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Capitulo 3 Reformas, Endividamento Externo e o “Milagre” Econémico (1964-1973) Jennifer Hermann “O mais fértil laboratério de andlise (...) sobre 0 mistério do desenvolvimento so 05 paises do Leste e Sudeste asiatico (...) porque (...) permite estudar-se a correlagao (ou falta de correlacao) entre democracia e desenvolvimento, ou entre autoritarismo e reforma econdmica.” Roberto Campos, A lanterna na popa, p. 1272. “0 eixo de sua construcao [do regime militar-autoritério no Brasil] foi o controle militar da Presidéncia da RepGblica (...) e a imposic¢ao de limites @ autonomia dos demais poderes da Unido (..).” B. Sallum Jr., Labirintos: dos generais 4 Nova RepGblica, p. 28. Introdugdo O periodo de 1964-73 abrigou trés mandatos de presidentes militares: do mare- chal Humberto Castello Branco (1964-66), de Arthur da Gosta e Silva (1967-69) Emilio Garrastazu Médici (1969-73) — os dois diltimos, generais. Apesar da duragio relativamente curta dos dois primeiros governos, os anos 1964-73 so marcados pela continuidade no terreno politico, bem como quanto ao modelo de politica econdmica. A homogeneidade politica do periodo foi sustentada por um regime de exce- go, instituido no pais pelo golpe militar que depés o entao presidente Jodo Goulart em 31 de marco de 1964. Castello Branco assumiu 0 governo em 15 de abril do mesmo ano, com um mandato que se extinguiria em 20 de janeiro de 1967. Em 50 Fconomia Brasileira Contemporanea: 1948-2010 ELSEVIER julho de 1964, a Emenda Constitucional n¢ 9 prorrogou o mandato de Castello Branco até 15 de margo de 1967. Nessa data, assumiu 0 governo o general Costa e Silva, cujo mandato foi interrompido em agosto de 1969, por problemas de satide. Assumiu, entdo, o general Médici, que se manteve no cargo até 15 de margo de 1974, quando foi substitufdo por outro militar — o general Ernesto Geisel. O modelo de politica econémica tragado no governo Castello Branco fora for- mulado pelos ministros do Planejamento e da Fazenda — respectivamente, Roberto de O. Campos ¢ Octavio G. de Bulhées — ambos economistas de perfil ortodoxo. Os dois foram empossados em abril de 1964 ¢ permaneceram nos cargos até o final da gestao de Castello Branco. Os ministros estabeleceram 0 combate gradual a inflagdo, a expansao das exportagoes e a retomada do crescimento como principais objetivos da politica econdmica. Apesar da troca de governo ¢ de ministros, tal orientacao, como veremos, foi seguida sem grandes desvios até 1973. Contudo, no governo Castello Branco, devido ao cendrio de desequilibrio monetério e externo do inicio do perfodo, a politica econdmica acabou por assumir uma orientacao cla- ramente restritiva. Somente a partir de 1967-68 a retomada do crescimento tor- nou-se o objetivo predominante. A ccontinuidade no campo da politica econémica foi, em grande parte, reflexo da continuidade politica do perfodo. Diante da forte represséo a manifestagées da sociedade civil e mesmo A atuagao de partidos politicos, a visdo de politica econd- mica do governo nao encontrava resisténcia formal, impondo-se @ sociedade e aos demais poderes da Unido, como observa Sallum Jr. na epigrafe.' Gom relagao ao empresariado, nao havia motivos para resisténcia, j4 que a politica econdmica do periodo de 1964-73 (especialmente a partir de 1968) foi, em geral, favorvel aos lucros, em dettimento dos salétios. Nesse sentido, quanto ao aspecto destacado por R. Campos na epigrafe deste capitulo, o Brasil de 1964-73 ilustra um caso de nitida auséncia de correlacdo entre democracia e desenvolvimento e de alta corre~ lagdo entre autoritarismo ¢ reforma econdmica, No que tange ao desempenho da economia, os anos 1964-73 abrigam duas fases distintas. A primeira, de 1964 a 1967, caracterizou-se como uma fase de ajuste conjuntural e estrutural da economia, visando ao enfrentamento do proces- so inflacionario, do desequilibrio externo e do quadro de estagnacao econdmica do inicio do perfodo. Os anos 1964-67 foram marcados pela implementagdo de um plano de estabilizagao de pregos de inspiracao ortodoxa — o Plano de Agao Econd- mica do Governo (Paeg) — e de importantes reformas estruturais — do sistema financeiro, da estrutura tributdéria e do mercado de trabalho. Nesse perfodo, a economia brasileira teve um comportamento do tipo stop and go, embora o cresci: mento médio do PIB tenha sido razodvel (4,2% ao ano). A segunda fase, de 1968 a 1973, caracterizou-se por uma politica monetiria expansiva e por vigoroso cresci- Reformas, Endividamento Externo @ 0 “Milagre” Eeonémico (1964-1973) 51 Aisevier mento da atividade econémica (média anual de 11,1%), acompanhado de gradual redugdo da inflagdo e do desequilibrio externo. Essas condigdes justificaram a al- cunha de “milagre brasileiro” para esse periodo. O presente capitulo examina a politica econdmica e a evolugio da economia brasileira em cada uma dessas duas fases. A segunda seco trata da politica de estabilizagao inscrita no Paeg ¢ a terceira, das reformas tributaria e financeira. A segdo seguinte analisa os impactos dessas politicas sobre as principais varidveis macroeconémicas no perfodo de 1964-67. A quinta seco descreve o desempenho da economia brasileira durante o “milagre” (1968-73) e discute as bases de sus- tentagdo do crescimento “equilibrado” desse perfodo. A diltima secao conclui o capitulo com uma sintese das mudangas econdmicas do perfodo de 1964-73 no Brasil ¢ uma breve discussao sobre a heranga deixada para o governo Gcisel. 0 Paeg (1964-66): Diagnéstico e Estratégia de Estabilizacdo Ao longo de 1963 ¢ até o inicio de 1964, a economia brasileira operou em verdadeiro estado de “estagflagdo” — estagnagao da atividade econémica, acom- panhada de aumento da inflacdo. Apés um crescimento real médio de 8,8% ao ano no perfodo 1957-62, o PIB brasileiro cresceu apenas 0,6% em 1963, enquanto a inflago (medida pelo IGP) elevou-se da média de 32,5% ao ano naqueles anos para 79,9% em 1963 (ver Apéndice Estatistico).? Esse era o cendrio a ser enfrenta- do pela politica econdmica no inicio do governo Castello Branco. Tanto 0 Paeg quanto as reformas estruturais do periodo de 1964-66 estdo funds mentados no diagnéstico apresentado pelo ministro Roberto Campos ao presidente Castello Branco em fins de abril de 1964. Em documento reservad, intitulado “A Crise Brasileira e Diretrizes de Recuperagdo Econémica”, Campos aponta duas li- nhas principais de agdo para a superagao da crise: 0 “langamento de um plano de emergéncia destinado a combater eficazmente a inflagao”, que veio a ser o Paeg, ¢ 0 “Jangamento de reformas de estrutura” (as reformas fiscal e financeira).* Quanto a inflagdo, a avaliago de Campos era de que “a responsabilidade pri- mordial do processo inflacionrio cabe aos déficits governamentais ¢ A continua pressio salarial”.* Os déficits alimentavam a expansio dos meios de pagamento que, por sua vez, sancionavam os aumentos de salirios. Esse diagnéstico inspirou as principais medidas do Paeg (Quadro 3.1): (1) um programa de ajuste fiscal, com base em metas de aumento da receita (via aumento da arrecadagao tributdria e de tarifas piblicas) e de contengao (ou corte, em 1964) de despesas governamentais; (2) um orgamento monetério que previa taxas decrescentes de expansao dos meios de pagamentos; (3) uma politica de controle do crédito ao setor privado, pela qual © crédito total ficaria limitado as mesmas taxas de expansdo definidas para os meios 52 Economia Brasileira Contemporanea: 1948-2010 ELSEVIER de pagamento; 4) um mecanismo de corregao salarial pelo qual “as revisdes sala- riais (...) deverdo guiar-se pelo critério da manutengio, durante o perfodo de vi- géncia de cada reajustamento, do saldrio real médio verificado no biénio anterior, acrescido de porcentagem correspondence ao aumento de produtividade”.* Essa mente, dadmi de 1966, regra salarial foi aplicada, estendeu-se ao setor privado.