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Vocábulos de Deus

Traduzido do original em inglês:


God’s Words: Studies of Key Bible Themes
Copyright © por J. I. Packer

Copyright © 2002 Editora Fiel


Primeira Edição em Português: 2002
Segunda Edição em Português: 2017

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por Editora Fiel da Missão Evangélica Literária

PROIBIDA A REPRODUÇÃO DESTE LIVRO POR QUAISQUER MEIOS, SEM A PERMISSÃO ESCRITA DOS EDITORES, SALVO
EM BREVES CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO DA FONTE.

Diretor: James Richard Denham III


Editor: Tiago J. Santos Filho
Coordenação Editorial: Renata do Espírito Santo
Tradução: Editora Fiel
Revisão: Wellington Ferreira, Anna Barros
Capa e Diagramação: Wirley Corrêa - Layout
Ebook: Yuri Freire
ISBN: 978-85-8132-432-6

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

P119v Packer, J. I. (James Innell)


Vocábulos de Deus / J. I. Packer. – 2. ed. – São
José dos Campos, SP: Fiel, 2017.
2Mb ; ePUB
Tradução de: God's words: studies of key bible
themes.
ISBN 978-85-8132-432-6
1. Bíblia – Teologia. 2. Língua hebraica –
Palavras e expressões. 3. Língua grega (Bíblia)
– Palavras e expressões. I. Título.
CDD: 230.044
Caixa Postal, 1601
CEP 12230-971
São José dos Campos-SP
PABX.: (12) 3919-9999
www.editorafiel.com.br
INTRODUÇÃO
Palavras e Temas Bíblicos
CAPÍTULO 1
Revelação
CAPÍTULO 2
Escritura
CAPÍTULO 3
O senhor
CAPÍTULO 4
O mundo
CAPÍTULO 5
Pecado
CAPÍTULO 6
O diabo
CAPÍTULO 7
Graça
CAPÍTULO 8
O mediador
CAPÍTULO 9
Reconciliação
CAPÍTULO 10

CAPÍTULO 11
Justificação
CAPÍTULO 12
Regeneração
CAPÍTULO 13
Eleição
CAPÍTULO 14
Santidade e Santificação
CAPÍTULO 15
Mortificação
CAPÍTULO 16
Comunhão
CAPÍTULO 17
Morte
Chaves abrem portas; palavras-chaves abrem mentes, e, através das
mentes, corações. Este livro toma palavras-chaves usadas na Bíblia - termos
extraídos, podemos dizer, do próprio vocabulário de Deus - e desdobra de
maneira prática alguns dos principais pensamentos ligados a elas. O alvo é o
entendimento, a fé e a sabedoria. Visto que as próprias palavras são o nosso
ponto de partida, começo pedindo ao leitor que se demore comigo por
alguns momentos neste estudo sobre o valor de palavras.
"O que está lendo, meu senhor?", indagou Polônio, aquela combinação
clássica de asseverações senis com estupidez servil. A resposta de Hamlet
foi: "Palavras, palavras, palavras"; resposta essa cujo intuito era ser um
insulto sem resposta, um agravo e um fora para um valoroso espécime
pertencente ao gênero dos tediosos e velhos tolos. Naturalmente, o que
lemos são palavras! Mas fazemo-lo por causa de seu significado, e talvez
nunca observamos como as palavras são usadas para transmitir esse
significado. Contudo, a leitura de palavras como palavras, ou seja, os
vocábulos específicos que este ou aquele escritor escolheu para exprimir o
que queria dizer, pode ser algo fascinante e enriquecedor. Alguns que viajam
de trem interessam-se somente por chegar ao seu destino; outros, porém, tal
como este escritor, interessam-se também pelos próprios trens, e, por isso,
adquirem maior conhecimento acerca de suas viagens e maior prazer delas
do que aqueles. Por igual modo, alguns leem uma peça literária somente
para captar a mensagem ou a história, ao passo que outros saboreiam,
igualmente, o estilo e o vocabulário. Estes últimos, provavelmente,
terminarão compreendendo mais adequadamente o que foi escrito do que os
primeiros (razão pela qual nas escolas se ensina a apreciação da literatura).
Porém, onde isso mais claramente se manifesta é no caso das Sagradas
Escrituras.
PALAVRAS QUE SÃO ARMADILHAS
Admitimos que existem armadilhas. Para começar, não podemos permitir
que as palavras nos hipnotizem, mesmo quando se trata de vocábulos
bíblicos. Dizia Hobbes: "As palavras são as calculadoras dos sábios; eles
computam por meio delas. Mas elas são cunhadas por tolos''. Presumir que
uma coisa pode ser dita apenas com as palavras que inicialmente
aprendemos a respeito de um assunto, e que com elas devemos expressar-
nos, ou então somente com as palavras usadas na Bíblia, é um equívoco tolo,
embora frequente. As palavras não são mágicas. Elas são a matéria-prima da
linguagem, são as ferramentas que Deus nos deu para formarmos conceitos
e nos comunicarmos. As palavras transmitem sentido, revelam mentes,
evocam sentimentos e despertam pensamentos. A importância delas
repousa na carga que transportam e nas tarefas que realizam. Na verdade,
ouvir, ler e proferir palavras familiares exerce sobre nós um efeito
reconfortante e sustentador, conforme também sucede a todas as coisas
com as quais estamos acostumados. Voltarmos àquilo que nos é familiar é
como retornar ao ventre materno. Mas, ficar tão preso a vocábulos
particulares, ao ponto de pensar que nenhuma outra palavra pode exprimir o
mesmo sentido, é superstição. O fato de focalizarmos palavras não deve
permitir que atolemos em superstição.
Em segundo lugar, precisamos saber claramente como perceber o que as
palavras significam. As palavras significam o que costumam significar nos
círculos linguísticos particulares (nações, tribos, famílias, "gangs", grupos de
interesses) que as usam. Dessa forma, elas recebem um sentido reconhecido
publicamente, que os dicionários registram. Usar palavras com sentidos
particulares, sem se esclarecer que assim está sendo feito, é perverter a
linguagem, porque desse modo interrompe-se a comunicação. Lewis Carroll
faz Humpty Dumpty desdenhar de Alice, por haver ela protestado ao
descobrir que ele usava o termo "glória" a fim de indicar "um bom argumento
decisivo". Replicou ele zombeteiramente: "Quando uso uma palavra, ela
significa apenas aquilo que eu resolvi que significaria - nem mais, nem
menos!'' Sorrimos, porque isso é ultrajante. Mas não sorriríamos, se nossos
amigos agissem daquela maneira; nem eles sorririam, se o fizéssemos. As
boas maneiras na linguística requerem que o ouvinte espere palavras usadas
segundo o modo aceitável, e que aquele que fala também as use assim.
Isso nos leva a outro ponto. Precisamos perceber, quando interpretamos
as palavras de outros, quão perverso é tomarmos as palavras pela sua
derivação, ao invés de tomarmos o seu uso como a chave para
compreendermos o significado delas mesmas. Assim, por exemplo, saber que
a palavra inglesa "dandelion" originalmente era dent de lion ("dente de leão",
em francês) não nos prepara para reconhecer a flor amarela conhecida por
esse nome. Assim também, saber que ekklésia, o termo do Novo Testamento
grego que significa "igreja", tem uma forma etimológica que sugere "chamar
para fora de" algum lugar (ek-klesis, de ek-kaleõ) não nos ajuda a
compreender o que ela significa no uso comum, que é apenas uma reunião,
uma assembleia ou uma congregação. Na Bíblia, tal como na vida diária, as
palavras significam aquilo que elas costumavam significar - nem mais, nem
menos. Importar da etimologia noções extras que o escritor com certeza não
tinha em mente é enganar-se, por achar na declaração dele o que não está
ali. Grande parte do estudo de vocábulos, tanto o secular como o sagrado,
tem errado neste particular, por supor que a história de uma palavra deve
fazer parte do seu significado, cada vez em que ela é usada. Mas, pergunte a
si mesmo como você usa palavras como "dente-de-leão", "igreja", "prevenir"
(a qual etimologicamente significa "preceder", do latim prae-venio, e é usada
com este sentido na versão da Bíblia King James e no Livro de Oração de
1662), e verá que isto não é necessariamente assim.
Em terceiro lugar, precisamos lembrar que as palavras (excetuando os
termos técnicos publicamente definidos) são regularmente flexíveis. Elas
adquirem o seu sentido exato, cada vez que aparecem, somente quando
fazem parte de maiores unidades de significado - sentenças, parágrafos,
linhas de argumentação, capítulos, livros. Muitas palavras envolvem um
leque de possíveis sentidos e nuances (ver os dicionários), de tal modo que
precisamos averiguar o contexto, em cada instância, para percebermos o que
significam precisamente. É um grave erro tratar todos os vocábulos de uso
diário como se fossem termos técnicos, dotados de um único significado,
vocábulos que transmitem diferentes nuances de significado e que podem
ser sistematicamente ambíguos (como "manga", que significa tanto uma
fruta como uma parte de vestuário; ou a palavra "porco" que alguns usam
não só para significar uma fonte de carne e "bacon", mas também para
significar um indivíduo imundo). Termos técnicos (por exemplo,
computador, subjuntivo, minuendo, acionar, injúria, etc.) têm sentidos
universalmente aceitos, dentro de áreas específicas de referência, de tal
maneira que a presença deles exerce um efeito definidor sobre as palavras a
eles ligados. O sentido exato dessas outras palavras - palavras comuns do
dia-a-dia, conforme as chamaríamos - é determinado pelo fluxo verbal do
qual elas fazem parte. A variedade de seus possíveis significados pode ser
conhecida por nós desde o começo, mas o seu significado específico, em cada
instância em que são empregadas, só será discernido com exatidão através
do entendimento da sentença e da linha de pensamento às quais elas
pertencem. (Para exemplificar o que quero dizer, consideremos as ambíguas
palavras: "variedade", "sentença" e "linha", utilizadas no trecho anterior.)
Muitos livros que versam sobre palavras, tanto da linguagem secular como
da sacra, fracassam por não observarem como muitas palavras particulares
quase chegam a ser usadas tecnicamente, ou quão longe elas estão de ser
palavras técnicas. Por exemplo, no vocabulário de Paulo, "justificar" era mais
usada como termo técnico do que "liderar"; "santo" mais do que "bom", e
assim por diante.
Não precisamos demorar-nos no exame dos erros cometidos pelos
estudiosos da Bíblia, ao negligenciarem o fato que, nas Sagradas Escrituras,
os vocábulos funcionam da mesma forma que o fazem fora delas. Basta dizer
que ficar repetindo palavras pertencentes ao vocabulário da Bíblia não serve
de índice de profundidade espiritual, e que as declarações que explicam o
significado dos vocábulos bíblicos, com base na sua derivação, juntamente
com declarações que começam com afirmativas do tipo "nas Escrituras, esta
palavra sempre significa...", são na maioria mais erradas do que corretas.
Portanto, você está avisado!
LUZ DERIVADA DAS PALAVRAS
Tendo dito isto, podemos elogiar o estudo de vocábulos – estudo sobre o
uso costumeiro e os significados - como um meio de penetração nas mentes
humanas. E isto, no caso dos quarenta diferentes autores da Bíblia, significa
penetrar na mente de Deus, o qual falou para eles e por meio deles.
Algumas palavras-chaves da Bíblia - termos referentes ao culto, por
exemplo - ao que parece, à princípio foram termos semitécnicos (como:
aliança, santo, sacrifício, adoração, oração, pecado, sabedoria, redimir). É
fascinante observar o sentido de tais termos expandir-se e aprofundar-se, à
medida em que a autorrevelação histórica de Deus prossegue, por meio de
atos e palavras. Outras palavras-chaves parecem ter começado como
referência às atividades comuns da humanidade e adquiriram sentido
teológico por haverem sido usadas, por um ou outro escritor sagrado, como
quadros, modelos e analogias da obra de Deus e de seus frutos (por exemplo:
luz, vida, palavra, poder, morte, fé, esperança, sangue, paz, reino, pai,
mundo, espírito, povo, juiz). É fascinante acompanhar o processo e refletir
sobre por que este ou aquele vocábulo veio a significar tanto, teológica e
espiritualmente, para este ou aquele escritor sacro. Enquanto tal estudo
assume lugar de servo da exegese, ao invés de um substituto para ela,
reveste-se de um interesse todo próprio. Algumas vezes, como se fosse uma
senda tortuosa, lado a lado com a estrada principal, esse estudo exibe diante
de nós paisagens que aqueles que se atêm à estrada exegética central jamais
percebem.
Em nossa época, os mestres evangélicos têm tido vívida consciência desse
fato, e têm sido publicados excelentes estudos de vocábulos, em uma escala
que vai desde o gigantesco trabalho de Kittel, Theological Dictionary of the
New Testament - Dicionário Teológico do Novo Testamento (9 volumes, mais
de oito mil páginas), passando pelo de Colin Brown, New lnternational
Dictionary of New Testament Theology - Dicionário Internacional de Teologia
do Novo Testamento, Ed. Vida Nova, (4 volumes, mais de três mil páginas),
até a pequena obra de Julian Charley, intitulado 50 Key Words: The Bible - 50
Palavras-chaves: A Bíblia (69 páginas). Este livro, no entanto, não pertence
estritamente a obras dessa categoria. Embora comece examinando palavras,
ele é apenas um livro que estuda vocábulos. Tanto quanto possível, ele não é
um livro técnico; porquanto focaliza a atenção não tanto sobre palavras
como tais, mas sobre as realidades para as quais elas apontam. E, ainda que
um vocábulo bíblico anuncie o tema de cada capítulo, o tratamento do
material é integrado e teológico, antes que analítico e "biblicista". A seleção
dos temas reflete o propósito de interpretar o evangelho, que é a mensagem
central da Bíblia. Portanto, meu estilo é expositivo e explicativo, ao invés de
exegético e histórico. Não obstante, este livro apoia-se sobre obras técnicas
de outros autores, sem as quais esta obra dificilmente poderia ter sido
escrita.
PALAVRAS BÍBLICAS E TEOLÓGICAS
Vale a pena pararmos aqui a fim de notar que o nosso atual vocabulário
evangélico contém duas classes de palavras: aquelas que se encontram nas
Escrituras e aquelas que foram cunhadas ou emprestadas do vocabulário
comum depois do tempo do Novo Testamento. Vocábulos dessa segunda
classe, como trindade, encarnação, pessoa, natureza, satisfação, hierarquia,
transcendência, onisciência, deveriam ser encarados como termos técnicos,
introduzidos para expressar pensamentos bíblicos particulares, e, portanto,
definidos com precisão desde o começo. Algumas dessas palavras perderam a
sua exatidão nesta nossa época de desvios teológicos, mas todas elas tinham
sentidos precisos no passado. É uma boa regra empregá-las somente no seu
sentido clássico, e adotá-las somente se pudermos demonstrar que o seu
sentido clássico reflete a cristalização do pensamento bíblico. Atualmente, a
linguagem teológica tradicional é insegura, e diferentes pessoas inclinam-na
em diferentes direções. Não deveríamos contribuir para aumentar a
confusão.
Porventura, não nos ajudaria a pensar mais biblicamente se
descartássemos todas as palavras dessa última classe e usássemos somente
palavras bíblicas? Infelizmente, a sugestão é enganadora, e as objeções a ela
parecem irrefutáveis.
Em primeiro lugar, essa proposta é estultificante. Ela nos furtaria a
clareza. Nenhuma ciência, ou seja, nenhum ramo do conhecimento já
comprovado e digerido, pode dispensar termos técnicos; tais termos são
necessários para que haja precisão de pensamento e de expressão. Se não
dispusesse de termos técnicos apropriados, a comunicação tornar-se-ia
incontrolavelmente desajeitada, e dificilmente seria possível qualquer
progresso na cristalização da verdade. Ora, isso é tão verdadeiro na teologia
como na astrofísica ou na oftalmologia.
Em segundo lugar, essa proposta é empobrecedora. Ela nos furtaria a
verdade. Os termos técnicos que já foram bem definidos e testados
incorporam e transmitem, de modo conciso, muito conhecimento exato,
bem como muitas decisões acertadas sobre questões que inicialmente
estiveram em debate. Assim sendo, atuam como suportes contra o erro. O
palco da história eclesiástica está juncado de cadáveres daqueles que, tendo
abandonado os termos técnicos trindade e encarnação, imediatamente caíram
em erros; sendo que aquelas palavras foram definidas exatamente para
eliminar tais erros.
Seja como for, hoje em dia não podemos usar palavras bíblicas com o
sentido exato que elas tinham para os escritores sagrados. Por que não?
Porque elas chegaram até nós carregadas com associações de ideias e com
nuances de sentimentos, os quais foram adquirindo no decurso dos séculos
de cristianismo, e que se apegaram a elas como uma camada de tinta que
ninguém consegue arrancar. Isso posto, quando empregamos termos
técnicos como predestinação, eleição, justificação, perfeito, pecado, mundo,
fé, graça, autoridade, diabo, igreja, etc., as associações em nossas mentes,
que moldam os nossos interesses e determinam as nossas indagações, são
derivadas do mundo da controvérsia pós-bíblica - o mundo no qual
Agostinho combateu Pelágio; os reformadores entraram em conflito com
Roma; os calvinistas lutaram contra os arminianos e os conservadores
contra os liberais, cada qual debatendo o que a Bíblia, como um todo,
realmente nos diz acerca disto ou daquilo. De fato, a única maneira digna de
explorarmos os temas designados por vocábulos como esses é relacioná-los
às questões e aos interesses de nossos próprios dias, indagando como o
pensamento e o ensino bíblico afetam essas questões e interesses e como,
em geral, envolvem as vidas de homens e mulheres deste nosso final do
século XX . Qualquer coisa aquém disso seria apelar para noções bíblicas
meramente antiquadas; seria um jogo solene, mas trivial. O nosso alvo deve
ser o pensar biblicamente, não apenas sobre os problemas dos escritores
sagrados, mas também sobre os nossos próprios.
Nos capítulos que seguem, as palavras bíblicas anunciam os temas, e o
material bíblico edificado sobre esses temas. Contudo, os termos técnicos
são usados livremente e o ângulo de abordagem é contemporâneo. Procuro
meditar sobre esse material à luz das perplexidades de nosso tempo e
mostrar que aquilo que os escritores sagrados disseram, em resposta às
indagações de seus dias, pode falar às questões dos nossos dias. Os leitores
formarão as próprias opiniões sobre o grau de meu sucesso.
O ESPÍRITO E AS ESCRITURAS
Espero que o efeito destes estudos corresponda àquilo que considero ser o
duplo propósito do Espírito Santo em relação à Bíblia. Quanto à sua forma,
conforme penso que todos reconhecemos, as Escrituras são um testemunho
histórico da obra divina da redenção, a qual, no início, alcançou o seu clímax
na encarnação, na imolação, na ressurreição e na exaltação do Filho de Deus,
Jesus; testemunho esse que chegará ao seu grande final na "eucatástrofe"
(usando por empréstimo a obscura, mas feliz, palavra de Tolkien, que
significa "boa catástrofe"), que ocorrerá no retorno de Jesus a este mundo,
em glória avassaladora, a fim de tornar todas as coisas perfeitamente novas.
Vistas sob esse prisma (conforme devemos fazê-lo, pois, de outro modo,
haveremos de entendê-las erroneamente) as Escrituras são frequentemente
rejeitadas e consideradas como esquisitas e antiquadas, porquanto a sua
mensagem não se ajusta com precisão àquilo que o homem moderno pensa
que sabe. Porém, em sua natureza essencial, o que, infelizmente, nem todos
parecem apreciar, as Escrituras consistem simplesmente em Deus
comunicando, Deus falando, Deus ensinando, Deus pregando, Deus
contando a você - sim, a você, a mim e a todos os leitores e ouvintes da
Bíblia, em todos os lugares - verdades sobre Si mesmo que, neste lugar e
neste momento, exigem a nossa fé, a nossa adoração e a nossa obediência; as
nossas orações, louvores e práticas; a nossa devoção, abnegação e
disciplinamento, a fim de podermos servir ao Senhor. Em suma, a nossa
completa conversão e o nosso total comprometimento.
Vista desta maneira, a Bíblia é a leitura mais relevante e atualizada que
pode chegar às nossas mãos. Três horas atrás, ao ler a epístola aos Hebreus,
Deus estava me repetindo qual a suficiência e o caráter final de Cristo, a fim
de manter-me numa jubilosa relação com Ele, com os homens, com as
circunstâncias e comigo mesmo. E sempre que leio o livro de Eclesiastes
(identifico-me muito com este livro), Deus ensinando-me de novo que
aceitar a vida como ela se apresenta e praticar o que é meu dever são duas
chaves para a felicidade, tanto nesta vida como na futura - sabedoria que,
pelo menos para mim, nunca será obsoleta. Assim a experiência continua.
Tal é a Bíblia, o livro mais oportuno do mundo, para você, para mim ou para
qualquer outra pessoa. E o Espírito Santo, que a inspirou e nos dá
entendimento sobre ela, nos conduz por esse caminho, quando Lhe
permitimos esclarecê-la e aplicá-la a nós.
Por um lado, o organismo das Escrituras (66 livros ao todo - 39 no Antigo
Testamento e 27 no Novo), que nos foi dado por Deus, tem um centro,
aquilo que Calvino chamou de escopo, isto é, um ponto focal em mira, um
alvo e um ponto de referência para tudo o mais. Esse escopo é o próprio
Senhor Jesus Cristo, ao qual os profetas proclamaram como o Messias que
viria, a quem os apóstolos proclamaram que já viera e virá outra vez. O
Espírito Santo nos leva a fixar a atenção em Jesus e na necessidade que
temos dEle. Descobrimos que as Escrituras agem como o espelho no qual
nos vemos como pecadores culpados, vis e impotentes, que precisam de
salvação, e como o holofote que nos mostra o Salvador vivo - o Cristo que
está ali, e que está ali por nossa causa; ou, melhor ainda, o Cristo que está
aqui, e que está aqui por minha causa. O Espírito dissipa todas as nossas
dúvidas relativas à realidade de Jesus e nos leva a conhecê-Lo e a confiar
nEle como nosso próprio Libertador do pecado, do "eu" e do vazio escuro e
doloroso deste e do outro mundo, para o qual o nome apropriado é inferno -
Geenna, o lugar ardente. (As Escrituras chamam de fé esse conhecimento
confiante.) Deste modo, provamos pessoalmente a verdade contida na
declaração de Paulo: "as sagradas letras... podem tornar-te sábio para a
salvação pela fé em Cristo Jesus" (2 Tm 3.15). Esse é o primeiro passo
envolvido no fato de sermos ensinados por Deus (cf. Jo 6.45).
Aprendamos a clamar como Charles Wesley:

Jesus, nome estimado pelos pecadores,


O nome de quem foi dado por eles,
Que dissipa todo o medo da culpa,
E transforma em céu ao inferno.

Oh, se o mundo pudesse ver e provar


das riquezas de sua graça!
Os braços amorosos que me envolvem,
Envolveriam, também, toda a humanidade.

A sua retidão singular eu demonstro,


A sua graça salvadora eu proclamo;
Todo o meu empenho nesta vida
É clamar: contemplai o Cordeiro!

Feliz seria, se ao meu último suspiro


Apenas balbuciasse o seu nome;
Ou se falasse dEle a todos, clamando ao morrer:
Contemplai, contemplai o Cordeiro!

Nenhum crente pode ter alvo mais elevado ou desejos melhores do que
estes. Colocar e conservar em nós estes princípios é um dos aspectos do
constante ministério do Espírito em nosso favor, por meio das Escrituras.
Todavia, existe um outro lado. Tendo Jesus Cristo como seu centro, a
Bíblia assemelha-se a um enorme círculo que abrange a totalidade da vida de
cada indivíduo. Aqueles que, usando a figura de linguagem de C. S. Lewis,
examinam ao longo da Bíblia, como se estivessem seguindo um raio de sol
que brilha no sótão, descobrem que tudo quanto são é pesado e julgado à luz
dos ensinamentos, das narrativas e do estado de coisas que as Escrituras
expõem diante de nós. O Espírito Santo leva-nos a fazer sobre nossas vidas
os mesmos julgamentos que Ele mesmo faz . Ele nos leva a medirmos a nós
mesmos através daquilo que a Bíblia nos mostra acerca da maneira certa ou
errada de agir como pai, como filho, como político, cidadão, cônjuge, pessoa
solteira ou viúva, dona-de-casa, gerente, trabalhador, patrão, vizinho,
professor, estudante, inválido, pessoa rica ou qualquer outra coisa. Também
pelos preceitos e exemplos bíblicos - Cristo, Abraão, Paulo, Elias e todos os
heróis da fé - aprendemos o que está envolvido na piedade autêntica.
Geralmente, quando assim nos avaliamos, descobrimos que somos faltosos;
e então o Espírito nos guia a mudar nossos caminhos de acordo com o que
tínhamos nos avaliado (as Escrituras Sagradas chamam de arrependimento
essa esclarecida mudança). Desse modo, provamos pessoalmente a verdade
daquela outra afirmativa paulina - que a Escritura inteira, por haver sido
inspirada por Deus, é "útil para o ensino, para a repreensão, para a correção,
para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e
perfeitamente habilitado para toda boa obra" (2 Tm 3.16, 17). Esse é o
segundo aspecto envolvido no fato de sermos ensinados por Deus.
Espero que os esboços de temas bíblicos (os quais não são mais do que
isso), que vêm a seguir, sirvam ao duplo propósito do Espírito de Deus:
conduzir-nos constantemente a fim de que adoremos e amemos o Cristo das
Escrituras, e mudar as nossas vidas à luz de suas verdades. Não tenho
qualquer interesse por estudos bíblicos que não busquem esses alvos
escriturísticos.
A palavra portuguesa "revelar" vem do latim revelare, que significa "tirar o
véu" ou "descobrir". Essa é precisamente a ideia expressa pelos vocábulos
hebraico e grego que são traduzidos na Bíblia por "revelar". "Revelar" é uma
palavra ilustrativa (como o são todos os vocábulos teológicos), e o quadro
nos mostra Deus desvendando – Deus revelando-nos coisas que antes
estavam ocultas para nós; Deus trazendo à luz coisas que antes estavam fora
do alcance de nossa visão; Deus nos levando e capacitando a ver aquilo que,
até aquele momento, não podíamos ver. Deus compartilha
confidencialmente conosco os seus segredos. Deus nos encontra ignorantes
e nos confere conhecimento. É isso que significa revelação.
O quadro responde a três perguntas fundamentais. Primeira, qual a
necessidade da revelação? Resposta: Certas realidades vitais estão
escondidas de nós, ocultas aos nossos olhos, enquanto Deus não as
desvenda. Segunda, qual o propósito da revelação? Resposta: Proporcionar-
nos o conhecimento dessas realidades; Deus deseja compartilhá-las conosco.
Terceira, qual deve ser a nossa atitude face à revelação? Resposta: Devemos
atentar respeitosamente e receber com gratidão tudo quanto Deus nos
transmite. Quando o Senhor fala, o homem precisa estar disposto a ouvir, a
aprender e a responder.
REVELAÇÃO PESSOAL E SOB A FORMA DE PROPOSIÇÕES
O que Deus revela? Os teólogos protestantes antigos responderiam:
Verdades sobre Simesmo, as quais, de outra forma, não poderíamos saber.
Os teólogos modernos, na maioria, preferem simplesmente dizer: Deus
revela a Si mesmo. Essas duas respostas, porém, são complementares e não
contrárias. É verdade que a revelação consiste, essencialmente, no
autodesvendamento de Deus e que o seu propósito é levar os homens a
"conhecerem o Senhor", mediante a comunhão pessoal com um Deus
pessoal.
Mas, como é que Deus se faz conhecido a nós? Da mesma maneira que o
leitor far-se-ia conhecido a mim, ou eu a você: mediante a fala. O ato de falar
sempre é uma revelação da parte daquele que fala. Assim, Deus desvenda-se
a nós, falando conosco acerca de Si mesmo, bem como falando a nosso
respeito, conforme Ele nos vê. Deus nos fala de suas próprias realizações
passadas: como criou, julgou, remiu e soergueu os homens para que O
servissem e como criou um povo para Si mesmo. Deus fala conosco sobre sua
obra presente: como determina e controla todas as coisas, para o
cumprimento dos seus propósitos. Deus nos fala acerca dos seus planos
futuros, esboçando para nós, em termos misteriosos mas brilhantes, o
clímax vindouro da história e o destino final de seu povo. Ele nos diz o que
pensa sobre a vida humana e sobre as diferentes maneiras de viver dos
homens. Ele nos fornece orientações, aconselha, faz promessas e adverte.
Ele nos ensina a sua escala de valores, detalhando para nós as coisas que Ele
aprova e as coisas que odeia. Por conseguinte, é falando que Deus revela a Si
mesmo. Ele se desvenda, falando-nos sobre Si mesmo. A sua revelação é
pessoal, exatamente porque se processa através de proposições; pois é
exatamente fazendo-nos declarações verazes a respeito de Si mesmo, que
Deus se faz conhecido a nós. Se Ele não tivesse nos falado assim, jamais
poderíamos tê-Lo conhecido. Afirmar, segundo alguns fazem, que o homem
pode descobrir e conhecer Deus, sem que Deus lhe fale, realmente é negar
que Deus é pessoal. As pessoas não podem ser conhecidas a menos que, de
alguma maneira, falem para revelar a si mesmas.
A REVELAÇÃO NO ANTIGO E NO NOVO TESTAMENTOS
O cerne da Bíblia Sagrada é a narrativa de Deus falando aos homens. O
Antigo Testamento mostra-nos como Deus falou diretamente a Adão e Eva,
no jardim do Éden, bem como a Caim, a Noé, a Abraão, a Isaque e a Jacó. Ele
também falou diretamente a Moisés e aos profetas. Utilizando-se de Moisés
como seu porta-voz, Deus falou a todo o povo de Israel, no deserto, exibindo
diante deles os preceitos e as promessas de sua aliança. Por intermédio dos
profetas posteriores (pois Moisés, o outorgador da lei, na qualidade de
porta-voz de Deus, foi um profeta - Dt 18.15 e 34.10), Deus continuou a
falar ao seu povo, reforçando a lei, explicando os seus propósitos de
julgamento e de misericórdia, ao longo da história, apelando por
arrependimento e exortando a uma vida de fé na sua pessoa.
Toda revelação direta da vontade e dos propósitos de Deus, em toda a
dispensação da antiga aliança, foi transmitida através dos profetas. Os
salmistas e os sábios meditaram com inspirado discernimento sobre a
religião e a vida, à luz dessa revelação, conforme a conheciam. Porém, os
profetas foram aqueles por meio de quem a própria revelação foi feita em
cada estágio.
No hebraico há duas palavras para "profeta"; uma significa vidente e a
outra, porta-voz. Juntas, elas indicam a natureza da chamada de um profeta.
Em primeiro lugar, como vidente, era privilégio de um profeta receber a
revelação. Deus, por assim dizer, tornou os profetas seus confidentes e
mostrou-lhes os seus planos. Declarou Amós: "Certamente o SENHOR Deus
não fará cousa alguma, sem primeiro revelar o seu segredo aos seus servos,
os profetas" (Am 3.7). O profeta permanecia no "conselho do SENHOR", a
fim de ver e ouvir a sua palavra (Jr 23.18). Em segundo lugar, fazia parte das
responsabilidades de um profeta, como porta-voz, proclamar a palavra da
revelação que recebera. "Eis que ponho na tua boca as minhas palavras...
tudo quanto eu te mandar, falarás'' (Jr 1.9, 7). ''Assim diz o SENHOR Deus...
tu lhes dirás as minhas palavras", foi a comissão dada por Deus a Ezequiel
(Ez 2.4, 7; cf. 1 Rs 22.14; Nm 22.19, 20, 35, 38). A fórmula "Assim diz o
SENHOR", que introduz oráculos proféticos por 359 vezes no Antigo
Testamento, serve de testemunha da realidade da revelação - uma
testemunha do fato que o profeta não criava as suas próprias mensagens,
mas falava como porta-voz de Deus, de tal modo que aquilo que dizia
precisava ser recebido, não como adivinhações ou especulações humanas,
nem como ideias fantasiosas, mas como declarações divinas, sendo, por isso
mesmo, verdades infalíveis. Podemos entender o horror que Jeremias sentiu
quando, por um lado, certos falsos profetas declararam, em nome do
Senhor, mensagens que eles mesmos haviam formulado (Jr 14.14ss.; 23.9-
40), e, por outro lado, quando as palavras de profetas autênticos, como ele
mesmo, eram desprezadas e desconsideradas (Jr 20.7, 8; 25.3ss.).
A mensagem neotestamentária acerca da revelação divina está
cristalizada nas palavras que abrem a epístola aos Hebreus: "Havendo Deus,
outrora, falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas,
nestes últimos dias nos falou pelo Filho..." (Hb 1.1, 2). O Senhor Jesus
Cristo cumpriu o ministério de um profeta, visto que só transmitiu aquelas
palavras, e somente aquelas, que o Pai Lhe dera para falar (Jo 7.16; 8.28;
12.49, 50; cf. Hb 2.3, 4). Contudo, Jesus Cristo fez mais do que isso. Ele
revelou o Pai, não somente através daquilo que disse, mas também pelo que
foi e realizou. Pois Ele, como Filho, é a imagem do Pai, e toda a multifacetada
plenitude do caráter do Deus invisível tornou-se visível através da vida do
Filho de Deus, em carne (Cl 1.15, 19; 2.9; Hb 1.3). Portanto, Cristo pôde
dizer: "Quem me vê a mim, vê o Pai" (Jo 14.9). E João pôde escrever:
"Ninguém jamais viu a Deus: o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é
quem o revelou" (literalmente, o explicou, o elucidou - Jo 1.18).
Isso ainda não é tudo. Cristo prometeu o Espírito Santo aos seus
discípulos, a fim de revelar-lhes a plena verdade acerca de Si mesmo e
capacitá-los a prestarem testemunho quanto a isso (Jo 14.26; 15.26 e
16.13ss.). Dessa forma, na verdade, Ele os designou para um ministério
profético propriamente dito. Após o Pentecoste, encontramo-los cumprindo
tal ministério. Por um lado, eles receberam revelações através do Espírito
Santo. Paulo muito salientou o "mistério" do plano divino de salvação em
Cristo, desde há muito oculto, mas agora ''revelado aos seus santos
apóstolos e profetas, no Espírito" (Ef 3.5; cf. vv. 3-11; 1.9ss.; 1 Co 2.7ss.; Rm
16.25, 26). Por outro lado, eles declararam o que lhes havia sido mostrado
pelo ensino do Espírito, e de modo autoritativo, como Palavra de Deus (1 Co
2.1ss.; 2.13ss.; 1 Ts 2.13). Eles ministraram e ensinaram como
representantes de Cristo, autorizados e equipados por Ele. Assim, o
testemunho dos apóstolos faz parte integral do grande complexo de
declarações divinas, encerrado dentro da frase: ''Deus... falou pelo Filho''. O
ensino de Cristo e dos apóstolos constitui uma unidade, e essa unidade,
incorporada em nosso Novo Testamento, é a palavra final de Deus ao
homem.
Se agora indagarmos acerca do que Deus, de modo resumido, estava
revelando durante o período bíblico, diversas coisas precisarão ser ditas.
Em primeiro lugar, Deus estava revelando a Si mesmo. Ele estava
mostrando o "seu eterno poder e a sua própria divindade" (Rm 1.20), na
qualidade de Criador e Senhor de todas as coisas. Juntamente com isso,
Deus estava revelando o seu caráter e a sua maneira de lidar com os homens
(Êx 34.6-7; Dt 5.9, 10; Jr 9.24; 1 Jo 1.5; 4.7-10), a fim de que Ele fosse
reconhecido e adorado por tudo quanto é, faz e dá aos homens. Encarada
desse ponto de vista, a revelação atingiu o seu ponto culminante na vida
encarnada do Filho de Deus.
Em segundo lugar, Deus estava revelando o seu reino. Ele estava
mostrando a realidade de seu domínio universal (observemos como um
profeta após outro recebeu visões do trono de Deus - 1 Rs 22.19; Is 6.1ss.; Ez
1.26; Dn 7.9; Ap 4.2; e como salmista após salmista celebrou o reinado de
Deus - Sl 93.1, 2; 96.10; 97.1; cf. 1 Cr 16.31; Is 52.7; Ap 19.6). Deus estava
mostrando, igualmente, como Ele faz a história avançar na direção da forma
final que o seu reinado assumirá, a saber, o reinado salvador de Jesus, o
Messias, o verdadeiro Senhor do mundo atual (cf. Mt 28.18; Hb 1.3, 8, 9,
13), que voltará um dia, em glória, para dar um fim ignominioso a todas as
pessoas e a todos os poderes que agora repelem o seu governo (1 Co 15.24ss;
Fp 2.9-11).
Em terceiro lugar, Deus estava revelando a sua aliança. Isso foi e continua
sendo um relacionamento imposto: Deus compromete-se, diante dos
homens, a abençoá-los, e eles comprometem-se, diante dEle, a servi-Lo. "Eu
serei o vosso Deus, e vós sereis o meu povo": esse é o compromisso do
relacionamento que Deus reitera a cada novo estágio das bênçãos da aliança
(Gn 17.1-14; Êx 19.4-6; Lv 26.12; Dt 7.6; 14.2; Jr 11.3-4; 30.22; 31.33; Ez
11.20; 36.28; Zc 8.8; 2 Co 6.16; Ap 21.3; etc.); esse é o estribilho que se faz
ouvir através da Bíblia. A nova aliança, estabelecida por Jesus, seu mediador,
é melhor do que a anterior em muitos aspectos (Hb 8 a 10); mas a
incumbência divina de abençoar, tanto agora quanto futuramente, que
consiste no próprio acordo de Deus com o seu povo, jamais sofreu alteração.
A essência da aliança, em todas as formas de sua administração, é que Deus
diz "meu povo", e aqueles que são assim tratados respondem-Lhe, dizendo:
"meu Deus" ou "nosso Deus". Lutero estava com toda a razão quando
descreveu o cristianismo como uma questão de pronomes pessoais. O povo
com o qual Deus entrou em relação de aliança - os israelitas fiéis, no Antigo
Testamento, e os discípulos de Cristo, espalhados pelo mundo inteiro, no
Novo Testamento - são aqueles acerca de quem se pode dizer: "Agora que
conheceis a Deus, ou antes, sendo conhecidos por Deus" (Gl 4.9). Para esses
cumprem-se as "preciosas e mui grandes promessas" de Deus (2 Pe 1.4). Esse
é o relacionamento da aliança que nos foi revelado.
Em quarto lugar, Deus estava revelando a sua Lei, isto é, a sua vontade
para todos os homens, mas que serve de torah (instruções paternas
autoritativas) para o seu próprio povo. "Mostra a sua palavra a Jacó, as suas
leis e os seus preceitos a Israel. Não fez assim a nenhuma outra nação" (Sl
147.19, 20). Nos dias do Antigo Testamento, Deus identificou-se como Pai
de seu povo, como uma comunidade (Êx 4.22, 23; Ml 1.6). Mas, sob o Novo
Testamento, todos quantos recebem o "único e sem par" Filho de Deus
(paráfrase usada na versão americana NIV para substituir o termo
"unigênito", por implicar afeição) tornam-se irmãos de Jesus mediante a
adoção e o novo nascimento (Jo 1.12, 13; 20.17; Gl 4.4-7). E a torah de Deus,
em sua dupla forma, de mandamentos e de sabedoria, foi verbalizada em
ambos os testamentos (por Moisés e os profetas, no Antigo; e por Cristo e
seus apóstolos, no Novo) a fim de que os filhos de Deus pudessem aprender
a honrar ao seu Pai, mantendo os padrões da família e assim mostrando a
semelhança familiar.
Em quinto lugar, Deus estava revelando a sua salvação, ou seja, a sua obra
de salvar pessoas de qualquer coisa que ameace destruí-las - seja o cativeiro
no Egito (Êx 14.13; 15.2); seja o cativeiro babilônico (Is 51.5, 6, 8), sejam
adversários nacionais ou tribulações pessoais (nos Salmos encontramos
esses fatos muitas vezes), sejam o pecado e Satanás (no Novo Testamento,
isso acontece reiteradas vezes). Desse ponto de vista, a revelação atingiu o
seu ponto culminante quando Deus nos deu a palavra do evangelho (cf. Gl
1.11, 12), que exibe a obra terminada de Cristo e a contínua operação do
Espírito de Cristo (cf. Rm 1.16; Ef 1.13). Juntemos todos esses temas e
teremos o âmago do conteúdo da revelação bíblica.
REVELAÇÃO PASSADA E PRESENTE
O exame que fizemos sobre a mensagem da Bíblia nos conduz ao ponto
seguinte. Conforme já vimos, Deus começou a falar no jardim do Éden e
terminou na época dos apóstolos. Portanto, trata-se muito mais de uma
questão do passado histórico. Significa isto que por mais de dezenove
séculos Deus não dirige a palavra aos homens? Não, não significa. É verdade
que desde a era apostólica Deus nada mais disse de novo aos homens,
porquanto, de fato, nada mais Ele tem para dizer-nos que não tenha dito
antes. Mas, é igualmente verdade que Deus não tem cessado de falar ao
homem tudo o que havia dito anteriormente. Gladstone não continua
falando à nação inglesa o que falou há cem anos porque faleceu. O Deus vivo,
porém, continua falando à humanidade o que Ele disse em seu Filho e
através dEle, há mais de dezenove séculos. Isso significa que quando lemos,
ou ouvimos alguém ler ou expor o registro bíblico daquilo que o Senhor
afirmou nas épocas do Antigo e do Novo Testamento, somos
verdadeiramente confrontados com uma palavra revelada, dirigida a nós por
Deus. E essa palavra exige de nós uma resposta, assim como exigiu da
congregação judaica, que ouviu Jeremias, Ezequiel, Pedro, e Cristo, ou das
congregações gentílicas, que ouviram os sermões do apóstolo Paulo.
REVELAÇÃO GERAL E ESPECIAL
A Bíblia registra as palavras que Deus proferiu no decurso da história,
acerca de sua obra redentora, efetuada na própria história. Porém, uma das
coisas que a Bíblia mostra é que Deus também se revela à parte das
Escrituras, de uma maneira independente da revelação de seu propósito
salvador. A revelação deste propósito foi dada mediante uma sequência
particular de eventos a pessoas particulares, em lugares particulares; mas, a
outra forma de revelação, à parte das Escrituras, é dada a todos os homens
por meio da experiência comum de estarem eles vivos no mundo de Deus.
Ela nos é dada através de todas as coisas criadas. O Salmo 19.1-4 afirma que
os fenômenos celestiais, simplesmente por serem o que são, proclamam a
glória e a "voz" inequívoca de seu Criador, até aos confins da terra. Em
termos gerais, Paulo estabelece que as "cousas que foram criadas" por Deus
transmitem conhecimento sobre "o seu eterno poder como também a sua
própria divindade" - isto é, revelam que Ele é o Deus Todo-Poderoso, que
deve ser adorado pelos homens e que os considera indesculpáveis quando
deixam de reconhecê-Lo (Rm 1.20-21). A denúncia de Paulo contra o mundo
gentílico, em Romanos 1.18-2.16, está baseada nessa verdade. Novamente,
essa revelação é outorgada pela providência divina comum, que fornece
multiformes provas da bondade de Deus. Em Atos 14.16-17, Paulo afirma
que embora Deus tivesse permitido que as apóstatas nações gentílicas
"andassem nos seus próprios caminhos", Ele "não se deixou ficar sem
testemunho de si mesmo, fazendo o bem, dando-vos do céu chuvas e
estações frutíferas, enchendo os vossos corações de fartura e de alegria" (cf.
Mt 5.45; Sl 145.9). Assim, Deus demonstra aos homens a sua bondade e a
enorme dívida de gratidão que têm para com Ele.
Também, essa revelação é realizada mediante a voz da consciência, a qual
se manifesta como representante de Deus, mostrando a cada homem pelo
menos alguma coisa dos requisitos de sua lei (Rm 2.14, 15) e assegurando,
até mesmo aos mais empedernidos, que o julgamento e a condenação virão
(Rm 1.32).
Visto que essa revelação é transmitida mediante o curso comum da
ordem criada, ela é chamada de "natural", em contraste com a revelação
"sobrenatural", dada mediante as particulares declarações redentoras de
Deus, feitas ao longo da história. Visto que ela tem sido dada de maneira
universal, é chamada de revelação ''geral'', em contraste com a revelação
"especial", registrada na Bíblia, a qual é feita àqueles que leem ou ouvem a
Palavra de Deus e que nunca atinge muitas pessoas.
Qual é a diferença de conteúdo entre a revelação geral e a revelação
especial? Basicamente, trata-se do seguinte: a revelação geral não envolve
qualquer mensagem redentora. Atende somente as necessidades do homem
antes da queda no pecado. Não revela aos pecadores senão aquilo que foi
revelado a Adão, em seu estado de inocência. Não fornece qualquer indício
de que Deus, que não tolera o pecado, possa mostrar-se misericordioso para
com aqueles que transgridem a sua lei. Assegura os transgressores de sua
condenação, mas não lhes oferece a mínima esperança de perdão. Prega a lei,
mas não anuncia o evangelho da graça. Somente a revelação especial, dada
desde a Queda e que encerra a mensagem de redenção por meio de Jesus
Cristo, pode atender as necessidades dos pecadores. A revelação geral pode
levar à condenação, se for negada ou negligenciada, mas não pode prover um
meio de restauração ao condenado. Se o homem caído acolhesse com
seriedade o testemunho da revelação geral, isso o conduziria ao desespero.
Mas, de fato, ele não o faz. Os homens "detêm a verdade" (Rm 1.18); eles
negam e pervertem a revelação geral, de tal modo que somente alguns
lampejos de sua luz conseguem atravessar a barreira. O conhecimento que
eles têm de seu Criador assume a forma de negação ou de ignorância
voluntária da pessoa dEle, conforme Paulo explica em Romanos 1.19-32 e
em Atos 17.22-28. Isso nos leva ao próximo ponto.
REVELAÇÃO OBJETIVA E SUBJETIVA
"Ora, o homem natural não aceita as cousas do Espírito de Deus... não
pode entendê-las porque elas se discernem espiritualmente" (1 Co 2.14). "O
deus deste século cegou os entendimentos dos incrédulos, para que lhes não
resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo" (2 Co 4.4). Não basta que
Deus desvende os seus segredos e tome claros os seus mistérios perante os
homens caídos, pois eles estão cegos.
Os judeus, diz Paulo, não podiam compreender o Velho Testamento (isto
é, a revelação objetiva de Deus para eles), porquanto havia um véu sobre as
suas mentes (2 Co 3.15). O mesmo acontece quando qualquer porção da
verdade de Deus é apresentada a qualquer dos filhos de Adão. O homem, em
seu pecado, é incapaz de apreender corretamente a revelação geral ou a
revelação especial de Deus, visto que a sua capacidade de discernimento
espiritual foi praticamente inutilizada. Se a revelação objetiva tiver de ser
acolhida, ou se o homem tiver de responder a ela, Deus terá de retirar o véu
do coração do homem, restaurando a visão espiritual. Essa é a operação à
qual Paulo se referiu em 2 Coríntios 4.6: "Porque Deus que disse: Das trevas
resplandecerá luz – ele mesmo resplandeceu em nossos corações, para
iluminação do conhecimento da glória de Deus na face de Cristo". Foi a
operação da revelação subjetiva que Paulo descreveu em seu próprio caso, ao
dizer que a Deus "aprouve revelar seu Filho em mim" (Gl 1.15-16) - isto é,
mediante um ato iluminador dentro de seu próprio espírito. Foi esta
revelação que Cristo reconheceu, quando disse a Pedro que fora o Pai quem
lhe revelara que Jesus era o Cristo, o Filho de Deus (Mt 16.17). O processo
da manifestação objetiva precisa ser complementado por um ato de
iluminação interna, se o homem tem de chegar ao conhecimento de Deus.
Dois véus tem de ser retirados: aquele que oculta de nós a mente de Deus e
aquele que cobre o nosso coração. Em sua misericórdia, Deus remove ambos.
Assim, nosso conhecimento de Deus, do princípio ao fim, é um dom gracioso
dEle.
REVELAÇÃO PRESENTE E FUTURA
Jávimos que, em certo sentido, a revelação terminou: Deus nada mais
tem a dizer ao mundo, nesta nossa era, além do que já disse nas Escrituras,
que se completaram quando os escritos do Novo Testamento foram
encerrados no primeiro século d.C. Em um outro sentido, porém, a revelação
mais clara e completa ainda está por vir. O evento inimaginável, mas certo e
seguro, do retorno público de Cristo, quando todo olho O verá, para regozijo
ou angústia do homem, fará todo ser humano que já viveu, está vivendo ou
ainda viverá - bilhões deles - apresentar-se diante do Senhor para ser
pessoalmente julgado. Isso será um desvendamento que ultrapassará
qualquer coisa que tenhamos visto de Cristo até o momento. Será
precisamente como Pedro diz: "A revelação de Jesus Cristo" (1 Pe 1.7). Para o
povo de Deus, isso introduzirá uma eternidade na comunhão com Aquele "a
quem, não havendo visto, amais" (1 Pe 1.8); e um dos aspectos dessa
comunhão é retratado assim diante de nós: "Contemplarão a sua face" (Ap
22.4); e: "Havemos de vê-lo como ele é" (1 Jo 3.2).
A visão celestial de Deus, da qual faz parte o estar "sempre com o Senhor"
(1 Ts 4.17) para contemplar a sua face, sempre foi encarada pela igreja como
o supremo bem de todo ser humano (o summum bonum) - e com razão. Paulo
contrasta o conhecimento atual e o conhecimento futuro de Deus,
afirmando que agora vemos "como em espelho, obscuramente" (1 Co 13.12),
ao passo que então O veremos face a face. Na antiguidade, os espelhos eram
fabricados de metal batido e polido; não eram de boa qualidade. Assim,
Paulo está dizendo que o nosso atual conhecimento indireto é inadequado.
Uma versão da Bíblia parafraseia esse trecho, como segue: "Agora vemos
apenas um pobre reflexo, então veremos face a face. Agora conheço em parte;
então conhecerei plenamente, como sou plenamente conhecido".
Neste instante, você não pode ver o escritor deste parágrafo. As minhas
palavras são uma espécie de reflexo de meu coração e de minha mente;
porém, você não poderá conhecer-me "completamente bem", como
costumamos dizer, apenas pela leitura das minhas palavras. Porigual modo,
Deus é invisível para você; a sua Palavra revelada verdadeiramente reflete a
sua mente e o seu coração, embora não de uma maneira adequada à
realidade. Mas, quando Cristo voltar, conheceremos a mente e o coração de
Deus tão plena e diretamente como são conhecidos agora nossas mentes e
nossos corações. Quando me encontro longe de casa, e minha esposa me
escreve ou telefona, meus sentimentos tomam-se um misto de prazer,
devido ao contato estabelecido, e de saudade, devido à distância. Nessas
oportunidades, tenho o desejo de estar em casa, a fim de vê-la e estar com
ela. O mesmo sucede aos crentes, quando ouvem o seu Senhor que lhes fala
através da Bíblia, a qual Ele esclarece e aplica às suas vidas. Eles anelam por
aquela revelação mais plena e mais íntima que ainda está por vir.
Estive, certa ocasião, no topo do Ben Nevis, o ponto mais elevado da
Inglaterra. Havia névoas cinzentas por toda a parte, de modo que eu não
podia ver coisa alguma. Durante toda a subida, foi assim. Porém, quando
ergui a cabeça, a névoa acima de mim brilhava tanto que feria meus olhos.
Obviamente, havia apenas alguns metros de névoa entre eu e a luz do sol.
Era dolorosa a intensidade de meu anseio de que aquela espessa névoa se
dissipasse naquele momento (Infelizmente, não foi isso que sucedeu; e terei
de escalar novamente o Ben Nevis). Alguns dos quadros bíblicos que
refletem a beleza celeste despertam o coração do crente de maneira similar;
tal como a névoa brilhante, conferem-nos o senso da proximidade do sol, ao
qual não podemos ver (que, nesse caso, é o Filho de Deus), e despertam em
nós o desejo de estarmos dentro daquele brilho acima da névoa (que, nesse
caso, são os quadros bíblicos). "Os seus servos o servirão, contemplarão a
sua face, e nas suas frontes está o nome dele. Então já não haverá noite, nem
precisam eles... do sol, porque o Senhor Deus brilhará sobre eles, e reinarão
pelos séculos dos séculos" (Ap 22.3-5). No Ben Nevis, eu quis ver o sol; na
terra, os cristãos esperam ardentemente pelo dia em que verão o seu Senhor.
Quando puder o seu rosto mirar,
Oh! Há de ser grande glória para mim.

