brilhando de emoção. — Então eu ouvi falar que no
sertão, um novo senhor surgia, regando almas feridas como a minha com
dezenas de oportunidades. Eu não sei dizer, mas algo dentro de mim disse
que era você. Então me diga, Uziel... você se tornou o novo César?
Uziel franziu o cenho, desgostoso.
— Não... isso é o que dizem — ao lado, um garçom trouxe os pratos. —
Ah, vamos comer. Parece ótimo.
Os dois pegaram os talheres, e poucos segundos depois, saboreavam o
almoço. Entre uma garfada e outra, os dois amigos trocaram mais algumas
palavras, colocando o assunto em dia — mas evitando certos tópicos que não
vinha a calhar. Por fim, Uziel afastou sua cadeira.
— Sofia... fico muito feliz de tê-la reencontrado após todos estes anos. E
desejo muito ajudá-la a recomeçar uma nova vida... — enfiou a mão no bolso
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e sacou um maço de notas. — Pague o almoço, e faça bom uso desta quantia
— depositou o maço sobre a mesa. Sofia sorriu, e com um aceno de cabeça,
Uziel deixou o restaurante, voltando à rua e seguindo rumo à sua casa.
Uziel bebericava uma xícara de café, sentado à beira da mesa. Àquela hora,
Lucinda já havia ido embora, e seu filho, Florêncio, jazia em seu quarto,
dormindo após estudar muitas horas. O silêncio o cercava, mas nem mesmo a
quietude era suficiente para fazê-lo relaxar. Bebericou mais um gole de café,
fechou os olhos e suspirou. Abriu-os, e à sua frente, a imagem de Luana se
formou. A mulher atravessou o cômodo, aproximando-se e sentando-se na
cadeira ao lado. Com uma expressão séria, começou a falar:
— Você passou a maior parte do dia fora... aconteceu algo?
Uziel terminou de tragar seu café, pousou a xícara vazia sobre a mesa e
tentou relaxar antes de falar. No entanto, sua voz saiu tensa.
— Não, não aconteceu nada fora do comum, querida. Estou apenas
ansioso com essa história de entrar na prefeitura... essa ideia de me
candidatar parece loucura — moveu os olhos à Luana. — Mas vou tentar...
um jantar beneficente parece um bom passo, não acha?
— Sim, atrairá muitas pessoas.
Uziel esboçou um leve sorriso, mas o desfez assim que se lembrou do
homem que o seguiu pela rua mais cedo. Torcendo a boca, voltou a falar.
— Às vezes... pego me perguntando no quão pequeno o mundo é. Sabe
quem encontrei hoje? — Luana balançou a cabeça, o marido continuou: —
Sofia. Aquela Sofia de quando era criança, a Sofia que brincava com a gente...
Luana pareceu espantada, arqueando uma sobrancelha.
— Ela se mudou para cá?
— Não... — Uziel desviou os olhos, fitando o chão brilhante. — Ela
estava morando na rua. O filho morreu, e o marido a abandonou, então... —
voltou a levantar os olhos. — Ela disse que ouviu histórias sobre mim... e
veio para cá, em busca de alguma oportunidade. De imediato, não havia
muito o que fazer, então dei a ela uma quantia em dinheiro, apenas para sair
da rua, tomar um banho, comprar roupas... e dormir numa cama.
Luana sorriu.
— Você fez bem, Uziel. É um homem bondoso... agora, vamos subir...
ficar matutando aqui até tarde não te fará bem — Luana se levantou e esticou
a mão.
Sorrindo, Uziel aceitou-a, e os dois se retiraram da cozinha.
Eu sou um homem bondoso... Com esse pensamento, Uziel se preparou
para mais uma noite de sono.
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Capítulo 25
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— Bom... sim, escutei uma história ou outra, mas não acredito nelas.
Enquanto trabalhava para ele... César sempre se mostrou um homem bondoso.
Muito bondoso com todos.
O investigador arqueou uma sobrancelha.
— Ah... sim... bom, eu não o conheci. Digo isso porque tanto aqui,
quanto em muitos outros lugares, não existia lei! As pessoas faziam suas
próprias leis e... — abriu os braços. — Bom, a civilização chegou, não é?
