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Todos os direitos em língua portuguesa reservados por Editora Fiel da Missão Evangélica Literária
PROIBIDA A REPRODUÇÃO DESTE LIVRO POR QUAISQUER MEIOS, SEM A PERMISSÃO ESCRITA DOS EDITORES, SALVO
EM BREVES CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO DA FONTE.
Nenhum crente pode ter alvo mais elevado ou desejos melhores do que
estes. Colocar e conservar em nós estes princípios é um dos aspectos do
constante ministério do Espírito em nosso favor, por meio das Escrituras.
Todavia, existe um outro lado. Tendo Jesus Cristo como seu centro, a
Bíblia assemelha-se a um enorme círculo que abrange a totalidade da vida de
cada indivíduo. Aqueles que, usando a figura de linguagem de C. S. Lewis,
examinam ao longo da Bíblia, como se estivessem seguindo um raio de sol
que brilha no sótão, descobrem que tudo quanto são é pesado e julgado à luz
dos ensinamentos, das narrativas e do estado de coisas que as Escrituras
expõem diante de nós. O Espírito Santo leva-nos a fazer sobre nossas vidas
os mesmos julgamentos que Ele mesmo faz . Ele nos leva a medirmos a nós
mesmos através daquilo que a Bíblia nos mostra acerca da maneira certa ou
errada de agir como pai, como filho, como político, cidadão, cônjuge, pessoa
solteira ou viúva, dona-de-casa, gerente, trabalhador, patrão, vizinho,
professor, estudante, inválido, pessoa rica ou qualquer outra coisa. Também
pelos preceitos e exemplos bíblicos - Cristo, Abraão, Paulo, Elias e todos os
heróis da fé - aprendemos o que está envolvido na piedade autêntica.
Geralmente, quando assim nos avaliamos, descobrimos que somos faltosos;
e então o Espírito nos guia a mudar nossos caminhos de acordo com o que
tínhamos nos avaliado (as Escrituras Sagradas chamam de arrependimento
essa esclarecida mudança). Desse modo, provamos pessoalmente a verdade
daquela outra afirmativa paulina - que a Escritura inteira, por haver sido
inspirada por Deus, é "útil para o ensino, para a repreensão, para a correção,
para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e
perfeitamente habilitado para toda boa obra" (2 Tm 3.16, 17). Esse é o
segundo aspecto envolvido no fato de sermos ensinados por Deus.
Espero que os esboços de temas bíblicos (os quais não são mais do que
isso), que vêm a seguir, sirvam ao duplo propósito do Espírito de Deus:
conduzir-nos constantemente a fim de que adoremos e amemos o Cristo das
Escrituras, e mudar as nossas vidas à luz de suas verdades. Não tenho
qualquer interesse por estudos bíblicos que não busquem esses alvos
escriturísticos.
A palavra portuguesa "revelar" vem do latim revelare, que significa "tirar o
véu" ou "descobrir". Essa é precisamente a ideia expressa pelos vocábulos
hebraico e grego que são traduzidos na Bíblia por "revelar". "Revelar" é uma
palavra ilustrativa (como o são todos os vocábulos teológicos), e o quadro
nos mostra Deus desvendando – Deus revelando-nos coisas que antes
estavam ocultas para nós; Deus trazendo à luz coisas que antes estavam fora
do alcance de nossa visão; Deus nos levando e capacitando a ver aquilo que,
até aquele momento, não podíamos ver. Deus compartilha
confidencialmente conosco os seus segredos. Deus nos encontra ignorantes
e nos confere conhecimento. É isso que significa revelação.
O quadro responde a três perguntas fundamentais. Primeira, qual a
necessidade da revelação? Resposta: Certas realidades vitais estão
escondidas de nós, ocultas aos nossos olhos, enquanto Deus não as
desvenda. Segunda, qual o propósito da revelação? Resposta: Proporcionar-
nos o conhecimento dessas realidades; Deus deseja compartilhá-las conosco.
Terceira, qual deve ser a nossa atitude face à revelação? Resposta: Devemos
atentar respeitosamente e receber com gratidão tudo quanto Deus nos
transmite. Quando o Senhor fala, o homem precisa estar disposto a ouvir, a
aprender e a responder.
REVELAÇÃO PESSOAL E SOB A FORMA DE PROPOSIÇÕES
O que Deus revela? Os teólogos protestantes antigos responderiam:
Verdades sobre Simesmo, as quais, de outra forma, não poderíamos saber.
Os teólogos modernos, na maioria, preferem simplesmente dizer: Deus
revela a Si mesmo. Essas duas respostas, porém, são complementares e não
contrárias. É verdade que a revelação consiste, essencialmente, no
autodesvendamento de Deus e que o seu propósito é levar os homens a
"conhecerem o Senhor", mediante a comunhão pessoal com um Deus
pessoal.
Mas, como é que Deus se faz conhecido a nós? Da mesma maneira que o
leitor far-se-ia conhecido a mim, ou eu a você: mediante a fala. O ato de falar
sempre é uma revelação da parte daquele que fala. Assim, Deus desvenda-se
a nós, falando conosco acerca de Si mesmo, bem como falando a nosso
respeito, conforme Ele nos vê. Deus nos fala de suas próprias realizações
passadas: como criou, julgou, remiu e soergueu os homens para que O
servissem e como criou um povo para Si mesmo. Deus fala conosco sobre sua
obra presente: como determina e controla todas as coisas, para o
cumprimento dos seus propósitos. Deus nos fala acerca dos seus planos
futuros, esboçando para nós, em termos misteriosos mas brilhantes, o
clímax vindouro da história e o destino final de seu povo. Ele nos diz o que
pensa sobre a vida humana e sobre as diferentes maneiras de viver dos
homens. Ele nos fornece orientações, aconselha, faz promessas e adverte.
Ele nos ensina a sua escala de valores, detalhando para nós as coisas que Ele
aprova e as coisas que odeia. Por conseguinte, é falando que Deus revela a Si
mesmo. Ele se desvenda, falando-nos sobre Si mesmo. A sua revelação é
pessoal, exatamente porque se processa através de proposições; pois é
exatamente fazendo-nos declarações verazes a respeito de Si mesmo, que
Deus se faz conhecido a nós. Se Ele não tivesse nos falado assim, jamais
poderíamos tê-Lo conhecido. Afirmar, segundo alguns fazem, que o homem
pode descobrir e conhecer Deus, sem que Deus lhe fale, realmente é negar
que Deus é pessoal. As pessoas não podem ser conhecidas a menos que, de
alguma maneira, falem para revelar a si mesmas.
A REVELAÇÃO NO ANTIGO E NO NOVO TESTAMENTOS
O cerne da Bíblia Sagrada é a narrativa de Deus falando aos homens. O
Antigo Testamento mostra-nos como Deus falou diretamente a Adão e Eva,
no jardim do Éden, bem como a Caim, a Noé, a Abraão, a Isaque e a Jacó. Ele
também falou diretamente a Moisés e aos profetas. Utilizando-se de Moisés
como seu porta-voz, Deus falou a todo o povo de Israel, no deserto, exibindo
diante deles os preceitos e as promessas de sua aliança. Por intermédio dos
profetas posteriores (pois Moisés, o outorgador da lei, na qualidade de
porta-voz de Deus, foi um profeta - Dt 18.15 e 34.10), Deus continuou a
falar ao seu povo, reforçando a lei, explicando os seus propósitos de
julgamento e de misericórdia, ao longo da história, apelando por
arrependimento e exortando a uma vida de fé na sua pessoa.
Toda revelação direta da vontade e dos propósitos de Deus, em toda a
dispensação da antiga aliança, foi transmitida através dos profetas. Os
salmistas e os sábios meditaram com inspirado discernimento sobre a
religião e a vida, à luz dessa revelação, conforme a conheciam. Porém, os
profetas foram aqueles por meio de quem a própria revelação foi feita em
cada estágio.
No hebraico há duas palavras para "profeta"; uma significa vidente e a
outra, porta-voz. Juntas, elas indicam a natureza da chamada de um profeta.
Em primeiro lugar, como vidente, era privilégio de um profeta receber a
revelação. Deus, por assim dizer, tornou os profetas seus confidentes e
mostrou-lhes os seus planos. Declarou Amós: "Certamente o SENHOR Deus
não fará cousa alguma, sem primeiro revelar o seu segredo aos seus servos,
os profetas" (Am 3.7). O profeta permanecia no "conselho do SENHOR", a
fim de ver e ouvir a sua palavra (Jr 23.18). Em segundo lugar, fazia parte das
responsabilidades de um profeta, como porta-voz, proclamar a palavra da
revelação que recebera. "Eis que ponho na tua boca as minhas palavras...
tudo quanto eu te mandar, falarás'' (Jr 1.9, 7). ''Assim diz o SENHOR Deus...
tu lhes dirás as minhas palavras", foi a comissão dada por Deus a Ezequiel
(Ez 2.4, 7; cf. 1 Rs 22.14; Nm 22.19, 20, 35, 38). A fórmula "Assim diz o
SENHOR", que introduz oráculos proféticos por 359 vezes no Antigo
Testamento, serve de testemunha da realidade da revelação - uma
testemunha do fato que o profeta não criava as suas próprias mensagens,
mas falava como porta-voz de Deus, de tal modo que aquilo que dizia
precisava ser recebido, não como adivinhações ou especulações humanas,
nem como ideias fantasiosas, mas como declarações divinas, sendo, por isso
mesmo, verdades infalíveis. Podemos entender o horror que Jeremias sentiu
quando, por um lado, certos falsos profetas declararam, em nome do
Senhor, mensagens que eles mesmos haviam formulado (Jr 14.14ss.; 23.9-
40), e, por outro lado, quando as palavras de profetas autênticos, como ele
mesmo, eram desprezadas e desconsideradas (Jr 20.7, 8; 25.3ss.).
A mensagem neotestamentária acerca da revelação divina está
cristalizada nas palavras que abrem a epístola aos Hebreus: "Havendo Deus,
outrora, falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas,
nestes últimos dias nos falou pelo Filho..." (Hb 1.1, 2). O Senhor Jesus
Cristo cumpriu o ministério de um profeta, visto que só transmitiu aquelas
palavras, e somente aquelas, que o Pai Lhe dera para falar (Jo 7.16; 8.28;
12.49, 50; cf. Hb 2.3, 4). Contudo, Jesus Cristo fez mais do que isso. Ele
revelou o Pai, não somente através daquilo que disse, mas também pelo que
foi e realizou. Pois Ele, como Filho, é a imagem do Pai, e toda a multifacetada
plenitude do caráter do Deus invisível tornou-se visível através da vida do
Filho de Deus, em carne (Cl 1.15, 19; 2.9; Hb 1.3). Portanto, Cristo pôde
dizer: "Quem me vê a mim, vê o Pai" (Jo 14.9). E João pôde escrever:
"Ninguém jamais viu a Deus: o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é
quem o revelou" (literalmente, o explicou, o elucidou - Jo 1.18).
Isso ainda não é tudo. Cristo prometeu o Espírito Santo aos seus
discípulos, a fim de revelar-lhes a plena verdade acerca de Si mesmo e
capacitá-los a prestarem testemunho quanto a isso (Jo 14.26; 15.26 e
16.13ss.). Dessa forma, na verdade, Ele os designou para um ministério
profético propriamente dito. Após o Pentecoste, encontramo-los cumprindo
tal ministério. Por um lado, eles receberam revelações através do Espírito
Santo. Paulo muito salientou o "mistério" do plano divino de salvação em
Cristo, desde há muito oculto, mas agora ''revelado aos seus santos
apóstolos e profetas, no Espírito" (Ef 3.5; cf. vv. 3-11; 1.9ss.; 1 Co 2.7ss.; Rm
16.25, 26). Por outro lado, eles declararam o que lhes havia sido mostrado
pelo ensino do Espírito, e de modo autoritativo, como Palavra de Deus (1 Co
2.1ss.; 2.13ss.; 1 Ts 2.13). Eles ministraram e ensinaram como
representantes de Cristo, autorizados e equipados por Ele. Assim, o
testemunho dos apóstolos faz parte integral do grande complexo de
declarações divinas, encerrado dentro da frase: ''Deus... falou pelo Filho''. O
ensino de Cristo e dos apóstolos constitui uma unidade, e essa unidade,
incorporada em nosso Novo Testamento, é a palavra final de Deus ao
homem.
Se agora indagarmos acerca do que Deus, de modo resumido, estava
revelando durante o período bíblico, diversas coisas precisarão ser ditas.
Em primeiro lugar, Deus estava revelando a Si mesmo. Ele estava
mostrando o "seu eterno poder e a sua própria divindade" (Rm 1.20), na
qualidade de Criador e Senhor de todas as coisas. Juntamente com isso,
Deus estava revelando o seu caráter e a sua maneira de lidar com os homens
(Êx 34.6-7; Dt 5.9, 10; Jr 9.24; 1 Jo 1.5; 4.7-10), a fim de que Ele fosse
reconhecido e adorado por tudo quanto é, faz e dá aos homens. Encarada
desse ponto de vista, a revelação atingiu o seu ponto culminante na vida
encarnada do Filho de Deus.
Em segundo lugar, Deus estava revelando o seu reino. Ele estava
mostrando a realidade de seu domínio universal (observemos como um
profeta após outro recebeu visões do trono de Deus - 1 Rs 22.19; Is 6.1ss.; Ez
1.26; Dn 7.9; Ap 4.2; e como salmista após salmista celebrou o reinado de
Deus - Sl 93.1, 2; 96.10; 97.1; cf. 1 Cr 16.31; Is 52.7; Ap 19.6). Deus estava
mostrando, igualmente, como Ele faz a história avançar na direção da forma
final que o seu reinado assumirá, a saber, o reinado salvador de Jesus, o
Messias, o verdadeiro Senhor do mundo atual (cf. Mt 28.18; Hb 1.3, 8, 9,
13), que voltará um dia, em glória, para dar um fim ignominioso a todas as
pessoas e a todos os poderes que agora repelem o seu governo (1 Co 15.24ss;
Fp 2.9-11).
Em terceiro lugar, Deus estava revelando a sua aliança. Isso foi e continua
sendo um relacionamento imposto: Deus compromete-se, diante dos
homens, a abençoá-los, e eles comprometem-se, diante dEle, a servi-Lo. "Eu
serei o vosso Deus, e vós sereis o meu povo": esse é o compromisso do
relacionamento que Deus reitera a cada novo estágio das bênçãos da aliança
(Gn 17.1-14; Êx 19.4-6; Lv 26.12; Dt 7.6; 14.2; Jr 11.3-4; 30.22; 31.33; Ez
11.20; 36.28; Zc 8.8; 2 Co 6.16; Ap 21.3; etc.); esse é o estribilho que se faz
ouvir através da Bíblia. A nova aliança, estabelecida por Jesus, seu mediador,
é melhor do que a anterior em muitos aspectos (Hb 8 a 10); mas a
incumbência divina de abençoar, tanto agora quanto futuramente, que
consiste no próprio acordo de Deus com o seu povo, jamais sofreu alteração.
A essência da aliança, em todas as formas de sua administração, é que Deus
diz "meu povo", e aqueles que são assim tratados respondem-Lhe, dizendo:
"meu Deus" ou "nosso Deus". Lutero estava com toda a razão quando
descreveu o cristianismo como uma questão de pronomes pessoais. O povo
com o qual Deus entrou em relação de aliança - os israelitas fiéis, no Antigo
Testamento, e os discípulos de Cristo, espalhados pelo mundo inteiro, no
Novo Testamento - são aqueles acerca de quem se pode dizer: "Agora que
conheceis a Deus, ou antes, sendo conhecidos por Deus" (Gl 4.9). Para esses
cumprem-se as "preciosas e mui grandes promessas" de Deus (2 Pe 1.4). Esse
é o relacionamento da aliança que nos foi revelado.
Em quarto lugar, Deus estava revelando a sua Lei, isto é, a sua vontade
para todos os homens, mas que serve de torah (instruções paternas
autoritativas) para o seu próprio povo. "Mostra a sua palavra a Jacó, as suas
leis e os seus preceitos a Israel. Não fez assim a nenhuma outra nação" (Sl
147.19, 20). Nos dias do Antigo Testamento, Deus identificou-se como Pai
de seu povo, como uma comunidade (Êx 4.22, 23; Ml 1.6). Mas, sob o Novo
Testamento, todos quantos recebem o "único e sem par" Filho de Deus
(paráfrase usada na versão americana NIV para substituir o termo
"unigênito", por implicar afeição) tornam-se irmãos de Jesus mediante a
adoção e o novo nascimento (Jo 1.12, 13; 20.17; Gl 4.4-7). E a torah de Deus,
em sua dupla forma, de mandamentos e de sabedoria, foi verbalizada em
ambos os testamentos (por Moisés e os profetas, no Antigo; e por Cristo e
seus apóstolos, no Novo) a fim de que os filhos de Deus pudessem aprender
a honrar ao seu Pai, mantendo os padrões da família e assim mostrando a
semelhança familiar.
Em quinto lugar, Deus estava revelando a sua salvação, ou seja, a sua obra
de salvar pessoas de qualquer coisa que ameace destruí-las - seja o cativeiro
no Egito (Êx 14.13; 15.2); seja o cativeiro babilônico (Is 51.5, 6, 8), sejam
adversários nacionais ou tribulações pessoais (nos Salmos encontramos
esses fatos muitas vezes), sejam o pecado e Satanás (no Novo Testamento,
isso acontece reiteradas vezes). Desse ponto de vista, a revelação atingiu o
seu ponto culminante quando Deus nos deu a palavra do evangelho (cf. Gl
1.11, 12), que exibe a obra terminada de Cristo e a contínua operação do
Espírito de Cristo (cf. Rm 1.16; Ef 1.13). Juntemos todos esses temas e
teremos o âmago do conteúdo da revelação bíblica.
REVELAÇÃO PASSADA E PRESENTE
O exame que fizemos sobre a mensagem da Bíblia nos conduz ao ponto
seguinte. Conforme já vimos, Deus começou a falar no jardim do Éden e
terminou na época dos apóstolos. Portanto, trata-se muito mais de uma
questão do passado histórico. Significa isto que por mais de dezenove
séculos Deus não dirige a palavra aos homens? Não, não significa. É verdade
que desde a era apostólica Deus nada mais disse de novo aos homens,
porquanto, de fato, nada mais Ele tem para dizer-nos que não tenha dito
antes. Mas, é igualmente verdade que Deus não tem cessado de falar ao
homem tudo o que havia dito anteriormente. Gladstone não continua
falando à nação inglesa o que falou há cem anos porque faleceu. O Deus vivo,
porém, continua falando à humanidade o que Ele disse em seu Filho e
através dEle, há mais de dezenove séculos. Isso significa que quando lemos,
ou ouvimos alguém ler ou expor o registro bíblico daquilo que o Senhor
afirmou nas épocas do Antigo e do Novo Testamento, somos
verdadeiramente confrontados com uma palavra revelada, dirigida a nós por
Deus. E essa palavra exige de nós uma resposta, assim como exigiu da
congregação judaica, que ouviu Jeremias, Ezequiel, Pedro, e Cristo, ou das
congregações gentílicas, que ouviram os sermões do apóstolo Paulo.
REVELAÇÃO GERAL E ESPECIAL
A Bíblia registra as palavras que Deus proferiu no decurso da história,
acerca de sua obra redentora, efetuada na própria história. Porém, uma das
coisas que a Bíblia mostra é que Deus também se revela à parte das
Escrituras, de uma maneira independente da revelação de seu propósito
salvador. A revelação deste propósito foi dada mediante uma sequência
particular de eventos a pessoas particulares, em lugares particulares; mas, a
outra forma de revelação, à parte das Escrituras, é dada a todos os homens
por meio da experiência comum de estarem eles vivos no mundo de Deus.
Ela nos é dada através de todas as coisas criadas. O Salmo 19.1-4 afirma que
os fenômenos celestiais, simplesmente por serem o que são, proclamam a
glória e a "voz" inequívoca de seu Criador, até aos confins da terra. Em
termos gerais, Paulo estabelece que as "cousas que foram criadas" por Deus
transmitem conhecimento sobre "o seu eterno poder como também a sua
própria divindade" - isto é, revelam que Ele é o Deus Todo-Poderoso, que
deve ser adorado pelos homens e que os considera indesculpáveis quando
deixam de reconhecê-Lo (Rm 1.20-21). A denúncia de Paulo contra o mundo
gentílico, em Romanos 1.18-2.16, está baseada nessa verdade. Novamente,
essa revelação é outorgada pela providência divina comum, que fornece
multiformes provas da bondade de Deus. Em Atos 14.16-17, Paulo afirma
que embora Deus tivesse permitido que as apóstatas nações gentílicas
"andassem nos seus próprios caminhos", Ele "não se deixou ficar sem
testemunho de si mesmo, fazendo o bem, dando-vos do céu chuvas e
estações frutíferas, enchendo os vossos corações de fartura e de alegria" (cf.
Mt 5.45; Sl 145.9). Assim, Deus demonstra aos homens a sua bondade e a
enorme dívida de gratidão que têm para com Ele.
Também, essa revelação é realizada mediante a voz da consciência, a qual
se manifesta como representante de Deus, mostrando a cada homem pelo
menos alguma coisa dos requisitos de sua lei (Rm 2.14, 15) e assegurando,
até mesmo aos mais empedernidos, que o julgamento e a condenação virão
(Rm 1.32).
Visto que essa revelação é transmitida mediante o curso comum da
ordem criada, ela é chamada de "natural", em contraste com a revelação
"sobrenatural", dada mediante as particulares declarações redentoras de
Deus, feitas ao longo da história. Visto que ela tem sido dada de maneira
universal, é chamada de revelação ''geral'', em contraste com a revelação
"especial", registrada na Bíblia, a qual é feita àqueles que leem ou ouvem a
Palavra de Deus e que nunca atinge muitas pessoas.
Qual é a diferença de conteúdo entre a revelação geral e a revelação
especial? Basicamente, trata-se do seguinte: a revelação geral não envolve
qualquer mensagem redentora. Atende somente as necessidades do homem
antes da queda no pecado. Não revela aos pecadores senão aquilo que foi
revelado a Adão, em seu estado de inocência. Não fornece qualquer indício
de que Deus, que não tolera o pecado, possa mostrar-se misericordioso para
com aqueles que transgridem a sua lei. Assegura os transgressores de sua
condenação, mas não lhes oferece a mínima esperança de perdão. Prega a lei,
mas não anuncia o evangelho da graça. Somente a revelação especial, dada
desde a Queda e que encerra a mensagem de redenção por meio de Jesus
Cristo, pode atender as necessidades dos pecadores. A revelação geral pode
levar à condenação, se for negada ou negligenciada, mas não pode prover um
meio de restauração ao condenado. Se o homem caído acolhesse com
seriedade o testemunho da revelação geral, isso o conduziria ao desespero.
Mas, de fato, ele não o faz. Os homens "detêm a verdade" (Rm 1.18); eles
negam e pervertem a revelação geral, de tal modo que somente alguns
lampejos de sua luz conseguem atravessar a barreira. O conhecimento que
eles têm de seu Criador assume a forma de negação ou de ignorância
voluntária da pessoa dEle, conforme Paulo explica em Romanos 1.19-32 e
em Atos 17.22-28. Isso nos leva ao próximo ponto.
REVELAÇÃO OBJETIVA E SUBJETIVA
"Ora, o homem natural não aceita as cousas do Espírito de Deus... não
pode entendê-las porque elas se discernem espiritualmente" (1 Co 2.14). "O
deus deste século cegou os entendimentos dos incrédulos, para que lhes não
resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo" (2 Co 4.4). Não basta que
Deus desvende os seus segredos e tome claros os seus mistérios perante os
homens caídos, pois eles estão cegos.
Os judeus, diz Paulo, não podiam compreender o Velho Testamento (isto
é, a revelação objetiva de Deus para eles), porquanto havia um véu sobre as
suas mentes (2 Co 3.15). O mesmo acontece quando qualquer porção da
verdade de Deus é apresentada a qualquer dos filhos de Adão. O homem, em
seu pecado, é incapaz de apreender corretamente a revelação geral ou a
revelação especial de Deus, visto que a sua capacidade de discernimento
espiritual foi praticamente inutilizada. Se a revelação objetiva tiver de ser
acolhida, ou se o homem tiver de responder a ela, Deus terá de retirar o véu
do coração do homem, restaurando a visão espiritual. Essa é a operação à
qual Paulo se referiu em 2 Coríntios 4.6: "Porque Deus que disse: Das trevas
resplandecerá luz – ele mesmo resplandeceu em nossos corações, para
iluminação do conhecimento da glória de Deus na face de Cristo". Foi a
operação da revelação subjetiva que Paulo descreveu em seu próprio caso, ao
dizer que a Deus "aprouve revelar seu Filho em mim" (Gl 1.15-16) - isto é,
mediante um ato iluminador dentro de seu próprio espírito. Foi esta
revelação que Cristo reconheceu, quando disse a Pedro que fora o Pai quem
lhe revelara que Jesus era o Cristo, o Filho de Deus (Mt 16.17). O processo
da manifestação objetiva precisa ser complementado por um ato de
iluminação interna, se o homem tem de chegar ao conhecimento de Deus.
Dois véus tem de ser retirados: aquele que oculta de nós a mente de Deus e
aquele que cobre o nosso coração. Em sua misericórdia, Deus remove ambos.
Assim, nosso conhecimento de Deus, do princípio ao fim, é um dom gracioso
dEle.