Sim, isso também será revelação.


REVELAÇÃO DADA E RECEBIDA
Você quer conhecer a Deus? Então faça conforme se vê em algumas placas
de aviso, nos cruzamentos das estradas: Pare, olhe e escute!
Pare de procurar Deus, buscando-O em seus pensamentos, fantasias e
sentimentos pessoais, ao mesmo tempo em que desconsidera a revelação de
Deus. O conhecimento que temos acerca dEle e de sua revelação aos homens
são realidades correlatas; ninguém pode ter a primeira sem ter também a
segunda.
Olhe para aquilo que Deus nos revelou. A Bíblia é a janela por meio da
qual você poderá olhar e ver a sua revelação. Também há muitos crentes e
muitos livros (este é um deles) que poderão ajudá-lo a entender aquilo que
você está examinando e a selecionar o que realmente importa. Da mesma
maneira que Londres é o principal lugar da Inglaterra que os turistas de
além-mar gostam de visitar, sem importar quais outros lugares da Inglaterra
também queiram conhecer, assim também o Senhor Jesus Cristo, que
morreu mas está vivo para toda a eternidade, é o centro das Escrituras. Sem
importar o que mais lhe chame a atenção na Bíblia, não permita que essas
outras coisas o distraiam dEle.
Escute o que a Bíblia tem a dizer-lhe sobre Cristo, bem como sobre a
necessidade que temos dEle (ou, especificamente, sobre a necessidade que
você tem dEle). A Bíblia, na qual você pode contemplar a pessoa de Cristo, é
a comunicação de Deus para você acerca do Filho. Aprenda com Deus acerca
de seu Filho; reaja favoravelmente a tudo quanto ali lhe for mostrado. Faça
isso, e algum dia você estará dizendo juntamente com Paulo e com muitos
outros milhões de pessoas salvas: "Deus... resplandeceu em nossos corações,
para iluminação do conhecimento da glória de Deus na face de Cristo" (2 Co
4.6). Você estará dizendo as palavras do ex-cego de Jerusalém: "Uma cousa
sei: Eu era cego, e agora vejo" (Jo 9.25). Você conhecerá a revelação divina
segundo a única maneira que, em última análise, tem proveito - a saber, pelo
lado de dentro. E, conhecendo-a dessa maneira, você conhecerá o Senhor
Deus.
Este capítulo versa sobre aquele livro que figura em sua biblioteca,
trazendo na capa o título de "Bíblia Sagrada".
A palavra "bíblia" vem do termo grego que significa "livro". E "Bíblia
Sagrada" significa simplesmente "livro santo". Mas, esse título é certamente
estranho. Pois, quando você abre a Bíblia, descobre que realmente trata-se
de uma coletânea de livros. A Bíblia contém sessenta e seis livros distintos,
escritos originalmente em três idiomas (hebraico, grego, e algumas porções
em aramaico), no decurso de mais de mil anos. Os próprios livros da Bíblia
têm os mais variados conteúdos. Há livros de história, de sermões, cartas,
um hinário e um cântico de amor. Incluem pesquisas geográficas,
especificações de arquitetos, diários de viagens, estatísticas populacionais,
árvores genealógicas, inventários e documentos legais de toda espécie. Um
título que poderia parecer mais apropriado seria: "Biblioteca de memórias e
reminiscências hebraico-cristãs". Adespeito disso, a igreja cristã trata essa
miscelânea como um único livro, chamando-o de "Bíblia Sagrada". Por quê?
O que faz essa coletânea ser "sagrada"? E com base em qual princípio esses
sessenta e seis livros compõem uma unidade - "a Bíblia"?
AUTORIDADE DA BÍBLIA
Também surgem outras questões. Há o problema da autoridade da Bíblia.
A igreja sempre considerou, em certo sentido, a Bíblia como um livro
autoritativo; mas, atualmente, manifesta-se um certo desacordo sobre como
deveríamos entender essa questão da autoridade bíblica. Que tipo de
autoridade tem a Bíblia? Ela é um livro humano; é a sua autoridade, por
conseguinte, uma espécie de autoridade humana? Deveríamos pensar que se
trata da autoridade de um grupo de peritos em assuntos religiosos, cujas
palavras devem ser respeitadas somente por serem palavras de profundos
conhecedores naquele campo específico? Ou, é o mesmo tipo de autoridade
que existe nas melhores fontes utilizadas pelos historiadores - aquele tipo de
autoridade contida nas afirmações de Tucídides para os estudantes da
guerra do Peloponeso? Essas duas opiniões são largamente mantidas hoje
em dia. Devemos notar, porém, que ambos os pontos de vista atribuem à
Bíblia uma autoridade meramente relativa e provisória, nunca absoluta e
final. Os peritos podem enganar-se, e até mesmo Tucídides pode ter se
enganado nos fatos. Ambos os pontos de vista, portanto, dão margem para a
possibilidade dos estudiosos da Bíblia terem a necessidade de corrigi-la.
Porém, os cristãos dos primeiros séculos teriam considerado essa ideia como
blasfema, visto que reputavam como infalível a autoridade das declarações
da Bíblia, por ser ela divina. Estariam corretos? Que tipo de autoridade tem
a Bíblia?
Buscaremos respostas para essas indagações na própria Bíblia. E,
antecipando uma óbvia objeção, afirmamos que agir assim não é raciocinar
em círculos. Pois não estamos pressupondo a veracidade e autoridade da
Bíblia, a fim de prová-las. Apenas queremos examinar a Bíblia em busca de
informações. A Bíblia nos apresenta o parecer de várias pessoas, acerca do
assunto sobre o qual estamos aqui inquirindo. Entre elas está Jesus Cristo,
de cujos ensinos temos quatro narrativas quase contemporâneas entre si, e
também os profetas e os salmistas do Antigo Testamento e os apóstolos do
Novo Testamento. Queremos averiguar que opiniões esses homens
mantiveram a esse respeito. Aceitarmos essas opiniões, uma vez que as
descubramos, é algo que dependerá de nossa consideração quanto a
confiabilidade dos mestres que as ensinaram.
A REVELAÇÃO E A ESCRITURA
"Bíblia" não é um vocábulo bíblico. O Novo Testamento (ao referir- se,
obviamente, ao Antigo Testamento) faz alusão à "Escritura" ou às
"Escrituras". O termo grego é graphé, que significa "escrita". O alemão utiliza
essa palavra; onde nós falamos "Bíblia Sagrada", o alemão diz "die Heilige
Schrift" - a escrita sagrada. Algumas vezes, o Novo Testamento também
chama o Antigo Testamento de "a lei" (termo esse que pode cobrir não
somente o pentateuco, mas também os profetas e os salmos - ver Jo 10.34,
35; 15.25, citando Sl 82.6 e 35.19; e também 1 Co 14.21, citando Is 28.11,
12). "Lei" representa o vocábulo hebraico torah, que tem um sentido mais
amplo do que rígidos decretos legais e exprime a ideia de instrução
autoritativa, em qualquer forma. O conceito de Escritura que Cristo, os
apóstolos, os profetas e os salmistas ensinavam era o de escritos que
continham instruções autoritativas, aos quais podemos apropriadamente
nos referir como "palavra", "palavras", "estatutos", "preceitos",
"testemunhos" e "mandamentos" de Deus, conforme se verifica no Salmo
119.
Poderíamos sumariar esse ponto de vista em duas proposições:
(1) As Escrituras são um registro histórico da revelação. Elas nos relatam
aquilo que Deus tem dito e feito através dos séculos, a fim de tornar-Se
conhecido por homens pecadores como Senhor, Juiz e Salvador deles.
Começando pela criação e pela queda no pecado, as Escrituras traçam a
narrativa dos atos de Deus desde a sua primeira promessa, ou seja, que o
descendente da mulher haveria de esmagar a cabeça da serpente, através de
tudo quanto Ele fez ou levou a acontecer, para realizar o cumprimento dessa
promessa. O Antigo Testamento conta-nos sobre a chamada de Abraão, o
relacionamento de Deus com os patriarcas, o êxodo de Israel do Egito, a
entrega da lei, a conquista da terra de Canaã, o aparecimento dos juízes, a
fundação da monarquia, a divisão do reino, o envio dos profetas, a promessa
da vinda de Cristo, os reiterados julgamentos e restaurações de Israel, a
construção, a destruição e a reconstrução do templo para o qual o Senhor
estava por vir. O Novo Testamento completa a história ao falar sobre o
ministério de despertamento de João Batista, a obra messiânica de Jesus
como profeta, sacerdote e rei, a sua ressurreição dentre os mortos e o
derramamento do Espírito Santo, e a pregação do evangelho pelos apóstolos.
Isso posto, a Bíblia é o registro escrito do drama da redenção. Os livros
históricos relatam esse drama, até chegar à época dos apóstolos. Os sermões
dos profetas e as epístolas dos apóstolos explicam-no e aplicam-no, além de
apontarem para o seu clímax futuro, quando Cristo voltar a este mundo. Os
salmos meditam a respeito desse drama, louvam a Deus e oram em razão
dele. Os livros de sabedoria - Jó, Provérbios e Eclesiastes - contemplam a
vida sob vários ângulos, à luz desse drama. Esse é o tema da Bíblia. Na
verdade, é a primeira razão pela qual os seus sessenta e seis livros perfazem
um único livro, abordando esse tema de forma harmoniosa, como um
assunto comum a todos.
Isso explica, em parte, a razão dos apóstolos estarem certos de que o
Antigo Testamento era uma coletânea escrita para os cristãos (cf. Rm 4.23,
24; 15.4; 1 Co 10.11; 2 Tm 3.15ss.; 1 Pe 1.10ss.). Eles perceberam que o
Antigo Testamento era a primeira porção da história que a própria
mensagem deles completava. Da mesma forma que o Antigo Testamento,
sem o evangelho cristão, é um alicerce sem o edifício, assim também o
evangelho cristão sem o Antigo Testamento é um edifício sem o alicerce. Por
isso, os apóstolos asseguraram-se de que os primeiros cristãos gentios
adotassem e usassem o Antigo Testamento como escrituras cristãs.
Até aqui, tudo bem; poucos teólogos cristãos discordariam do que
dissemos. Porém, agora cumpre-nos completar a nossa primeira proposição
com uma segunda, cuja força a teologia moderna não se dispõe a reconhecer.
(2) As Escrituras são uma revelação na forma de um registro histórico. Elas
são "os oráculos de Deus" (Rm 3.2), a manifestação direta ou indireta de sua
mente e de sua vontade. A Bíblia é a escrita divina. "TodaEscritura [ou cada
trecho das Escrituras] é inspirada por Deus" (2 Tm 3.16). Essa referência à
inspiração, seja dito desde o começo, não tem quaisquer implicações
psicológicas. Não implica que os autores da Bíblia escreveram todos em
estado de êxtase, ou num estado de consciência elevado acima do normal,
nem que escreveram como se fossem autômatos, em algum estado de transe,
no qual as operações normais de suas mentes foram suspensas. É possível
que isso tenha sucedido a alguns deles, enquanto que a outros não; mas essa
não é a questão. "Inspirada por Deus" é a tradução de um único vocábulo
grego, theopneustos, que significa "soprada por Deus" - de fato, expirada mais
do que inspirada. E, não foram os escritores, mas os seus escritos é que
foram inspirados; escritos esses em que a palavra de Deus é proferida.
Assim, a nossa afirmativa significa apenas que tudo quanto pertence à
categoria de Escritura procede de Deus, devendo, portanto, ser acolhido
como instrução vinda de Deus. De conformidade com isso, a inspiração, em
seu sentido teológico, deve ser definida como a obra do Espírito Santo (o
"sopro" de Deus: "Espírito" significa "sopro"), assegurando que homens
escrevessem precisamente aquilo que Deus queria que ficasse escrito, a fim
de comunicar seus pensamentos aos homens. É aquele ser movido pelo
Espírito Santo pelo qual "homens [santos] falaram da parte de Deus" (2 Pe
1.21) e escreveram da parte de Deus também, pois é a mais confirmada
"palavra profética", sob forma escrita (v. 19), da qual Pedro está falando. A
inspiração foi a atividade que assegurou que aquilo que ficou escrito é, na
verdade, a Palavra de Deus. Assim sendo, as Escrituras inspiradas são a
revelação escrita.
A CONFIABILIDADE DAS ESCRITURAS
Em outras palavras, as Escrituras têm uma dupla autoria. Homens as
escreveram, e Deus as escreveu por meio desses homens. As Escrituras são
escritos divinos tão verdadeiramente como são escritos humanos. Elas não
consistem apenas em testemunho humano a respeito de Deus, mas também
no auto testemunho de Deus. Em última análise, as palavras das Escrituras
são as palavras de Deus testemunhando acerca de Si mesmo. Os autores
imediatos da Bíblia foram homens, mas o seu Autor final foi Deus, o Espírito
Santo. Portanto, as declarações bíblicas podem ser citadas como aquilo que
seus autores humanos disseram (por exemplo, Moisés, Davi, Isaías, etc.; ver
Rm 10.5; 11.9; 10.20) ou como o que Deus declarou através desses autores
humanos (por exemplo, At 4.25; 28.25), ou como aquilo que o Espírito Santo
disse (por exemplo, Hb 3.7; 10.15). Outrossim, as declarações encontradas
no Antigo Testamento, que em seu contexto não foram feitas diretamente
por Deus, podem ser citadas como palavras de Deus, simplesmente por
estarem escritas no Antigo Testamento (cf. Mt 19.4, 5; Hb 3.7; At 4.24, 25;
13.34, 35, citando Gn 2.24; Sl 95.7; 2.1; Is 55.3, respectivamente). Além
disso, Paulo pôde referir-se à promessa feita por Deus a Abraão, bem como à
ameaça a Faraó, ambas proferidas muito antes que o registro bíblico delas
fosse escrito, como palavras que as Escrituras dirigiram àqueles dois homens
(Gl 3.8; Rm 9.17). Isso demonstra quão completamente Paulo identificava as
palavras das Escrituras com os pronunciamentos de Deus.
É evidente, pois, que, para Cristo e seus apóstolos, aquilo que a Escritura
disse foi Deus quem o disse. Aconvicção deles era que a Bíblia inteira é
profética, no sentido primário do termo, ou seja, os escritores da Bíblia
foram os escribas de Deus; e isto no mesmo sentido em que os profetas, ao
pregar, foram os porta-vozes de Deus. Desta forma, tudo quanto ficou
escrito pode ser apresentado com a mesma fórmula com que eram
introduzidos os sermões dos profetas: "Assim diz o SENHOR". Essa é a mais
profunda razão pela qual os escritos bíblicos são "sagrados" (cf. 2 Tm 3.15) -
não somente porque abordam coisas santas, mas porque o Deus santo é o
seu verdadeiro Autor. Essa é a natureza das Escrituras Sagradas. E a segunda
razão pela qual esses sessenta e seis livros, na realidade, compõem um único
livro é porque todos procedem de uma única mente - a mente de Deus, o
Espírito Santo.
Naturalmente, isso não é negar que Deus se tenha acomodado às
externalidades, ao temperamento, à linguagem e ao estilo daqueles a quem
Ele usou como seus escribas. É claro que Ele assim fez - embora, algumas
vezes, segundo somos informados, Ele impelia os profetas a falarem de
coisas que eles não compreendiam plenamente (1 Pe 1.10-12). Nem isso
serve para negar que os escribas de Deus tenham sido, em si mesmos,
falíveis e imperfeitos, e, naturalmente, tendentes ao erro. No entanto, esses
fatos asseveram que, ao escreverem a Escritura Sagrada, Deus realmente os
preservou do erro, de tal forma que eles não falsificaram os fatos, nem
distorceram o propósito e o caráter de Deus. E também afirmam que, apesar
de que aquilo que um trecho particular da Bíblia ensina pode não ser a
verdade inteira acerca do assunto, ele está sempre correto e verdadeiro, até
onde vai a declaração daquele trecho. Isso decorre do fato que as Escrituras
são o testemunho escrito de Deus, o qual não mente nem engana (Nm
23.19; Tt 1.2). A veracidade de Deus garante a confiabilidade das Escrituras.
Essa confiabilidade é um fator pressuposto em todas as ocasiões em que o
Novo Testamento manuseia o Antigo. Cristo e seus apóstolos assumiram a
verdade da história do Antigo Testamento e a validade permanente do
ensino do Antigo Testamento como expressão da mente e da vontade de
Deus. Portanto, eles argumentaram alicerçados nas Escrituras, pois "a
Escritura não pode falhar" (Jo 10.35; cf. Mt 5.18; Lc 16.17). Para eles, o fim
do debate era o "está escrito"; não havia apelação contra o veredito das
Escrituras, porquanto isso seria apelar contra o juízo expresso do próprio
Deus. Tal era a avaliação que eles faziam das Escrituras; tal era a divina
autoridade que eles atribuíam à Bíblia. Se pensamos que o Filho de Deus e os
seus representantes, dotados do Espírito Santo, sabiam do que estavam
falando, quando se manifestavam sobre as realidades espirituais, então
devemos aceitar a avaliação deles, tal qual aceitamos a palavra deles quanto
a todas as demais questões atinentes à fé e à prática.
OS RESULTADOS DA INSPIRAÇÃO
Passamos agora a expor algumas deduções daquilo que acabamos de
dizer.
l. A canonicidade da Bíblia repousa na inspiração. "Cânon" significa "regra";
e um livro "canônico" é aquele que faz parte da regra de fé e de vida. Porém, a
única regra válida de fé e de vida é a Palavra de Deus. Para ser canônico,
portanto, um livro precisa ser inspirado, isto é, deve ser palavra de Deus em
forma escrita. Sendo assim, para estabelecer os limites do cânon das
Escrituras, a tarefa da igreja consiste simplesmente em discernir quais livros
são inspirados, ou seja, quais têm o caráter de Escritura Sagrada. A igreja não
confere autoridade a uma coleção de livros que tem mera origem humana,
mas reconhece a autoridade inerente dos livros que tiveram origem divina. A
igreja cristã herdou o cânon fixo do Antigo Testamento e reconheceu que os
apóstolos haviam sido equipados com o Espírito Santo, conforme a
promessa de Cristo (Jo 14.26; 15.26; 16.13ss.), de tal maneira que o ensino
deles era inspirado, exatamente no mesmo sentido que haviam sido as
Escrituras do Antigo Testamento (1 Co 2.12, 13; 14.37; 1 Ts 2.13). De
conformidade com isso, a fixação do cânon do Novo Testamento (uma tarefa
que foi terminada aproximadamente um século depois da era apostólica), em
essência, consistiu em descobrir, mediante inquirição histórica, quais livros
eram de autoria autenticamente apostólica, isto é, escritos ou sancionados
pelos apóstolos, ou que vieram do círculo íntimo onde atuava a revelação
divina, através de profetas ou apóstolos (cf. Ef 3.5), e que ensinavam
doutrina comprovadamente apostólica. (Exemplos de livros que não foram
escritos pelos apóstolos ou seus agentes, mas que, como é evidente, vieram
do círculo íntimo e do ensinamento da doutrina apostólica, são: Hebreus,
Tiago, Judas e Apocalipse, caso o apóstolo João não tenha sido o seu autor –
a opinião dos eruditos difere bastante, quanto a isso, conforme se sabe.)
A questão se o nosso Novo Testamento contém livros a mais ou livros a
menos incomoda alguns. Não podemos ventilar convenientemente essa
questão aqui, porém, é suficiente que se diga o seguinte:
(a) Existem evidências externas e internas suficientes para justificar a
aceitação, como autênticos e inspirados, de todos os vinte e sete livros do
Novo Testamento, e também a rejeição, como não-autênticos e não-
inspirados, de todos os demais livros que chegaram até nós exibindo nomes
apostólicos ou alegando feitos do Senhor ou dos apóstolos.
(b) As reiteradas demonstrações da unidade interna de nosso Novo
Testamento e a experiência histórica da igreja de ouvir a voz do Senhor em
todos os livros do Novo Testamento, sem exceção, não nos deixam em
posição de desafiar os limites do cânon, pondo em dúvida este ou a aquele
livro nesta nossa época. O fato que Lutero pôs em dúvida a epístola de Tiago,
Hebreus e Judas, bem como o livro de Apocalipse (tendo ele alicerçado suas
dúvidas sobre aquilo que a maioria tem reputado como uma compreensão
equivocada do seu conteúdo) e, ainda, o fato que certos indivíduos astutos
da atualidade questionam se os livros de Mateus, João, Efésios, as epístolas
pastorais e as de João foram escritos pelos apóstolos cujos nomes os
intitulam, tais fatos não precisam nos deixar preocupados. As dúvidas são
honestas, e os eruditos que as têm exprimido são respeitáveis. Todavia,
aventuramo-nos a afirmar que essas dúvidas não são necessárias, nem
mesmo naturais, quando vistas por uma abordagem disciplinada das
evidências envolvidas. Àqueles que quiserem testar a minha afirmativa,
recomendo a obra de Donald Guthrie, New Testament lntroduction -
Introdução ao Novo Testamento.
2. A autoridade da Bíblia repousa na inspiração. Muitos de nossa época
consideram as Escrituras como um testemunho humano acerca de Deus e
reduzem a sua autoridade à autoridade das palavras e feitos divinos acerca
dos quais esse testemunho é prestado (de forma mais ou menos adequada).
Contudo, isso é apenas metade da verdade. A Bíblia também é,
fundamentalmente, o testemunho de Deus acerca de Si mesmo, e a
autoridade dela repousa, em última análise, sobre o fato que ela é a Palavra
de Deus. Por qual razão devemos acreditar na história relatada na Bíblia,
aceitar os seus ensinos, confiar nas suas promessas e sermos governados
pelos seus mandamentos? Porque as Escrituras são a fala, em forma escrita,
do nosso Criador: "Assim diz o SENHOR". Por esse motivo, a vida de fé e
obediência alicerça-se sobre a convicção de que aquilo que as Escrituras
dizem foi Deus quem o disse. E Jesus jamais será verdadeiro Senhor, no
coração de um homem, enquanto as Escrituras não se tiverem assenhoreado
de sua mente e de sua consciência. Se você realmente quer honrar a Cristo e
a seu Pai, submeta-se às Sagradas Escrituras, nas quais o Pai, por intermédio
do Espírito, dá testemunho de seu Filho. Fazer isso não é adotar uma
supersticiosa bibliolatria; é praticar a pura e verdadeira religião cristã. Isso é
puro cristianismo.
3. A interpretação da Bíblia repousa na inspiração. Interpretar, no sentido
bíblico, significa descobrir a relevância das Escrituras para nós, hoje. Porém,
aqueles que encaram a Bíblia simplesmente como a autoexpressão religiosa
dos antigos povos do Oriente Médio - acerca de quem só podemos afirmar
que defendiam as suas crenças com boa fé - jamais poderão nos dizer como
encontrar nas Escrituras a mensagem de Deus para nós mesmos. Nestes
últimos cem anos, a maior parte da cristandade protestante tem estado
discordante acerca desta questão (e ainda está, de algum modo, pior do que
nunca). Entretanto, uma vez que cheguemos a reconhecer que a Bíblia é o
ensino de Deus, e recordemos que nem Deus, nem Cristo, nem a natureza e
a necessidade humanas, nem o arrependimento, nem a fé, nem a piedade se
alteraram, desde que a Bíblia foi escrita, não teremos qualquer problema
básico quanto a adotar um princípio ou um método ao procurarmos ouvir a
palavra de Deus para nós, mediante a análise e a aplicação daquilo que foi
escrito. Antes, haveremos de encarar a tarefa como algo comparável ao
aprendizado das leis de um país, a partir de um estudo daquilo que foi dito e
decidido nos tribunais - revisando essas decisões e observando como os
princípios foram aplicados, para que se chegasse àquelas decisões; então,
começaremos a perceber como a lei se aplica a nós.
Por semelhante modo, o estudante da Bíblia perceberá, através da
maneira como Deus lidou com os seus servos nos tempos bíblicos, qual é a
mente e a vontade do Senhor acerca de si mesmo. O único problema será
fazer tal exame com exatidão, sem perder de vista aqueles fatores que nós
mais precisamos notar. Se quisermos obter sucesso quanto a isso,
precisaremos depender totalmente da luz e do auxílio do Espírito Santo,
nosso divino mestre (cf. 1 Jo 2.20, 27). O ministério especial do Espírito,
efetuado através de sermões, da erudição bíblica e do dedicado estudo
pessoal das Escrituras, consiste em tornar-nos cônscios das nossas
necessidades e daquilo que Deus está nos dizendo sobre elas, por intermédio
do texto sagrado.
Para interpretar bem a Bíblia, precisamos possuir ideias claras quanto a
duas coisas, acerca das quais as mentes humanas algumas vezes têm se
mostrado confusas. A primeira consiste nas tarefas que as palavras realizam
para nós: questão essa muito estudada na atualidade, no nível técnico da
linguística, da semântica, da análise filosófica e daquilo que, algumas vezes,
é chamado de gramática profunda. Na Bíblia, tal como em qualquer tipo de
literatura, as palavras combinam-se sob a forma de sentenças a fim de
informar (por exemplo, "Deus reina"); a fim de ordenar e dirigir (por
exemplo, "Regozijai-vos sempre"); a fim de criar um estado de parceria (por
exemplo, "Faço uma aliança"); a fim de produzir uma consciência existencial
imaginativa daquilo que era previamente conhecido apenas em seus
elementos essenciais (por exemplo, as parábolas de Jesus); a fim de evocar
atitudes e reações (como confiança, amor, fé, temor, arrependimento,
esperança, alegria, admiração, adoração, etc.); e a fim de revelar as pessoas
umas às outras (por exemplo, "Eu te amo"). As sentenças bíblicas têm por
objetivo funcionar de todas essas maneiras em relação a nós, tal como
sucedeu no caso daqueles a quem elas foram originalmente dirigidas. Não
devemos imaginar que essas sentenças destinam-se a dar-nos somente
informações e ordens, nem que, por destinarem-se a fazer muito mais do
que isso, as suas informações e ordens são de importância secundária e que,
assim sendo, podemos desconsiderá-las. Essas duas ideias são erradas e más.
A segunda coisa acerca da qual devemos ter pensamentos claros é a
maneira por meio da qual Deus fala conosco. Isso ocorre essencialmente
quando somos levados a julgar a nós mesmos e as nossas situações, da
maneira que Ele mesmo o faz. O que Deus faz é conduzir-nos, quer de
argumento em argumento, por um longo período de tempo, quer por meio
de um repentino brilho de discernimento (e essas duas coisas acontecem
conosco), para percebermos como as verdades bíblicas afetam este ou aquele
aspecto das nossas vidas e das vidas dos nossos semelhantes. O Novo
Testamento orienta os crentes a buscarem orientação, acerca de sua fé e de
sua vida diária, no ensino apostólico apoiado no Antigo Testamento. Em
outras palavras, é na Bíblia que encontramos essa orientação e não em
quaisquer iluminações inesperadas e não-racionais. Paulo mostrou-se muito
severo para com as pessoas que descansavam sua fé em visões (ver Cl 2.18).
Apesar de que não cabe a nós proibir Deus de fazer revelações à parte das
Escrituras, ou proibi-Lo de fazer qualquer outra coisa (Ele é Deus, afinal de
contas!), com toda a propriedade podemos insistir que o Novo Testamento
desencoraja os crentes a esperarem receber a palavra de Deus para si, por
meio de qualquer outro canal que não seja a aplicação cuidadosa, para si
mesmos, daquilo que as Sagradas Escrituras ensinam a nós, neste nosso
final do século XX . Isso nos leva ao assunto final deste capítulo.
NOSSA NECESSIDADE DAS ESCRITURAS
"Lâmpada para os meus pés é a tua palavra, e luz para os meus caminhos''
(Sl 119.105). Examinemos o quadro traçado pelo salmista. Ele precisava
fazer uma viagem. Habitualmente a Bíblia retrata a vida como se fosse uma
viagem. Ele estava no escuro, incapaz de divisar o caminho a seguir, sujeito a
perder-se e a ferir-se, se avançasse às cegas. (Isso retrata a nossa ignorância
natural sobre a vontade de Deus para as nossas vidas, a nossa incapacidade
de adivinhá-la e a certeza de que, na prática, nós a erraremos.) Porém, uma
lâmpada foi dada ao viajante (imaginemos que fosse uma lanterna). Agora,
ele pode perceber a vereda à sua frente, passo a passo, sem desviar-se dela,
embora as trevas continuem a cercá-lo (Esse quadro revela o que a Palavra
de Deus faz por nós, mostrando-nos como devemos viver). O clamor do
salmista foi um misto de louvor, ação de graças, admoestação, testemunho e
confiança. Louvor, pelo fato que Deus glorifica a sua graça, por dar aos
homens um tão precioso dom como a sua Palavra; ação de graças, porque ele
entendia o quanto precisava da Palavra e quão perdido estaria sem ela;
admoestação, dirigida a si mesmo e a qualquer um que lesse o seu salmo,
para que a Palavra de Deus seja sempre valorizada como algo muito precioso,
e para que sempre façamos uso completo dela para o propósito para o qual
nos foi dada; testemunho, em relação ao fato que, já em sua experiência
diária, ela havia demonstrado o seu poder; e confiança, porque tinha a
certeza de que isso continuaria até ao fim da jornada.
O salmista havia memorizado o pentateuco - a lei de Moisés - em seu
contexto narrativo; e, em suas meditações trabalhava baseado nisto. Ora,
temos o privilégio de possuir a Bíblia em sua totalidade, em forma impressa.
Mas, até onde realmente a conhecemos? Quanto a amamos? Felizes seremos
se tivermos aprendido, em oposição ao ceticismo moderno, a fazer nossas as
declarações e o sentido das palavras do salmista.
Cerca de 170, dentre os 176 versículos do Salmo 119, celebram o
ministério da Palavra revelada por Deus, na vida do homem piedoso, como
sua fonte de orientação, esperança, força, correção, humildade, pureza e
júbilo. Os trechos do Salmo 19.7-14 e 2 Timóteo 3.15-17 fazem,
abreviadamente, o mesmo. Conhecemos algo daquilo que Paulo e os
salmistas conheciam quanto ao poder que as Escrituras têm de moldar,
redirecionar e renovar vidas desordenadas?
Por qual motivo o contato com a Palavra escrita de Deus transforma
algumas pessoas e outras não? Primeiro, algumas pessoas permitem que a
Palavra escrita guiem-nas à Palavra viva, Jesus Cristo, para quem a Palavra
escrita aponta continuamente, enquanto outras não permitem que isso
suceda. Segundo, nem todos aproximam-se da Bíblia famintos e cheios de
expectativas, cônscios da sua necessidade diária de ouvirem Deus falar.
"Abre bem a tua boca, e ta encherei", diz Deus, no Salmo 81.10. A boca
aberta é um gesto de fome e de dependência. Diz o salmista: "Abro a boca, e
aspiro; porque anelo os teus mandamentos" (Sl 119.131). O desejo por Deus,
oriundo de nossa necessidade por Ele, é o fator que decide quão profundo ou
quão superficial será o impacto das Escrituras sobre nós. Leitor da Bíblia,
examine o seu coração! Aquilo que J. C. Ryle escreveu em um folheto, há
mais de cem anos, permanece inteiramente relevante:

Tu vives num mundo onde a tua alma corre um perigo constante. Os


inimigos te cercam por todos os lados. O teu próprio coração é enganador.
Os maus exemplos são numerosos. Satanás está sempre trabalhando para
desanimar-te. Acima de tudo, porém, abundam as falsas doutrinas e os
falsos mestres de todo tipo. Esse é o teu grande perigo.
Para permanecer em segurança, precisas estar bem armado. Precisas tomar
nas mãos as armas que Deus te deu para a tua defesa. Precisas entesourar
na mente as Sagradas Escrituras. Isso é estar bem armado.
Arma-te, pois, com um completo conhecimento da Palavra escrita de Deus.
Lê a tua Bíblia com regularidade. Torna-te familiar com a tua Bíblia...
Negligencia a tua Bíblia, e nada do que conheço pode guardar-te do erro, se
algum convincente defensor de falsos ensinos porventura te abordar.
Estabelece como regra não acreditar em coisa alguma, exceto naquilo que
pode ser provado nas Escrituras. Somente a Bíblia é infalível... Tu
realmente usas tua Bíblia, tanto quanto deverias?
Hoje em dia, há muitas pessoas que creem na Bíblia, mas que a leem muito
pouco. A tua consciência segreda-te que és uma dessas pessoas?
Se isso acontece contigo, então és uma daquelas pessoas que,
provavelmente, obterão bem pouca ajuda da parte da Bíblia em tempos de
necessidade. A provação é uma experiência esclarecedora... Tua reserva de
consolos bíblicos, algum dia desses, pode estar muito baixa.
Nesse caso, tu és a pessoa que provavelmente não conseguirá firmar-se na
verdade. Eu não ficaria surpreso se viesse a ouvir que andas perturbado com
dúvidas e indagações acerca da segurança da salvação, da graça, da fé, da
perseverança... O diabo é um antigo e astucioso adversário. Ele é capaz de
citar as Escrituras com grande prontidão, quando quiser. Por enquanto, não
estás suficientemente preparado para combater o bom combate contra
Satanás... A espada pende frouxamente na tua mão.
Se isso acontece contigo, és a pessoa que provavelmente cometerá muitos
erros na vida. Eu não ficaria surpreso se me contassem que tens enfrentado
problemas no teu casamento, com os teus filhos, com conduta de teus
familiares e com as pessoas com quem te associas. O mundo pelo qual guias
o barco de tua vida está cheio de rochas, baixios e bancos de areia. Tu não
estás suficientemente familiarizado com cartas marítimas e com faróis.
Se esse é o caso, tu és a pessoa que provavelmente acabará sendo desviada,
durante algum tempo, por algum falso mestre. Eu não me admiraria se
ouvisse que uma dessas pessoas espertas e eloquentes, capaz de fazer uma
convincente exposição de suas ideias, está te desviando para o erro. Tu estás
precisando de lastro (a verdade de Deus); e, nesse caso, não me admirarei se
fores lançado para cá e para lá, como um pedaço de cortiça sobre as ondas.
Todas essas são situações desconfortáveis. Quero que escapes de todas elas.
Aceita o conselho que estou te dando aqui. Não fiques apenas lendo a Bíblia
aos poucos - mas lê em grande quantidade... Lembra-te dos teus muitos
inimigos. Arma-te!
Existe na Bíblia a doutrina da santa trindade? Certa ocasião, uma
enfadonha Testemunha de Jeová desafiou-me a encontrar essa doutrina na
Bíblia. Portanto, tive de fazer uma exposição nesse sentido: Jesus…

a. endossava o monoteísmo do Antigo Testamento (Mc 12.29), e, no


entanto,
b. considerava-se "o Filho" em um sentido singular (Mt 11.27; Mc 12.1-
12; 13.32), tendo prescrito e aceito a adoração à sua pessoa como Filho
de Deus e tendo considerado essa adoração como correta expressão de
fé (Jo 5.23; 9.35-38; 20.28);
c. prometeu o Espírito Santo como "outro Consolador", que viria
substituí-Lo para desempenhar seu próprio multifacetado ministério
(Jo 14.16); e
d. agrupou o Pai, o Filho e o Espírito Santo no "nome" trino (usando-o no
singular, não no plural, como notamos), no qual - isto é, em relação ao
qual - os futuros discípulos deveriam ser batizados (Mt 28.19).

Será que esta resposta foi suficiente? Talvez. O fato é que ela não
retrucou. E, o próximo questionamento foi sobre um outro assunto, a saber,
a igreja como dona de terras nas favelas de Paddington.
As Testemunhas de Jeová negam que as Escrituras ensinam a deidade do
Filho e do Espírito Santo. Assim sendo, esse grupo está reproduzindo o
arianismo do século IV. Os cristãos que mantêm a linha central ensinam a
doutrina da trindade, tal como anteriormente toda a igreja cristã aprendeu a
fazer contra os arianos. Todavia, algumas vezes os crentes fracassam em
expressar essa doutrina. As ilustrações que usam servem de farto manancial
de tropeços. Uma dessas ilustrações representa a deidade como um trevo
(três folhas que comporiam uma única folha), e, em seguida, descrevem o
Filho e o Espírito como se cada um deles fosse apenas uma "parte" de Deus.
Algum outro evangélico lança mão da ilustração dos três estados da água
(sólido, líquido e gasoso), ou da ilustração dos diferentes aspectos de um
cubo (um único cubo, várias faces e quinas); e daí passam a falar do Filho e
do Espírito Santo como dois papéis extras que o Deus único desempenha em
sua autorrevelação. Hoje em dia, há crentes que sentem dificuldades para
pensar sobre Jesus e o Pai como duas pessoas distintas. Eles também
regularmente despersonalizam o Espírito Santo, tratando-O como se Ele não
fosse uma pessoa. Algo popular entre os teólogos radicais é um unitarismo
que vê Jesus como se fosse apenas uma materialização de nossa tríplice
experiência de Deus: acima de nós, ao nosso lado e dentro de nós.
Entrementes, os mórmons, o grupo religioso de mais rápido crescimento na
América do Norte, proclamam o triteísmo, vendo o Pai, o Filho e o Espírito
Santo como três deuses juntos. A cena é confusa.
Muitos crentes descartam a doutrina da triunidade de Deus como uma
abstração difícil e sem importância, uma peça de antiga quinquilharia
teológica, inteiramente sem valor em nossos dias. Eles concordariam com o
falecido Emil Brunner, que dizia que a trindade é uma "doutrina teológica
defensiva", desenvolvida pela igreja primitiva e não fazia parte do evangelho
original. Eles não veem qualquer importância entre alguém dirigir suas
orações ao Pai, ao Filho ou ao Espírito Santo (ou se, de fato, alguém salta de
uma para outra dessas pessoas, em uma única oração). Eles constantemente
mudam o foco da atenção de uma pessoa da deidade para outra; mas, se
enfatizarmos a importância de relacionar as três pessoas divinas dentro de
nossos pensamentos, eles desconfiarão de nós, como se houvesse algo de
impróprio e não-espiritual em tal esforço intelectual, nestes nossos dias.
Entretanto, a triunidade divina não é uma fórmula eclesiástica cuja base
bíblica é duvidosa. A triunidade divina é um dos mais permeadores
elementos doutrinários do Novo Testamento. Três dos termos gregos
clássicos, em torno dos quais revolviam as discussões principais do século IV
(ousia, essência; homoousios, da mesma substância; e trias, trindade) não se
encontram no Novo Testamento, e o quarto (hypostasis, substância ou
pessoa) não está lá no seu sentido técnico. Todavia, a tripersonalidade do
único Deus, acha-se ali de modo claro e inevitável, como parte integral do
pensamento neotestamentário. Nossa exposição da palavra "Senhor",
aplicada ao Deus de Israel, a Jesus Cristo e ao Espírito Santo, nos
demonstrará isso.
O SENHOR DEUS
No Antigo Testamento, a palavra "Senhor" sempre aparece com inicial
maiúscula, quando indica a pessoa de Deus. De cada quatro ocorrências, três
são grafadas como "SENHOR". A razão é a seguinte: "Senhor" é tradução de
adonai, palavra hebraica que significa, literalmente, "meu senhor", um título
regularmente dado a Deus, e que se deriva do termo hebraico adon,
governador ou proprietário de escravos (ver Gn 24.12 e 45.8, quanto ao seu
uso secular). O Antigo Testamento grego (a Septuaginta) traduziu adonai por
kurios, um sinônimo de adon. Pelo menos desde o primeiro século a.C, a
palavra kurios também foi usada para referir-se a divindades pagãs. Ao que
tudo indica, a Septuaginta data do segundo século a.C; e é possível que esse
uso teológico-pagão da palavra kurios já existisse quando aquela tradução foi
feita. Nesse tempo, os judeus tinham chegado a pensar que o nome próprio
de Deus, Jeová, era por demais sagrado para ser pronunciado. Desse modo,
em sua adoração (na leitura das Escrituras, na pregação e nas orações), bem
como em seu linguajar diário, passaram a substituí-lo por adonai. Assim, os
tradutores da Septuaginta fizeram o mesmo - não tentaram traduzir Jeová
para o grego, mas simplesmente traduziram esse vocábulo por kurios. Dentre
as 8.000 instâncias em que kurios é usada para referir-se a Deus, na
Septuaginta, 6.700 delas são traduções de Jeová. A versão da Bíblia
portuguesa segue essa norma, usando ''SENHOR" como tradução do nome
sagrado, em todas as ocasiões em que este figura no original hebraico.
Em Êxodo 3, Deus comissionou Moisés a conduzir os filhos de Israel para
fora do Egito. Em Êxodo 6, não tendo obtido sucesso diante do Faraó, ao
agir como lhe fora ordenado (Êx 4.22, 23 e 5.1ss.), e tendo caído seu
prestígio pessoal a zero (Êx 5.20, 21), retornou a Deus, em desespero (Ex
5.22, 23). Nestas duas passagens, Deus deu grande ênfase ao significado do
seu nome, Jeová, como uma revelação de sua graciosa soberania. Essas
passagens bíblicas merecem ser examinadas.
Diante da sarça ardente, a voz que falava identificou-se a Moisés como o
Deus (elohim, aquele que é sobre-humano e sobrenatural) dos patriarcas e do
próprio pai de Moisés (Êx 3.6).
Tendo ouvido a comissão divina e recebido a promessa da presença do
Senhor (vv. 10-12), Moisés indagou o que deveria responder se, após dizer
aos israelitas: "O Deus de vossos pais me enviou a vós outros", eles lhe
perguntassem: "Qual é o seu nome?" (v. 13). Tanto agramática hebraica (ver
o livro de J.A.Motyer, The Revelation of the Divine Name - A Revelação do
Nome Divino - pp. 17-21) quanto o contexto demonstram que essa
indagação envolveu o pedido que Deus desvendasse a sua própria natureza.
Por um lado, isso autenticaria o Ser que falara a Moisés como o verdadeiro
Deus de Israel (Êx 4.1-9), e, por outro, asseguraria aos israelitas a capacidade
de Deus realizar aquele quase inacreditável livramento que acabara de
prometer. (A ideia de um nome não como um mero rótulo, mas como algo
para desvendar fatos sobre seu possuidor, já estava profundamente
arraigada na tradição israelita - Gn 16.11; 17.5, 15; 30.6-24; 32.28.) Foi
nesse sentido que Deus atendeu ao pedido de Moisés, porquanto deu o seu
nome como "Eu Sou o que sou", ou então, em sua forma abreviada: "Eu Sou"
(Êx 3.14).
Talvez seja correto traduzir essa expressão, conforme fazem algumas
versões inglesas, usando o verbo no futuro: "Serei o que serei". Seja como
for, o verbo denota um "ser" dinâmico e repleto de energia, não um ser
estático e inoperante. O "ser" de Deus é um estado de contínua atividade,
não de repouso. Assim sendo, o nome composto de Deus é uma proclamação
de sua soberana autossuficiência e autoconsistência. Deus é livre e
independente. Ele age como Lhe agrada. Deus faz aquilo que quer fazer.
Aquilo que Ele propõe e promete, isso Ele executa. Por conseguinte, Israel, a
quem o Senhor fez essa espantosa promessa de redenção, podia depender
inteiramente do Senhor, para fazer como havia prometido. Visto que o Deus
da promessa é todo-poderoso para cumprir a sua própria palavra, Ele
também é inteiramente digno de confiança, pois é absolutamente
invencível. Assim Ele declarou através de um profeta posterior a Moisés:
"Agindo eu, quem o impedirá?" (Is 43.13). Esse é o significado do "nome"
assegurador que Deus transmitiu a Moisés para que anunciasse aos
desconfiados e céticos israelitas. "Assim dirás aos filhos de Israel: Eu Sou me
enviou a vós outros".
Em seguida, mediante suas próximas palavras, Deus passou a mostrar que
essa declaração sobre seu total poder para cumprir a sua palavra, na verdade
exprimia a real significação de seu nome histórico, Jeová (o qual se deriva do
verbo "ser", de uma maneira obscura, acerca do que os filólogos ainda
diferem). "Disse Deus ainda mais a Moisés: Assim dirás aos filhos de Israel:
O SENHOR, o Deus de vossos pais... me enviou a vós outros; este é o meu
nome eternamente..." (Êx 3.15). "Eu sou" é aqui identificado com "Jeová, o
Deus de vossos pais", o Deus com o qual Israel entrou em aliança. A palavra
"este" aponta para a sentença inteira, Jeová-Deus-de-vossos-pais, conforme
fica claro neste e no versículo seguinte. Esse nome denota tanto a garantia
pessoal da aliança com Israel, como também o seu poder de abençoar o seu
povo, dentro daquela relação de aliança. A força desse nome, como base para
a fé e para a dependência, surge da revelação que " Jeová" significa soberania
autossuficiente e invencível. Jeová, como um título para Deus era conhecido
pelos patriarcas (cf. Gn 15.2), sendo, de fato, usado na adoração dos dias
antediluvianos (Gn 4.26; cf. 9.26). Esse nome aparece no livro de Gênesis
por mais de cem vezes. Entretanto, a sua significação não foi esclarecida
antes de Êxodo 3. O significado de "Jeová" é aquilo que foi simbolizado pelas
chamas da sarça, as quais não precisavam se alimentar da madeira da sarça.
"Jeová" significa um governante inexaurível - um Deus de vida e de poder
ilimitados - um Deus, portanto, em quem é seguro confiar, em todas as
ocasiões e em todos os lugares. A palavra "SENHOR", que aparece na Bíblia, é
uma tradução tão boa de "Jeová" quanto alguém poderia exigir.
Em Êxodo 6.2ss., Deus satisfez as queixas de Moisés, declarando: "Eu sou
o SENHOR. Apareci a Abraão, a Isaque, e a Jacó, como o Deus Todo-
Poderoso [El Shaddai]; mas pelo meu nome, o SENHOR [Jeová], não lhes fui
conhecido. Também estabeleci a minha aliança com eles, para dar-lhes a
terra de Canaã... e me lembrei da minha aliança..." Acerca do conhecimento
que os patriarcas tinham dEle, Deus estava dizendo que embora se lhes
tivesse apresentado como El Shaddai (a Abraão, Gn 17.1; a Jacó, Gn 35.11; e
a Isaque, Gn 26.24), vinculando aeste nome as suas promessas feitas a eles,
como uma base para a confiança deles, Ele nunca lhes expusera o sentido de
seu nome, Jeová, conforme agora acabara de fazer para Moisés, na sarça (A
interpretação crítica comum, na qual Deus quis dizer que o próprio som do
nome Jeová era desconhecido dos patriarcas, tem se tornado a base para a
dissecação do livro de Gênesis por renomados críticos, como também tem
sido a base da hipótese defendida por muitos: que Jeová foi um deus dos
queneus, deus do fogo e da tempestade, ali apresentado por Moisés pela
primeira vez. Porém, uma coisa é certa: o autor do trecho de Êxodo 6.3 não
compreendeu dessa maneira as palavras ditas por Deus).
A expressão "Eu sou o SENHOR" é o tema central do parágrafo (vv. 2-8).
Essa expressão ressoa por vezes sem conta, como o sonido da trompa de
Siegfried, na peça de Wagner, Ring (vv. 2, 6-8; cf. v. 29; 7.5, 17; 8.22; 14.4,
18). Deus estava instruindo Moisés, a fim de que este pudesse instruir o
povo de Israel a confiar em seu nome, revelado como garantia do
cumprimento de suas promessas. A resposta a todos os "mas" e "Ah!
Senhor!" de Moisés foi um simples "Eu sou o SENHOR". Os versos 6 a 8 são
o manifesto supremo do livro de Êxodo. "Eu sou o SENHOR, e vos tirarei de
debaixo das cargas do Egito, vos livrarei... vos resgatarei... Tomar-vos-ei por
meu povo, e serei vosso Deus; e sabereis que eu sou o SENHOR vosso Deus...
E vos levarei à terra, acerca da qual jurei dar a Abraão, a Isaque e a Jacó; e vo-
la darei como possessão: Eu sou o SENHOR". Em outras palavras: "Eu sou o
SENHOR. Essa é a minha promessa. Falharia a minha palavra?"
Esse era Jeová, o Deus de Israel, o Deus a quem o Antigo Testamento
inteiro exalta como criador, governador, salvador, juiz, fonte e alvo de todas
as coisas que existem. Jeová era o nome que proclamava a divindade do
Senhor. A religião e a teologia de Israel eram confessadamente monoteístas:
"Ouve, Israel, o SENHOR nosso Deus é o único SENHOR. Amarás, pois, o
SENHOR teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, e de toda a tua
força" (Dt 6.4, 5). Na qualidade de Deus único, a sua reivindicação da
lealdade e o serviço de seu povo é absoluta e total. Os conceitos que Israel
tinha sobre o seu Deus sempre começavam na vasta diferença e contraste
entre Jeová e o homem. Jeová é o criador; o homem é a sua criatura. Jeová é
o Todo-Poderoso; o homem é fraco. O homem depende de Jeová quanto a
tudo - sua saúde, sua felicidade, sua própria vida; mas Jeová não depende do
homem para nada. Jeová é justo e santo; o homem é pecador e pervertido.
Com esse pano de fundo de contrastes, por meio dos profetas e dos
salmistas, Deus ensinou Israel a apreciar a sua graça e a ver quão admirável é
o fato que Ele, o Deus santo e altíssimo, se inclinasse a resgatar os pecadores
e a trazê-los à comunhão consigo mesmo. Nos círculos religiosos dos dias de
Cristo, esse poderoso Deus da graça, e Ele exclusivamente, era designado
pela palavra ''Senhor'' (no hebraico, adonai; no grego, kurios; no aramaico,
rnaran).
O SENHOR JESUS
Jesus de Nazaré foi um rabino itinerante nada ortodoxo, cujos três anos
de ministério tiveram um fim repentino por meio de assassinato judicial. Os
seus discípulos asseguravam que Ele havia ressuscitado dentre os mortos,
estava vivo para sempre, reinava sobre o mundo inteiro como o Messias de
Deus e algum dia seria manifestado visivelmente na terra, para o julgamento
final. Eles endossavam a crença vétero-testamentária no Deus único,
conforme o próprio Jesus havia feito (Mt 23.9; Mc 10.18; 12.29; Jo 5.44;
17.3; Rm 3.30; 1 Co 8.4-6; Gl 3.20; Ef 4.6; 1 Tm 1.17; 2.5; Tg 2.19; 4.12; Jd
25). Contudo, eles usaram a palavra "Senhor" com mais frequência para
indicar "o Senhor Jesus Cristo" do que para referirem-se Àquele a quem
Jesus chamava de Pai, em suas orações - e isto é realmente notável.
Esse uso neotestamentário subentende a deidade pessoal de Jesus? Nem
sempre. Nos evangelhos, "Senhor", como forma de tratamento, significa
apenas "senhor", uma maneira polida de falar a um rabino (por exemplo, Lc
7.6). E, mesmo nos lábios dos discípulos, a palavra "Senhor", nos evangelhos,
não parece significar mais do que "mestre", "professor" (por exemplo, Jo
13.13, 14). Novamente, no livro de Atos e nas epístolas, o termo "Senhor"
algumas vezes denota apenas o domínio messiânico que Jesus vem
exercendo desde a sua ressurreição e ascensão, governando o mundo em
nome de seu Pai, a fim de tornar realidade a salvação daqueles em favor de
quem Ele morrera. Assim, em Atos 2.36, após citar o Salmo 110.1 ("Disse o
SENHOR ao meu Senhor: Assenta-te à minha direita, até que eu ponha os
teus inimigos por estrado dos teus pés") como uma profecia messiânica,
Pedro declarou: "Esteja absolutamente certa, pois, toda a casa de Israel de
que a este Jesus, que vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo". As
palavras "Senhor" e "Cristo" (Messias; literalmente, "ungido") explicam uma
a outra; pois a frase contém uma hendíadis, ou seja, duas palavras que
exprimem um só pensamento - o governo messiânico de Jesus.
Similarmente, "o nome que está acima de todo nome", em Filipenses 2.9-11,
é o nome "Senhor", denotando o domínio universal de Jesus, que todos os
homens precisam reconhecer.
Em outras instâncias, porém, "Senhor", como título conferido a Jesus,
implica a deidade pessoal de maneira inequívoca. Isso torna-se óbvio quando
profecias do Antigo Testamento, a respeito de Jeová, são citadas como
profecias que se cumpriram na pessoa de Jesus. Assim, Joel 2.32, citado em
Atos 2.21 e Romanos 10.13: "E acontecerá que todo aquele que invocar o
nome do SENHOR (Jeová, no hebraico) será salvo", é, provavelmente, na
primeira passagem citada, e certamente na segunda, tomado como uma
promessa de salvação para aqueles que invocarem o nome de Jesus (At 2.38
e Rm 10.4-17). Acima e mais importante ainda do que essa identificação de
Jesus com Jeová, o verbo ''invocar'' denota confiança e invocação religiosa
que, como todo judeu sabia, era uma atitude que alguém só podia
demonstrar com propriedade para o próprio Deus: ninguém podia invocar
uma mera criatura como seu Salvador. Portanto, o uso que o Novo
Testamento faz de Joel 2.32 realmente contém uma dupla demonstração de
que Jesus era considerado divino. E, também, João identificou Jesus como
''o Senhor", cujo braço não foi revelado aos incrédulos (Jo 12.38, 41), ao
passo que Mateus e Marcos identificam-No com ''o Senhor'' cujo caminho
João Batista fora enviado a preparar (Mt 3.3; Mc 1.3). Porém, Isaías 40.3 e
53.1, os textos citados do Antigo Testamento, têm Jeová no original
hebraico.
Outra passagem muito significativa é 1 Coríntios 8.5, 6, onde "muitos
deuses e muitos senhores" (isto é, deuses chamados senhores), no
politeísmo pagão, são postos em oposição a "um só Deus, o Pai" e a "um só
Senhor, Jesus Cristo". Nesse contexto, em qualquer caso "Senhor" denota
deidade, com a respectiva reivindicação à nossa adoração. Com isso podem
estar ligados aqueles trechos onde Jesus é invocado como "Senhor", em
oração (At 7.59; 1 Co 16.22 – no aramaico, Maranata significa "Vem, ó
Senhor!"; 2 Co 12.8; Ap 22.20). Bênçãos optativas, que na realidade são
orações, são dadas em nome do Senhor Jesus (1 Ts 3.11, 12; 2 Ts 3.5, 16); e
há também doxologias endereçadas a Ele somente (Rm 9.5; 2 Tm 4.18; 2 Pe
3.18; Ap 1.5, 6), ou incluindo o Pai (Ap 5.13 e 7.10). Hebreus 1.6 afirma que
Deus quer que todos os anjos adorem a Jesus.
Colocado sobre esse pano de fundo da adoração dos cristãos a Jesus como
Senhor, juntamente com o Pai, uma adoração que está em consciente
oposição à adoração aos "senhores" pagãos, torna-se evidente que quando a
mensagem do evangelho concentra-se na exigência da confissão de que
"Jesus Cristo é Senhor" (conforme se vê em 1 Co 12.3; Rm 10.9; cf. Fl 2.11),
o que se requer é um reconhecimento de Jesus, não meramente como
Salvador ressurreto e como Rei governante, mas como uma Pessoa a ser
invocada, digna de confiança, conhecida, louvada e adorada, tal como o é
Deus Pai - em outras palavras, que Jesus seja considerado divino.
Depois disso, não nos surpreendemos ao descobrir, no Novo Testamento,
um determinado número de passagens nas quais, de acordo com a gramática
(embora algumas vezes contestado, mas não de maneira convincente), Jesus
é explicitamente declarado theos (Deus - Jo 1.1, 18; 20.28; Rm 9.5; Tt 2.13;
Hb 1.8 e 2 Pe 1.1).
Não podemos esgotar aqui o assunto das evidências da divindade de
Cristo; só esse tema daria um livro. É significativo concluir nossa exposição
mediante a citação de algumas breves linhas de Berkhof:

Vemos que a Escritura (1) assevera explicitamente a divindade do Filho


em passagens como Jo 1.1, 20.28; Rm 9.5; Fp 2.6; Tt 2.13; 1 Jo 5.20; (2)
aplica a Ele nomes divinos , Is 9.6; 40.3; Jr 23.5, 6; Jl 2.32 (cp. At. 2.21);
1 Tm 3.16; (3) atribui a Ele perfeiçôes divinas, tais como existência
eterna, Is 9.6; Jo 1.1, 2; Ap 1.8; 22.13; onipresença, Mt 18.20; 28.20;
Jo 3.13; onisciência, Jo 2.24, 25; 21.17; Ap 2.23; onipotência, Is 9.6;
Fp 3.21; Ap 1.8; imutabilidade, Hb 1.10-12; 13.8; e, em geral, todos os
atributos pertencentes ao Pai, Cl 2.9; (4) fala dEle como realizando obras
divinas, como a criação, Jo 1.3, 10; Cl 1.16; Hb 1.2, 10; a providência,
Lc 10.22; Jo 3.35; 17.2; Ef 1.22; Cl 1.17; Hb 1.3; o perdão dos pecados,
Mt 9.2-7; Mc 2.7-10; Cl 3.13 [adicionar At 5.31 e Mt 1.21]; a
ressurreição e o juízo, Mt 25.31, 32; Jo 5.19-29; At 10.42; 17.31; Fp
3.21; 2 Tm 4.1 [adicionar Jo 6.39, 40, 54; 11.24-26; 1 Co 15.45; Rm
2.16; Ap 19.15; 20.12]; a final dissolução e renovação de todas as
coisas, Hb 1.10-12; Fp 3.21; Ap 21.5; e (5) Lhe outorga honra divina, Jo
5.22, 23; 14.1; 1 Co 15.19, 2 Co 13.13, Hb 1.6; Mt 28.19 (Teologia
Sistemática, Editora LPC, pp. 95-96).

Tudo isso contribui para demonstrar que o hábito neotestamentário de


chamar Jesus de "Senhor" forma uma peça inseparável do testemunho geral
acerca de sua deidade.
Pode parecer inacreditável que homens criados dentro do monoteísmo
judaico tenham chegado a afirmar a deidade de um homem. Para o judaísmo
e o islamismo, a fé cristã em Jesus, como Deus, parece um absurdo grotesco,
um retrocesso ao paganismo que deificava os faraós do Egito e os
imperadores de Roma. Teologicamente falando, parece suicídio, porquanto
envolve três mistérios que, quando asseverados pela primeira vez, parecem
bastante fantásticos:

a. o Deus único consiste em mais de uma pessoa;


b. uma dessas Pessoas divinas, sem ter deixado de ser o que era, tomou-se
humano e continua como tal até hoje;
c. enquanto essa Pessoa estava compartilhando das limitações próprias da
vida humana na terra, como um bebê em Belém e como um menino em
Nazaré, e mais tarde ensinando na Palestina, suando no Getsêmani,
morrendo no Calvário, jazendo morto no sepulcro de José,
simultaneamente estava sustentando o universo: "Sustentando todas
as cousas pela palavra do seu poder" (Hb 1.3; Cl 1.17). Certamente,
essas não foram crenças às quais homens como Pedro, Paulo, João e o
escritor da epístola aos Hebreus chegaram facilmente; é igualmente
certo que eles foram levados a essas convicções pelas próprias palavras
de Jesus, pelos eventos dos quarenta dias entre a ressurreição e a
ascensão, pelas visões, como a de Paulo, na estrada para Damasco, e as
de João, na ilha de Patmos (At 9 e Ap 1); pelo testemunho da profecia
do Antigo Testamento e pela iluminação do Espírito Santo,
convencendo-os de que o que eles viram na face de Jesus era realmente
a imagem e a glória de Deus (2 Co 4.4-6).

Averdade à qual eles foram assim conduzidos permanece como algo mais
estranho do que a ficção; muitíssimo mais estranho. Trata-se tanto de um
mistério inexplicável para as mentes teológicas, como de uma implicação
inescapável de eventos históricos.
O SENHOR, O ESPÍRITO
Pudemos observar acima o fato notável que a palavra "Senhor", que no
Antigo Testamento grego, como um nome e como um título, denota a
deidade de Deus, é empregada no Novo Testamento principalmente para
referir-se não ao Pai, mas ao Filho. É igualmente digno de nota que "santo",
o adjetivo vétero-testamentário comum para expressar a "deidade" de Deus,
no Novo Testamento é aplicado não ao Pai, nem ao Filho, mas ao Espírito.
No Antigo Testamento, o Espírito Santo não é referido como uma pessoa
distinta do Pai (Sl 51.11; Is 63.10). E no Novo Testamento? As Testemunhas
de Jeová dizem que não, mas a Bíblia está contra eles. O Espírito Santo (no
grego, pneuma, gênero neutro) aparece no Novo Testamento grego com um
pronome masculino, em João 16.14, e isso contra todas as regras de
gramática; e como um título usado para pessoa (paraklétos - consolador,
conselheiro, advogado, ajudador), em João 14.26; 15.26; 16.7. É
demonstrado que Ele tem inteligência (Jo 14.26; 15.26; Rm 8.27); vontade
(At 16.7; 1 Co 12.11) e afetos (Ef 4.30). A maior parte dos atos que Lhe são
atribuídos só poderiam ser executados por um agente pessoal, tais como:
falar: (At 8.29; 13.2; etc. – quase vinte referências bíblicas ao todo); decidir
(At 15.28); proibir (At 16.7); testemunhar (At 5.32, etc.); sondar os segredos
(1 Co 2.10, 11); mostrar o futuro (Jo 16.13); enviar missionários (At 13.4) e
interceder (Rm 8.26, 27).
Uma vez que se aceite que o Novo Testamento vê o Espírito Santo como
uma pessoa, é Ele ali retratado como uma pessoa divina? Na realidade, sim
(embora Ele nunca seja chamado diretamente theos, Deus), porquanto: (a)
Jesus vincula o Espírito Santo ao Pai e ao Filho, no nome tripessoal de Deus
(Mt 28.19); (b) Ele é vinculado ao Pai e ao Filho em oração pelas - e no
pronunciamento das - bênçãos de Deus (2 Co 13.13; Ap 1.4, 5, onde os "sete
espíritos" referem-se ao Espírito Santo); (c) Ele é vinculado ao Pai e ao Filho,
como dotado de função aplicadora, e, por conseguinte, complementar, na
obra da salvação que o Pai realizou por meio do Filho (1 Pe 1.1, 2; 2 Ts 2.13,
14; Ef 1.3-14; 2.13-22; Rm 8, etc.); e (d) em 2 Coríntios 3.16-18, na
qualidade de "o Espírito do Senhor (Jesus)", Ele está tão intimamente ligado
a Jesus, como seu agente que opera nos homens, que Paulo pôde dizer ''o
Senhor [Jesus] é o Espírito", e ainda, "pelo Senhor, o Espírito". Ora, essa
surpreendente maneira de falar não teria sido possível se Paulo não
concebesse o Espírito Santo como um com Jesus, na unidade da deidade.
Em qual sentido Paulo queria que entendêssemos que Cristo e o Espírito
Santo são um? Comentando sobre essa declaração, diz Charles Hodge: "Não
uma e a mesma pessoa, mas um e o mesmo Ser... É uma identidade de
essência e de poder... onde Cristo está, ali está o Espírito, e onde o Espírito
está, ali está Cristo... Ao volvermo-nos para Cristo, tornamo-nos
participantes do Espírito Santo... porque Ele e o Espírito são um, e Cristo
habita em seu povo, remindo-os da lei e fazendo-os filhos de Deus, por meio
de seu Espírito". Isso posto, a frase "o Senhor, o Espírito" significa "o Senhor,
que é um com o Espírito, igual em substância, poder e glória; que está onde o
Espírito está, e que faz aquilo que o Espírito faz". Assim, as palavras de Paulo
não afirmam em termos precisos a deidade do Espírito Santo, mas, de forma
muito mais significativa, elas pressupõem essa deidade em ideias. Paulo
jamais poderia ter dito "o Senhor é o Espírito", com o sentido que o Senhor
opera nos homens através do Espírito, se ele não pensasse que o Filho e o
Espírito Santo fossem Seres divinos co-iguais. (Por exemplo, Paulo jamais
teria sonhado em dizer: "o Senhor é Paulo", a fim de expressar a ideia que
Cristo operava por meio de Paulo!) Esses versículos testificam, pois,
claramente a posição ocupada pelo Espírito Santo na deidade.
O EVANGELHO DA TRINDADE
A Bíblia legou à igreja a doutrina de três agentes divinos e um só Deus: o
Pai, o Filho e o Espírito Santo, como o "nome cristão" do único Jeová. Como
declara o credo atanasiano: "O Pai é Senhor, o Filho é Senhor e o Espírito
Santo é Senhor. No entanto, não são três senhores, mas um só Senhor". Não
é uma das pessoas personificando as outras duas, para o acréscimo de sua
própria pessoa; não é um trio de deidades separadas. Mas um Deus que é
realmente uno, embora nessa unidade haja realmente três, sendo a trindade
e a unidade fundamentais uma à outra. Os três estão "em" cada um dos
outros (cf. Jo 14.11, 20), sem perderem suas distinções pessoais, da mesma
maneira que todos os três podem estar "no" crente, sem que este perca a sua
identidade pessoal e a sua autoconsciência (cf. Jo 14.17, 23). Eles se mantêm
em relações mútuas, definidas e distintas: o Pai é o iniciador, o Filho é o
agente do Pai, e o Espírito Santo é o que executa por ambos. No entanto
(outra vez, conforme o credo atanasiano), "a deidade do Pai, do Filho e do
Espírito Santo é apenas uma; a glória é igual e a majestade é co-eterna. Tal
como é o Pai, assim é o Filho, e assim também é o Espírito Santo''.
Alguém poderia indagar: E daí? Se admitirmos que a posição trinitariana é
bíblica, seria ela importante? O que se perde por não se defender a doutrina
da trindade?
O que se perde, em termos bem simples, é o evangelho - ou, pelo menos, o
direito de anunciar o evangelho. Permita-me explicar isso.
Quando alguém avança pela trilha, monte acima, concentra a sua atenção
na própria trilha, e não no monte. Uma pessoa com a mente fixa no objetivo
de chegar ao cume, poderia apressar-se e chegar lá, sem ao menos tomar
consciência do monte. Certa vez, escalei um monte cujo nome só vim a
descobrir quatro anos mais tarde. Ora, quando alguém anuncia o evangelho,
está subindo pela trilha existente em um monte; e a trindade representa
tanto o nome como a natureza do monte que esse alguém tem sob os seus
pés o tempo todo.
Em João 3.1-15, encontramos Jesus explicando a Nicodemos que a única
maneira de alguém entrar no reino de Deus é mediante a fé no Filho, a quem
o Pai enviou para ser "levantado", na morte sacrificial, bem como mediante o
novo nascimento, produzido pelo Espírito. Jesus estava explicando o
evangelho, cuja substância, mui obviamente, é a ação combinada do Deus
trino. Com toda a razão, o Livro de Orações da Igreja Anglicana selecionou o
trecho de João 3.1-15 como a porção do evangelho para o Domingo da
Trindade! A trindade é a base do evangelho, e o evangelho é a declaração da
trindade em ação.
Expressando a mesma verdade por outro ângulo: o evangelho afirma que,
desde a eternidade, havia em Deus mutualidade de amor e alegria (Jo 1.1, 2;
17.5, 24); que os homens foram criados para compartilhar desse
companheirismo; que quando o pecado impossibilitou isso, Deus veio em
pessoa - através da segunda pessoa, enviada pela primeira pessoa e dotada
de poder pela terceira pessoa - a fim de salvar-nos; que Deus feito carne
morreu por nós, agora vive por nós, une-nos consigo mesmo, conduz-nos a
Deus Pai, e algum dia haverá de levar-nos para compartilhar de sua glória;
que um Hóspede divino, o Espírito Santo, reside no crente, impulsionando-o
à oração e transformando-lhe a natureza decaída; e que Jesus Cristo é o
companheiro e amigo de cada crente, conferindo-lhe uma constante e
cuidadosa atenção. Certamente, é óbvio que nenhuma dessas maravilhosas
realidades, quase fantásticas, poderia ter sido afirmada, senão
exclusivamente com base na suposição que o Pai, o Filho e o Espírito Santo
são Deus - em outras palavras, que Deus é Pai, Filho e Espírito Santo.
Aqueles que negam a doutrina da trindade têm de baixar o nível do
evangelho - e, realmente, o fazem.
Portanto, bem poderíamos tornar uma questão de consciência orar nos
seguintes termos:
Deus eterno e todo-poderoso,
que deste aos teus servos a graça,
mediante a confissão da verdadeira fé,
para reconhecerem a glória da trindade eterna,
e para adorarem a unidade, no poder da
majestade divina, nós Te rogamos
que nos conserves constantes
nessa fé e nos defendas sempre
de todas as adversidades; Tu que
vives e reinas, como um só Deus,
para sempre, eternamente.

Livro de Oração Comum


Coletânea para o Domingo da Trindade
Quando usamos a palavra "mundo", o que geralmente temos em mente é
a soma total das coisas e das pessoas ao nosso redor. Essa ideia geral adquire
diferentes formas em diferentes contextos. Por exemplo, o ângulo de nosso
pensamento pode ser físico e geográfico. E, nesse caso, "mundo" aponta para
este planeta, a Terra, com sua estrutura química, suas leis climáticas, suas
estatísticas populacionais, sua produção anual de matérias-primas, e assim
por diante. Ou, o nosso conceito pode ser racial e antropológico; então,
"mundo" indica os homens de todas as nações. Quando falamos sobre saúde
mundial, paz mundial, ou opinião mundial, estamos claramente usando o
termo com esse sentido. Ou, novamente, nosso pensamento pode ser
sociológico e cultural. "Mundo", nesse caso, significa um ponto de vista
particular e um padrão de vida comunitária, tal como o contraste que nossos
avós faziam entre o "velho" e o "novo" mundo, do outro lado do Atlântico, ou
como o contraste que nós mesmos estabelecemos entre o "mundo ocidental"
e o "mundo oriental". Também pode estar implícito um certo contraste
temporal, em que "o mundo" significa coisas conforme elas são, em distinção
àquilo que eram. Por exemplo, o "mundo moderno", em contraste com o
"mundo antigo". Ou, finalmente, nosso pensamento pode ser pessoal e
subjetivo, e então "mundo" denota as coisas em geral, segundo a aparência
delas aos olhos de quem está postado numa posição vantajosa de seu próprio
conhecimento e interesses. Assim, dizemos: "Tal pessoa vive no seu próprio
mundo"; e Thurber declarou: "Seja bem-vindo ao meu mundo". Todavia, sem
importar qual a forma exatada nossa ideia acerca do mundo, há um fator que
permanece inalterado: o mundo sobre o qual pensamos é o mundo conforme
o homem o conhece e vê - o nosso mundo, o mundo dele, o meu mundo. Em
nossos pensamentos acerca do mundo, o homem está sempre no centro.
A ideia bíblica do mundo cobre aproximadamente a mesma área de
significação que o fazem as nossas noções seculares. Denota, por igual
modo, esta terra com o seu meio-ambiente cósmico, juntamente com os
homens que a povoam, ou, outras vezes, somente a própria humanidade. No
hebraico e no grego existem palavras que são traduzidas por "mundo" que
significam tão-somente "a terra habitável (ou habitada)". No entanto, o
ponto de vista do qual a Bíblia fala acerca do "mundo" é bem diferente do
nosso. Pois, na Bíblia, "mundo" é um vocábulo teológico - uma palavra
definida em termos divinos. Ali, "o mundo" é sempre e enfaticamente, o
mundo de Deus, a saber, a ordem de coisas que Ele fez, que Ele possui e que
Ele governa, a despeito de todos os esforços de suas criaturas para
rejeitarem seu domínio. O ponto de referência da ideia bíblica sobre o
mundo não é o ser humano, e, sim, Deus. Agora, o que precisamos fazer é
pensar no mundo como centralizado em Deus, conforme a Bíblia o retrata -
nem sempre como parece ao homem, mas conforme Deus o vê e pensa a seu
respeito. Pois, os pensamentos de Deus sobre o mundo são a medida daquilo
que o mundo realmente é.
A ORDEM DA CRIAÇÃO
Nas páginas do Novo Testamento, o vocábulo mais comumente usado
para "mundo" (que ocorre mais de cento e cinquenta vezes) é kosmos.
Basicamente, esse termo significa "ordem". O conceito de ordem - aquela
integração harmônica de uma variedade de elementos e de energias - é, na
verdade, o pensamento-chave da exposição bíblica da obra de Deus como
criador. Observemos a exposição do primeiro capítulo de Gênesis. Ali se
destaca não tanto o fato que Deus criou tudo do nada (a doutrina da criação
ex nihilo, embora sem dúvida implícita em Gênesis 1.1, deriva-se antes de
textos como Salmo 33.6; João 1.3; Colossenses 1.16-17 e Hebreus 11.3),
mas o que Gênesis 1 salienta é o fato que Deus, mediante a sua Palavra
criativa e o seu Espírito (fala e sopro), produziu ordem onde antes só havia o
caos primitivo. "A terra, porém, era sem forma e vazia; havia trevas sobre a
face do abismo, e o Espírito [sopro] de Deus pairava por sobre as águas.
Disse Deus... e houve... " (Gn 1.2, 3). Esse capítulo prossegue a fim de
informar-nos como Deus separou a porção seca das águas; como estabeleceu
o ritmo regular dos dias e das noites, bem como a duração de cada ano; como
encheu a terra com vegetação; como a populou com aves, animais e seres
humanos, "segundo as suas espécies" (vv. 11, 21, 24ss.). Por toda a parte, a
obra criativa de Deus produziu ordem em um estado de coisas que, de outra
forma, teria permanecido caótico. Essa é a verdade central acerca de Deus, o
Criador, que Gênesis 1 procura retratar para nós.
A produção de um mundo bem ordenado envolveu a imposição de limites
e fronteiras, no espaço e no tempo. Cada coisa precisava ser mantida em seu
devido lugar, a fim de que houvesse espaço para tudo quanto Deus planejara.
De conformidade com isso, Deus restringiu dentro do espaço as chuvas e o
mar (Gn 1.6-10; cf. Jó 38.8ss.; Sl 104.9), a fim de que se cumpram todos os
seus propósitos para a vida na porção seca. Por semelhante modo, quando os
homens se multiplicaram, Deus determinou áreas particulares para que cada
grupo nacional as habitasse (Dt 32.8). Novamente, dentro do tempo, Deus
estabeleceu limites, não somente para a vida de cada coisa viva, para as
estações do ano e para os processos naturais apropriados a cada tipo de vida,
como a produção de frutos e a hibernação de certos animais, mas também
para as sucessivas épocas da história da humanidade. Encontramos Paulo
explicando aos atenienses quanto a esses limites criados e providenciais,
impostos por Deus à humanidade: ''De um só fez toda raça humana para
habitar sobre toda a face da terra, havendo fixado os tempos previamente
estabelecidos e os limites da sua habitação" (At 17.26).
Assim sendo, algumas traduções da Bíblia não erraram muito quando
traduziram o termo grego aiõn por "mundo". É verdade que o sentido dado
pelos léxicos para aiõn é "época", "era". Porém, o que o Novo Testamento
entende por aiõn é o atual e integral estado de coisas, visto como limitado no
tempo e, por conseguinte, transitório; enquanto que o vocábulo grego
kosmos, denota o mesmo estado de coisas, visto como um todo integrado,
composto de porções limitadas no espaço. Assim, aiõn e kosmos na realidade
são termos complementares, cada qual expressando um diferente aspecto da
mesma ideia básica.
Portanto, aquilo que Deus criou, no princípio, foi precisamente uma
ordem mundial. No primeiro capítulo da Bíblia, Deus é Aquele

...cuja palavra todo-poderosa


o caos e as trevas ouviram,
e, assim, voaram.

É natural concluir, com base em Gênesis 1, que a ''boa'' qualidade que


Deus contemplou em cada coisa que Ele foi formando, bem como na obra
terminada da criação, antes da queda da humanidade no pecado (Gn 1.4, 10,
12, 18, 21, 25, 31), está, pelo menos em parte, no fato que cada passo na
criação foi um passo a mais para o afastamento e a exclusão do caos. O
Criador é Deus não de confusão, mas de ordem (cf. 1 Co 14.33).
Não podemos nos demorar aqui para falar sobre a relação entre a história
bíblica da criação (Gn 1.1-2.4a com 2.4b-25, suplementando 1.26-30, como
se fora um apêndice ou uma longa nota de rodapé) e o atual pensamento
científico acerca das origens. Basta-nos dizer o seguinte:

a. essa narrativa é uma celebração do fato da criação e da sabedoria do


Criador, do seu poder e bondade, e não a narrativa da observação dos
estágios do processo criativo;
b. essa narrativa não se focaliza no sistema cósmico como um sistema,
mas no Criador, à parte de cuja vontade e palavra esse sistema neste
momento não existiria;
c. essa narrativa segue um método imaginativo, ilustrado, poético e
doxológico (atribuição de glória, no estilo de adoração), ao invés de ser
uma descrição clínica e friamente prosaica, segundo a inexpressiva
maneira científica;
d. a centralidade da Terra, na narrativa, reflete não a ingenuidade
científica sobre o sistema solar e sobre o espaço exterior, mas o
interesse teológico na unicidade e na responsabilidade do homem, em
sujeição a Deus, neste planeta;
e. e o alvo evidente dessa narrativa é demonstrar aos seus leitores seu
verdadeiro lugar e chamada no mundo de Deus, além da significação
permanente do dia de descanso, como um memorial da criação, antes
que satisfazer a curiosidade dos homens sobre os detalhes daquilo que
sucedeu há tanto tempo.

Dentro dessas perspectivas, são possíveis várias maneiras de


compreendermos os seis dias da criação e de relacionarmos o processo
criativo com as mutáveis hipóteses científicas. Nenhuma dessas maneiras,
porém, é mais do que uma adivinhação culta; pois a averiguação delas é
impossível. Todas as hipóteses que levam em conta os cinco pontos citados
anteriormente devem ser julgadas como legítimas, mas nenhuma delas deve
ser considerada dona de toda a verdade, e seus defensores precisarão
apresentá-las com modéstia e tolerância diante de outros pontos de vista.
Os homens foram feitos para governar a criação. O homem, essa mais
nobre das criaturas, foi posto como cabeça da ordem criada, tendo recebido
o mandamento de dominá-la (Gn 1.28), isto é, mapear seus recursos e valer-
se deles, descobrir e utilizar-se de suas possibilidades latentes, pô-la a
trabalhar para si, e assim aproveitar e desenvolver os poderes dela, para o
enriquecimento de sua própria vida, em obediência a Deus. Deus nos
concedeu ricamente todas as coisas, para que as desfrutemos (1 Tm 6.17).
Deus quis ser glorificado mediante o aprendizado da humanidade, no
apreciarem e admirarem sua sabedoria e bondade como Criador. Em outras
palavras, comissionou a humanidade para desenvolver uma cultura e uma
civilização. Com justiça, alguns chamam o texto de Gênesis 1.28 de mandato
cultural.
Desde o começo, Deus introduziu Adão na vocação para a qual fora
chamado, encarregando-o de um jardim (Gn 2.15). O cultivar a terra é um
quadro perfeito da tarefa cultural do homem. Adão precisava aprender a
encarar a ordem criada como a propriedade, por assim dizer, que ele, na
qualidade de jardineiro de Deus, tinha a responsabilidade de cultivar. O
homem não foi criado para ser um bárbaro, nem para viver na selvageria; e o
lema que diz: "de volta à natureza", nunca foi a estrada de volta ao jardim do
Éden. Pois, a humanidade foi criada para governar a natureza, para controlá-
la e usufruir de seus frutos, visando à glória de Deus, o Criador, de
conformidade com o princípio estabelecido em 1 Timóteo 4.4: "Pois tudo
que Deus criou é bom, e, recebido com ações de graça, nada é recusável". Por
igual modo, o salmista escreveu: "Que é o homem, que dele te lembres? E o
filho do homem, que o visites? Fizeste-o, no entanto, por um pouco, menor
do que Deus, e de glória e de honra o coroaste. Deste-lhe domínio sobre as
obras da tua mão, e sob seus pés tudo lhe puseste" (Sl 8.4-6).
É evidente, pois, que Deus tencionava que vivêssemos num
reconhecimento declarado da excelência de tudo quanto Ele criou. Apesar de
estarmos conscientes de como a criação de Deus é maltratada pelo egoísmo
humano e de quão necessário é eliminar certas modalidades de
autoindulgência que as pessoas ao nosso redor têm inventado, jamais
deveríamos perder de vista a excelência da própria ordem criada e tornarmo-
nos culpados de desonrar o Criador.
Aideia maniqueísta de que o mundo da matéria, a vida física e os prazeres
dos sentidos são sem valor, e, de fato, malignas, ao ponto que os piedosos
devem afastar-se o mais possível delas, por dezesseis séculos tem produzido
muitos erros na igreja. Alguns deles têm sido uma falsa antítese entre o
material e o espiritual; inibições e sentimentos de culpa acerca do sexo no
casamento; a glorificação da sujeira, maltrapilhismo e barbarismo e o
restringir-se do progresso cultural; o ascetismo soberbo, do tipo descrito em
Colossenses 2.20-23; o negativismo em relação à literatura, às artes e a tudo
quanto produz e desfruta de beleza (conforme alguns dizem: "Não é
espiritual"); e assim por diante. Certamente Cristo pode chamar-nos,
individualmente, a renunciar a inúmeras coisas boas e agradáveis (uma
carreira musical, negócios ou esportes, matrimônio, confortos domésticos,
etc.), da mesma maneira que, em certa ocasião, exigiu do jovem rico que se
sujeitasse a viver na pobreza (Lc 18.18-23). Portanto, devemos estar
dispostos a tais possibilidades (Mt 19.12), jamais nos esquecendo que aquilo
de que precisamos desistir, em tais casos, é algo bom, e não algo condenável.
A introdução do pecado neste mundo interrompeu o modelo edênico de
vida, mas não cancelou o mandato cultural, nem o princípio que Deus é
glorificado quando as coisas boas da criação são recebidas e desfrutadas
como dons divinos e quando os homens O louvam e agradecem por elas.
Esses princípios continuam desempenhando um papel decisivo na atitude
cristã quanto à vida neste mundo.
A DESORDEM DA REBELIÃO
Atransgressão de Adão interrompeu toda a ordem de coisas que Deus
havia criado. Em primeiro lugar, e fundamentalmente, essa transgressão
desordenou o relacionamento de Adão com Deus. Tendo começado por um
relacionamento de companheirismo e paz, tomou-se um relacionamento
marcado por senso de culpa, vergonha e evasão da parte do homem; e por
inquirição, repreensão e julgamento da parte de Deus (Gn 3.8-19). Ainda, o
primeiro pecado lançou em desordem a própria natureza de Adão. Atos
tornam-se hábitos; a alma de Adão ficou moldada na infiel e ilegal
autoafirmação contra Deus, a qual fora a essência de sua ação fatal. Agora, o
homem traz na alma a imagem do diabo, e não a de Deus, e é com essa
imagem distorcida que nascem todos os seus descendentes (Gn 5.3). Essa é a
pecaminosidade original que todos herdamos, em virtude do pecado original
de Adão. Assim, em todas as épocas, é uma verdade universal que "o pendor
da carne [o pendor do homem em Adão] é inimizade contra Deus, pois não
está sujeito à lei de Deus, nem mesmo pode estar'' (Rm 8.7). Em razão dessa
distorção hereditária interna, a humanidade sempre concorda em opor-se ao
governo de Deus.
Por isso, no Novo Testamento, a palavra "mundo" (kosmos) com
frequência é usada para denotar a humanidade pecaminosa como um todo,
solidamente dedicada à injustiça e à impiedade, e solidamente hostil à
verdade e ao povo de Deus (Jo 15.18, 19; 1 Co 1.21; 3.19). Nesse sentido, o
"mundo" é governado por três influências malignas: "a concupiscência da
carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida" (1 Jo 2.16), ou seja, o
prazer, o lucro, o poder e a promoção pessoal. Os crentes não devem amar o
mundo (v. 15), nem permitirem se desenvolver segundo os moldes do
mundo (Rm 12.2, aqui a palavra "mundo" é aiõn). Nadar a favor da
correnteza e ser governado pelo espírito do mundo é fácil e tentador; mas o
crente de modo algum pode dar-se a essa prática, porquanto o mundanismo
é a mais óbvia infidelidade contra Deus. Tiago declara isso em termos bem
definidos: "Infiéis [no original, adúlteras; e isto para seus leitores cristãos],
não compreendeis que a amizade do mundo é inimiga de Deus? Aquele, pois,
que quiser ser amigo do mundo, constitui-se inimigo de Deus" (Tg 4.4).
Com base nesse fato, podemos perceber no que consiste a natureza do
mundanismo, e evitar o equívoco de igualá-lo ao uso e gozo das coisas
criadas. Mundanismo significa ceder ante o espírito que anima a humanidade
decaída - o espírito de egoísmo e de autoindulgência que busca somente os
seus próprios interesses, sem levar Deus em consideração. Se um homem é
mundano ou não, depende não de quanto prazer ele goza das coisas boas e
agradáveis desta vida, e, sim, do espírito com o qual goza dessas coisas. Se
permitir que elas o escravizem (1 Co 6.12) e tornem-se um deus - isto é, um
ídolo - em seu coração (Cl 3.5), então ele é mundano. Se, por outro lado, ele
se mostrar disciplinado no uso delas, não cedendo a elas com detrimento de
sua própria edificação e da edificação de outros (1 Co 10.23-33; 8.8-13), nem
perdendo seu coração para elas, mas recebendo-as com gratidão, como
dádivas de Deus e como meios de pôr em evidência os seus louvores,
agradecendo a Deus por todas as ocupações agradáveis e todas as
experiências deleitosas, não permitindo que aquilo que é meramente bom
seja colocado como se fosse o melhor, então ele não é mundano, mas
piedoso. Novamente, não é mundano ser elogiado; mundano é viver para o
cumprimento e o aplauso dos homens, encontrando a suprema felicidade na
ideia de lhes ter agradado e não na de saber que foi feita a vontade do
Senhor. O mundanismo é aquele espírito que substitui o verdadeiro alvo da
vida - que é louvar e agradar a Deus em todas as coisas - por algum ideal
terreno, como o prazer, a ambição ou a popularidade.
A Bíblia destaca um outro aspecto da desordem provocada pelo pecado.
As relações humanas estão agora perturbadas; homem volta-se contra
homem. Caim assassina Abel (Gn 4.8). Lameque proclama a lei da selva (Gn
4.23, 24). Os homens enganam uns aos outros em busca de lucro e sentem
prazer em serem violentos e cruéis. As nações rivalizam em busca de
supremacia e guerreiam para consegui-la. As estruturas sociais que os
homens organizam para o bem-estar mútuo se esfacelam, devido à ausência
de um adequado senso de responsabilidade social para mantê-las. A ciência é
posta a serviço das ambições egoístas, e as belas-artes são usadas para minar
os padrões morais. Em Romanos 1.26-31, Paulo descreve esse terrível
padrão de relações humanas destroçadas, conforme ele o via na sociedade
pagã do seu tempo. Todavia, esse padrão é repetitivo, e podemos percebê-lo
atuando de novo hoje, em nossa própria geração pós-cristã.
As Escrituras chamam Satanás de "príncipe" e "deus" deste mundo,
conforme o mundo atualmente se encontra (Jo 12.31; 14.30; 2 Co 4.4). O
que isso significa é que, no presente, Satanás ocupa o mundo e o governa (Ef
2.2, cf. 6.12). "Sabemos que somos de Deus, e que o mundo inteiro jaz no
maligno" (1 Jo 5.19), e este procura conservar o mundo num estado de
perversão e de cegueira espiritual (2 Co 4.4; Ef 2.2; cf. 1 Jo 4.1-6). Mas Deus
tem domínio sobre o mundo e sobre o maligno; e Cristo, pela sua morte,
quebrou o poder de Satanás sobre todos os filhos de Deus (Hb 2.14, 15; 1 Jo
4.4; cf. Lc 11.17-22; Ap 12 a 20).
A NOVA ORDEM DA REDENÇÃO
Examinaremos agora o que o Novo Testamento diz sobre a relação de
Cristo e do crente para com o mundo da humanidade, isto é, a massa da
humanidade ímpia, escravizada ao pecado e carente de salvação. O
evangelho de João e sua primeira epístola são nossos principais guias
quanto a esse assunto.
Nos escritos de João, a obra remidora de Cristo está ligada ao mundo de
dois modos aparentemente opostos. Algumas vezes o mundo é o seu objeto.
Somos informados que Deus amou ao mundo (Jo 3.16); que enviou seu filho
para salvá-lo (Jo 3.17 e 12.47; cf. 2 Co 5.19); que Cristo é a luz do mundo (Jo
8.12; 9.5) e o seu Salvador (Jo 4.42; 1 Jo 4.14), a propiciação por seus
pecados (1 Jo 2.2; cf. Jo 1.29), Aquele que lhe dá a vida (Jo 6.33), por haver
entregue a sua vida em favor dele (Jo 6.51). Noutros textos, porém, o
mundo é aparentemente excluído da redenção: os discípulos foram
escolhidos dentre o mundo (Jo 17.6); Cristo recusou- se a orar pelo mundo
(Jo 17.9) e a manifestar-se a ele (Jo 14.17, 22).
Haverá nisso alguma incoerência? Não. João nunca usa a palavra
"mundo" em seus escritos em sentido estatístico, embora assim o
compreendamos, com tanta persistência. Para João, "mundo" nunca é
sinônimo de "cada pessoa isolada". Em um sentido geral e abrangente, a
palavra denota as pessoas que fazem parte da massa, de todos os tipos e
nacionalidades, judeus e gentios sem distinção, mas sua referência numérica
é sempre indefinida. O âmago de seu significado não é quantitativo, mas
qualitativo. João não usa esse termo em sentido estatístico, mas em sentido
moral e espiritual. Disse B. B. Warfield, quando pregava sobre João 3.16: "O
mundo é apenas o sinônimo de tudo quanto é mal, ruidoso e repelente. Nada
existe nele capaz de atrair o amor de Deus... O objetivo do emprego [da
palavra, neste versículo] não é sugerir que o mundo é tão grande que é
preciso muito amor para abarcá-lo, mas que o mundo é tão mau que é mister
um profundo amor para amá-lo, e muito mais ainda para amá-lo conforme
Deus o amou, quando deu seu Filho por ele" (Biblical and 1heological Studies -
Estudos Bíblicos e Teológicos - Filadélfia, 1952, pp. 514 ss.). Em outras
palavras, "o mundo" é apenas sinônimo para homens maus por toda a parte,
tanto neste como noutros textos citados. A precisão de cada referência, se é
feita a pessoas ímpias que foram salvas ou que ainda serão, ou a pessoas
ímpias que não são salvas ou que simplesmente necessitam de salvação, deve
ser determinada pelo contexto, em cada caso.
Qual deve ser a relação do crente para com o mundo? Na qualidade de
crente, ele não é do mundo (Jo 17. 14, 16), mas permanece no mundo (Jo
17.11, 15), a fim de testemunhar ao mundo (Mt 24.14). O mundo fará
oposição aos crentes (Jo 15.18ss.; 1 Jo 3.13); ele não os amará mais do que
ama a Cristo. Por isso, os crentes devem esperar ser mal entendidos e
repelidos por seus semelhantes. Porém, uma das provas que eles são crentes,
nascidos de Deus, é que vencem o mundo, tal como fez o seu Mestre (1 Jo
5.4; Jo 16.33). Em outras palavras, eles não são controlados pelo mundo,
nem se conformam a ele (Rm 12.2), mas persistem em servir a Deus e em
manter uma permanente alegria ao fazerem assim, a despeito de todas as
influências contrárias da parte da sociedade e de seus membros ao redor
deles. Vivendo dessa maneira, os crentes são "a luz do mundo" (Mt 5.14),
"preservando a palavra da vida" no mundo (Fp 2.16). Assim prosseguem, de
força em força, aguardando aquele dia quando "o reino do mundo" haverá de
tornar-se de "nosso Senhor e do seu Cristo" (Ap 11.15), aquele dia quando a
criação inteira reconhecerá Cristo como Rei (Fp 2.10, 11), e Deus será "tudo
em todos" (1 Co 15.28).
O ARRANJO DO CAOS
É inútil tentar imaginar o futuro com base nas Escrituras, porquanto ali
Deus nos apresenta os eventos futuros filtrados através da imaginação
exuberante, e mesmo sensacional, dos antigos povos orientais, que se
preocupavam mais em sentir e exprimir o lustre e a glória das realidades
divinas do que em descrevê-las de uma maneira que poderíamos chamar de
objetiva ou exata. O comentário de J. N. Darby, que "a profecia é a história
escrita com antecedência", não é falso, mas é enganoso tanto quanto
qualquer outra declaração, porquanto ele nos encoraja a ler os detalhes,
incluindo números, nas profecias preditivas (mormente aquelas expressas
nos termos apocalípticos dos judeus, onde proliferam números e detalhes
fantasticamente imaginados, como por exemplo, em Daniel e no
Apocalipse), como se tratassem situações da mesma maneira que fatos
históricos são registrados em nossos livros. Na realidade, porém, esses
detalhes são elementos de totalidades simbolicamente expressas que, como
conjuntos completos, com frequência transmitem muito menos sentido
específico do que a abundância de detalhes poderia sugerir, e nos quais tudo
o que podemos ter certeza, no tocante a cada um desses detalhe, é o seu
ponto teológico. Por exemplo, Apocalipse 21.18-21 informa-nos que a Nova
Jerusalém será feita de ouro, com doze pedras preciosas nos alicerces e doze
portas, cada uma feita de uma pérola. Esse detalhe certamente transmite a
ideia de que a Nova Jerusalém, se localizada neste planeta ou não - os
exegetas diferem em suas opiniões - será dotada de supremo valor e beleza.
Mas isso corresponde a fatos literais? O versículo 16 diz que a cidade será
cúbica, com cerca de 2.400 km de comprimento, largura e altura. Será isso
um fato literal? Não há dúvida que essas questões respondem a si mesmas.
Devemos reconhecer que a leitura de profecias preditivas, sob a hipótese que
as imagens teológicas da imaginação oriental inspirada podem ser
entendidas literalmente, é um grande erro.
Porém, tendo dito isso, podemos passar adiante com o intuito de afirmar
que a Bíblia mostra-se clara e positiva quanto à futura esperança em relação
ao mundo, tanto o mundo da natureza quanto o da humanidade.
Antes de tudo, notemos o ensino paulino (Rm 8.19-22) que, por meio da
queda de Adão, a criação inteira de algum modo ficou "sujeita à vaidade" -
mataiotes, no grego, um vocábulo que significa frustração, no sentido de
não-execução do propósito. Paulo estava dando a entender que a criação
(isto é, a natureza) de alguma maneira retrocedera para o caos. Seja a
natureza selvagem e sanguinária (cf. Is 11.6-9), ou um aspecto disso, como
também os terremotos, as epidemias, as parasitoses, os répteis e insetos
venenosos, em adição ao aspecto especificado por Deus, a saber, o árduo
labor necessário para a obtenção da subsistência extraída da terra (Gn 3.17-
19), são indagações mais fáceis de serem formuladas do que de serem
respondidas. Deveríamos considerar seriamente, contudo, a personificação
que Paulo faz do mundo criado, como se a criação estivesse ''gemendo'' sob a
futilidade de sua atual desordem, enquanto aguarda "a revelação dos filhos
de Deus" com ardente expectativa.
Mas, chegará o dia em que, sem qualquer aviso, a ordem cósmica inteira
se desintegrará e será reconstituída. "Virá, entretanto, como ladrão, o dia do
Senhor, no qual os céus passarão com estrepitoso estrondo e os elementos
se desfarão abrasados; também a terra e as obras que nela existem serão
atingidas" (2 Pe 3.10). Pedro descreveu o fato como uma explosão nuclear, e
talvez venha a ser mesmo. Porém, tudo o que podemos ter certeza é que será
um acontecimento súbito e catastrófico, quando todas as coisas que nos são
familiares desaparecerão, e cada pessoa só terá consciência de que está
diante do Senhor Jesus Cristo para julgamento. Porém, desse quase
inimaginável acontecimento, no dizer de Pedro, "segundo a sua promessa,
esperamos novos céus e nova terra [isto é, uma criação renovada], nos quais
habita justiça" (v. 13). E então, todo o caos será algo do passado, a perfeição
plena terá chegado, tanto para o povo de Deus, quanto para o mundo da
natureza. Inimaginável? Sim, mas certo! E não menos que isto.
Pedro prosseguiu: "Por essa razão, pois, amados, esperando estas cousas"
- os novos céus e a nova terra - "empenhai-vos por ser achados por ele em
paz, sem mácula e irrepreensíveis... acautelai-vos; não suceda que,
arrastados pelo erro desses insubordinados, descaiais da vossa própria
firmeza; antes, crescei na graça e no conhecimento de nosso Senhor e
Salvador Jesus Cristo. A ele seja a glória, tanto agora como no dia eterno"
(vv. 14, 17, 18). Em um mundo como o nosso, certamente essas palavras são
muito oportunas! Quem for sábio, certamente haverá de ouvi-las e atendê-
las.
FIM DO PROBLEMA DO MAL
O leitor sábio também observará que, à luz dessa esperança para o
mundo, dissipa-se completamente o assim chamado problema do mal. Essa
dificuldade, a mais agudamente sentida no teísmo cristão moderno, envolve
uma dupla perplexidade, com um aspecto teórico e outro prático.
Teoricamente, o problema é o seguinte: Podemos crer em um criador que
tanto é bom como é senhor de seu mundo, quando nos deparamos com
tantos males? - o mal moral, em que o bem que há na natureza humana é
distorcido; o mal situacional, em que pessoas boas são esmagadas, os
corruptos prosperam, as oportunidades de se praticar o bem são
desperdiçadas; e o mal pessoal, o sofrimento físico e mental que vem por
meio de acidentes, enfermidades, pobreza, crueldade, exploração,
desapontamentos, desespero. Se Deus fosse bom, mas não soberano, ou se
fosse soberano, mas não bom, então a realidade do mal seria compreensível
para nós. Mas, conforme os homens argumentam, é incrível que o mal ao
nosso redor seja uma realidade, e, apesar disso, Deus seja tanto
genuinamente bom quanto genuinamente onipotente e controle todas as
coisas. O problema, praticamente, consiste em como lidar com o mal que
nos oprime na vida diária e como sobrepujá-lo, qualquer que seja a sua
espécie. Qualquer coisa que seja dita sobre qualquer dos lados do dilema, à
parte da esperança de uma nova ordem mundial, soará como algo muito
insatisfatório. Contudo, encaremos essas perplexidades à luz da esperança
ensinada na Bíblia, e o caso se alterará.
Em seu aspecto teórico, a promessa de novos céus e de uma nova terra
faz-nos lembrar que Deus está, na verdade, desempenhando ativamente a
responsabilidade que, em sua soberana bondade, Ele assumiu desde o
princípio, a saber, a responsabilidade de reordenar a desordem espiritual,
moral e física que foi produzida pelo pecado. Como Satanás pode ter caído
(pois aí começou o problema do mal), e por qual razão Deus permitiu que a
raça humana fosse arruinada, por ter Satanás arrastado Adão para baixo, são
questões misteriosas. Por outro lado, não há mistério naquilo que Deus está
fazendo a esse respeito. Deus está agindo em direção a um estado do
cosmos, no qual não haverá atividades malignas ou situações adversas, em
qualquer lugar. Por intermédio de seu filho, Jesus Cristo, Deus está salvando
uma grandiosa igreja, com o intuito de que ela O glorifique e desfrute dEle
para sempre, nesse cosmos renovado. Deus não se tem mantido indiferente
para com as aflições da humanidade. A encarnação e a vida terrena do Filho
significam que Deus estava penetrando nas profundezas do mal, em suas
piores formas. A vitória de Cristo sobre as forças pessoais da maldade, no
Calvário (cf. Jo 12.31; Cl 2.15), foi a realização divina que garantiu a gloriosa
transformação final, que acontecerá ao término do presente reinado celeste
de Cristo (cf. 1 Co 15.22-28).
Deus age de acordo com o seu próprio cronograma e não segundo o
nosso. Ele sabe o que está fazendo (cf. 2 Pe 3.3-9). É perfeitamente razoável
supormos (embora, naturalmente, isso seja impossível confirmar no
presente) que aquilo que para nós parece demorado, ou mesmo que Deus
está permitindo que o seu plano seja temporariamente frustrado, será visto
em retrospectiva, como necessário para produzir o maior bem, a partir da
decadente situação mundial. E esse bem prolongar-se-á por toda a
eternidade, após a inauguração da nova ordem de coisas, na qual o pecado
não mais terá lugar. No entanto, uma vez que admitamos que Deus está
exercendo a sua bondade soberana, precisamente a fim de produzir o maior
bem possível na presente ordem maligna, embora não saibamos dizer
exatamente como isso está sucedendo, então desaparecerá para nós o
problema teórico do mal.
Quanto ao problema prático de enfrentarmos o mal e vencê-lo, a resposta
curta para ele é que, acima de outras formas de ajuda que Deus nos dá, a
esperança segura e certa de estarmos sendo guardados pelo poder de Deus, a
fim de que, na glória da nova ordem vindoura de coisas, venhamos a
desfrutar de seu amor e de sua comunhão, é a fonte de ilimitada recuperação
e de inesgotável força moral. Aqueles que, juntamente com Paulo, acreditam
que "a nossa leve e momentânea tribulação produz para nós eterno peso de
glória, acima de toda comparação" (2 Co 4.17), acham em si mesmos força
para resistirem e superarem as atuais pressões do mal, em suas múltiplas
formas. Paulo exprime algo parecido com isso, em favor de todo o povo de
Deus, em Romanos 8.35-39, com o que este capítulo pode ser concluído:

''Quem nos separará do amor de Cristo? Será tribulação, ou angústia,


ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada? Como está
escrito: Por amor de ti, somos entregues à morte o dia todo, fomos
considerados como ovelhas para o matadouro. Em todas estas cousas,
porém, somos mais que vencedores, por meio daquele que nos amou.
Porque eu estou bem certo de que nem morte, nem vida, nem anjos,
nem principados, nem cousas do presente, nem do porvir, nem
poderes, nem altura, nem profundidade, nem qualquer outra criatura
poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso
Senhor".
O pecado é um tema vital e precisamos tomar conhecimento dele. Dizer
que a nossa necessidade primária na vida é conhecimento sobre o pecado,
pode soar estranho; mas, no sentido tencionado, expressa uma profunda
verdade. Se o leitor ainda não tiver aprendido sobre o pecado, não poderá
entender a si mesmo, nem aos seus semelhantes, nem ao mundo no qual
está vivendo, nem a fé cristã. Também não será capaz de entender o que a
Bíblia diz; pois, a Bíblia é a exposição da resposta de Deus ao problema do
pecado humano. A menos que compreendamos claramente este problema,
continuaremos errando o alvo quanto àquilo que a Bíblia diz. À parte dos
dois primeiros capítulos de Gênesis, que armam o palco, o tema real de cada
capítulo subsequente da Bíblia é o que Deus está fazendo em relação aos
nossos pecados. Se perdermos de vista esse tema, perderemos de vista tudo
o mais quanto a Bíblia diz. Nesse caso, o amor de Deus, o significado da
salvação e a mensagem do evangelho tornar-se-ão questões impenetráveis
para nós. Poderemos até falar sobre essas coisas, mas não faremos ideia
clara daquilo que estaremos dizendo. É patente, pois, que precisamos fixar
em nossas mentes aquilo que os nossos predecessores chamavam de "ideias
claras sobre o pecado".
Isso, porém, não é tarefa fácil, pelo menos por três razões.
Em primeiro lugar, a doutrina bíblica do pecado não nos lisonjeia; e,
naturalmente, mostramos aversão a qualquer opinião a nosso respeito que
nos seja desfavorável. O nosso instinto de autodesculpa é muito forte, sendo
ele mesmo produto do pecado (ver Gn 3.12, 13). Deriva-se daí a tentação de
suavizarmos a doutrina do pecado. Homens bons têm cedido a essa
tentação, desde o início da igreja. É mister graça e iluminação espiritual para
crermos, que nossos pecados são um problema sério aos olhos de Deus,
conforme a Bíblia nos diz. Precisamos orar para que Deus nos torne
humildes e dispostos a aprender, quando estudamos esse tema.
Em segundo lugar, a doutrina bíblica do pecado emerge do conhecimento
bíblico acerca da santidade de Deus. Conhecimento esse que anda muito
escasso em nossos dias. O pecado só pode ser devidamente compreendido
pelo lado de dentro, conforme o achamos em nós mesmos. Tal como Isaías
no templo, só começamos a perceber o pecado em nós quando nos
defrontamos conscientemente com o Deus Santo (cf. Is 6.3-5). No
cristianismo moderno, embora os conceitos da boa vontade e da compaixão
de Deus muito signifiquem, pouco significam os conceitos acerca de sua
santidade e de sua pureza. O fermento do cristão liberal na nossa herança,
somado ao indiferentismo moral de nossa cultura, mais a nossa insensível
apatia e desinteresse para com as coisas espirituais combinaram-se para
suprimir o senso da santidade de Deus. Os escritores realmente autorizados
a falar sobre o pecado - o próprio Isaías, Amós, Oséias, Jeremias, Ezequiel,
Paulo, João, Agostinho, Lutero, João Calvino, John Owen, Tomás Goodwin,
Jonathan Edwards - comunicaram um senso tão poderoso da santa presença
de Deus que quase chega a ser tangível. Visto que a sentiam tanto, puderam
compartilhá-la conosco. Mas, a maioria de nós hoje não tem o conhecimento
que eles tinham do pecado, pois que também não temos a consciência que
eles tinham da presença de Deus.
Em terceiro lugar, a doutrina bíblica do pecado tem sido secularizada nos
tempos modernos. As pessoas continuam a falar sobre o pecado, mas não
mais meditam sobre ele de maneira teológica. O termo ''pecado'' tem deixado
de transmitir a ideia de uma ofensa contra Deus e agora indica apenas uma
quebra dos padrões aceitáveis de decência, particularmente nas questões
sexuais. Porém, quando a Bíblia fala sobre o pecado, refere-se a ele
precisamente como uma ofensa contra Deus. Embora o pecado seja
cometido pelo homem e, com frequência, contra a sociedade, ele não pode
ser definido em termos do homem ou da sociedade. Jamais
compreenderemos o que o pecado realmente é, enquanto não aprendermos
a pensar nele em termos de nosso relacionamento com Deus.
NATUREZA DO PECADO
Os termos que nossa Bíblia traduz por "pecado", tanto no Antigo como no
Novo Testamento, significam ou errar o alvo, ou falhar em alcançar um
padrão, ou falhar em obedecer à autoridade. Seja o padrão inalcançado, o
alvo não atingido, a vereda abandonada, a lei transgredida ou a autoridade
desafiada, em cada caso é o homem contra Deus. O pecado é medido à luz de
Deus e sua vontade. O pecado é desviar-se do caminho que Deus determinou
(Êx 32.8), para um caminho proibido, um caminho de própria escolha (Is
53.6). O pecado consiste em andar contrariamente a Deus, retroceder para
longe de Deus, voltar as costas para Deus, desafiar e ignorar a Deus. Em
termos positivos, qual é a essência do pecado? Brincar de Deus. E, como um
meio para tanto, recusar-se a permitir que o Criador seja Deus, até onde
estiver envolvido aquele que assim agir. A atitude que é a essência do pecado
consiste em viver, não para Deus, mas para si mesmo; amar, servir e agradar
a si mesmo, sem importar-se com o Criador. Consiste em tentar ser tão
independente de Deus quanto possível, colocando-se fora do alcance de sua
mão, mantendo-O afastado, conservando as rédeas da vida em suas próprias
mãos, agindo como se a própria pessoa e os seus prazeres fossem a
finalidade para a qual as demais coisas, incluindo Deus, existissem. O pecado
é a exaltação de si mesmo contra o Criador, evitando prestar a homenagem
que Lhe é devida e pondo-se no lugar dEle como o padrão final de referência,
em todas as decisões da vida. Agostinho analisou o pecado como orgulho
(superbia), aquela louca paixão de ser superior até mesmo a Deus, como um
estado de espírito afastado de Deus para uma atitude de autoabsorção (homo
incurvatus in se). Assim, o pecado é a imagem do diabo, pois o orgulho
autoexaltado foi o seu pecado antes que se tornasse o nosso (1 Tm 3.6).
Todos esses elementos estavam embrionariamente contidos no primeiro
pecado humano, que consistiu em entregar-se à tentação de ser "como Deus"
(Gn 3.5). Paulo nos mostra que o pecado começou quando os homens,
"tendo conhecimento de Deus não o glorificaram como Deus, nem lhe deram
graças" (Rm 1.21). Ele mesmo nos oferece a mais precisa análise do espírito
do pecado contida na Bíblia, ao dizer que "o pendor da carne [a mente e o
coração do pecador não-regenerado] é inimizade contra Deus" (Rm 8.7) -
descontentamento para com o seu governo, ressentimento contra as suas
reivindicações e hostilidade para com a sua Palavra; tudo expresso por meio
da determinação fixa e inalterável de seguir a sua própria independência, em
desafio ao Criador. O substantivo abstrato "inimizade" intensifica a ideia,
como se Paulo houvesse dito "essência da inimizade", ou então "inimizade
pura".
Dessa atitude de autodeificação brotam atos de autodeterminação contra
Deus e nossos semelhantes: atos de irreligiosidade, no primeiro caso; atos de
desumanidade, no segundo caso. Um ser que desprezou o primeiro grande
mandamento - amarás a Deus com todas as tuas forças - dificilmente
poderia mostrar muito respeito para com o segundo - amarás ao teu
próximo como a ti mesmo. Disso, deriva-se o espírito do pecado, que
destroça as relações entre o homem e o seu Criador e também destrói a
sociedade humana. Paulo nos apresenta três formas características em que
essa ação destruidora se manifesta (Rm 1.26-31; Gl 5.19-21 e 2 Tm 3.2-4).
O ESTADO DE PECADO
A Bíblia é enfática ao dizer que o estado de pecado é absolutamente
universal. É natural e inevitável que cada pessoa peque. "Pois não há homem
que não peque'' (1 Rs 8.46). ''Todos, tanto judeus como gregos, estão debaixo
do pecado... todos se extraviaram... não há quem faça o bem, não há nem um
sequer... pois todos pecaram e carecem da glória de Deus" (Rm 3.9, 12, 23).
"Se dissermos que não temos pecado nenhum, a nós mesmos nos
enganamos, e a verdade não está em nós" (1 Jo 1.8). A Bíblia explica essa
pecaminosidade universal em termos de solidariedade dos homens com
Adão (cf. 1 Co 15.22; Rm 5.12ss.). Adão, ao transgredir, tornou-se pecador
por natureza. E os descendentes de Adão já nascem pecadores, e, assim,
pecam por natureza. O nome tradicional daquela disposição inerente de
antipatia contra Deus e contra a sua lei, que temos herdado de Adão, é
pecado original - nome esse que, embora não figure na Bíblia, é muito
apropriado, quer consideremos que essa disposição é herdada por nós do
primeiro homem, quer pensemos que ela encontra-se em nós desde nossa
concepção, ou quer achemos que todos os nossos atos de pecado se originam
dela. A Bíblia intitula essa disposição de "a carne", ou "o pendor da carne"
(Rm 8.7), ou simplesmente "o pecado que habita em mim" (Rm 7.20;
examine os vv. 8-13). Essa atitude controla e determina a conduta de cada
homem que não está em Cristo. Onde o Senhor não governa, o pecado o faz.
A descrição bíblica sobre o estado de pecado inclui estes pontos: 1. É um
estado de condenação. Isso nos mostra a relação do pecador para com Deus
como Juiz, bem como para com os requisitos penais de sua lei, a qual
declara: "A alma que pecar, essa morrerá" (Ez 18.20). "Agora, pois, já
nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus" (Rm 8.1) - à
parte de Cristo, todos os homens estão sob sentença de morte, tanto devido
às suas delinquências pessoais (cf. Rm 1.32; 2.8, 9), como por causa de sua
solidariedade com Adão. Assim como os crentes são justificados por causa de
Cristo, por ter-lhes sido imputada a retidão dEle, assim também aqueles que
não têm a Cristo são condenados por causa de Adão, por lhes ser imputada a
transgressão dele. Isso não significa, entretanto, que eles sejam tidos como
se tivessem praticado pessoalmente o pecado de Adão, e, sim, que Adão
pecou representativamente, em sua capacidade pública de cabeça da raça
humana, e que todos os homens estão envolvidos nas consequências penais
de seu ato pecaminoso. A obrigação penal que nos cabe, em virtude de nossa
ligação com Adão, com frequência tem sido chamada culpa original, estando
essa culpa incluída na definição do pecado original. Pecado Em Romanos
5.12 e 15.19, Paulo desdobrou essa noção da culpa original - a ideia é que,
quando um pecou, "todos pecaram", e, em razão desse ato, "tornaram-se
pecadores".
2. É um estado de contaminação. Isso nos mostra a relação entre o pecador
e o Deus santo. Nos dias do Antigo Testamento, Deus muito ensinou,
através de vários tabus e rituais de pureza, sobre questões de higiene e de
hábitos alimentares, que há coisas que tornam o homem incapaz de ter
comunhão com Ele, pois contaminam o homem, tornando-o sujo e, em
consequência, repelente e inaceitável aos olhos de Deus.
Nosso Senhor eliminou e cancelou esses preceitos simbólicos, tendo dito
enfaticamente que aquilo que contamina o homem não são os alimentos,
mas o pecado. "Assim vós também não entendeis? Não compreendeis que
tudo o que de fora entra no homem não o pode contaminar...? E assim
considerou ele puros todos os alimentos. E dizia: O que sai do homem, isso é
o que o contamina. Porque de dentro, do coração dos homens, é que
procedem os maus desígnios, a prostituição, os furtos, os homicídios, os
adultérios, a avareza, as malícias, o dolo, a lascívia, a inveja, a blasfêmia, a
soberba, a loucura" (Mc 7.18ss.). Isaías aprendera a lição há séculos. Quando
ouviu os serafins proclamarem no templo asantidade de Deus, foi compelido
a exclamar: "Ai de mim!... porque sou homem de lábios impuros". Ele foi
forçado a reconhecer-se incapaz de ter comunhão com Deus, e, de fato,
"perdido" - condenado - face a reação adversa que o Deus santo certamente
demonstraria para com a sua imundícia (Is 6.3-5).
3. É um estado de depravação. Isso nos mostra a relação entre o atual
estado do pecador e a imagem de Deus, na qual ele foi criado. Em essência,
essa imagem era a retidão (cf. Ec 7.29). Conforme fora criado por Deus, o
homem possuía uma mente conhecedora da vontade de Deus e um coração
que se regozijava nessa vontade, amando-a e praticando-a. Fazia parte da
natureza do homem, então, ser santo, como Deus é santo. No entanto, não é
assim agora. A mente humana está entenebrecida no tocante às realidades
espirituais, a sua vontade se alienou da vontade de Deus, a sua consciência é
insensível à voz de Deus (cf. Ef 4.18, 19). O homem tornou-se não apenas
fraco, mas também mau aos olhos de Deus; e agora é inegavelmente
perverso e ímpio (Rm 5.6). Moral e espiritualmente, o caráter do homem
estampa a imagem de Satanás, e não a de Deus. Ora, é precisamente isso o
que a Bíblia quer dizer quando fala sobre o homem caído no pecado como
"filho do diabo" (Jo 8.44; Mt 13.38; At 13.10 e 1 Jo 3.8).
Essa depravação, essa distorção da imagem de Deus, é comumente e
corretamente tida como total: não no sentido que no homem tudo é tão mau
quanto possa ser, mas no sentido que no homem coisa alguma é tão boa
quanto deveria ser. Nada do que o homem faz é bom, nem o exercício de
quaisquer de suas faculdades tem qualificação aos olhos de Deus. Até mesmo
quando certos homens de moralidade "procedem por natureza de
conformidade com a lei" (o que ocorre com certa frequência - Rm 2. 14; cf.
Mt 7 .11), seus corações mostram-se errados. Cada ação deles é viciada,
voltada de alguma maneira para seus próprios interesses, pois o motivo do
pecador sempre é algo mais (e, portanto, sempre algo menos) do que o puro
amor a Deus, a pura consideração para com a vontade de Deus e o puro
desejo por sua glória. Em cada ato humano, em algum ponto, manifesta-se
sempre a corrupção. Deus, que lê o coração, vê tudo isso, mesmo quando o
homem nada percebe. "Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne,
não habita bem nenhum" (Rm 7.18).
4. É um estado de incapacidade. Isso nos mostra a relação entre o pecador
e Deus na qualidade de Legislador, e os preceitos de sua lei. Deus não alterou
a sua santa lei, desde a Queda (e como poderia Ele fazê-lo?). Ele continua
exigindo de nós um perfeito amor a Si e ao nosso próximo. Seu direito de
ordenar e a retidão daquilo que Ele ordena não é afetado pela depravação de
nossa natureza. O que foi afetada foi a nossa capacidade de obedecer aos
seus mandamentos. Antes de cair no pecado, Adão tinha em si esta
capacidade de obedecer a Deus, mas nós não a temos. Como podemos amar a
Deus, se o impulso que vem do mais profundo de nosso ser é inimizade
contra Ele? Para nós, isso é simplesmente impossível. ''O pendor da carne é
inimizade contra Deus, pois não está sujeito à lei de Deus, nem mesmo pode
estar. Portanto, os que estão na carne não podem agradar a Deus" (Rm 8.7,
8). E quando Deus ordena àqueles que estão na carne que se arrependam (At
17.30) e confiem em seu Filho (Jo 6.28, 29), eles não podem atender
enquanto seus corações não forem renovados (cf. Jo 3.5; 6.44; 1 Co 2.14).
Em vista disso, nossa vontade é livre? A resposta mais simples e direta é
que nossa vontade é livre, mas nós mesmos não somos. Nossa vontade é
livre no sentido que temos a capacidade de fazer aquilo que queremos, no
campo das ações morais; mas nós mesmos, como descendentes de Adão,
somos escravos do pecado (Jo 8.34; Rm 3.9; 6.16-23). Isto significa que, de
fato, jamais haveremos de querer, com todo o nosso coração, fazer a vontade
Deus. Portanto, em seu estado pecaminoso, o homem jamais pode agradar a
Deus. A tragédia do homem jaz precisamente no fato que a sua vontade é
livre e que ele tem o poder de fazer aquilo que quer e escolhe fazer; mas,
aquilo que ele quer e escolhe é sempre, de alguma forma, para a
autoglorificação, e, portanto, é pecaminoso e ímpio, resultando que tudo
quanto o homem faz serve para aumentar a sua condenação.
5. É um estado de ira. Esse termo nos mostra a relação entre o pecador e
Deus na qualidade de Rei e, como tal, Juiz (pois nos tempos bíblicos os reis
eram juízes, assim como, antes da monarquia, os juízes de Israel na verdade
eram reis). No Antigo Testamento, o Rei divino é um guerreiro que batalha
contra seus inimigos, impulsionado pela ira, a fim de levá-los à ruína. No
Novo Testamento, os pecadores são os inimigos do Rei divino (Rm 5.10) e
estão sob a sua ira (Rm 1.18 ss.). O Senhor de todas as coisas, que é o Juiz de
toda a terra (Gn 18.25), está agora contra eles. Ora, se Deus está contra os
pecadores, segue-se que todas as coisas também lhes são contrárias. Deus
governa o seu mundo, mas não para o bem dos pecadores (Rm 1.18-2.16; l
Ts 2.14-16; Ap 6.15-17).
6. É um estado de morte. Na Bíblia, a morte e a vida não são conceitos
primariamente fisiológicos. Antes, são conceitos espirituais e teológicos. A
vida significa comunhão com Deus, na experiência de seu amor; a morte
significa estar sem esse privilégio. Os pecadores estão num estado de morte
(Ef 2.1) e não têm qualquer outra expectativa, senão a de continuarem nesse
mesmo estado (Rm 6.23).
O CONHECIMENTO DO PECADO
A mais profunda divisão entre os homens, neste mundo, pode ser
expressa assim: alguns têm conhecimento do pecado, e outros não. Essa
divisão não se verifica apenas entre a igreja e o mundo; ela manifesta-se até
mesmo na igreja. Ao falar de "conhecimento do pecado" não me refiro ao
discernimento dos pecados dos outros, acompanhado de virtuosa indignação
contra os mesmos. Vez por outra, todos nós sentimos tal indignação, como
se deu com aquele fariseu, na narrativa de Jesus, o qual agradeceu a Deus
por não ser como os outros homens, tal como o publicano (Lc 18.11, 12).
Com essa expressão refiro-me antes à consciência de sua própria culpa,
perversão, impureza e falta de capacidade moral e espiritual, conforme Deus
as vê. Se temos ou não tal conhecimento não depende nem de vivermos
moral ou imoralmente à luz de padrões convencionais, nem depende de
nosso estilo de vida preferido ser ordeiro e controlado, em oposição ao estilo
descontrolado e casualista. Tudo quanto pode ser dito sobre o estilo de vida
é que se alguém não é um daqueles que encaixam o seu viver nos moldes da
respeitabilidade convencional, de tal modo que os homens pensem bem a
seu respeito, então talvez essa pessoa esteja mais em contato consigo
mesma e melhor capacitada para perceber que o diagnóstico bíblico do
pecado é uma carapuça que se ajusta à sua cabeça. Nos dias de Jesus, isso
aconteceu com os publicanos e outros (pecadores) sem reputação, em
contraste com os fariseus. Isso vem se repetindo desde então. O falecido
Peter Sellers, aquele maravilhoso ator que representou vários personagens e
deu ao mundo Grytpype-1hynne, Henry Crun, Major Bloodnok, Bluebottle, Fred
Kite, Inspetor Clouseau, Dr. Strangelove, o temível Fu Manchu e muitos outros,
disse francamente que não sabia quem ou o que ele era, à parte dos papéis
que desempenhava. Os escritores que falaram sobre ele, referiram-se à
máscara por detrás da máscara. Por semelhante modo, a religião pode ser
apenas um papel teatral, produzindo o estado mental que o trecho do Salmo
36.2 atribui aos ímpios: "A transgressão o lisonjeia a seus olhos e lhe diz que
a sua iniquidade não há de ser descoberta nem detestada".
Que significa “conhecei o pecado em nós mesmos”? Significa mais do que
saber que, algumas vezes, não somos exatamente perfeitos - embora alguns
achem difícil chegar a esse ponto. Significa notar os motivos do interesse
próprio: a autoimposição, o avanço pessoal, a autojustificação, a
autossatisfação - motivos esses que estimulam as nossas ações. Significa
compreender que esses motivos revelam o nosso verdadeiro "eu", porque
procedem do nosso próprio "coração" - não, naturalmente, daquele músculo
que bombeia o sangue, e, sim, do âmago real oculto de nossa personalidade,
de onde, segundo Jesus ensinou, procedem "os maus desígnios, a
prostituição, os furtos, os homicídios, os adultérios, a avareza, as malícias, o
dolo, a lascívia, a inveja, a blasfêmia, a soberba, a loucura" (Mc 7.21, 22).
"Enganoso é o coração, mais do que todas as cousas, e desesperadamente
corrupto; quem o conhecerá?", declarou Deus por meio do profeta, em
Jeremias 17.9, 10. E Ele mesmo deu a resposta: "Eu, o SENHOR,
esquadrinho o coração, eu provo os pensamentos". Conhecer o pecado, pois,
é enfrentar o fato que, em nosso estado caído, não podemos fazer nossos
corações assumirem a atitude requerida por Deus, de autonegação, de auto-
humilhação, de tomar a cruz e dar a vida em favor do próximo. Alguns, na
verdade, podem sentir prazer em ter aparência de religiosos - o Oriente e o
Ocidente estão repletos de pessoas para os quais isso representa uma
satisfatória viagem pelo "ego". Mas, nenhum ser humano caído aprecia
naturalmente as privações e asperezas da autoentrega ao Deus vivo. Tereza
de Ávila foi ousada ao dizer: "Senhor, se é assim que tratas os teus amigos,
não me admira que tenhas tão poucos". Finalmente, o conhecimento do
pecado é reconhecer que precisamos de perdão, e que, sem perdão, não
haverá a mínima esperança de comunhão com Deus.
Como adquirimos o conhecimento do pecado? Por meio da lei de Deus,
assevera Paulo - a lei que reflete o caráter de Deus e expressa a sua vontade
para o nosso viver, e da qual há elementos gravados na consciência de cada
ser humano (cf. Rm 2.14, 15); a lei que foi outorgada no Sinai e explicada
pelos profetas, pelos apóstolos e pelo próprio Senhor Jesus. ''Ora, sabemos
que tudo o que a lei diz aos que vivem na lei o diz, para que se cale toda boca,
e todo o mundo seja culpável perante Deus, visto que ninguém será
justificado diante dele por obras da lei, em razão de que pela lei vem o pleno
conhecimento do pecado" (Rm 3.19, 20). É claro que, quando Paulo fala
sobre a ''lei'', ele indica padrões de viver para Deus, em adoração, bem como
de viver para o próximo, por meio do serviço; ele indica também
indispensáveis padrões de bondade, assim como especificações quanto a
males proibidos; e, a demanda por constante perfeição (cf. Tg 2.10), que
ultrapassa em muito aesforços ocasionais; e, ainda, a declaração do juízo
retributivo contra os transgressores da lei. Ora, segundo Paulo ensina, ao
nos fazer conscientes do pecado, a lei funciona assim:
1. A lei identifica o pecado, definindo e retratando-o.
2. A lei desperta a desobediência. O pecado é uma espécie de alergia no
sistema moral e espiritual do homem caído, uma reação anômala à lei de
Deus. O pecado irrompe irracionalmente, sob a forma de um impetuoso
desejo, contrário aos mandamentos do Senhor. "Mas eu não teria conhecido
o pecado, senão por intermédio da lei; pois não teria eu conhecido a cobiça,
se a lei não dissera: Não cobiçarás. Mas o pecado, tomando ocasião pelo
mandamento, despertou em mim toda sorte de concupiscência..." (Rm 7.7,
8). Todo aquele que procura observar qualquer dos mandamentos de Deus,
no nível da motivação, disciplinando-se para querer somente aquilo que
Deus quer, passa por uma experiência similar à de Paulo. Desta forma, cada
um de nós pode detectar a sua própria depravação total, se até este ponto
temos duvidado dela.
3. A lei condena a desobediência por ela mesma fomentada, capacitando-
nos assim a nos vermos como realmente somos, isto é, culpados diante de
Deus, condenados à morte. ''Outrora, sem a lei, eu vivia; mas, sobrevindo o
preceito, reviveu o pecado, e eu morri... Porque o pecado, prevalecendo-se do
mandamento, pelo mesmo mandamento me enganou [transpondo minhas
defesas num ponto, enquanto eu estava ocupado em repeli-la em outro] e
me matou [isto é, trouxe-me à miséria de a cada momento saber que estava
perdido]" (Rm 7. 9, 11).
Assim, por induzir-nos ao desespero, a lei nos ensina a olhar para fora de
nós e de nossas fantasiosas realizações morais e nos ensina a virmos a Cristo
como pecadores, para sermos perdoados. Que isso aconteça, faz parte do
plano misericordioso de Deus. É conforme Lutero explicou em certa ocasião:
"Enquanto os pecados são desconhecidos, não há lugar para a cura, nem
esperança de que ela aconteça; pois, os pecadores que pensam estarem
saudáveis, e que não precisam de médico, não suportarão o toque da mão do
curador. Portanto, a lei é necessária para nos dar conhecimento do pecado, a
fim de que o homem orgulhoso, que pensa estar são, possa ser humilhado
pela descoberta de sua imensa iniquidade pessoal e suspire e anele pela graça
que é oferecida em Cristo'' (The Bondage of the Will - A Escravidão da Vontade
- tradução de J. I. Packer e O. R. Johnston, p. 288). Nas próprias palavras de
Paulo: "De maneira que a lei nos serviu de aio [paidagõgos, o escravo
encarregado da educação de uma criança] para nos conduzir a Cristo, a fim
de que fôssemos justificados por fé" (Gl 3.24).
A isto pode ser acrescentado que Jesus Cristo, o Filho de Deus em carne,
pode verdadeiramente ser descrito não somente como a graça encarnada,
mas também como a lei encarnada. A sua vida e os seus ensinos revelam a
santidade diante de nós, de um modo que tanto nos instrui quanto nos
condena. Para muitos crentes, o ato de meditar nas palavras de Jesus tem
servido para despertar e aprofundar o senso de pecado, mais do que
qualquer outra coisa. Não podemos pensar sobre o pecado com mais
profundidade do que isto: tudo o que somos, moral e espiritualmente, é
aquilo que Cristo não é. Já tivemos ocasião de dizer que o conhecimento do
pecado vem através do conhecimento de Deus. Agora, devemos acrescentar
que esse conhecimento vem principalmente através do conhecimento do
Deus encarnado.
O ENGANO DO PECADO
Vivemos numa época em que bem pouca ênfase é dada aos padrões da lei
de Deus e ao exemplo moral de Cristo. Seria aconselhável ouvirmos mais
sobre essas coisas. Contudo, muito mais se faz mister para produzir um
senso de pecado do que meramente frisar padrões. Pois, o pecado mesmo,
que, conforme vimos, foi personalizado por Paulo como um enganador e
assassino dos homens, tem sob o seu comando aquilo que só poderia ser
chamado de um tipo de inteligência antirracional, a qual opera em nosso
interior, usando fantasias, ilusões, irrealidades de todo o tipo, falsas
aspirações, racionalização, distrações e muitos outros anestésicos da mente.
O pecado tem um duplo alvo: remover as barreiras que se levantam contra a
impiedade, que destrói o indivíduo, e ergue obstáculos contra o
arrependimento (o qual não consiste em mera tristeza diante do erro
praticado, mas num verdadeiro abandono das práticas erradas). O pecado
nos seduz tanto para o erro quanto para a confortante conclusão de que
espiritualmente tudo está bem conosco. O método usado pelo pecado é o
engano. Paulo alude às "concupiscências do engano" (Ef 4.22), às quais
precisamos renunciar. Ele lembra aos seus leitores que os nossos desejos
pecaminosos apresentam-se diante de nós caiados de branco, ou disfarçados
como se fossem a coisa certa a fazer, assegurando-nos que podemos
livremente satisfazê-los e tudo estará bem. O trecho de Hebreus 3.13
adverte os crentes para que não se deixem endurecer "pelo engano do
pecado", o qual procura enevoar as nossas mentes sobre as questões da
eternidade - em particular, neste contexto, a necessidade de persistência na
fé, como o caminho para a glória final, o que os pressionados e perplexos
crentes hebreus estavam sendo tentados a esquecer.
A técnica enganadora do pecado é multiforme. As tentações exploram
tanto as debilidades como os pontos fortes de nosso temperamento, por isso
Paulo escreveu: "Aquele, pois, que pensa estar em pé, veja que não caia" (1
Co 10.12). O pecado pode embaralhar nossas mentes numa situação ética de
natureza diabólica, mediante a qual concluímos que, sem importar o que seja
apropriado em outras situações e para outras pessoas, as circunstâncias
justificam o que queremos fazer no momento. Além disso, o pecado pode
paralisar nossas mentes, cativando-nos mediante as esplêndidas
perspectivas daquilo que está diante de nós, ao ponto de a razão e a
consciência não conseguirem dar qualquer palavra de advertência a elas
(Depois, com bastante razão, diremos: "Eu não tinha pensado nisso'') . Os
pecados de exploração do próximo, de manipulação de sistemas, de fuga da
responsabilidade, de retenção da benevolência e de cultivo de
ressentimentos resultam regularmente de mentes que estão embaralhadas.
Os pecados sexuais, a ambição e a violência refletem, de forma geral, uma
mentalidade temporariamente desviada: condições para as quais o álcool, as
drogas e a exaustão podem contribuir desastrosamente. O diagnóstico de
Tiago serve para tais casos: "Cada um é tentado pela sua própria cobiça,
quando esta o atrai e seduz. Então a cobiça, depois de haver concebido, dá à
luz o pecado; e o pecado, uma vez consumado, gera a morte" (Tg 1.14, 15).
O endurecimento (Hb 3.13; cf. Ef 4.18, 19; 1 Tm. 4.2) é o processo
mediante o qual a pessoa deixa de estar consciente do mal que está
praticando, por atitudes de orgulho, de impiedade, de desamor, de ódio, de
brutalidade, de desprezo, ou por qualquer outra coisa que esteja praticando.
O hábito produz o endurecimento, e o endurecimento, visto que destrói o
senso de pecado, elimina a possibilidade de arrependimento.
Precisamos dar-nos conta do fato que o pecado atua incansavelmente em
nós, com o intuito de produzir seus horrorosos efeitos o tempo todo.
Também precisamos entender que somente a graça divina é capaz de vencê-
lo. Os salmistas oraram para que pela graça lhes fosse dado o conhecimento
de seu pecado, para que pela graça pudessem abandoná-lo. "Sonda-me, ó
Deus, e conhece o meu coração: prova-me e conhece os meus pensamentos;
vê se há em mim algum caminho mau, e guia-me pelocaminho eterno"
(Sl139.23, 24; cf. Sl 19.12-14; 119.29). Faríamos bem em tornar nossas
essas orações dos salmistas.
Faz mais de um século que a crença na existência do diabo parece estar
em caminho descendente. O dentuço diabinho vermelho, com cauda e um
tridente, tornou-se uma figura cômica no mundo secular, ao mesmo tempo
em que os teólogos protestantes baniram o diabo da Bíblia para o quarto de
despejo, reservado para os mitos arruinados. Não há dúvida que a situação
atual reflete aquilo pelo que Satanás tanto vem trabalhando, porque isso lhe
permite operar agora na mais intensa escala, sem ser detectado ou sofrer
oposição. Ele não tem desperdiçado suas chances. Nos últimos cem anos, ele
engendrou um colapso mundial do evangelicalismo, em todas as mais
antigas denominações protestantes. O estado dessas igrejas, agora fracas,
sem poder, e não-evangélicas, em comparação com o que eram há cem anos
atrás, nos fornece lamentáveis provas da habilidade e da profundidade com
que o diabo vem realizando seu trabalho. A Bíblia não é mais crida em sua
totalidade, o evangelho não mais está sendo pregado inteiramente, e o
paganismo pós-cristão varre o mundo como um incêndio descontrolado. Por
séculos Satanás não tem obtido tão grande vitória.
Foi racional e ajuizado desistir da crença na existência do diabo, como
fizeram os teólogos liberais? De modo algum. A reação óbvio às negações
acerca da existência de Satanás consiste em indagar: quem, pois, está
dirigindo os negócios dele? Pois as tentações que se parecem e se mostram
como expressões de astuta e destrutiva malícia continuam sendo fatos da
vida atual. Outro tanto sucede no caso do inferno, naquele sentido definido
pelo novelista John Updike - "uma profunda e desoladora ausência" (de
Deus, do bem, da comunidade e da comunicação); e Updike continua: ''a
percepção de que a vida está arruinada, admite a possibilidade de ter havido
uma Queda, bem como de uma causa por trás da Queda, isto é, Satanás". A
crença na existência de Satanás não é ilógica, porquanto ajusta-se aos fatos.
Mas, a descrença na existência dele é inepta até ao ponto da idiotice, num
mundo como o nosso; e isso torna o êxito de Satanás, em produzir essa
descrença, ainda mais impressionante e mais entristecedor.
Em anos recentes, algo como um antídoto contra o hábito de negar a
existência de Satanás tem sido administrado pela forte ênfase do
movimento carismático, sobre a luta contra os demônios e seu general, o
diabo. É correto levar com seriedade esse aspecto do cristianismo
neotestamentário, mas tal ênfase nem sempre tem sido acompanhada por
sabedoria. Em primeiro lugar, a possessão demoníaca de incrédulos e os
ataques dos demônios contra crentes não têm sido suficientemente
distinguidos de certas formas de colapsos e distúrbios mentais, que cedem
diante de repouso ou de medicamentos. Nos evangelhos, a possessão
demoníaca caracteriza-se não somente mediante a desintegração
dapersonalidade, mas também pelo reconhecimento da identidade e da
autoridade de Jesus como o Filho de Deus e pela hostilidade contra Ele. Só
quando este fator se faz presente, a possessão demoníaca pode ser
diagnosticada com confiança. Em segundo lugar, é duvidoso o pressuposto
de que a possessão demoníaca, hoje, pode ser um problema tão comum
como nos dias de Jesus. No livro de Atos e nas epístolas, não parece que o
problema continuava tão grave, mesmo no começo da era apostólica. A
maneira natural de interpretarmos essa evidência consiste em supor que a
vinda do Filho de Deus à terra agitou muito a atividade demoníaca, a qual
abrandou-se novamente após a sua ascensão. Teme-se que a preocupação de
alguns em achar demônios por toda a parte não passa de uma obsessão
pessoal, que Satanás pode usar como uma cortina de fumaça para a sua
verdadeira obra de corrupção espiritual, com não menos eficiência do que
quando ele usa a descrença em sua existência para esse propósito.
Com base nessas considerações, é claro que Satanás é uma pessoa a quem
igrejas e crentes ignoram, para perigo de si mesmos. O Novo Testamento
reiteradamente nos acautela contra o ignorá-lo. Paulo jamais caiu nessa
armadilha. Antes, ele sabia quais eram as astúcias do diabo e pôde afirmar:
"Não lhe ignoramos os desígnios" (2 Co 2.11); ou como parafraseou um
erudito moderno: "Estamos preparados para enfrentar os truques do diabo".
É vitalmente importante que sejamos capazes de dizer o mesmo. Queiramos
ou não, cada um de nós está pessoalmente envolvido em uma batalha contra
o diabo, porque ele mesmo declarou guerra a cada um de nós. Paulo nos
exorta a enfrentar essa realidade e aprender a combater o inimigo: "Para
poderdes ficar firmes contra as ciladas do diabo; porque a nossa luta não é
contra o sangue e a carne, e , sim, contra os principados e potestades, contra
os dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do
mal... Portanto, tomai toda a armadura de Deus, para que possais resistir no
dia mau..." (Ef 6.11ss.). A vida cristã não é um mar de rosas; é um campo de
batalha, na qual o crente tem de lutar continuamente pela sua vida. A
primeira regra para o sucesso em uma batalha é: conheça o seu inimigo. O
propósito deste estudo é capacitar-nos a conhecer e avaliar Satanás, a fim de
podermos lutar contra ele com eficácia.
DIFICULDADES DA DEMONOLOGIA
É difícil ter ideias corretas sobre o diabo; pois, em primeiro lugar, aquele
ramo da demonologia que trata dele é inteiramente uma questão de
revelação; e, em segundo lugar, nossa demonologia não pode ser mais
verdadeira nem mais adequada do que a nossa doutrina de Deus. Podemos
perceber a verdade sobre Satanás somente à luz da verdade sobre Deus. A
demonologia diz respeito a um aspecto – o aspecto básico – do mistério do
mal. O mal deve ser entendido como uma falta, ou uma perversão do bem;
mas só podemos saber o que é o bem quando sabemos o que Deus é. Só
através da apreciação da bondade de Deus podemos formar qualquer ideia
acerca da malignidade do diabo.
Portanto, achamo-nos diante de uma cilada: se nossas ideias acerca de
Deus são falsas, nossos conceitos acerca do diabo também o serão. Por
exemplo: se, como a maioria, imaginarmos Deus como um tio celestial de
todos os homens, cuja tarefa (nem sempre bem feita) consiste em ajudar-nos
a alcançar nossos desejos egoístas por diversões irresponsáveis e por um
conforto sem preocupações, nós conceberemos Satanás apenas como um
mal-humorado cósmico, cujo único alvo é frustrar nossos planos e estragar
nossos prazeres. Porém, na realidade, isso não nos levaria mais próximo da
verdade acerca de Satanás do que aideia a respeito do Papai Noel celestial
nos leva à verdade acerca de Deus.
O FIO DA NAVALHA
Além disso, quando estudamos a demonologia, estamos caminhando pelo
fio de uma navalha, e aos nossos pés abrem-se, o tempo todo, dois abismos
de erro, nos quais facilmente podemos cair. Por um lado, podemos levar
Satanás por demais a sério, como fizeram alguns na igreja primitiva e na
Idade Média. Isso nos faria perder a paz de Deus e cair em fantasias e
temores mórbidos: o diabo seria o tema principal de nossa teologia e
assumiríamos uma postura negativa sobre a vida cristã, como se fosse, antes
de tudo, uma série de exercícios para nos esquivarmos de Satanás e uma
série de manobras antidiabólicas. Esse foi o erro que levou homens a se
fazerem monges e eremitas, na igreja primitiva. Eles se retiraram da vida
comum a fim de combater sem distração o diabo por tempo integral, crendo
que, de outra forma, não poderiam manter-se livres de suas garras. A raiz de
seu erro era a incredulidade, pois não confiavam em Deus para conservá-los
em segurança, se permanecessem no mundo (Jo 17.15). Estavam
intensamente cônscios de que o diabo é um adversário de terrível malícia e
de grande poder; mas falharam em compreender que, por causa da cruz de
Cristo, o diabo é um inimigo derrotado. A resposta bíblica aos seus temores
foi dada pelos reformadores e pelos puritanos, os quais, sem haverem
minimizado em coisa alguma a ferocidade do diabo contra o povo de Deus,
fizeram uma digna exposição do triunfo do Calvário, do escopo das
promessas de Cristo e da realidade do poder sustentador do Senhor Jesus.
Por outro lado, podemos errar não levando o diabo a sério como convém.
Segundo já dissemos, esse é o erro característico dos tempos modernos. A
negação de que Satanás é um agente pessoal é uma forma extrema desse
erro. A relutância em levar o diabo a sério, produz dois maus efeitos: engana
os homens, por privá-los do conhecimento de seu próprio perigo como
objetos dos ataques do diabo; e desonra a Cristo, por tirar da cruz a sua
significação como um triunfo sobre Satanás e suas hostes (cf. Cl 2.15).
Apegarmo-nos à Bíblia é a única maneira de evitar esses equívocos (e
estejamos certos, ambos agradam muito a Satanás). Portanto, é para as
Escrituras que, agora, nos voltamos.
O RETRATO DE SATANÁS
Pedro fala de "o diabo, vosso adversário" (1 Pe 5.8). "Adversário" é o
significado da palavra hebraica "satanás". E "diabo" (no grego, diabo/os)
significa "caluniador". Ambos os termos apontam para a mesma verdade
básica: a natureza de Satanás consiste em pensar, falar e agir em constante e
maliciosa oposição a Deus, o Criador, e, por conseguinte, em oposição ao
povo de Deus também. O diabo é o "nosso adversário" pela simples razão que
ele também é o adversário de Deus. O homem é uma criatura de Deus, feito à
imagem de Deus, a fim de usufruir da glória de Deus. A grande ambição de
Satanás, desde que o homem foi criado, tem sido desfigurar essa imagem e
frustrar a vontade de Deus quanto à nossa vida e ao nosso destino.
Satanás é um anjo, um dos "filhos de Deus" (Jó 1.6; 2.1) - mas, um anjo
caído. Ele é um dos anjos que "pecaram" (2 Pe 2.4), que "não guardaram o
seu estado original, mas abandonaram o seu próprio domicílio" (Jd 6).
Agora, ele é "o príncipe da potestade do ar" (Ef 2.2). Ele é quem comanda "as
forças espirituais do mal, nas regiões celestes" (Ef 6.12). A fim de tentar os
homens, ele pode tornar-se em "anjo de luz'' (2 Co 11.14), embora o seu
domínio seja melhor descrito como "o império das trevas". Devemos pensar
em "trevas" no seu sentido mais amplo - trevas intelectuais, morais e
espirituais (Cl 1.13; cf. Lc 22.53). A Bíblia retrata o diabo como uma
serpente (Gn 3.1; Ap 20.2), como um dragão (Ap 12; 20.2) e como um leão
que ruge (1 Pe 5.8). Tudo isso indica a sua astúcia, o seu ódio, a sua
ferocidade e a sua crueldade contra o povo de Deus. A Bíblia também chama-
o de tentador (Mt 4.3 e 1 Ts 3.5), de mal (Jo 17 .15), de mentiroso e
homicida (Jo 8.44). Essas descrições mostram o caráter e o alvo da estratégia
com a qual ele nos ataca.
Satanás foi o pecador original: "O diabo vive pecando desde o princípio"
(1 Jo 3.8). A única informação que temos sobre a revolta dos anjos caídos,
antes da criação do mundo, é que ela ocorreu. A Bíblia é um livro prático e
jamais desperdiça tempo com coisas que não tenham ligação direta com as
nossas vidas. Alguns têm pensado que os termos com que são descritos os
orgulhosos reis de Tiro e de Babilônia, em Ezequiel 28.11-19 e Isaías 14.12-
14, respectivamente, devem sua origem às narrativas tradicionais da queda
de Satanás, cuja imagem aqueles arrogantes reis estampavam de maneira
notável; mas essa opinião não pode ser provada. O que é claro, porém, é que
desde o momento da criação do mundo, Satanás já se encontrava em cena,
um rebelde contra Deus, procurando envolver Adão e Eva numa rebelião
semelhante, por meio do engano, ou seja, a primeira mentira (Gn 3.4, 5; cf. 2
Co 11.3).
A MENTALIDADE DE SATANÁS
A mentalidade de Satanás é um mistério cujas profundezas jamais
poderemos sondar totalmente. Não só porque Satanás é um anjo, ao passo
que nós somos homens, mas também porque Satanás é inteiramente
maligno, e não somos capazes de conceber o que é exclusivamente mal.
Nenhum ser humano tem descido de tal modo no pecado ao ponto que não
se possa encontrar nele algum vestígio de bondade ou de verdade; nenhum
ser humano é motivado somente pelo ódio aos outros; nenhum ser humano
tem por alvo arruinar e destruir as realizações criativas de outrem; nenhum
ser humano jamais disse a si mesmo em cada situação da vida e em cada
esfera de valor: "Mal, torne-se o meu bem!" Não há ser humano cujo caráter
é exclusivamente integrado pelo poder do ódio contra Deus. Embora a
imagem de Deus tenha sido desfigurada no homem caído, em cada aspecto,
de tal modo que nada do que o homem faz é totalmente como deveria ser,
nenhum de nós é completamente maligno; e simplesmente não podemos
imaginar um ente que seja totalmente maligno. Portanto, nunca poderemos
formar uma ideia realmente adequada quanto ao que Satanás se assemelha.
Nem o próprio Milton pôde imaginar Satanás como um ser inteiramente
destituído de nobreza; nem o Screwtape, criado por C. S. Lewis, é um
personagem totalmente desprovido de senso de humor. A Bíblia, porém,
claramente tenciona que creiamos na existência de um diabo e de uma hoste
de seguidores satânicos, dotados de uma maldade simplesmente
inimaginável – mais cruéis, mais maliciosos, mais orgulhosos, mais
zombadores, mais pervertidos, mais destrutivos, mais repugnantes, mais
imundos, mais desprezíveis do que qualquer coisa que a mente humana
possa conceber.
Uma coisa é certa: como sucede a outros mentirosos profissionais,
Satanás, pelo menos até certo ponto, perdeu contato com a realidade. Há um
"capricho" em sua mente, um "amolecimento" de cérebro, podemos dizer,
que o compele a negar que é um inimigo cativo e derrotado, levando-o a crer
que se ele lutar arduamente contra Deus e contra os verdadeiros filhos de
Deus, finalmente conseguirá derrotá-los. Como Hitler, em sua fortaleza
subterrânea, Satanás não consegue deixar-se convencer de que já perdeu a
guerra e jamais poderá vencer. Em Apocalipse 12.12 uma voz do céu adverte
a terra, dizendo: "O diabo desceu até vós, cheio de grande cólera, sabendo
que pouco tempo lhe resta". Esse conhecimento logo assume a forma de uma
furiosa negação e de uma vigorosa tentativa para provar que as coisas não
são assim, tal como o conhecimento natural do homem caído acerca de Deus
tende a assumir a forma de um voluntário e desafiador não-reconhecimento
de Deus. Mas, a intensidade da negação prova que o conhecimento existe, de
fato.
Não há muito no Antigo Testamento acerca do diabo, embora ele sempre
apareça ali como o adversário do povo de Deus, procurando excluí-los do
favor divino, ou por conduzi-los a atitudes e ações irreligiosas
(desobediência, Gn 3; presunção, 1 Cr 21.1; blasfêmia e desespero, Jó 1.6-
2.10), ou por caluniá-los diante de Deus (Jó 1.9ss.; 2.3ss.; Zc 3.1, 2; cf. a
descrição de Satanás como "o acusador de nossos irmãos, o mesmo que os
acusa de dia e de noite, diante do nosso Deus", Ap 12.10).
No Novo Testamento, porém, a revelação acerca de Satanás é muito mais
completa. Toma-se claro ali que o seu poder é extraordinariamente grande.
Ele pode manipular os eventos físicos (2 Ts 2.9; cp. Jó 1.12) e sugerir às
nossas mentes pensamentos errados (Mt 4.3ss.). Não somente isso, pois
também pode infligir a enfermidade (Lc 13.16) e até mesmo a morte (Hb
2.14). Pior ainda, ele realmente conserva a humanidade presa atrás das
portas fechadas das trevas e da incredulidade espirituais. Satanás "agora
atua nos filhos da desobediência" (Ef 2.2), a fim de tomá-los e mantê-los
cegos para a verdade de Deus (2 Co 4.4), em desacordo à vontade do Senhor,
até que venha o tempo de terminar as suas vidas e de fixar o estado eterno
deles como um estado de dor, angústia e perda. Assim, o diabo primeiro age
como o carcereiro, e, finalmente, como o executor da raça humana inteira.
"O mundo inteiro jaz no maligno" (1 Jo 5:19). Do ponto de vista de Cristo, o
mundo ao qual Ele veio salvar era território ocupado pelo inimigo, sendo
Satanás o seu "príncipe" (no grego, archõn, chefe - Jo 12.31; 14.30 e 16.11),
e, de fato, o seu "deus" (2 Co 4.4).
O CATIVEIRO DE SATANÁS
Isto não quer dizer que Satanás tenha qualquer poder
independentemente de Deus. Satanás (ainda que, sem dúvida, ele nunca o
tenha admitido, nem jamais acreditará) é uma ferramenta de Deus. Ao
conceder a Satanás tanto poder, Deus se utiliza dele para executar o juízo
divino sobre um mundo rebelde. Assim como um homem pode fazer uso de
um cão bravo que o odeia, para desviar de sua propriedade os invasores,
assim Deus faz uso de Satanás para punir aqueles que têm pecado. Satanás e
os demônios estão num estado de aprisionamento, e isso desde a sua queda;
eles estão guardados "sob trevas, em algemas eternas, para o juízo do grande
dia" (Jd 6; Mt 25.41; Ap 20.10). Todos estão em cadeias. Não possuem maior
liberdade de ação do que aquela que Deus lhes concede; e, em tudo quanto
fazem, como disse Calvino, arrastam consigo as suas cadeias. Satanás gosta
de pensar e quer que outros pensem que ele é o verdadeiro governante deste
mundo (cf. Lc 4.6). Mas, a verdade é que ele não pode exercer qualquer
poder além dos limites colocados pelo Senhor (cf. Jó 1.12; 2.6). Deus o
mantém acorrentado; talvez se trate de uma corrente muito longa, mas é
uma corrente real.
Quando o Filho de Deus veio a este mundo ''para destruir as obras do
diabo" (1 Jo 3.8), Satanás empregou todos os meios para frustrá-Lo, mas
falhou. Em tudo, Cristo foi vencedor. Não só no início do seu ministério (Mt
4.1ss.), mas ao longo do mesmo (Lc 4.13; 22.28), Satanás tentou-O para
desviá-Lo, de uma maneira ou de outra, da vontade do Pai (cf. Mt 16.22, 23).
Jesus, porém, jamais caiu nas armadilhas de Satanás; nem uma vez Ele
pecou (Hb 4.15; l Pe 2.22). Ele repeliu todos os ataques do inimigo e
prosseguiu triunfantemente para tirar de Satanás uma grande parte do
domínio que ele até então havia gozado. Jesus fez isso, primeiro mediante
suas curas e exorcismos (Lc 11.17-22; 13.16), e, finalmente, por meio de
suas orações (Lc 22.31, 32; Jo 17.15) e de sua morte expiatória. Isso
garantiu a salvação de todo aquele imenso grupo de pessoas a quem Ele veio
redimir (Jo 12.31, 32). Assim, pois, o Calvário foi uma vitória decisiva sobre
Satanás e suas hostes (Cl 2.15), o que, em consequência, garantiu o
destronamento do diabo sobre inúmeras vidas. A cruz garantiu que um
número incalculável de pessoas seria libertado, conforme lemos em
Colossenses 1.13-14: "Ele nos libertou do império das trevas e nos
transportou para o reino do Filho do seu amor, no qual temos a redenção, a
remissão dos pecados". Isso vem a acontecer por meio da pregação do
evangelho, que convida os homens a voltarem-se de Satanás para Deus (At
26.18), e por meio da obra cooperante de Cristo no céu, pela qual Ele move
os homens à resposta da fé e ao arrependimento (At 5.31). Satanás resiste o
tempo todo e a cada passo do caminho, mas não pode impedir esses
acontecimentos. Ele é, sem dúvida, um inimigo derrotado.
A GUERRA SANTA
O homem não-crente é um cativo de Satanás, que o domina como quer.
Porém, se esse homem tornar-se crente, o diabo passará a vê-lo como um
prisioneiro que fugiu; e, o diabo luta contra ele, procurando recapturá-lo. Ele
tenta (submete a provas) o crente com intuitos maliciosos, esperando
descobrir uma fraqueza e induzi-lo a um curso de ação que, finalmente, o
reconduzirá à prisão da qual Cristo o libertou. Satanás busca "entrar" no
crente, tal como entrou em Judas Iscariotes (Lc 22.3; Jo 13.27), isto é,
procura recuperar o controle sobre o crente, para assim torná-lo, uma vez
mais, um "filho do diabo" (At 13.10; 1 Jo 3. 10). Todas as tentações de
Satanás têm, ao final, isto em mira - elas são numerosas placas que dizem
"bem-vindo", colocadas ao longo do caminho largo, que conduz à perdição.
OS INSTRUMENTOS DE SATANÁS
Como é que Satanás tenta? Mediante a sua "astúcia", isto é, seu "engano"
(Ef 6.11; cf. 2 Co 11.3). Normalmente, ele se mantém fora de vista,
manipulando "o mundo" (estímulos externos) e "a carne" (desejos
desordenados dentro de nós) como seus instrumentos de sedução. Algumas
vezes, ele opera através de desejos e necessidades aparentemente inocentes
(cf. Gn 3.6; Lc 4.2, 3), ou de conselhos bem intencionados de nossos amigos
(cf. Mt 16.22, 23). Não há limites para a sutileza de Satanás. Ele tem seus
próprios servos, até mesmo na igreja (Mt 13.38), que fazem o papel de
pastores e teólogos (2 Co 11.13-15). Claro, eles nem suspeitam que seu
ensino e liderança são perversões satânicas do cristianismo, mas é isso que
eles fazem, e Satanás faz intenso uso deles. ''Quando Satanás sobe a um
púlpito, ou a uma cadeira de teologia, e pretende ensinar cristianismo,
quando, na realidade, o está corrompendo... pretende ensinar Introdução
Bíblica, quando na realidade está deixando a impressão que a Bíblia é um
livro que nem é digno de ser exposto - cuidado com ele; ele está na mais
perigosa de suas obras" (R. A. Torrey, What the Bible Teaches - O que a Bíblia
Ensina - p. 517). Crenças erradas acerca de Deus (por exemplo,
ressentimento e desespero, cf. 2 Co 12.7), conduta condenável aos olhos do
Senhor (cf. 1 Co 7.5) - essas são as finalidades táticas pelas quais Satanás
trabalha, e ele dispõe de muitas maneiras de nos conduzir a elas.
Sejamos claros quanto a isso. Satanás não tem propósitos construtivos;
suas táticas são simplesmente para contrariar a Deus e destruir os homens.
Da mesma forma que o lema de David Livingstone era: "Para qualquer lugar,
contanto que seja para a frente", assim o lema de Satanás é: "Qualquer coisa,
contanto que seja contra Deus". O diabo está sempre procurando produzir
incredulidade, orgulho, irrealidade, falsas esperanças, confusão mental e
desobediência, como fez no jardim do Éden. E, se ele não puder fazer isso
diretamente, então ele se aplica em fazê-lo indiretamente, fomentando o
desequilíbrio e a parcialidade. Viver a vida cristã é como tocar uma peça
musical ao piano: se alguém toca nas teclas erradas, fracassa; se alguém toca
nas teclas certas, mas erra quanto ao tempo, ritmo, volume ou
interpretação, também fracassa; somente quando as notas e o estilo estão
corretos é que a execução é bem-sucedida.
Satanás tanto procura prender-nos na armadilha, levando-nos a fazer
aquilo que é formalmente errado, como procura distorcer aquilo que é
formalmente correto, em nossos atos e em nossos hábitos, até ao ponto de
torná-los errados em seus efeitos. Alguns exemplos dessa forma de distorção
são os seguintes: pensamento sem ação, amor sem sabedoria, amor à
verdade sem amor ao próximo, ou vice-versa, zelo em meio ao erro,
ortodoxia junto com injustiça, atitude conscienciosa junto com morbidade e
desespero, seletividade nos interesses pessoais em lugar daquilo que é certo
ou errado. Se formos vigilantes contra Satanás em um ponto da muralha de
nosso viver, ele tentará rompê-la em outro ponto, esperando por um
momento quando nos sentiremos seguros e felizes, e quando,
provavelmente, nossas defesas estarão fracas. Assim prosseguem os seus
ataques, o dia inteiro e todos os dias.
AS NOSSAS ARMAS
Que segurança temos contra os seus ataques? Como podemos evitar cair
vitimados diante deles? Conforme Paulo efetivamente diz, a única esperança
consiste em tomarmos "toda a armadura de Deus": o cinto da verdade (o
evangelho bíblico); a couraça da justiça (a integridade de uma
consciência honesta); a firmeza da postura, provida pelo evangelho da paz (a
certeza de que estamos reconciliados com Deus); o escudo da fé (a confiança
ativa em Cristo e em suas promessas); o capacete da salvação (a confiança no
poder guardador ou conservador de Cristo, agora e para sempre); e também
"a espada do Espírito, que é a palavra de Deus'', a arma com a qual nosso
Senhor derrotou Satanás no deserto. Tomemos essas armas, diz Paulo, "com
toda oração e súplica, orando em todo o tempo, no Espírito", e não
precisaremos temer os ataques do diabo. Seremos capazes de reconhecê-los e
de resistir-lhes (Ef 6.11-18).
Não precisamos temer o resultado deste conflito. Pois, em primeiro lugar,
Deus está sempre invalidando as tentações de Satanás. Deus nunca permitirá
que sejamos tentados acima das nossas forças (1 Co 10.13). De fato, Deus
nos expõe à tentação somente a fim de nos fortalecer (1 Pe 5.6-10). E, Ele
tem prometido esmagar a Satanás, sob os pés dos seus servos, no devido
tempo (Rm 16.20).
Então, em segundo lugar, Satanás sempre foge quando lhe resistimos.
"Resisti ao diabo, e ele fugirá de vós" (Tg 4.7). Oremos e lutemos; peçamos
ao Senhor que se poste ao nosso lado e digamos a Satanás que se afaste. E,
pelo menos naquele momento, ele terá de afastar-se. É notável que, na
armadura cristã, Paulo nada tenha incluído para nos proteger as costas! Não
temos promessa de proteção, se fugirmos. A vitória nos é garantida sempre
que ficarmos firmes. Satanás é um adversário derrotado e condenado;
portanto, "resisti-lhe firmes na fé...
Ora, o Deus de toda a graça,
que em Cristo vos chamou à sua eterna glória,
depois de terdes sofrido por um pouco,
Ele mesmo vos há de aperfeiçoar, firmar,
fortificar e fundamentar.
A Ele seja o domínio,
pelos séculos dos séculos. Amém"