Agora, as pessoas caminham dentro da lei. E eu... eu respiro a lei. Eu vivo
pela lei.
— Então o senhor deve estar um tanto quanto ocupado com essas
pessoas...
— Aí é que tá, Benedito! As pessoas de hoje seguem ela, a lei, porque
elas já nasceram na lei. Mas... homens como eu e você... a coisa toda tende a
ser diferente. Mas isso não importa, não é? Vivemos o presente — Frederico
terminou de tragar sua bebida.
— Sabe... investigador... quero aproveitar o momento para tirar uma
dúvida.
— Ora, vamos, diga, não se acanhe!
— Sinto que... o senhor está me perseguindo.
Um silêncio perturbador pairou entre os dois homens; por fim, o
investigador rompeu numa gargalhada.
— Ah, Benedito... você é um homem interessante. Até mesmo pensa em
se tornar prefeito! Por isso gosto de te ter sob minha mira.
Torcendo o rosto numa careta de desgosto, Uziel se levantou.
— Está tarde. Obrigado pela bebida.
— Mas o senhor nem tocou nela!
Gesticulando, Uziel saiu do estabelecimento, deixando um Frederico
sorridente sentado à mesa.
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— É sério, pai?
Uziel assentiu.
— Seríssimo. Quero vê-lo brilhar, filho. Mesmo que isso custe... ficar
sem te ver durante um tempo.
— É... obrigado, pai.
Uziel se levantou, bagunçou o cabelo do filho e beijou sua testa. E
despedindo-se, saiu do quarto.
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— Ah...pode deixar...
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Capítulo 26
Assim que o dia clareou, Uziel pôs-se a caminhar rumo à clínica de Walter.
Àquela hora, poucas pessoas transitavam; os estabelecimentos estavam
começando a abrir, as ruas começavam a se encher de veículos. Apertando o
passo, dobrou uma esquina, avançou mais alguns metros e parou de frente à
clínica. Levou a mão à maçaneta, e agilmente, usou o macete há muito
conhecido para abri-la. Entretanto, a porta continuou imóvel, trancada. Ele
não está? Arqueando uma sobrancelha, voltou a se aproximar, usando
novamente o macete. E mais uma vez, a porta não se mexeu. Confuso, Uziel
se afastou, olhando de um lado a outro, o coração acelerado. De chofre, se
virou, parando uma mulher qualquer na calçada, assustando-a.
— Senhora, perdão — disse ele, as palavras jorrando de sua boca. — A
clínica... a senhora sabe se tem alguém aí?
Franzindo a testa e recuando um passo, a mulher de meia-idade ergueu
os olhos, fitando o pequeno prédio.
— Olha... pelo que disseram mais cedo... o médico que morava aí foi
embora — a mulher apontou para uma das janelas fechadas do segundo andar.
— Vê? Parece que não tem ninguém aí.
Uziel arregalou os olhos.
— Foi embora...? Mas, por quê?
A mulher deu de ombros.
— Parece que estava envolvido em algum tipo de roubo. Meu Deus...
ele parecia ser um homem tão honesto, um homem tão devoto... Que Deus
possa ter piedade deste mundo — dito isso, a mulher voltou a andar,
passando por um Uziel em choque.
Walter deixou a cidade... Ergueu os olhos, trêmulo. Walter deixou a
cidade...
Sentado à sua mesa do escritório, Uziel fitava a rua abaixo através da janela.
Estava à espera do investigador e Edgar, que a qualquer minuto, surgiriam ali,
famintos para levá-lo à prisão. Não, isso não pode acontecer comigo. Não
pode. À porta, Florêncio bateu, tirando-o do devaneio pessimista. Amainando
sua expressão de desespero, o ex-pistoleiro se virou.
— Olá, filho...