* Gom base nessas medidas, o Paeg estabeleceu metas decrescentes de inflagao para o perfodo de 1964-66: 70% em 1964, 25% em 1965 ¢ 10% em 1966. As metas de inflagao, comparadas com as metas monetérias € fiscais, permitem perceber que, em termos reais, o plano previa crescimento nulo dos meios de pagamento em 1964, comportando alguma expansio no biénio 1965-66 (Quadro 3.1). No campo fiscal, constata-se também uma politica austera para 1964, especialmente no que tange 20 corte de despesas, com algum alivio em 1965. Apesar da austeridade monetiria e fiscal, como observa Resende,’ no Pacg, “(...) 0 combate a inflagio estava sempre qualificado no sentido de nao ameagar o ritmo da atividade produtiva”. O Plano previa taxas reais de crescimento do PIB de 6% ao ano no biénio 1965-66. As metas do Paeg para a inflagdo indicavam uma estratégia assumidamente gradualista. O Plano nao se propés a eliminar 0 processo inflaciondrio em curto espago de tempo, mas apenas a atenué-lo ao longo de trés anos, admitindo ainda uma inflagdo de dois digitos (10%) no terceiro ano. A opcao pelo gradualismo foi justificada no Plano com base no argumento de idade de uma “inflacdo corretiva” e de evitar-se uma grave crise que havia a nece: de estabilizagio. Com relagao ao primeiro aspecto, 0 problema é que a aceleracao da inflagdo é, em geral, acompanhada de um processo de desajuste de pregos relativos, sendo Quadro 3.1 Metas Monetarias e Fiscais do Paeg — Taxas Nominais de Variagao Indicador Metas 1964 1965 1966 Receita da Uniao* 15% 58% - Despesas da Uniao* 27% 42% - Déficit da Unido 62% 3% M1 e crédito privado 70% 30%, 15% Inflagao 70% 25% 10% Fonte: Elavoragdo propria apart de dados de Simonsen (1970), p. 28-34, ‘Variagbes da receita despesa do governo em 1964 medidas em elagdo ao orgamento preexstnte para.o mesmo ano e, em 1965, ‘em relagdo a0 reprogramado para 1964 Reformas, Endividamento Externo @ 0 “Milagre” Econémico (1964-1973) 53 Aisevier particularmente penalizados aqueles pregos fixados em contratos de longo prazo (um ano ou mais), como salérios, aluguéis, tarifas pablicas e, em regimes de cambio administrado, como 0 que vigia no Brasil 4 época, também a taxa de cambio. Esse desajuste é, em si, uma fonte realimentadora da inflagio, porque gera um conflito distributivo causador de continuas demandas por corregies de pregos defasados. O diagnéstico do Paeg para o Brasil de 1964 era de que, entre aqueles pregos, apenas 0s saldrios ndo estavam defasados — estes foram até apontados como uma das prin- cipais causas da inflagdo, como vimos. A corregao das tarifas pablicas e da taxa de cambio era apontada como uma medida duplamente necessiria, pois, além de elimi- nar (ou atenuar) as distorgdes de pregos relativos, contribuiria também, respecti mente, para 0 ajuste fiscal e para 0 ajuste do balango de pagamentos. Quanto ao segundo ponto, o argumento cra de que a magnitude dos cortes fiscais © monetérios necessdrios para reduzir rapidamente a inflacéo, a partir do 1 elevado em que se encontrava no inicio de 1964 (144% anualizada), provos ria uma grave recessio da atividade econ6mica, 0 que nao era politicamente reco- mendvel Aquela altura, Os militares assumiram 0 poder em 1964 com um discur- so que atribufa ao governo militar a missdo de “salvar” o pais do caos econdmico ¢ politico em que se encontrava. O Paeg, anunciado como um plano emergencial de estabilizagdo, era parte dessa missdo. Contudo, para legitimar o regime de excecao junto a sociedade (leia-se, junto a classe empresarial ¢ as camadas de renda mais alta) ¢ ao meio politico internacional, era necessario preservar a renda agregada de uma queda abrupta, enquanto se implementava o plano de combate A inflagio. Numa segunda etapa (com a inflagdo sob controle), seriam, entao, implementadas politicas diretamente voltadas para o objetivo de crescimento ¢ desenvolvimento econdmico — o que, de fato, foi feito a partir de 1967. O fato & que, nesse perfodo, havia no Brasil um certo consenso de que as “crises de estabilizagdo” ndo eram uma necessidade para o alcance da estabilidade de pregos. Nos governos Castello Branco ¢ Costa e Silva, em particular, predomi- nou a visdo de que era possivel conciliar taxas razodveis de crescimento do PIB com 0 combate gradual & inflagdo. A “magica” dessa conciliagdo seria feita pela correcdo monetaria. Somente duas décadas mais tarde o governo (¢ toda a socie- dade) comegaria a se dar conta da contradigdo inerente a esse modelo de estabili- zacdo, no qual um dos remédios — a corregdo monetaria— tinha também 0 efeito de reproduzir a propria doenga. As Reformas Estruturais do Periodo de 1964-67 As “reformas de estrutura” a que se referiu Roberto Campos em sua andlise da crise brasileira em 1964 tiveram por foco a estrutura tributéria e a financeira. Além 54 —kconomia Brasileira Contemporanea: 1948-2010 ELSEVIER dessas reformas, uma importante mudanga foi introduzida no mercado de trabalho em 1964, mantendo-se em vigor ainda na década de 2000. Trata-se da criagio do FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Servigo), que substituiu o regime de estabilidade no emprego, entao vigente, entendido como um entrave institucional ao aumento do emprego ¢, por conseguinte, ao crescimento econdmico. O FUNDO DE GARANTIA POR TEMPO DE SERVICO — FGTS FGTS veio substituir o regime de trabalho vigente nos anos de 1960, que garantia estabilidade do trabathador no emprego apés dez anos de servigo no mesmo estabele- cimento. 0 FGTS € um fundo formado por depésitos mensais, por parte do empregador, em nome de cada trabalhador, de valor (a época) equivalente a 8% dos respectivos saldrios nominais. Com o FGTS, as empresas ganharam o direito de demitir funciondrios a qualquer momento. Em caso de demissao ou em algumas situagdes especiais (como a compra de imével, por exemplo), os recursos sao liberados para o trabalhador. A ideia era que a flexibilizago do mercado de trabalho, permitida pelo Fundo, nao estimularia as demissdes, mas, sim, as contratagdes de empregados, na medida em que diminufa o risco e os custos de longo prazo do emprego para os empregadores. Infelizmente, ndo é possivel avaliar quantitativamente essa hipétese. Isso exigiria alguma forma de com- paracao entre as taxas de desemprego antes e depois do FGTS. Contudo, a pesquisa de emprego do IBGE sé teve inicio na década de 1980. ‘As reformas tributéria e financeira, que foram implementadas gradualmente, entre 1964 e 1967, séo analisadas a seguir. A Reforma Tributéria Os objetivos explicitos da reforma tributdria eram 0 aumento da arrecada do governo (via aumento da carga tributdria da economia) ¢ a racionalizagdo do sistema tributario. Nesse sentido, pretendia-se reduzir os custos operacionais da arrecadagdo, eliminando impostos de pouca relevancia financeira, ¢ definir uma estrutura tributéria capaz de incentivar o crescimento econdmico. Para tanto, as principais medidas implementadas foram:* (1) instituig&o da arrecadagio de im- postos através da rede bancéria; (2) extingdo dos impostos do selo (federal), sobre profissdes ¢ diversdes piblicas (municipais); (3) criagdo do ISS (Imposto Sobre Servigos), a ser arrecadado pelos municipios; (4) substituigdo do imposto estadual sobre vendas, incidente sobre o faturamento das empresas, pelo ICM (Imposto Reformas, Endividamento Externo @ 0 “Milagre” Econémico (1964-1973) 55 Aisevier sobre Circulagao de Mercadorias), incidente apenas sobre o valor adicionado a cada etapa de comercializagao do produto; (5) ampliagao da base de incidéncia do imposto sobre a renda de pessoas fisicas; (6) criagdo de uma série de mecanis- mos de isengao e incentivos a atividades consideradas prioritérias pelo governo A época — basicamente, aplicagdes financeiras, para estimular a poupanga, ¢ in- vestimentos (em capital fixo) em regides e setores especfficos; ¢ (7) criago do Fundo de Participagdo dos