(1 Pe 5.9-11).
No Novo Testamento, "graça" é uma palavra de importância central - de
fato, é a palavra-chave do cristianismo. Graça é aquilo sobre o que o Novo
Testamento versa. O Deus exposto ali é "o Deus de toda a graça" (1 Pe 5.10);
ali, o Espírito Santo é "o Espírito da graça" (Hb 10.29); e, todas as esperanças
ali expostas apoiam-se sobre a "graça do Senhor Jesus" (At 15.11), aquele
Senhor que sustentou Paulo com esta certeza: "A minha graça te basta" (2 Co
12.9). No dizer de João, "a graça e a verdade vieram por meio de Jesus
Cristo" (Jo 1.17); e, as novas acerca de Jesus são chamadas de "o evangelho
da graça de Deus" (At 20.24). A crença dos apóstolos na realidade e
centralidade da graça era tão forte que os levou a criar um novo estilo de
carta. Ao invés do convencional "Salve!", a saudação inicial de todas as treze
cartas de Paulo toma a forma de uma oração por "graça e paz" ou por "graça,
misericórdia e paz", da parte de Deus Pai e do Senhor Jesus Cristo,
invocadas sobre os seus leitores. E, ao invés do usual "adeus", cada carta
termina com outra oração, rogando "a graça do Senhor Jesus Cristo", ou
simplesmente "graça", sobre cada crente. Tanto as cartas de Pedro como a de
Judas e o Apocalipse têm saudações similares (cf. 2 Jo 3); e, Hebreus e
Apocalipse têm formas semelhantes de encerramento, enquanto que a
segunda carta de Pedro termina com um apelo: "Crescei na graça e no
conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo" (2 Pe 3.18). Tudo
quanto é dito nessas cartas, entre a saudação e a bênção final, ilustra a
verdade que, para os apóstolos, a graça era o fato fundamental da vida cristã.
Com frequência se diz, com toda a razão, que a salvação é o tema do Novo
Testamento. Porém, a salvação neotestamentária é pela graça de Deus, do
começo ao fim (Ef 2.5, 8); é a graça de Deus que nos dá a salvação (Tt 2.11), e
a finalidade da salvação é louvor da glória da graça de Deus (Ef 1.6). Ao que
parece, quando corretamente compreendida, essa palavra "graça" contém em
si mesma toda a teologia do Novo Testamento. A mensagem do Novo
Testamento é simplesmente o anúncio de que a graça veio aos homens
através de, e em, Cristo, juntamente com o apelo da parte de Deus para que
eles recebam-na (Rm 5.17; 2 Co 6.1), conheçam-na (Cl 1.6) e não a frustrem
(Gl 2.21), mas perseverem nela (At 13.43), porquanto "a palavra de sua graça
tem poder para vos edificar e dar herança entre todos os que são
santificados" (At 20.32). A graça é o sumário e a substância da fé do Novo
Testamento.
A ideia da graça, pois, é a chave que abre o Novo Testamento; é a única
chave capaz de abri-lo. Sem importar quão bem conheçamos o fraseado do
Novo Testamento, não poderemos penetrar em seu significado enquanto
não conhecermos algo acerca do que é a graça. Esta é a razão por que tantas
pessoas acham que o Novo Testamento é desconcertante e frustrante
(especialmente as cartas de Paulo, o grande campeão da graça); e também é o
motivo por que tão facilmente o entendem mal. Pessoas, até mesmo
religiosas, ignorantes acerca da graça, que tentam ler o Novo Testamento
como um livro de máximas morais, ou de aspirações místicas, não podem
entendê-lo. Cada livro do Novo Testamento faz parte de uma grande análise
sistemática, histórica e teológica acerca do fato da graça, e deve ser lido
como tal. Não podemos entendê-lo senão nesses termos.
Infelizmente, porém, o significado da graça não é corretamente apreciado
hoje. Nos últimos cem anos ou mais, esse tópico tem sido tão negligenciado
por alguns, e mal manuseado por outros, que a clara e profunda
compreensão do mesmo, legada pelos reformadores, pelos Puritanos e pelos
evangélicos do século XVIII à sua posteridade, quase desapareceu da cena
religiosa. A palavra "graça" faz parte integral de nosso vocabulário religioso,
e regularmente a ouvimos em orações públicas, como "concede-nos a ajuda
da tua graça...", ou "dá-nos graça, para que possamos..." Para muitos, porém,
esse termo sugere apenas noções vagas, como uma celestial recarga de
bateria, administrada por meio das ordenanças; e, para a maioria, ele já não
significa coisa alguma. Enquanto isso, muitos praticam, em nome do
cristianismo, formas de religião que frustram e negam totalmente a graça de
Deus. Tanto o legalismo da doutrina Católica Romana, que faz a salvação
depender da lealdade a um sistema eclesiástico, como o moralismo da
doutrina protestante liberal, que diz que todos quantos tentarem ser bons,
mesmo que pouco, serão salvos, resultam da mesma causa-raiz – afalha em
compreender o significado da graça. A necessidade mais urgente da
cristandade é a de uma renovada conscientização do que a graça de Deus
realmente é. Os crentes anelam ver uma reforma e um avivamento nas
igrejas. Hoje, tal como ontem, é somente através da redescoberta da graça
que essas bênçãos fluirão.
A NATUREZA DA GRAÇA
A graça é o favor imerecido de Deus; é o seu amor, que não merecemos. A
palavra charis, traduzida como "graça", no Novo Testamento, foi usada no
Antigo Testamento grego para traduzir o termo hebraico chen (também
traduzido por "graça" na Versão Revista e Corrigida) que significa o "favor"
que um suplicante "acha" aos olhos de um superior, de quem não pode
reivindicar tratamento favorável, como se lhe fosse um direito. (Como
exemplos disso, a nível humano, ver Gn 33.8, 15; 34.11; 47.25; Rt 2.2, 10,
13.) Escreveu o Dr. Norman Snaith: "Chen significa bondade e graciosidade
em geral - ou seja, não há qualquer relação ou ligação particular entre as
partes envolvidas" (A Theological Word Book of the Bible - Um Livro Teológico
de Palavras Bíblicas - A. Richardson, p. 100). Segundo observa algures o Dr.
Snaith, devido ao fato que não há qualquer vínculo antecedente entre as
partes envolvidas, também "não há o mais leve sussurro de censura possível
se esse favor não for concedido" (Distinctive ldeas of the Old Testament -
Ideias Distintivas do Antigo Testamento - p. 130). Portanto, a graça - chen -
é gratuita, no sentido que a pessoa que a demonstra não está, de modo
algum, obrigada a demonstrá-la. Quando o Antigo Testamento faz alusão a
pessoas ou nações, que acharam graça aos olhos de Deus, ou que Deus foi
gracioso para com elas, a ênfase está sempre no fato que Deus abençoou sem
que estivesse obrigado a fazê-lo (ver, por exemplo, Gn 6.8; Êx 33.12, 13, 16,
17; Am 5.15; Jn 4.2; etc.). Acerca da escolha do termo grego charis por Paulo,
como seu vocábulo regular para aludir ao amor de Deus, o Dr. Snaith
comenta mui corretamente: "Coisa alguma impressionou tanto a Paulo como
o fato que o amor de Deus aos homens foi um dom gratuito da parte de
Deus, inteiramente imerecido por parte dos homens, dependendo
unicamente da vontade do próprio Deus" (op. cit., p. 176).
Isso, porém, não é todo o pano de fundo da palavra charis no Novo
Testamento. Ela inclui o significado de duas outras palavras-chaves do
Antigo Testamento. A primeira delas é a 'ahabah de Deus, que vem do verbo
'aheb, cujo significado é "amor" - amor eletivo, conforme o Dr. Snaith o
chama. Esse é o amor mediante o qual o Senhor escolheu Israel para ser o
seu povo - um amor espontâneo, seletivo, incondicional, não-solicitado e
imerecido (cf. Dt 7.7, 8; 9.4, 5; Os 11.1-11). A fim de traduzir esse tipo de
amor, o Antigo Testamento grego empregou o substantivo agapé, que se
tornou o termo comum do Novo Testamento para indicar o amor de Deus.
Porém, no Novo Testamento, "amor" e "graça" são virtuais sinônimos, e
charis inclui tudo quanto 'ahabah significa.
O outro termo hebraico envolvido é a chesed de Deus. Esse termo é
usualmente traduzido por "misericórdia" e "compaixão" na Septuaginta
(eleos e eleemosuné), e como "bondade amável", em algumas versões. Porém,
melhor ainda é a tradução "amor constante", porque a ideia básica por trás
dessa palavra é a resoluta lealdade de Deus ao povo com quem Ele se
comprometeu. Snaith intitulou-o de "amor pactuante" de Deus, por tratar-
se, essencialmente, de uma questão de fidelidade à promessa do pacto pelo
qual Deus comprometeu-se a ser o Deus de Israel e a usar todos os recursos
da deidade a fim de abençoá-los. Os profetas do Antigo Testamento frisaram
constantemente o fato que a chesed de Deus permanecia firme, mesmo
quando Israel colocava-se debaixo de julgamento temporário, em razão de
infidelidade à sua própria obrigação pactual de servir ao Senhor. Eles
insistiram que, após visitações punitivas e purificadoras, o propósito de
Deus em livrar o seu povo do mal e em trazê-lo à perfeita comunhão consigo
mesmo finalmente triunfará. A chesed de Deus é tão soberana e eficaz
quanto é incondicional e gratuita a sua 'ahabah.
A palavra "graça" expressa a ideia de que Deus age por bondade
espontânea para salvar os pecadores: Deus amando o não-amável, fazendo
uma aliança com eles, perdoando-lhes os pecados, aceitando-os, revelando-
se a eles, comovendo-os a uma resposta, levando-os finalmente ao pleno
conhecimento e gozo de Si mesmo e derrubando todos os obstáculos que
surgem a cada estágio ao cumprimento desse propósito. Agraça é o amor
eletivo mais o amor pactuante, uma escolha gratuita, resultando numa obra
soberana. A graça salva do pecado e de todo o mal; a graça traz homens
ímpios à verdadeira felicidade, que consiste em conhecer ao Criador. Esse é o
conceito de "graça", com o qual escreveram os autores do Novo Testamento.
Para nós, a palavra "graça" é um tanto descolorida e, com frequência,
como já vimos, é irreligiosamente concebida como uma força impessoal, de
algum modo canalizada através das ministrações da igreja. É claro, porém,
que isso deforma o ensino bíblico. Em porção alguma a Bíblia retrata assim a
graça. Quando o Novo Testamento usa a palavra "graça" a fim de indicar
algum dom divino específico (uma posição de aceitação, Rm 5.1, 2; uma
habilidade para servir, Rm 12.6; Ef 4.7; uma virtude cristã, como a
generosidade, 2 Co 8.1, 4, 6, 7; um privilégio cristão, como pregar e ensinar
o evangelho, Ef 3.2, 7, 8; um aspecto qualquer da salvação, como a
glorificação final, 1 Pe 1.13; cf. 3.7), ou, de modo geral, para demonstrar o
favor divino na transformação de vidas humanas (1 Co 15.10; 2 Co 4.15; 9.8,
14; 12.9; Tg. 4.6; 1 Pe 5.5), a ideia é sempre a da graça como um dom pessoal
de Deus, dado como prova de sua afeição para com a pessoa recebedora. O
uso da palavra "graça", para indicar os dons do amor de Deus, é, em qualquer
caso, secundário e derivado; pois o uso primário e fundamental da palavra é
referente ao amor que os concede.
No Novo Testamento, pois, "graça" não é uma energia impessoal ligada
automaticamente pela oração e pelas ordenanças. Antes, é o coração e a mão
do Deus vivo e todo-poderoso. A graça, por certo, é encontrada na igreja,
pois é a graça que cria a igreja; mas, a graça, em nenhum sentido, está sujeita
ao controle da igreja. O amor de Deus é gratuito, e é o próprio Deus quem
escolhe a quem Ele há de salvar. Os sermões e as ordenanças proclamam a
realidade da graça, e as orações dos crentes a invocam; mas só Deus pode
usar da graça e levar os homens a se beneficiarem dela.
Para os escritores do Novo Testamento, a graça é algo maravilhoso. O
senso que eles tinham da corrupção e do demérito humano diante de Deus,
bem como da realidade e da justiça de sua ira contra o pecado, era tão forte
que eles simplesmente achavam assombroso o fato que houvesse tal coisa
como a graça - muito menos uma graça que custou tanto para Deus como a
graça manifestada no Calvário. Os compositores de hinos sacros captaram
esse senso de admiração e o mostraram pelo uso de palavras como
"admirado" e "admirável", como nestes versos: "Amor admirável! como pode
ser que Tu, meu Deus, pudeste morrer por mim!"; "Amor tão admirável, tão
divino, requer minha alma, minha vida, meu tudo!"; "Eu permaneço
admirado diante do amor que Jesus me oferece"; "Graça admirável!" O mundo
está repleto de maravilhas - maravilhas da natureza, da ciência e da arte
humana - mas elas perdem o seu significado diante da maravilha da graça de
Deus. Coisa alguma que possamos dizer lhe faz plena justiça; todas as
palavras ficam aquém dela. Na realidade, conforme Paulo diz, a graça é um
"dom inefável" (2 Co 9.15).
AS RIQUEZAS DA GRAÇA
O Novo Testamento sempre vincula a graça à pessoa e à obra do
Mediador, o Deus-homem, Jesus Cristo. "A graça e a verdade vieram por
meio de Jesus Cristo" (Jo 1.17; cf. 1 Pe 1.10). "Tu, pois, filho meu, fortifica-te
na graça que está em Cristo Jesus" (2 Tm 2.1). "...mas onde abundou o pecado,
superabundou a graça; a fim de que, como o pecado reinou pela morte, assim
também reinasse a graça pela justiça [a obediência de Jesus até a morte]
para a vida eterna, mediante Jesus Cristo nosso Senhor" (Rm 5.20, 21). É em
união com a pessoa de Jesus crucificado e ressurreto, e pela virtude da sua
expiação, que os homens conhecem a graça. E o meio através do qual os
homens adentram a ela é a fé em Cristo - a crença na "palavra da cruz" (1 Co
1.18) e a confiança no Salvador ressurreto (Isso não significa que não
houvesse a graça nos dias do Velho Testamento; mas significa que a graça
que ali houve - o relacionamento de pacto, baseado na aliança, o perdão dos
pecados, o gozo da comunhão com o Senhor e a esperança da recompensa -
dizia respeito ao Mediador que viria, bem como à obra que Ele realizaria.
Além disso, aquela fé que se apropriava da graça, nas épocas anteriores a
Cristo, era uma fé que olhava para o futuro, ainda que obscuramente, para o
Salvador prometido. Ver Mc 14.24; Rm 3.24, 25; 1 Co 10.1-4; Gl 3.6-15ss.;
Hb 9.15; 11.24ss.; 1 Pe 1.10).
No Novo Testamento, Paulo é o supremo expositor da graça, e suas
notáveis exposições aparecem em Romanos 3-11, Gálatas 2-5, Colossenses
1-3 e Efésios 1-3. Nesta última passagem, ao referir-se ao "grande amor com
que [Deus] nos amou" (Ef 2.4), por diversas vezes Paulo emprega a metáfora
da riqueza, falando de Deus como ''rico em misericórdia" (Ef 2.4; cf. Rm
10.12), falando da "riqueza da sua graça" (Ef 1.7; 2.7), da "riqueza da sua
glória" (Ef 3.16; cf. Ef 1.18; Rm 9.23) e das "insondáveis riquezas de Cristo"
(Ef 3.8).
O que é esta "riqueza" de benefícios que vem aos homens mediante a
graça de Deus em Cristo? Há quatro pontos na análise de Paulo sobre esta
riqueza: redenção, regeneração, eleição e preservação.
Aredenção é por meio de Cristo, mediante sua morte. Em Cristo, diz
Paulo, "temos a redenção, pelo seu sangue, a remissão dos pecados, segundo
a riqueza da sua graça" (Ef 1.7). Redenção significa um caríssimo livramento
do perigo. Neste ponto, Paulo aponta com precisão que o perigo sendo a
nossa culpa é aquilo do que fomos redimidos. Na mesma conexão, em outra
passagem, ele diz que somos justificados pela graça, "mediante a redenção
que há em Cristo Jesus" (Rm 3.24; cf. Tt 3.7). Paulo mostra a cruz de Cristo,
tanto como prova da realidade da graça divina, como a sua medida final:
"Mas Deus prova o seu próprio amor para conosco, pelo fato de ter Cristo
morrido por nós, sendo nós ainda pecadores" (Rm 5.8; cf. 1 Jo 4.8-10).
A regeneração nos é dada em Cristo, mediante a nossa união com Ele, em
sua ressurreição. Paulo explica a regeneração como uma vivificação
juntamente com Cristo (Ef 2.1, 5, 6; Rm 6.4ss.; Cl 2.13; 3.1ss.) e salienta que
ela resulta exclusivamente da misericórdia e da graça de Deus (Ef 2.4; Tt
3.5). A regeneração é o complemento necessário da redenção, porque, sem
ela, não pode haver fé no Redentor, e, portanto, não pode haver qualquer
benefício advindo de sua morte. Parte do significado da "morte" espiritual,
que é o nosso estado natural (Ef 2.1, 5; Cl 2.13), é que somos impotentes
para nos voltarmos para Cristo, em arrependimento e fé. Entretanto, parte
do efeito da regeneração é que a fé nasce em nossos corações. Por isso, Paulo
escreveu: "Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de
vós, é dom de Deus" (Ef 2.8). Se a palavra "isto" refere-se somente à fé ou à
salvação por meio da fé, como um todo, não é muito certo; porém, em
qualquer ponto de vista, Paulo está dizendo que a fé emana da ressurreição
espiritual juntamente com Cristo (ver o contexto de Efésios 2) e que essa
corressurreição, para a qual nada contribuímos, deriva-se da iniciativa de
Deus - é um fruto da graça. Assim sendo, como diz Lucas, os homens creem
"mediante a graça" (At 18.27), enquanto Deus os chama por sua graça (Gl
1.15).
A eleição, no Novo Testamento, é a escolha divina eterna e incondicional,
de ofensores culpados, a fim de serem redimidos e regenerados (chamados e
justificados, Rm 8.30), e, portanto, conduzidos à glória (Ef 1.3-12). Trata-se
de uma escolha feita em Cristo (Ef 1.4), no sentido que Deus escolheu
pecadores, para serem salvos pela união com o seu Filho, e escolheu o Filho
para tornar-se homem e ser o Salvador deles (cf. 1 Pe 1.20). Paulo refere-se a
essa escolha como ''a eleição da graça'' (Rm 11.5), e também como a "sua
própria determinação e graça que nos foi dada em Cristo Jesus antes dos
tempos eternos" (2 Tm 1.9). Da eleição dos pecadores fluem a redenção, a
regeneração, a fé e a glória final deles (2 Ts 2.13, 14). Da nomeação do Filho
como Salvador, fluem a sua encarnação (Jo 6.38), a sua cruz e a sua
ressurreição (Jo 10.15-18), assim como a chamada, a atração e a preservação
daqueles a quem Jesus foi enviado para salvar, até a ressurreição final (Jo
6.39, 40; 10.27ss.; 12.32 e 17.2). Paulo enfatiza que a eleição, a qual é a
fonte da salvação, é inteiramente pela graça, não por obras, isto é, não se
trata da resposta de Deus a qualquer esforço ou mérito da parte do homem,
que porventura Deus tivesse previsto (Rm 11.6; 2 Tm 1.9).
A preservação consiste nos cuidados de Deus, em Cristo, guardando
aqueles a quem Ele uniu a Cristo mediante a fé, por meio do Espírito Santo.
Paulo compartilha com os crentes da confiança de que "aquele que começou
boa obra em vós há de completá-la até ao dia de Cristo Jesus" (Fp 1.6),
fundamentando essa certeza na fidelidade de Deus ao seu plano, à sua
promessa e ao seu povo (2 Ts 3.3; cf. 1 Co 1.8, 9). Em Romanos 8.30, Paulo
explica esse plano: "E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos
que chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses também
glorificou". O tempo passado do verbo "glorificar" demonstra que a
glorificação, por já estar planejada, é vista como já realizada; assim, esta
declaração é, na verdade, uma promessa de que ela acontecerá, no devido
tempo. Por esse motivo, Paulo podia dizer que estava certo que Deus "é
poderoso para guardar o meu depósito até aquele dia" (2 Tm 1.12), e de
modo exultante declarou: "O Senhor me livrará também de toda obra
maligna, e me levará salvo para o seu reino celestial" (cf. Ef 4.18). A própria
promessa de Jesus reforça essa confiança: ''As minhas ovelhas ouvem a
minha voz; eu as conheço, e elas me seguem. Eu lhes dou a vida eterna;
jamais perecerão, eternamente, e ninguém as arrebatará da minha mão" (Jo
10.27, 28; conferir com a declaração acerca do propósito divino, Jo 6.38-40,
e com a oração de nosso Salvador, Jo 17.11-24).
A segurança que esta linha de ensino traz aos regenerados, que querem
viver como fiéis discípulos de Cristo, seja qual for o custo, mas que são
atormentados pelo temor de caírem da graça, por falharem na fé, foi
enfocada de maneira clássica por Toplady, em um de seus hinos.

A obra que a sua bondade iniciou


O braço do seu poder completará;
A sua promessa é o Sim e o Amém,
E nunca deixou de ser cumprida.
Coisas vindouras, nem as que agora são,
Nada, na terra ou nos céus,
Pode fazê-lo abandonar o seu propósito,
Ou privar minha alma de seu amor.

Meu nome a eternidade não apagará


Das palmas de suas mãos;
Permanecerá impresso em seu coração
Com marcas de indelével graça.
Tão certo como é dada esta garantia,
Sim, perseverarei até o fim.
Os espíritos glorificados, nos céus,
encontram-se mais felizes
Porém, não mais seguros que eu.

Nenhuma segurança dessa natureza é conferida àqueles cujas vidas


demonstram não serem regeneradas, digam o que disserem em contrário.
Mas, aos verdadeiros discípulos de Jesus, a segurança é dada como um
direito de nascimento e como uma fonte de supremo regozijo.
Essa, em resumo, é a riqueza da graça, da qual o povo de Deus é herdeiro:
amor eletivo e amor pactuante, amor remidor, amor vivificador, amor que
salva e amor que preserva. Nas vidas de todos os que foram escolhidos por
Deus, a graça cumpre a promessa da nova aliança: "Porque esta é a aliança
que firmarei com a casa de Israel, depois daqueles dias, diz o Senhor. Nas
suas mentes imprimirei as minhas leis, também sobre os seus corações as
inscreverei; e eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo. E não ensinará
jamais cada um ao seu próximo, nem cada um ao seu irmão, dizendo:
Conhece ao Senhor; porque todos me conhecerão, desde o menor deles até
ao maior. Pois, para com as suas iniquidades usarei de misericórdia, e dos
seus pecados jamais me lembrarei" (Hb 8.10ss., citando Jr 31.33, 34). E esse
propósito é invencível, porque onde a graça existe, aí ela reina (Rm 5.21): ela
é o fator dominante da situação, e coisa alguma pode frustrar o seu eventual
triunfo na vida de cada um dos eleitos de Deus. Não é de admirar que o
Artigo 17 da Igreja Anglicana declare: "A piedosa consideração sobre... a
nossa eleição em Cristo é repleta de um afável, agradável e indizível
consolo... para aqueles que sentem em si mesmos aoperação do Espírito de
Cristo, mortificando as obras da carne e elevando as suas mentes às coisas
altas e celestiais, também devido ao fato que isso estabelece e confirma
poderosamente a nossa fé na eterna salvação aser desfrutada por meio de
Cristo, assim como acende o seu amor para com Deus". Não nos
surpreendemos que Paulo, ao pesquisar a graça de Deus como um "íntimo",
como alguém que sabia estar envolvido com a graça, tanto como seu arauto
como seu objeto, sentiu-se constrangido a exclamar: "Graças a Deus pelo seu
dom inefável" (2 Co 9.15).
A GRAÇA E A LEI
Escreveu o apóstolo João: "Porque a lei foi dada por intermédio de
Moisés; a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo" (Jo 1.17). Na
economia de Deus, a lei foi exposta em primeiro lugar e a graça
posteriormente. O Antigo Testamento é dominado pela grande realidade da
lei de Deus, tal como o Novo Testamento é dominado pela graça de Deus.
Porém, como relacionar a graça com a lei, visto que a lei veio antes da graça?
O Novo Testamento revela dois pontos de vista que erram quanto a isso, a
saber: o legalismo e o antinomianismo.
O legalismo (abordado em Rm 4 e 9-11; Gl 2-5 e Cl 2) frustra a graça
divina, por buscar a retidão mediante a religiosidade e as obras da lei,
encarando-as como parte do fundamento de nossa aceitação diante de Deus,
juntamente com os méritos de Cristo. Paulo, todavia, insistia contra isso,
dizendo que a fé em Cristo para a salvação é uma confiança exclusiva, de tal
modo que uma professa confiança em Cristo que não exclua totalmente a
autoconfiança não é a fé real, aos olhos de Deus. Por esta causa veio a
advertência paulina aos gálatas judaizantes, os quais achavam que
precisavam suplementar a sua fé em Cristo como o ato de serem
circuncidados: "De Cristo vos desligastes, vós que procurais justificar-vos na
lei, da graça decaístes" (Gl 5.4). A observância da lei não desempenha
qualquer papel na justificação. Esta se realiza exclusivamente pela fé, pois
acha-se somente em Cristo e através dEle, e é somente pela graça. Confiar
nas próprias obras, juntamente com aobra de Cristo, desonra-O, frustra a
graça e priva a pessoa da vida eterna (cf. Gl 2.21 e 5.2).
No outro extremo, o antinomianismo (abordado em Rm 6; 2 Pe 2; Jd e 1
Jo) erra por transformar "em libertinagem a graça de nosso Deus" (Jd 4).
Enquanto o legalista exalta de tal modo a lei que chega a excluir a graça, o
antinomiano é fascinado pela graça ao ponto de perder de vista a lei, como
uma regra de vida. Ele argumenta que, visto que os crentes estão "libertados
da lei" (Rm 7.6) e não "debaixo da lei, e, sim, da graça" (Rm 6.15), com o
perdão eterno já em sua possessão, não mais importa que tipo de vida eles
levem. Embora o legalismo e o antinomianismo, segundo certo ponto de
vista, sejam polos opostos de erro, há, na teologia, e frequentemente na
experiência, um elo de ligação entre eles: ambos procedem da mesma falsa
suposição que o único propósito da observância da lei é obter justiça diante
de Deus. Assimsendo, o legalista ocupa-se em estabelecer sua própria justiça,
ao passo que o antinomiano, regozijando-se no dom gratuito da justificação
pelafé, não vê razão alguma para guardar a lei. Muitos dos antinomianos, na
história, têm saído do legalismo por reação ao mesmo.
Ambos os erros, porém, são respondidos assim que percebemos que a lei
moral expressa a vontade de Deus para o homem em sua condição de
homem. Jamais teve a finalidade de servir como um método de salvação (e,
de qualquer forma, é inútil para esse propósito). A lei foi dada para guiar os
homens na vida de piedade. E a graça, ao mesmo tempo que condena a
justiça própria, estabelece a lei como uma regra de conduta. Escreveu Paulo:
"Porquanto a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens,
educando-nos para que, renegadas a impiedade e as paixões mundanas,
vivamos no presente século, sensata, justa e piedosamente" (Tt 2. 11, 12).
Portanto, em vez de nos dar liberdade para transgredirmos a lei, a graça nos
liberta do domínio do pecado, a fim de podermos observar a lei (Rm 6.11-
23). Essa é a resposta final ao antinomianismo: a graça estabelece a lei.
Uma variante do recuo antinomiano em relação à lei é a reivindicação de
que os crentes não têm qualquer necessidade ou dever de regularem suas
vidas pela lei, visto que seus recursos em Cristo são suficientes para guiá-los.
Assim, Lutero asseverou que a fé cristã naturalmente produz boas obras (ou
seja, amor e serviço), por meio do impulso espontâneo. J. A. T. Robinson
afirmou que o amor cristão traz embutida uma bússola moral, de tal modo
que não precisa firmar-se sobre regras bíblicas, nem precisa necessariamente
ser guiado por elas. Muitos têm falado sobre isto como se o impulso do
Espírito, na consciência do crente, suplantasse inteiramente as instruções da
lei.
Aqueles que tomam essa posição, frisam corretamente a espontaneidade
interior da vida cristã genuína, bem como a criatividade ética do amor.
Porém, eles separam o que Deus uniu, a saber, a obra do Espírito Santo em
ensinar e a Palavra pela qual Ele o faz. O Espírito continua a gravar a lei de
Deus em nossos corações durante toda a nossa vida, instruindo-nos pelas
Escrituras nos padrões de Deus e fazendo-nos julgar quão distante temos
ficado da perfeição moral e espiritual que esses padrões incorporam. Em
suas cartas, Paulo não só nos ensina acerca de Cristo e do Espírito Santo,
mas, normalmente na segunda metade delas ele exercita os crentes nos
princípios éticos - isto é, na lei, conforme ela se aplica aos crentes (cf. Rm
12-15; Gl 5-6; Ef 4.17-6.9; Cl 3.1-4.6). Seria arriscado tentar ser mais sábio
do que Paulo, em nossa maneira de ensinar a vida cristã. Se nos lembrarmos
que, como crentes, servimos a Deus não para adquirirmos a vida, mas por já
termos a vida, como seus filhos e filhas já justificados e adotados, então não
cairemos no legalismo que esses mestres temem; antes, veremos a lei de
Deus como o código de normas da família e nos regozijaremos em procurar
vivê-la desta forma, agradando ao nosso Pai celeste, que nos amou e nos
salvou.
Paulo escreveu: "Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não
vem de vós, é dom de Deus. Não de obras, para que ninguém se glorie. Pois
somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus
de antemão preparou para que andássemos nelas" (Ef 2.8-10). A doutrina
paulina da graça gratuita e soberana tanto humilha a soberba dos legalistas,
que são justos aos seus próprios olhos, como condena a lassidão preguiçosa e
irresponsável dos antinomianos. Entendido corretamente, esse ensino gera
uma jubilosa segurança e uma incansável energia no serviço de nosso
Salvador. Foi dito com muita propriedade que, no Novo Testamento, a
doutrina é a graça, a ética é a gratidão (Rm 12.1); e nosso Senhor ensinou
que a pessoa que mais ama é aquela que é mais consciente do amor por ela
demonstrado (Lc 7.40ss.). O mundo veria muito mais piedade prática do que
está vendo, se os crentes de nossos dias conhecessem mais acerca da graça
de Deus.
DEBAIXO DA GRAÇA
O supremo privilégio do crente é viver não "debaixo da lei, e, sim, da
graça" (Rm 6.14, 15), no sentido de ter todo o seu relacionamento com Deus
determinado pelo amor que o escolheu, redimiu, converteu e que o protege.
Bem poderíamos encerrar nosso estudo observando algumas ideias que nos
mostram quão grande é esse privilégio.
Avida sob a graça é uma vida de liberdade, em três maneiras básicas:
1. Conforme vimos, o crente, que vive debaixo da graça, é livre da fútil
necessidade de tentar recomendar-se a Deus mediante a perfeita
observância da lei. Agora ele vive por haver sido perdoado, e, portanto, é
livre para falhar em cada aspecto da vida (como inevitavelmente o faz
repetidas vezes); e, tendo falhado, é livre para levantar-se no ponto em que
caiu, a fim de buscar e encontrar o perdão divino, e começar de novo. O
orgulho, nossa disposição natural, que é autoprotetor, autojustificante e
cheio de vanglória, haverá de recusar-se a admitir o fracasso ou a tentar de
novo, a fim de que o trauma do fracasso não se repita. Porém, a humildade
do homem que vive por ter sido perdoado desconhece tais inibições. A
experiência do cristão em fracassar diariamente, juntamente com o
conhecimento íntimo de seus próprios falsos motivos e do registro de
vergonhosas recordações, levam-no constantemente a reivindicar aquela
autodescrição de Paulo, proferida ao final de sua vida, a saber, "o principal"
dos pecadores (1 Tm 1.15). Todavia, diariamente as falhas do crente lhe são
perdoadas, e sua alegria é restaurada. Segundo Jesus ensinou, uma das
razões pela qual devemos estar dispostos a perdoar nossos irmãos na fé
vezes sem conta, é que a nossa própria vida com Deus também consiste em
sermos perdoados inúmeras vezes.
2. Além disso, o crente, que está debaixo da graça, é livre do domínio do
pecado (Rm 6.14). Devido a sua união com Cristo, que morreu e ressurgiu, e
devido ao poder do Espírito que nele habita, o crente é capaz de opor-se e de
resistir aos impulsos de pecar, que infectam o seu sistema moral e espiritual.
E, "se pelo Espírito mortificardes os feitos do corpo, certamente vivereis"
(Rm 8.13). Os feitos do corpo são os maus hábitos, de comissão ou de
omissão. Assim, o crente avança na semelhança com Cristo (cf. 2 Co 3.18) e
agrada ao Senhor. Paulo explica isto de modo sucinto em Romanos 6.1-8.14,
ordenando suas ideias como uma resposta à pergunta: "Por que aqueles que
foram justificados pela fé não devem fazer com que a graça abunde (isto é, a
graça perdoadora), por continuarem a pecar como antes?" Em suma, a
resposta dada por Paulo é: Não só a retidão (a observância da lei) é algo
possível e prescrito para o crente, mas também é fato que nenhum crente
pode continuar pecando como antes, porque a união com Cristo
transformou a sua natureza de tal modo que o seu coração (o homem
interior) agora deseja a retidão, tal como antes desejava o pecado; e somente
a obediência a Deus pode satisfazer o seu mais profundo anelo interior. O
crente odeia o pecado que encontra em si mesmo e não sente qualquer
prazer nos seus lapsos de pecado. Esse é o estado mental do homem que é
liberto do domínio do pecado. Ele ama a santidade porque ama ao seu Deus-
Salvador e não pensaria em voltar aos dias quando, como servo do pecado,
não amava nem a santidade nem a Deus. Ele sabe que a sua libertação o
enobreceu e trouxe-lhe tanto o desejo como a força para viver corretamente,
e, por esse motivo, sente-se eternamente grato.
3. Finalmente, o crente, que vive sob a graça, é livre da servidão ao medo
(Rm 8.15ss.; cf. 1 Jo 4.17, 18), a saber, do futuro desconhecido, de
encontrar-se com Deus (conforme todos teremos de fazer, algum dia), de ser
destruído por forças hostis, ou por qualquer tipo de amargas experiências.
Ele sabe que é filho adotivo de Deus, amado, seguro, com a sua herança
aguardando por ele, e com a sua alegria eterna garantida. Ele sabe que coisa
alguma poderá separá-lo do amor de Deus em Cristo, ou arrancá-lo da mão
do seu Salvador. Também sabe que coisa alguma lhe pode suceder que não
contribua para seu eterno bem, tornando-o mais parecido com Jesus,
levando-o mais perto de Deus. Assim, quando o medo invade-lhe a alma,
conforme sucede às vezes a toda pessoa normal, o crente o afasta, por
lembrar-se destas verdades e porrepassar em sua mente a sequência de
ideias que o franco e despretensioso hino de John Newton apresenta.