REVELAÇÃO PRESENTE E FUTURA
Jávimos que, em certo sentido, a revelação terminou: Deus nada mais
tem a dizer ao mundo, nesta nossa era, além do que já disse nas Escrituras,
que se completaram quando os escritos do Novo Testamento foram
encerrados no primeiro século d.C. Em um outro sentido, porém, a revelação
mais clara e completa ainda está por vir. O evento inimaginável, mas certo e
seguro, do retorno público de Cristo, quando todo olho O verá, para regozijo
ou angústia do homem, fará todo ser humano que já viveu, está vivendo ou
ainda viverá - bilhões deles - apresentar-se diante do Senhor para ser
pessoalmente julgado. Isso será um desvendamento que ultrapassará
qualquer coisa que tenhamos visto de Cristo até o momento. Será
precisamente como Pedro diz: "A revelação de Jesus Cristo" (1 Pe 1.7). Para o
povo de Deus, isso introduzirá uma eternidade na comunhão com Aquele "a
quem, não havendo visto, amais" (1 Pe 1.8); e um dos aspectos dessa
comunhão é retratado assim diante de nós: "Contemplarão a sua face" (Ap
22.4); e: "Havemos de vê-lo como ele é" (1 Jo 3.2).
A visão celestial de Deus, da qual faz parte o estar "sempre com o Senhor"
(1 Ts 4.17) para contemplar a sua face, sempre foi encarada pela igreja como
o supremo bem de todo ser humano (o summum bonum) - e com razão. Paulo
contrasta o conhecimento atual e o conhecimento futuro de Deus,
afirmando que agora vemos "como em espelho, obscuramente" (1 Co 13.12),
ao passo que então O veremos face a face. Na antiguidade, os espelhos eram
fabricados de metal batido e polido; não eram de boa qualidade. Assim,
Paulo está dizendo que o nosso atual conhecimento indireto é inadequado.
Uma versão da Bíblia parafraseia esse trecho, como segue: "Agora vemos
apenas um pobre reflexo, então veremos face a face. Agora conheço em parte;
então conhecerei plenamente, como sou plenamente conhecido".
Neste instante, você não pode ver o escritor deste parágrafo. As minhas
palavras são uma espécie de reflexo de meu coração e de minha mente;
porém, você não poderá conhecer-me "completamente bem", como
costumamos dizer, apenas pela leitura das minhas palavras. Porigual modo,
Deus é invisível para você; a sua Palavra revelada verdadeiramente reflete a
sua mente e o seu coração, embora não de uma maneira adequada à
realidade. Mas, quando Cristo voltar, conheceremos a mente e o coração de
Deus tão plena e diretamente como são conhecidos agora nossas mentes e
nossos corações. Quando me encontro longe de casa, e minha esposa me
escreve ou telefona, meus sentimentos tomam-se um misto de prazer,
devido ao contato estabelecido, e de saudade, devido à distância. Nessas
oportunidades, tenho o desejo de estar em casa, a fim de vê-la e estar com
ela. O mesmo sucede aos crentes, quando ouvem o seu Senhor que lhes fala
através da Bíblia, a qual Ele esclarece e aplica às suas vidas. Eles anelam por
aquela revelação mais plena e mais íntima que ainda está por vir.
Estive, certa ocasião, no topo do Ben Nevis, o ponto mais elevado da
Inglaterra. Havia névoas cinzentas por toda a parte, de modo que eu não
podia ver coisa alguma. Durante toda a subida, foi assim. Porém, quando
ergui a cabeça, a névoa acima de mim brilhava tanto que feria meus olhos.
Obviamente, havia apenas alguns metros de névoa entre eu e a luz do sol.
Era dolorosa a intensidade de meu anseio de que aquela espessa névoa se
dissipasse naquele momento (Infelizmente, não foi isso que sucedeu; e terei
de escalar novamente o Ben Nevis). Alguns dos quadros bíblicos que
refletem a beleza celeste despertam o coração do crente de maneira similar;
tal como a névoa brilhante, conferem-nos o senso da proximidade do sol, ao
qual não podemos ver (que, nesse caso, é o Filho de Deus), e despertam em
nós o desejo de estarmos dentro daquele brilho acima da névoa (que, nesse
caso, são os quadros bíblicos). "Os seus servos o servirão, contemplarão a
sua face, e nas suas frontes está o nome dele. Então já não haverá noite, nem
precisam eles... do sol, porque o Senhor Deus brilhará sobre eles, e reinarão
pelos séculos dos séculos" (Ap 22.3-5). No Ben Nevis, eu quis ver o sol; na
terra, os cristãos esperam ardentemente pelo dia em que verão o seu Senhor.
Quando puder o seu rosto mirar,
Oh! Há de ser grande glória para mim.
Será que esta resposta foi suficiente? Talvez. O fato é que ela não
retrucou. E, o próximo questionamento foi sobre um outro assunto, a saber,
a igreja como dona de terras nas favelas de Paddington.
As Testemunhas de Jeová negam que as Escrituras ensinam a deidade do
Filho e do Espírito Santo. Assim sendo, esse grupo está reproduzindo o
arianismo do século IV. Os cristãos que mantêm a linha central ensinam a
doutrina da trindade, tal como anteriormente toda a igreja cristã aprendeu a
fazer contra os arianos. Todavia, algumas vezes os crentes fracassam em
expressar essa doutrina. As ilustrações que usam servem de farto manancial
de tropeços. Uma dessas ilustrações representa a deidade como um trevo
(três folhas que comporiam uma única folha), e, em seguida, descrevem o
Filho e o Espírito como se cada um deles fosse apenas uma "parte" de Deus.
Algum outro evangélico lança mão da ilustração dos três estados da água
(sólido, líquido e gasoso), ou da ilustração dos diferentes aspectos de um
cubo (um único cubo, várias faces e quinas); e daí passam a falar do Filho e
do Espírito Santo como dois papéis extras que o Deus único desempenha em
sua autorrevelação. Hoje em dia, há crentes que sentem dificuldades para
pensar sobre Jesus e o Pai como duas pessoas distintas. Eles também
regularmente despersonalizam o Espírito Santo, tratando-O como se Ele não
fosse uma pessoa. Algo popular entre os teólogos radicais é um unitarismo
que vê Jesus como se fosse apenas uma materialização de nossa tríplice
experiência de Deus: acima de nós, ao nosso lado e dentro de nós.
Entrementes, os mórmons, o grupo religioso de mais rápido crescimento na
América do Norte, proclamam o triteísmo, vendo o Pai, o Filho e o Espírito
Santo como três deuses juntos. A cena é confusa.
Muitos crentes descartam a doutrina da triunidade de Deus como uma
abstração difícil e sem importância, uma peça de antiga quinquilharia
teológica, inteiramente sem valor em nossos dias. Eles concordariam com o
falecido Emil Brunner, que dizia que a trindade é uma "doutrina teológica
defensiva", desenvolvida pela igreja primitiva e não fazia parte do evangelho
original. Eles não veem qualquer importância entre alguém dirigir suas
orações ao Pai, ao Filho ou ao Espírito Santo (ou se, de fato, alguém salta de
uma para outra dessas pessoas, em uma única oração). Eles constantemente
mudam o foco da atenção de uma pessoa da deidade para outra; mas, se
enfatizarmos a importância de relacionar as três pessoas divinas dentro de
nossos pensamentos, eles desconfiarão de nós, como se houvesse algo de
impróprio e não-espiritual em tal esforço intelectual, nestes nossos dias.
Entretanto, a triunidade divina não é uma fórmula eclesiástica cuja base
bíblica é duvidosa. A triunidade divina é um dos mais permeadores
elementos doutrinários do Novo Testamento. Três dos termos gregos
clássicos, em torno dos quais revolviam as discussões principais do século IV
(ousia, essência; homoousios, da mesma substância; e trias, trindade) não se
encontram no Novo Testamento, e o quarto (hypostasis, substância ou
pessoa) não está lá no seu sentido técnico. Todavia, a tripersonalidade do
único Deus, acha-se ali de modo claro e inevitável, como parte integral do
pensamento neotestamentário. Nossa exposição da palavra "Senhor",
aplicada ao Deus de Israel, a Jesus Cristo e ao Espírito Santo, nos
demonstrará isso.
O SENHOR DEUS
No Antigo Testamento, a palavra "Senhor" sempre aparece com inicial
maiúscula, quando indica a pessoa de Deus. De cada quatro ocorrências, três
são grafadas como "SENHOR". A razão é a seguinte: "Senhor" é tradução de
adonai, palavra hebraica que significa, literalmente, "meu senhor", um título
regularmente dado a Deus, e que se deriva do termo hebraico adon,
governador ou proprietário de escravos (ver Gn 24.12 e 45.8, quanto ao seu
uso secular). O Antigo Testamento grego (a Septuaginta) traduziu adonai por
kurios, um sinônimo de adon. Pelo menos desde o primeiro século a.C, a
palavra kurios também foi usada para referir-se a divindades pagãs. Ao que
tudo indica, a Septuaginta data do segundo século a.C; e é possível que esse
uso teológico-pagão da palavra kurios já existisse quando aquela tradução foi
feita. Nesse tempo, os judeus tinham chegado a pensar que o nome próprio
de Deus, Jeová, era por demais sagrado para ser pronunciado. Desse modo,
em sua adoração (na leitura das Escrituras, na pregação e nas orações), bem
como em seu linguajar diário, passaram a substituí-lo por adonai. Assim, os
tradutores da Septuaginta fizeram o mesmo - não tentaram traduzir Jeová
para o grego, mas simplesmente traduziram esse vocábulo por kurios. Dentre
as 8.000 instâncias em que kurios é usada para referir-se a Deus, na
Septuaginta, 6.700 delas são traduções de Jeová. A versão da Bíblia
portuguesa segue essa norma, usando ''SENHOR" como tradução do nome
sagrado, em todas as ocasiões em que este figura no original hebraico.
Em Êxodo 3, Deus comissionou Moisés a conduzir os filhos de Israel para
fora do Egito. Em Êxodo 6, não tendo obtido sucesso diante do Faraó, ao
agir como lhe fora ordenado (Êx 4.22, 23 e 5.1ss.), e tendo caído seu
prestígio pessoal a zero (Êx 5.20, 21), retornou a Deus, em desespero (Ex
5.22, 23). Nestas duas passagens, Deus deu grande ênfase ao significado do
seu nome, Jeová, como uma revelação de sua graciosa soberania. Essas
passagens bíblicas merecem ser examinadas.
Diante da sarça ardente, a voz que falava identificou-se a Moisés como o
Deus (elohim, aquele que é sobre-humano e sobrenatural) dos patriarcas e do
próprio pai de Moisés (Êx 3.6).
Tendo ouvido a comissão divina e recebido a promessa da presença do
Senhor (vv. 10-12), Moisés indagou o que deveria responder se, após dizer
aos israelitas: "O Deus de vossos pais me enviou a vós outros", eles lhe
perguntassem: "Qual é o seu nome?" (v. 13). Tanto agramática hebraica (ver
o livro de J.A.Motyer, The Revelation of the Divine Name - A Revelação do
Nome Divino - pp. 17-21) quanto o contexto demonstram que essa
indagação envolveu o pedido que Deus desvendasse a sua própria natureza.
Por um lado, isso autenticaria o Ser que falara a Moisés como o verdadeiro
Deus de Israel (Êx 4.1-9), e, por outro, asseguraria aos israelitas a capacidade
de Deus realizar aquele quase inacreditável livramento que acabara de
prometer. (A ideia de um nome não como um mero rótulo, mas como algo
para desvendar fatos sobre seu possuidor, já estava profundamente
arraigada na tradição israelita - Gn 16.11; 17.5, 15; 30.6-24; 32.28.) Foi
nesse sentido que Deus atendeu ao pedido de Moisés, porquanto deu o seu
nome como "Eu Sou o que sou", ou então, em sua forma abreviada: "Eu Sou"
(Êx 3.14).
Talvez seja correto traduzir essa expressão, conforme fazem algumas
versões inglesas, usando o verbo no futuro: "Serei o que serei". Seja como
for, o verbo denota um "ser" dinâmico e repleto de energia, não um ser
estático e inoperante. O "ser" de Deus é um estado de contínua atividade,
não de repouso. Assim sendo, o nome composto de Deus é uma proclamação
de sua soberana autossuficiência e autoconsistência. Deus é livre e
independente. Ele age como Lhe agrada. Deus faz aquilo que quer fazer.
Aquilo que Ele propõe e promete, isso Ele executa. Por conseguinte, Israel, a
quem o Senhor fez essa espantosa promessa de redenção, podia depender
inteiramente do Senhor, para fazer como havia prometido. Visto que o Deus
da promessa é todo-poderoso para cumprir a sua própria palavra, Ele
também é inteiramente digno de confiança, pois é absolutamente
invencível. Assim Ele declarou através de um profeta posterior a Moisés:
"Agindo eu, quem o impedirá?" (Is 43.13). Esse é o significado do "nome"
assegurador que Deus transmitiu a Moisés para que anunciasse aos
desconfiados e céticos israelitas. "Assim dirás aos filhos de Israel: Eu Sou me
enviou a vós outros".
Em seguida, mediante suas próximas palavras, Deus passou a mostrar que
essa declaração sobre seu total poder para cumprir a sua palavra, na verdade
exprimia a real significação de seu nome histórico, Jeová (o qual se deriva do
verbo "ser", de uma maneira obscura, acerca do que os filólogos ainda
diferem). "Disse Deus ainda mais a Moisés: Assim dirás aos filhos de Israel:
O SENHOR, o Deus de vossos pais... me enviou a vós outros; este é o meu
nome eternamente..." (Êx 3.15). "Eu sou" é aqui identificado com "Jeová, o
Deus de vossos pais", o Deus com o qual Israel entrou em aliança. A palavra
"este" aponta para a sentença inteira, Jeová-Deus-de-vossos-pais, conforme
fica claro neste e no versículo seguinte. Esse nome denota tanto a garantia
pessoal da aliança com Israel, como também o seu poder de abençoar o seu
povo, dentro daquela relação de aliança. A força desse nome, como base para
a fé e para a dependência, surge da revelação que " Jeová" significa soberania
autossuficiente e invencível. Jeová, como um título para Deus era conhecido
pelos patriarcas (cf. Gn 15.2), sendo, de fato, usado na adoração dos dias
antediluvianos (Gn 4.26; cf. 9.26). Esse nome aparece no livro de Gênesis
por mais de cem vezes. Entretanto, a sua significação não foi esclarecida
antes de Êxodo 3. O significado de "Jeová" é aquilo que foi simbolizado pelas
chamas da sarça, as quais não precisavam se alimentar da madeira da sarça.
"Jeová" significa um governante inexaurível - um Deus de vida e de poder
ilimitados - um Deus, portanto, em quem é seguro confiar, em todas as
ocasiões e em todos os lugares. A palavra "SENHOR", que aparece na Bíblia, é
uma tradução tão boa de "Jeová" quanto alguém poderia exigir.
Em Êxodo 6.2ss., Deus satisfez as queixas de Moisés, declarando: "Eu sou
o SENHOR. Apareci a Abraão, a Isaque, e a Jacó, como o Deus Todo-
Poderoso [El Shaddai]; mas pelo meu nome, o SENHOR [Jeová], não lhes fui
conhecido. Também estabeleci a minha aliança com eles, para dar-lhes a
terra de Canaã... e me lembrei da minha aliança..." Acerca do conhecimento
que os patriarcas tinham dEle, Deus estava dizendo que embora se lhes
tivesse apresentado como El Shaddai (a Abraão, Gn 17.1; a Jacó, Gn 35.11; e
a Isaque, Gn 26.24), vinculando aeste nome as suas promessas feitas a eles,
como uma base para a confiança deles, Ele nunca lhes expusera o sentido de
seu nome, Jeová, conforme agora acabara de fazer para Moisés, na sarça (A
interpretação crítica comum, na qual Deus quis dizer que o próprio som do
nome Jeová era desconhecido dos patriarcas, tem se tornado a base para a
dissecação do livro de Gênesis por renomados críticos, como também tem
sido a base da hipótese defendida por muitos: que Jeová foi um deus dos
queneus, deus do fogo e da tempestade, ali apresentado por Moisés pela
primeira vez. Porém, uma coisa é certa: o autor do trecho de Êxodo 6.3 não
compreendeu dessa maneira as palavras ditas por Deus).
A expressão "Eu sou o SENHOR" é o tema central do parágrafo (vv. 2-8).
Essa expressão ressoa por vezes sem conta, como o sonido da trompa de
Siegfried, na peça de Wagner, Ring (vv. 2, 6-8; cf. v. 29; 7.5, 17; 8.22; 14.4,
18). Deus estava instruindo Moisés, a fim de que este pudesse instruir o
povo de Israel a confiar em seu nome, revelado como garantia do
cumprimento de suas promessas. A resposta a todos os "mas" e "Ah!
Senhor!" de Moisés foi um simples "Eu sou o SENHOR". Os versos 6 a 8 são
o manifesto supremo do livro de Êxodo. "Eu sou o SENHOR, e vos tirarei de
debaixo das cargas do Egito, vos livrarei... vos resgatarei... Tomar-vos-ei por
meu povo, e serei vosso Deus; e sabereis que eu sou o SENHOR vosso Deus...
E vos levarei à terra, acerca da qual jurei dar a Abraão, a Isaque e a Jacó; e vo-
la darei como possessão: Eu sou o SENHOR". Em outras palavras: "Eu sou o
SENHOR. Essa é a minha promessa. Falharia a minha palavra?"
Esse era Jeová, o Deus de Israel, o Deus a quem o Antigo Testamento
inteiro exalta como criador, governador, salvador, juiz, fonte e alvo de todas
as coisas que existem. Jeová era o nome que proclamava a divindade do
Senhor. A religião e a teologia de Israel eram confessadamente monoteístas:
"Ouve, Israel, o SENHOR nosso Deus é o único SENHOR. Amarás, pois, o
SENHOR teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, e de toda a tua
força" (Dt 6.4, 5). Na qualidade de Deus único, a sua reivindicação da
lealdade e o serviço de seu povo é absoluta e total. Os conceitos que Israel
tinha sobre o seu Deus sempre começavam na vasta diferença e contraste
entre Jeová e o homem. Jeová é o criador; o homem é a sua criatura. Jeová é
o Todo-Poderoso; o homem é fraco. O homem depende de Jeová quanto a
tudo - sua saúde, sua felicidade, sua própria vida; mas Jeová não depende do
homem para nada. Jeová é justo e santo; o homem é pecador e pervertido.
Com esse pano de fundo de contrastes, por meio dos profetas e dos
salmistas, Deus ensinou Israel a apreciar a sua graça e a ver quão admirável é
o fato que Ele, o Deus santo e altíssimo, se inclinasse a resgatar os pecadores
e a trazê-los à comunhão consigo mesmo. Nos círculos religiosos dos dias de
Cristo, esse poderoso Deus da graça, e Ele exclusivamente, era designado
pela palavra ''Senhor'' (no hebraico, adonai; no grego, kurios; no aramaico,
rnaran).
O SENHOR JESUS
Jesus de Nazaré foi um rabino itinerante nada ortodoxo, cujos três anos
de ministério tiveram um fim repentino por meio de assassinato judicial. Os
seus discípulos asseguravam que Ele havia ressuscitado dentre os mortos,
estava vivo para sempre, reinava sobre o mundo inteiro como o Messias de
Deus e algum dia seria manifestado visivelmente na terra, para o julgamento
final. Eles endossavam a crença vétero-testamentária no Deus único,
conforme o próprio Jesus havia feito (Mt 23.9; Mc 10.18; 12.29; Jo 5.44;
17.3; Rm 3.30; 1 Co 8.4-6; Gl 3.20; Ef 4.6; 1 Tm 1.17; 2.5; Tg 2.19; 4.12; Jd
25). Contudo, eles usaram a palavra "Senhor" com mais frequência para
indicar "o Senhor Jesus Cristo" do que para referirem-se Àquele a quem
Jesus chamava de Pai, em suas orações - e isto é realmente notável.
Esse uso neotestamentário subentende a deidade pessoal de Jesus? Nem
sempre. Nos evangelhos, "Senhor", como forma de tratamento, significa
apenas "senhor", uma maneira polida de falar a um rabino (por exemplo, Lc
7.6). E, mesmo nos lábios dos discípulos, a palavra "Senhor", nos evangelhos,
não parece significar mais do que "mestre", "professor" (por exemplo, Jo
13.13, 14). Novamente, no livro de Atos e nas epístolas, o termo "Senhor"
algumas vezes denota apenas o domínio messiânico que Jesus vem
exercendo desde a sua ressurreição e ascensão, governando o mundo em
nome de seu Pai, a fim de tornar realidade a salvação daqueles em favor de
quem Ele morrera. Assim, em Atos 2.36, após citar o Salmo 110.1 ("Disse o
SENHOR ao meu Senhor: Assenta-te à minha direita, até que eu ponha os
teus inimigos por estrado dos teus pés") como uma profecia messiânica,
Pedro declarou: "Esteja absolutamente certa, pois, toda a casa de Israel de
que a este Jesus, que vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo". As
palavras "Senhor" e "Cristo" (Messias; literalmente, "ungido") explicam uma
a outra; pois a frase contém uma hendíadis, ou seja, duas palavras que
exprimem um só pensamento - o governo messiânico de Jesus.
Similarmente, "o nome que está acima de todo nome", em Filipenses 2.9-11,
é o nome "Senhor", denotando o domínio universal de Jesus, que todos os
homens precisam reconhecer.
Em outras instâncias, porém, "Senhor", como título conferido a Jesus,
implica a deidade pessoal de maneira inequívoca. Isso torna-se óbvio quando
profecias do Antigo Testamento, a respeito de Jeová, são citadas como
profecias que se cumpriram na pessoa de Jesus. Assim, Joel 2.32, citado em
Atos 2.21 e Romanos 10.13: "E acontecerá que todo aquele que invocar o
nome do SENHOR (Jeová, no hebraico) será salvo", é, provavelmente, na
primeira passagem citada, e certamente na segunda, tomado como uma
promessa de salvação para aqueles que invocarem o nome de Jesus (At 2.38
e Rm 10.4-17). Acima e mais importante ainda do que essa identificação de
Jesus com Jeová, o verbo ''invocar'' denota confiança e invocação religiosa
que, como todo judeu sabia, era uma atitude que alguém só podia
demonstrar com propriedade para o próprio Deus: ninguém podia invocar
uma mera criatura como seu Salvador. Portanto, o uso que o Novo
Testamento faz de Joel 2.32 realmente contém uma dupla demonstração de
que Jesus era considerado divino. E, também, João identificou Jesus como
''o Senhor", cujo braço não foi revelado aos incrédulos (Jo 12.38, 41), ao
passo que Mateus e Marcos identificam-No com ''o Senhor'' cujo caminho
João Batista fora enviado a preparar (Mt 3.3; Mc 1.3). Porém, Isaías 40.3 e
53.1, os textos citados do Antigo Testamento, têm Jeová no original
hebraico.
Outra passagem muito significativa é 1 Coríntios 8.5, 6, onde "muitos
deuses e muitos senhores" (isto é, deuses chamados senhores), no
politeísmo pagão, são postos em oposição a "um só Deus, o Pai" e a "um só
Senhor, Jesus Cristo". Nesse contexto, em qualquer caso "Senhor" denota
deidade, com a respectiva reivindicação à nossa adoração. Com isso podem
estar ligados aqueles trechos onde Jesus é invocado como "Senhor", em
oração (At 7.59; 1 Co 16.22 – no aramaico, Maranata significa "Vem, ó
Senhor!"; 2 Co 12.8; Ap 22.20). Bênçãos optativas, que na realidade são
orações, são dadas em nome do Senhor Jesus (1 Ts 3.11, 12; 2 Ts 3.5, 16); e
há também doxologias endereçadas a Ele somente (Rm 9.5; 2 Tm 4.18; 2 Pe
3.18; Ap 1.5, 6), ou incluindo o Pai (Ap 5.13 e 7.10). Hebreus 1.6 afirma que
Deus quer que todos os anjos adorem a Jesus.
Colocado sobre esse pano de fundo da adoração dos cristãos a Jesus como
Senhor, juntamente com o Pai, uma adoração que está em consciente
oposição à adoração aos "senhores" pagãos, torna-se evidente que quando a
mensagem do evangelho concentra-se na exigência da confissão de que
"Jesus Cristo é Senhor" (conforme se vê em 1 Co 12.3; Rm 10.9; cf. Fl 2.11),
o que se requer é um reconhecimento de Jesus, não meramente como
Salvador ressurreto e como Rei governante, mas como uma Pessoa a ser
invocada, digna de confiança, conhecida, louvada e adorada, tal como o é
Deus Pai - em outras palavras, que Jesus seja considerado divino.
Depois disso, não nos surpreendemos ao descobrir, no Novo Testamento,
um determinado número de passagens nas quais, de acordo com a gramática
(embora algumas vezes contestado, mas não de maneira convincente), Jesus
é explicitamente declarado theos (Deus - Jo 1.1, 18; 20.28; Rm 9.5; Tt 2.13;
Hb 1.8 e 2 Pe 1.1).
Não podemos esgotar aqui o assunto das evidências da divindade de
Cristo; só esse tema daria um livro. É significativo concluir nossa exposição
mediante a citação de algumas breves linhas de Berkhof:
Averdade à qual eles foram assim conduzidos permanece como algo mais
estranho do que a ficção; muitíssimo mais estranho. Trata-se tanto de um
mistério inexplicável para as mentes teológicas, como de uma implicação
inescapável de eventos históricos.