Estados e Municfpios (FPEM), através do qual parte dos impostos arrecadados no nivel federal (no qual se concentrou a arrecadagao) era repassada as demais esferas de governo. Esse conjunto de medidas resultou em significativa elevagdo da carga tributé ria do pais, que passou de 16% do PIB em 1963 para 21% em 1967. Do ponto de vista distributivo, a reforma tributdria do governo Castello Branco foi regressi beneficiando as classes de renda mais alta (os poupadores) com os incentivos isengdes sobre o imposto de renda, Assim, a maior parte do aumento de arrecada fo foi obtida através dos impostos indiretos, que, em termos relativos, penal mais as classes de baixa renda. Outra caracterfstica da reforma tributdria foi o seu caréter centralizador, do ponto de vista federativo. Foi limitado o direito dos estados municipios legisla- rem sobre tributagdo. Esses direitos ficaram restritos ao imposto sobre transmis- sdo de iméveis (de baixa arrecadagdo) ¢ ao ICM, no caso dos estados, ¢ ao ISS IPTU (Imposto sobre Propriedade Territorial Urbana), no caso dos muniefpios. Além disso, a reforma atribuiu exclusivamente & Unido o poder de decisdo sobre 0 percentual das transferéncias através do FPEM; conferiu 4 Unido o poder de inge- réncia sobre a alocagao de parte desses recursos (50% dos recursos deveriam ser alocados a investimentos) ¢ eliminou o principio da anualidade, pelo qual novos tributos sé podem entrar em vigor no ano seguinte a sua aprovacdo pelo Congres- so, para impostos indiretos (principal alvo do aumento da carga tributéria) e con- tribuigde Nessas condigdes, o éxito da reforma no sentido de aumentar a carga tributé- ria, bem como de promover o desenvolvimento financeiro e econdmico do pais no periodo do “milagre”, deve ser creditado tanto a racionalidade das medidas volte das para esses fins como ao regime autoritério vigente. Dificilmente uma reforma regressiva e centralizadora como a de 1964-67 teria sido aprovada pelo Gongresso e aceita sem resisténcias pela sociedade em um regime democritico. a, Zam A Reforma Financeira Até meados da década de 1960, 0 sistema financeiro brasileiro (doravante, SFB) constitufa-se, basicamente, de quatro tipos de instituigdes: bancos comer- 56 Economia Brasileira Contemporanea: 1948-2010 ELSEVIER ciais privados e financeiras, que atuavam na provisdo de capital de giro para as empresas; caixas econdmicas federais e estaduais, atuando no crédito imobilidrio; € bancos publicos (Banco do Brasil ¢ Banco Nacional de Desenvolvimento Econé- mico— BNDE), Gnicos que atuavam na intermediagio a prazos mais longos. Ins- tituigdes ndo bancérias, embora existissem, tinham papel secundario no mercado financeiro do Brasil pré-1964. As reformas de 1964-67 tiveram por objetivo explicito complementar o SFB, constituindo um segmento pricado de longo prazo no Brasil. A caréncia dessas instituigdes e instrumentos tinha ficado patente durante o Plano de Metas, cujo financiamento teve como fontes predominantes a emissao de moeda, algumas fon- tes fiscais ou parafiscais e o capital externo. A precariedade daquele segmento do SFB determinava ainda que a emissdo de moeda se tornasse uma fonte de finan- ciamento inflaciondria, na medida em que os recursos novos criados pelo governo ndo retornavam ao sistema sob a forma de poupanga finane: . sim, de depé- sitos a vista (disponiveis para gasto imediato). Diante desse quadro, o objetivo central da reforma financeira foi dotar o SEB de mecanismos de financiamento capazes de sustentar o processo de industrial zagio j4 em curso, de forma nao inflacionéria. Para tanto, era necessdrio, em pri- meio lugar, reorganizar o funcionamento do mercado monetirio, o que foi feito com a criagdo de duas novas instituigdes: o Banco Central do Brasil (Bacen), como executor da politica monetéria, ¢ 0 Conselho Monetério Nacional (CMN), com fungdes normativa e reguladora do SFB. Quanto ao modelo de financiamento, 0 projeto original dos ministros Octavio Bulhdes ¢ Roberto Campos, que formularam a reforma, seguia 0 modelo segmen- tado, vigente nos Estados Unidos. Neste, as instituigdes financeiras atuam em segmentos distintos do mercado, cabendo aos bancos de investimento o papel de prover financiamento de longo prazo, como intermedidrios na colocagao de titulos no mercado de capitais e, em menor escala, como emprestadores finais. No Brasil, manteve-se ainda um papel importante para os bancos publicos no crédito de longo prazo. A estrutura financeira entao criada é apresentada no Quadro 3.2. Para viabilizar esse modelo, era necessdrio estabelecer regras claras de funcio- namento do mercado de capitais e dotar as instituigdes financeiras, bem como as empresas interessadas no financiamento directo, de condigdes de acesso a recursos de longo prazo. As regras de funcionamento do mercado foram estabelecidas numa série de Leis e Resolugdes do governo."” Quanto a captagdo de longo pr. diagnéstico era de que tanto a geragdo, quanto a alocagdo de poupanga no Brasil eram prejudicadas pelo baixo retorno real dos ativos de longo prazo, em um contex- to de inflagdo crescente e juros nominais limitados (ao teto de 12% ao ano pela Lei da Usura e pela Cléusula Ouro (que impedia a indexagio de contratos). ra, mas 10, 0 Reformas, Endividamento Externo ¢ 0 “Milagre” Econémico (1964-1973) 57 Aisevier Quadro 3.2 0 SFB apés as Reformas de 1964-1967 Tipo de Instituigao Area de Atuagao Conselho Monetério Nacional (MN) Criado em 1964, em substituigao 4 Superintendéncia da Moeda e do Crédito (Sumoc), com fungdo normativa e reguladora do sistema financeiro Banco Central do Brasil (Bacen) Criado em 1964, como executor das politicas monetaria e financeira do governo Banco do Brasil (88) Banco comercial e agente financeiro do governo, especialmente em linhas de crédito de médio e longo prazos, para exportagdes agricultura Banco Nacional de Desenvolvimento Econémico (BNDE) Criado em 1952 para atuar no financlamento seletivo de longo prazo para a industria e infraestrutura Bancos de Desenvolvimento (BD) regionais e estaduais Atuagao semelhante a do BNDE, mas em ambito regional/estadual. Bancos Comerciais Crédito de curto e médio prazos (capital de giro). Bancos de Investimento Regulamentados em 1966, para atuarem no segmento de crédito de longo prazo eno mercado primério de ages (operagdes de subscrigao). Sociedades de Crédito, Financiamento ¢ Investimento Instituig6es nao bancérias, conhecidas como “Financeiras”, voltadas ao financiamento direto ao consumidor (curto e médio prazos). Sistema Financeiro da Habitagao (SFH) Criado em 1964, tendo o Banco Nacional da Habitagao (BNH) como instituigdo central, e composto ainda pela Caixa Econdmica Federal (CEF), caixas econémicas estaduais, sociedades de crédito imobilidrio e associagdes de poupangae empréstimo (APE) Corretoras e Distribuidoras de Valores Mercados primario e secundério de acoes. 