A graça eterna de Jesus,


Que veio me libertar,
A mim tão grande pecador,
Oh, graça singular.

Tal graça o medo me levou


Desde o dia em que eu cri,
E bem feliz me transformou,
Tal nunca mereci.

Perigos e horrores passarei


Na peregrinação,
Mas pela graça alcançarei
Celestial mansão.

E qual mundo no lar celestial


Por tempos sem cessar,
Louvor daremos eternal
A quem nos quis salvar.

Como poderia o medo resistir a esses fatos?


Nas modernas negociações industriais e internacionais, o mediador é uma
figura bem conhecida. O conjunto de acontecimentos que requer os seus
serviços é muito comum. As coisas ficam tensas; ambos os lados envolvidos
sentem que não há uma base comum para continuarem a discussão; então
uma das partes retira-se. Imediatamente é mister encontrar um mediador
para se colocar entre os distanciados para reconciliá-los outra vez. Assim, o
mediador, como seu nome sugere (e conforme significa literalmente a
palavra grega mesites), é o homem no meio. Ele tem ligações com ambas as
partes; simpatiza com ambas, e ambas confiam nele. O mediador serve à
causa da justiça, da paz e da boa vontade. Sua tarefa consiste em representar
cada lado ao outro e em achar uma base para a restauração da amizade entre
eles.
O Novo Testamento usa a palavra "mediador" uma vez acerca de Moisés
(Gl 3.19) e quatro vezes acerca do Senhor Jesus. Em 1 Timóteo 2.5, Paulo
diz: "Porquanto há um só Deus e um só Mediador entre Deus e os homens,
Cristo Jesus, homem". Em Hebreus 8.6, 9.15 e 12.24, vemos que Jesus é o
mediador de uma nova e superior aliança. Não é exagero descrever esses
trechos como a chave não apenas para o Novo Testamento, mas também
para a Bíblia inteira. Pois eles cristalizam em uma frase a súmula e a
substância da mensagem bíblica. É algo comum na teologia moderna afirmar
que a Bíblia é um livro que testifica de Cristo, apresentando um testemunho
profético antecipado, no Antigo Testamento, e um testemunho apostólico
em retrospecto, no Novo Testamento. Isso é correto; mas, a fim de
emprestarmos a essas ideias a precisão adequada e a fim de nos guardarmos
de mal-entendidos, precisamos dizer que a Bíblia é um livro que testifica de
Cristo, não somente como um mestre ou exemplo, e, sim, como mediador. A
mediação de Jesus, entre Deus e os homens, pela qual foi estabelecida a
nova e eterna aliança, é o principal tema da Bíblia.
A NECESSIDADE DE UM MEDIADOR
Deus e o homem estão alienados um do outro. Interrompeu-se a
comunicação e a amizade entre eles. Por causa do pecado, prevalece a
hostilidade mútua. ''O pendor da carne [a mente e o coração do homem em
seu estado natural] é inimizade contra Deus, pois não está sujeito à lei de
Deus, nem mesmo pode estar" (Rm 8.7). E Deus, por sua vez, luta contra o
homem, no sentido que "a ira de Deus se revela do céu contra toda
impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça'' (Rm
1.18; cf. 5.10). O mundo inteiro é culpado aos olhos de Deus, o Legislador e
Juiz (Rm 3.19). "Todos pecaram e carecem da glória de Deus" (Rm 3.23, quer
seja a glória de Deus aqui retratada como um padrão, como uma realização
ou como uma esperança; pois, para o nosso propósito, o problema é o
mesmo). Conforme disse Isaías: "Todos nós andávamos desgarrados como
ovelhas" (53.6), desgarrados da vereda que Deus, o Bom Pastor, desejava que
trilhássemos. Seguir por nosso próprio caminho e não pelo caminho de Deus
é tão natural para nós quanto respirar. Comumente não nos
conscientizamos de estarmos fazendo isso, até que alguém nos faz
conscientes do fato. Assim, os homens estão "sem Deus no mundo", "alheios
à vida de Deus por causa da ignorância em que vivem, pela dureza dos seus
corações" (Ef 2.12 e 4.18). Essa é a dificuldade fundamental de nossa
condição humana.
A literatura imaginativa do ocidente moderno (poemas, novelas,
romances) pode levar-nos a pensar que o nosso mais grave problema no
presente é que estamos alienados de nossos semelhantes e de nosso
verdadeiro "eu". Alguém já observou muito bem que as novelas mais sérias
de nossos dias preocupam-se com problemas de integridade (a maldição de
Adão), de perda de identidade (a maldição de Caim) e de falta de
comunicação entre os homens (a maldição de Babel). No fundo, porém, esses
são problemas que envolvem não as relações do homem consigo mesmo e
seu próximo, mas entre o homem e Deus. Pois a maldição, em cada caso,
resultou da ira divina. E a deturpada literatura de nossos dias, apesar de
todas as suas agudas avaliações e análises, neste ponto é superficial em vez
de profunda, pois cataloga os sintomas, mas não exibe discernimento
quanto à doença. A razão fundamental pela qual os homens se sentem
solitários e perdidos, presos a um redemoinho de niilismo e privados dos
sustentáculos da estabilidade convencional e cultural, é porque estão
alienados de Deus. Conforme Baxter cantou há três séculos, "não lhe falta
amigos que têm o amor de Deus'' - porém, o homem alienado de Deus perde
a amizade de seus semelhantes, e chega mesmo a odiar-se. Essa é a triste
situação retratada pela nossa literatura, embora inconsciente do significado
de seu próprio tema. O que a prosa e a poesia de nossa "desolada terra" do
século XX realmente nos diz é a mesma coisa que a Bíblia nos informa, a
saber, que precisamos de um mediador para conduzir-nos a Deus.
Nos dias do Antigo Testamento, Deus preparou Israel para a vinda de
Cristo. Como Ele fez isso? Mostrando a Israel a necessidade de um
mediador. Essa é a lição central da economia vétero-testamentária; foi a
lição que Deus ensinou, paradoxalmente, ao instituir em Israel duas classes
de mediadores. Deus enviou os profetas para representá-Lo diante de seu
povo e os sacerdotes para representarem o seu povo diante dEle. Os profetas
falavam a Israel em nome de Deus, assim mantendo a comunicação entre o
Senhor e os israelitas; e os sacerdotes ofereciam sacrifícios a Deus, em nome
de Israel, assim mantendo a comunhão entre os israelitas e o Senhor.
Todavia, as mensagens dos profetas eram fragmentárias, e, com
frequência, enigmáticas ("muitas vezes, e de muitas maneiras" - Hb 1.1), e os
sacrifícios oferecidos pelos sacerdotes nunca obtinham permanente paz de
consciência, nem ousadia de acesso à presença de Deus (“porque é
impossível que sangue de touros e de bodes remova pecados'' - Hb 10.4; ver
9.8, 9; 10.1-22). Sob a velha aliança, a revelação e o perdão eram reais, mas
limitados e incompletos, e nunca foi alcançada uma perfeita comunhão com
Deus. Por conseguinte, a própria natureza inadequada da mediação vétero-
testamentária foi designada para fazer os homens perceberem a necessidade
de um ministério mediador mais eficaz. Ter um carro velho para dirigir é
melhor que nada, e seu proprietário poderia sentir-se grato pelo mesmo.
Contudo, as frustrações advindas de dirigir um veículo assim fazem seu
dono anelar por um carro melhor. Por igual modo, a experiência de viver,
sob a velha aliança não podia senão despertar o anseio por algo melhor -
uma aliança superior, fundamentada em melhores promessas, oferecendo
melhor esperança e descansando na eficácia de melhores sacrifícios. A
epístola aos Hebreus dedica-se a mostrar como a mediação de Cristo supriu
tudo quanto antes estava faltando (ver 7.19, 22; 8.6; 9.23; 11.40), visto que
"com uma única oferta aperfeiçoou para sempre quantos estão sendo
santificados'' (10.14) - Cristo aperfeiçoou-os no tocante ao relacionamento
deles com Deus.
Também, conforme Paulo explica em Gálatas 3.19-25, a dispensação do
Antigo Testamento era ofuscada pela lei, que Deus adicionou por meio de
Moisés "por causa das transgressões" (v. 19) - ou seja, para fazer com que os
israelitas vissem o pecado como algo que impede a comunhão com Deus, e,
desta forma, para que sentissem a necessidade de um Salvador, que os
livrasse da culpa e do domínio do pecado (Se o sentido preciso das palavras
"por causa das transgressões" é "fazer da prática do mal uma ofensa legal",
ou é "fazer avultar a transgressão" - cf. Rm 5.20; 7.7ss. - isto não afeta o
objetivo da frase). A lei não podia dar vida (Rm 5.21), pois não conferia
qualquer capacidade para o homem conformar-se às suas exigências; mas ela
podia e fazia os homens compreenderem que eram impotentes escravos do
pecado (ver Rm 7. 7-13) e preparava-os para receberem a Cristo e para
crerem nEle. Por isso Paulo escreveu: "Mas, antes que viesse a fé, estávamos
sob a tutela da lei, e nela encerrados, para essa fé que de futuro haveria de
revelar-se. De maneira que a lei nos serviu de aio para nos conduzir a Cristo,
a fim de que fôssemos justificados por fé" (Gl 3.23, 24). A epístola aos
Gálatas mostra-nos, em detalhes, como a mediação de Cristo, através da
qual os dons gêmeos - a justificação e o Espírito Santo - nos são outorgados
(cf. 3.1-14), liberta-nos da servidão ao pecado e à lei, conduzindo-nos à
gloriosa liberdade dos filhos de Deus.
UM MEDIADOR É PROVIDO
O único Mediador entre Deus e os homens é o homem Jesus Cristo, o
Verbo que se fez carne, o Deus Filho encarnado. Todas as mediações
anteriores, em Israel, foram simbólicas e antecipatórias à mediação de
Cristo, e a eficácia das mesmas devia-se à sua atividade pré-encarnada. Por
conseguinte, era o Espírito de Cristo que falava por meio dos profetas (1 Pe
1.10, 11); e, no deserto, sob a liderança de Moisés, os israelitas realmente
compartilharam de Cristo (1 Co 10.1-4). Os pecados cometidos pelo povo de
Deus, antes da encarnação de Cristo, por assim dizer, foram lançados na
conta de Cristo, para serem expiados no devido tempo, no Calvário (Hb
9.15). Esta foi a maneira como Deus perdoou realmente aqueles pecados, de
tal modo que Abraão, Davi e muitos outros santos do Antigo Testamento
puderam experimentar, antes que Cristo viesse, a alegria da justificação e a
certeza do perdão (ver Rm 4.1-8, citando Gn 15.6 e Sl 32.1, 2). Disso
resultou o comentário de Paulo que a única razão por que Deus estabeleceu
Cristo como ''propiciação" no seu sangue (Rm 3.25) foi a de "manifestar a
sua justiça, por ter Deus, na sua tolerância, deixado impunes os pecados
anteriormente cometidos". O fato de Deus ter perdoado pecados sob a velha
aliança, embora nenhuma reparação adequada tivesse sido feita, parecia
uma injustiça da parte do divino Juiz.
Duas indagações podem ser formuladas sobre o homem Jesus Cristo, o
único Mediador:
Primeira, por que o Mediador veio ao mundo?
Cristo veio ao mundo, conforme Ele mesmo nos diz cerca de trinta vezes
no evangelho de João, porque foi enviado. Ele havia sido destinado para essa
missão desde a eternidade (1 Pe 1.20). "...o Pai enviou o seu Filho como
Salvador do mundo" (1 Jo 4.14). O Pai escolheu em Cristo, isto é, escolheu
para serem salvos pela obra de Cristo, mediante a união com sua pessoa,
muitos dentre a humanidade pecaminosa (Ef 1.4). Esses Lhe foram "dados",
a fim de que Ele fizesse tudo quanto era necessário para conduzi-los a Deus e
à glória celeste (Jo 6.37, 39; 17.2, 6, 9, 24; cf. Hb 2.13; Jo 10.14-16, 27-29;
11.52). Assim, em outro sentido, Cristo foi "dado" pelos eleitos. "Porque
Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que
todo o que nele crê... tenha a vida eterna" (Jo 3.16). "Fiel é a palavra... que
Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores" (l Tm 1.15).
O que Cristo, na qualidade de Mediador, veio fazer e que só Ele, na
qualidade de Deus-homem, era capaz de realizar?
l. Ele veio revelar Deus aos homens. Antes de podermos conhecer e amar a
Deus, é mister que nos seja mostrado como Ele é. No Antigo Testamento, as
palavras de Deus, paralelamente aos acontecimentos por Ele determinados,
indicavam algo de sua natureza e de seu caráter, mas nenhuma manifestação
dessa ordem poderia ser definitiva. Para trazer os homens ao ponto de
entenderem que a perspectiva e a verdade sobre as atitudes de Deus tinha
sido exposta, era necessária uma espécie diferente de revelação. Por isso,
Deus enviou seu Filho, o qual é a sua perfeita imagem (Hb 1.3; Cl 1.15; 2.9; 2
Co 4.4; Fp 2.6), o qual também está perfeitamente identificado com os
propósitos do amor do Pai. Ele veio para viver como um homem entre os
homens e, desta forma, tornar Deus perfeitamente conhecido. "Ninguém
jamais viu a Deus: o Deus unigênito... é quem o revelou" (literalmente, o
explicou – Jo 1.18). Jesus pôde dizer: "Quem me vê a mim, vê o Pai" (Jo
14.9), pois o Pai e o Filho estão "um no outro", numa completa união de
essência, poder, caráter e propósito (Jo 14.10; 10.38; 17.21; cf. 10.30 e
17.11).
2. Ele veio para remir os homens do pecado. A Bíblia desconhece aquela
especulação, popular em alguns lugares, que afirma que o Filho de Deus se
fez carne a fim de aperfeiçoar a criação. O testemunho uniforme das
Escrituras é antes que Ele tornou-se homem a fim de remir os homens.
Conforme Ele mesmo disse: "Pois o próprio Filho do homem... veio para...
dar a sua vida em resgate por muitos" (Mc 10.45). Isaías predisse que as
iniquidades de homens desviados seriam removidas mediante a morte de
um justo Servo de Deus, em substituição a eles. O pano de fundo aqui era o
sistema sacrifical dos hebreus, instituído por Deus, séculos antes, a fim de
ensinar o princípio que a expiação pelo pecado se faz mediante a morte de
um perfeito substituto em lugar do pecador. O justo Servo de Deus, disse
Isaías, tornar-se-ia "oferta pelo pecado" (v. 10ss.). Porém, onde poderia ser
achado um perfeito servo de Deus, totalmente justo e sem pecado? Ninguém
qualificou-se, exceto o encarnado Filho de Deus, o qual, por ser homem
podia ser tentado, mas, por ser Deus não podia pecar e, de fato, não pecou.
Cristo afirmou a sua própria impecabilidade (Jo 8.46); e os escritores do
Novo Testamento com frequência chamam a nossa atenção para esse fato,
quando proclamam a eficácia de sua obra expiatória (2 Co 5.21; 1 Pe 2.22;
3.18 e 1 Jo 2.1).
3. Ele veio para restaurar o homem a Deus. Deus Filho sempre esteve "no
seio do Pai" (Jo 1.18), desfrutando de toda a riqueza da comunhão, do amor
e da glória do Pai (Jo 10.15; 17.5, 23-26). Porém, os filhos de Adão estavam
perdidos, banidos da presença do Senhor, por causa do pecado. O Filho de
Deus veio ao mundo a fim de que os pecadores viessem a compartilhar da
sua experiência de comunhão, de amor e de glória com o Pai. Ele veio buscar-
nos onde nos achamos, a fim de levar-nos para estar consigo onde Ele está.
Ele veio a fim de receber-nos como irmãos e tornar-nos filhos adotivos de
seu Pai, para que vejamos e compartilhemos a glória do Filho e portemos a
sua imagem, a semelhança da família celeste (ver Jo 12.26; 14.3; 17.24;
20.17; Rm 8.14-17, 29; 1 Co 15.45-49; 2 Co 3.18; Fp 3.21; Cl 3.4; Hb 2.11,
12; 1 Jo 1.3 e 3.1, 2).
Quando Cristo, nomeado por Deus o segundo cabeça de nossa raça - o
último Adão (1 Co 15.45, 47) - acolhe aqueles que O recebem por meio da fé,
Ele imediatamente os coloca em uma relação com o Pai, pela qual a visão que
o Pai tem deles corresponde à visão que tem do Filho. Assim, por causa de
Cristo, e em Cristo, o Pai atribui justiça a eles (porque Cristo é justo) e
considera-os seus filhos por adoção (porque Cristo é o seu Filho por
natureza - Jo 1.12; Rm 4; 5.15-19). Após isso, Cristo opera neles por meio do
seu Espírito, a fim de transformá-los conforme a sua própria semelhança e
desarraigar deles o pecado (Cl 3.10). Então, um dia, quando essa tarefa
estiver terminada, Cristo os levará à "cidade santa, a nova Jerusalém" (Ap
21.2), onde jamais entrará qualquer coisa imunda (Ap 21.27), para ali terem
o gozo de verem a Deus e de usufruírem da bem-aventurança de conhecê-Lo
como seu próprio Deus e Pai (Ap 21.3, 7; 22.4), para sempre. Esta
consumação não pode falhar; está garantida pela promessa do Senhor (Jo
6.39, 40; 10.27-29) e pela sua oração (Jo 17.11, 15, 24). Com propriedade
escreveu Isaac Watts, em seu cântico sobre o Mediador:

Nele jactam-se todas as tribos de Adilo,


De mais bênçãos do que seu progenitor perdeu.
Segunda,como é realizada a obra do Mediador?

A teologia evangélica está acostumada a afirmar que o Mediador cumpriu


a sua missão ao assumir o triplo ofício de profeta, sacerdote e rei. Essa ideia
acerca do ministério de Cristo deriva-se diretamente da carta aos Hebreus, a
mais completa análise de sua mediação, no Novo Testamento. É conveniente
considerarmos esses três temas:
1. O ofício primário de Jesus é o de rei. É para este ofício que o título
"Cristo" sempre aponta no Novo Testamento. "Cristo" não é apenas um
rótulo, como se fosse um sobrenome, e, sim, um título de realeza. Assim,
"Jesus Cristo" corresponderia, como exemplo, a "Príncipe Filipe" e não a "
Filipe Mountbatten". Esse título destaca Jesus como o Messias de Deus, o
ungido filho de Davi, mencionado nas profecias do Antigo Testamento (Is
9.6, 7, 11.1ss.; Jr 23.5, 6; Ez 37.24ss.; Am 9.11, 12; etc.). A afirmação básica
do Novo Testamento foi proferida por Pedro, no dia de Pentecoste: ''A este
Jesus que vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo" (At 2.36). De acordo
com isso, o Jesus retratado em Hebreus, assim como no resto do Novo
Testamento, é um Jesus entronizado, assentado como rei "à direita da
Majestade nas alturas" (1.3; cf. vv. 8 e 13; 8.1; 10.12, 13). O caráter
messiânico de Cristo, assim compreendido, é o pressuposto de tudo o mais
quanto o Novo Testamento tem a dizer sobre Ele.
O Novo Testamento declara que o reino de Cristo é universal e
abrangente. Jesus é o vice-regente de Deus em todo o universo. "Toda a
autoridade me foi dada no céu e na terra" (Mt 28.18). Deus "pôs todas as
cousas debaixo dos seus pés" (Ef 1.22; cf. Hb 2.8, 9; Fp 2.9ss.). O alvo desse
reino é a eliminação de toda oposição ativa à vontade de Deus e de toda a
desarmonia causada pelo pecado, bem como a salvação do povo de Deus (1
Co 15.24ss.; Ef 1.10-12). Na realidade, embora nem sempre pareça, todas as
coisas se movem na direção desse alvo, sob o domínio de Cristo.
Na qualidade de Rei-Salvador designado por Deus, Jesus exerce absoluto
controle sobre todas as criaturas e um absoluto direito sobre os homens.
Ninguém tem o direito de ser seu discípulo; e, igualmente, ninguém precisa
temer, uma vez que se tenha tornado seu discípulo. Porque o Cristo que nos
governa, também governa todas as coisas visando ao nosso bem. À pergunta:
"Como Cristo executa o ofício de rei?", o Breve Catecismo de Westminster
responde: "Cristo executa o seu ofício real submetendo-nos a si mesmo,
governando-nos e defendendo-nos, restringindo e conquistando todos os
seus e nossos inimigos" (resposta 26). Portanto, o domínio de Cristo é a
nossa segurança, enquanto Ele nos conduz a Deus, ao longo da vereda do
discipulado, do carregar a cruz. Desta forma o poema de Isaac Watts
encontra eco no coração de todo crente verdadeiro.

Querido Senhor Todo-Poderoso,


Conquistador meu e Rei meu.
Teu cetro, tua espada,
E tua graça reinante eu canto.
Teu é o poder; assento-me
Aos teus pés, em voluntária submissão.
Ainda que todas as hostes da morte,
E os poderes do inferno desconhecido
Mostrem suas formas mais terríveis
De fúria e dano,
Estarei seguro, pois Cristo demonstra
Seu poder superior e sua graça protetora.

Essa é a importância do reino mediatário de Jesus Cristo para o crente.


2. Porém, o Rei Jesus também é sacerdote. Ele é um régio sumo sacerdote
para sempre, ''segundo a ordem de Melquisedeque'' (Hb 5.6; 6.20, citando Sl
110.4). Hebreus 7 a 10 retrata a perfeição e a finalidade do sacerdócio
perpétuo de Jesus, mostrando como este substituiu e aboliu o sacerdócio
levítico da antiga aliança, tornando, a partir disso, supérflua e até mesmo
blasfema a própria ideia de uma mediação sacerdotal humana. O Breve
Catecismo analisa a obra do sacerdócio de Jesus assim: ''Cristo executa o
ofício de sacerdote, por ter-se oferecido uma vez como sacrifício para
satisfazer a justiça divina e para nos reconciliar com Deus, e porque faz
contínua intercessão por nós'' (resposta 25).
(a) No tocante ao sacrifício de Jesus, realizado de uma vez portodas, que é
a sua obra consumada por nossos pecados, só podemos aqui referir-nos a
Hebreus 9.1 a 10.18. Desta passagem aprendemos que quando Cristo
provou "a morte" (2.9), na cruz, vertendo o seu sangue e suportando
conscientemente o destino do pecador - ser abandonado por Deus - que é a
morte espiritual (Mc 15.34), Ele fez purificação eterna por todos os pecados
(Hb 9.23; 10.12, 14, 17), na presença imediata de Deus, no "Santo dos
Santos" celestial, que o tabernáculo apenas tipificava (9.12, 24, 25). Dessa
forma, Ele garantiu que, quando os crentes agora aproximam-se de Deus,
não lhes é impedido o caminho de acesso (10.19-22), nem lhes é infligida a
pena do pecado.
(b) No tocante à constante intercessão de Jesus em favor de seu povo,
aqueles que "por ele se chegam a Deus" (Hb 7.25; cf. Rm 8.34), o verbo usado
no Novo Testamento tem um significado ao mesmo tempo mais intenso e
menos intenso do que o verbo "interceder", em português. É mais intenso
porque primariamente significa não apenas fazer pedidos, mas intervir
ativamente numa situação em favor de alguém, para fazer tudo quanto é
mister para o bem-estar desse alguém. É menos intenso porque não envolve
qualquer sugestão de "apelo" baseado na admissão de impotência. Não há
dúvida que o Deus-homem continua expressando ao Pai o seu desejo pelo
cumprimento daquilo que Ele sabe ser a própria vontade do Pai para aqueles
que lhe foram "dados", tal como fez quando esteve neste mundo (ver a
oração sumo sacerdotal de Jesus, em Jo 17; cf. 14.16). Porém, isso não é
tudo o que está envolvido na sua intercessão. A intercessão sacerdotal de
Cristo é uma intervenção régia, procedente de seu trono, uma intervenção
alicerçada no fato que Ele, o rei, está presente com Deus (Hb 9.24), como
Advogado de seu povo. Nisto consiste a propiciação, eternamente eficaz
pelos pecados deles, em virtude de seu sacrifício realizado de uma vez para
sempre (1 Jo 2.1, 2). Portanto, poderíamos definir a intercessão de Cristo
como aquela atividade celestial, mediante a qual Ele garante que não serão
desapontados todos os que se achegam a Deus por intermédio dEle,
invocando o seu nome, confiando nEle quanto ao perdão, quanto ao acesso à
presença do Pai e à graça para ajudá-los em momentos de necessidade e à
glória celestial no fim. O Novo Testamento não nos encoraja a especular
quanto à exata natureza dessa atividade de Cristo, mas convida-nos a nos
regozijarmos na certeza de que, qualquer que seja a forma que ela assuma, é
certa e infalivelmente eficaz.
3. Finalmente, o sacerdote real também é profeta. Deus falou por meio
dEle e pregou o evangelho através de seus lábios (Hb 1.2 e 2.3). O ministério
dos apóstolos foi uma extensão do ofício profético de Cristo. Eles pregavam
em nome dEle e inspirados por Ele (cf. 1 Co 2.13). A pregação apostólica era
a pregação de Cristo, de modo que, muitos que nunca viram Jesus em carne
puderam ouvir sua voz, através das palavras dos apóstolos (ver Lc 10.16; Jo
10.16 e Ef 2.17). O mesmo sucede quando o evangelho apostólico é
anunciado hoje em dia. Na medida em que o Espírito de Cristo opera através
da Palavra, os homens continuam ouvindo a voz de Jesus. Diz o Breve
Catecismo, em sua resposta 24: "Cristo executa o ofício de profeta ao
revelar-nos, por sua Palavra e pelo seu Espírito, a vontade de Deus quanto à
nossa salvação". Portanto, todos os crentes, em todas as épocas, podem
dizer:

Ouvi o Salvador dizer:


Vem descansar em mim!

Tal é o nosso Mediador: Deus encarnado, homem divino, profeta,


sacerdote e rei . "Aleluia! Que maravilhoso Salvador!"
UM MEDIADOR PROCLAMADO
Por fim, podemos apreciar o valor dos quatro evangelhos! Isso pode
parecer estranho, porém não é mais que a verdade. Muitos daqueles que com
razão consideram os evangelhos os livros mais admiráveis do mundo, por
causa da habilidade com que nos apresentam a pessoa mais maravilhosa de
todos os tempos, falham em compreendê-los. Leem-nos como se houvesse
uma contradição entre os evangelhos (narrativas vida prática) e as epístolas
(teologia e teoria). Leem-nos como se fossem biografias que focalizam Jesus
do ponto de vista do interesse humano, como uma pessoa fascinante, que
teve uma carreira cativante. Alguns, perdendo inteiramente de vista os
evidentes sinais de cuidadosa elaboração, têm-se referido aos evangelhos
como "memórias destituídas de arte".
Na realidade, esses quatro livros são precisamente aquilo que o título de
cada um deles afirma, "o evangelho", ou seja, a proclamação dos fatos
atinentes ao Senhor Jesus. Estes fatos contribuem para a nossa
compreensão acerca de Cristo como Mediador, conforme O vemos nas
epístolas: profeta, rei e sacrifício pelo pecado (categorias usadas pelos
evangelistas), e, nessa qualidade, como Aquele que nos trouxe a salvação.
Essa salvação envolve a nova vida e a nova esperança mediante um novo
relacionamento com Deus. A verdade é que os evangelhos foram escritos por
homens cuja teologia correspondia à das epístolas, com o propósito de
edificar outras pessoas que compartilhavam, ou, pelos menos, estavam
aprendendo a compartilhar, as mesmas crenças. Desta forma, evangelhos e
epístolas complementam. E o foco de atenção dos evangelistas não incide
tanto sobre Jesus como um ser humano (embora a sua real humanidade seja
imprescindível ao ponto de vista dos evangelistas), mas sim sobre o seu ser
como divino Mediador, o Deus que trouxe Deus até nós, em graça e poder,
para deste modo conduzir-nos a Deus, mediante o arrependimento e a fé.
Nos evangelhos, tudo é apresentado de tal modo a ressaltar o tema da
mediação: a apresentação da vida de Jesus (nascimento - batismo -
ministério público - paixão - ressurreição - ascensão); as curas e os milagres
de multiplicação de alimentos, que retratam a graça que cura e nutre as
nossas almas; o ensino (os convites à fé, a orientação dada aos discípulos); os
cumprimentos de profecias bíblicas que foram citados (Mt 1.22, 23; 4.14,
15; 8.17; 12.17, 18; Lc 22.37; 24.25ss.; 24.44ss.; etc.); e, no caso do
evangelho de João, os comentários explanatórios do autor (1.1-18; 2.11, 21,
22; 3.31-36; 7.39; 8.20; 11.51, 52; 12.37-43; 13.1; 18.32 e 20.31).
Conforme disse anteriormente, creio que alguns daqueles que amam os
evangelhos e os leem regularmente, de fato leem-nos de modo errado.
Negligenciando o que é central e concentrando-se no periférico, terminam
sabendo algo sobre a pessoa de Jesus, mas quase nada sobre a sua mediação.
Também creio que alguns que amam a teologia e estão familiarizados com as
epístolas não leem os evangelhos com a devida frequência, de modo que
conhecem a doutrina da mediação, mas não estão familiarizados com o
homem Jesus Cristo. A ambos, pois, faço este apelo: apreciem os
evangelhos! Na verdade, eles são os livros mais enriquecedores do mundo,
uma vez que seus leitores enxerguem Aquele acerca de quem estão lendo, a
saber, Jesus, o Mediador, cujo ministério salvífico é exposto em termos
teológicos nas epístolas. O Cristo das epístolas é o Jesus dos evangelhos.
Muitos ganhos advêm de escalar os "himalaias teológicos", que são as
grandes epístolas de Paulo e a epístola aos Hebreus. Um dos ganhos é que
por meio disso ficamos preparados para ler os evangelhos com
entendimento, e tudo quanto ali encontramos nos levará a dizer
continuamente, de todo coração:

Jesus, meu Pastor, Esposo, Amigo,


Meu Profeta, Sacerdote e Rei;
Meu Senhor, minha Vida, meu Caminho, meu Fim,
Aceita o louvor que Te trago.
Você continua me acompanhando?
O verbo "reconciliar" (no grego, dois verbos inter-relacionados) e o
substantivo "reconciliação" não são palavras comuns no Novo Testamento.
Somente Paulo as empregou em conexão com o relacionamento entre Deus e
os homens, e mesmo assim apenas em cinco textos (Rm 5.10, 11; 11.15; 2
Co 5.18-20; Ef 2.14-17 e Cl 1.19-22). No entanto, são palavras-chaves da
teologia bíblica. Não é exagero dizer que, para Paulo, reconciliação era a
súmula e a substância do evangelho. Em suas mãos, "reconciliação" tornou-
se, na verdade, um termo técnico teológico, descrevendo e interpretando o
fato central da mensagem cristã - a obra salvífica que Deus realizou através
da cruz do Senhor Jesus Cristo. Assim, ele se refere ao evangelho como ''a
palavra da reconciliação" e à pregação do evangelho como "o ministério da
reconciliação". Paulo sintetizou o conteúdo do evangelho na grandiosa
afirmação: "Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo". Ele
formulou a aplicação do evangelho como um apelo aos pecadores para se
reconciliarem com Deus. Ele descreveu a resposta da fé, a qual o evangelho
requer, como "receber a reconciliação" (Rm 5.11; 2 Co 5.18ss.). É claro,
pois,que a reconciliação, segundo Paulo, é o coração do evangelho. De todas
as grandes palavras usadas no Novo Testamento para explicar a obra
salvífica de Cristo - redenção, justificação, etc. - talvez "reconciliação" seja a
mais completa e a mais expressiva.
SIGNIFICADO DA RECONCILIAÇÃO
O que é "reconciliação"? A ideia geral transmitida pela raiz grega desta
palavra, de onde se formam os termos a ela relacionados, é a de troca, e o
sentido comum que esses termos têm, tanto no grego secular como na
Bíblia, é a de troca de relações, uma troca de oposição por harmonia, de
inimizade por amizade. Reconciliar significa unir novamente pessoas que
antes se separaram; é substituir a alienação, a hostilidade e a oposição por
uma nova relação caracterizada por favor, boa vontade e paz,
transformando, desta forma, a atitude das pessoas que se reconciliaram uma
com a outra e estabelecendo o seu subsequente relacionamento mútuo sobre
uma base inteiramente nova.
A iniciativa da reconciliação pode ser tomada por uma terceira parte, que
se conserva fora da disputa, ou por qualquer das partes descontentes, aquela
que provocou a ofensa ou a que foi ofendida. Em dois textos do Novo
Testamento, lemos sobre a reconciliação no nível humano, e, em cada caso, é
a pessoa causadora da ruptura (o irmão que ofendera a seu irmão na fé, em
Mateus 5.24, e a mulher que abandonara o marido, em 1 Coríntios 7.11) que
toma a iniciativa de corrigir o erro. Em ambas as vezes, o verbo é usado na
voz passiva, e da pessoa que procura fazer as pazes é dito que "foi
reconciliada" à outra - talvez porque, nessas circunstâncias, a decisão que
realmente efetuou a reconciliação foi a da parte ofendida. Em um papiro
egípcio do primeiro século, escreveu um filho à sua mãe: "Reconcilie-se
comigo". Ele estava pedindo que ela o perdoasse e o aceitasse de volta. Em
um caso assim, o ofensor pode apenas confessar a sua falta, fazer reparação
de seu erro e pedir perdão. Então ele terá de submeter-se à decisão da pessoa
ofendida: sim ou não. Somente quando esta última concede o perdão e
mostra-se disposta a esquecer o que se passou, podemos dizer que o ofensor
"foi reconciliado" com aquele contra quem ele errou.
Porém, não é isso que sucede na reconciliação entre Deus e os homens.
Pois, nesse caso, é Deus, a parte ofendida, quem toma a iniciativa. "Deus
estava em Cristo reconciliando consigo o mundo" (2 Co 5.19). A cura da
ruptura que o pecado do homem havia provocado é obra de Deus mesmo.
Nunca lemos que os homens buscaram a reconciliação com Deus, ou que
Deus tenha sido reconciliado com o homem. Antes, Deus é o próprio
Reconciliador. Portanto, quando Paulo exorta os seus leitores, em 2
Coríntios 5.20: "rogamos que vos reconcilieis com Deus", o que ele queria
dizer não era que eles deveriam procurar fazer reparações por seus pecados,
na esperança de por este modo induzirem Deus a mostrar-se favorável para
com eles, e, sim, que eles deveriam aceitar, humildes e gratos, mediante a fé,
a reconciliação que Deus já havia realizado para eles, em Cristo.
INIMIZADE E IRA
A reconciliação pressupõe alienação pelo menos de um dos lados. No caso
de Deus e dos pecadores, parece claro que essa alienação é mútua. Por um
lado, aqueles acerca dos quais é dito que Deus os reconciliou consigo mesmo,
antes eram "estranhos e inimigos no entendimento", praticando obras
malignas (Cl 1.21). De acordo com a Bíblia, esse é o estado natural de cada
filho de Adão. "O pendor da carne é inimizade contra Deus" (Rm 8.7). O
homem pecaminoso opõe-se a Deus e a tudo quanto é dEle. Faz parte de sua
natureza desobedecer à lei de Deus, descrer de seu evangelho, prestar-lhe
culto com relutância e aborrecer-se ante suas restrições. Se os pecadores
pudessem destronar a Deus, repelir as suas leis e cancelar o seu julgamento,
assim o fariam. Os homens já nascem rebeldes contra o seu Criador. O
homem em seu estado de pecado, encontra-se em total inimizade com Deus.
Por outro lado, Deus também está em inimizade com os pecadores. Com
frequência, isto tem sido negado, mas a Bíblia não deixa dúvidas quanto a
isto. Fomos reconciliados com Deus, mediante a morte de Cristo, "quando
inimigos", diz Paulo em Romanos 5.10. E os comentadores de todas as
escolas concordam que esse termo significa em parte, senão em sua
totalidade, que eles eram "objetos da hostilidade divina", conforme o
contexto parece exigir. ''O termo inimigos é aplicado aos homens não
somente como descritivo do caráter moral deles, mas também da relação em
que estão diante de Deus, como objetos de seu desprazer. Não somente há
uma disposição ímpia do pecador contra Deus, mas também uma santa
oposição de Deus contra o
pecador" (C. Hodge, Romans - Romanos - p. 136). Novamente, Paulo
assevera que todos éramos "por natureza filhos da ira" (Ef 2.3), herdeiros da
vingança que Deus decretou contra aqueles que transgridem as suas leis. A
ideia bíblica da ira de Deus foi muito bem definida por James Orr: "Uma
energia de natureza divina, suscitada pela presença de transgressão ousada
ou presunçosa, que expressa a reação da santidade de Deus contra tal
transgressão, na forma de punição ou destruição do transgressor. É o ''zelo''
de Deus pela manutenção de sua santidade e de sua honra, bem como dos
propósitos de sua justiça e de seu amor, quando esses são ameaçados pela
ingratidão, pela rebeldia, pela desobediência voluntária ou pela temeridade
da criatura" (Dictionary of the Bible - Dicionário da Bíblia - Hasting, vol. 1, pp.
77-78). A ira de Deus contra o pecado não é como uma fagulha ocasional,
mas é como uma fogueira que arde sem cessar; não é um sinal de
desequilíbrio emocional, mas é um aspecto da coerente retidão do justo Juiz
de toda a terra. Paulo mostra que todos os pecadores, como tais, estão
sujeitos a essa hostil reação da parte de Deus. A primeira verdade exposta
em Romanos é que "a ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e
perversão dos homens'' (Rm 1.18). O pano de fundo das boas novas da graça
divina são as más novas do juízo divino. O contexto dentro do qual o
evangelho anuncia a misericórdia reconciliadora de Deus é a declaração de
sua ira ativa. Os homens são opostos a Deus em seus pecados, e Deus é
oposto aos homens em sua santidade. Aqueles que estão sob o domínio do
pecado também estão sob a ira de Deus. É contra o negro pano de fundo da
situação das relações naturais entre o homem e seu Criador que o evangelho
é anunciado.
A REALIZAÇÃO DA RECONCILIAÇÃO
Reconciliar significa estabelecer a paz. E Cristo estabeleceu a paz, segundo
a Bíblia nos diz, ''pelo sangue de sua cruz'' (Cl 1.20). ''Fomos reconciliados
com Deus mediante a morte do seu Filho" (Rm 5.10). Como compreender
isso? Não podemos fazer aqui um exame completo da posição do apóstolo
Paulo sobre a expiação, embora possamos ressaltar três pontos que se
originam diretamente dos textos que estamos estudando.
1. Conforme somos informados, a reconciliação foi feita através do sangue
de Cristo (Cl 1.20). Isso aponta para a ideia de sacrifício, segundo o padrão
vétero-testamentário, que requeria o derramamento de sangue para a
remissão da culpa.
2. A análise de Paulo quanto ao significado da reconciliação é que, através
do derramamento do sangue de Cristo, foi estabelecida a paz entre Deus e os
homens (Cl 1.20), a inimizade entre eles foi desfeita (Rm 5.10; Ef 2.16) e a
ira divina foi afastada para sempre (Rm 5.9, 10). Isso aponta para a ideia de
propiciação. De fato, "propiciação" é palavra definida como o afastamento da
ira de Deus, não sendo mais do que um termo técnico para indicar os efeitos
reconciliadores e pacificadores da cruz.
3. Deus reconciliou consigo o mundo, diz Paulo, mediante uma troca
judicial: "Àquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós; para que
nele fôssemos feitos justiça de Deus" (2 Co 5.21). Paulo acabara de dizer que
a reconciliação envolve a não-imputação das transgressões aos
transgressores; agora ele mostra que a base dessa não-imputação é que as
suas
transgressões foram imputadas a Cristo e o suportar de Cristo à santa reação
de Deus aos pecados deles. Diz Paulo em Gálatas 3.13: "Cristo nos resgatou
da maldição da lei, fazendo-se ele próprio maldição em nosso lugar". A razão
pela qual não precisamos carregar nossos próprios pecados é que Cristo os
carregou em nosso lugar. Isso aponta para a ideia de substituição.
Assim, foi mediante um sacrifício propiciatório e vicário, da parte do
imaculado Filho de Deus, que a nossa reconciliação foi alcançada. A salvação
custou esse alto preço; e o preço foi pago para resgatar inimigos de Deus.
"Porque Cristo, quando nós ainda éramos fracos, morreu a seu tempo pelos
ímpios... Mas Deus prova o seu próprio amor para conosco, pelo fato de ter
Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores'' (Rm 5.6-8). Deus
apagou e removeu sua própria e justa ira contra nós, enviando seu Filho para
fazer expiação pelos nossos pecados, em meio às trevas do Calvário. É isso o
que nos ensina a grandeza da misericórdia divina; e também nos mostra o
significado da frase "Deus é amor" (1 Jo 4.8-10).
O RECEBIMENTO DA RECONCILIAÇÃO
A reconciliação foi feita por meio da morte de Cristo, mas só se torna
possessão daquele que a recebe; e ela é recebida pela fé; não por trabalhar
para ganhá-la, mas por crer e recebê-la. Ela também não é recebida por
confiarmos em alguma teoria de expiação, e, sim, porrecebermos o Salvador
vivo. Proclamou Paulo: "Deus estava em Cristo, reconciliando consigo o
mundo" (2 Co 5.19, 20). Portanto, "reconciliai-vos com Deus" significa
"recebei vossa reconciliação" (cf. Rm 5.11); e isto significa "recebei o
Reconciliador que trouxe consigo a reconciliação" com Deus. Os dons de
Cristo e o próprio Cristo não podem ser separados. "O Cristo vivo,
juntamente com a virtude de sua morte reconciliadora, é o tema da
mensagem apostólica", escreveu James Denney. ''Se um homem'',
acrescentou ele, ''com o senso de seu próprio pecado, entende o que significa
Cristo na cruz, só há uma coisa para ele fazer: entregar-se ao amor que
carregou os pecados e que apela para ele, em Cristo, a entregar-se
incondicionalmente, sem reservas e para sempre. Isso é o que o Novo
Testamento entende por fé" (The Christian Doctrine of Reconciliation - A
Doutrina Cristã da Reconciliação, pp. 287 e 289). A fé tanto recebe quanto
dá. Ela recebe as promessas de Deus, o Filho de Deus e a salvação de Deus e
dedica-se inteiramente ao serviço de Deus. Ela recebe o Senhor como
Salvador e se dá ao Salvador, reconhecendo-O como Senhor. É desta forma
que a reconciliação é recebida, e pecadores culpados encontram paz com
Deus.
Essa, pois, é a conclusão do assunto. A reconciliação indica o fim da
inimizade e o estabelecimento da paz e da amizade entre pessoas antes
opostas uma à outra. Deus e os homens eram inimigos mútuos, por causa
dos pecados dos homens; mas Deus agiu em Cristo para reconciliar os
pecadores consigo mesmo, mediante a cruz. A reconciliação foi uma tarefa
realizada de modo completo por Cristo no Calvário. Em virtude dessa
completa obra expiatória de Cristo, Deus agora convida os pecadores de
todos os lugares para receberem a reconciliação, e, portanto, a se
reconciliarem com Ele. Por meio de Cristo, os crentes usufruem de real,
perfeita e final reconciliação com Deus. Coisa alguma pode ser acrescentada
à mesma, porque nada lhe falta. Visto que é perfeita, ela é totalmente
eterna. A nova vida que ela nos outorga, mediante a qual conhecemos Deus
como Pai, Jesus Cristo como Reconciliador e Amigo, e nós mesmos como
gratuitamente perdoados, é tanto jubilosa como interminável. A
reconciliação é o próprio coração do evangelho, e haverá de ser para sempre
o tema coroador do louvor cristão.

Ó Cristo, quanto peso recaiu sobre teus ombros


Meu fardo pousou sobre Ti;
Tomaste o lugar do pecador,
Sim, suportaste todo o mal por mim!
Qual vítima levada à morte,
Teu sangue derramaste.

Não há mais peso que seja meu, enfim!


Havia morte e maldição em meu cálice;
E estava repleto para Ti, ó Cristo!
Sorveste até a última gota de amargor;
O cálice agora está vazio - teu amor o esvaziou.
Bênçãos fluem em meu favor.

Jeová ergueu sua vara de justiça!


Ó Cristo, ela desceu sobre Ti!
Foste duramente ferido por teu Deus,
Não restou um só ferimento para mim.
Tuas lágrimas derramaste por sobre o sangue vertido;
Pelas tuas pisaduras fui sarado.
Por mim, Senhor Jesus, morreste,
E eu, em Ti, também morri.
Ressuscitaste - minhas algemas desataste,
Agora vives em mim.
Quando eu estiver alvo, puro e provado,
Será, então, glória pra mim!