O SENHOR, O ESPÍRITO
Pudemos observar acima o fato notável que a palavra "Senhor", que no
Antigo Testamento grego, como um nome e como um título, denota a
deidade de Deus, é empregada no Novo Testamento principalmente para
referir-se não ao Pai, mas ao Filho. É igualmente digno de nota que "santo",
o adjetivo vétero-testamentário comum para expressar a "deidade" de Deus,
no Novo Testamento é aplicado não ao Pai, nem ao Filho, mas ao Espírito.
No Antigo Testamento, o Espírito Santo não é referido como uma pessoa
distinta do Pai (Sl 51.11; Is 63.10). E no Novo Testamento? As Testemunhas
de Jeová dizem que não, mas a Bíblia está contra eles. O Espírito Santo (no
grego, pneuma, gênero neutro) aparece no Novo Testamento grego com um
pronome masculino, em João 16.14, e isso contra todas as regras de
gramática; e como um título usado para pessoa (paraklétos - consolador,
conselheiro, advogado, ajudador), em João 14.26; 15.26; 16.7. É
demonstrado que Ele tem inteligência (Jo 14.26; 15.26; Rm 8.27); vontade
(At 16.7; 1 Co 12.11) e afetos (Ef 4.30). A maior parte dos atos que Lhe são
atribuídos só poderiam ser executados por um agente pessoal, tais como:
falar: (At 8.29; 13.2; etc. – quase vinte referências bíblicas ao todo); decidir
(At 15.28); proibir (At 16.7); testemunhar (At 5.32, etc.); sondar os segredos
(1 Co 2.10, 11); mostrar o futuro (Jo 16.13); enviar missionários (At 13.4) e
interceder (Rm 8.26, 27).
Uma vez que se aceite que o Novo Testamento vê o Espírito Santo como
uma pessoa, é Ele ali retratado como uma pessoa divina? Na realidade, sim
(embora Ele nunca seja chamado diretamente theos, Deus), porquanto: (a)
Jesus vincula o Espírito Santo ao Pai e ao Filho, no nome tripessoal de Deus
(Mt 28.19); (b) Ele é vinculado ao Pai e ao Filho em oração pelas - e no
pronunciamento das - bênçãos de Deus (2 Co 13.13; Ap 1.4, 5, onde os "sete
espíritos" referem-se ao Espírito Santo); (c) Ele é vinculado ao Pai e ao Filho,
como dotado de função aplicadora, e, por conseguinte, complementar, na
obra da salvação que o Pai realizou por meio do Filho (1 Pe 1.1, 2; 2 Ts 2.13,
14; Ef 1.3-14; 2.13-22; Rm 8, etc.); e (d) em 2 Coríntios 3.16-18, na
qualidade de "o Espírito do Senhor (Jesus)", Ele está tão intimamente ligado
a Jesus, como seu agente que opera nos homens, que Paulo pôde dizer ''o
Senhor [Jesus] é o Espírito", e ainda, "pelo Senhor, o Espírito". Ora, essa
surpreendente maneira de falar não teria sido possível se Paulo não
concebesse o Espírito Santo como um com Jesus, na unidade da deidade.
Em qual sentido Paulo queria que entendêssemos que Cristo e o Espírito
Santo são um? Comentando sobre essa declaração, diz Charles Hodge: "Não
uma e a mesma pessoa, mas um e o mesmo Ser... É uma identidade de
essência e de poder... onde Cristo está, ali está o Espírito, e onde o Espírito
está, ali está Cristo... Ao volvermo-nos para Cristo, tornamo-nos
participantes do Espírito Santo... porque Ele e o Espírito são um, e Cristo
habita em seu povo, remindo-os da lei e fazendo-os filhos de Deus, por meio
de seu Espírito". Isso posto, a frase "o Senhor, o Espírito" significa "o Senhor,
que é um com o Espírito, igual em substância, poder e glória; que está onde o
Espírito está, e que faz aquilo que o Espírito faz". Assim, as palavras de Paulo
não afirmam em termos precisos a deidade do Espírito Santo, mas, de forma
muito mais significativa, elas pressupõem essa deidade em ideias. Paulo
jamais poderia ter dito "o Senhor é o Espírito", com o sentido que o Senhor
opera nos homens através do Espírito, se ele não pensasse que o Filho e o
Espírito Santo fossem Seres divinos co-iguais. (Por exemplo, Paulo jamais
teria sonhado em dizer: "o Senhor é Paulo", a fim de expressar a ideia que
Cristo operava por meio de Paulo!) Esses versículos testificam, pois,
claramente a posição ocupada pelo Espírito Santo na deidade.
O EVANGELHO DA TRINDADE
A Bíblia legou à igreja a doutrina de três agentes divinos e um só Deus: o
Pai, o Filho e o Espírito Santo, como o "nome cristão" do único Jeová. Como
declara o credo atanasiano: "O Pai é Senhor, o Filho é Senhor e o Espírito
Santo é Senhor. No entanto, não são três senhores, mas um só Senhor". Não
é uma das pessoas personificando as outras duas, para o acréscimo de sua
própria pessoa; não é um trio de deidades separadas. Mas um Deus que é
realmente uno, embora nessa unidade haja realmente três, sendo a trindade
e a unidade fundamentais uma à outra. Os três estão "em" cada um dos
outros (cf. Jo 14.11, 20), sem perderem suas distinções pessoais, da mesma
maneira que todos os três podem estar "no" crente, sem que este perca a sua
identidade pessoal e a sua autoconsciência (cf. Jo 14.17, 23). Eles se mantêm
em relações mútuas, definidas e distintas: o Pai é o iniciador, o Filho é o
agente do Pai, e o Espírito Santo é o que executa por ambos. No entanto
(outra vez, conforme o credo atanasiano), "a deidade do Pai, do Filho e do
Espírito Santo é apenas uma; a glória é igual e a majestade é co-eterna. Tal
como é o Pai, assim é o Filho, e assim também é o Espírito Santo''.
Alguém poderia indagar: E daí? Se admitirmos que a posição trinitariana é
bíblica, seria ela importante? O que se perde por não se defender a doutrina
da trindade?
O que se perde, em termos bem simples, é o evangelho - ou, pelo menos, o
direito de anunciar o evangelho. Permita-me explicar isso.
Quando alguém avança pela trilha, monte acima, concentra a sua atenção
na própria trilha, e não no monte. Uma pessoa com a mente fixa no objetivo
de chegar ao cume, poderia apressar-se e chegar lá, sem ao menos tomar
consciência do monte. Certa vez, escalei um monte cujo nome só vim a
descobrir quatro anos mais tarde. Ora, quando alguém anuncia o evangelho,
está subindo pela trilha existente em um monte; e a trindade representa
tanto o nome como a natureza do monte que esse alguém tem sob os seus
pés o tempo todo.
Em João 3.1-15, encontramos Jesus explicando a Nicodemos que a única
maneira de alguém entrar no reino de Deus é mediante a fé no Filho, a quem
o Pai enviou para ser "levantado", na morte sacrificial, bem como mediante o
novo nascimento, produzido pelo Espírito. Jesus estava explicando o
evangelho, cuja substância, mui obviamente, é a ação combinada do Deus
trino. Com toda a razão, o Livro de Orações da Igreja Anglicana selecionou o
trecho de João 3.1-15 como a porção do evangelho para o Domingo da
Trindade! A trindade é a base do evangelho, e o evangelho é a declaração da
trindade em ação.
Expressando a mesma verdade por outro ângulo: o evangelho afirma que,
desde a eternidade, havia em Deus mutualidade de amor e alegria (Jo 1.1, 2;
17.5, 24); que os homens foram criados para compartilhar desse
companheirismo; que quando o pecado impossibilitou isso, Deus veio em
pessoa - através da segunda pessoa, enviada pela primeira pessoa e dotada
de poder pela terceira pessoa - a fim de salvar-nos; que Deus feito carne
morreu por nós, agora vive por nós, une-nos consigo mesmo, conduz-nos a
Deus Pai, e algum dia haverá de levar-nos para compartilhar de sua glória;
que um Hóspede divino, o Espírito Santo, reside no crente, impulsionando-o
à oração e transformando-lhe a natureza decaída; e que Jesus Cristo é o
companheiro e amigo de cada crente, conferindo-lhe uma constante e
cuidadosa atenção. Certamente, é óbvio que nenhuma dessas maravilhosas
realidades, quase fantásticas, poderia ter sido afirmada, senão
exclusivamente com base na suposição que o Pai, o Filho e o Espírito Santo
são Deus - em outras palavras, que Deus é Pai, Filho e Espírito Santo.
Aqueles que negam a doutrina da trindade têm de baixar o nível do
evangelho - e, realmente, o fazem.
Portanto, bem poderíamos tornar uma questão de consciência orar nos
seguintes termos:
Deus eterno e todo-poderoso,
que deste aos teus servos a graça,
mediante a confissão da verdadeira fé,
para reconhecerem a glória da trindade eterna,
e para adorarem a unidade, no poder da
majestade divina, nós Te rogamos
que nos conserves constantes
nessa fé e nos defendas sempre
de todas as adversidades; Tu que
vives e reinas, como um só Deus,
para sempre, eternamente.
(1 Pe 5.9-11).
No Novo Testamento, "graça" é uma palavra de importância central - de
fato, é a palavra-chave do cristianismo. Graça é aquilo sobre o que o Novo
Testamento versa. O Deus exposto ali é "o Deus de toda a graça" (1 Pe 5.10);
ali, o Espírito Santo é "o Espírito da graça" (Hb 10.29); e, todas as esperanças
ali expostas apoiam-se sobre a "graça do Senhor Jesus" (At 15.11), aquele
Senhor que sustentou Paulo com esta certeza: "A minha graça te basta" (2 Co
12.9). No dizer de João, "a graça e a verdade vieram por meio de Jesus
Cristo" (Jo 1.17); e, as novas acerca de Jesus são chamadas de "o evangelho
da graça de Deus" (At 20.24). A crença dos apóstolos na realidade e
centralidade da graça era tão forte que os levou a criar um novo estilo de
carta. Ao invés do convencional "Salve!", a saudação inicial de todas as treze
cartas de Paulo toma a forma de uma oração por "graça e paz" ou por "graça,
misericórdia e paz", da parte de Deus Pai e do Senhor Jesus Cristo,
invocadas sobre os seus leitores. E, ao invés do usual "adeus", cada carta
termina com outra oração, rogando "a graça do Senhor Jesus Cristo", ou
simplesmente "graça", sobre cada crente. Tanto as cartas de Pedro como a de
Judas e o Apocalipse têm saudações similares (cf. 2 Jo 3); e, Hebreus e
Apocalipse têm formas semelhantes de encerramento, enquanto que a
segunda carta de Pedro termina com um apelo: "Crescei na graça e no
conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo" (2 Pe 3.18). Tudo
quanto é dito nessas cartas, entre a saudação e a bênção final, ilustra a
verdade que, para os apóstolos, a graça era o fato fundamental da vida cristã.
Com frequência se diz, com toda a razão, que a salvação é o tema do Novo
Testamento. Porém, a salvação neotestamentária é pela graça de Deus, do
começo ao fim (Ef 2.5, 8); é a graça de Deus que nos dá a salvação (Tt 2.11), e
a finalidade da salvação é louvor da glória da graça de Deus (Ef 1.6). Ao que
parece, quando corretamente compreendida, essa palavra "graça" contém em
si mesma toda a teologia do Novo Testamento. A mensagem do Novo
Testamento é simplesmente o anúncio de que a graça veio aos homens
através de, e em, Cristo, juntamente com o apelo da parte de Deus para que
eles recebam-na (Rm 5.17; 2 Co 6.1), conheçam-na (Cl 1.6) e não a frustrem
(Gl 2.21), mas perseverem nela (At 13.43), porquanto "a palavra de sua graça
tem poder para vos edificar e dar herança entre todos os que são
santificados" (At 20.32). A graça é o sumário e a substância da fé do Novo
Testamento.
A ideia da graça, pois, é a chave que abre o Novo Testamento; é a única
chave capaz de abri-lo. Sem importar quão bem conheçamos o fraseado do
Novo Testamento, não poderemos penetrar em seu significado enquanto
não conhecermos algo acerca do que é a graça. Esta é a razão por que tantas
pessoas acham que o Novo Testamento é desconcertante e frustrante
(especialmente as cartas de Paulo, o grande campeão da graça); e também é o
motivo por que tão facilmente o entendem mal. Pessoas, até mesmo
religiosas, ignorantes acerca da graça, que tentam ler o Novo Testamento
como um livro de máximas morais, ou de aspirações místicas, não podem
entendê-lo. Cada livro do Novo Testamento faz parte de uma grande análise
sistemática, histórica e teológica acerca do fato da graça, e deve ser lido
como tal. Não podemos entendê-lo senão nesses termos.
Infelizmente, porém, o significado da graça não é corretamente apreciado
hoje. Nos últimos cem anos ou mais, esse tópico tem sido tão negligenciado
por alguns, e mal manuseado por outros, que a clara e profunda
compreensão do mesmo, legada pelos reformadores, pelos Puritanos e pelos
evangélicos do século XVIII à sua posteridade, quase desapareceu da cena
religiosa. A palavra "graça" faz parte integral de nosso vocabulário religioso,
e regularmente a ouvimos em orações públicas, como "concede-nos a ajuda
da tua graça...", ou "dá-nos graça, para que possamos..." Para muitos, porém,
esse termo sugere apenas noções vagas, como uma celestial recarga de
bateria, administrada por meio das ordenanças; e, para a maioria, ele já não
significa coisa alguma. Enquanto isso, muitos praticam, em nome do
cristianismo, formas de religião que frustram e negam totalmente a graça de
Deus. Tanto o legalismo da doutrina Católica Romana, que faz a salvação
depender da lealdade a um sistema eclesiástico, como o moralismo da
doutrina protestante liberal, que diz que todos quantos tentarem ser bons,
mesmo que pouco, serão salvos, resultam da mesma causa-raiz – afalha em
compreender o significado da graça. A necessidade mais urgente da
cristandade é a de uma renovada conscientização do que a graça de Deus
realmente é. Os crentes anelam ver uma reforma e um avivamento nas
igrejas. Hoje, tal como ontem, é somente através da redescoberta da graça
que essas bênçãos fluirão.
A NATUREZA DA GRAÇA
A graça é o favor imerecido de Deus; é o seu amor, que não merecemos. A
palavra charis, traduzida como "graça", no Novo Testamento, foi usada no
Antigo Testamento grego para traduzir o termo hebraico chen (também
traduzido por "graça" na Versão Revista e Corrigida) que significa o "favor"
que um suplicante "acha" aos olhos de um superior, de quem não pode
reivindicar tratamento favorável, como se lhe fosse um direito. (Como
exemplos disso, a nível humano, ver Gn 33.8, 15; 34.11; 47.25; Rt 2.2, 10,
13.) Escreveu o Dr. Norman Snaith: "Chen significa bondade e graciosidade
em geral - ou seja, não há qualquer relação ou ligação particular entre as
partes envolvidas" (A Theological Word Book of the Bible - Um Livro Teológico
de Palavras Bíblicas - A. Richardson, p. 100). Segundo observa algures o Dr.
Snaith, devido ao fato que não há qualquer vínculo antecedente entre as
partes envolvidas, também "não há o mais leve sussurro de censura possível
se esse favor não for concedido" (Distinctive ldeas of the Old Testament -
Ideias Distintivas do Antigo Testamento - p. 130). Portanto, a graça - chen -
é gratuita, no sentido que a pessoa que a demonstra não está, de modo
algum, obrigada a demonstrá-la. Quando o Antigo Testamento faz alusão a
pessoas ou nações, que acharam graça aos olhos de Deus, ou que Deus foi
gracioso para com elas, a ênfase está sempre no fato que Deus abençoou sem
que estivesse obrigado a fazê-lo (ver, por exemplo, Gn 6.8; Êx 33.12, 13, 16,
17; Am 5.15; Jn 4.2; etc.). Acerca da escolha do termo grego charis por Paulo,
como seu vocábulo regular para aludir ao amor de Deus, o Dr. Snaith
comenta mui corretamente: "Coisa alguma impressionou tanto a Paulo como
o fato que o amor de Deus aos homens foi um dom gratuito da parte de
Deus, inteiramente imerecido por parte dos homens, dependendo
unicamente da vontade do próprio Deus" (op. cit., p. 176).
Isso, porém, não é todo o pano de fundo da palavra charis no Novo
Testamento. Ela inclui o significado de duas outras palavras-chaves do
Antigo Testamento. A primeira delas é a 'ahabah de Deus, que vem do verbo
'aheb, cujo significado é "amor" - amor eletivo, conforme o Dr. Snaith o
chama. Esse é o amor mediante o qual o Senhor escolheu Israel para ser o
seu povo - um amor espontâneo, seletivo, incondicional, não-solicitado e
imerecido (cf. Dt 7.7, 8; 9.4, 5; Os 11.1-11). A fim de traduzir esse tipo de
amor, o Antigo Testamento grego empregou o substantivo agapé, que se
tornou o termo comum do Novo Testamento para indicar o amor de Deus.
Porém, no Novo Testamento, "amor" e "graça" são virtuais sinônimos, e
charis inclui tudo quanto 'ahabah significa.
O outro termo hebraico envolvido é a chesed de Deus. Esse termo é
usualmente traduzido por "misericórdia" e "compaixão" na Septuaginta
(eleos e eleemosuné), e como "bondade amável", em algumas versões. Porém,
melhor ainda é a tradução "amor constante", porque a ideia básica por trás
dessa palavra é a resoluta lealdade de Deus ao povo com quem Ele se
comprometeu. Snaith intitulou-o de "amor pactuante" de Deus, por tratar-
se, essencialmente, de uma questão de fidelidade à promessa do pacto pelo
qual Deus comprometeu-se a ser o Deus de Israel e a usar todos os recursos
da deidade a fim de abençoá-los. Os profetas do Antigo Testamento frisaram
constantemente o fato que a chesed de Deus permanecia firme, mesmo
quando Israel colocava-se debaixo de julgamento temporário, em razão de
infidelidade à sua própria obrigação pactual de servir ao Senhor. Eles
insistiram que, após visitações punitivas e purificadoras, o propósito de
Deus em livrar o seu povo do mal e em trazê-lo à perfeita comunhão consigo
mesmo finalmente triunfará. A chesed de Deus é tão soberana e eficaz
quanto é incondicional e gratuita a sua 'ahabah.
A palavra "graça" expressa a ideia de que Deus age por bondade
espontânea para salvar os pecadores: Deus amando o não-amável, fazendo
uma aliança com eles, perdoando-lhes os pecados, aceitando-os, revelando-
se a eles, comovendo-os a uma resposta, levando-os finalmente ao pleno
conhecimento e gozo de Si mesmo e derrubando todos os obstáculos que
surgem a cada estágio ao cumprimento desse propósito. Agraça é o amor
eletivo mais o amor pactuante, uma escolha gratuita, resultando numa obra
soberana. A graça salva do pecado e de todo o mal; a graça traz homens
ímpios à verdadeira felicidade, que consiste em conhecer ao Criador. Esse é o
conceito de "graça", com o qual escreveram os autores do Novo Testamento.
Para nós, a palavra "graça" é um tanto descolorida e, com frequência,
como já vimos, é irreligiosamente concebida como uma força impessoal, de
algum modo canalizada através das ministrações da igreja. É claro, porém,
que isso deforma o ensino bíblico. Em porção alguma a Bíblia retrata assim a
graça. Quando o Novo Testamento usa a palavra "graça" a fim de indicar
algum dom divino específico (uma posição de aceitação, Rm 5.1, 2; uma
habilidade para servir, Rm 12.6; Ef 4.7; uma virtude cristã, como a
generosidade, 2 Co 8.1, 4, 6, 7; um privilégio cristão, como pregar e ensinar
o evangelho, Ef 3.2, 7, 8; um aspecto qualquer da salvação, como a
glorificação final, 1 Pe 1.13; cf. 3.7), ou, de modo geral, para demonstrar o
favor divino na transformação de vidas humanas (1 Co 15.10; 2 Co 4.15; 9.8,
14; 12.9; Tg. 4.6; 1 Pe 5.5), a ideia é sempre a da graça como um dom pessoal
de Deus, dado como prova de sua afeição para com a pessoa recebedora. O
uso da palavra "graça", para indicar os dons do amor de Deus, é, em qualquer
caso, secundário e derivado; pois o uso primário e fundamental da palavra é
referente ao amor que os concede.
No Novo Testamento, pois, "graça" não é uma energia impessoal ligada
automaticamente pela oração e pelas ordenanças. Antes, é o coração e a mão
do Deus vivo e todo-poderoso. A graça, por certo, é encontrada na igreja,
pois é a graça que cria a igreja; mas, a graça, em nenhum sentido, está sujeita
ao controle da igreja. O amor de Deus é gratuito, e é o próprio Deus quem
escolhe a quem Ele há de salvar. Os sermões e as ordenanças proclamam a
realidade da graça, e as orações dos crentes a invocam; mas só Deus pode
usar da graça e levar os homens a se beneficiarem dela.
Para os escritores do Novo Testamento, a graça é algo maravilhoso. O
senso que eles tinham da corrupção e do demérito humano diante de Deus,
bem como da realidade e da justiça de sua ira contra o pecado, era tão forte
que eles simplesmente achavam assombroso o fato que houvesse tal coisa
como a graça - muito menos uma graça que custou tanto para Deus como a
graça manifestada no Calvário. Os compositores de hinos sacros captaram
esse senso de admiração e o mostraram pelo uso de palavras como
"admirado" e "admirável", como nestes versos: "Amor admirável! como pode
ser que Tu, meu Deus, pudeste morrer por mim!"; "Amor tão admirável, tão
divino, requer minha alma, minha vida, meu tudo!"; "Eu permaneço
admirado diante do amor que Jesus me oferece"; "Graça admirável!" O mundo
está repleto de maravilhas - maravilhas da natureza, da ciência e da arte
humana - mas elas perdem o seu significado diante da maravilha da graça de
Deus. Coisa alguma que possamos dizer lhe faz plena justiça; todas as
palavras ficam aquém dela. Na realidade, conforme Paulo diz, a graça é um
"dom inefável" (2 Co 9.15).
AS RIQUEZAS DA GRAÇA
O Novo Testamento sempre vincula a graça à pessoa e à obra do
Mediador, o Deus-homem, Jesus Cristo. "A graça e a verdade vieram por
meio de Jesus Cristo" (Jo 1.17; cf. 1 Pe 1.10). "Tu, pois, filho meu, fortifica-te
na graça que está em Cristo Jesus" (2 Tm 2.1). "...mas onde abundou o pecado,
superabundou a graça; a fim de que, como o pecado reinou pela morte, assim
também reinasse a graça pela justiça [a obediência de Jesus até a morte]
para a vida eterna, mediante Jesus Cristo nosso Senhor" (Rm 5.20, 21). É em
união com a pessoa de Jesus crucificado e ressurreto, e pela virtude da sua
expiação, que os homens conhecem a graça. E o meio através do qual os
homens adentram a ela é a fé em Cristo - a crença na "palavra da cruz" (1 Co
1.18) e a confiança no Salvador ressurreto (Isso não significa que não
houvesse a graça nos dias do Velho Testamento; mas significa que a graça
que ali houve - o relacionamento de pacto, baseado na aliança, o perdão dos
pecados, o gozo da comunhão com o Senhor e a esperança da recompensa -
dizia respeito ao Mediador que viria, bem como à obra que Ele realizaria.
Além disso, aquela fé que se apropriava da graça, nas épocas anteriores a
Cristo, era uma fé que olhava para o futuro, ainda que obscuramente, para o
Salvador prometido. Ver Mc 14.24; Rm 3.24, 25; 1 Co 10.1-4; Gl 3.6-15ss.;
Hb 9.15; 11.24ss.; 1 Pe 1.10).
No Novo Testamento, Paulo é o supremo expositor da graça, e suas
notáveis exposições aparecem em Romanos 3-11, Gálatas 2-5, Colossenses
1-3 e Efésios 1-3. Nesta última passagem, ao referir-se ao "grande amor com
que [Deus] nos amou" (Ef 2.4), por diversas vezes Paulo emprega a metáfora
da riqueza, falando de Deus como ''rico em misericórdia" (Ef 2.4; cf. Rm
10.12), falando da "riqueza da sua graça" (Ef 1.7; 2.7), da "riqueza da sua
glória" (Ef 3.16; cf. Ef 1.18; Rm 9.23) e das "insondáveis riquezas de Cristo"
(Ef 3.8).
O que é esta "riqueza" de benefícios que vem aos homens mediante a
graça de Deus em Cristo? Há quatro pontos na análise de Paulo sobre esta
riqueza: redenção, regeneração, eleição e preservação.
Aredenção é por meio de Cristo, mediante sua morte. Em Cristo, diz
Paulo, "temos a redenção, pelo seu sangue, a remissão dos pecados, segundo
a riqueza da sua graça" (Ef 1.7). Redenção significa um caríssimo livramento
do perigo. Neste ponto, Paulo aponta com precisão que o perigo sendo a
nossa culpa é aquilo do que fomos redimidos. Na mesma conexão, em outra
passagem, ele diz que somos justificados pela graça, "mediante a redenção
que há em Cristo Jesus" (Rm 3.24; cf. Tt 3.7). Paulo mostra a cruz de Cristo,
tanto como prova da realidade da graça divina, como a sua medida final:
"Mas Deus prova o seu próprio amor para conosco, pelo fato de ter Cristo
morrido por nós, sendo nós ainda pecadores" (Rm 5.8; cf. 1 Jo 4.8-10).