58 Economia Brasileira Contemporanea: 1948-2010 ELSEVIER O aumento do retorno real dos ativos requeria a contengao do processo inflacio- nario. Esse problema seria enfrentado com o Paeg. A opcio do governo pelo gradualismo no combate a inflacdo exigia, contudo, a criagdo de mecanismos de protegdo do retorno real dos ativos, bem como de incentivo 4 demanda, durante 0 perfodo de transigdo para a baixa inflagdo."” Os mecanismos entdo criados foram diferenciados por segmento de mercado: (1) para os titulos ptiblicos foi criada, em julho de 1964, a ORTN (Obrigagdes Reajustveis do Tesouro Nacional), que instituiu a correcdo monetéria da divida pablica, com base na inflagdo ocorrida a0 longo de cada perfodo de pagamento de juros; (2) para os ativos privados de renda fixa (titulos e empréstimos), a Lei do Mercado de Capitais (1965) e Reso- lugdes posteriores do Bacen autorizaram a emissio de diversos tipos de instru- mentos financeiros com corre¢io monetéria; (3) quanto aos ativos de renda vari vel (agGes), foram concedidas redugGes ou isengGes de imposto de renda para as empresas emissoras de agdes para os poupadores; (4) para os bancos piblicos foram ainda criados novos mecanismos de captacao de longo prazo, a partir de fundos especiais, formados por recursos das préprias autoridades monetérias ou por poupanga compulséria. Outro aspecto importante das reformas de 1964-66 foi a ampliagao do grau de abertura da economia ao capital externo, de risco (investimentos diretos) e, prin- cipalmente, de empréstimo. Os principais expedientes criados para atrair esses recursos foram os seguintes: (1) regulamentac&o de alguns t6picos da Lei n? 4.131 (de 1962), de forma a permitir a captacdo direta de recursos externos por empresas privadas nacionais; (2) Resolugo 63 do Bacen, que regulamentou a captagdo de empréstimos externos pelos bancos nacionais para repasse 4s empre- sas domésticas; (3) mudanca na legislagdo sobre investimentos estrangeiros no pats, de modo a facilitar as remessas de lucros ao exterior — o objetivo era tornar o mercado brasileiro mais competitivo na captagdo de investimentos diretos. A abertura financeira era vista como uma condigdo capaz de contribuir para 0 aumento da concorréncia e da eficiéncia do SEB. Além disso, a avaliagdo das auto- Tidades, & época, era de que o pais padecia de uma caréncia estrutural de poupan- ga interna, de modo que, mesmo com a reorganizagio do sistema financeiro do- méstico, a oferta de fundos teria de ser suplementada por recursos externos.' A Economia Brasileira no Periodo de 1964-67 Em meio & politica de estabilizagao e a reforma tributaria, que elevou a carga tributéria da economia a partir de 1964 (Tabela 3.1), a atividade econdmica se recuperou, mas cresceu a taxas moderadas no periodo 1964-67 (4,2% ao ano), es- pecialmente no biénio 1964-65 (2,9% ao ano), como mostra a Tabela 3.2 Apesar do bac Reformas, Endividamento Externo ¢ 0 “Milagre” Econémico (1964-1973) 59 R Tabela 3.1 Indicadores Fiscais no Brasil — 1963-1973 (médias por periodo — % do PIB) Despesa Primaria Governo Federal’ Carga Saldo Periodo Cons, FBCF Total Estados Municipios Total _‘tributaria’_primario 1963 84 36 120 7,4 17 214 16,1 5.0 1964-67 7.9 43° «(1217.8 18° 217 19.4 -2.3 1968-73 9,1 4,3 13,4 7,7 26 23,7 25,1 14 Fonto: IBGE Estatistcas do Século XX. D'sponvel emiwwmbge.gov.br. Acesso em 20Vtew/ 200, 1, Consumo do governo federal incl subsidiose ranferéncias ao setorprivado 2, Retere-se a Unio, Estados e Municipia, Tabela 3.2 Economia Brasileira: Sintese de Indicadores Macroeconémicos — 1964-1973 (médias anuais por periodo) Médias Médias Indicadores 1964-67 1968-73 Crescimento do PIB (% a.a.) 42 WA Inflagao (IGP dez/dez., % a.a.) 45,5 19.1 FBCF (% PIB a pregos correntes) 15,5 19,5 Tx. de crese. das exportagdes de bens (USS correntes, % a.2.) 44 24,6 Tx. de crese. das importagées de bens (US$ correntes, % a.a.) 27 278 Balanga comercial (US$ milhdes) 412 0 Saldo em conta corrente (US$ milhdes) 15 -1.198 Divida externa liquida/Exportagao de bens 2,0 18 Fonte: Elaboragdo prdpra, com base em dados do Apéndice Estatistico ao final do lo. efetivo aperto monetério e fiscal do periodo, o Paeg ndo cumpriu as metas estabelecidas: a inflago (IGP) alcancou 92% em 1964, 34% em 1965 ¢ 39% em 1966, quando as metas do Plano eram, respectivamente, 70%, 25% e 10%. agamento fixadas pelo governo to ao setor privado o foram nos As metas de expansao nominal dos meios d foram ultrapassadas em 1964 ¢ 1965 e as do eré s anos do Paeg (Tabela 3.3). Contudo, como ram superadas — devido a inflagdo corretiva ¢ & expansdo do M1 ¢ crescimento real dos meios de pagamento e do crédito privado oscilou bastante: 60 Economia Brasileira Contemporanea: 1948-2010 ELSEVIER Tabela 3.3 Taxas de Crescimento dos Meios de Pagamento (M1) ¢ do Crédito no Brasil — 1964-1973, (médias por perfodo — % ao ano) Variagao nominal Variagao real (pelo IGP) Créd. ao Créd. ao Créd. Créd. ao Créd. ao Créd. Periodo © M1 Set. Pabl. Set. Priv. Total © M1 Set. Pabl. Set. Priv. Total 1964 816 © 97,6 80,3, 87,5 5,59 6,2 2,4 1965 79,5 70,0 57,5 63,0 33,7 26,6 17.3 21,4 1966 13.8 19,7 33,6 27.2 18,2 14,0 4,0 5 1967 45,7 16,3 57,3 39,7 16,6 6,9 25,8 W7 1964-67 52,5 47,1 56,3, 52,7 48 44 74 49 1968-73 35,7 -0,2 49,3 39,8 © 13,9 -16,2 25,4 17,4 Fonte: IBGE, Estaistcas do Século XX. D'sponivel emwww.bge.gov-br Acesso em 21/fev/2004 foi negatico em 1964 e 1966, mas superou amplamente a meta em 1965. Tal expansdo, porém, f ‘oncentrada no segundo semestre do ano, como compensa- cdo da forte retragdo monetéria implementada até meados de 1965, que, por isso, acabou sendo o ano de menor crescimento do PIB (2,4%) na fase 1964-67. Com relagao ao ajuste fiscal, embora as metas fixadas no Paeg nfo tenham sido cumpridas a risca para as receitas e despesas separadamente, os déficits obtidos ficaram préximos do previsto para o biénio 1964-65." A politica salarial do Plano também foi bastante restritiva, tanto pela formula de corregdo, quanto pelo periodo de referéncia para o célculo do saldrio real. O mecanismo de corrego pela média, em vez de pelo “pico” do salirio real, € coe- Tente como estratégia para conter 0 conflito distributivo que mantém ativa a espi- ral precos-saldrios. A corregao pelo pico repée integralmente a inflagao acumulada desde o dltimo reajuste, transferindo renda dos lucros para os saldrios ¢ gerando novas demandas de corregao de pregos por parte do setor empresarial. A correcdo pela média do salério real divide o nus da inflacdo entre empregados e emprega- dores ¢, dessa forma, contribui para conter 0 conflito distributivo, desde que a formula de divisdo seja bem aceita por ambas as partes. Nesse aspecto, a escolha do periodo de referéncia para o cdleulo do salério real © o comportamento da infla- g40 ao longo desse periodo sao cruciais. Como o valor do salario nominal fixo entre duas datas de reajuste (um ano, na maioria dos casos), na presenga de infla- go o salirio real se reduza cada més, ao longo desse periodo. Assim, se este for um perfodo de inflagio estavel, o valor relativo dos salérios e dos lucros fica equilibra- do; se for um perfodo de queda da inflagao, a indexagdo retroativa resultaré em Reformas, Endividamento Externo ¢ 0 "Milagre" Econémico (1964-1973) 61 Aisevier ganho para os saldrios reais, porque o periodo comportard saldrios reais mais eleva- dos que no cenério de inflagdo estavel; por fim, se o perfodo for de aceleracao da inflacdo, haverd ganho para os lucros, porque a média do salério real ficard “ache tada” em relagio ao que seria nos outros cenérios. Esse foi exatamente 0 caso quando da implementacao do Paeg, que escolheu 0s dois anos anteriores as datas de reajuste como referéncia, Dependendo do més de reajuste da categoria, esse perfodo se distribufa entre parte de 1962, 0 ano de 1963 e os primeiros meses de 1964. Como esse foi um periodo de aceleracdo infla- cionaria, a politica salarial do Paeg penalizou os salérios reais, em favor dos lu- lariais de 1964, mas cros."" Essa perda, vale notar, ndo ficou restrita aos reajustes estendeu-se por todo o periodo de vigéncia do Paeg, porque: (1) em 1965, a média dos dois anos anteriores inclufa o ano de 1964, que ainda manteve a tendéncia de alta da inflagao; (2) a partir de 1966, um Decreto Lei (n? 15) determinou que as corregdes salariais fossem calculadas com base na inflagdo prevista pelo governo (10% em 1966), que foi superada pela inflagdo efetiva naquele ano (39,1%); (3) 0 aumento devido A produtividade nao era integral, mas equivalente a dois tercos da taxa de crescimento da produtividade estimada pelo proprio governo, sempre de forma conservadora. Esse efeito distributivo negativo sobre os saldrios foi tam- bém, em parte, a contrapartida das corregdes de pregos relativos (incluindo im- postos ¢ cdmbio) consideradas necessdrias para estancar 0 processo inflacionario na época, Em suma, as pressdes inflaciondrias de demanda ¢ de