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Capítulo 27
Sentado em sua cadeira, Uziel olhava fixamente para a parede à frente, sendo
consumido pela desolação. Alguns dias se passaram desde que Luana
apresentara os sintomas, e fora diagnosticada com pneumonia. Fizeram o
possível, mas ela não resistiu. Agora, o ex-pistoleiro pensava e se arrependia
de cada ato que tomara em sua vida até aquele momento. Luana cresceu com
a história omitida da morte dos pais de Uziel e dos outros na infância, e
adulta, fora novamente vítima de uma história mal-contada, então, pela
narrativa do marido. Ela morreu achando que o pai fora morto numa
emboscada... ela morreu sem saber que quem matou o pai dela, fui eu. Será
que sua alma descansa em paz, ou arde em fúria? Meneando a cabeça,
voltou a fitar a parede, os olhos lacrimejando. Passos pairaram no ar, e ao seu
lado, Florêncio parou, encarando-o com um par de olhos preocupados.
— Pai... o senhor precisa sair. Tomar um ar... faz dias que não sai deste
escritório.
Uziel não moveu os olhos, continuou concentrado na parede.
— Eu sei... mas não consigo. Ainda... machuca.
— É... também sinto falta dela.
— Eu devia ter passado mais tempo ao lado dela. Eu queria passar mais
tempo com ela, filho... mas... não sou merecedor de nada.
Um silêncio frio começou a pairar entre os dois, e, subitamente,
Florêncio fez algo que assustou Uziel.
Abraçou-o.
— Eu estou aqui, pai. Eu estou aqui...
— Eu sei, filho — lágrimas verteram de seus olhos. — Eu sei... —
respirou fundo, secou as lágrimas com as costas da mão e voltou a falar. —
Você... eu sei que o momento não é propício, mas sinta-se à vontade para
embarcar em sua aventura na universidade.
Florêncio se afastou, desviando os olhos.
— Eu não sei se deveria. Não quero deixar o senhor aqui, sozinho...
Uziel resfolegou, e sorrindo, fitou o filho.
— Tudo bem... acho que essa viagem te fará bem... vamos nos preparar.
Acredito que dê para reservarmos sua passagem.
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Florêncio não sabia o que sentir. Queria, sim, viajar, mas com tudo que
vinha acontecendo nos últimos dias, sentia-se inseguro de tomar qualquer
tipo de decisão. Queria ficar com o pai, vigia-lo, mas sabia que quando Uziel
tomava uma decisão, não voltava atrás.
— Certo... tudo bem, pai.
— Bom... acho que está na hora de fazer uma coisa que deveria ter feito
há muito tempo... Acomode-se, acho que vou te contar as minhas histórias de
infância.
— E as histórias de quando era pistoleiro?
— É... essas talvez conte, mas não a versão integral... você não tem
idade suficiente.
Rindo, Florêncio puxou uma cadeira, e durante toda a tarde,
conversaram sobre as histórias de Uziel e muitas outras. E a cada palavra
trocada com o filho, o ex-pistoleiro sentia-se mais leve e aliviado.
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Capítulo 28
A manhã estava nublada, mas Uziel não se sentia mais incomodado com o
clima. Pelo contrário, estava com o coração cheio de bons sentimentos a
respeito do filho, principalmente orgulho. No terminal ferroviário, despedia-
se de Florêncio, abraçando-o e dizendo que sentiria saudade. Se afastou, e ao
vê-lo embarcando no trem em meio à multidão, sentiu uma sensação de dever
cumprido. Agora, estava se preparando para finalizar sua sina perante a
sociedade. Sorrindo, virou-se, caminhando pelo piso sujo do terminal cheio,
enquanto o trem emitia seu apito agudo e colocava-se em movimento. Adeus,
Florêncio. Subiu alguns degraus e saiu na rua movimentada. Agora, estava
sozinho. Baixando os olhos, avançou pela calçada, os pensamentos negativos
surgindo. Queria caminhar, e assim o fez, seguindo por muitos metros,
durante horas. Por fim, quando se sentiu cansado, dirigiu-se a uma praça. E lá,
sentou-se no banco mais próximo. O dia pode estar nublado, mas isso não
diminui a alegria dessas pessoas... Ao longe, uma mulher de roupas simples
se aproximou, contente ao vê-lo.
— Como é difícil te encontrar — Sofia falou, sentando-se ao seu lado.
— Sei que a cidade está crescendo, mas...