A regeneração nos é dada em Cristo, mediante a nossa união com Ele, em
sua ressurreição. Paulo explica a regeneração como uma vivificação
juntamente com Cristo (Ef 2.1, 5, 6; Rm 6.4ss.; Cl 2.13; 3.1ss.) e salienta que
ela resulta exclusivamente da misericórdia e da graça de Deus (Ef 2.4; Tt
3.5). A regeneração é o complemento necessário da redenção, porque, sem
ela, não pode haver fé no Redentor, e, portanto, não pode haver qualquer
benefício advindo de sua morte. Parte do significado da "morte" espiritual,
que é o nosso estado natural (Ef 2.1, 5; Cl 2.13), é que somos impotentes
para nos voltarmos para Cristo, em arrependimento e fé. Entretanto, parte
do efeito da regeneração é que a fé nasce em nossos corações. Por isso, Paulo
escreveu: "Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de
vós, é dom de Deus" (Ef 2.8). Se a palavra "isto" refere-se somente à fé ou à
salvação por meio da fé, como um todo, não é muito certo; porém, em
qualquer ponto de vista, Paulo está dizendo que a fé emana da ressurreição
espiritual juntamente com Cristo (ver o contexto de Efésios 2) e que essa
corressurreição, para a qual nada contribuímos, deriva-se da iniciativa de
Deus - é um fruto da graça. Assim sendo, como diz Lucas, os homens creem
"mediante a graça" (At 18.27), enquanto Deus os chama por sua graça (Gl
1.15).
A eleição, no Novo Testamento, é a escolha divina eterna e incondicional,
de ofensores culpados, a fim de serem redimidos e regenerados (chamados e
justificados, Rm 8.30), e, portanto, conduzidos à glória (Ef 1.3-12). Trata-se
de uma escolha feita em Cristo (Ef 1.4), no sentido que Deus escolheu
pecadores, para serem salvos pela união com o seu Filho, e escolheu o Filho
para tornar-se homem e ser o Salvador deles (cf. 1 Pe 1.20). Paulo refere-se a
essa escolha como ''a eleição da graça'' (Rm 11.5), e também como a "sua
própria determinação e graça que nos foi dada em Cristo Jesus antes dos
tempos eternos" (2 Tm 1.9). Da eleição dos pecadores fluem a redenção, a
regeneração, a fé e a glória final deles (2 Ts 2.13, 14). Da nomeação do Filho
como Salvador, fluem a sua encarnação (Jo 6.38), a sua cruz e a sua
ressurreição (Jo 10.15-18), assim como a chamada, a atração e a preservação
daqueles a quem Jesus foi enviado para salvar, até a ressurreição final (Jo
6.39, 40; 10.27ss.; 12.32 e 17.2). Paulo enfatiza que a eleição, a qual é a
fonte da salvação, é inteiramente pela graça, não por obras, isto é, não se
trata da resposta de Deus a qualquer esforço ou mérito da parte do homem,
que porventura Deus tivesse previsto (Rm 11.6; 2 Tm 1.9).
A preservação consiste nos cuidados de Deus, em Cristo, guardando
aqueles a quem Ele uniu a Cristo mediante a fé, por meio do Espírito Santo.
Paulo compartilha com os crentes da confiança de que "aquele que começou
boa obra em vós há de completá-la até ao dia de Cristo Jesus" (Fp 1.6),
fundamentando essa certeza na fidelidade de Deus ao seu plano, à sua
promessa e ao seu povo (2 Ts 3.3; cf. 1 Co 1.8, 9). Em Romanos 8.30, Paulo
explica esse plano: "E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos
que chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses também
glorificou". O tempo passado do verbo "glorificar" demonstra que a
glorificação, por já estar planejada, é vista como já realizada; assim, esta
declaração é, na verdade, uma promessa de que ela acontecerá, no devido
tempo. Por esse motivo, Paulo podia dizer que estava certo que Deus "é
poderoso para guardar o meu depósito até aquele dia" (2 Tm 1.12), e de
modo exultante declarou: "O Senhor me livrará também de toda obra
maligna, e me levará salvo para o seu reino celestial" (cf. Ef 4.18). A própria
promessa de Jesus reforça essa confiança: ''As minhas ovelhas ouvem a
minha voz; eu as conheço, e elas me seguem. Eu lhes dou a vida eterna;
jamais perecerão, eternamente, e ninguém as arrebatará da minha mão" (Jo
10.27, 28; conferir com a declaração acerca do propósito divino, Jo 6.38-40,
e com a oração de nosso Salvador, Jo 17.11-24).
A segurança que esta linha de ensino traz aos regenerados, que querem
viver como fiéis discípulos de Cristo, seja qual for o custo, mas que são
atormentados pelo temor de caírem da graça, por falharem na fé, foi
enfocada de maneira clássica por Toplady, em um de seus hinos.
Deus nos atrai à comunhão com Ele por diferentes rotas; é um erro
alguém esperar que a jornada de um homem em direção à fé seja uma cópia a
carbono da jornada de outrem. A exigência de que as experiências de
conversão sejam idênticas apenas provoca ansiedades desnecessárias, que
nos desviam a atenção do que importa. Todos somos pessoas únicas, e
começamos em estágios diferentes; Deus trata conosco conforme o que
somos, e onde Ele nos encontra. Richard Baxter disse: "Deus não quebranta
da mesma forma os corações de todos os homens''. Porém, há um ponto em
que convergem todos os caminhos que levam o pecador a Cristo, e este é o
ponto onde ele reconhece estar em desacordo com Deus e sem comunhão
com Ele. Diferentes pessoas expressam a questão de diferentes modos, nem
todos biblicamente adequados; mas aquilo que é expresso é comum a todos,
ou seja: o senso da necessidade de um novo relacionamento com Deus; a
confiança exclusiva em Cristo, efetuar este novo relacionamento; o descanso
nEle, no Senhor ressurreto, quanto a todas as esperanças futuras. O
verdadeiro cristianismo - a vida de conhecer a Deus, distinta da vida de ser
preparado para conhecer a Deus - começa nesse ponto, naquilo que Paulo
chama de recebimento da reconciliação. Ou começa nesse ponto, ou em
nenhum outro.
Desde o início da igreja, a fé tem sido um tema de controvérsias. Nos dias
dos apóstolos, Paulo argumentou que uma das diferenças básicas entre o
cristianismo e o judaísmo era que o primeiro era a religião da justificação
pela fé - fé somente, sem obras - ao passo que o último não era assim.
Escreveu ele: “Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé,
independentemente das obras da lei” (Rm 3.28). Duas de suas grandes
epístolas foram dedicadas à defesa e ao desenvolvimento dessa posição:
Romanos e Gálatas, que são respectivamente a mais majestosa exposição e a
mais apaixonada polêmica contida no Novo Testamento.
Quinze séculos mais tarde, Lutero aferrou-se a esse mesmo ponto - de
fato, ao mesmo texto - como uma expressão resumida do evangelho cristão e
de toda a controvérsia entre os reformadores e Roma. O Artigo 11 da Igreja
Anglicana dá uma aprovação pacata, mas decisiva, à asseveração de Lutero:
“Que somos justificados somente pela fé é uma doutrina saudável e cheia de
consolo...”. Sola fide - somente pela fé - foi um dos grandes lemas da
Reforma, e não é exagero descrever o termo “somente” como a rocha contra
a qual a igreja ocidental se dividiu, naqueles dias agitados. Desde então, os
evangélicos têm mantido a ênfase sobre a justificação pela fé somente e têm
insistido, muitas vezes como um brado de guerra, que sem esse advérbio o
evangelho estaria perdido.
Os crentes modernos, porém, nem sempre percebem por que houve esta
ênfase e por que a controvérsia sobre este ponto parecia tão importante.
Que necessidade havia, perguntam, de dividir a igreja por causa da palavra
“somente”? Nesses argumentos, estaria em jogo algo vital? Não seria esse
talvez mais um caso em que teólogos furiosos perderam o senso de
equilíbrio? Haverá nisso qualquer coisa que nos interesse, como servos de
Cristo e suas testemunhas nestes nossos dias?
Um exame daquilo que a Bíblia diz a respeito da fé nos ajudará a
responder essas indagações.
A NATUREZA DA FÉ
Em primeiro lugar, o que é fé? Vamos aclarar a questão. A ideia popular a
respeito é que se trata de um certo otimismo obstinado: a esperança
tenazmente assegurada, face à adversidade, de que o universo é
fundamentalmente amigável e de que as coisas podem melhorar. Diz a Sra.
A. à Sra. B.: “Você precisa ter fé”. Mas, tudo quanto ela quer dizer é:
“Coragem, não desanime se as coisas vão mal”. Isso, porém, é apenas a forma
da fé, sem seu conteúdo vital. Uma atitude confiante que seja divorciada de
um objeto que corresponda a essa confiança não é a fé no sentido bíblico.
Em contraste, a noção histórica da Igreja Católica Romana acerca da fé
tem sido de mera confiança e docilidade. Para Roma, a fé é apenas a crença
naquilo que a Igreja Romana ensina. De fato, Roma distingue entre fé
“explícita” (a crença em algo que foi compreendido) e fé “implícita” (o
assentimento incompreensível de qualquer coisa, seja o que for que a Igreja
Romana assevere). A Igreja Romana diz que somente esse último tipo de fé,
que na realidade é apenas um voto de confiança no ensino da igreja e que
pode manifestar-se lado a lado com a total ignorância da doutrina cristã, é
requerido dos leigos para a sua salvação! É evidente que a fé, na concepção
da Igreja Romana, quando muito, é apenas o conteúdo da fé, sem sua forma
apropriada; pois conhecimento, pouco ou muito, divorciado de qualquer
correspondente exercício de confiança, não é a fé, no total sentido bíblico. O
exercício da confiança é precisamente o que se faz ausente na análise da
Igreja Romana. Segundo Roma, fé consiste em confiar nos ensinos da igreja.
Mas, de acordo com a Bíblia, fé significa confiar em Cristo como Salvador, e
isso é algo totalmente diferente.
Na Bíblia, ter fé ou crer (no grego, o substantivo é pistis; o verbo é pisteuõ)
envolve tanto confiança como entrega da vida. De várias maneiras o objeto
da fé é descrito como sendo Deus (Rm 4.24; 1 Pe 1.21), Cristo (Rm 3.22, 26),
as promessas de Deus (Rm 4.20), o caráter de Jesus como Messias e
Salvador (1 Jo 5.1), a realidade da ressurreição (Rm 10.9), o evangelho (Mc
1.15) e o testemunho dos apóstolos (2 Ts 1.10).
A natureza da fé, porém, é invariável. É uma apreensão responsiva de
Deus e de sua verdade salvadora; é um reconhecimento da resposta dada por
Deus à necessidade humana, que doutro modo jamais seria atendida; é a
compreensão de que o evangelho é a mensagem pessoal de Deus, bem como
o convite pessoal de Cristo ao seu ouvinte; é o mover-se confiante da alma
em direção ao Deus vivo e ao seu Filho. Isso se torna claro através da mais
comum das construções gramaticais no Novo Testamento grego - o verbo
pisteuo com a preposição eis, ou, ocasionalmente, com a preposição epi, com
o objeto direto no acusativo - cujo significado é “confiar para dentro de” ou
“confiar sobre”. Esta construção jamais aparece no grego clássico e
raramente na Septuaginta. Trata-se de uma nova expressão idiomática,
desenvolvida no Novo Testamento, para expressar a ideia de um movimento
de confiança que se dirige ao objeto da confiança e que descansa no mesmo.
Esse é o conceito bíblico e cristão de fé. Os reformadores frisaram esse
conceito, afirmando que a fé não é apenas fides (crença), mas também fiducia
(confiança). Nas palavras do bispo Ryle:
Gratuita e Incondicional
Essa escolha divina de pecadores, para um destino predeterminado, é
apresentada como um ato da graça, isto é, o favor e o benefício de Deus. A
escolha divina não foi ocasionada por feitos meritórios da parte daqueles a
quem Ele escolhe.
Aeleição vem pela graça, e a graça exclui o mérito humano de maneira
absoluta. Declara Paulo que a eleição da graça "não é pelas obras; do
contrário, a graça já não é graça" (Rm 11.5, 6). Isso posto, a graciosa eleição
divina é gratuita e incondicional, pois não depende nem é suscitada ou
constrangida por qualquer coisa naqueles que são seus objetos: Trata-se de
uma resolução espontânea da parte de Deus, tal como se deu com suas
decisões de criar e de redimir. Deus não deve aos pecadores qualquer tipo de
misericórdia, mas somente condenação. Portanto, não lhes faz injustiça
alguma quando decide não abençoá-los. No entanto, é uma maravilha da
graça gratuita, quando Ele os abençoa. Por isso Paulo argumentou: "Há
injustiça da parte de Deus [em decidir abençoar um e outro não]? De modo
nenhum. Pois ele diz a Moisés: Terei misericórdia de quem me aprouver ter
misericórdia, e compadecer-me-ei de quem me aprouver ter compaixão.
Assim, pois, não depende de quem quer, ou de quem corre, mas de usar Deus
a sua misericórdia... Logo, tem ele misericórdia de quem quer" (Rm 9.14-18).
O fato que Deus resolve abençoar certos pecadores culpados não pode ser
explicado sob outros termos senão nos seus próprios: "Segundo o seu
beneplácito que propusera em Cristo'' (Ef 1.9). Eles foram ''predestinados
segundo o propósito daquele que faz todas as cousas conforme o conselho da
sua vontade" (v. 11). Se você, como crente, chegar a indagar: Por que Deus
escolheu a mim? - Mas, Jesus, eu? Por quê? - a resposta da Bíblia será que,
na misericórdia de Deus, isso Lhe pareceu bem. E isso põe fim à questão. Por
esta altura, pois, você deve cessar de fazer perguntas e começar a adorar a
Deus e a dar-Lhe graças.
A Bíblia salienta o caráter gratuito e não-constrangido da eleição divina,
não só mediante declarações claras, como as citadas, mas também através de
trechos que frisam, em primeiro lugar, que a escolha divina antecedeu à
existência dos escolhidos (Ef 1.4, etc.) e determina os lidares de Deus com
eles desde o seu nascimento (Jr 1.5; Rm 9.10-13). Em segundo lugar, esses
textos salientam que os escolhidos nada tinham, em si mesmos, para
recomendá-los a Deus, por serem tão maus, ou piores do que o resto da
humanidade ("de dura cerviz", Dt 9.4-6; loucos... fracos... humildes...
desprezados, 1 Co 1.27, 28; "que não buscavam a justificação", Rm 9.30; cf.
v. 23 e 24; "por natureza filhos da ira, como também os demais", Ef 2.3; cf.
vv. 1-10 com 1.3-12). Em terceiro lugar, enfatizam que a fé obediente dos
eleitos (isto é, tudo acerca deles que, de fato, pode agradar a Deus) flui da
eleição deles, e, desta forma, não pode servir de base para sua própria
escolha (At 13.48; 2 Ts 2.13 e 1 Pe 1.2).
Três Aspectos
A ideia de eleição figura na Bíblia em três conexões. Primeira, no Antigo
Testamento, houve a escolha divina de Abraão e sua família, a nação de
Israel, para ser o povo de sua aliança (Is 41.8, 9). Segunda, em ambos os
Testamentos, houve a escolha divina de membros particulares da
comunidade da aliança para realizarem serviços especiais: Moisés (Sl
106.23), Arão (Sl 105.26), os sacerdotes (Dt 18.5), os reis (1 Sm 10.24; 2 Sm
6.21), o Messias ("o meu escolhido", Is 42.1; cf. 49.5), os apóstolos (Jo 6.70;
15.16). Nessas duas conexões, a eleição divina visava o privilégio e a
responsabilidade, mas não garantia a salvação final das pessoas eleitas.
Muitos israelitas morreram sob julgamento (cf. 1 Co 10.5-10), assim como
Judas Iscariotes, um dos apóstolos. Nesses casos, foram privados das
bênçãos da eleição, por causa de incredulidade e desobediência. O Novo
Testamento, todavia, fala de uma eleição na terceira conexão, a saber, que
Deus escolheu certas pessoas a fim de levá-las à salvação. Paulo fala mais a
respeito dessa eleição, afirmando que vem desde a eternidade (Ef 1.4; 2 Ts
2.13 - "vos escolheu desde o princípio"; 2 Tm 1.9), que resulta na chamada
eficaz dos eleitos à fé e, igualmente, no ato eficaz de guardá-los na fé, bem
como no fato que Deus os guarda, até que cheguem à glória (Rm 8.30; 2 Ts
2.14). Essa é a eleição, não apenas para algum privilégio ou oportunidade,
mas para a própria vida eterna.
A própria ideia de eleição (escolher para fora) subentende que alguns
indivíduos não foram escolhidos. Deus discrimina; Ele seleciona alguns, não
todos. Dentre as nações, Ele escolheu somente Israel (Am 3.2; Sl 147.20).
Dentre o Israel segundo a carne, a salvação em Cristo foi desfrutada
somente pelo remanescente "segundo a eleição da graça, ...e os mais foram
endurecidos" (Rm 11.5, 7). Falando sobre os seus eleitos em Corinto, a quem
Ele se propôs a trazer à fé por meio da pregação de Paulo, Cristo disse àquele
apóstolo, em uma visão: ''Tenho muito povo nesta cidade" (At 18.10),
afirmação que não significava a população inteira (cf. 1 Co 1.26-29). Parte
do mistério da eleição é que Deus nunca parece haver escolhido a todos
quantos poderia ter escolhido. Dessa forma, Ele incute em nós o fato que a
sua eleição é absolutamente gratuita e nos ensina a valorizar a graça que tem
chegado a nós individualmente.
2. A ELEIÇÃO E O PLANO DE SALVAÇÃO
O Novo Testamento (mormente as epístolas de Paulo e o evangelho de
João) expõe a obra salvífica de Deus não como uma série de atos desconexos,
mas como uma operação complexa e única, um único propósito composto,
executado em conjunto pelas três pessoas da deidade. O resultado final
desse gigantesco plano é a glorificação da igreja; mas isso ainda jaz no
futuro. O manancial de onde tem fluído e fluirá toda essa atividade salvífica,
até que a obra seja terminada, é o propósito divino na eleição, que data de
antes da fundação do mundo, se assim posso me expressar (Ef 1.3, 4). Em
Romanos 8.29, 30, Paulo passa em revista o plano inteiro, do começo ao fim,
falando do seu estágio final no tempo passado, para mostrar que, visto que
Deus está decidido a fazê-lo, o estágio final é visto como se já estivesse
terminado: "Porquanto aos que de antemão conheceu, também os
predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele
seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou, a esses
também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que
justificou, a esses também glorificou".
Escolhidos em Cristo
Como diz Paulo, Deus nos escolheu "em Cristo", isto é, para sermos salvos
pela mediação de Cristo e em união com sua pessoa (Ef 1.4). Todas as
bênçãos que fluem da eleição são usufruídas em e através dEle - sermos
filhos de Deus (v. 5), a redenção do pecado (v. 7), o dom da habitação do
Espírito, que nos sela como propriedade de Deus (v. 13), e a herança para
nós preparada (v. 11). (A própria herança é algures definida como uma
questão de alguém ser como Cristo e estar com Cristo, possuindo a sua
imagem, compartilhando de sua glória, e vendo-O como Ele é - Jo 17.24; Rm
8.17; 2 Ts 2.14; 1 Jo 3.2.) Em harmonia com isso, na eternidade passada,
quando Deus nos escolheu para sermos salvos por Cristo (2 Tm 1. 9 e 1 Pe
1.2), Ele também nomeou seu Filho para tomar-se homem e ser o nosso
Salvador (2 Tm 1.10; 1 Pe 1.20). E, na plenitude do tempo, o Filho de Deus
veio ao mundo, especificamente conforme o testemunho dEle mesmo, para
cumprir o plano eterno – para morrer e dar a sua vida em favor de todos
aqueles que o Pai Lhe deu (Jo 6.39; 10.29; 17.2, 24), aqueles de quem Ele
afirmou ser o Pastor, aos quais também se referiu como "minhas ovelhas"
(Jo 10.26-29). "Dou a minha vida pelas ovelhas... As minhas ovelhas ouvem
a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem. Eu lhes dou a vida eterna;
jamais perecerão, eternamente..." (vv. 15, 27, 28).
Falamos sobre a "obra" de Cristo, indicando a expiação. Mas, na
perspectiva estabelecida pelo propósito eletivo de Deus, faz parte de sua
obra tanto o ministério celestial de Cristo em atrair pecadores a Si mesmo
(Jo 12.32), em interceder por eles (Rm 8.34; Hb 7.25), e em preservá-los
para a glória (2 Tm 4.17, 18), quanto o sofrer por eles, e carregar os pecados
deles. Aquilo que Cristo fez por nós, na terra e aquilo que Ele está fazendo
por nós, no céu, são dois lados de um mesmo empreendimento. É obra sua
tanto aplicar a redenção quanto o foi obtê-la para nós. Dar a vida eterna às
suas ovelhas e ressuscitá-las no último dia (Jo 6.39) pertencem ao seu
ministério, tanto quanto a sua morte expiatória. A primeira parte de sua
obra, por meio da qual Ele obteve uma "eterna redenção" (Hb 9.12),
terminou no Calvário; mas a segunda parte, conferir a redenção aos remidos,
continuará, como disse Cowper:
Oferecendo Cristo
Segundo, a base sobre a qual a Bíblia nos ensina a oferecer Cristo ao
mundo nada tem a ver com a eleição. Compete-nos convidar todos ase
voltarem e confiarem em Cristo, devido às quatro seguintes razões:
Primeira, todos são pecadores culpados e carecem de Cristo (Rm 3.19-26; At
4.12); segunda, Ele é um Salvador para todos quantos nEle confiarem (Jo
3.16; At 13.39; Rm 1.16; Hb 7.25); terceira, Ele convida graciosamente a
todos quantos dEle precisem para que venham a Ele e recebam paz (Mt
11.28, 29; Jo 6.37; Ap 3.20); quarta, Deus ordena positivamente que todos
quantos ouçam o evangelho, arrependam-se e creiam no nome de Cristo (At
17.30; 1 Jo 3.23). Cumpre-nos evangelizar, em obediência à ordem de Cristo
(Mt 28.19) e sob o constrangimento de seu amor (2 Co 5 .14). Não devemos
especular se os nossos amigos não-convertidos foram eleitos ou não (isso
não faz parte de nossas atribuições). Tão somente devemos contemplar a
necessidade que eles têm de Cristo, e fazer tudo quanto pudermos, em
honesta compaixão cristã, para satisfazer-lhes a necessidade, por nossas
orações e por nosso testemunho.
É bom lembrarmos que o Deus da Bíblia é o "bendito e único Soberano, o
Rei dos reis e Senhor dos senhores... que habita em luz inacessível, a quem
homem algum jamais viu, nem é capaz de ver" (1 Tm 6.15, 16). Ele é o Deus
grande e "indomável", o qual, como esclareceu a Jó, não está sob qualquer
obrigação de explicar-nos todas as suas razões para fazer o que faz (cf. Jó
40.1-8; 42.1-6) . Precisamos estar bem esclarecidos do fato que a revelação
que Deus faz de Si mesmo na Bíblia não nos capacita a conjeturar mais sobre
os seus planos do que aquilo que Ele nos diz ali de modo claro. Depois de
lermos poralgum tempo os escritos de um teólogo, sabemos, mais ou menos,
como ele pensa e o que a sua posição exigirá que ele diga; mas ninguém pode
aliquilatar seu Criador usando esse método.
Einstein usando a linguagem infantil poderia fazer-se conhecido a um
menino de dois anos, como um adulto amigável. Contudo, o menino não
faria ideia de como se combinavam na mente do cientista todos os conceitos,
planos, esquemas de valor, prioridades e conceitos de probabilidade, acerca
da vida como um todo; isso, pelo menos em parte, porque Einstein não
falaria sobre tais coisas com o menino, e, em parte, porque o menino não o
entenderia, ainda que Einsten tivesse falado sobre tais coisas. Nesse sentido,
pois, o adulto permanece desconhecido para a criança mesmo quando a ele
se faz conhecido - de fato, genuinamente conhecido - como um bondoso
amigo. Ora, diante de Deus estamos na posição de um menino de dois anos.
Deus tem falado e continua a falar conosco, na linguagem humana das
Sagradas Escrituras. E com base naquilo que Ele nos informa haver dito e
feito, nós chegamos a conhecê-Lo verdadeiramente. No entanto, podemos
ter a certeza de que desconhecemos a maior parte daquilo que Deus mesmo
sabe a respeito de suas próprias ideias, planos, valores, prioridades e
conceitos de probabilidade. Por conseguinte, quando não podemos perceber
como duas coisas que Deus tenha dito sobre Si mesmo podem ser
entrelaçadas, não deveríamos ficar surpresos ou preocupados. Tais
descobertas devem apenas ser esperadas.