custos, diagnosticadas no Paeg, foram efetivamente combatidas com politicas monetéria, fiscal ¢ salarial s. Contudo, 0 sucesso do Plano foi parcialmente comprometido pelos aumentos atribuidos a outros custos basicos — impostos, tarifas pUblicas, cimbio ¢ juros (este tiltimo, devido ao aperto monetario) — e pela criagdo da corregao monetéria para ativos e contratos em geral. Na pratica, o Paeg estabeleceu um mecanismo de selegao de custos que deve- riam ser comprimidos, em nome da necessidade de conter processo inflaciond- rio, e daqueles que deveriam ser preservados, ou mesmo reajustados. No primeiro grupo estavam os saldrios reais. No segunde, os itens componentes da receita do governo, as tarifas das empresas estatais os rendimentos reais do setor financeiro € dos rentistas em geral, protegidos pela correcdo monetari tos. Assim, além da fungdo original, de combate A inflagdo, a politica de “controle” de custos do Paeg cumpriu outras fungdes macroecondmicas, contribuindo para o ajuste fiscal e externo da economia. O nivel adequado da taxa de cambio real, aliado ao fraco crescimento econd- mico no biénio 1964-65 (média anual de 2,9%), permitiu o aumento dos saldos comerciais, explicado tanto pela expansdo das exportagdes (24% acumulados no restriti dos ativos ¢ contra 62 —Foonomia Brasileira Contemporanea: 1948-2010 ELSEVIER perfodo de 1964-66), quanto pela retragio das importacées (27% no biénio 1964- 65). Estas dltimas voltaram a crescer a partir de 1966, acompanhando a recupe racdo da atividade econémica. O saldo do balanco de pagamentos (BP) foi favore- cido também pelo ingresso de capitais voluntarios (investimentos diretos, ba- sicamente) ¢ de empréstimos de regularizaga no periodo. Esses empréstimos, ali ano de 1965 seria de déficit. Nesse caso, porém, é dificil separar a contribuicao das medidas econdmicas ea do censrio politico do perfodo. E sabido que, tanto o golpe militar de 1964, quanto os governos militares que se sucederam no Brasil (pelo menos até a gestao de Geisel), contaram com a simpatia dos Estados Unidos, prin- 1s , explicam o Gnico superivit do BP no perfodo de 1964-67, j4 que, sem eles, 0 cipal exportador de capital para as economias latino-ameri Em relagao & reforma financeira, os efeitos do Paeg foram mais lentos, s6 se fazendo sentir ao longo dos anos seguintes. O principal efeito visivel a curto prazo —c, talvez, o maior mérito da reforma — foi a efetiva criagdo de um mercado de 0 nas a épo divida pablica no pais, viabilizando, de forma permanente, o financiamento monetério dos défi ser, predominantemente, financiados com divida pablica — cerca de 55% em 1965 ¢ de 86% em 1966." ts do governo, A partir de 1965, esses défi ts passaram a O Periodo de 1968-73: Recuperacao e “Milagre” Caracteristicas Gerais do “Milagre” Em 1968, a economia brasileira inaugurou uma fase de cres que se estendeu até 1973. Nesse perfodo, 0 PIB cr ordem de 11% ao ano, liderado pelo setor de bens de consumo duravel e, em menor escala, pelo de bens de capital. A taxa de investimento, que ficou estagna- da em torno de 15% do PIB no perfodo de 1964-67, subiu para 19% em 1968 encerrou o perfodo do “milagre” em pouco mais de 20%. O creseimento do perio- do de 1968-73 retomou e complementou 0 proceso de difusio da produgio consumo de bens duréveis, iniciado com o Plano de Metas. ‘Taxas de crescimento da ordem de 11% ao ano por seis anos consecutivos jé mereceriam a designagao de “milagre econdmico”. A faganha da economia bra leira nesse perfodo foi ainda mais surpreendente porque tal ritmo de crescimento cimento vigoroso, eu a. uma taxa média da i foi acompanhado de queda da inflacdo (embora moderada) e de sensivel melhora do BP, que registrou superavits crescentes ao longo do perfodo. O termo “milagre” se justifica ainda mais nesse caso em razdo de duas relagdes macroeconémicas bas- tante conhecidas: (1) a relagdo direta entre crescimento e inflagdo (ou inversa Reformas, Endividamento Externo ¢ 0 “Milagre” Econémico (1964-1973) 63 Aisevier entre desemprego ¢ inflacdo, no original), retratada na Curva de Phillips; ¢ (2) a relacéo inversa entre crescimento econdmico e saldo do BP, retratada em diver- sos modelos de macroeconomia aberta, que ressaltam o “dilema” da politica eco- némica entre 0 equilibrio interno (rumo ao pleno emprego) ¢ externo. A CURVA DE PHILLIPS E O “DILEMA” ENTRE CRESCIMENTO E EQUILIBRIO EXTERNO ‘A Curva de Phillips (CP), originalmente (1958), estabelece uma rela¢do inversa entre a taxa de desemprego e a taxa de variacdo dos salarios nominais numa mesma economia. Lembrando que os salarios s4o um importante item dos custos de producdo e que estes afetam, diretamente, 0 comportamento dos precos, economistas keynesianos criaram uma nova versdo da CP (nos anos de 1960), que se popularizou como “a” CP, na qual a taxa de desemprego 6 inversamente relacionada inflacgo: a reducdo da taxa de desemprego provocaria aumento da taxa de inflagdo. O trade off entre emprego e inflacdo é explicado pela tendéncia ao aumento dos custos (no sé através dos salérios, mas também das matérias-primas), 8 medida que a economia se aproxima do pleno emprego. Mais tarde, M. Friedman, E. Phelps e a escola novo-classica propuseram novas versées para a CP, em que os aumentos salariais e de precos em geral seriam ainda alimentados pelas expecta- tivas inflaciondrias dos agentes, além de o serem pela demanda agregada. O trade off entre crescimento e equilfbrio externo é identificado em varios mode- los de macroeconomia aberta: na “teoria da absorcao”, na “sintese de Meade” e no modelo Mundell-Fleming. Em todos eles, o trade off surge na balanca comercial e se explica por uma diferenca entre a reacao das exportacdes e importagées a variagbes no PIB: as primeiras sao, em geral, supostas exdgenas ¢ as diltimas, endégenas. As- sim, & medida que a economia cresce, as importages tendem a crescer também, enquanto as exportagées, ceteris paribus, ficam inalteradas, porque elas nao tém relagdo direta com a renda interna, mas sim com a renda externa. No modelo Mundell- Fleming, com cambio flexivel, as exportagdes podem responder favoravelmente ao crescimento do PIB, quando este € acompanhado (ou induzido) por politica monetéria expansiva (como no perfodo de 1968-73 no Brasil): essa reduz os juros e, consequentemente, o saldo da conta de capital, (admitindo alguma mobilidade de capi- tal) enquanto o aumento do PIB reduz o saldo comercial. Os dois efeitos implicam redugdo do saldo do BP, perda de reservas, desvalorizagao cambial e, por fim, (re)equilibrio. Contudo, apesar das minidesvalorizacSes cambiais a partir de 1968, esse ndo era exatamente o caso do Brasil, j4 que as corregdes cambiais ndo eram ditadas pelo mercado, mas sim pela avaliagao do governo a cada perfodo. 