Uziel moveu os olhos à mulher, contente. Agora, ao contrário de quando
a encontrara jogada na rua, Sofia sustentava um vigor acima da média. Estava
limpa, usava roupas novas e o cabelo estava lavado e penteado. Uma nova
mulher. Sorriu.
— Sempre estou por aí, basta perguntar a qualquer um — Uziel riu. —
Você... aparenta estar bem.
Sofia sorriu, encarando-o com certo brilho.
— Seu dinheiro me ajudou muito. Aluguei um quarto numa pousada, me
reestruturei... logo, logo arrumarei algum trabalho. E assim, poderei te
devolver o dinheiro.
Uziel ergueu uma mão.
— Não, não precisa, Sofia. É um presente... é algo que um bom amigo
faz... é algo que qualquer amigo tem de fazer: ajudar.
Então, Sofia abriu os braços, e num gesto súbito, abraçou-o.
— Obrigada, Uziel... obrigada por tudo.
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Uziel retribuiu o abraço, sentindo que devia ter sido mais honesto com a
amiga. Mas agora, era tarde.
Caminhando pela calçada de volta para casa, Uziel mais uma vez amaldiçoou
o destino. À frente, um homem bem-vestido sorria ao vê-lo. E não demorou
para se juntar à caminhada.
— Faz tempo que não o vejo, Benedito. Aliás, meus pêsames — disse
Frederico.
— O que você quer? — Uziel perguntou, o tom cortante.
— Ora, estou apenas... conversando com um homem que se tornou
viúvo. Deve ser triste... — os dois dobraram uma esquina. — O dia hoje está
ótimo, não acha?
— Vá direto ao ponto.
Frederico riu.
— Ah, mas eu vou, sim, senhor, já que persiste — ainda rindo, o
investigador continuou. — Sabe, fico me perguntando quem o senhor é...
Uziel, Benedito, é, por acaso, um maldito fantasma? Como disse outro dia,
acho o senhor um homem interessante... Por 16 anos, Ramirez fez um pobre
detetive vasculhar muita coisa podre, coisa suja, sabe? E tudo porque não se
contentava com a sua versão da morte de César — este, um outro cretino,
veja bem! Por muito tempo, tudo que Ramirez conseguiu fazer foi juntar
provas de como César era um monstro. E só depois... é que conseguiu chegar
em você. Um rapaz que surgiu de maneira heroica... ganhou a confiança do
Senhor da Fazenda rapidamente; como se... já soubesse o que fazer e o que
esperar. E mais rápido ainda foi sua ascensão. Então, Ramirez perdeu sua
noiva, ficou paranoico e veio a falecer remoendo essa mesma história, ano
após ano — Frederico voltou a rir, deliciado. — E eu, sabe-se lá como, fui
metido no meio dessa confusão.
— O que você está querendo dizer? — Chichiou Uziel.
— Ah... o que estou querendo dizer, Uziel... é que você é tão culpado
quanto César. Envolveu-se em inúmeros crimes, e admito que me surpreendi
com sua relação com Walter. Olha — Frederico entrou na frente de Uziel,
forçando-o a parar —, você pode fingir o quanto quiser, pode trocar de nome,
dar jantares beneficentes e até mesmo virar prefeito, mas a conta... uma hora
ela vai chegar, ah, vai chegar, sim!
Irritado, Uziel empurrou o homem para o lado e voltou a caminhar pela
calçada.
— A conta vai chegar? — Disse ele, sem olhar para o investigador. —
Me pergunto o que vão tomar de mim, considerando que já perdi tudo.
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Capítulo 29
Caminhando pela casa vazia, Uziel era fisgado para o passado; cada cômodo
vazio trazia-lhe uma recordação. Vozes recentes ecoavam; Sofia, Luana,
Florêncio, Walter... Mas, também, vozes de dias passados — César, Abigail,
Alícia, Carmela, Nero. Enquanto avançava pela casa, notava a semelhança
entre ele e o imóvel: ambos eram extravagantes por fora, recebiam elogios.