No presente caso, alguns tropeçam na indagação de como pode ser bona
fide a oferta que Deus faz de Cristo a todos quantos ouvirem o evangelho, e
como a sua ordem de propagar o evangelho pode demonstrar a genuína boa
vontade, a qual queremos assegurar a todos aqueles aos quais nós levamos o
evangelho, quando Deus já resolveu, desde a eternidade, a quem Ele salvará
e a quem não salvará. A resposta breve é: Não compreendemos como, mas
podemos perceber que assim sucede através do ministério de Jesus Cristo, o
Filho de Deus encarnado, acerca de Quem podemos afirmar: Deus é como
Jesus (cf. Jo 14.9). É fora de toda a dúvida que os constantes e
indiscriminados convites de Jesus aos homens, para virem a Ele, para
crerem nEle, para se tornarem seus seguidores, e, desta forma, encontrarem
a vida eterna, foram expressões "bona fide", de boa vontade. Jesus chorou
diante da incredulidade de Jerusalém (Lc 19.41-44), e a aparência de sua
face evidentemente demonstrou tanto a sua real preocupação pelo jovem
rico como a sua real tristeza, quando o jovem se retirou (cf. Mc 10.21, 23,
27). Portanto, do exemplo do próprio Jesus vemos que, qualquer que seja a
verdade acerca da eleição, Deus não tem prazer na morte daqueles que,
tendo ouvido o evangelho, preferem desconsiderá-lo e morrer, ao invés de se
converterem e viverem (cf. Ez 18.23, 32; 33.11).
O ensino neotestamentário sobre o amor divino é que Deus, tendo, em
amor, andado uma milha ao dar seu Filho para tornar-se o Salvador de todos
os crentes, agora anda uma segunda milha, ao trazer todos os seus
escolhidos à fé. A particularidade da eleição e da redenção é assim colocada
dentro do esboço da boa vontade geral de Deus e não contraria esse esboço.
Isso posto, cabe-nos convidar todos a confiarem em Cristo, tal como fez o
próprio Jesus (Mt 11.28, 29; etc.); porque precisam dEle, porque Ele os
salvará, se vieram a Ele, e porque o próprio Deus os está chamando. À
semelhança de Cristo, devemos deixar Deus identificar os seus eleitos e
trazê-los à fé (cf. Jo 6.35-45). Isso nos leva ao ponto seguinte.
Certeza Exultante
Portanto, o conhecimento que temos de nossa eleição transforma a nossa
esperança de glória de um tímido anelo em uma exultante certeza e nos
fortalece para encararmos qualquer horrendo futuro na terra, com um senso
de triunfo em nossos corações. Não foi o acaso, mas a mais coerente lógica
espiritual, que levou Paulo, depois de ter revisto o propósito eletivo de Deus
a exclamar: "Que diremos, pois, à vista destas cousas? Se Deus é por nós,
quem será contra nós?... Quem intentará acusação contra os eleitos de
Deus?... Quem nos separará do amor de Cristo?... somos mais que
vencedores, por meio daquele que nos amou. Porque estou bem certo de que
nem morte, nem vida, nem anjos, nem principados, nem cousas do presente,
nem do porvir... nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de
Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor" (Rm 8.31-39). Quando o
crente perscruta esse insondável, todo-poderoso, gratuito e infindo amor do
Pai e do Filho, que se apossou dele antes que o tempo começasse, que o
redimiu e vivificou e que se comprometeu a conduzi-lo em segurança através
de todas as batalhas e tempestades da vida até às indizíveis alegrias que
Deus tem reservado para os seus filhos, então ele fica a anelar, mais do que
nunca, por responder com amor a esse amor. E a linguagem do seu coração
torna-se a linguagem do hino de Murray M'Cheyne:
Infinita Superioridade
Quando Deus é chamado de "santo", a ideia transmitida é a de deidade, e,
mais particularmente, daquelas qualidades da deidade que assinalam a
infinita superioridade do trino Jeová em relação à humanidade. Esse termo
mostra Deus acima e à parte dos homens, um tipo diferente de ser, o qual
vive em um nível superior de existência. Enfoca a atenção sobretudo em
Deus, tornando-O o apropriado objeto de nossa admiração, adoração e
temor reverente; isso serve para relembrar, às suas criaturas humanas, quão
diferentes de Deus elas realmente são. Assim, denota, primeiro, a infinita
grandeza e o infinito poder de Deus, em contraste com a pequenez e a
fraqueza dos homens e das mulheres. Segundo, denota a sua perfeita pureza
e retidão, que fica em marcante contraste com a iniquidade e impureza da
humanidade pecaminosa, e que evoca, da parte do Senhor, a sua inflexível
reação retributiva contra o pecado; reação essa que a Bíblia chama de "ira" e
de "juízo" de Deus. Terceiro, denota a sua determinação em manter o seu
próprio governo justo, sem importar quanta resistência e oposição haja
contra esse governo - uma resolução que garante que todo pecado
eventualmente receberá a devida recompensa. A ideia bíblica acerca da
santidade deDeus envolve tudo isso.
Negativamente
O Novo Testamento amplia o lado negativo da santidade – separação de
todas as atividades contaminadoras - em 2 Coríntios 6.17ss.: "Por isso,
retirai-vos do meio deles, separai-vos, diz o Senhor; não toqueis em cousas
impuras; e eu vos receberei, serei vosso Pai, e vós sereis para mim filhos e
filhas... Tendo... tais promessas, purifiquemo-nos de toda impureza, tanto
da carne, como do espírito, aperfeiçoando a nossa santidade no temor de
Deus". Em outros trechos, Paulo aplica esse princípio a um caso específico - o
pecado sexual. "Pois esta é a vontade de Deus, a vossa santificação: que vos
abstenhais da prostituição, que cada um de vós saiba possuir o próprio corpo
[ou esposa, os expositores diferem quanto a isso] em santificação e honra...
porquanto Deus não nos chamou para a impureza, e, sim, em santificação"
(1 Ts 4.3-7). O estado de santidade e a prática da impureza moral são
absolutamente incompatíveis.
Podemos observar de passagem que, embora toda a santidade não se
resuma em evitar o pecado sexual, o povo de Deus precisa de uma
advertência especial quanto a esse particular (o que, sem dúvida, é o motivo
pelo qual ambos os Testamentos abordam a questão de maneira tão plena e
franca). Os registros dos "movimentos holiness" fornecem provas
abundantes, e mesmo esmagadoras, a respeito disso.
O Antigo Testamento também se refere à impureza moral, bem como à
impureza ritual. Os seus regulamentos acerca da santidade (cf.
especialmente Levítico 11 a 22) muito destacam a necessidade de evitar a
impureza ritual, e se alguém não pudesse evitá-la, precisaria eliminar tal
impureza, relacionada a coisas como alimentos, enfermidades, menstruação
e morte. Tem-se argumentado que as abstinências e purificações prescritas
tinham um valor higiênico, e talvez tenham tido; mas, o Novo Testamento
somente nos informa que essas regras eram simbólicas em seu significado, e,
portanto, temporárias em sua aplicação. Cristo declarou queaquilo que
realmente contamina não são os alimentos, mas o pecado (Mc 7.18-23).
Paulo condenou certos mestres cristãos que consideravam impuros certos
alimentos, argumentando que Deus criou todos os alimentos para serem
recebidos com ações de graças por aqueles que creem e conhecem
plenamente a verdade (1 Tm 4.3ss.). De tais passagens fica claro que a
contaminação ritual que envolvia carnes e outras coisas criadas,
consideradas "impuras" era um mero tipo da verdadeira contaminação do
coração impuro. Parece que a razão pela qual Deus sujeitou o seu povo do
Antigo Testamento a esses preceitos simbólicos era, pelo menos em parte,
manter separação da vida nacional de Israel, e, em parte, para impressionar
os israelitas quanto ao fato que, aos olhos de Deus, a contaminação era algo
real e grave, sendo importantíssimo que o povo fosse purificado.
Positivamente
O lado positivo da santidade consiste em manter-se leal a Deus e viver
uma vida que exiba diante dos outros as qualidades de fidelidade, gentileza,
boa vontade, afabilidade, paciência e retidão, segundo o modelo que Deus
revela destas qualidades, em seu admirável relacionamento conosco. O Novo
Testamento ressalta esse aspecto do assunto, apresentando a retidão como a
vereda para a santidade (Rm 6.19; cf. Ef 4.24). De acordo com o Novo
Testamento, a santidade não é um sentimento nem uma experiência, e, sim,
uma qualidade de vida, segundo a qual o caráter do Pai e do Filho é refletido
na conduta e na aparência pessoal do crente.
A santidade do crente, tal como a do seu Senhor, consiste em viver na
prática de um relacionamento para com o mundo dos homens, pela qual ele
está no mundo, sem ser do mundo (Jo 17.14-16). Isso requer tanto a
separação quanto a identificação, tanto o desligamento quanto o
envolvimento.
Pertencer ao mundo significa ser controlado por aquilo que preocupa o
mundo, como a busca por prazer, lucro e posição ("a concupiscência da
carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida" - 1 Jo 2.16). Os
crentes devem renegar tal preocupação, embora o mundo venha a odiá-los
assim como odiou a Cristo, visto que denunciam os interesses do mundo
como espalhafatosos e triviais (como, de fato, o são) e denunciam aqueles a
quem esses interesses escravizam ao ponto de degradarem a sua própria
humanidade (o que, de fato, acontece). Tal má vontade é inevitável e o
crente não deve se perturbar com ela.
A vida de uma pessoa santa não se centralizará em coisas; pelo contrário,
ela se caracterizará por uma certa frugalidade, uma abstenção do luxo e do
exibicionismo, um senso de mordomia acerca de todas as suas possessões e
uma disposição de abandoná-las, se necessário, por amor ao Senhor. As
pessoas santas não menosprezam as coisas boas deste mundo, como se Deus
não as tivesse feito nem as tivesse provido para elas (a crença maniqueísta,
que diz que as coisas materiais são más em si mesmas, não faz parte da
santidade); mas recusam deixar-se escravizar pelas coisas. Eles não
procuram comparar as suas posses materiais com as de outras pessoas, pois
sabem que procurar ter um nível de vida igual ao do vizinho não é santidade,
mesmo que o vizinho vá à mesma igreja ou pertença a algum célebre círculo
evangélico. A pessoa santa vive livre da paixão pelas possessões, tal como o
faz quanto a outras formas de autossatisfação e de autoindulgência. O seu
tesouro está com Deus e o seu coração também (cf. Mt 6.19-21). A satisfação
produzida por sua desconsideração das escalas de valores do mundo e o
franco, simples, honesto e espontâneo ardor de seu amor a Deus podem
torná-lo uma companhia um tanto irritante, ainda que isso se deva ao fato
que ele é muito mais honesto e humano do que aqueles que o observam, e
não porque ele seja esquisito e os outros sejam normais.
Juntamente com essa separação, entretanto, há uma identificação
igualmente surpreendente com o próximo e com suas necessidades. A
reivindicação dos reformadores de que ninguém pode ser santo, se
abandonar o mundo e ingressar em um mosteiro ou na caverna de um
eremita, talvez tenha sido exagerada, mas há nela uma profunda verdade.
Assim como não há (usando as palavras de Wesley) coisa alguma mais
anticristã do que um crente solitário, também nada é mais contrário à
santidade do que perder o interesse pelo semelhante. O desapego do crente
para com o mundo, no sentido de não se comprometer com seus alvos
ímpios, deve ser balanceado com o seu interesse pelo mundo, no sentido de
seu dever para com as pessoas necessitadas.
A forma externa da santidade do próprio Jesus consistia em associar-se a
todas as classes de pessoas, incluindo os publicanos e outros sem reputação,
pelos quais Ele teve tanto interesse quanto por qualquer outra pessoa. De
fato, Jesus demonstrava um interesse especial pelos pobres, pelos obscuros,
pelos desprivilegiados, que a sociedade tratava como meros números. Jesus
também era conhecido por seu hábito nada rabínico de fazer-se amigo dessa
gente e de gastar tempo na companhia deles (cf. Mt 9.9-13; 11.5, 19). Esse
elemento da santidade de Jesus também deve fazer parte da santidade dos
seus discípulos. Se a separação anteriormente descrita cumpre o primeiro
grande mandamento da lei, a identificação desse tipo se faz mister para
cumprir o segundo. O General Booth, certa vez, tomou a palavra "outros"
como lema do Ano Novo para o Exército de Salvação. As pessoas santas
trazem esse lema em seus corações o tempo todo, e a conduta delas, em casa
e fora de casa, na família e entre os homens em geral, demonstra isso. Assim
sendo, as pessoas santas não são inertes; elas são por demais ativas para
serem inertes, pois oram e laboram, derramando-se em amor ao próximo. O
Cristo dos evangelhos e o Paulo do livro de Atos e das cartas são os nossos
grandes modelos quanto a esse particular. A palavra "santidade" sugere ao
homem moderno alguma coisa pálida, anêmica, retraída, negativa e passiva.
Isso mostra quão pouco o homem moderno conhece a santidade! A
santidade ensinada na Bíblia, na realidade, é a qualidade mais positiva, mais
poderosa, e, com frequência, mais apaixonada que alguém jamais viu.
3. O DOM DA SANTIDADE
A famosa prece de Agostinho: "Dá o que ordenas, e ordena o que
quiseres", expressa um profundo discernimento quanto à teologia bíblica.
Na verdade, Deus dá aquilo que ordena. A santidade que Ele requer de seu
povo também é um de seus dons para eles. O próprio Deus santifica os
pecadores. Ele declara, no Antigo Testamento: "Eu sou o SENHOR que vos
santifico" (Êx 31.13; Lv 20.8; 21.8). O Novo Testamento proclama: "...Cristo
Jesus, o qual se nos tornou da parte de Deus... santificação..." (1 Co 1.30).
"Cristo amou a igreja, e a si mesmo se entregou por ela, para que a
santificasse" (Ef 5.25, 26). "Mas fostes santificados... em o nome do Senhor
Jesus Cristo e no Espírito do nosso Deus" (1 Co 6.11). "Nessa vontade é que
temos sido santificados, mediante a oferta do corpo de Jesus Cristo, uma
vez por todas" (Hb 10.10). A santidade, ou santificação, é aqui exibida como
um gracioso dom de Deus.
Posição
O Novo Testamento deixa claro que esse dom tem dois aspectos. O
primeiro aspecto é uma questão de relação e de posição. Nesse sentido, Deus
santifica os pecadores de uma vez e para sempre, quando os traz aSi,
separando-os do mundo, livrando-os de Satanás e do pecado, e recebendo-os
em seu companheirismo. Nesse sentido, pois, a santificação tem significado
semelhante ao de justificação, adoção e novo nascimento. A epístola aos
Hebreus sempre usa o verbo "santificar" nesse sentido (Hb 2.11; 10.10, 14,
29; 13.12). Segundo esse ponto de vista, a santificação é um benefício
recebido de uma vez para sempre, que o crente começa a desfrutar após sua
conversão, mediante a fé em Cristo (At 26.18), e para o qual o crente pode
olhar como um acontecimento passado. É em virtude desse acontecimento
que o Novo Testamento refere-se ao crente como "santo" (no grego, hagios),
por ter sido "santificado em Cristo Jesus", no sentido explicado (1 Co 1.2). O
Novo Testamento não diz que os crentes devem ter vidas santas a fim de se
tornarem santos; ao invés disso, ensina que os crentes, por serem santos,
devem viver vidas santas! Esse, pois, é o primeiro e fundamental aspecto do
dom divino da santificação.
Progressão
O segundo aspecto desse dom é recreativo e progressivo. Nesse sentido, a
santificação é a obra graciosa do Espírito Santo no crente, durante toda a
sua vida terrena, mediante a qual ele cresce na graça (1 Pe 2.2; 2 Pe 3.18; Ef
4.14, 15) e é gradativamente transformado em sua mente, em seu coração e
em sua vida, segundo a imagem do Senhor Jesus Cristo (Rm 12.2; 2 Co 3.18;
Ef 4.23, 24; Cl 3.10). O verbo "santificar" é claramente usado com essa
aplicação em João 17.17, 1 Tessalonicenses 5.23 e Efésios 5.26.
Nessa obra santificadora, Deus requer a nossa cooperação, ao mesmo
tempo em que "efetua em vós [nós] tanto o querer como o realizar, segundo
a sua boa vontade" (Fp 2.13). Ele nos convida a "mortificarmos" os nossos
pecados (matá-los), por meio do Espírito (Rm 8.13; Cl 3.5) e a dedicarmo-
nos à prática das "boas obras", que as porções éticas do Novo Testamento
prescrevem com detalhes. Aquele hino que diz: "Santidade pela fé em Jesus,
não por nosso próprio esforço", descreve uma falsa antítese. Certamente, a
santidade vem pela fé em Jesus, pois toda a capacitação para a santidade
deve ser extraída dEle mediante a fé e a oração, porquanto sem Ele nada
podemos fazer (Jo 15.5ss.). Porém, é igualmente verdade que a santidade
vem pelo esforço; assim, depois de ter ajoelhado para reconhecer a nossa
fraqueza e solicitar ajuda, devemos ficar de pé contra o pecado (Hb 12.4),
resistindo ao diabo (Tg 4.7) e lutando o bom combate da fé (1 Tm 6.12; cf. Ef
6.10-18). A santidade envolve tanto a fé como o esforço pessoal, de nada
adiantando o esforço sem a fé, ou fé sem esforço. Quanto a isso, é
importante conservar o equilíbrio; e isso nem sempre tem acontecido.
4. A SANTIDADE DO CÉU
A santidade é o fim e o propósito de nossa eleição (Ef 1.4), de nossa
redenção (Ef 5.27), de nossa chamada (1 Ts 4.7; cf. 1 Pe 1.15; 2 Tm 1.9) e da
disciplina providencial de Deus sobre nós (Hb 12.10). Porém, sua completa
realização não se dará neste mundo. A visão de Zacarias de uma Jerusalém
restaurada, onde as palavras "Santo ao SENHOR" estarão inscritas nas
campainhas dos cavalos e onde ''todas as panelas em Jerusalém e Judá serão
santas ao SENHOR dos Exércitos" (Zc 14.20, 21) é um quadro em termos
simbólicos da santidade à qual a igreja está predestinada. Todavia, essa
santidade não terá cumprimento enquanto não aparecer a nova Jerusalém, a
cidade santa (Ap 21.2), adornada como uma noiva para O seu esposo. Então,
quando a obra da graça estiver terminada, o povo de Deus será separado não
meramente do domínio do pecado, mas da própria presença do pecado. No
céu não haverá pecado, pois aqueles que ali estiverem não mais terão a
fraqueza humana. Entre; outras coisas, a glorificação envolverá o
desarraigamento final do pecado de nossa natureza. Assim, a santidade será
perfeita lá no céu. Estarmos incapacitados de pecar será tanto a nossa
liberdade como o nosso gozo. Entrementes, tendo essa esperança diante de
nós, nossa chamada diária é para seguir a "...santificação, sem a qual
ninguém verá o Senhor" (Hb 12.14).
Lembro-me da primeira refeição vespertina que tive na faculdade de
teologia. Ninguém se conhecia e a conversação era exploratória, sincera e
ocasional. Informei ao homem sentado diante de mim, um pequeno e
sorridente galês, que eu apreciava muito os Puritanos. Ele perguntou-me por
quê. Disse-lhe que os Puritanos sempre tinham me feito bem; eles se
aprofundaram e foram magníficos no assunto da mortificação. Ele
exclamou: "Mortificação! Vamos conversar sobre isso depois do jantar!"
Naquela noite, ficamos caminhando às margens do rio, em Oxford, por
quase duas horas. Contei-lhe o que as sessenta páginas escritas por John
Owen, a respeito da mortificação do pecado, tinham feito por mim, quando
uma modalidade popular de ensino sobre a santidade quase me fizera perder
o equilíbrio. Ele me falou de suas agonias, em uma comunidade voltada às
emoções, onde era professado o perfeccionismo, onde os padrões morais
estavam em decadência e a palavra "mortificação" era um tabu, porque todos
supunham já haver ultrapassado essa fase.
Em uma atmosfera assim, Deus lhe ensinara que o pecado não é
desarraigado de nós, nem se torna impotente em nós, em qualquer estágio
desta vida; e que a vigilância, a oração, o suspeitar de si mesmo, com
frequentes exames do coração e dos atos, são disciplinas vitais, a fim de que
o indivíduo não caia em tentação, sem ao menos perceber o que está
sucedendo. Eventualmente, ele sentiu-se obrigado a abandonar aquela
comunidade (tendo sido difamado por ter feito isso). Porém, enquanto
estivera lá, sentira sopros de avivamento, e, tanto na época como mais tarde,
sempre se mostrara extremamente sensível diante das realidades espirituais,
conforme acontece entre os crentes moldados por avivamentos. Ele
pastoreou com sucesso duas congregações difíceis, por mais de vinte anos, e
foi usado na transformação de muitas vidas para Deus. Era um homem
gregário e extrovertido, um dos homens mais alegres que conheci. Até ao fim
de seus dias continuou ensinando regularmente a doutrina da mortificação,
o único pastor evangélico que sei ter feito isso. Ele pensava que o tema era
muito importante. Assim também penso eu: eis a razão deste estudo.
O crente está empenhado em uma luta, que perdura sua vida inteira,
contra o mundo, a carne e o diabo. A mortificação é sua investida contra o
segundo desses adversários. Dois textos paulinos mostram que se trata de
um ingrediente essencial à vida cristã: "Fazei, pois, morrer a vossa natureza
terrena" (Cl 3.5). "Se pelo Espírito mortificardes os feitos do corpo,
certamente vivereis" (Rm 8.13). Cada um desses textos usa um verbo
diferente, no original grego, embora sejam sinônimos. No segundo texto, o
verbo está no presente, dando a entender que a mortificação deve ser
contínua (Se... continuardes a mortificação... vivereis). No primeiro texto, o
verbo está no aoristo, implicando que a mortificação, uma vez iniciada, se
completará com bom êxito.
O primeiro dos dois textos diz-nos que o privilégio cristão torna a
mortificação obrigatória. Paulo argumenta, em Colossenses 3.1-5, que visto
sermos participantes da vida ressurreta de Cristo, cidadãos dos céus cujas
expectativas estão nas regiões celestes, não mais filhos da ira, mas filhos de
Deus e herdeiros da glória, devemos conduzir-nos convenientemente com
nossa posição; precisamos ser o que somos hoje, não o que éramos outrora.
Portanto, "fazei... morrer a vossa natureza terrena" (Cl 3.5). O segundo texto
informa-nos que a mortificação é necessária como meio para chegarmos a
um fim. Ela é o caminho para a "vida", para o bem-estar espiritual neste
mundo e para a glória com Cristo, no mundo vindouro. A mortificação não
compra para nós a vida eterna (Cristo já fez isso por nós), mas faz parte da
"operosidade da vossa fé" (1 Ts 1.3), por meio da qual adquirimos e
mantemos o dom gratuito de Cristo (cf. 1 Tm 6.12; Fp 3.12-14). Ela é uma
daquelas "obras" sem as quais a "fé" - a profissão de fé - é "morta" (Tg 2.26).
O argumento de Paulo pode ser expandido assim: Se quisermos assegurar a
nossa chamada e a nossa eleição, por mostrar que a nossa fé é autêntica, se
quisermos correr de tal modo a alcançar e viajar de modo a chegar, então
devemos mortificar o pecado. Observou seriamente John Owen: ''Aquele
que, em seu caminho, não aniquila o pecado, não está dando passos em
direção ao final de sua jornada''.
A evidente importância desse assunto faz parecer lamentável e estranha a
duradoura negligência dos crentes para com o mesmo. As causas dessa
negligência talvez incluam a aversão dos evangélicos ao externalismo da
tradicional mortificação católica romana (vestir cilício, ficar horas
mergulhado em água gelada e coisas dessa natureza), na qual o objeto de
ataque parece ser o corpo, e não o pecado residente na alma. E a censura de
Colossenses 2.23 obviamente aplica-se aos tais. Porém, uma causa mais
profunda dessa negligência é a superficialidade da compreensão e da
experiência cristã em nossa época. Visto que conhecemos tão pouco a Deus e
que, por isso, dificilmente conhecemos a nós mesmos, e visto que a maioria
de nós pensa que o autoexame é algo ultrapassado e mórbido, dificilmente
temos consciência do pecado no íntimo.
Há uma antiga comédia na qual um leão fugitivo toma o lugar de um cão
peludo, ao lado de uma poltrona. O cômico, afetuosamente, passa os dedos
pela juba do leão por diversas vezes, antes de notar que, conforme
costumamos dizer, ele tinha um problema nas mãos. Agimos desse modo, no
tocante aos nossos hábitos pecaminosos. Tratamo-los como amigos, não
como assassinos, e jamais suspeitamos como o pecado, quando permitido no
íntimo, debilita e enfraquece o crente. Isso, podemos temer, é porque somos
vítimas do pecado, sem sabermos o que realmente significa estarmos vivos
em nosso relacionamento com Deus, tal como as crianças aleijadas de
nascença nunca sabem o que é correr livremente, ato muito diferente de
manquejar. Tal é o merecido castigo de nossa atual negligência quanto à
mortificação.
Assim sendo, a mortificação é um tema sobre o qual parece não haver
qualquer tratamento contemporâneo de valor em evidência. Se quisermos
ajuda, para melhor entendermos o ensino bíblico sobre este assunto,
devemos voltar aos escritos dos grandes Puritanos do século XVII, "uma
época", escreveu o bispo J. C. Ryle "em que, sou forçado a dizer, a religião
experimental era mais profundamente estudada e muito melhor
compreendida do que atualmente". As obras mais úteis sobre esse o tema
são as de John Owen, que Spurgeon chamou de "o príncipe dos teólogos".