64 —Rconomia Brasileira Contemporanea: 1948-2010 ELSEVIER Uma breve andlise da conjuntura econémica e da estratégia de controle da inflagdo e das contas externas no periodo de 1968-73 torna possivel compreender a génese do “milagre” brasileiro.” ‘Ao assumir 0 governo em marco de 1967, o general Costa e Silva convidou o professor de Economia da USP, Antonio Delfim Netto, para assumir a pasta da Fazenda. Delfim Netto manteve, em linhas gerais, a politica de combate gradual 4 inflagdo, mas imprimiu uma mudanga de énfase da politica econdmica em dois sentidos: (1) 0 controle da inflagao passou a enfatizar 0 componente de custos, em vez da demanda, jé que a economia operou em ritmo de stop and go nos trés anos do governo Castello Branco; ¢ (2) por isso mesmo, o combate a inflagdo deve- tia ser conciliado com politicas de incentivo a retomada do crescimento econémi- co. Essa reorientagao atendia a j4 mencionada necessidade de o governo militar legitimar-se no poder como uma alternativa melhor para o pais que a do governo deposto, marcado pela tendéncia a estagflagio Na nova estratégia, as politicas fiscal e salarial do Paeg foram mantidas prati mente sem alteracées: os déficits do governo foram sendo reduzidos (‘Tabela 3.1) © as corregoes salariais seguiram a regra criada em 1966, baseada na inflagao est mada (pelo governo), e nao na inflagao efetiva. Mas 1967 marca um ponto de inflexdo na politica monetaria, que se tornou expansiva, apés a forte restrigdo da liquidez em 1966 (‘Tabela 3.3). Para compensar os possiveis efeitos da expansao monetéria sobre a inflagdo, foram institufdos controles de pregos, através de um 6rgio criado exclusivamente para esse fim — a Conep (Comissao Nacional de Estabilizagao de Precos), mais tarde substituida pela CIP (Comissao Intermi- nisterial de Pregos). A Conep passou a “tabelar” nao apenas pregos ptiblicos (tari- fas, cambio e juros do crédito pablico), mas também uma série de pregos privados — basicamente, insumos industriais. Os juros cobrados pelos bancos comerciais foram também tabelados pelo Bacen. Em meados de 1968 foi langado 0 Plano Estratégico de Desenvolvimento (PED), cujas prioridades eram: (1) a estabilizacdo gradual dos pregos, mas sem a fixagdo de metas explicitas de inflagao; (2) 0 fortalecimento da empresa privada, visando & retomada dos investimentos; (3) a consolidagdo da infraestrutura, a cargo do governo; ¢ (4) a ampliagao do mercado interno, visando a sustentacdo da demanda de bens de consumo, especialmente dos duraveis. A auséncia de metas explicitas de inflagdo no PED, tecnicamente, deixava maior espago para a implementacio de politicas de crescimento. Outro reforgo nesse sentido foi a adogdo da politica de minidesvalorizagdes cambiais a partir de 1968, evitando que a inflagao (ainda na casa dos dois digitos) causasse uma defasagem cambial signi- ficativa, que viesse a prejudicar a balanga comercial e, indiretamente, a atividade econdmica. Reformas, Endividamento Externo ¢ 0 “Milagre” Econémico (1964-1973) 65 Aisevier No campo fiscal, havia a determinagdo de que os investimentos pablicos em infraestrutura nao comprometessem o ajuste fiscal em curso. Isso foi obtido através do aumento da participagao das empresas estatais nesses investimentos, redu- zindo a participagdo da administragio direta (Tabela 3.4). Como resultado, o go- erno pode coneiliar a re io dos novos investimentos pablicos com a redugio do déficit primario (que, nessa época, nao abrangia o resultado das estatais) e até com a geracao de superdvits, a partir de 1970 (Tabela 3.1). Ademais, essas empre- sas tinham melhores condigées de auxiliar na implementagao do PED, porque, em geral, contavam com outras fontes de financiamento (empréstimos), que no 0s recursos orcamentérios. Tabela 3.4 Indicadores da Formagao Bruta de Capital Fixo (FBCF) no Brasil — 1963-1973 (médias por periodo) Setor Setor Pablico Periodo Total Priv. Total Gov. Estatais FBCF em % PIB 1963 17,0 11,6 54 3.6 17 1964-67 15,5 10,3 51 43 0,9 1968-73 19,5 13,1 65 43 24 Composicao % da FBCF 1963 10,0 68,2 31,8 21,5 10,3 1964-67 100,0 66,5 33,5 207 58 1968-73, 100,0 66,9 33,1 22,3 10,8 Fonte: IBGE, Estatsticas do Século XX Disponivel amwwaibge. gout. Acesso ern 20/fev/2004. Com o afastamento de Costa ¢ Silva, a mesma orientagio de politica econd- mica foi mantida no governo Médici (1969-73). No campo politico, porém, 0 perfodo marca uma fase de nitida radicalizagio do regime autoritério. Em respos- ta as indmeras manifestagdes contrérias ao regime militar desde 1964, em de- zembro de 1968, 0 governo Costa ¢ Silva decretou o AI-5 (Ato Institucional n¢ 5), que suspendeu as garantias constitucionais, fechou 0 Gongresso por tempo indeterminado € cassou mandatos de politicos opositores ao regime. Ao AI-5 seguiu-se um longo periodo, conhecido como “anos de chumbo”, marcado por prisdes arbitrérias (¢ sem qualquer direito de defesa por parte do acusado), tor- turas e deportagées de cidadaos considerados “subversivos da ordem” —leia-se, criticos ao regime autoritério. Esse ambiente politico favoreceu, indiretamente, 66 —Fconomia Brasileira Contemporanea: 1948-2010 ELSEVIER a politica antiinflaciondria do governo, calcada no controle direto de pregos ¢ na contengio dos salirios reais. A Politica Econémica e a Economia Durante o “Milagre” ‘A mudanga de énfase na politica monetéria e anti-inflacionéria, introduzida pelo ministro Delfim Netto, aliada aos efeitos da reforma financeira, que fa a expansio do crédito ao consumidor, se refletiu na atividade econdmica a partir de 1968, quando o PIB cresceu 9,8%— mais que o dobro do ano anterior. Compa rada ao perfodo de 1964-67, a fase do “milagre” foi claramente favorecida pela politica monetéri os meios de pagamento cresceram a uma taxa ilitou ‘ia: em termos reais, média anual de 14% entre 1968 ¢ 1973, ante 5% no periodo de 1964-67, € 0 crédito total seguiu a mesma tendéncia, com crescimento real médio de 17% ao ano entre 1968-73, ante 5% no periodo anterior (Tabela 3.3). Esse crescimento, vale notar, foi concentrado no crédito ao setor privado (25% no “milagre”, contra 7% antes), jé que juste fiscal reduziu a absorgdo de recursos pelo setor pabl Quanto ao érade off da Curva de Phillips, quatro fatores atuaram para conter a tendéncia ao aumento da inflagdo: (1) a capacidade ociosa da economia, herdada do perfodo de fraco crescimento (1962-67); (2) o controle direto do governo sobre pregos industriais ¢ juros; (3) a politica salarial em vigor, que, em geral, resultou em queda dos salérios reais; e (4) a politica agricola implementada, que contri- buiu para expandir a produgao e evitar pressdes inflaciondrias no setor, através de financiamentos pablicos subsidiados ¢ de isengoes fiscais para a compra de fertili- zantes € tratores. Os quatro fatores atuaram diretamente sobre os custos de produgdo, tornando a Curva de Phillips da economia brasileira mais “achatada”. A capacidade ociosa existente atuou também do lado da demanda: o fato de as empresas nao precisa- rem, de inicio, repor capital fixo reduzia o horizonte de tempo envolvido na deci- sao de investir (em capital circulante, no caso), bem como os custos financeiros da retomada. Nesse caso, a atividade produtiva torna-se mais sensivel a politi netaria, j4 que o investimento nao depende, inicialmente, nem de crédito, nem de expectativas de ongo prazo. Além disso, a melhora das contas externas permitiu um controle maior sobre a taxa de cambio. Apesar da politica de minidesvalorizagées cambiais adotada a par- de 1968, as defasagens entre as corregdes cambiais ¢ a inflagdo, especialmente entre 1970 1973, evitaram que 0 cambio se tornasse uma fonte auténoma de 0. mo- pressao inflaciondria. Isso contribuiu para conter a inflagdo de custos que ameace va a economia, A medida que aumentava o grau de utilizagdo da capacidade exis- tente (que chegou a 90% em 1973). Reformas, Endividamento Externo @ 0 “Milagre” Econémico (1964-1973) 67 Aisevier Quanto ao dilema entre crescimento e equilibrio externo, a solugdo do pro- blema foi facilitada por uma combinagio de condigdes favoréveis: (1) a disponi- bilidade de liquidez a juros baixos no mercado externo, aliada a jé mencionada “boa vontade” dos Estados Unidos para com 0 Brasil; (2) a posigao favordvel dos termos de troca, diante do aumento dos precos das commodities exportaveis; € (3) a expansio do comércio mundial. O tabelamento de juros, utilizado no Brasil, era uma pratica comum nos anos 60-70. Nos Estados Unidos, tal pratica promoveu a ampliagao da liquidez domés- tica e estimulou a economia, que passou a registrar déficits comerciais crescentes. A contrapartida desses déficits foi a expansa de reservas nos pafses superavitdrios (especialmente, Japao e Alemanha, além de outras economias europeias). Juntamente com o capital americano que buscava aplicagdes mais rentaveis (nao submetidas a tetos de juros) em outros paises, es- ses recursos deram origem ao chamado “mercado de eurodélares” — depésitos em délares, mantidos em bancos fora dos Estados Unidos. Parte desses recursos acabou migrando também para os paises em desenvolvimento, especialmente aqueles com perspectivas de crescimento € com regimes politicos convenientes a posigao ameri- cana na Guerra Fria — exatamente 0 caso do Brasil no perfodo do “milagre”."