Deus nos atrai à comunhão com Ele por diferentes rotas; é um erro
alguém esperar que a jornada de um homem em direção à fé seja uma cópia a
carbono da jornada de outrem. A exigência de que as experiências de
conversão sejam idênticas apenas provoca ansiedades desnecessárias, que
nos desviam a atenção do que importa. Todos somos pessoas únicas, e
começamos em estágios diferentes; Deus trata conosco conforme o que
somos, e onde Ele nos encontra. Richard Baxter disse: "Deus não quebranta
da mesma forma os corações de todos os homens''. Porém, há um ponto em
que convergem todos os caminhos que levam o pecador a Cristo, e este é o
ponto onde ele reconhece estar em desacordo com Deus e sem comunhão
com Ele. Diferentes pessoas expressam a questão de diferentes modos, nem
todos biblicamente adequados; mas aquilo que é expresso é comum a todos,
ou seja: o senso da necessidade de um novo relacionamento com Deus; a
confiança exclusiva em Cristo, efetuar este novo relacionamento; o descanso
nEle, no Senhor ressurreto, quanto a todas as esperanças futuras. O
verdadeiro cristianismo - a vida de conhecer a Deus, distinta da vida de ser
preparado para conhecer a Deus - começa nesse ponto, naquilo que Paulo
chama de recebimento da reconciliação. Ou começa nesse ponto, ou em
nenhum outro.
Desde o início da igreja, a fé tem sido um tema de controvérsias. Nos dias
dos apóstolos, Paulo argumentou que uma das diferenças básicas entre o
cristianismo e o judaísmo era que o primeiro era a religião da justificação
pela fé - fé somente, sem obras - ao passo que o último não era assim.
Escreveu ele: “Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé,
independentemente das obras da lei” (Rm 3.28). Duas de suas grandes
epístolas foram dedicadas à defesa e ao desenvolvimento dessa posição:
Romanos e Gálatas, que são respectivamente a mais majestosa exposição e a
mais apaixonada polêmica contida no Novo Testamento.
Quinze séculos mais tarde, Lutero aferrou-se a esse mesmo ponto - de
fato, ao mesmo texto - como uma expressão resumida do evangelho cristão e
de toda a controvérsia entre os reformadores e Roma. O Artigo 11 da Igreja
Anglicana dá uma aprovação pacata, mas decisiva, à asseveração de Lutero:
“Que somos justificados somente pela fé é uma doutrina saudável e cheia de
consolo...”. Sola fide - somente pela fé - foi um dos grandes lemas da
Reforma, e não é exagero descrever o termo “somente” como a rocha contra
a qual a igreja ocidental se dividiu, naqueles dias agitados. Desde então, os
evangélicos têm mantido a ênfase sobre a justificação pela fé somente e têm
insistido, muitas vezes como um brado de guerra, que sem esse advérbio o
evangelho estaria perdido.
Os crentes modernos, porém, nem sempre percebem por que houve esta
ênfase e por que a controvérsia sobre este ponto parecia tão importante.
Que necessidade havia, perguntam, de dividir a igreja por causa da palavra
“somente”? Nesses argumentos, estaria em jogo algo vital? Não seria esse
talvez mais um caso em que teólogos furiosos perderam o senso de
equilíbrio? Haverá nisso qualquer coisa que nos interesse, como servos de
Cristo e suas testemunhas nestes nossos dias?
Um exame daquilo que a Bíblia diz a respeito da fé nos ajudará a
responder essas indagações.
A NATUREZA DA FÉ
Em primeiro lugar, o que é fé? Vamos aclarar a questão. A ideia popular a
respeito é que se trata de um certo otimismo obstinado: a esperança
tenazmente assegurada, face à adversidade, de que o universo é
fundamentalmente amigável e de que as coisas podem melhorar. Diz a Sra.
A. à Sra. B.: “Você precisa ter fé”. Mas, tudo quanto ela quer dizer é:
“Coragem, não desanime se as coisas vão mal”. Isso, porém, é apenas a forma
da fé, sem seu conteúdo vital. Uma atitude confiante que seja divorciada de
um objeto que corresponda a essa confiança não é a fé no sentido bíblico.
Em contraste, a noção histórica da Igreja Católica Romana acerca da fé
tem sido de mera confiança e docilidade. Para Roma, a fé é apenas a crença
naquilo que a Igreja Romana ensina. De fato, Roma distingue entre fé
“explícita” (a crença em algo que foi compreendido) e fé “implícita” (o
assentimento incompreensível de qualquer coisa, seja o que for que a Igreja
Romana assevere). A Igreja Romana diz que somente esse último tipo de fé,
que na realidade é apenas um voto de confiança no ensino da igreja e que
pode manifestar-se lado a lado com a total ignorância da doutrina cristã, é
requerido dos leigos para a sua salvação! É evidente que a fé, na concepção
da Igreja Romana, quando muito, é apenas o conteúdo da fé, sem sua forma
apropriada; pois conhecimento, pouco ou muito, divorciado de qualquer
correspondente exercício de confiança, não é a fé, no total sentido bíblico. O
exercício da confiança é precisamente o que se faz ausente na análise da
Igreja Romana. Segundo Roma, fé consiste em confiar nos ensinos da igreja.
Mas, de acordo com a Bíblia, fé significa confiar em Cristo como Salvador, e
isso é algo totalmente diferente.
Na Bíblia, ter fé ou crer (no grego, o substantivo é pistis; o verbo é pisteuõ)
envolve tanto confiança como entrega da vida. De várias maneiras o objeto
da fé é descrito como sendo Deus (Rm 4.24; 1 Pe 1.21), Cristo (Rm 3.22, 26),
as promessas de Deus (Rm 4.20), o caráter de Jesus como Messias e
Salvador (1 Jo 5.1), a realidade da ressurreição (Rm 10.9), o evangelho (Mc
1.15) e o testemunho dos apóstolos (2 Ts 1.10).
A natureza da fé, porém, é invariável. É uma apreensão responsiva de
Deus e de sua verdade salvadora; é um reconhecimento da resposta dada por
Deus à necessidade humana, que doutro modo jamais seria atendida; é a
compreensão de que o evangelho é a mensagem pessoal de Deus, bem como
o convite pessoal de Cristo ao seu ouvinte; é o mover-se confiante da alma
em direção ao Deus vivo e ao seu Filho. Isso se torna claro através da mais
comum das construções gramaticais no Novo Testamento grego - o verbo
pisteuo com a preposição eis, ou, ocasionalmente, com a preposição epi, com
o objeto direto no acusativo - cujo significado é “confiar para dentro de” ou
“confiar sobre”. Esta construção jamais aparece no grego clássico e
raramente na Septuaginta. Trata-se de uma nova expressão idiomática,
desenvolvida no Novo Testamento, para expressar a ideia de um movimento
de confiança que se dirige ao objeto da confiança e que descansa no mesmo.
Esse é o conceito bíblico e cristão de fé. Os reformadores frisaram esse
conceito, afirmando que a fé não é apenas fides (crença), mas também fiducia
(confiança). Nas palavras do bispo Ryle:

A fé que salva é a mão da alma.


O pecador é como um homem que está se afogando, prestes a afundar
de vez. Ele vê o Senhor Jesus Cristo oferecendo-lhe ajuda. Ele a aceita e
é salvo. Isso é fé (Hb6.18).

A fé que salva é o olho da alma.


O pecador é como um israelita picado por uma serpente venenosa no
deserto e que está à morte. O Senhor Jesus lhe é oferecido como a
serpente de bronze, levantado para sua cura. O pecador olha para Ele e
é curado. Isso é fé (Jo 3.14, 15).
A fé que salva é a boca da alma.
O pecador está definhando por falta de comida e sofrendo de uma
doença dolorosa. O Senhor Jesus lhe é apresentado como o pão da vida
e o remédio universal. Ele O recebe e fica bem de saúde e forte. Isso é fé
(Jo 6.35).

A fé que salva é o pé da alma.


O pecador é perseguido por um inimigo mortal e teme ser vencido. O
Senhor Jesus lhe é apresentado como uma torre forte, um refúgio e
um esconderijo. O pecador corre para Ele e fica em segurança. Isso é fé
(Pv 18.10). (Old Paths - Caminhos Antigos - pp. 228 e 229).

Por todo o Novo Testamento, de fato, esse é o conceito normal de fé. As


únicas exceções são as seguintes:
l. Algumas vezes, “fé” exprime o conjunto das verdades em que cremos
(Jd 3 e 1 Tm 4.1, 6, etc.).
2. Algumas vezes, “fé” significa um mais estrito exercício de confiança,
que opera milagres (Mt 17.20, 21; 1 Co 13.2). Mesmo nos dias do Novo
Testamento, porém, a fé salvadora nem sempre era acompanhada pela “fé
que opera milagres” (cf. 1 Co 12.9) e vice-versa (cf. Mt7.22, 23).
3. Em Tiago 2.14-26, “fé” e “crer” denotam mero assentimento intelectual
à verdade, sem a correspondente resposta de uma vida de obediência
confiante. Mas, parece que Tiago estava simplesmente imitando o uso da
palavra “fé” daqueles a quem procurava corrigir (cf. v. 14), e não precisamos
supor que ele normalmente a usasse em um sentido tão limitado (por
exemplo, a sua alusão à fé, no verso 5, claramente envolve um sentido muito
mais amplo).
A ORIGEM DA FÉ
A Bíblia considera como certezas as convicções da fé e equipara-as ao
conhecimento. A voz da fé diz: “Nós sabemos que...” Sobre o que se
fundamenta a certeza da fé? Não em demonstrações dadas por meio de
argumentos, nem mesmo em provas experimentais. Artigos de fé não
podem ser provados pela razão, nem podem ser averiguados por
experiências controladas. O homem não se acha em posição de fazer alguma
verificação independente acerca daquilo que lhe é informado sobre Deus.
Novamente, a certeza da fé não se fundamenta, conforme sugere o
catolicismo romano, na confiança em uma infalível igreja mestra; pois a
igreja, neste mundo, jamais será infalível e com frequência tem ensinado
erros. E também essa certeza não é fundamentada em alguma experiência
mística ou exotérica, ou em alguma revelação particular. Não, a certeza da fé
origina-se diretamente da confiança na palavra de um Deus que “não pode
mentir” (Tt 1.2) e que é, por isso mesmo, digno de confiança em tudo
quanto diz. A fé é um reflexo do reconhecimento expresso por Davi: “Agora,
pois, ó SENHOR Deus, tu mesmo és Deus, e as tuas palavras são verdade” (2
Sm 7.28).
Onde, porém, podem ser encontradas as palavras de Deus? Na Bíblia
Sagrada, o testemunho escrito dos profetas e apóstolos acerca do Pai e do
Filho. As palavras de Cristo e as daqueles que escreveram a Bíblia foram
inspiradas por Deus, no sentido que elas constituem a Palavra de Deus, o
testemunho que Ele dá de Si mesmo. Receber o testemunho de Cristo
equivalia a certificar-se de que Deus é verdadeiro (Jo 3.33). Rejeitar o
evangelho dos apóstolos era, e continua sendo, fazer de Deus um mentiroso
(1 Jo 5.10). Pois as palavras do Salvador e de seus apóstolos eram, e ainda
são, as palavras de Deus. Paulo disse aos tessalonicenses: “Outra razão ainda
temos nós para incessantemente dar graças a Deus: é que, tendo vós
recebido a palavra que de nós ouvistes, que é de Deus, acolhestes não como
palavra de homens, e, sim, como em verdade é, a palavra de Deus” (1 Ts 2.13). É
aí que a fé tem início: quando o evangelho dos apóstolos, a mensagem
bíblica central, é ouvido ou lido e quando os homens tomam consciência de
que se trata da própria verdade de Deus.
Contudo, o pecado e Satanás têm cegado de tal maneira ao homem caído
que ele não pode discernir que o testemunho de Cristo e de seus apóstolos é
a verdade de Deus; nem pode “enxergar” ou apreender as realidades das
quais ela trata (cf. Jo 3.3; 1 Co 2.14). Ele não pode “vir” a Cristo em total
confiança e com humildade de espírito (Jo 6.44, 65), enquanto o Espírito
Santo não o tiver iluminado e renovado (2 Co 4.4-6; Jo 3.3-8). Só os que são
divinamente “ensinados” e “atraídos” vêm a Cristo e nEle permanecem (Jo
6.44, 45). A fé que salva é, pois, dom de Deus (cf. Ef 2.8; Fp 1.29). Se nós
mesmos temos fé, isso deve-se apenas ao fato que Deus em sua misericórdia
abriu os nossos olhos. E, se desejarmos que outras pessoas venham à fé,
precisaremos orar para que o Senhor também lhes abra os olhos; pois, de
outro modo, nunca crerão como nós também não teríamos crido.
A FÉ E A SALVAÇÃO
Agora que já sabemos o que é fé, podemos ver por que nossos
antepassados evangélicos insistiam tanto em que a salvação é somente pela
fé. Eles tinham duas razões para afirmarem isto, e as duas aplicam-se até
hoje:
1. Essa ênfase era necessária para salvaguardar a glória de Cristo como
Salvador.
Ter fé é vir a Cristo; fé significa deixar-se cair nos braços abertos do
Senhor. Desta forma, a fé liga um homem a Cristo, de tal modo que ele se
torna um homem “em” Cristo. Em Cristo, por meio de Cristo e por causa de
tudo que Cristo é e fez, os crentes têm uma perfeita salvação. Paulo, em
Romanos 8, menciona as bênçãos pertencentes aos que “estão em Cristo
Jesus” (v. 1), ou seja: nenhuma condenação e nenhuma separação (vv. 1,
35ss.); filiação e herança (v. 14ss.); a firme esperança da ressurreição e da
glória (vv. 11, 23, 30); a força e o consolo do Espírito (vv. 15ss., 23, 26ss.); a
segurança eterna e o triunfo garantido através do todo-poderoso amor de
Deus (vv. 28-39). Ninguém precisa de mais coisas além das que são dadas
gratuitamente em Cristo. E a fé, por nos unir a Cristo, torna tudo isto nosso.
Portanto, negar que a fé somente é suficiente para a salvação é negar que
Cristo é um Salvador adequado. O caminho para realçar a absoluta
suficiência de Cristo, é enfatizar a absoluta suficiência da fé. Perguntou o
carcereiro filipense: “Que devo fazer para que seja salvo?” A resposta de
Paulo foi: “Crê no Senhor Jesus, e serás salvo” (At 16.30, 31). Por causa da
honra de Cristo, é preciso salientar que esta foi, e ainda é, uma resposta
perfeita àquela indagação.
2. Essa ênfase é necessária para salvaguardar a genuinidade da própria fé.
Afé verdadeira é uma confiança exclusiva e de todo o coração, uma total
desistência de si mesmo para por toda a sua confiança na misericórdia de
Deus. A verdadeira fé inicia-se na autodesconfiança e envolve um total
abandono da confiança na moralidade pessoal, na religião ou no caráter,
para entregar-se a Deus. Escreveu Paulo: “Ao que não trabalha, porém crê
naquele que justifica ao ímpio, a sua fé lhe é atribuída como justiça” (Rm
4.5). Isso só acontece a quem assim faz - e a ninguém mais. Mas, se alguém
insistir em adicionar suas próprias obras à fé - isto é, a Cristo - como uma
contribuição à sua própria aceitação do Senhor, ou se insiste em tratar os
méritos de Cristo como se fossem apenas um contrapeso para suplementar
os seus próprios méritos, então isso não é a verdadeira fé, nem garantirá a
aceitação que se busca. Disse João Berridge, de modo claro e direto: “Ou
Cristo é um Salvador total ou não o é de modo algum. Se pensas que tens
boas obras que te recomendam a Deus, certamente não tens qualquer
participação com Cristo.
Mesmo que sejas sóbrio, sério, justo e devoto continuas debaixo da maldição
de Deus... visto que tens permitido uma dependência às tuas próprias obras,
pensando que elas farão algo por ti e que Cristo fará o restante” (Works -
Obras, p. 339). Faze conforme as singulares palavras de um certo hino:
“Lança fora teus feitos mortíferos”. Deixa de confiar em tua religião, em tuas
orações, em tuas leituras bíblicas e em todos os teus pequenos atos de
piedade, pois nada disso te salvará. E enquanto não deixares de confiar
nessas coisas, Cristo também não te salvará, pois ainda não confias nEle
verdadeiramente.

Nada em minha mão eu trago,


Só em tua cruz me agarro;
Necessitado, fujo para Ti para cobrir-me,
Desamparado, espero em tua graça para suprir-me.

Assim fala a fé verdadeira. A fé abandona a esperança nas realizações


humanas, deixa pra trás todas as obras humanas e vem a Cristo sozinha e de
mãos vazias, atirando-se sobre a sua misericórdia. Essa é a fé que salva.
A FÉ E AS OBRAS
Significaria isso que a fé que salva glorifica a inatividade, e que o
evangelho da justificação somente pela fé é hostil ao esforço moral? De
forma nenhuma. Lutero escreveu: “A fé é viva, poderosa em suas operações,
valente e forte, sempre realizando, sempre frutificando; de modo que é
impossível que aquele que é dotado de fé não produza sempre boas obras...
pois essa é a sua natureza”. O que salva é a fé somente; mas a fé que salva
nunca está sozinha, pois está sempre atuando “pelo amor” (Gl 5.6),
tornando-se um inigualável poder dinâmico na vida do crente. A prova de
que uma fé é real e verdadeira é justamente essa - ela faz a pessoa agir. Mas,
de que maneira ela faz isso? Levando o crente a sentir o constrangimento do
amor de Cristo por si e a sentir a grandeza de sua dívida de gratidão para
com seu Deus. Como já dissemos, a doutrina cristã é graça, e a conduta cristã
é gratidão. O crente não faz o que faz a fim de ser justificado, mas não há
limites quanto àquilo que ele fará por seu Senhor, movido pela gratidão à
justificação recebida.
A verdade paradoxal é que não há “ensino de santificação” (conforme o
movimento holiness) na Bíblia, que transforme tão completa e
poderosamente a vida de um homem como o evangelho da justificação pela
fé somente. Em uma época de igrejas fracas e de crentes débeis, essa é uma
verdade digna de ponderação.
A VIDA DE FÉ
A história da teologia faz-nos pensar na fé apenas em conexão com
ajustificação, e essa conexão é fundamental. Mas a Bíblia ensina muito mais
do que isso, mostrando a fé como o princípio controlador de toda a vida
cristã. O que entendemos por vida cristã? O Novo Testamento retrata-a
como uma caminhada (Ef 4.1, 17; 5.2, 15); ela é também uma luta, pois o
mundo, a carne e o diabo fazem-nos constante oposição e precisam ser
derrotados. Nessa luta, cabe à fé - aquela reação do coração renovado, por
pensamento, desejo e resolução -
discernir o inimigo e oferecer-lhe resistência, buscando forças em Deus,
mediante a oração, para obedecer fielmente em qualquer tempo e para
recusar determinantemente a deixar-se esmagar pela tensão, pela
perplexidade e pelo desencorajamento. A vida de fé não é vivida em leitos
macios, mas nos campos de batalha. A epístola aos Hebreus é o estudo
clássico do Novo Testamento sobre a fé como um princípio de persistência
contra as pressões, no poder de uma esperança que gera aquilo que o mundo
chama de heroísmo - a corajosa aceitação do que é inaceitável, visando um
fim nobre. O tema é inesquecivelmente ilustrado no capítulo onze dessa
epístola, a galeria dos heróis do Antigo Testamento, que o autor sagrado
aplicou aos seus pressionados leitores, com um poder avassalador, no
décimo segundo capítulo. (Não admira que A. W. Pink tenha devotado a
esses dois capítulos de Hebreus um terço de sua exposição com mil e
trezentas páginas!) O que a epístola aos Hebreus diz sobre a fé pode ser
assim sumariado:
1. A fé é ‘’a certeza de cousas que se esperam, a convicção de fatos que se
não veem” (11.1) - onde a ênfase recai, como sempre o faz a Bíblia, sobre a
realidade dos objetos da fé e não sobre o grau de confiança que sentimos
quanto aos mesmos.
2. Especificamente, a fé honra e agrada a Deus, porque aceita o que Deus
diz sobre as coisas (criação, 11.3; galardões, 11.6; fidelidade de Deus às suas
promessas, 11.11; esta vida como uma viagem para o lar celestial, 11.13-16;
o fato que a obediência sempre tem razão de ser, mesmo quando parece sem
sentido, 11.17-19; etc.).
3. A fé chega-se a Deus ousadamente, por meio de Cristo (4.16; 10.19-22),
a fim de achar ajuda e forças para obter vitórias morais, espirituais e
circunstanciais (11.32-38; 4.16), e a fim de resistir à hostilidade interna e
externa da própria pessoa (o pecado, no íntimo, 12.1-4; e as perseguições, no
lado de fora, 10.32-34; 12.3).
4. A fé interpreta as tribulações como disciplina de Deus aos seus filhos
(12.5-11). A fé, longe de desanimar, regozija-se ao considerar essas
tribulações como prova de filiação da pessoa a Deus e como preparatórias à
paz e à felicidade por vir.
5. A fé encoraja-se com base nos exemplos de vida pela fé que nos foram
legados pela “grande nuvem de testemunhas” (12.1; 13.7), com base na
consideração da atual felicidade dessas mesmas testemunhas (12.23) e com
base no conhecimento de que, quando nos achegamos a Deus aqui na terra,
compartilhamos daquela presente adoração e comunhão no céu, que um dia
será nosso próprio lar (12.22-24). Em outras palavras, a fé dá valor à
comunhão dos santos.
6. A fé combate as tentações que levam à incredulidade, à apatia e à
desobediência, mantendo contra elas a atitude que alguns têm chamado de
“tenacidade”, mas que essa epístola chama de “diligência” e de
“perseverança” (no grego, hypomone - 6.11; 10.36; 12. 1). A fé em Deus
produz fidelidade a Deus.
Seguindo a informação de nomes de Hebreus 11, deveríamos ler todas as
biografias bíblicas como lições objetivas sobre a fé e a incredulidade, como
ambas se expressam, uma sob a forma de fidelidade e obediência e a outra
sob a forma de infidelidade e desobediência, bem corno a reação de Deus em
cada caso. Há aqui um tema que gastaria uma vida inteira de estudos, mas
não podemos continuar explorando o assunto agora.
Disse um estudante: “Às vezes, sinto que a minha fé é como um papel de
seda, que facilmente eu poderia atravessar com a mão”. Isso exprime
vividamente o que muitos sentem. Como pode a fé débil ser fortalecida, e a
pequena fé tornar-se grande? Isto não acontece por olhar para dentro de si
mesmo, a fim de examinar a própria fé. Ninguém pode fortalecer sua fé
mediante a introspecção, tal como ninguém pode promover o
desenvolvimento de uma planta arrancando-a do solo para inspecionar-lhe
as raízes. Antes, robustecemos a nossa fé olhando firmemente para os seus
objetos: as promessas de Deus na Bíblia; as realidades invisíveis de Deus; a
nossa vida com Ele, a nossa esperança de glória; o próprio Cristo vivo,
outrora na cruz, mas agora entronizado. “O nosso homem interior se renova
de dia em dia... não atentando nós nas cousas que se veem, mas nas que se
não veem; porque as que se veem são temporais, e as que se não veem são
eternas” (2 Co 4.16, 18).
Rememorar as ocasiões em que a ajuda divina foi experimentada no
passado também pode fortalecer a vida de fé no presente. Diz o autor da
epístola aos Hebreus: “Lembrai-vos, porém, dos dias anteriores” (10.32). “A
minha alma recusa consolar-se... Recordo os feitos do Senhor, pois me
lembro das tuas maravilhas da antiguidade” (Sl 77.2, 11). “Sinto abatida
dentro em mim a minha alma; lembro-me, portanto, de ti” (Sl 42.6). “Mas o
Senhor me assistiu... e fui libertado da boca do leão. O Senhor me livrará... e
me levará salvo para o seu reino celestial” (2 Tm 4.17, 18). John Newton
cantou:

Seu amor, em tempos passados,


Impede-me de pensar
Que Ele, por fim, me levará,
Em meios aos problemas, a afundar
Cada doce Ebenézer
Que posso recordar
Confirma seu bom desejo
De ajudar-me nas dificuldades

Porém, é bem possível que a melhor prescrição para o revigoramento da


fé debilitada seja aquela que nos é dada em Hebreus 12:
“Desembaraçando-nos de todo peso, e do pecado que tenazmente nos
assedia, corramos com perseverança a carreira que nos está proposta, olhando
firmemente para o Autor e Consumador da fé, Jesus [ou seja, Aquele que nos
capacita a viver uma vida de fé modelada na sua], o qual, em troca da alegria
que lhe estava proposta, suportou a cruz, não fazendo caso da ignomínia, e
está assentado à destra do trono de Deus.”

“Considerai, pois, atentamente, aquele...”


“Restabelecei as mãos descaídas e os joelhos trôpegos...”
“Tende cuidado, não recuseis ao que fala”
(Hb 12.1-3, 12, 25).

Aceitemos esses pensamentos como medicamentos. Apliquemos aos


nossos corações tantas doses diárias quantas forem necessárias – não existe
tal coisa como uma “overdose” desses medicamentos – e o benefício é
garantido. Além disso, tomemos os verbos registrados em itálico como um
exercício planejado. Diante de mim está uma cópia da famosa obra Royal
Canadian Air Force Exercise Plans for Physical Fitness - Plano de Exercício de
Aptidão Física da Força Aérea Real Canadense - com a instrução: doze
minutos diários para as mulheres, e onze minutos para os homens. Gastar
diariamente um período similarde tempo, para checarmos se o nosso
coração está aplicando as coisas que essa passagem de Hebreus nos ensina,
pode operar maravilhas em favor da aptidão e do vigor de nossa fé.
Experimente-o e comprove.
Das trinta e nove ocorrências do verbo "justificar", no Novo Testamento,
vinte e nove aparecem nas epístolas ou nas palavras de Paulo. O substantivo
"justificação" ocorre somente duas vezes (o que não precisa nos surpreender;
o grego sempre preferia verbos a substantivos); e, em ambas as ocasiões foi
Paulo quem o usou (Rm 4.25 e 5.18). Esses números sugerem de imediato
que a doutrina da justificação foi uma preocupação especial de Paulo, o que
também podemos confirmar. Essa era a maneira dele formular a mensagem
essencial do evangelho – através da morte de Cristo os pecadores culpados,
que com justiça antes estavam debaixo da ira, entram em um novo
relacionamento com Deus, como seus filhos amados, por causa de sua graça.
O Novo Testamento tem muitas maneiras de expressar isso, mas a mais
completa, clara e precisa é a doutrina paulina da justificação. Para Paulo, a
justificação é o ato divino de perdoar gratuitamente os pecados dos (ímpios e de
atribuir-lhes justiça, por sua graça, mediante a fé em Cristo, com base não em suas
próprias obras, mas na justiça representativa, redentora, propiciatória e vicária
do sangue derramado por Jesus Cristo em favor deles. (Quanto às várias partes
dessa definição, ver Rm 3.23-26; 4.5-8; 5.18, 19.) Para Paulo, esse é o âmago
do cristianismo.
Lutero chamava a justificação de "o artigo mediante o qual uma igreja
permanece de pé ou cai" . Paulo teria endossado completamente essa
descrição. De fato, a justificação é um tema fundamental, e o alvo do
presente estudo é salientar os pontos principais da exposição paulina.
SIGNIFICADO DA JUSTIFICAÇÃO
Na Bíblia, "justificar" significa "declarar justo". Ou seja, declarar acercade
um homem, em um tribunal, que ele não está sujeito a qualquer penalidade,
mas que ele é dotado de todos os privilégios devidos àqueles que sempre
observaram a lei. Justificar equivale ao ato de um juiz pronunciar a sentença
oposta à de condenação - a sentença de absolvição e de imunidade legal.
Trata-se de um ato de administração legal que estabelece a relação de uma
pessoa para com a lei. Assim é, seja o juiz um ser humano (cf. Dt 25.1; Pv
17.15), ou o próprio Deus (cf. Rm 8.33). A Igreja Romana tem sempre
afirmado que o ato divino de justificar envolve primariamente, se não
mesmo inteiramente, o ato de fazer justo, mediante a renovação espiritual
interna. No entanto, não há qualquer base bíblica ou linguística para esse
ponto de vista, embora ele retroceda pelo menos até Agostinho. Os
sinônimos de "justificar", usados por Paulo, são "imputar justiça", "perdoar"
(mais corretamente, "remir") pecados e "não imputar pecado" (Rm 4.5-8).
Todas essas expressões exprimem a ideia não de uma transformação
interior, mas a de uma outorga de um status legal e a de um cancelamento
de uma culpa legal. A justificação é uma decisão judiciária conferida ao
homem e não uma obra operada no interior do homem; é a dádiva divina de
uma posição e de um relacionamento para com Deus e não a dádiva de um
coração novo. Não há dúvida que Deus regenera àqueles a quem justifica,
mas essas duas coisas são distintas.
A justificação é o ato básico da bênção divina, pois salva do passado e
assegura o futuro. Por um lado, consiste no perdão dos pecados e no
término de nossa sujeição à inimizade e à ira de Deus, mediante a nossa
reconciliação com Ele (At 13.39; Rm 4.6, 7; 5.9ss.). Por outro lado, inclui a
outorga da posição de homem justo, juntamente com um direito a todas as
bênçãos que Deus promete aos justos. Paulo amplia essa noção ao vincular a
justificação à adoção dos crentes como filhos e herdeiros de Deus (Gl 4.4ss.;
Rm 8.14ss.). Estes dois aspectos da justificação aparecem em Romanos 5.1,
2, onde Paulo diz que a justificação nos confere paz com Deus (porque o
pecado foi perdoado) e também a esperança da glória de Deus (porque os
direitos do justo são conferidos ao crente). Essa esperança é uma certeza,
pois a sentença justificadora é a decisão judiciária do último dia, trazida ao
presente: é um veredito final, que jamais será revertido. "E aos que
justificou, a esses também glorificou" (Rm 8.30). Observemos que Paulo usa
o verbo "glorificar" no passado. Aquilo que Deus decidiu fazer é como se já o
tivesse feito! De acordo com isso, a pessoa justificada pode ter a certeza de
que coisa alguma jamais a separará do amor de seu Salvador e de seu Deus
(Rm 8.35ss.). A inquisição vindoura diante do tribunal de Cristo (Rm 14.10-
12; 2 Co 5.10) poderá privá-lo de galardões que uma maior fidelidade lhe
traria (1 Co 3.15), mas jamais poderá privá-lo de sua posição de pessoa
justificada. Ele está eternamente seguro.
BASE DA JUSTIFICAÇÃO
A doutrina da justificação, tal como Paulo a expõe, parece paradoxal,
quase chocante; pois nos informa que Deus, o santo Legislador e justo Juiz,
que revela uma inflexível e justa ira contra "toda impiedade e perversão dos
homens" (Rm 1.18), agora atribui justiça aos injustos e justifica os ímpios
(Rm 3.23, 24; 4.5). Sem dúvida, essa é uma boa notícia; mas, cabe ao perfeito
Juiz agir desse modo? Paulo responde a essa pergunta de forma clara, ao
afirmar que Deus justifica os pecadores de uma maneira cujo desígnio é
"manifestar a sua justiça, por ter Deus, na sua tolerância, deixado impunes
os pecados anteriormente cometidos; tendo em vista a manifestação da sua
justiça no tempo presente, para ele mesmo ser justo e o justificador daquele
que tem fé em Jesus" (Rm 3.25, 26). A declaração é enfática, Pois o assunto
tanto é crucial quanto inesperado. O que Paulo está dizendo é que o
evangelho, que proclama uma aparente violação da justiça divina, pelo
próprio Deus, é na verdade uma revelação de sua justiça. Longe de criar um
problema acerca da justiça do procedimento de Deus, na verdade resolve um
problema.
O evangelho esclarece, como nunca fora feito no Antigo Testamento, as
bases justas do perdão divino e da aceitação dos que creram em Cristo tanto
antes quanto depois de sua vinda. O evangelho demonstra como um Deus
justo pode justificar aos pecadores crentes.
EXPLICAÇÃO DA JUSTIFICAÇÃO
Como isto é possível? Mediante o pleno desencargo das reivindicações
que a lei de Deus faz aos pecadores - em outras palavras, com base em uma
real e autêntica justiça; pois atender às reivindicações da lei de Deus é o
significado básico e primário da justificação. A única maneira pela qual a
justificação pode ser justa é pela satisfação da lei, no que concerne aos
indivíduos justificados. A lei, porém, impõe uma dupla exigência aos
pecadores: requer a plena obediência deles aos seus preceitos, como
criaturas de Deus, e também que eles como transgressores, suportem
plenamente a sua penalidade. Como poderiam eles satisfazer essa dupla
exigência? A resposta é que ela foi satisfeita pelo Senhor Jesus Cristo, que
agiu em nome deles. O eterno Filho de Deus nasceu "sob a lei" (Gl 4.4), a fim
de que pudesse render dupla submissão à lei, em lugar de seu povo. Ambos
os aspectos dessa submissão são indicados nas palavras de Paulo:
''Tornando-se obediente até à morte" (Fp 2.8). A vida de retidão de Cristo
culminou em sua morte, a morte própria dos injustos, segundo a vontade de
Deus. E levou sobre Si a maldição penal da lei, em lugar dos homens (Gl
3.13), a fim de fazer propiciação pelos pecados humanos (Rm 3.25).
Assim, "por um só ato de justiça" - a vida e a morte do Cristo imaculado -
"veio a graça sobre todos os homens para a justificação que dá vida" (Rm
5.18). Em virtude da justiça de Cristo, realizada por Ele como representante
dos homens, nomeado por Deus, "a justiça que procede de Deus" (Fp 3.9) é
outorgada aos crentes como um dom gratuito (Rm 1.17; 3.21, 22; 5.17; cf.
9.30; 10.3-11). Em outras palavras, eles recebem de Deus o direito de serem
tratados, conforme fora prometido, não mais como pecadores, mas como
justos. Por essa razão, eles se tornam "justiça de Deus" em e através dAquele
que "não conheceu pecado" pessoalmente, mas que, representativamente, foi
feito pecado (foi tratado como pecador e punido) em lugar deles (2 Co 5.21).
Esse é o pensamento expresso pela tradicional frase ''a imputação da
retidão de Cristo" - a saber, que os crentes são justos (Rm 5.19) e são
possuidores de retidão (Fp 3.9) aos olhos de Deus (Rm 4.11). E isso não por
serem justos em si mesmos, mas porque Cristo, o Cabeça deles, foi justo
diante de Deus, e eles foram unidos a Ele, participando assim da posição e da
aceitação dEle aos olhos de Deus. A justiça de Cristo torna-se a justiça dos
crentes, no sentido de que são aceitos e galardoados conforme é digna de ser
aceita a justiça de Cristo, a sua perfeita obediência ao Pai. A imputação da
retidão de Cristo aos crentes, nesse sentido, não é uma arbitrária ficção
legal, conforme algumas vezes tem sido alegado, porque está fundamentada
na autêntica união entre os crentes e Cristo. Os crentes estão justificados
"em Cristo" (Gl 2.17). Deus os considera justos, declarando-os como tais, não
porque eles tenham guardado pessoalmente a sua lei (o que seria um falso
juízo), mas porque Ele os considera unidos pela fé Àquele que observou
representativamente a lei (e este é um juízo veraz). Assim, os pecadores são
justificados justamente, devido à observação obediente de Cristo à lei e pelo
derramamento do seu sangue. Sobre isso deve repousar a certeza de sua
presente e futura salvação.

Em nada ponho a minha fé,


Senão na graça de Jesus.

Jesus, teu sangue e tua justiça


São minha beleza e gloriosa vestimenta;
Em meio a um mundo hostil, assim vestido
Com gozo elevarei minha fronte.
MEIOS DE JUSTIFICAÇÃO
Paulo diz que a fé em Cristo é o meio através do qual a retidão é recebida
e a justificação é outorgada. Os pecadores são justificados "por" ou "através"
da fé (no grego, dia e ek pisteõs ou pistei). A fé não é a base da justificação; se
o fosse, a fé tornar-se-ia uma obra meritória, e Paulo não teria sido capaz de
descrever o crente como aquele que "não trabalha, porém crê" (Rm 4.5).
Antes, a fé é a mão vazia e estendida que recebe a retidão ao receber a Cristo.
Paulo cita o caso de Abraão - "...que creu em Deus, e isso lhe foi imputado
para justiça'' - a fim de provar que um homem é justificado quando a sua
alma descansa na graciosa promessa de Deus
(Gl 3.6; Rm 4.3ss., citando Gn 15.6). O contexto e o escopo do argumento,
em Romanos 4, mostram que quando Paulo citou esse versículo, o qual
ensina que a fé de Abraão lhe "foi imputada... para justiça" (Rm 4.5, 9, 22), o
que ele queria que entendêssemos era que a fé - a total dependência na
promessa divina (v. 18ss.) - foi o motivo e o meio daquela justiça ter sido
imputada a Abraão. Paulo não estava sugerindo que a fé, considerada como
retidão ou como substituta da retidão, fosse a base da justificação; a
discussão de Romanos 4 não versa sobre a base da justificação, e, sim, sobre
o meio de assegurá-la. Já citamos textos de Romanos 3 e 5, onde a base da
justificação é discutida, a fim de mostrar que, de acordo com Paulo, não é
sobre a nossa fé, mas sobre a retidão de Cristo, que a nossa justificação está
alicerçada.
Um comentário, tão conciso quanto me é possível fazê-lo, sobre a
maneira de Paulo usar as palavras, pode esclarecer o que é abordado em
Romanos 4. As cartas de Paulo revelam ter sido ele um homem dotado de
mente clara e vigorosa, que sabia o que queria dizer e tinha o instinto de
comunicador, para fazer exposições bem ordenadas e persuasivas. Mas ele
também não estava interessado na linguagem e na habilidade verbal (cf. 1
Co 2.1-4; 2 Co 10.10). E, porque se dirigia a pessoas comuns, utilizou-se de
uma linguagem um tanto livre, com poucas definições, sem termos técnicos,
sem preocupação com a elegância, além do seu hábito (talvez não consciente;
e todos fazemos isso mais do que percebemos) de repetir vocábulos que
muito significavam para ele, usando-os em sentidos levemente diferentes.
Um exemplo disso é a frase "primogênito de toda a criação", em Colossenses
1.15, onde primogênito é termo usado exclusivamente para significar
"existente antes de"; mas, no verso 18, "primogênito de entre os mortos" é
usado para indicar que Jesus foi o primeiro a ressuscitar dentre os mortos.
As Testemunhas de Jeová, que são arianas, afirmam que primogênito deve
ter o mesmo sentido em ambas as ocorrências e deve significar, no verso 15,
que o Filho foi a primeira de todas as criaturas. A explicação de Paulo sobre
"primogênito", no verso 16 ("pois nele foram criadas todas as cousas") anula tal
sentido e, sem dúvida, foi dada com esta intenção. Paulo deve ter percebido
a ambiguidade; mas nós temos de admitir que foi o uso um tanto frouxo que
ele fez desse vocábulo que possibilitou a ambiguidade.
Além disso, Paulo era um escritor muito conciso, mais do que qualquer
outro no Novo Testamento. Com frequência, ele dá apenas um esboço
simples de um argumento analítico, deixando que seu leitor extraia por si
mesmo as deduções e as implicações. Todavia, ele sempre diz o bastante para
esclarecer as coisas; e aquele cuja atenção acompanha o fluxo lógico do
pensamento, não entenderá mal as ocasionais estranhezas e ambiguidades
de linguagem do apóstolo.
Ora, em Romanos, Paulo seguiu seu costume: tudo ali é conciso, e as
palavras-chaves foram usadas em sentidos diversos, ainda que relacionadas.
Por exemplo, no espaço de sete versículos, a palavra lei é usada para indicar:
(a) o mandamento de Deus (7.22, 25; 8.3); (b) a força contínua, tanto do
pecado (7.23, 25; 8.2) como da firme intenção, embora infrutífera ("a lei da
minha mente", 7 .23), como do Espírito (8.2, a menos que "a lei do Espírito",
conforme alguns pensam, signifique a mensagem do evangelho); e (c) um
processo repetitivo (7.21). Justiça é outra palavra cujo significado varia. Ela é
usada para indicar: (a) aquela qualidade que Deus demonstra quando julga
retributivamente o pecado (3.25; cf. 2.5; 3.5, 6), e também quando com
justiça justifica o ímpio (3.26); (b) o dom divino da aceitação, livremente
outorgado aos crentes, por causa de Cristo (5. 17), de tal modo que agora,
apesar de seus pecados, eles estão em "boas relações" com Deus; e (c) a
obediência que o homem deve a Deus (6.13, 16, 18, 20; 14.17).
Quando, em Romanos 4, Paulo afirma que Deus "atribui justiça" aos
homens, parece que ele usa a palavra justiça no sentido (b), sobre a condição
aceitável que Abraão "teve" e que também podemos ter pormeio da fé (vv.
11, 23-25). Essa expressão, então, significa o mesmo que "justificar" - verbo
usado por Paulo quatro vezes, entre Romanos 3.24 e 3.31. A tradução que
declara ter sido a fé que Abraão possuía "atribuída como justiça" (v. 5) não é
boa. A palavra "como" sugere equivalência ou identidade, como se "justiça"
estivesse sendo usada no sentido (c). "Como" representa a preposição grega
eis, que significa "em direção a" ou "com o propósito de", numa grande esfera
de contextos. A tradução "para justiça" (vv. 3, 9, 22) é uma maneira melhor
de traduzir aquela preposição, ainda que "atribuir" (v. 5) é um
desenvolvimento da antiga palavra "imputar". Paulo não estava ensinando
aqui que a fé é a nossa justiça, e, sim, que somos justificados por crer.
Certamente que a fé é o motivo e o meio da nossa justificação, mas a base de
nossa justificação é a obediência de Cristo (5.19), a sua justiça, conforme o
sentido (c) (v.18) e a sua propiciação por nossos pecados (3.25).
PAULO E TIAGO
Alguns têm pensado que Tiago 2.21-25 contradiz as declarações de Paulo,
por ensinar que Deus aceita os homens sob a dupla base de fé e de obras.
Entretanto, o estudo desses versículos, em seu contexto, nos mostra que não
era isso que Tiago queria dizer. Devemos lembrar que Paulo é o único
escritor do Novo Testamento a usar a palavra "justificar" para indicar,
regularmente, o ato divino de aceitar os homens. Mas, quando Tiago diz "foi
justificado", estava usando o termo no sentido mais geral de ser provado ou
demonstrado justo, em relação às reivindicações feitas em favor de si mesmo
(Isso assemelha-se muito ao que se lê em Mateus 11.19). Ser justificado,
neste sentido, não quer dizer ser aceito por Deus como justo, e, sim, ser
visto como crente genuíno. No sentido usado por Tiago, um homem é
justificado quando a sua vida dá provas de que tem o tipo de fé viva e
operante que lhe garante a aceitação diante de Deus. Tiago cita Gênesis 15.6
com o mesmo propósito com que Paulo o fez - mostrar que foi a fé que
assegurou a aceitação de Abraão como justo (2.23). Porém, diz ele, essa
declaração bíblica "se cumpriu" (ou seja foi confirmada e demonstrada
verdadeira pelos eventos posteriores) cerca de trinta anos mais tarde, ao ser
Abraão "justificado por obras, quando ofereceu sobre o altar o próprio filho,
Isaque" (2.21). O ato de Abraão, naquela ocasião, evidenciou a realidade de
sua fé e também de ter sido aceito diante de Deus. O ponto frisado por
Tiago, em toda aquela porção (2.14-26), foi que a mera profissão de fé,
desacompanhada das boas obras que averdadeira fé produz, não provê base
suficiente para inferirmos que um homem qualquer esteja salvo - algo com o
que Paulo certamente concordaria.
CENTRALIDADE DA JUSTIFICAÇÃO
A razão pela qual a doutrina da justificação ocupa posição central no
evangelho é que a relação básica entre Deus e nós, como suas criaturas
racionais, é a relação de Legislador e Juiz; de modo que a nossa posição
diante dEle sempre é determinada pela sua santa lei. O primeiro problema
do pecador, pois, é entrar em boas relações com a lei de Deus, porquanto,
antes disso, ele não pode desfrutar de relações corretas com o Deus da lei.
Enquanto a lei condenar o homem, a verdadeira adoração e a comunhão com
Deus ser-lhe-ão impossíveis. Entretanto, o evangelho da justificação resolve
o problema do homem, ao mostrar-lhe como, mediante a fé em Cristo, a voz
condenadora da lei, que é contra ele, pode ser silenciada para sempre. Agora,
pois, ele pode se aproximar do Criador, sem qualquer temor, a fim de adorá-
Lo.

Devedor à tua misericórdia, somente,


Canto a graça da aliança;
Não temo, revestido com a tua justiça,
Oferecer-Te tudo e até mesmo a mim.

Terrores da lei e terrores de Deus


Comigo nada mais têm a ver;
O sangue e a obediência do meu Salvador
Ocultaram todas as minhas transgressões.