Mas por dentro, em seu interior, eram ocos; vazios e silenciosos. As últimas
moléculas de vida partiram... A passos largos, entrou na sala onde Luana
costumava passar longas horas tocando piano, preenchendo a casa com as
notas de Chopin. Agora, o instrumento jazia solitário, à espera do próximo
músico, mas nenhum como sua antiga dona. Resfolegando, o ex-pistoleiro
deixou o cômodo, dirigindo-se agora ao quarto de Florêncio.
A cama estava arrumada, as estantes e a escrivaninha jaziam
perfeitamente organizadas. Mas sem a sua presença, filho. Torcendo o rosto
numa expressão de angústia, Uziel caminhou até seu escritório. Sentou-se na
cadeira, pegou uma folha e desatou a escrever uma carta, trêmulo. Alguns
minutos depois, dobrou-a e voltou a se levantar. Resfolegou mais uma vez e
amainou sua expressão abatida. Saiu do escritório, passou pelo corredor e
desceu a escada, chegando à cozinha.
Poucos metros adiante, Lucinda terminava de arrumar a mesa. Ao notar
a presença do patrão, resolveu se aproximar, confusa.
— Olá, senhor Benedito — Lucinda disse, parando a poucos metros. —
Precisa de algo?
— Não... não preciso de nada, Lucinda. Quer se sentar? Vamos, não
sinta receio... você é de casa — Uziel puxou uma cadeira e gesticulou para
que a empregada fizesse o mesmo. Franzindo o cenho perante a atitude do
patrão, Lucinda se acomodou numa das cadeiras. — Precisamos... conversar
sobre algumas coisas.
Lucinda arregalou os olhos, preocupada.
— Fiz algo de errado, senhor? Por acaso... suspeita de algo?
Uziel riu.
— Não, não... nada disso. Você fez um bom trabalho nestes últimos
anos, dona Lucinda, e sinto que devo recompensá-la por tal. Escrevi uma
carta com algumas instruções — Uziel levou a mão ao bolso e pescou-a,
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Capítulo 30
Assim que amanheceu, toda a frente da casa de Uziel foi cercada por uma
dezena de viaturas barulhentas, provocando um frenesi na vizinhança. De um
dos carros, um Frederico orgulhoso desceu, contente com o excelente
trabalho. Puxando o grupo, seguiu até o portão trancado, sendo acompanhado
pelos colegas policiais. Uma voz soou, e ao virar o rosto, viu um Edgar
sorridente juntando-se a eles. Sim, haviam feito um bom trabalho. Anos de
investigação, e ali, colhiam o fruto.
— O dia chegou — comentou Edgar, Frederico assentiu.
Um dos policiais arrombou a tranca do portão, e assim que o
investigador deu a ordem, os agentes entraram na propriedade, cercando-a. A
porta de entrada foi aberta com facilidade, e um minuto depois, todos os
homens jaziam dentro dos cômodos, averiguando cada centímetro.
— Vamos, vamos... esta tem de ser uma operação rápida — Frederico
disse, a voz ecoando pelos cômodos.
— Que tal checarmos o segundo andar? — Edgar sugeriu, os olhos
movimentando-se de um lado a outro, ávidos. — Ah, Santo Deus, como
estou contente! Que a justiça seja feita!
Aprovando a ideia e não se preocupando em disfarçar a empolgação,
Frederico avançou até a escada a passos largos. E ao lado de Edgar, subiu os
degraus pulando de dois em dois. Uma vez no segundo piso, desataram a
procurar por Uziel, e demasiadamente empolgado, Edgar pôs-se a avançar
sozinho. Entretanto, a cada cômodo vazio que visitavam, os dois homens
abandonavam a animação, trocando-a pela preocupação. Onde, diabos, estava
o pistoleiro? Por fim, pararam de frente à porta do escritório.
— Ele deve estar aí... — chichiou Edgar, tenso, mas voltando a sorrir de
excitação.
Frederico sacou sua arma, e de supetão, abriu a porta, gritando.
— Acabou, Uziel! — Moveu a arma de um lado para o outro.
E, para sua surpresa, o último cômodo da casa encontrava-se vazio.
Irado, uivou:
— Procurem-no! — O rosto do investigador enrubescia. — Procurem-
no!
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