Essas obras são: The Nature, Power, Deceit, and Prevalency of the Remainders
of lndwelling Sin in Believers - A Natureza, o Poder, o Engano e a Providência
das Reminiscências do Pecado que Habita nos Crentes - e a seção sobre a
"Mortificação" (Livro 4, capítulo 8), em A Discourse Concerning the Holy Spirit
- Um Discurso Acerca do Espírito Santo - (Works, W. Goold, vols. 6 e 3). Este
escritor sente-se na obrigação de dizer que deve a esses tratados, com títulos
assustadores, não meramente grande parte do material deste estudo, mas
quase toda a luz que tem recebido sobre os temas envolvidos neste estudo.
Mortificação é guerra; e existem quatro passos a serem dados, se tivermos
de ganhar a batalha.
NOSSO INIMIGO
Precisamos conhecer o nosso inimigo. O ponto de partida para a
mortificação consiste em reconhecermos que estamos combatendo não
apenas contra pecados, mas contra o pecado. Conforme verificamos nos
estudos anteriores, a Bíblia retrata o pecado como "um princípio positivo e
destrutivo, endêmico no homem" (A. M. Hunter): um impulso hereditário,
profundamente arraigado em nossa natureza, que nos impele
permanentemente a uma cega oposição a Deus. A mente dominada por esse
princípio é simplesmente "inimizade contra Deus, pois não está sujeito [a] à
lei de Deus, nem mesmo pode estar" (Rm 8.7). O pecado é um intenso desejo
por autoafirmação, em oposição a Deus; a própria ideia de dependência
consciente, de adoração grata e de comunhão obediente com o Criador é algo
inteiramente abominável à mente controlada pelo pecado. O pecado é a raiz
de todos os pecados praticados; e, portanto, a raiz da semelhança familiar
com o homem caído (cf. Jo 8.44; 1 Jo 3.8-12). Cristo nos fornece uma lista
dos frutos mediante os quais podemos conhecer o pecado (Mc 7.21, 22).
Paulo nos dá duas dessas listas (Gl 5.19-21 e Cl 3.5, 8). O pecado é a energia
inata que dá origem a essas coisas.
O pecado escraviza inteiramente o incrédulo (cf. Rm 6.16-23). Ele está em
paz com o pecado, porque seu coração foi conquistado pelo pecado. A pessoa
convertida, porém, toma Cristo como seu Senhor e modelo, e resolve que
não mais será aquela pessoa que resistia a Deus e que se autoafirmava. Essa
é uma "mudança de mente" (que é, de fato, o significado da palavra metanoia,
a palavra grega para "arrependimento"). Mediante essa mudança mental, o
crente se despoja do "velho homem, que se corrompe segundo as
concupiscências do engano" e se reveste do novo homem (Ef 4.22-24). Ele
renuncia ao pecado; deseja que o pecado morra nele; e, assim, em intenção,
ele crucifica "a carne, com as suas paixões e concupiscências" (Gl 5.24).
Mas, nem por isso o pecado morre. Pelo contrário, o pecado assume uma
vida toda própria; o crente descobre que o pecado está ativo no seu interior,
como uma espécie de diabólico alter ego, uma sombra do seu próprio "eu",
opondo-se, resistindo e distorcendo, em menor ou maior grau, todas as suas
tentativas de fazer a vontade de Deus. Escreveu Owen: "O pecado pode ser
comparado a uma pessoa, uma pessoa viva, chamada de 'velho homem', com
suas faculdades e propriedades, com sua sabedoria, sua astúcia, sua sutileza
e sua força".
Assim, o crente se vê em conflito com uma parte de si mesmo: "A carne
milita contra o Espírito, e o Espírito contra a carne... para que não façais o
que porventura seja do vosso querer" (Gl 5.17). O crente quer ser perfeito,
mas nunca atinge a perfeição, e a cada fase de sua vida ele se vê forçado a
confessar juntamente com Paulo: "Porque não faço o bem que prefiro, mas o
mal que não quero, esse faço... já não sou eu quem o faz, e, sim, o pecado que
habita em mim'' (Rm 7.19, 20). O pecado está sempre em rebelião contra a
lei da mente do crente (Rm 7.23; cf. v. 25). Escreveu John Owen: "Não é fácil
expressarmos com que vigor e variedade o pecado se manifesta nesta
questão. Às vezes, o pecado propõe diversões, às vezes causa exaustão, às
vezes descobre empecilhos, às vezes desperta afetos contrários, às vezes gera
preconceitos e, de uma maneira ou de outra, embaraça a alma, de tal modo a
jamais permitir que a graça obtenha um absoluto e total sucesso, na
realização de qualquer dever'' . O pecado está em guerra contra nós (Rm
7.23; 1 Pe 2.11) e busca a nossa ruína. A única maneira de nos preservarmos
é lutando contra o pecado. Fazemos isso por meio da mortificação.
NOSSO OBJETIVO
Precisamos conhecer o nosso objetivo. Clarear essa questão é o segundo
passo. Se ignorar o seu inimigo, o homem lutará às cegas; sem um objetivo
claro, ele lutará sem propósito algum, como "desferindo golpes no ar".
Aquele que não tem alvo algum, nunca alcança coisa alguma. Portanto,
devemos ser claros acerca do que estamos tentando fazer.
As duas palavras gregas traduzidas por "mortificar", nos textos com os
quais iniciamos este estudo, significam ''matar''. Esse é o nosso alvo: exaurir
de tal modo a vida do pecado, que ele nem mais consiga mover-se. Não nos é
prometido que atingiremos o nosso alvo nesta vida, mas nos foi ordenado
que avancemos na direção do mesmo, atacando aquelas inclinações e aqueles
hábitos mediante os quais a presença do pecado é reconhecida. Não convém
meramente que resistamos aos ataques do pecado; precisamos tomar a
iniciativa contra ele. Nas palavras de John Owen, devemos procurar "não
apenas desapontar o pecado, para que o mesmo não se manifeste... mas
devemos buscar a vitória contra o mesmo e persegui-lo até a conquista
total''. Está em pauta não somente uma contraofensiva, mas a erradicação do
pecado. Matar, até onde isso nos for possível, é o alvo em vista.
A mortificação é uma obra que envolve a vida toda. O pecado não morrerá
de outra maneira, ''senão por ser gradual e constantemente debilitado",
adverte Owen. Ele continuou: "Poupe-o, e ele curará suas próprias feridas, e
recuperará as forças''. A Bíblia e a história da igreja prestam reiterado
testemunho das desastrosas consequências para quem cessa a mortificação,
antes que o pecado seja morto. Ora, o pecado nunca morre neste mundo,
sem importar quão enfraquecido se torne.
Além disso, a mortificação importa em uma disciplina dolorosa. Os hábitos
pecaminosos tornaram-se uma parte tão entranhada de nós mesmos que
tentar destruí-los assemelha-se ao decepar de uma mão ou ao arrancar de
um olho (cf. Mt 5.29, 30). O "eu" carnal, que naturalmente procura
sobreviver, fará tudo quanto estiver ao seu alcance para impedir-nos de
matá-lo.
No entanto, a mortificação é uma disciplina eficaz. Faz parte de uma
saudável experiência cristã desfrutar de um contínuo e crescente grau de
livramento dos pecados, porque, mediante a mortificação, a força do pecado
está sendo constantemente drenada. Poucas coisas conferem ao crente tão
grande alívio e encorajamento como a recordação de pecados que antes o
subjugavam, mas que ele conseguiu dominar pelo poder do Espírito de Deus.
NOSSA SUPERIORIDADE
Precisamos conhecer nossa superioridade. Esse é o terceiro passo. Ninguém
se encoraja muito por uma batalha sobre a qual ele pensa que não poderá
vencer. Esperar a derrota é o meio para garanti-la. Se eu imaginar que, por
mais que tente, estou destinado a fracassar, nem ao menos tentarei quanto
poderia fazê-lo. Ao crente, porém, está vedado um tão desastroso
pessimismo. Deus lhe impõe a obrigação de esperar a vitória em seu conflito
contra o pecado. Pois a Bíblia mostra-lhe que, porocasião da conversão, o
Espírito Santo uniu-o ao Cristo vivo. Aquela foi a sua regeneração. Ela fez
dele uma "nova criatura" (2 Co 5.17) e assegurou a sua permanente
superioridade no conflito contra o pecado. As Escrituras descrevem o que
sucedeu então, mediante três descrições complementares, e cada uma com
um ponto de vista diferente confirma que assim realmente sucede. Já nos
defrontamos com essas ideias, mas seria aconselhável reiterá-las.
1. OEspírito implantou um novo princípio de vida. Como resultado direto de
nossa união com o Cristo ressurreto e vivo, a regeneração é aludida como o
ter sido "vivificado" e "ressuscitado" juntamente com Ele (Ef 2.5; Cl 2.12, 13;
3.1). Por ser o início da vida espiritual de um homem, a regeneração é
descrita como um "nascer de novo", ou um "nascer de Deus" (Tg 1.18; 1 Pe
1.3; 1 Jo 5.18). A dinâmica assim implantada é o "coração novo" e o "espírito
novo", prometidos em Ezequiel 36.26, o "novo homem", do qual nos
revestimos por ocasião da conversão (Ef 4.24), a "divina semente" no
coração de seus filhos (1 Jo 3.9). Essa nova energia encontra a sua expressão
característica naquela mesma atitude e naquela mesma relação com Deus
que marcou a vida humana de Cristo: uma espontânea afinidade e amor a
Deus, à sua Palavra e ao seu povo. O pecado é tão repugnante para esta nova
energia, quanto a piedade o é para o pecado. Seus frutos naturais, a fé, o
amor e a oposição ao pecado, são sinais seguros de sua presença (Gl 5.6, 17).
Essa é a nova natureza do crente, o seu verdadeiro "eu", o "homem interior",
que se deleita na lei de Deus (Rm 7.22). Esse novo princípio vem substituir o
pecado como o poder reinante no coração e como o impulso dominante na
vida do crente. Pecar é algo que não mais faz parte inerente de sua natureza.
Sempre que o crente peca, fá-lo contrariando o seu caráter, e o seu coração
não o aprova. O crente nunca mais poderá pecar de todo o coração.
2. O Espírito Santo desfechou um golpe mortal no pecado. O que foi dito
acima deixa isso bem claro. A finalidade da justificação e da regeneração é
que "o corpo do pecado [nosso caráter pecaminoso] seja destruído [trazido
ao nada], e não sirvamos o pecado como escravos" (Rm 6.6). Por nossa união
regeneradora com Cristo e pela chegada da nova vida, o pecado recebe um
golpe do qual jamais poderá recuperar-se. Seu poder é quebrado, e a sua
destruição final é assegurada. Por essa razão, Deus diz ao seu povo: "O
pecado não terá domínio sobre vós" (Rm 6.14). O reinado do pecado
terminou, com relação aos remidos. O papel dos crentes consiste agora em
apressar, mediante a mortificação, o falecimento de seu destronado e
condenado adversário. Deus garante que por mais furioso ou renitente que o
pecado possa se mostrar, por mais profundamente que ele venha a
entrincheirar-se por trás de nossos maus hábitos e de nossas debilidades
temperamentais, a pressão contínua contra ele não poderá falhar em
desarraigá-lo e expulsá-lo.
3. O Espírito Santo veio residir em nosso coração. Agora, o Espírito reside no
crente (Rm 8.9-11; 1 Co 6.19), a fim de transmitir-lhe a vida de Cristo, a
cada momento (Cl 2.19), assim fazendo com que a "semente", em seu
coração, cresça e produza o fruto do Espírito (Gl 5.22). O Espírito Santo se
faz pessoalmente presente, a fim de opor-se ao pecado residente em nós. Ele
ensina o crente a compreender a verdade revelada e a aplicá-la a si mesmo.
Ele desperta o crente para que este obedeça à verdade e fortalece-o para que
assim possa agir. Ele "é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar,
segundo a sua boa vontade" (Fp 2.13). O pecado só pode ser mortificado
"pelo Espírito", porque somente Ele pode tornar os homens desejosos e
capazes para a tarefa. Todavia, onde o Espírito, que em nós reside, exerce o
seu poder soberano, é impossível haver fracasso.
Por conseguinte, quando o crente combate contra o pecado, ele está se
opondo a um inimigo destronado e enfraquecido. Ele é estimulado pela
energia que agora é o mais profundo e poderoso instinto de sua natureza; e
prossegue na força do Santo Espírito de Deus. Sua superioridade é garantida
e pode lançar-se à luta com confiança, pois vencerá.
NOSSOS RECURSOS
Precisamos saber como usar os nossos recursos. Esse é o quarto passo
essencial. É verdade que não podemos mortificar o pecado por nossos
próprios esforços, sem ajuda externa; mas, não é menos verdade que o
espírito Santo não mortificará o pecado em nós sem a nossa cooperação. Ele
fará prosperar os nossos esforços, mas não abençoará a nossa indolência.
Nós mesmos, portanto, devemos atacar o pecado. O resultado do conflito
dependerá de lutarmos sabiamente e de fazermos bom uso da força que
dispomos. As três regras básicas para tanto são as seguintes:
1. Crescer. Escreveu Owen: "Crescer, vicejar e aprimorar-se na santidade
universal é o grande meio para a mortificação do pecado... Quanto mais
abundarmos nos frutos do Espírito, menos preocupados ficaremos com as
obras da carne... Isso é o que derrota o pecado; sem isso, coisa alguma
contribuirá para tal derrota". Precisamos nutrir a nossa nova natureza com a
verdade de Deus e exercitá-la continuamente na oração, na adoração, no
testemunho e em uma obediência consistente e total. Deveríamos planejar a
prática e o desenvolvimento de qualidades mais contrárias aos pecados dos
quais precisamos nos desvencilhar: a generosidade, se o nosso problema é a
cobiça; o hábito de louvar, se o problema é a autocompaixão; a paciência e a
tolerância, se o problema é o mau temperamento; o planejamento da vida
diária, se é a indolência; ou quaisquer outras qualidades. Precisamos
interceptar as tentativas do pecado em recuperar o controle de nossos
corações e poderes, mantendo-nos atarefados no serviço de Deus. Crentes
débeis, descuidados, de corações e mentes divididas, jamais poderão
mortificar o pecado.
2. Vigiar. Temos a responsabilidade de esquivar-nos da tentação até onde
pudermos. É pura presunção, e não fé, esperar que Deus, em seu poder
soberano, mate em nós as concupiscências, ao mesmo tempo em que lemos
má literatura, aceitamos más companhias e nos expomos às influências que
fomentam as concupiscências; é mais provável atrair uma maldição do que
uma bênção. Tem sido dito que, embora não possamos impedir que os
passarinhos sobrevoem a nossa cabeça, podemos impedi-los de fazerem
ninhos em nossos cabelos. Precisamos ser severos em privar o pecado de
tudo quanto o alimente. Doutro modo, a mortificação tornar-se-á
impossível.
3. Orar. Somente a oração pode obter ajuda da parte de Deus. As
promessas não reivindicadas não são normalmente cumpridas: "Nadatendes,
porque não pedis" (Tg 4.2). A ajuda do Espírito Santo, na mortificação, só é
conseguida através de constante e confiante oração, quando reivindicamos a
promessa de que o pecado não nos dominará, quando apelamos
continuamente ao Senhor, o qual veio a este mundo, morreu, ressuscitou e
agora vive para salvar-nos do pecado, a fim de "acharmos graça para socorro
em ocasião oportuna" (Hb 4.16). Entretanto, se pedirmos e esperarmos, não
ficaremos desapontados. Disse Owen: "Exerce fé em Cristo, tendo em mira a
morte de teu pecado... e morrerás vencedor. Sim, por meio da providência
divina, viverás para ver a tua concupiscência morta aos teus pés".
NOSSA SAÚDE
O que tudo isso tem a nos dizer poderia ser assim colocado:
Alguns de nós precisam de correção. Pertencemos a uma geração que dá
mais valor ao prazer do que ao caráter, à autossatisfação do que, ao
autocontrole, e à maturidade emocional do que à estatura moral. Os
prazeres são considerados mais importantes do que a fidelidade, a
honestidade, o altruísmo ou o serviço bem feito. Planejamos com mais
diligência as nossas recreações do que a nossa retidão. Não é para
surpreender que muitos crentes absorvam essa atitude (ou que essa atitude
os absorva) e, na igreja, busquem uma espiral de entusiasmo, de "altos
emocionais", de novidades, de terapias psicodélicas, de intimidades
emocionantes, de pregadores entusiastas, de cânticos estimulantes, de tudo
quanto esteja continuamente fervendo. No entanto, facilmente esquecem-se
que Deus dá prioridade ao caráter, e não aos prazeres; que o alvo de Deus ao
lidar conosco é a santidade, da qual a nossa felicidade flui como um
subproduto, na forma de contentamento na situação em que nos
encontramos. Porém, é fácil esquecer o alvo de Deus, e aquele estado mental
buliçoso que acabamos de descrever, não é espiritualmente saudável. Buscar
a santidade em Cristo deve vir em primeiro lugar; e a prática da mortificação
do pecado é um elemento essencial nessa questão, primeiramente através da
crucificação diária da carne (Gl 5.24) e, em seguida, mediante a vigilância e a
oração, a fim de ser sugada a vida daquelas concupiscências particulares que
"fazem guerra contra a alma" (1 Pe 2.11). Mais semelhança a Cristo, quanto
ao caráter, é o único sinal seguro de progresso espiritual. Mas, sem a
mortificação, dificilmente isso virá a acontecer. Mortificar o pecado é uma
das primeiras coisas que precisamos aprender a pôr em primeiro lugar, em
nossa vida com Deus.
Ademais, alguns de nós precisam de orientação. Sabemos que a santidade
é uma prioridade; procuramos manter o nosso arrependimento inicial
mediante a consagração diária; queremos andar de uma maneira digna de
nossa chamada, a cada dia de nossas vidas. Porém, encontramos em nós
mesmos aquilo que, do ponto de vista da Bíblia, precisamos intitular de
hábitos do fracasso moral: inveja, ciúmes, avareza, impaciência, apatia,
concupiscência (hetero e homossexual), egocentrismo, indolência,
indisciplina, ressentimentos amargurantes, descontentamento, arrogância,
indiferença para com as coisas importantes e assim por diante. Que
devemos fazer quanto a este fato? Esses hábitos são quais feridas abertas em
nossas vidas espirituais: precisam ser interrompidos e substituídos por
virtudes apropriadas, que sigam a imagem moral de Jesus. Mas, como?
Não há formula mágica para uma substituição de hábitos não-cristãos por
outros que lhes são opostos. Agradáveis experiências interiores do amor e da
presença de Deus, cumprindo a promessa de João 14.21-23, podem
fortalecer nossa motivação para nos aproximarmos de Deus (cf. Rm 12.1) e
tem-se entendido que essas experiências servem para abafar aqueles
frequentes anelos (por álcool, drogas, fumo, jogos de azar) que foram
estimulados pelo rancor próprio. Isto tem, algumas vezes feito com que
estas demonstrações de amor sejam erroneamente entendidas como
experiências de santificação. Porém, quando a experiência acaba, a
necessidade de buscar a mudança de caráter ainda permanece, e é somente
pelo conhecimento de si mesmo, pela autodisciplina, pela autovigilância e
pela oração motivada pela autodesconfiança, diante da tentação e da
possibilidade de retorno à rotina do hábito pecaminoso, que o avanço
acontecerá. Pessoas talentosas e vibrantes, mas com falhas em seu sistema
moral, são desequilibradas e caminham para a queda; elas não devem ser
tomadas como modelo. Se nós mesmos estamos cônscios de sermos dotados
de talentos, seremos tentados a pensar que nossas habilidades
contrabalancearão nossas deficiências pessoais; porém, isto nunca acontece.
Como é necessário um exercício regular para manter a boa saúde física,
assim também o lutar e o vencer a batalha por um caráter cristão, por meio
de imitar a Cristo e do mortificar o pecado, é o exercício regular pelo qual a
saúde espiritual é mantida. Paulo realmente deixou isto bem claro; tão claro
que seremos culpados, se nos esquivarmos do assunto.
"Morrestes, e a vossa vida está oculta juntamente com Cristo, em Deus.
Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar, então vós também sereis
manifestados com ele, em glória. Fazei, pois, morrer [mortificai] a vossa
natureza terrena: prostituição, impureza, paixão lasciva, desejo maligno e a
avareza... despojai-vos, igualmente, de tudo isto: ira, indignação, maldade,
maledicência, linguagem obscena do vosso falar. Não mintais uns aos
outros, uma vez que vos despistes do velho homem com os seus feitos, e vos
revestistes do novo homem que se refaz para o pleno conhecimento,
segundo a imagem daquele que o criou... porém Cristo é tudo em todos" (Cl
3.3-11).
O que lhe sugere a palavra "comunhão"? Uma xícara de chá no salão social
da igreja? Um pouco de conversa no pátio, após o culto? Uma caminhada
com a mocidade? Uma temporada em um acampamento? Turismo na Terra
Santa, com um grupo de pessoas da igreja? Nós frequentemente dizemos
que tivemos comunhão quando tudo o que queremos dizer é que tomamos
parte em algum empreendimento social cristão, tais como os que citamos.
Mas, não devemos nos expressar nestes termos. O fato que compartilhamos
atividades sociais com outros crentes por si mesmo não implica que tivemos
comunhão com eles. Falar assim, de fato, não significa negar que pode haver
lugar para tais atividades. Nosso problema simplesmente é que igualar estas
atividades à comunhão, e a comunhão a elas, é um abuso da linguagem
cristã.
Além disso, trata-se de um abuso perigoso e que leva ao desapontamento.
Engana-nos ao fazer-nos pensar que estamos crescendo em comunhão,
quando, o tempo todo, nossas almas podem estar famintas por comunhão.
Não é um bom sinal quando uma pessoa não reconhece a diferença entre
chupar balas e comer uma boa refeição. Por igual modo, não é um bom sinal
quando os crentes não distinguem entre as atividades sociais, em companhia
de outros crentes, e a comunhão. "Comunhão" é um dos grandes vocábulos
do Novo Testamento. Ele denota algo vital para a saúde espiritual do crente,
além de ser fundamental para a verdadeira vitalidade da igreja. É de primária
importância, pois, que tenhamos ideias claras sobre o que a comunhão
realmente significa.
A comunhão figura na primeira descrição que o Novo Testamento nos dá
sobre a vida da recém-constituída igreja. "E perseveravam na doutrina dos
apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações" (At 2.42).
Conversas, caminhadas e turismo? Não; mas algo de natureza bem
diferente, em um nível bem diferente, conforme o resto dessa passagem nos
esclarece. "Em cada alma havia temor... Todos os que creram estavam juntos,
e tinham tudo em comum. Vendiam as suas propriedades e bens, distribuindo
o produto entre todos à medida que alguém tinha necessidade. Diariamente
perseveravam unânimes no templo, partiam pão de casa em casa, e
tomavam as suas refeições com alegria e singeleza de coração, louvando a
Deus..." (At 2.43-47).
Temos aqui um quadro da comunhão, conforme o Novo Testamento a
entende. Sem dúvida, há um mundo de diferença entre esse quadro e a
maioria das atividades às quais, atualmente, chamamos de "comunhão". A
verdade é que a palavra ''comunhão'' tem sido por demais barateada. Muito
daquilo que recebe esse nome não merece ser classificado como tal, pois a
realidade da comunhão tem praticamente desaparecido de nosso meio. Essa
é uma das razões por que mesmo aqueles segmentos da igreja que
permanecem doutrinariamente ortodoxas, com frequência, são débeis e
preguiçosos, em comparação com a situação nas igrejas de um ou dois
séculos atrás. Cristo repreendeu os crentes de Laodicéia (Ap 3.17) devido à
complacência deles, supondo que possuíam tudo que precisavam, quando,
na verdade, estavam em estado de bancarrota espiritual. E certamente Ele
nos repreenderia em termos similares, por falar de modo tão presunçoso
acerca da nossa feliz comunhão, quando, de fato, a ausência de comunhão é
uma de nossas falhas mais evidentes.
Recuperar o verdadeiro significado da comunhão é, para o povo de Deus,
uma clamorosa necessidade em nossos dias. Um corpo no qual o sangue não
circula bem sempre está aquém de suas possibilidades; e a comunhão
corresponde à circulação do sangue no corpo de Cristo. A igreja adquire
forças por meio da comunhão e perde forças quando ela se faz ausente.
Portanto, devemos esforçar-nos para reaprender o verdadeiro significado
de "comunhão". Quais devem ser as nossas ideias a esse respeito? No que
consiste, essencialmente, a comunhão cristã?
A IDEIA DE COMUNHÃO
A palavra grega traduzida por "comunhão" expressa a ideia de
compartilhar ou de ter algo em comum com outrem. A participação comum
assume uma forma dupla: ou por darmos a alguém uma parcela do que
possuímos, ou por recebermos de alguém uma porção do que ele possui ou
do que ele está fazendo. Na comunhão cristã, conforme veremos, há lugar
para estas duas formas de participação.
A comunhão cristã é bidimensional: primeiramente ela é vertical; e,
depois, horizontal. O plano horizontal da comunhão, que é o nosso interesse
imediato, pressupõe a dimensão vertical, para a sua própria existência. A
dimensão vertical da comunhão foi descrita por João, quando ele escreveu:
"Ora, a nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho, Jesus Cristo" (1 Jo
1.3). Essa comunhão é aquilo que constitui um crente. De fato, a declaração
de João fornece uma definição precisa de um crente. Aquele que não goza de
comunhão com o Pai e com o Filho, por correto e piedoso que seja, nem ao
menos é um crente. A dimensão horizontal da comunhão é aquele
compartilhar habitual, aquele constante dar e receber de cada parte, o que
também é o verdadeiro e autêntico padrão de vida do povo de Deus.