* Nesse contexto, a tendéncia a redugdo dos saldos do BP & medida que 0 PIB brasileiro crescia foi evitada com base numa politica deliberada de captagao de recursos externos. Tal politica, na verdade, teve inicio ainda no governo Castello Branco, com a abertura financeira implementada no periodo, como parte da ampla reforma financeira de 1964-67. Nos governos Costa e Silva e Médici, as condiges favordveis a atragdo de capital externo foram indiretamente reforgadas pela politi- ca cambial: os ajustes continuos da taxa de cAmbio evitavam expectativas de gran- des desvalorizagoes a frente, o que favorecia o retorno real esperado dos empré timos externos concedidos as empresas € bancos brasileiros. Assim, a forte expansdo econdmica em 1968-73 no Brasil refletiu também a forte entrada de capital no pafs: os investimentos externos diretos (aqueles apli- cados diretamente a produgio de bens e servicos) € os empréstimos em moeda cresceram continuamente no perfodo (exceto em 1972, no primeiro caso, em 1973, no segundo). Esses recursos foram os grandes responsdveis pelo “milagre” brasileiro em relagao ao BP, jé que a tendéncia a deterioragao das contas externas, sugerida nos modelos teéricos, foi confirmada para a conta de transagées correntes. As exportagdes e importagdes também cresceram vigorosamente no perfodo de 1968-73, a taxas acumuladas de, respectivamente, 275% e 330%. O crescimento das exportagées foi liderado pelos bens manufaturados (+639%) e, quanto a com- posigao das receitas, pelo aumento do quantum (volume fisico) (+109%), embora a contribuigdo dos pregos (em délares) das mercadorias exportadas pelo Brasil tam- do comércio mundial ¢ o acimulo 68 Economia Brasileira Contemporanea: 1948-2010 ELSEVIER bém tenha sido significativa (+77%). A expansdo das importagées teve um perfil semelhante, com maior crescimento dos volumes (+177%) que dos precos (+54%).. A clevada sensibilidade do quantum de importagies ao crescimento do PIB ne: perfodo refletiu, essencialmente, o estagio de desenvolvimento industrial da eco- nomia brasileira 4 época: face & dependéncia externa do pafs com relago a bens de capital insumos (especialmente petréleo e derivados), o crescimento do setor de bens de consumo durdveis pressionou as importagdes desses itens. A moderada valorizacdo real do cambio no perfodo de 1970-73 estimulou também a importagao de bens jé produzidos no Brasil. A despeito disso, devido ao bom desempenho das exportacées, a balanga comercial foi equilibrada na média de 1968-1973, mas re- gistrou déficits significativos no biénio 1971-1972. A conta de servigos ¢ rendas registrou déficits crescentes, passando de cerca de US8600 milhées em 1967 para US$2,1 bilhdes em 1973. A causa desse salto foi o aumento das despesas com juros e remessas de lucros — reflexo da crescente capta- fo de capital externo — e com fretes — decorrente do aumento da corrente de comércio (soma das importagdes € exportacdes). Assim, o déficit em conta corrente saltou de US$276 milhdes em 1967 para US$2,1 bilhdes em 1973. Portanto, o “mi- lagre” no campo das contas externas s6 foi possivel porque o ingresso de capital no pais clevou-se acentuadamente: a divida externa bruta brasileira saltou de US$3,4 bilhdes para US$14,9 bilhées no mesmo perfodo — um aumento de 332%. Esse endividamento mais do que compensou a necessidade de financiamento do déficit em conta-corrente, permitindo inclusive o actimulo de reservas internacionais pelo Bacen, que chegaram a US86,4 bilhdes em 1973, ante US80,2 bilhdo em 1967. c Comentarios Finais: o Periodo de 1964-73, ea Heranga para o Governo Geisel Oano de 1964 é um marco na hist6ria politica e econdmica brasileira, inauguran- do um longo periodo de governos militares, que se estendeu até os primeiras meses de 1985. Este capitulo examinou o desempenho da economia brasi década do regime militar. Ao longo desse periodo, os objetivos da politica econémica foram os mesmos: combate d inflagdo, promogao do crescimento econdmi Ihora das contas externas, através do aumento das exportagdes € da substituigao de importacées. Apesar dessa semelhanga, o perfodo contempla duas fases distintas da economia brasileira: os primeiros quatro anos (1964-67) exibiram um comportamento erratico, alternando curtos periodos de recuperacio ¢ desaceleragio econémica; 0 perfodo de 1968-73 caracterizou-se por clara tendéncia expansiva. Na raiz dessa diferenca encontra-se, de um lado, 0 cendrio econdmico herda- do pelo primeiro governo militar — um quadro de estagflacdo ¢ restrigdo externa. coe me- Reformas, Endividamento Externo ¢ 0 “Milagre” Econémico (1964-1973) 69 Aisevier De outro, ela reflete a atuagio do governo sobre 0 problema, calcada em uma politica macroecondmica ortodoxa ¢ na implementagdo de reformas estruturais — tributdria e financeira. O governo Castello Branco (1964-66) tomou para si a tarefa de “arrumar a casa” a fim de viabilizar a pida retomada do crescimento econdmico — que, em principio, dev flaciona rio tragado (0 Paeg), apesar de gradualista, acabou se mostrando mais restritivo da atividade econdmica do que seria desejavel, além de menos eficaz no combate a inflacdo. Esta foi significativamente reduzida, mas, alimentada pela “inflagdo corretiva” e pela generalizagao da correcdo monetiria dos ativos € contratos, ain- ia ocorrer ainda em sua gest@o, Contudo, o plano anti-i daeni quadro, aliado A politica de restrigdo fiscal e monetéria em curso, inviabilizou uma recuperagdo econdmica sélida ainda no periodo de 1964-67. O desequilibrio do BP também nao foi solucionado. A realimentagao entre as ivas corregdes cambiais ¢ a inflagdo no perfodo de 1964-67 no permitiu grandes melhoras no saldo comercial. Por outro lado, a inflagio pers crescimento claudicante também nao atraiam capital externo. O maior éxito eco- némico do governo Castello Branco deu-se na area fiscal: além de os déficits se- rem reduzidos, foram criadas, com a reforma financeira na drea da divida pablica, condigées duradouras de financiamento nao monetirio desses déficits. O perfodo de 1968-73, de certa forma, beneficiou-se das dificuldades da fas errou o ano de 1966 em 39% — bem acima da meta do Paeg, de 10%. Ess suce: istente ¢ 0 io da inefi anterior. A percep ia da politica econdmica em curso, no sentido de promover a retomada do crescimento, levou o governo Costa ¢ Silva (1967-69) a “afrouxar” a politica monetéria a partir de 1967 e a lancar 0 PED em meados de 1968. O PED foi um plano nitidamente mais “desenvolvimentista” que o Paeg, prevendo a continuidade do combate gradual 4 inflagdo, mas acompanhado de investimentos pablicos e politicas propicias & recuperagdo dos investimentos pri- vados. E claro, porém, que o fato de a inflagao jé ter sido significativamente redu- zida nos anos anteriores facilitou a adogao de um plano dessa natureza em 1968, bem como a manutengao dessa linha de agdo no governo Médici (1969-73). Embalada pelo PED, a economia brasileira iniciou, em 1968, uma fase de cres- cimento vigoroso, que se estendeu e se acelerou até 1973. O “milagre” realizado nesse periodo foi a combinagao desse crescimento com a redugio das taxas de inflagdo e com a total eliminagao dos déficits do balango de pagamentos — alias, convertidos em superdvits. Essa facanha foi tornada possivel por dois grupos de fatores: de um lado, atuaram algumas condigdes econdmicas e politicas favordveis e, de outro, a habilidade do governo no aproveitamento das oportunidades que essa conjuntura oferecia. 