A comunhão com Deus, pois, é a fonte da qual se origina a comunhão
entre os crentes; e a comunhão com Deus é o fim para o qual a comunhão
cristã é um meio. Portanto, não devemos conceber a nossa comunhão com
os demais crentes como um luxo espiritual, uma adição opcional aos
exercícios de devoção particular. Pelo contrário, devemos reconhecer que
essa comunhão é uma necessidade espiritual; pois, Deus nos constituiu de
tal modo que a nossa comunhão com Ele é alimentada pela nossa comunhão
com os irmãos na fé, requerendo ser constantemente nutrida para o próprio
aprofundamento e enriquecimento.
Quando a fé dos crentes hebreus enfraqueceu, o escritor sagrado exortou-
os a que, entre outras coisas, tivessem mais comunhão. "Consideremo-nos
também uns aos outros, para nos estimularmos... Não deixemos de
congregar-nos, como é costume de alguns..." (Hb 10.24, 25). Isso constituiu
um ponto vital na mensagem do escritor sagrado para eles. Pois o
florescimento da igreja e o fortalecimento dos crente ocorrerão somente
onde houver a comunhão. Isso não é verdade apenas sobre a igreja que está
na terra; o céu, o lugar do aperfeiçoamento da igreja, será o local da
comunhão mais livre e jubilosa. Mas, em todos os casos, tanto aqui como na
existência vindoura, a comunhão praticada pelos remidos terá como alvo,
determinado por Deus, o aprofundamento da comunhão que cada um deles
desfruta com o Redentor. A primeira verdade a ser aprendida a respeito da
comunhão cristã é que ela não é um fim em si mesmo. A comunhão entre os
crentes tem como alvo a nossa comunhão com Deus.
COMUNHÃO COM DEUS
Acerca da relação de dar e receber que existe entre os crentes e as duas
primeiras pessoas da trindade, só podemos falar aqui de passagem. Basta
dizer que se trata de uma dupla relação, na qual os participantes do lado
divino e do lado humano mostram-se ativos. A comunhão de Deus com os
homens envolve tudo quanto o Pai e o Filho têm feito, fazem e farão, a fim
de compartilharem conosco, os pecadores, a sua glória. A nossa comunhão
com Deus envolve todos os atos de dar a Ele e de receber dEle, para
podermos expressar nosso arrependimento e nossa fé. Deus se dá a nós,
como nosso Pai, com base na redenção realizada por seu Filho. Recebemos a
filiação da parte de Deus, bem como o direito a todas as bênçãos inerentes a
essa filiação, por termos recebido o Senhor Jesus Cristo como nosso
Salvador. Disse o Senhor: "Quem me recebe, recebe aquele que me enviou"
(Mt 10.40). E João nos assegura: "Mas, a todos quantos o [Cristo]
receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus" (Jo 1.12).
Essa filiação, oferecida e aceita, é o alicerce sobre o qual descansa toda a
nossa subsequente comunhão com Deus. Dia a dia, como filhos de Deus,
aceitamos agradecidos os dons que nosso Pai celestial nos outorga - a
remissão diária dos pecados, a confirmação diária das suas promessas, as
revelações diárias de sua pessoa, nas Escrituras. Diariamente, entregamos os
nossos temores e fracassos, com confiança, ao nosso Pai celeste, tirando
deliberadamente de nossos ombros a carga de preocupações, a fim de lançá-
la sobre Ele. Em poucas linhas, nisso consiste o dar e o receber - o
compartilhar com Deus - que compõe a vida de fé. Juntamente com isso
temos aquele dar e receber que constitui o arrependimento, a resposta
cotidiana aos apelos que Deus nos faz: "Dá-me, filho meu, o teu coração";
"Oferecei-vos a Deus"; "Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim";
"...dia a dia tome a sua cruz e siga-me" (Pv 23.26; Rm 6.13; Mt 11.29; Lc
9.23). Esse é o formato estrutural da comunhão do crente com Deus. Isso é,
em essência, a vida cristã.
COMUNHÃO ENTRE OS CRENTES
De que modo a comunhão entre os crentes encaixa-se nesse quadro? A
comunhão cristã é uma atividade em família da qual participam os filhos de
Deus. Tal como a comunhão com o Pai e com o Filho, a comunhão entre os
crentes é como uma rua de mão dupla, que envolve tanto o dar como o
receber de ambas as partes. Em primeiro lugar, consiste em compartilhar
com nossos irmãos na fé as coisas que Deus nos revelou sobre Si mesmo, na
esperança de que assim poderemos ajudá-los a conhecê-Lo melhor e a
enriquecerem a sua comunhão com Ele. O apóstolo João ilustrou esse
aspecto da comunhão cristã. Ele nos diz que, quando se sentou a fim de
escrever a sua primeira epístola, o seu motivo era "para que vós igualmente
mantenhais comunhão conosco", e foi com o propósito de explicar o
significado desse desejo que ele adicionou as palavras já citadas: "A nossa
comunhão é com o Pai e com seu Filho, Jesus Cristo" (1 Jo 1.3). João
esperava atrair os seus leitores àquilo que ele mesmo chegara a conhecer da
comunhão com Deus. Essa era a "comunhão conosco" que ele queria que seus
leitores tivessem.
Esse é um dos lados da comunhão cristã; mas, existe um outro. Em
segundo lugar, a comunhão consiste em procurarmos compartilhar com os
outros aquilo que Deus nos revelou acerca de Si mesmo, como um meio para
encontrarmos forças, refrigério e instrução para as nossas almas.
Na comunhão, procuramos tanto receber quando dar. O apóstolo Paulo
ilustrou esse lado da questão, escrevendo aos romanos: "Muito desejo ver-
vos, a fim de repartir convosco algum dom espiritual, para que sejais
confirmados". E, para que não desse a impressão de que pensava na
comunhão entre ele e as jovens igrejas como uma rua de mão única,
apressou-se a acrescentar: "Isto é, para que, em vossa companhia,
reciprocamente nos confortemos, por intermédio da fé mútua, vossa e
minha" (Rm 1.11, 12). A comunhão que Paulo anelava era uma comunhão de
mão dupla. Apesar dele ser um tão grande apóstolo, mostrou-se humilde e
realista o bastante ao reconhecer que precisava de comunhão, para seu
próprio encorajamento, e ao afirmar, quando ministrava a seus irmãos na fé,
que ele o fazia na esperança não somente de que lhes causaria algum bem,
mas que eles igualmente contribuiriam para o seu benefício. Alguns crentes
mais velhos na fé são orgulhosos para se deixarem ajudar nas questões
espirituais por seus irmãos mais jovens na fé. E alguns ministros não
permitem que os membros de suas congregações os ajudem. Paulo não agia
assim! Esse é o outro lado da comunhão cristã.
Portanto, a comunhão cristã é uma expressão de amor e de humildade.
Resulta do desejo de beneficiar o próximo, juntamente com um senso de
debilidade e de necessidade pessoal. Tem um duplo motivo: o desejo de
ajudar e de ser ajudado; de edificar e de ser edificado. Tem um duplo alvo -
fazer e receber o bem. Ocorre quando o povo crente busca coletivamente
conhecer melhor ao Senhor, compartilhando mutuamente aquilo que cada
pessoa já aprendeu da parte do Senhor.
O SIGNIFICADO DA COMUNHÃO
Aanálise anterior esclarece três pontos.
Primeiro, a comunhão é um meio de graça. Mediante a comunhão, aalma
da pessoa é refrigerada e nutrida; mediante o esforço de transmitir o seu
conhecimento sobre as realidades divinas, o seu entendimento dessas
realidades é fortalecido. A alma do crente é enriquecida quando os seus
irmãos na fé oram por ele, cuidam dele como irmão e compartilham de suas
provações e de seus triunfos; e quando o crente ajuda a outros, tal como ele
também é ajudado, todos amadurecem e são beneficiados. Os constantes
apelos de Paulo para que os crentes orassem em seu favor, ao mesmo tempo
em que oraria por eles (Rm 15.30; 2 Co 1.11; Ef 6.19; Cl 4.3; 1 Ts 5.25; 2 Ts
3.1, 2; Fm 22; cf. Hb 13.18), bem como o conselho de Tiago: "Confessai, pois,
os vossos pecados uns aos outros, e orai uns pelos outros, para serdes
curados...'' (5.16), confirmam isso. A comunhão cristã é um meio de graça
que negligenciamos para nossa pobreza e para nosso próprio perigo.
Em segundo lugar, a comunhão é um teste de vida. A comunhão significa
abrir nosso coração aos outros crentes. Sempre que houver fingimento ou
encobrimento, a comunhão não poderá existir. Mas somente o homem que
está sendo franco e honesto com Deus, em seu relacionamento com Ele, é
livre para abster-se do fingimento e do encobrimento acerca de si mesmo. O
homem que não permite que a luz de Deus brilhe intensamente sobre toda a
sua vida não pode ter comunhão desimpedida com os outros crentes; de
fato, ele procurará evitar a comunhão, para que a sua insinceridade não seja
detectada. Escreveu João: "Se, porém, andarmos na luz, como ele está na luz,
mantemos comunhão uns com os outros" (1 Jo 1.7), mas jamais de outro
modo.
Em terceiro lugar, a comunhão é um dom de Deus. A bênção de Paulo, em
2 Coríntios 13.13, diz: "A graça do Senhor Jesus Cristo, e o amor de Deus, e a
comunhão do Espírito Santo sejam com todos vós" - e isto certamente está
correto. Somente onde o Espírito de Deus tem sido dado, onde os homens
estão espiritualmente vivos e ansiosos por crescerem na graça e ansiosos por
ajudarem outros a fazer o mesmo, que a comunhão torna-se possível. É
somente quando o Espírito Santo nos capacita a falar com os outros, e os
outros conosco, de tal modo que Cristo e o Pai se tornam conhecidos através
daquilo que é dito, que a comunhão torna-se uma realidade. Quando
procuramos desfrutar de comunhão, devemos fazê-lo dependendo do
Espírito, a terceira pessoa da Trindade, cujo ofício consiste em revelar-nos a
pessoa de Cristo. Doutra forma, nossas conversas uns com os outros serão
vazias e sem proveito, e o alvo de nossa comunhão - uma mais profunda
familiaridade com nosso Senhor - nunca será alcançado.
O CAMINHO DA COMUNHÃO
Quando a comunhão se torna uma realidade?
Aresposta para essa pergunta torna-se clara através daquilo que já foi
dito. A comunhão torna-se uma realidade sempre que dois ou mais crentes,
desejando ajudar-se mutuamente a conhecerem melhor a Deus, de fato
compartilham um com o outro do conhecimento de Deus que ambos
individualmente já possuem. Isso pode suceder em muitas circunstâncias: na
pregação, na oração coletiva, nas conversas particulares com um pastor, nos
grupos de estudos bíblicos, nos diálogos entre amigos crentes às refeições ou
quando marido e mulher sentam-se em uma sala a fim de conversar. Porém,
o que sucede em cada caso é sempre o mesmo: a presença e o poder do
Senhor são percebidos, e Ele toma-se mais conhecido, mediante as palavras
ditas por aqueles crentes. Pois a promessa de Jesus, "onde estiverem dois ou
três reunidos em meu nome, ali estou no meio deles" (Mt 18.20), aplica-se
tanto às reuniões informais de comunhão como às reuniões públicas de
adoração. Ela tanto se cumpre quando dois crentes se encontram para
compartilhar coisas espirituais, como quando uma congregação se reúne aos
domingos.
O que impede a comunhão? Quatro coisas, pelo menos.
O primeiro obstáculo é a autossuficiência. Não pode haver comunhão
enquanto as pessoas não percebem que dependem umas das outras para
receberem ajuda espiritual. Uma atitude de autossuficiência espiritual pode
refletir o estado de morte espiritual do não-convertido, para quem todas as
coisas espirituais parecem irreais; ou pode refletir a miopia espiritual de
crentes indolentes (cf. Hb 5.12ss.; Rm 12.1-3) - os quais podem ser até
mesmo velhos na fé. Esta atitude também pode ser a racionalização de
alguém que, pelo orgulho, pelo senso de culpa ou pela hipocrisia consciente,
ou mesmo por todos esses três defeitos, não está disposto a compartilhar as
suas necessidades espirituais e a pedir ajuda de outros. Porém, qualquer que
seja a causa, a autossuficiência exclui a comunhão desde o seu início.
O segundo obstáculo é o formalismo. Alguns compreendem que a
comunhão cristã se resume em envolver-se na adoração pública com uma
postura correta, sobretudo na ocasião da Ceia do Senhor, e evitam qualquer
comunhão mais íntima. Essa atitude tem diminuído em nossos dias,
especialmente através do informalismo do movimento carismático, embora
haja lugares onde ela persiste. Uma vívida adoração litúrgica certamente é
comunhão cristã, mas esta não se limita à adoração litúrgica, e eu espero que
isto já esteja claro para meus leitores.
O terceiro obstáculo é a amargura, que se expressa por constantes
atitudes de hostilidade. Hebreus 12.15 nos adverte sobre a perturbação que
uma raiz de amargura pode causar. A amargura parece derivar-se mais
frequentemente do orgulho ferido e da malícia defensiva, de algum senso de
injustiça, de maus-tratos ou de traição, ou então da inveja que se ressente
em face dos dons, da posição ou do sucesso de outrem. A inveja, em
particular, torna-se uma raiz oculta de amargura, exprimindo-se em
controvérsias, em frieza pessoal, em maledicência (que alguém definiu como
a arte de confessar os pecados alheios), em protesto ou em divisionismo. Na
comunhão autêntica, cujo alvo é tornar a outra pessoa mais hábil para Deus,
há um lugar próprio para a crítica construtiva. A crítica pode ser exigida pelo
amor, como os pais o sabem, mas ela precisa ser construtiva, e não
destrutiva, oferecida com gentileza e restrição, por alguém que esteja
consciente de ser ele mesmo um pecador e que reconhece que todos nós
aceitamos bem pouco qualquer crítica. Entretanto, quando o motivo por
detrás da crítica é a amargura, ela acontecerá de modo arrogante e
desenfreado, que nega a comunhão, ao invés de promovê-la.
O quarto obstáculo é o elitismo, uma atitude de superioridade que produz
"panelinhas" alicerçadas sobre o exclusivismo. Trata-se de uma imitação
satânica da verdadeira comunhão, da qual nada é excluído, exceto a
incredulidade. Quando grupos superentusiasmados se reúnem para formar
associações baseadas em pequenas peculiaridades doutrinárias ou na atração
magnética de um líder, o orgulho sobressai e a comunhão definha.
Essa lista de obstáculos à comunhão poderia ser mais minuciosa, mas sem
dúvida não há necessidade disso. Do que já foi dito, não deve haver
dificuldade alguma para responder à pergunta: Por que não desfrutamos de
comunhão? onde quer que essa pergunta seja feita. Prossigamos. Podemos
extrair algumas conclusões do que já foi dito.
A primeira delas é que hoje os crentes de todas as idades precisam de
comunhão. Ninguém é espiritualmente autossuficiente; Deus não nos criou
assim. Sem a comunhão, tenhamos consciência disso ou não, seremos e
permaneceremos crentes fracos. Essa é uma das leis da vida espiritual. Já
citamos a sábia e veraz declaração de Wesley, que nada é mais anticristão do
que um crente solitário.
A segunda é que hoje os crentes sentem falta de comunhão. Temos muitas
reuniões de "comunhão" de diferentes tipos, mas a realidade da comunhão
se faz ausente. Na verdade, raramente ela é procurada. Isso sucede porque,
em nossa maneira de pensar, temos substituído a ideia bíblica e trinitária da
comunhão, na qual nos ajudamos mutuamente e nos aproximamos mais do
Pai e do Filho, mediante o Espírito Santo, pela ideia secular e social de
comunhão como uma reunião informal e divertida. Consequentemente,
pensamos que estamos desfrutando de comunhão quando, na realidade, não
a estamos experimentando de modo algum. Precisamos de uma aquilatação
mais realista de nossa situação a esse respeito.
A terceira é que hoje os crentes devem buscar a comunhão. Tanto crentes
solitários e isolados, espiritualmente famintos e desencorajados, como
também membros de igrejas prósperas que são atarefados obreiros cristãos -
todos precisam de comunhão e deveriam esforçar-se para obtê-la. Os
Puritanos costumavam solicitar a Deus algum "amigo do peito", com o qual
pudessem compartilhar absolutamente de tudo e pudessem manter um
intenso companheirismo no terreno da oração. Juntamente com isso, eles
anelavam por grupos de conversação sobre as coisas divinas e
frequentemente estabeleciam grupos desse tipo. Seríamos sábios se
seguíssemos o exemplo deles em ambas as coisas. Na história e na teologia, a
comunhão e o avivamento avançam de mãos dadas - de fato, um renovado
espírito de comunhão entre os crentes é um dos aspectos do avivamento. À
medida em que valorizamos a saúde de nossas próprias almas e da igreja
cristã, precisamos aprender a valorizar a comunhão e trabalhar para colocá-
la no lugar que lhe cabe, como um meio de graça, para todos os membros do
corpo de Cristo.
"Todavia, ele não teve uma vida mal sucedida em sua profissão, e o único
intruso com o qual não pôde lidar foi a morte.'' Assim, no fim de seu mais
poderoso romance, Charles Williams encerrou a história do distinto jovem
que não tinha critério de valores, exceto para aquilo que lhe seria útil. As
palavras de Williams serviriam de epitáfio para muitos de nossos dias, pois
mostram, com grande exatidão, como a morte alcança o homem natural. De
fato, a morte chega de forma intrusa, sem ser convidada e com a qual não se
pode barganhar. E quando um homem vê que ela se aproxima, o pânico
brota. Sem importar quão brava ou indiferente seja a sua fisionomia fingida,
intimamente ele se sente isolado, paralisado, exaurido de forças. De fato, o
homem é incapaz de enfrentar a morte.
Disse James Denney que, de todas as experiências humanas, a mais
universal é a má consciência. Se isso é assim, então a segunda experiência
em ordem de abrangência é a morte. A epístola aos Hebreus descreve os
remidos como pessoas que "pelo pavor da morte, estavam sujeitos à
escravidão por toda a vida" (Hb 2. 15). A humanidade inteira conhece a
morte pelo que é chamada em Jó 18.14: "Rei dos terrores". Todas as épocas e
culturas têm achado traumatizante a ideia da morte: ela choca, abala,
debilita. Por todo o mundo, as pessoas ficam embaraçadas e aturdidas, se
alguém lhes fala acerca da morte. Por toda a parte, a experiência da perda de
um ente querido, ou da morte de um amigo, abala profundamente as
pessoas, e a expectativa da morte lança os inválidos em desespero apático
(esse é um dos motivos por que os médicos e os funcionários dos hospitais,
frequentemente de forma cruel, procuram ocultar dos moribundos a
verdadeira condição deles) . Por dezenove vezes a Bíblia chama de "sombra"
a expectativa da morte, e essa figura de linguagem destaca bem os nossos
sentimentos a respeito dela. Vemos a morte avultando-se à nossa frente
como uma ameaça negra e grosseira, projetando sombras diante de si,
escurecendo os nossos momentos mais radiantes com arrepios e melancolia.
Dia a dia aproximamo-nos mais da morte e o brilho da vida terá
desaparecido para sempre. Teremos passado à região tenebrosa. Quando
contemplamos aquela passagem, sentimo-nos estranhamente intranquilos.
O que há além da escuridão? Quando esta vida termina, o que começa? Essa
indagação preocupa as pessoas mais do que usualmente elas querem admitir.
Alguns, é natural, desprezam-na resolutamente. Pensar sobre a morte,
dizem eles, é melancólico, e pessoas que têm a mente saudável não fazem
isso. Porém, é duvidoso que a atitude deles seja a mais sábia. Pois, em
primeiro lugar, considerar a morte nada mais é do que um realismo sóbrio,
visto que a morte é a única grande certeza da vida. O escapismo que faz um
homem fechar os olhos diante da expectativa da morte é tão estúpido
quanto é neurótico e desmoralizante; não demonstra maior saúde mental do
que a chamada atitude "vitoriana" diante do sexo. Se pensamos que é
necessário para a saúde mental e moral enfrentar os "fatos da vida" relativos
ao sexo, devemos lembrar que um fato muito mais fundamental da vida
haverá de interrompê-la, mais cedo ou mais tarde; e não devemos duvidar da
necessidade de encarar esse fato, se a nossa concepção da vida for saudável.
Filipe da Macedônia mostrou-se sábio quando encarregou um escravo de
lembrá-lo, a cada manhã: "Filipe, lembre-se que você haverá de morrer".
Alguns de nós receberiam bem lembretes como esse.
Nestes últimos anos, a comunidade científica tem estudado intensamente
a morte física e o processo da morte. O desenvolvimento de técnicas
médicas para reavivar o coração tem anulado a antiga noção de que a morte
ocorre quando o coração cessa de bater, para dar lugar ao conceito de um
processo de morte que se torna irreversível quando as ondas elétricas
cessam no cérebro, cerca de vinte minutos após o coração ter deixado de
bater. Muitos têm narrado diversos tipos de experiência entre o momento
em que o coração para e o momento em que reinicia as suas batidas; e os
exponentes do oculto têm se agarrado a algumas dessas experiências como
revelações sobre o destino humano. Porém, visto que nenhuma delas pode
nos dizer o que sucede quando o processo da morte se completa e quando o
cérebro perde totalmente a consciência, o homem sábio não considera que
tais experiências sejam decisivas acerca de qualquer coisa. Aquele que é sábio
também não pensará que a curiosidade sobre a morte, que todos esses
estudos têm despertado, contribuirá para diminuir o efeito traumatizante
naquele que se questiona para onde irá, após a saída deste mundo.
Parece óbvio que os jovens são mais capazes de pensar corretamente
acerca da morte do que qualquer outro grupo de pessoas. Pois quando o
senso da própria individualidade e das ilimitadas possibilidades da vida
acaba de cristalizar-se na mente, o real horror da morte que se avizinha
golpeia com mais vigor e mais dolorosamente do que já fizera antes ou o fará
depois. Muitos jovens, entre os quinze e os vinte e cinco anos de idade,
algumas vezes ficam deitados à noite, solitários, a meditar: "Estou apenas
começando a viver. Mas, que horror, terei de morrer!" E tal pensamento fere
como um forte soco no estômago. As pessoas dessa faixa etária encaram a
morte como uma anormalidade, um ultraje cósmico, que zomba de todos os
seus recém surgidos anseios pela verdade, pela beleza e pela realização
pessoal. A dúvida corrói. Haverá algum sentido em seguir objetivos dignos,
se, no fim de nossa inquirição, ou mesmo antes, teremos de morrer? Em
geral, é somente durante a juventude que esse ultrajante senso acerca da
morte se manifesta com vigor. Na meia-idade, a visão da juventude é
nublada, e a pessoa simplesmente se resigna a morrer no devido tempo,
como uma necessidade natural (embora nem por isso venha a amar a
morte). Quando chega a idade avançada, esta visão está quase esquecida, e a
vitalidade física cai a um nível tão baixo que a morte pode até mesmo ser
bem recebida, como uma libertação. Todavia, o adulto jovem vê a morte
como um monstro malévolo e se ressente; e, por causa disso, ele mostra que
seu senso da realidade é mais agudo do que o de pessoas mais velhas. Pois a
morte, na verdade, é uma anormalidade, segundo veremos a seguir.
A NATUREZA DA MORTE
Quando uma pessoa morre por doença ou velhice, chamamos isso de
"morte natural", reservando a expressão "morte provocada" para os casos de
acidente ou de violência. A Bíblia confirma nosso sentimento instintivo de
que, no seu sentido mais profundo, toda morte é anormal. O que é a morte?
É a dissolução da união entre o espírito e o corpo: "O pó volte à terra... e o
espírito... a Deus, que o deu" (Ec 12.7). Há aqui uma referência à narrativa da
criação. Tal como no começo Deus criou o homem, soprando vida no que era
apenas pó (Gn 2.7), assim também agora, na morte, Deus o desfaz ao menos
em parte, separando as duas realidades que originalmente ele havia unido.
Para o homem, essa desintegração é altamente anormal. Eis a razão por que
pessoas sensíveis ficam perplexas diante de cadáveres. Alguns dizem que os
mortos têm um ar pacífico, mas isso não é verdade. O fato é que os
cadáveres parecem vazios. É o vazio evidente em que se encontram que nós
achamos debilitante - o senso de que a pessoa, cujo corpo e cujo rosto
continuam ali, simplesmente se foi.
A morte significa o aniquilamento da pessoa? Certamente que não. Nos
termos de Paulo, a morte é o "despir-se" de uma pessoa, por meio do
desmontar de seu "tabernáculo" (2 Co 5.1, 2). Mas a morte não é o fim da
existência pessoal do indivíduo. Em toda parte, a Bíblia admite a existência
perpétua da pessoa. O Antigo Testamento descreve o morto como quem
"desce" (uma metáfora natural) ao lugar que ela chama de sheol (na
Septuaginta e no Novo Testamento grego, hades). As versões traduzem tanto
sheol como hades por "inferno", mas essa tradução é errônea, pois nenhum
daqueles termos implica em qualquer infelicidade ou não por parte dos seus
residentes. Apenas algumas versões recentes retêm os nomes originais,
transliterando-os, e não traduzindo-os.