70 Fconomia Brasileira Contemporanea: 1948-2010 ELSEVIER No primeiro grupo deve-se mencionar: (1) a existéncia de capacidade ociosa na economia, fruto da debilidade econdmica da fase anterior; (2) 0 quadro de ampla liquidez no mercado internacional; (3) o regime autoritério vigente, que fa a implementagio das politicas do governo; (4) a “simpatia” americana pelo regime. No segundo grupo, a habilidade do governo se revelou em diversos aspectos da politica econdmica do perfodo de 1968-73: (1) na adogdo do controle de pregos (inclusive salérios); (2) na politica de juros tabelados (em niveis baixos); (3) na politica de crawling peg para o cambio (baseada em minidesvalorizagées cambiais, de acordo com a inflagdo), que evitou movimentos bruscos da taxa de cimbio real, estimulando as exportagées e, indiretamente, o nivel de atividade econdmica; ¢ (4) na politica deliberada de captagao de recursos externos — um “auxilio luxuo- so” que favoreceu controle do cambio ¢ o financiamento da expansao econémii Esses foram, em suma, 0s alicerces do “milagre econémico” brasileiro. A heranga que 0 perfodo de 1964-73 transmitiu ao governo Geisel (1974-79) foi um misto de vantagens ¢ problemas. As vantagens ébvias foram: a inflagdo muito mais baixa, na casa dos 15% em 1973, ante 80% em 1963; a reorganizacao da estrutura fiscal e financeira; a recuperagio do BP. Uma vantagem nao muito evidente & época, mas que se tornou clara a partir de 1974, foi o préprio ritmo acelerado de crescimento do perfodo do “milagre”, que, em certa medida, condicionou a ousada opgdo de politica econémica do governo Geisel, guiada pelo objetivo de manutengao do crescimento, apesar das dificuldades externas do perfodo. Os grandes problemas foram: a correo monetéria, com seus efeitos perversos sobre a dinamica dos pregos; ¢ 0 aumento da dependéncia externa do pais, em dois setores: industrial (bens de capital, petréleo © seus derivados) ¢ financeiro, este como reflexo da politica de endividamento. Essas condigées mostrariam seus desafios e riscos a partir do primeiro choque dos pregos do pe- tréleo em fins de 1973. Essas questées so analisadas no capitulo seguinte. ‘ilitava RucomENDAGOES DE LEITURA Tavares"? oferece um amplo panorama analitico ¢ empfrico da economia bra Ieira no periodo do Paeg ¢ do “milagre”. Simonsen®® ¢ Resende” so também con- tribuigdes importantes para a discussio sobre o Paeg, ¢ Lago” & uma referéncia obrigatéria para a compreensao da economia brasileira no periodo do “milagre”. ‘LEITURAS ADICIONAIS Campos,” Capitulo XII, € um depoimento rico em detalhes sobre os diag- nésticos e estratégias de agdo que orientaram as decisdes de politica econdmica no governo Castello Branco. Para uma andlise teérica ¢ empirica dos acertos € desvios da reforma financeira de 1964-67, ver Studart™ e Hermann. Reformas, Endividamento Externo ¢ 0 “Milagre” Eeonémico (1964-1973) 71 Aisevier Noras 1. Em 27 de outubro de 1965, 0 Ato Institucional n#2 (AI-2) extinguiu os diversos partidos politicos entdo existentes ¢ instituiu no pais 0 bipartidarismo, que manteve na legalidade apenas um partido da situagio — a Arena (Alianga Renovadora Nacional) — ¢ um de oposicio — 0 MDB (Movimento Democratico Brasileiro). 0 Al-2 também cassou os mandatos de diversos deputados da oposigdo © impos eleigdes indiretas para a Presidéncia da Repablica. O presidente passou a ser cleito pelo Gongresso, dominado pela Arena, jé que muitos politicos do MDB foram cassados e/ou exilados & Epoca, 2. Daqui em diante, todos os dados citados sem r ce Estatistico a0 final do livro, e os dados de inflagio, salvo mengdo em contrério, referem- FGY, ‘Ver Campos (1994), Anexo VII, p. 1353. Idem, p. 1354. Ver Simonsen (1970), pp. 23-24 Ver Resende (1982), p. 777. Idem, p. 774 Os principais instrumentos legais relativos 3 reforma tributiria de 1964-67 foram a Emenda Cons tucional n? 18, de 01/12/1965, a Lei n*5.172, de 25/10/1966, ¢ os capitulos pertinentes da Constitui- io Federal de janeiro de 1967, que praticamente repetem o contedido dos documentos anteriores, com pequenas modificagées. Para maiores detalhes, ver Varsano (1981). 9, Para uma andlise das medidas ¢ efeitos da reforma financeira de 1964-67, ver Lemgruber (1978), ‘Tavares (1972, pp. 219-33), Studart (1995, pp. 116-32) e Hermann (2002). 10, Entre elas, vale destacar: Lei n? 4.595 (dezembro/1964), que estruturou 0 SEB nos moldes descritos no Quadro 3.2; Lei n# 4.728 (julho/ 1965), que regulamentou o mercado de capitais; Resolugio 16 (Fevereiro/1966), que criou as sociedades de capital aberto; Resolucio 39 (oucubro/1966), reg lamentando as Bolsas de Valores ¢ Resolugao 45 (dezembro/1966), que criou os bancos de investi- \cia a uma tabela espectfica constam do Apéndi- ao IGP- mento. 11, A intengao original era, realmente, que esses mecanismos de protecao fossem temporirios. No en- tanto, a resisténcia da inflago em nivcis de dois digitos nos anos 1960-70 e seu “salto” para trés ¢, depois, quatro digitos nas décadas de 1980-90 (apesar de diversas tentativas de estabilizagio até 1994), acabaram por estender a vigéncia do principal deles — a coregio monetéria — até 1995. 12, Este diagnéstico mostrou-se equivocado logo na primeira fase de crescimento da economia brasileira pos-reformas. Entre 1968 © 1973, o ingresso liquido de capital externo somou US$12,9 bilhoes — valor surpreendente, face ao ingresso de US$0,9 bilhdes nos seis anos anteriores (1962-67). Desse montante, porém, apenas US$2,4 bilhdes financiaram, de alguma forma, o erescimento econdmico & US$6,2 bilhdes tornaram-se actimulo de reservas no Bacen, Ver, a respeito, Cruz. (1983, pp. 60-65). 13. Ver Simonsen (1970), pp. 23-34. 14, O IBGE e a Fundacéo Getulio Vargas (antiga responsivel pela elabora Brasil) ndo disponibilizam dados oficiais sobre a participagio dos salérios ¢ lucros no PIB brasileiro para o periodo de 1961-69 (ver IBGE, Estatiticas do Século XX, Tabela 3— distribuigdo). Para indicadores nao oficiais, que confirmam a perda real dos salirios com o Paeg, ver Resende (1982, pp. 777-80) 15. Gomo observou Roberto Campos (1994, p. 568): “O movimento de 64 tem de ser entendido como ‘um proceso detonado pela interagao das condicées internas com o contexto internacional da época © quadro externo era 0 da Guerra Fria [entre Estados Unidos ¢ Unido Soviética, socialista], que a Unido Soviética parecia estar ganhando: crescimento a taxas muito altas, prevendo ultrapassar a economia americana (...); (..) guertilhas antiimperialistas em todo o Terceiro Mundo (...); (..) © socialismo na China em 49 (...) [e] avit6ria da revolugao em Cuba em $9.” [No Brasil] “A infiltragao das esquerdas era visivel (..)”. Nesse contexto, aos olhos do governo americano, os militares no Brasil defendiam o pais de um inimigo comum: a Unido Soviética. Dafa simpatiae 0 apoio dos Estados Unidos aos governos militares que assumiram o poder no Brasil apés 0 golpe de 1964. 16, Ver Simonsen (1970), pp. 34-37. “ao das Contas Nacionais do 72 Reonomia Brasileira Contemporénea: 1946-2010 ELSEVIER 17. Para uma anélise mais extensa do perfodo do “milagre”, ver Lago (1997). 18. Como sintetiza Cruz (1983, p. 65): *(..) 0 afluxo de recursos externos & economia brasileira [entre 1969-73] foi determinado, em diltima instncia, pelas transformacSes ocorridas no mercado de curomoedas (..). Nesse sentido, a economia brasileira, ao clevar seus niveis de endividamento externo, nada mais fez do que acompanhar de forma passiva um movimento geral que envolvcu diferentes economias ‘em desenvolvimento’ num momento em que o euromercado buscava novos clientes fora dos Estados Unidos ¢ Europa.” Contudo, coma se argumentari a seguir, néo parece correto dizer que o Brasil teve um comportamento passiva, jf que os governos Castello Branco, Costa ¢ Silva e Médici implementaram politicas deliberadas de atragio de capital externo, 19. Ver Tavares (1972) 20. Ver Simonsen (1970), 21. Ver Resende (1982) 22. Ver Lago (1997). 23. Ver Campos (1994). 24, Ver Studart (1995). 25, Ver Hermann (2002),

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