O sheol, no entanto, é a habitação final dos mortos. A Bíblia retrata o
esvaziamento do hades, quando os mortos ressuscitarem para julgamento,
no retorno de Cristo (Jo 5.28, 29; Ap 20.12, 13; Dn 12.2, 3). Aqueles cujos
nomes foram inscritos no livro da vida (Ap 20.12) serão recebidos com
alegria para a eterna bem-aventurança ("a vida eterna", Mt 25.46; "glória,
honra e paz", Rm 2.10; o reino, Mt 25.34; a nova Jerusalém, Ap 21.2 - 22.5).
Os demais, porém, experimentarão a mais extrema manifestação do
desprazer divino ("fogo inextinguível", Mt 3.12; Mc 9.43; a geena - que era o
lugar de incineração, fora de Jerusalém - "onde não lhes morre o verme, nem
o fogo se apaga", Mc 9.47, 48; "nas trevas", onde há "choro e ranger de
dentes", Mt 25.30; "o castigo eterno", Mt 25.46; "o fogo eterno, preparado
para o diabo e seus anjos", v. 41; "ira e indignação... tribulação e angústia",
Rm 2.8, 9; "a eterna destruição, banidos da face do Senhor", 2 Ts 1.9; "o lago
que arde com fogo e enxofre, a saber, a segunda morte", Ap 21.8; cf. 20.15).
Alguns afirmam que esses textos ensinam o aniquilamento dos rejeitados
- torrando por um breve momento e, então, o esquecimento eterno. Porém,
é claro que a "segunda morte" não é a cessação da existência, tal como não o
é a primeira morte. Pois (a) a palavra traduzida por "destruição", em 2
Tessalonicenses 1.9 (no grego, olethros), não significa aniquilamento, mas
ruína (cf. seu uso em 1 Tm 6.9); (b) Ainsistência, nesses textos, de que o
fogo, o castigo e a destruição são eternos (no grego, aiõnios, literalmente,
"por toda a era") e de que o verme na geena não morre seria sem sentido e
impróprio, se tudo quanto estivesse em foco fosse uma extinção súbita;
assim como o seria permanecer em dor "interminável", como resultado de
um fatal ferimento à bala. Ou essas palavras indicam que os tormentos serão
intermináveis, ou são supérfluas e enganadoras; (c) Diante do argumento
que aiõnios significa apenas "relativo à era vindoura", sem qualquer ideia de
duração infinita, parece suficiente dizer que se em Mateus 25.46 "vida
eterna" significa bem-aventurança eterna, como certamente é o caso, então a
punição "eterna", aqui mencionada, também deve ser interminável; (d)
Somos informados que no "lago do fogo" ("o fogo eterno, preparado para o
diabo e seus anjos", Mt 25.41) o diabo será atormentado "de dia e de noite
pelos séculos dos séculos" (Ap 20.10). Que qualquer ser humano para ali
enviado compartilhará da mesma sorte, torna-se claro através da linguagem
paralela de Apocalipse 14.10, 11: "será atormentado (todo adorador da
besta) com fogo e enxofre... A fumaça do seu tormento sobe pelos séculos
dos séculos, e não têm descanso algum, nem de dia nem de noite".
É evidente que esses textos não ensinam a extinção, e, sim, a perspectiva
muitíssimo pior de uma interminável percepção do justo e santo desprazer
do Senhor. Por mais terrível que isso nos pareça, e por mais repugnante que
achemos o simbolismo apocalíptico judaico, segundo o qual Cristo e seus
apóstolos falaram (afinal de contas, estamos na era pós-holocausto), um
inferno interminável não pode ser removido do Novo Testamento, assim
também como o céu interminável não o pode. Eis por que a morte física (a
primeira morte) é uma perspectiva tão espantosa para quem não tem a
Cristo; não porque significa a extinção, mas precisamente por não ter esse
significado ao referir-se à interminável dor da segunda morte. O ímpio
entende isso de modo obscuro, mediante a revelação geral de Deus (Rm
1.32). Não admira, pois, que ele tema a morte.
No Antigo Testamento, as alusões à morte indicam, pelo menos
superficialmente, a dissolução física. Porém, no Novo Testamento, o
conceito da morte é radicalmente aprofundado. Ali, a morte é vista
primariamente como um estado espiritual, o estado da humanidade sem
Cristo. Assim como a morte física significa a separação entre o espírito e o
corpo, assim também a morte espiritual expressa um estado em que o
homem encontra-se separado de Deus, cortado do seu favor e da comunhão
com Ele, "mortos em... delitos" (Ef 2.1, 5; cf. Mt 8.22; Jo 5.24; Rm8.6; Cl
2.13; 1 Tm 5.6). Na Bíblia, "vida" denota reiteradamente a alegria da
comunhão com Deus (cf. 1 Jo 5.12). Da mesma forma, o estado de quem
está alienado dessa "vida de Deus" (Ef 4.18)é equivalente à "morte".
Precisamos ser libertos, antes de tudo, da morte espiritual.
A MORTE E O PECADO
Por toda a Bíblia, a morte, em seu aspecto físico e em seu aspecto
espiritual, é vista como um mal judicial, o julgamento de Deus contra o
pecado (cf. Ez 18.4). Como diz Paulo, a morte é o "salário" pago aos
empregados do pecado (Rm 6.23). Quando Deus disse a Adão: "...no dia em
que dela [da árvore do conhecimento do bem e do mal] comeres, certamente
morrerás" (Gn 2.17), a referência primária e evidente era à dissolução física,
conforme Gênesis 3.19. (As palavras "no dia em que" exprimem certeza de
sequência, e não, necessariamente, proximidade temporal. Compare o uso da
mesma frase em 1 Reis 2.37. Adão não morreu senão vários séculos mais
tarde - Gênesis 5.5). Portanto, quando Paulo diz, em 1 Coríntios 15.22,
"assim como em Adão todos morrem", o contexto mostra-nos que ele tinha
em mente apenas a morte física, que Cristo abolirá pela ressurreição dos
mortos.
Mas, em Romanos 5.12ss., quando ele faz menção do fato que Cristo
livrou "muitos", que Lhe pertencem, da "morte" na qual Adão os envolveu, a
sua referência é mais ampla. Pois o livramento ali exposto não é meramente
a ressurreição física (de fato, a ressurreição física nem mesmo é mencionada
naquela passagem). Antes, está em pauta a "justificação" presente (vv. 16-
19), que leva à restauração da "vida" (vv. 17, 18, 21), em outras palavras, a
cura daquele relacionamento corrompido que o homem tem com Deus, do
qual a morte física serve somente de prova e emblema. Portanto, implícito
em Gênesis 2.17, também achamos uma referência à morte espiritual, que
foi retratada quando Deus expulsou o homem do jardim do Éden (o lugar da
comunhão), a fim de impedi-lo de comer do fruto da árvore da vida.
O que teria sucedido ao homem, no fim de seu período de prova sobre a
terra, se ele não tivesse pecado? Teria morrido fisicamente?
Presumivelmente, não; pelo menos no sentido em que ele agora morre.
Talvez Deus o teria apenas "tomado", como fez com Enoque e Elias (Gn 5.24;
2 Rs 2.1, 11). Alguns pensam que ele teria sido fisicamente transfigurado, a
exemplo de Cristo (Mc 9.2ss.). Porém, tudo isso é especulação sobre um
assunto que as Escrituras silenciam; e, perguntas acerca das quais a Bíblia
nada responde devem ser deixadas sem respostas.
O CARÁTER DECISIVO DA MORTE
O mundo usualmente refere-se à morte física apenas como um ponto
final, o fechar da porta para a vida terrena de alguém. Mas, o Novo
Testamento também a encara como um começo - abrir da porta para o
destino de alguém, a nova vida na qual a pessoa começa a colher o que
semeou (cf. 2 Co 5.10; Gl 6.7).
No Antigo Testamento, é verdade, encontramos os santos procurando evitar
a perspectiva da morte, crendo que no sheol, embora Deus não estivesse
ausente do mesmo (Sl 139.8), não poderiam desfrutar daquela comunhão
doce e íntima com o Senhor, conforme haviam desfrutado na terra (cf. Sl
88.10-12; 115.17; Ec 9.5, 10; Is 38.18; etc.). O Novo Testamento parece
sugerir que os santos do Antigo Testamento estavam, de fato, esperando até
que o próprio Cristo entrasse no sheol, antes que a comunhão deles com
Deus, na Sião celestial, viesse a ser aquela comunhão completa e perfeita que
agora é (cf. Hb 11.40 com 12.18-23).
Seja como for, o Novo Testamento deixa claro que, nestes " últimos dias",
as rodas da retribuição divina estão girando a partir do momento da morte
física e cada pessoa imediatamente começa a experimentar, de modo
intenso, aquela relação com Deus (se, durante a vida terrena, ouviu o
evangelho) e com Jesus Cristo; relação essa que ela preferiu ter durante a
sua vida neste mundo - ou ficando com Deus e Cristo, que significará um
paraíso e gozo (Lc 23.43; Fp 1.23; 2 Co 5.6-8; cf. At 7.55-59), ou ficando sem
Eles, nas trevas espirituais de uma existência egocêntrica e voluntariosa (cf.
Jo 3.19), uma condição que provoca a mais autêntica agonia, quando a
pessoa começa a compreender o que perdeu (Lc 16.23ss.). Para aqueles que
estão com Cristo, em sua graça Deus faz com que a nova vida seja
caracterizada por uma alegria crescente, sem qualquer dor (Ap 7.15ss.). Mas,
para aqueles que estão sem Cristo, Deus, em sua justiça retributiva, faz com
que a nova forma de existência caracterize-se por dores crescentes, sem
qualquer gozo (Lc 16.25). Assim sendo, a predição de nosso Senhor já está se
cumprindo: "A todo o que tem dar-se-lhe-á; mas ao que não tem, o que tem
lhe será tirado" (Lc 19.26).
Porém, será tarde demais para mudar. Após a morte, é posto "um grande
abismo" entre aqueles que Deus aceita e aqueles que Ele rejeita (Lc 16.26). O
tempo da escolha terá passado. Tudo quanto restará da escolha já feita, será
receber as consequências, até certo grau, no "estado intermediário", e mais
plenamente após a ressurreição e o julgamento final (cf. Hb 9.27). Nada há
de arbitrário quanto à doutrina da punição eterna. Em sua essência, ela
mostra que Deus respeita a nossa escolha, dando prosseguimento, por toda
a eternidade, à condição espiritual na qual preferimos ficar enquanto
estávamos na terra.
Para muitos, isso parece um ensino doloroso e indesejável. Mas seremos
sábios se não o ignorarmos. Pois, grande parte desse ensino vem
diretamente de nosso Senhor. Uma reação melhor será vivermos conforme
viveram os santos antes de nós, sub specie aeternitatis – à luz da eternidade.
Com toda a razão orou o salmista: "Ensina-nos a contar os nossos dias, para
que alcancemos coração sábio" (Sl 90.12). Murray M'Cheyne pintou um pôr-
do-sol sobre o mostrador de seu relógio, para lembrar-se de quão pouco
tempo dispunha. Alguém declarou, com verdade, que teremos a eternidade
inteira para nos regozijarmos nas vitórias ganhas por Cristo, mas apenas
poucas horas, neste mundo, para conquistá-las. Todos nós precisamos ser
despertados para o senso da brevidade de nosso tempo, bem como para a
eterna significação do momento presente.
OUTROS PONTOS DE VISTA
"Acabei de ler o seu artigo sobre a morte e o achei revoltante". Assim
começava a carta, enviada por um amado evangelista irlandês, atualmente
na glória, quando os parágrafos acima apareceram em forma impressa.
Outros podem sentir o mesmo, e talvez nada haja que eu possa fazer a
respeito; porém, vejamos se mais algum esclarecimento bíblico poderá
ajudar.
Quais são as alternativas quanto ao caráter decisivo da morte física, que
acabei de demonstrar? Somente três: imortalidade condicional, evangelismo
após a morte e universalismo. Consideremos essas três alternativas.
A imortalidade condicional (a doutrina da aniquilação dos rejeitados no dia
do julgamento) foi negada acima, por razões bíblicas. Em sua carta, aquele
meu amigo evangelista lembrou-me que diversos famosos evangélicos
britânicos que estudaram na Universidade de Cambridge, no período entre
as duas grandes guerras mundiais, defenderam o condicionalismo. Isso é
verdade, mas não penso que isso lhe dê o direito de afirmar: "Você só citou
trechos bíblicos que favorecem a sua teoria e ignorou o resto". "O resto" não
é texto bíblico, mas apenas interpretação. Seja dito claramente que não há
uma única passagem bíblica da qual o condicionalismo pode, com confiança,
ser concebido. Há passagens que podem ser interpretadas como
condicionalismo; e, como vimos, com muita dificuldade podem ser
interpretadas como tal; porém, são passagens sobre as quais é necessário
haver um arrazoamento especial para o condicionalismo manter-se de pé.
Como alguém que está interessado somente no que a Bíblia realmente diz,
querendo apenas o seu sentido natural, devo dizer que esse arrazoamento
especial com o qual me tenho deparado não é convincente.
De fato, a mola mestra do condicionalismo não é exegética, mas teológica.
Sobre a suposição que a honra e a glória de Deus não requerem a
continuação da existência dos perdidos, em condição de miséria, após o
juízo, alguns afirmam que se Deus não os aniquilar, então, estará sendo
desnecessariamente cruel. Tal argumento, porém, derrota a si mesmo; pois
pressupõe que Deus também é desnecessariamente cruel ao manter os
perdidos em uma existência de miséria, durante o estado intermediário (Lc
16.23ss.), até ao dia do julgamento final. Antes, se assim fosse, Deus deveria
aniquilá-los por ocasião da morte física - o que, conforme a Bíblia ensina
claramente, não o faz. Na realidade, um julgamento justo e merecido não é
crueldade, e a posição da Bíblia é que o destino determinado por Deus para
os ímpios é um julgamento justo (cf. Lc 12.47, 48; Rm 2.5-16) e contribui
para o seu louvor (cf. Ap 16.5-7; 19.1-3).
O evangelismo após a morte, que alcançaria todos quantos nunca ouviram
o evangelho pregado de forma "inteligente", também foi defendido por meu
amigo evangelista. Porém, não há qualquer prova bíblica para isso. Os
versículos misteriosos de 1 Pedro 3.19, 20 não podem ser pressionados de
forma a servir de base para a ideia. Pois (a) os "espíritos em prisão" podem
ser homens ou anjos caídos (cf. Gn 6.1-4; Jd 6); (b) a declaração de que
Cristo pregou aos espíritos que foram desobedientes nos dias de Noé
subentende, mais naturalmente, que a pregação foi direcionada somente a
estes; (c) "pregou" (no grego, keryssõ), não sendo especificada a mensagem,
implica simplesmente uma proclamação do triunfo de Cristo, e não um
oferecimento de vida. Assim, esses versículos não provam que haja um
evangelismo universal após a morte física; nem o prova qualquer outro
trecho bíblico. Além do mais, há textos claros que rebatem essa noção, mais
notavelmente aqueles que encaram a vida presente como decisiva para a
vida futura (2 Co 5.10; Gl 6.7, etc.).
De qualquer modo, aqueles que nesta vida não ouviram o evangelho
apresentado "inteligentemente", ainda assim dispunham da luz de Deus em
suas consciências, luz essa que eles atenderam ou rejeitaram, levando-os a
buscar ou não o Deus acerca de quem receberam tais indícios. Podemos
afirmar isto com segurança: (a) Se algum pagão chegou ao ponto de
entregar-se à misericórdia do Criador, em busca de perdão, foi a graça divina
que o levou àquele ponto; (b) Deus certamente salva a qualquer um que Ele
traz a esse ponto (cf. At 10.34, 35; Rm 10.12, 13); (c) qualquer pessoa assim
salva saberá no outro mundo que foi salva por Cristo. Porém, o que não
podemos afirmar com segurança é que Deus já tenha salvado alguém dessa
maneira. Simplesmente não o sabemos. A nossa certeza é que "a ira de Deus
se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens que detêm a
verdade pela injustiça" (Rm 1.18); e Paulo não hesitou em ecoar a
generalização do salmista: "Não há justo, nem sequer um" (Rm 3.10; cf. vv.
9-18). Deus não deve a apresentação do evangelho a quem quer que seja,
quanto menos uma apresentação "inteligente".
O universalismo, a terceira dessas alternativas, usualmente é apresentado
como uma forma otimista do ensino da ''segunda oportunidade''. Assim,
todos aqueles que foram criados por Deus, mas que não se voltaram para Ele
nesta vida, encontrar-se-ão com Ele, em Cristo, após a morte, e Deus os
levará a amarem-No, ainda que tenha de enviá-los para uma geena
purgatorial por algum tempo, a fim de fazê-los cair em si. Contudo, esse não
era evidentemente o ponto de vista de Cristo (Mt 12.32; 26.24), nem é esse
o sentido natural ou necessário de qualquer texto bíblico divorciado de seu
contexto.
Um dos grandes detetives dos livros de ficção estabeleceu como regra que
depois de terem sido eliminadas todas as impossibilidades, deve ser verdade
aquilo que restar, mesmo que improvável. Por igual modo, um teólogo sabe
que depois que alguém já eliminou todas as opções não-bíblicas, aquilo que
resta, ainda que seja desagradável, deve ser a verdade divina. Não assevero
que a posição aqui exposta sobre a perdição eterna é agradável e consoladora
para que alguém conviva com ela. Afirmo apenas que ela é ensinada por
Cristo e pelo Novo Testamento, e deve ser tomada a sério.
A VITÓRIA SOBRE A MORTE
Se você não pode entender a morte, então também não pode entender a
vida. Qualquer filosofia que não nos ensine dominar a morte nada vale para
nós. É nessa altura que os filósofos batem em retirada, vencidos, e o
evangelho assume o lugar que lhe cabe. Pois o domínio sobre a morte, em
certo aspecto, é o tema central do evangelho - o tema que John Owen
sumariou como a morte da morte na morte de Cristo.
Aressurreição de Cristo não foi uma mera ressurreição temporária, como
o foram as ressurreições de Lázaro, da filha de Jairo e do filho da viúva de
Naim. "...havendo Cristo ressuscitado dentre os mortos, já não morre: a morte
já não tem domínio sobre ele... vive para Deus" (Rm 6.9, 10). "Estive morto,
mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos, e tenho as chaves da morte e
do inferno" (Ap 1.18). A ressurreição de Cristo proclamou e garantiu ambos,
no presente: o perdão e a justificação para o seu povo (Rm 4.25; 1 Co 15
.17), como também a corressurreição com Cristo, em novidade de vida
espiritual (Rm 6.4-11; Ef 2.1-10; Cl 2.12, 13; 3.1-11). Essa corressurreição
espiritual será acompanhada, por ocasião do retorno de Cristo, pela nossa
transformação física, sem experimentarmos a morte, se porventura
estivermos vivos (Fp 3.21), ou pelo nosso revestimento, se tivermos
morrido (cf. 2 Co 5.4, 5; 1 Co 15.50-54). Isso significará a destruição final da
morte, como um intruso, hostil e destruidor, no mundo de Deus (1 Co
15.26, 54, 55).
Entrementes, o temor da morte física, que se origina do senso que a
morte é a porta para o sofrimento e para o juízo (Hb 2.15), foi abolido para o
crente. Foi arrancado o aguilhão da morte (1 Co 15.55, 56), por meio do
conhecimento de que os nossos pecados foram perdoados e de que ''nem
morte, nem vida... nem cousas do presente, nem do porvir... nem qualquer
outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo
Jesus nosso Senhor" (Rm 8.38, 39). Atualmente, a morte física consiste em
um "dormir" (isto é, descanso e refrigério, Ap 14.13; não em inconsciência)
"em Jesus" (1 Co 15.18, 51; 1 Ts 4.13ss.; At 7.60) - um "dormir" que começa
com a vinda de Cristo para receber para Si mesmo aqueles para os quais Ele
tem preparado um lugar (Jo 14.2, 3). Esses partem para "estar com Cristo, o
que é incomparavelmente melhor" (Fp 1.23).
O crente pode conceber, com razão, o dia de sua morte como uma data
registrada no diário de Jesus. Chegado o dia marcado, o Salvador aproxima-
se a fim de conduzir o seu servo para a luz de sua presença íntima e para
uma comunhão mais achegada com Ele. Por conseguinte, morrer, por mais
difícil e doloroso que seja em termos físicos, torna-se uma jubilosa jornada
para o crente. Houve uma peça teatral há alguns anos, em Londres, com o
notável título de Feliz Dia da Morte. Para o crente, a morte será justamente
isso. A comunhão com Cristo e com Deus, por meio de Cristo, uma vez que
tenha início aqui na terra, jamais termina. Através da morte, através do
"estado intermediário", entre a morte e a ressurreição, e para sempre, Cristo
estará com o seu povo. Nisso consiste a vida eterna. Dessa forma, Ele
cumpre a sua promessa feita a Marta,quando ela lamentava por Lázaro: "Eu
sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá; e
todo o que vive e crê em mim, não morrerá, eternamente" (Jo 11.25, 26).
Assim é vencida a morte, e, como Margaret Baxter, o crente pode dizer
calma e alegremente:
Estejamos Preparados
Há três séculos, corria uma crônica sobre a visita que um estudante fez a
Thomas Goodwin, o presidente puritano do Magdalen College, em Oxford.
Na penumbra do seu escritório, Goodwin abriu o diálogo indagando ao seu
visitante se ele estava preparado para morrer. O jovem fugiu. Naquela época,
isso era contado como uma piada, como o seria em nossos dias. Mas, deve
ser dito que, se de fato aquilo aconteceu, Goodwin estava fazendo uma
pergunta pastoral adequada. Aquela pergunta não deve ser ridicularizada,
seja o que for que pensemos sobre a sua abordagem. Pois, sejamos jovens ou
velhos, um dos segredos da paz interior e do viver uma vida plena é
estarmos preparados realisticamente para a morte - por assim dizer, prontos
e preparados para partir deste mundo. Não é absurdo recordarmos uns aos
outros o fato da morte.
Os crentes do passado conheciam bem essa questão. Eles encaravam a
vida inteira como uma preparação para a morte e para a eternidade; e, por
esse motivo, levavam a sério não a si mesmos, mas cada instante. As lições
medievais e puritanas sobre a arte de morrer acabam sendo uma abordagem
à arte de viver. As palavras "vive a cada dia como se fosse o teu último dia",
sempre serão aplicáveis. Vivendo assim, os crentes do passado
indubitavelmente obtinham mais da vida do que a maioria dos homens
modernos consegue. Hoje, conforme vimos, a boa saúde mental é definida
em termos não de meditar sobre a morte, mas de nem pensar sobre ela. Até
mesmo os crentes que vivem aguardando a segunda vinda de Cristo parecem
inconscientes de que a preparação para essa vinda e para a morte são os dois
lados da mesma moeda, duas facetas do mesmo tema, a saber, o fim deste
mundo para você e para mim, porque Cristo já veio para nós. Tudo isso é
retrógrado, mas o retomo à antiga sabedoria nos traria muita vantagem.
Como podem os crentes viver de modo a estarem prontos e preparados
para partir? Não há qualquer mistério nisso, o bom senso deveria nos
ensinar. Sejamos totalmente comprometidos com o serviço de Cristo, a cada
dia. Não toquemos o pecado nem mesmo de longe. Mantenhamos em dia a
conta corrente com Deus. Tenhamos cada hora como um dom de Deus para
nós, a fim de aproveitarmos o melhor possível. Planejemos a nossa vida,
fazendo cálculos para setenta anos (Sl 90.10), compreendendo que se nosso
tempo for mais curto do que isso, tal coisa não será uma privação injusta,
mas uma mais rápida promoção. Nunca permitamos que o bom tome o lugar
do melhor em nossas vidas e alegremente esqueçamo-nos do que não é o
melhor para nós. Vivamos o presente. Desfrutemos agradecidos os seus
prazeres e suportemos suas dores com a ajuda divina, sabendo que tanto os
prazeres como as dores são passos dados na viagem para o lar. Abramo-nos
inteiramente ao Senhor Jesus, gastemos tempo em sua companhia,
conscientemente, aquecendo-nos sob o seu amor e correspondendo ao
mesmo. Digamos diariamente a nós mesmos que cada dia que passa é um dia
mais perto do Senhor. Lembremo-nos que, conforme disse George
Whitefield, o homem é imortal até o momento em que sua obra esteja
terminada (embora só Deus possa definir a obra) e continuemos naquilo que
sabemos ser a tarefa que Deus tem para nós aqui e neste momento.
Paulo declarou: "...o tempo da minha partida é chegado. Combati o bom
combate, completei a carreira, guardei a fé. Já agora a coroa da justiça me
está guardada, a qual o Senhor, reto juiz, me dará naquele dia; e não
somente a mim, mas também a todos quantos amam a sua vinda" (2 Tm 4.6-
8).
Pedro exortou-nos: "Reunindo toda vossa diligência, associai com a vossa
fé a virtude; com a virtude, o conhecimento; com o conhecimento, o
domínio próprio; com o domínio próprio, a perseverança; com a
perseverança, a piedade; com a piedade, a fraternidade; com a fraternidade,
o amor... procurai, com diligência cada vez maior, confirmar a vossa vocação
e eleição; porquanto, procedendo assim, não tropeçareis em tempo algum.
Pois, desta maneira é que vos será amplamente suprida a entrada no reino
eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo" (2 Pe 1.5-7, 10, 11).
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