Isso posto, ter alguém o conhecimento da sua própria justificação é a base


da verdadeira religião. Sempre foi e sempre será assim. A questão não é:
Pode alguém expressar a doutrina da justificação com perfeita exatidão
bíblica? (Conforme já vimos, essa é uma tarefa que requer cuidado.) Antes, a
questão é: Conhece uma pessoa a realidade dessa doutrina, em sua
experiência? A verdadeira religião não começa enquanto não se impõe a
indagação: Como poderei livrar-me dos meus pecados? Ora, esta indagação
existe somente naqueles que sabem que a resposta é: Não por verificar o que
posso fazer por mim mesmo, mas por depositar minha confiança em Jesus e
naquilo que Ele fez por mim.
Regeneração, tal como tantas outras palavras-chaves da Bíblia, é uma
palavra ilustrativa: regeneração, segundo nascimento. Ela denota um novo
começo de vida. Várias opiniões têm sido defendidas ao longo da história
cristã, acerca do que está envolvido e sobre quando e como ocorre a
regeneração. Faríamos bem em começar por olhar de relance algumas dessas
opiniões.
PESQUISA HISTÓRICA
Nos primeiros dias da igreja, a regeneração era uniformemente concebida
como a bênção simbolizada e transmitida pelo rito do batismo. Os Pais da
Igreja pensavam que ela abrangia tanto a vivificação espiritual como a
remissão de pecados (o que, na realidade, é um aspecto da justificação). Os
cristãos Medievais, por outro lado, definiram a regeneração mais
acuradamente como uma infusão da graça divina e distinguiram-na
corretamente da remissão de pecados. Mas incluíram ambas sob a
justificação, que eles compreendiam equivocadamente como a obra de Deus
tornar os homens justos.
Os Reformadores distinguiram a justificação da regeneração; a primeira
como a libertação da culpa, e a segunda como a libertação do domínio do
pecado; e insistiram que nenhuma dessas bênçãos era possuída, nem mesmo
por pessoas batizadas, onde a fé estivesse ausente. Calvino definiu a
regeneração em termos tão amplos ao ponto de incluir tudo quanto está
envolvido na recriação do homem, por parte de Deus, à imagem de Cristo,
aqui na terra - vivificação espiritual, conversão consciente (arrependimento
e fé) e a santificação ao longo da vida. Outros reformadores, contudo,
limitaram o termo à obra inicial de Deus ao ressuscitar os espiritualmente
mortos.
No século seguinte, a época dos Puritanos, tornou-se comum tratar a
regeneração e a chamada eficaz como sinônimos para a primeira obra da
graça que gera a fé, assim como tratar a conversão como equivalente a
ambas as coisas. Isso é refletido na maneira como uma versão bíblica,
publicada em 1611, substitui a expressão “sede convertidos”, usada nas
primeiras versões protestantes da Bíblia, pela expressão gramaticalmente
mais correta, “convertei-vos”. O que nos importa saber é que no Novo
Testamento, o verbo traduzido por “convertei-vos” sempre é usado na voz
ativa, dando a entender o ato do homem voltar-se para Deus, e não a obra
divina em fazer o homem voltar-se para Ele. A teologia pode justificar a
explicação da conversão do homem em termos de ser convertido; mas,
mesmo assim, só podemos lamentar que a teologia tenha sido usada para
justificar a tradução equivocada desses versículos.
A partir do século XVII, os teólogos reformados têm-se inclinado a
distinguir a regeneração e o novo nascimento. Eles definiram a regeneração
como o primeiro ato de Deus, insuflando vida espiritual em almas mortas,
abaixo do nível da consciência. Entenderam o novo nascimento como a
primeira manifestação consciente dessa nova vida, por meio de nova
compreensão espiritual, novos atos e afeições - os exercícios iniciais do
arrependimento e da fé. Com base nessa definição mais restrita, eles têm
insistido fortemente que a regeneração deve ser relacionada à fé como a
causa ao efeito. Negue isto, eles dizem, e você terá negado que a fé é um dom
da graça divina. E o que estará sendo dito, nesse caso, é que o homem é o seu
próprio salvador, porquanto a sua fé tornou-se o fator decisivo em sua
salvação, tendo se tornado “sua própria feitura”.
O CONCEITO BÍBLICO
Temos examinado de relance algumas das ideias relativas à regeneração,
defendidas pelos cristãos através dos séculos. Agora, porém, voltemo-nos
para as Escrituras. Como a Bíblia apresenta a regeneração?
O substantivo assim traduzido significa renascimento (no grego,
palingenesia). Ele se refere à renovação criativa operada pelo poder de Deus e
ocorre por duas vezes. Em Mateus 19.28, refere-se à vindoura renovação do
cosmos, no fim das épocas - aquilo que Pedro chama de “restauração de
todas as cousas” (At 3.21). Porém, em Tito 3.5, onde Paulo refere-se a Deus
como nos tendo salvo “mediante o lavar regenerador e renovador do Espírito
Santo”, está claramente em foco a vivificação espiritual do crente. Essa é a
referência à palavra “regeneração” que nos interessa no momento.
O contexto ao qual pertence a ideia da regeneração é o conceito bíblico do
aspecto subjetivo da redenção como uma renovação. No Antigo Testamento,
encontramos Deus prometendo que daria ao seu povo um coração novo e
que poria neles um espírito novo (Ez 36.26) - a fim de circuncidar seus
corações, por gravar neles as suas leis, e, desta forma, levá-los a conhecer, a
amar e a obedecê-Lo. (Ver Dt 30.6; Jr 31.31-34; Ez 36.25-27.) No Novo
Testamento, essa renovação prometida torna-se uma realidade por meio da
união com Cristo. Pois, “se alguém está em Cristo, é nova criatura” (2 Co
5.17; ver também Gl 6.15).
Vale a pena fazermos aqui uma pausa, a fim de considerarmos a análise
exposta por B. B. Warfield, sobre essa mudança, como “uma radical e
completa transformação operada na alma (Rm 12.2; Ef 4.23) pelo Espírito
Santo (Tt 3.5; Ef 4.24), em virtude da qual nos tornamos ‘novos homens’ (Ef
4.24; Cl 3.10), não mais conformados com este mundo (Rm 12.2; Ef 4.22; Cl
3.9), mas antes, em santidade e conhecimento da verdade, criados segundo a
imagem de Deus (Ef 4.24; Cl 3.10; Rm 12.2)” (Biblical and Theological Studies
- Estudos Bíblicos e Teológicos - p. 351). Essa obra de renovação acompanha
o crente por toda a sua vida terrena, pois o homem interior “se renova de dia
em dia” (2 Co 4.16), num processo contínuo, comumente chamado
“santificação”. A regeneração é o ato inicial pelo qual esse processo é
começado.
No Novo Testamento, o principal expositor da regeneração é o apóstolo
João. O termo grego por ele usado para exprimir a ideia é gennaõ, que pode
significar tanto “gerar” quanto “dar à luz”. Nicodemos compreendeu que
nosso Senhor estava falando de um novo nascimento (Jo 3.4). Em sua
primeira carta, João claramente tinha em mira uma nova geração (cf. 1 Jo
3.9). O homem é gerado ou nascido “de novo” - ou, mais provavelmente,
nascido “do alto” (Jo 3.3, 7) – ou “do Espírito” (Jo 3.8; cf. v. 5), ou
simplesmente “de Deus” (Jo 1.13; nove vezes em 1 João). O verbo “nascer”,
no grego, em cada instância, é usado no aoristo ou no perfeito, a fim de
denotar o caráter decisivo e completo da regeneração. Com o devido respeito
a Calvino, a regeneração não pode ser considerada um processo inacabado.
Tal como o nascimento natural, se a regeneração ocorreu, ela ocorreu
completamente. A pessoa nasce de novo em um certo momento e a partir de
então está espiritualmente viva.
De acordo com João, o que é o novo nascimento? Não é uma alteração ou
adição à substância ou às faculdades da alma, e, sim, uma drástica mudança
operada sobre a natureza humana caída, que leva o homem a ficar sob o
domínio eficaz do Espírito Santo e o torna sensível aDeus, o que ele
previamente não era. Não é uma mudança produzida pelo próprio homem,
da mesma forma que os infantes nada fazem a fim de induzir ou contribuir
para sua própria procriação e nascimento. Trata-se de um livre ato de Deus,
não provocado por qualquer mérito ou esforço humano (cf. Jo 1.12, 13; Tt
3.3-7), por ser totalmente um dom da graça divina.
A NECESSIDADE DA REGENERAÇÃO
Por que o homem precisa da regeneração? Porque, conforme nosso
Senhor explicou a Nicodemos, enquanto o homem permanece na “carne” (Jo
3.6) - isto é, permanece pecador como nasceu - não é capaz de entrar no
reino de Deus. Sem a regeneração, não existem atividades espirituais. Quem
não nasceu do alto não pode ver (compreender) o reino de Deus (o reino da
salvação), nem pode entrar nele (pela fé no Salvador) (Jo 3.3, 5). O que fica
implícito no fato que alguns recebem a Cristo é que nasceram de Deus (Jo
1.12, 13); pois não poderiam tê-lo feito de outra maneira. Paulo coloca a
questão nestes termos: “Ora, o homem natural [isto é, o não-regenerado]
não aceita as cousas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode
entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente” (1 Co 2.14). O
diálogo de Jesus com Nicodemos constitui um eloquente comentário sobre
esse texto. Os pecadores - incluindo os mais cultos e religiosos - não podem
receber as cousas do Espírito, que são as verdades atinentes a Cristo,
enquanto o próprio Espírito de Deus não os tiver tornado em novas
criaturas. Eis a razão pela qual Nicodemos e seus amigos judeus precisavam
do novo nascimento. Jesus lhe disse: “Não te admires de eu te dizer:
Importa-vos [plural] nascer de novo” (Jo 3.7).
FRUTOS DA REGENERAÇÃO
No diálogo entre Jesus Cristo e Nicodemos, registrado no evangelho de
João, o Salvador mostrou que não há qualquer atividade espiritual sem a
regeneração. Em sua primeira carta, João desenvolveu a verdade oposta de
que não há regeneração sem atividades espirituais. Os frutos da regeneração
são o arrependimento, a fé e as boas obras. Os regenerados creem
corretamente em Jesus Cristo (1 Jo 5.1). Eles praticam a justiça (2.29). Não
vivem uma vida caracterizada pelo pecado (3.9 e 5.18 – as expressões “não
vive na prática do pecado”, “não pode viver pecando” e “não vive em pecado”
exprimem ações habituais, conforme o verbo no tempo presente, no grego,
normalmente expressa, e não a impecabilidade absoluta, conforme 1 João
1.8-10 atesta. Os regenerados experimentam a vitória da fé sobre o mundo
(5.4). Eles amam os seus irmãos na fé (4.7). Esses, portanto, são os sinais
distintivos dos regenerados; pois ninguém pode agir dessa maneira se não
houver nascido de novo. Por conseguinte, sem esses sinais, não temos
qualquer base para considerar alguém regenerado. Todos aqueles em quem
esses sinais se fazem ausentes, sem importar o que aleguem, devem ser
julgados como filhos do diabo, como pessoas não-regeneradas (3.6-10). A
regeneração é conhecida por seus frutos.
Nisso, incidentalmente, encontramos uma resposta adequada à indagação
se a regeneração espiritual era uma realidade nos tempos do Antigo
Testamento. A natureza humana caída não era menos incompetente quanto
às coisas espirituais do que ela é atualmente. Se naquele tempo não
houvesse regeneração, então também não teria havido fé, e Hebreus 11
nunca poderia ter sido escrito.
FORMULANDO A REGENERAÇÃO
Parece que a ideia joanina da regeneração corresponde mais à definição
reformada comum da regeneração: uma operação secreta do Espírito Santo
sobre o pecador, tão inescrutável como o soprar do vento, mas
manifestando-se imediatamente por meio da fé em Cristo e por uma vida de
obediência e amor. Os regenerados (deixando de lado a questão dos
infantes) devem ser procurados entre aqueles que Deus submeteu à
mensagem do evangelho. A fé no evangelho e no Cristo do evangelho será a
primeira indicação de que teve lugar a regeneração, no sentido joanino.
Deveríamos observar que tanto Pedro quanto Tiago empregaram a figura do
novo nascimento em um sentido mais amplo, a fim de abordar a obra inteira
da chamada eficaz - aquele processo mediante o qual Deus não só capacita os
homens a receberem o evangelho, mas, realmente, os traz à fé, por meio do
evangelho, colocando-os como membros de sua família. É nesse sentido
mais amplo que Tiago escreve: “Segundo o seu querer, ele nos gerou pela
palavra da verdade” (Tg 1.18), e que Pedro refere-se aos crentes como
“regenerados, não de semente corruptível, mas de incorruptível, mediante a
palavra de Deus” (1 Pe 1.23). Porém, visto que João expõe o estudo clássico
sobre o assunto, seremos sábios ao modelarmos a nossa exposição à dele.
Desta forma, juntamente com T. C. Hammond, afirmaremos que a
regeneração é um ato de Deus através do qual uma alma passa por “uma
ressurreição espiritual para uma nova esfera de vida, na qual ela está viva
para Deus, unida com Ele em Cristo. Deus implantou na alma regenerada
um novo princípio de vida... Segundo essa interpretação, a conversão é a
expressão natural e inevitável... da nova natureza, transmitida pelo Espírito
de Deus. ‘Deus nos converte, e nós nos convertemos.’” (ln Understanding Be
Men, p. 140).
OS SINAIS DE VIDA
Uma das mais tristes experiências para uma esposa ou um esposo é um
parto de um natimorto, que é o aborto . Com frequência, há um momento de
expectativa quando um bebê nasce e todos esperam que ele chore e agite os
seus membros, então, mame o leite materno, mostrando estar bem vivo. Por
igual modo, nem toda alma “agitada” torna-se uma alma espiritualmente
nascida e viva. A prova de que a vida nova realmente começou precisa ser
buscada na conduta diária da pessoa. Os sinais mediante os quais uma
pessoa regenerada pode ser conhecida correspondem às ações naturais de
uma criança recém-nascida.
Primeiramente, o bebê chora instintivamente. A pessoa regenerada ora
instintivamente, clamando a Deus em atitude de dependência, esperança e
confiança, como um filho faz com seu pai. O evangelho que ela recebeu, ao
qual reagiu ao receber a Cristo como seu Salvador e Senhor, promete-lhe a
adoção na família de Deus (Gl 4.4, 5). Agora, faz parte de sua natureza tratar
Deus como seu Pai, trazendo a Ele todas as suas necessidades e desejos. Nós,
os crentes, os regenerados, temos recebido o Espírito de filiação, “baseados
no qual clamamos: Aba, Pai” (Rm 8.15). As orações do novo crente são
honestas e do fundo do coração, tal como sempre são todos os pedidos de
ajuda dos infantes. E, embora as suas orações possam tornar-se mais
intensas, à medida em que o crente vai amadurecendo, elas nunca deixam de
ser a atividade mais natural na qual ele se ocupa. Olhar constantemente para
Deus, como seu Pai celeste e conversar com Ele de todo coração é um sinal
de que a pessoa foi regenerada.
Em segundo lugar, o bebê mama instintivamente. A pessoa regenerada
também sente fome pelo alimento espiritual – primeiramente o leite, e,
então, a carne da Palavra revelada de Deus (1 Pe 2.2; Hb 5.12-14; 1 Co 3.2).
Ela ouve a Palavra pregada, ensinada e exposta; ela lê a sua Bíblia, bem como
os livros que lançam luz sobre a Bíblia; ela faz perguntas acerca da Bíblia,
memoriza-a, medita nela, esforçando-se por extrair dela tudo quanto for
bom. “Quanto amo a tua lei! É a minha meditação todo o dia... Quão doces
são as tuas palavras ao meu paladar! Mais que o mel à minha boca” (Sl
119.97, 103). Anelar constantemente pela Palavra de Deus e desejar
aprofundar-se nela, portanto, é o segundo sinal de que a pessoa foi
regenerada.
Em terceiro lugar, o bebê se movimenta, virando a cabeça, flexionando os
membros, e, mais tarde, rolando, engatinhando, cambaleando, dando os
primeiros passos, explorando. De modo semelhante, a pessoa regenerada
movimenta-se na esfera espiritual, na qual penetrou, selecionando
prioridades, remodelando a própria vida à luz de sua nova lealdade,
explorando as relações cristãs e os modos de adoração, usando sua iniciativa
para o Senhor, em vários tipos de serviço e testemunho. Um terceiro sinal de
que alguém foi regenerado, portanto, é mostrar-se constantemente “zeloso
de boas obras” (Tt 2.14) e estar procurando e tentando fazer mais e mais
para o reino de Deus.
Em quarto lugar, o bebê descansa, relaxando completamente e dormindo
profundamente nos braços de uma pessoa adulta, ou onde quer que se sinta
seguro. Por semelhante modo, a pessoa descansa na certeza de que os braços
eternos de Deus a estão protegendo, sendo capaz de passar os seus dias -
sem importar as pressões que venham sobre ela - sem pânico e em paz.
“Como a criança desmamada se aquieta nos braços de sua mãe, como essa
criança é a minha alma para comigo” (Sl 131.2). “Aos seus amados ele o dá [o
pão] enquanto dormem” (Sl 127.2). Viver constantemente em tranquilo
contentamento, interessado apenas em ser fiel e obediente, permitindo que
Deus controle o resultado, é o quarto sinal de que uma pessoa foi
regenerada.
Jesus ensinou que ser semelhante a uma criança perante Deus -
expressando confiança, receptividade e dependência singulares - é a única
atitude mediante a qual entramos no reino de Deus e vivemos a vida do
reino (Mt 18.3, 4). É claro que essa atitude de ser semelhante a uma criança
(que não deve ser confundida com infantilidade, algo muito menos
admirável) é vista nos quatro sinais da pessoa regenerada, conforme
acabamos de investigar. Também é patente que essa quádrupla disposição é
a raiz da qual crescem aqueles frutos da regeneração, salientados por João: a
docilidade diante de Deus, que apreende e mantém a fé apostólica em Cristo;
a preocupação por agradar a Deus, que se expressa no renunciar ao pecado e
no praticar a retidão; e a apreciação pelo amor salvífico de Deus, que gera o
amor abnegado por nossos irmãos na fé, um reflexo do amor divino. Ser
semelhante a uma criança perante Deus é exatamente o que está envolvido
na regeneração, visto que o evangelho a reivindica e é, nem mais nem
menos, a obra de Deus em nossos corações, levando-nos a aceitar o
evangelho de todo o coração. Se ao menos Deus nos tornasse simples o
bastante para vermos isso e, tendo-o visto, nunca mais o perdermos de
vista! Então o mundo cristão seria um lugar bem diferente.
Todos nós nos temos sido envolvidos em discussões acerca da eleição, e,
por experiência, sabemos como elas se desenvolvem. Textos paulinos são
erguidos como pendões; as palavras "calvinista" e "arminiano" voam como
balas. As pessoas ficam irritadas ao ponto de corarem; e todos terminam
perturbados e indignados. Algumas vezes, quando nos lembramos desses
infelizes momentos, ressentimo-nos da própria existência da doutrina que
ocasiona sentimentos tão exaltados.
Em tais ocasiões, vemos a questão como um estorvo inútil, não servindo a
nenhum propósito senão ao de dividir os crentes, que de outro modo são
unidos, ao de dar aos agnósticos base para criticarem o ponto de vista
cristão acerca de Deus e ao de colocar pedras de tropeço na vereda daqueles
que procuramos levar a Cristo. Quase poderíamos censurar Deus por haver
incluído essa doutrina na Bíblia e sentir-nos seguros de que o curso mais
sábio de ação, para o futuro, seria apagarmos da mente essa doutrina e
tentarmos fazer com que outros parem de pensar e de falar sobre ela. Tendo
concluído que os nossos debates sobre a doutrina da eleição não são
edificantes, chegamos à conclusão de que a própria doutrina não é edificante
e nos sentimos seguros de que faz parte de nosso dever cristão não dar
importância à mesma, insistindo que ela não é uma doutrina relevante e que
deveríamos, todos, dedicar nossas mentes a algo mais proveitoso.
PODEMOS ELIMINAR ESSA DOUTRINA?
Sem dúvida é fácil fazermos o assunto da eleição sair de suas proporções,
o que por muitas vezes tem acontecido. Mas é uma outra questão, se esse
fato nos dá base para desprezá-la, como se realmente ela não fosse
importante. Não parece que Paulo teria pensado dessa maneira. Se
examinarmos novamente os textos onde ele aborda a eleição, veremos que a
sua atitude sobre este assunto era bastante diferente da nossa. Para
começar, ele não criava um problema nem ficava embaraçado acerca do
assunto. Não se sentia envergonhado nem perplexo. Simplesmente o
aceitava e o expunha como uma parte integral do seu evangelho. E, quando
introduziu esta doutrina em seu ensino, ele tinha apenas um intuito - ajudar
os crentes a perceberem quão grande é a graça que os salvou e levá-los a uma
reação digna, na vida e na adoração. (Pode-se ver isso em Rm 8.28-11.36; Ef
1.3-14; 1 Co 1.26-31; 1 Ts 2.13, 14; 2 Tm 1.9, 10.)
RELEVÂNCIA PRÁTICA
Algumas vezes, a ideia de eleição levou Paulo a louvar: "Bendito o Deus e
Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que... nos escolheu nele antes da fundação
do mundo, para sermos santos... e em amor nos predestinou para ele, para a
adoção de filhos... para louvor da glória de sua graça...'' (Ef 1.3ss.). Em outras
vezes, Paulo traz à tona o assunto da eleição a fim de infundir certeza e
encorajamento ("conforto", no sentido bíblico mais amplo do termo) nos
crentes: "Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus? É Deus quem os
justifica. Quem os condenará?... Quem nos separará do amor de Cristo?"
(Rm 8.33ss.). Também algumas vezes, Paulo fez da eleição uma base para
um apelo ético: "Revesti-vos, pois, como eleitos de Deus... de ternos afetos de
misericórdia, de bondade, de humildade, de mansidão, de longanimidade..."
(Cl 3.12). Esse manuseio do nosso tema adverte-nos a revisar nossas
apressadas ideias anteriores. Pois, dificilmente poderemos estar corretos ao
tratar a doutrina da eleição como um estorvo que não nos edifica, ao passo
que nas mãos de Paulo ela se torna um motivo e a mola mestra da adoração,
da segurança e da vida santa dos crentes. Na verdade, uma doutrina dotada
dessa tendência salutar não pode deixar de ser importante e edificante.
Porém, aquilo que é demonstrado pela nossa experiência (e por muito da
história da igreja) é que a eleição é uma verdade que mui facilmente pode ser
mal compreendida e aplicada.
NÃO PARA SATISFAZER A CURIOSIDADE
O fato é que a doutrina da eleição, por lidar com os segredos mais
profundos da vontade de Deus, é alimento pesado: muito nutritivo para
aqueles que o podem digerir, mas muito indigesto para aqueles cujo sistema
espiritual está fora de ordem. E os sintomas da indigestão, deveríamos dizer,
não aparecem somente quando essa doutrina é rejeitada, mas igualmente
quando é mal aplicada. O ensino bíblico sobre a eleição visa tornar os crentes
humildes, confiantes, alegres e ativos, mas essa doutrina pode ser
asseverada e propagada de uma maneira que os torna orgulhosos,
presunçosos, complacentes e preguiçosos. Assim, essa doutrina pode tornar-
se uma pedra de tropeço para aqueles que a acolhem, não menos do que para
aqueles que se opõem a ela. No tocante ao conteúdo e à aplicação dessa
doutrina, faremos bem em prestar atenção à advertência prefixada por
Calvino no capítulo de suas Institutas que tem este impressionante título:
"Da eterna eleição, pela qual Deus predestinou alguns para a salvação e
outros para a perdição". Disse ele:

O assunto da predestinação, cercado por consideráveis dificuldades,


torna-se perplexo e, a partir disso, perigoso por causa da curiosidade
humana, que não pode ser impedida de vaguear por veredas
proibidas... Aqueles segredos de sua vontade, que Lhe houve fazer
conhecidos, nos são revelados em sua Palavra – revelados até onde Ele
sabia que seriam proveitosos para o nosso interesse e para o nosso
bem-estar... Desejar conhecimento sobre a predestinação senão aquele
exposto pela Palavra de Deus, é tão enfatuado quanto tentar andar por
onde não há qualquer vereda ou buscar luz onde só há trevas - que este
seja pois o nosso primeiro princípio... A melhor regra de sobriedade
consiste não somente em aprender a seguir até onde Deus nos guia,
mas também em aprender a não prosseguir além do que Ele ensina,
tentando nesse prosseguimento ser mais sábios... (III. xxi.1).
Por conseguinte, de maneira humilde, reverente e atenta, pondo de lado
tanto quanto possível o orgulho partidário, o preconceito e as memórias
sobre debates passados, voltemo-nos para a Palavra de Deus, a fim de
vermos o que ela diz e o que ela não diz sobre este assunto. Que doutrina da
eleição a Bíblia nos apresenta?
1. A IDEIA DA ELEIÇÃO
O verbo "eleger" ou "escolher" (no hebraico, usualmente é bachar; na
Septuaginta e no Novo Testamento grego, usualmente é eklegomaz) exprime
a ideia de selecionar ou escolher alguma coisa ou alguém dentre um dado
número de alternativas disponíveis. Assim, no Antigo Testamento,
encontramos Davi escolhendo cinco seixos do ribeiro, para com eles lutar
contra Golias (1 Sm 17.40); encontramos o escravo fugitivo selecionando
um lugar de refúgio "onde lhe agradar" (Dt 23.16); e encontramos Josué
convidando Israel, se não quisessem servir ao Senhor, a escolherem à qual
dos deuses pagãos se inclinariam (Js 24.15). Em sentido semelhante, lemos
em ambos os Testamentos a respeito de Deus escolhendo homens para Si
mesmo, a fim de realizarem certas tarefas e desfrutarem de certos
privilégios predeterminados.

Gratuita e Incondicional
Essa escolha divina de pecadores, para um destino predeterminado, é
apresentada como um ato da graça, isto é, o favor e o benefício de Deus. A
escolha divina não foi ocasionada por feitos meritórios da parte daqueles a
quem Ele escolhe.
Aeleição vem pela graça, e a graça exclui o mérito humano de maneira
absoluta. Declara Paulo que a eleição da graça "não é pelas obras; do
contrário, a graça já não é graça" (Rm 11.5, 6). Isso posto, a graciosa eleição
divina é gratuita e incondicional, pois não depende nem é suscitada ou
constrangida por qualquer coisa naqueles que são seus objetos: Trata-se de
uma resolução espontânea da parte de Deus, tal como se deu com suas
decisões de criar e de redimir. Deus não deve aos pecadores qualquer tipo de
misericórdia, mas somente condenação. Portanto, não lhes faz injustiça
alguma quando decide não abençoá-los. No entanto, é uma maravilha da
graça gratuita, quando Ele os abençoa. Por isso Paulo argumentou: "Há
injustiça da parte de Deus [em decidir abençoar um e outro não]? De modo
nenhum. Pois ele diz a Moisés: Terei misericórdia de quem me aprouver ter
misericórdia, e compadecer-me-ei de quem me aprouver ter compaixão.
Assim, pois, não depende de quem quer, ou de quem corre, mas de usar Deus
a sua misericórdia... Logo, tem ele misericórdia de quem quer" (Rm 9.14-18).
O fato que Deus resolve abençoar certos pecadores culpados não pode ser
explicado sob outros termos senão nos seus próprios: "Segundo o seu
beneplácito que propusera em Cristo'' (Ef 1.9). Eles foram ''predestinados
segundo o propósito daquele que faz todas as cousas conforme o conselho da
sua vontade" (v. 11). Se você, como crente, chegar a indagar: Por que Deus
escolheu a mim? - Mas, Jesus, eu? Por quê? - a resposta da Bíblia será que,
na misericórdia de Deus, isso Lhe pareceu bem. E isso põe fim à questão. Por
esta altura, pois, você deve cessar de fazer perguntas e começar a adorar a
Deus e a dar-Lhe graças.
A Bíblia salienta o caráter gratuito e não-constrangido da eleição divina,
não só mediante declarações claras, como as citadas, mas também através de
trechos que frisam, em primeiro lugar, que a escolha divina antecedeu à
existência dos escolhidos (Ef 1.4, etc.) e determina os lidares de Deus com
eles desde o seu nascimento (Jr 1.5; Rm 9.10-13). Em segundo lugar, esses
textos salientam que os escolhidos nada tinham, em si mesmos, para
recomendá-los a Deus, por serem tão maus, ou piores do que o resto da
humanidade ("de dura cerviz", Dt 9.4-6; loucos... fracos... humildes...
desprezados, 1 Co 1.27, 28; "que não buscavam a justificação", Rm 9.30; cf.
v. 23 e 24; "por natureza filhos da ira, como também os demais", Ef 2.3; cf.
vv. 1-10 com 1.3-12). Em terceiro lugar, enfatizam que a fé obediente dos
eleitos (isto é, tudo acerca deles que, de fato, pode agradar a Deus) flui da
eleição deles, e, desta forma, não pode servir de base para sua própria
escolha (At 13.48; 2 Ts 2.13 e 1 Pe 1.2).

Três Aspectos
A ideia de eleição figura na Bíblia em três conexões. Primeira, no Antigo
Testamento, houve a escolha divina de Abraão e sua família, a nação de
Israel, para ser o povo de sua aliança (Is 41.8, 9). Segunda, em ambos os
Testamentos, houve a escolha divina de membros particulares da
comunidade da aliança para realizarem serviços especiais: Moisés (Sl
106.23), Arão (Sl 105.26), os sacerdotes (Dt 18.5), os reis (1 Sm 10.24; 2 Sm
6.21), o Messias ("o meu escolhido", Is 42.1; cf. 49.5), os apóstolos (Jo 6.70;
15.16). Nessas duas conexões, a eleição divina visava o privilégio e a
responsabilidade, mas não garantia a salvação final das pessoas eleitas.
Muitos israelitas morreram sob julgamento (cf. 1 Co 10.5-10), assim como
Judas Iscariotes, um dos apóstolos. Nesses casos, foram privados das
bênçãos da eleição, por causa de incredulidade e desobediência. O Novo
Testamento, todavia, fala de uma eleição na terceira conexão, a saber, que
Deus escolheu certas pessoas a fim de levá-las à salvação. Paulo fala mais a
respeito dessa eleição, afirmando que vem desde a eternidade (Ef 1.4; 2 Ts
2.13 - "vos escolheu desde o princípio"; 2 Tm 1.9), que resulta na chamada
eficaz dos eleitos à fé e, igualmente, no ato eficaz de guardá-los na fé, bem
como no fato que Deus os guarda, até que cheguem à glória (Rm 8.30; 2 Ts
2.14). Essa é a eleição, não apenas para algum privilégio ou oportunidade,
mas para a própria vida eterna.
A própria ideia de eleição (escolher para fora) subentende que alguns
indivíduos não foram escolhidos. Deus discrimina; Ele seleciona alguns, não
todos. Dentre as nações, Ele escolheu somente Israel (Am 3.2; Sl 147.20).
Dentre o Israel segundo a carne, a salvação em Cristo foi desfrutada
somente pelo remanescente "segundo a eleição da graça, ...e os mais foram
endurecidos" (Rm 11.5, 7). Falando sobre os seus eleitos em Corinto, a quem
Ele se propôs a trazer à fé por meio da pregação de Paulo, Cristo disse àquele
apóstolo, em uma visão: ''Tenho muito povo nesta cidade" (At 18.10),
afirmação que não significava a população inteira (cf. 1 Co 1.26-29). Parte
do mistério da eleição é que Deus nunca parece haver escolhido a todos
quantos poderia ter escolhido. Dessa forma, Ele incute em nós o fato que a
sua eleição é absolutamente gratuita e nos ensina a valorizar a graça que tem
chegado a nós individualmente.
2. A ELEIÇÃO E O PLANO DE SALVAÇÃO
O Novo Testamento (mormente as epístolas de Paulo e o evangelho de
João) expõe a obra salvífica de Deus não como uma série de atos desconexos,
mas como uma operação complexa e única, um único propósito composto,
executado em conjunto pelas três pessoas da deidade. O resultado final
desse gigantesco plano é a glorificação da igreja; mas isso ainda jaz no
futuro. O manancial de onde tem fluído e fluirá toda essa atividade salvífica,
até que a obra seja terminada, é o propósito divino na eleição, que data de
antes da fundação do mundo, se assim posso me expressar (Ef 1.3, 4). Em
Romanos 8.29, 30, Paulo passa em revista o plano inteiro, do começo ao fim,
falando do seu estágio final no tempo passado, para mostrar que, visto que
Deus está decidido a fazê-lo, o estágio final é visto como se já estivesse
terminado: "Porquanto aos que de antemão conheceu, também os
predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele
seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou, a esses
também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que
justificou, a esses também glorificou".

Escolhidos em Cristo
Como diz Paulo, Deus nos escolheu "em Cristo", isto é, para sermos salvos
pela mediação de Cristo e em união com sua pessoa (Ef 1.4). Todas as
bênçãos que fluem da eleição são usufruídas em e através dEle - sermos
filhos de Deus (v. 5), a redenção do pecado (v. 7), o dom da habitação do
Espírito, que nos sela como propriedade de Deus (v. 13), e a herança para
nós preparada (v. 11). (A própria herança é algures definida como uma
questão de alguém ser como Cristo e estar com Cristo, possuindo a sua
imagem, compartilhando de sua glória, e vendo-O como Ele é - Jo 17.24; Rm
8.17; 2 Ts 2.14; 1 Jo 3.2.) Em harmonia com isso, na eternidade passada,
quando Deus nos escolheu para sermos salvos por Cristo (2 Tm 1. 9 e 1 Pe
1.2), Ele também nomeou seu Filho para tomar-se homem e ser o nosso
Salvador (2 Tm 1.10; 1 Pe 1.20). E, na plenitude do tempo, o Filho de Deus
veio ao mundo, especificamente conforme o testemunho dEle mesmo, para
cumprir o plano eterno – para morrer e dar a sua vida em favor de todos
aqueles que o Pai Lhe deu (Jo 6.39; 10.29; 17.2, 24), aqueles de quem Ele
afirmou ser o Pastor, aos quais também se referiu como "minhas ovelhas"
(Jo 10.26-29). "Dou a minha vida pelas ovelhas... As minhas ovelhas ouvem
a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem. Eu lhes dou a vida eterna;
jamais perecerão, eternamente..." (vv. 15, 27, 28).
Falamos sobre a "obra" de Cristo, indicando a expiação. Mas, na
perspectiva estabelecida pelo propósito eletivo de Deus, faz parte de sua
obra tanto o ministério celestial de Cristo em atrair pecadores a Si mesmo
(Jo 12.32), em interceder por eles (Rm 8.34; Hb 7.25), e em preservá-los
para a glória (2 Tm 4.17, 18), quanto o sofrer por eles, e carregar os pecados
deles. Aquilo que Cristo fez por nós, na terra e aquilo que Ele está fazendo
por nós, no céu, são dois lados de um mesmo empreendimento. É obra sua
tanto aplicar a redenção quanto o foi obtê-la para nós. Dar a vida eterna às
suas ovelhas e ressuscitá-las no último dia (Jo 6.39) pertencem ao seu
ministério, tanto quanto a sua morte expiatória. A primeira parte de sua
obra, por meio da qual Ele obteve uma "eterna redenção" (Hb 9.12),
terminou no Calvário; mas a segunda parte, conferir a redenção aos remidos,
continuará, como disse Cowper:

Até que toda a igreja remida de Deus


Esteja salva, para não mais pecar.

E, de acordo com isso, em uma epístola cujo pensamento central é a


eleição, Paulo referiu-se à obra de Cristo desta forma: "Cristo amou a igreja, e
a si mesmo se entregou por ela, para que a santificasse, tendo-a purificado por
meio da lavagem de água pela palavra, para a apresentar a si mesmo [ou seja, na
sua volta] igreja gloriosa... santa e sem defeito" (Ef 5.25-27). Tal é o alcance e
o escopo da obra de Cristo vista à luz da eleição.
3. A ELEIÇÃO E O EVANGELISMO
Alguém poderia indagar: mas, se tudo isso é assim, com base em quais
princípios devemos evangelizar? Se Cristo veio salvar apenas os eleitos, que
evangelho resta para os demais? E, visto que não podemos distinguir os
incrédulos eleitos dos incrédulos não-eleitos, que evangelho podemos pregar
a quem quer que seja? Como podemos oferecer Cristo aos não-convertidos e
perdidos, assegurando-lhes que se vierem a Cristo encontrarão a vida,
quando poderíamos estar falando com pessoas a quem Jesus não tenciona
salvar? De fato, para que evangelizar, pois certamente os eleitos acabarão
sendo salvos de qualquer maneira?

Por que Evangelizar?


Podemos sumariar a resposta bíblica a essa pergunta sublinhando três
pontos:
Primeiro, os textos que temos estudado dizem-nos que Deus escolheu não
só a quem Ele salvará, mas também o método pelo qual haverá de salvá-los.
Eles serão salvos por serem divinamente chamados, ou seja, serão trazidos à
fé pelo Espírito, através da palavra do evangelho. "E aos que predestinou, a
esses também chamou" (Rm 8.30). "Deus vos escolheu desde o princípio para
a salvação pela... fé na verdade, para o que também vos chamou mediante o
nosso evangelho" (2 Ts 2.13, 14). Deus a ninguém salva à parte da fé em
Cristo. Assim, o meio de Deus efetuar a salvação dos seus eleitos é enviar-
lhes alguém que lhes anuncie o evangelho. Assim, Cristo enviou Paulo aos
gentios "para lhes abrir os olhos e convertê-los das trevas para a luz e da
potestade de Satanás para Deus, a fim de que recebam eles remissão de
pecados e herança entre os que são santificados pela fé em mim" (At 26.18).
E deste modo, Ele nos envia a anunciarmos a palavra da vida e fazermos
discípulos em nossa própria geração. É nesse ponto que entra o evangelismo.
O evangelismo pelo qual Deus leva os seus eleitos à fé é um elo essencial na
corrente dos propósitos divinos.

Oferecendo Cristo
Segundo, a base sobre a qual a Bíblia nos ensina a oferecer Cristo ao
mundo nada tem a ver com a eleição. Compete-nos convidar todos ase
voltarem e confiarem em Cristo, devido às quatro seguintes razões:
Primeira, todos são pecadores culpados e carecem de Cristo (Rm 3.19-26; At
4.12); segunda, Ele é um Salvador para todos quantos nEle confiarem (Jo
3.16; At 13.39; Rm 1.16; Hb 7.25); terceira, Ele convida graciosamente a
todos quantos dEle precisem para que venham a Ele e recebam paz (Mt
11.28, 29; Jo 6.37; Ap 3.20); quarta, Deus ordena positivamente que todos
quantos ouçam o evangelho, arrependam-se e creiam no nome de Cristo (At
17.30; 1 Jo 3.23). Cumpre-nos evangelizar, em obediência à ordem de Cristo
(Mt 28.19) e sob o constrangimento de seu amor (2 Co 5 .14). Não devemos
especular se os nossos amigos não-convertidos foram eleitos ou não (isso
não faz parte de nossas atribuições). Tão somente devemos contemplar a
necessidade que eles têm de Cristo, e fazer tudo quanto pudermos, em
honesta compaixão cristã, para satisfazer-lhes a necessidade, por nossas
orações e por nosso testemunho.
É bom lembrarmos que o Deus da Bíblia é o "bendito e único Soberano, o
Rei dos reis e Senhor dos senhores... que habita em luz inacessível, a quem
homem algum jamais viu, nem é capaz de ver" (1 Tm 6.15, 16). Ele é o Deus
grande e "indomável", o qual, como esclareceu a Jó, não está sob qualquer
obrigação de explicar-nos todas as suas razões para fazer o que faz (cf. Jó
40.1-8; 42.1-6) . Precisamos estar bem esclarecidos do fato que a revelação
que Deus faz de Si mesmo na Bíblia não nos capacita a conjeturar mais sobre
os seus planos do que aquilo que Ele nos diz ali de modo claro. Depois de
lermos poralgum tempo os escritos de um teólogo, sabemos, mais ou menos,
como ele pensa e o que a sua posição exigirá que ele diga; mas ninguém pode
aliquilatar seu Criador usando esse método.
Einstein usando a linguagem infantil poderia fazer-se conhecido a um
menino de dois anos, como um adulto amigável. Contudo, o menino não
faria ideia de como se combinavam na mente do cientista todos os conceitos,
planos, esquemas de valor, prioridades e conceitos de probabilidade, acerca
da vida como um todo; isso, pelo menos em parte, porque Einstein não
falaria sobre tais coisas com o menino, e, em parte, porque o menino não o
entenderia, ainda que Einsten tivesse falado sobre tais coisas. Nesse sentido,
pois, o adulto permanece desconhecido para a criança mesmo quando a ele
se faz conhecido - de fato, genuinamente conhecido - como um bondoso
amigo. Ora, diante de Deus estamos na posição de um menino de dois anos.
Deus tem falado e continua a falar conosco, na linguagem humana das
Sagradas Escrituras. E com base naquilo que Ele nos informa haver dito e
feito, nós chegamos a conhecê-Lo verdadeiramente. No entanto, podemos
ter a certeza de que desconhecemos a maior parte daquilo que Deus mesmo
sabe a respeito de suas próprias ideias, planos, valores, prioridades e
conceitos de probabilidade. Por conseguinte, quando não podemos perceber
como duas coisas que Deus tenha dito sobre Si mesmo podem ser
entrelaçadas, não deveríamos ficar surpresos ou preocupados. Tais
descobertas devem apenas ser esperadas.
No presente caso, alguns tropeçam na indagação de como pode ser bona
fide a oferta que Deus faz de Cristo a todos quantos ouvirem o evangelho, e
como a sua ordem de propagar o evangelho pode demonstrar a genuína boa
vontade, a qual queremos assegurar a todos aqueles aos quais nós levamos o
evangelho, quando Deus já resolveu, desde a eternidade, a quem Ele salvará
e a quem não salvará. A resposta breve é: Não compreendemos como, mas
podemos perceber que assim sucede através do ministério de Jesus Cristo, o
Filho de Deus encarnado, acerca de Quem podemos afirmar: Deus é como
Jesus (cf. Jo 14.9). É fora de toda a dúvida que os constantes e
indiscriminados convites de Jesus aos homens, para virem a Ele, para
crerem nEle, para se tornarem seus seguidores, e, desta forma, encontrarem
a vida eterna, foram expressões "bona fide", de boa vontade. Jesus chorou
diante da incredulidade de Jerusalém (Lc 19.41-44), e a aparência de sua
face evidentemente demonstrou tanto a sua real preocupação pelo jovem
rico como a sua real tristeza, quando o jovem se retirou (cf. Mc 10.21, 23,
27). Portanto, do exemplo do próprio Jesus vemos que, qualquer que seja a
verdade acerca da eleição, Deus não tem prazer na morte daqueles que,
tendo ouvido o evangelho, preferem desconsiderá-lo e morrer, ao invés de se
converterem e viverem (cf. Ez 18.23, 32; 33.11).
O ensino neotestamentário sobre o amor divino é que Deus, tendo, em
amor, andado uma milha ao dar seu Filho para tornar-se o Salvador de todos
os crentes, agora anda uma segunda milha, ao trazer todos os seus
escolhidos à fé. A particularidade da eleição e da redenção é assim colocada
dentro do esboço da boa vontade geral de Deus e não contraria esse esboço.
Isso posto, cabe-nos convidar todos a confiarem em Cristo, tal como fez o
próprio Jesus (Mt 11.28, 29; etc.); porque precisam dEle, porque Ele os
salvará, se vieram a Ele, e porque o próprio Deus os está chamando. À
semelhança de Cristo, devemos deixar Deus identificar os seus eleitos e
trazê-los à fé (cf. Jo 6.35-45). Isso nos leva ao ponto seguinte.

Sem a eleição não há esperança


Terceiro, longe de solapar o evangelismo, a eleição o reforça, pois provê a
única esperança do evangelismo ser bem sucedido em seu alvo. O fato que
somente os eleitos são salvos, mediante a pregação do evangelho, não
significa que outros são impedidos de entrar no reino, os quais, se não fosse
a eleição, entrariam nele. Antes, a eleição mostra que alguns entram no
reino, mediante a fé, ao passo que de outra maneira ninguém entraria. "Ora,
o homem natural não aceita as cousas do Espírito de Deus, porque lhe são
loucura; e não pode entendê-las" (1 Co 2.14). Assim sendo, o evangelho
jamais impressionará o homem natural, e ele nunca virá à fé, a menos que
Deus o "chame". Mas, segundo as Escrituras, as únicas pessoas a quem Deus
chama são os eleitos: "E aos que predestinou, a esses também chamou" (Rm
8.30). Se não houvesse eleição, não haveria chamamento, não haveria
conversões, e toda atividade evangelística fracassaria. Porém, como é fato,
nós sabemos que, à medida em que propalamos a verdade de Deus, ela não
voltará vazia para Ele. Ele a enviou para ser o meio através do qual Ele
chama os seus eleitos, e ela prosperará naquilo para o que Ele a enviou. (Ver
novamente At 18.9-11, com 1 Co 1.9.)
4. A ELEIÇÃO E A VIDA CRISTÃ
A eleição é o segredo familiar dos filhos de Deus, algo acerca do que eles
têm o direito de saber e que deveriam saber para seu próprio bem. Não é por
acaso que Pedro nos exorta: "Procurai, com diligência cada vez maior,
confirmar a vossa vocação e eleição" (2 Pe 1.10). Em outras palavras, os
crentes devem estar certos da realidade da eleição, e, portanto, de sua
própria eleição.
Na vida de uma pessoa, a eleição se faz conhecida por seus frutos. Paulo
reconheceu a eleição dos crentes tessalonicenses devido à fé, à esperança, ao
amor e à transformação operada pelo evangelho nas vidas deles (1 Ts 1.3-6).
Quanto mais se manifestarem em nossas vidas as qualidades às quais Pedro
nos exorta - virtude, conhecimento, domínio próprio, perseverança, piedade,
fraternidade e amor - tanto mais seguros estaremos de nossa própria
eleição.

Como Isso nos Ajuda?


Qual é o valor e o efeito do conhecimento de nossa própria eleição? Isso
permite que nos tornemos complacentes e concluamos que, visto sermos
eleitos, não importa como vivemos? Não, pois, conforme nos indica o texto
citado de 2 Pedro, somente se estivermos diariamente ''aperfeiçoando a
nossa santidade no temor de Deus'' (2 Co 7.1), evidenciando assim a
genuinidade de nossa fé através de nossas obras, teremos o direito de estar
seguros de nossa eleição. De fato, o conhecimento que o crente fiel tem de
sua eleição leva a uma tendência bem diferente. Tal conhecimento desperta
nele o senso de reverência, por exibir aos seus olhos a grandeza do Deus em
cujas mãos todos estamos, o qual dispõe de nós todos segundo o seu próprio
prazer. Tal conhecimento humilha o crente, pois fá-lo lembrar que a sua
salvação não é obra sua em qualquer aspecto: ele nada possui que não tenha
recebido. Mas, esse conhecimento também o emociona, por assegurar que a
sua salvação deve-se inteiramente a Deus e que, nas mãos de Deus, ele está
seguro para sempre. A razão pela qual ele agora está em Cristo é que Deus o
escolheu para isso, desde a eternidade. E a escolha feita por Deus garante
que ele será mantido seguro em Cristo, para a eternidade. "E aos que
predestinou, a esses também chamou... justificou... glorificou."

Certeza Exultante
Portanto, o conhecimento que temos de nossa eleição transforma a nossa
esperança de glória de um tímido anelo em uma exultante certeza e nos
fortalece para encararmos qualquer horrendo futuro na terra, com um senso
de triunfo em nossos corações. Não foi o acaso, mas a mais coerente lógica
espiritual, que levou Paulo, depois de ter revisto o propósito eletivo de Deus
a exclamar: "Que diremos, pois, à vista destas cousas? Se Deus é por nós,
quem será contra nós?... Quem intentará acusação contra os eleitos de
Deus?... Quem nos separará do amor de Cristo?... somos mais que
vencedores, por meio daquele que nos amou. Porque estou bem certo de que
nem morte, nem vida, nem anjos, nem principados, nem cousas do presente,
nem do porvir... nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de
Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor" (Rm 8.31-39). Quando o
crente perscruta esse insondável, todo-poderoso, gratuito e infindo amor do
Pai e do Filho, que se apossou dele antes que o tempo começasse, que o
redimiu e vivificou e que se comprometeu a conduzi-lo em segurança através
de todas as batalhas e tempestades da vida até às indizíveis alegrias que
Deus tem reservado para os seus filhos, então ele fica a anelar, mais do que
nunca, por responder com amor a esse amor. E a linguagem do seu coração
torna-se a linguagem do hino de Murray M'Cheyne:

Escolhido, não por qualquer bem em mim,


Despertado, para da ira fugir;
Ao lado do Salvador, ocultado,
E pelo Espírito, santificado.
Ensina-me a mostrar na terra, Senhor,
Pelo meu amor, quanto sou devedor.
As duas palavras em nosso título representam um único grupo de
palavras, tanto no hebraico como no grego. As ideias que esta família de
palavras transmite são de fundamental importância. Isso se reflete na
frequência em que as palavras ocorrem. Os membros da família hebraica q-d-
sh aparecem quase mil vezes no Antigo Testamento, e os membros da
família grega hag- quase trezentas vezes no Novo Testamento. A família
hebraica é qadosh (santo), qadash (santificar) e qodesh (santidade); a família
grega correspondente é hagios (santo), hagiádzo (santificar) e três
substantivos, hagiasmós, hagiosýne e hagiótes (santidade). A ideia geral que
eles invariavelmente expressam, de uma forma ou de outra, é a de separação
ou a de ser separado. Eles encontram-se somente em contextos religiosos,
onde são abordadas as relações entre Deus e suas criaturas. Nesses
contextos, eles são usados em quatro conexões, que abrangem quase todo o
ensino bíblico. Eles denotam: (a) Anatureza de Deus; (b) o dever do homem;
(e) a obra da graça em e sobre os crentes e a igreja; e (d) o estado de glória
futura.
UMA PERSPECTIVA EQUILIBRADA
O fato que tanto no hebraico quanto no grego um único conjunto de
vocábulos liga esses quatro temas entre si, deve advertir-nos contra
atentativa de entendermos qualquer deles isoladamente. Precisamos
particularmente dessa advertência, talvez em conexão com o terceiro tema -
santidade ou santificação, como uma obra da graça divina. Pois nós, os
evangélicos, geralmente nos desviamos nesse ponto. Com demasiada
frequência, abordamos o tema da santificação em um vácuo teológico, de
uma maneira realmente perigosa. O "movimento holiness", o "ensino
holiness" e as "reuniões holiness" dirigem a nossa atenção exclusivamente
para esse tópico. E, pelo simples fato de sua existência, nos encorajam a nos
aproximar desse tema e a estudá-lo sem ao menos indagarmos se o ensino
bíblico sobre a santidade de Deus, sobre a sua lei e sobre o céu, também não
seria relevante.
Precisamos entender que toda essa abordagem - a abordagem
fragmentada, conforme a poderíamos chamar - é errônea. Ela separa coisas
que Deus juntou e assegura que mais cedo ou mais tarde nos desviaremos da
trilha certa. Pois a verdade é que os outros três temas fornecem o contexto e
fixam a perspectiva segundo a qual o ensino bíblico sobre a santificação pode
ser devidamente entendido. Fora desse contexto, haveremos de falhar um
tanto em compreender este assunto, tal como haveremos de falhar um tanto
em apreciar um detalhe de alguma grande pintura, se porventura
recusarmo-nos a vê-lo em seu próprio lugar, na pintura como um todo.
É de temer que nossa desequilibrada preocupação com esse tema, tirado
de seu contexto, tenda a produzir uma destoante assimetria de caráter e de
perspectiva. Crentes na busca de santidade têm-se tornado egocêntricos,
tacanhos e convencidos, por pensarem demais acerca de si mesmos e muito
pouco acerca de Deus. Muitos têm sucumbido ou diante de um pedante
ascetismo, que equipara a santidade à mera abstinência disto e daquilo
(sexo, bebidas alcoólicas, calças jeans, jazz, música rock, cabelos compridos,
costeletas, tratamento depilatório, teatro, interesses políticos, ou seja o que
for), ou a um culto a alguma experiência especial, identificada com a
santidade ("segunda bênção", "plenitude do Espírito" , "batismo no Espírito
Santo", "santificação completa", etc.), que alguns têm seguido até ao ponto
de negligenciarem a mais corriqueira moralidade cristã. Escreveu o bispo
Ryle, em 1879:
Quando as pessoas falam em ter recebido 'tão grande bênção', de terem
encontrado 'a vida superior', após ouvirem algum intenso advogado da
'santidade pela fé e pela auto consagração', ao mesmo tempo que seus
familiares e seus amigos não veem qualquer melhoria e nenhum acréscimo
na santidade, em sua conduta e em seu comportamento diário, um dano
imenso é feito contra a causa de Cristo (Santidade... Sem a Qual Ninguém Verá
o Senhor, Editora Fiel, 1987, p. 10).
As palavras de Ryle permanecem inconfortavelmente relevantes até hoje,
tal como o comentário de um pastor interiorano que, ao ser indagado sobre
o que pensava sobre a "vida superior", replicou: "Ela é boa, se você tem
dinheiro e tempo para ela". Porém, seremos ajudados a evitar esse tipo de
auto decepção se relacionarmos todas as nossas ideias sobre a santificação
ao caráter santo de Deus, sobre o qual somos chamados a refletir, e à sua
santa lei, sob a qual nos é ordenado que vivamos.
Procuraremos agora desenvolver nossos quatro temas, em sua ordem e
conexão apropriadas.
1. A SANTIDADE DE DEUS
"Santo" é o vocábulo que a Bíblia usa para exprimir tudo quanto é
distintivo e transcendente na natureza e no caráter revelados do Criador,
tudo quanto nos mostra a infinita distância que há entre Ele e nós. Nesse
sentido, santidade significa, mui compreensivelmente, a "deidade" de Deus,
tudo quanto O distingue da nossa humanidade. A maior parte do que a
Bíblia diz sobre a santidade de Deus é dito no Antigo Testamento. Ali, Deus
com frequência é chamado de ''o Santo de Israel", ou apenas "o Santo" (por
exemplo, Is 40.25). Ele jura pela sua santidade, ou seja, por Si mesmo e por
tudo quanto Ele é (Am 4.2). Seu "nome" - isto é, a sua natureza revelada - é
regularmente referido como "Santo" (por exemplo, Is 57.15). Os anjos O
adoram, exclamando: "Santo, santo, santo é o SENHOR dos Exércitos" (Is
6.3). No Novo Testamento, as alusões à santidade divina são menos comuns,
embora ocasionalmente encontremos a palavra "santo" aplicada a todas as
três pessoas da deidade. Jesus orou: "Pai santo" (Jo 17.11). Os demônios
identificaram Jesus como "o Santo de Deus!" (Mc 1.24). E o nome do
Consolador é Espírito Santo (de fato, esse nome ocorre quase cem vezes no
Novo Testamento).

Infinita Superioridade
Quando Deus é chamado de "santo", a ideia transmitida é a de deidade, e,
mais particularmente, daquelas qualidades da deidade que assinalam a
infinita superioridade do trino Jeová em relação à humanidade. Esse termo
mostra Deus acima e à parte dos homens, um tipo diferente de ser, o qual
vive em um nível superior de existência. Enfoca a atenção sobretudo em
Deus, tornando-O o apropriado objeto de nossa admiração, adoração e
temor reverente; isso serve para relembrar, às suas criaturas humanas, quão
diferentes de Deus elas realmente são. Assim, denota, primeiro, a infinita
grandeza e o infinito poder de Deus, em contraste com a pequenez e a
fraqueza dos homens e das mulheres. Segundo, denota a sua perfeita pureza
e retidão, que fica em marcante contraste com a iniquidade e impureza da
humanidade pecaminosa, e que evoca, da parte do Senhor, a sua inflexível
reação retributiva contra o pecado; reação essa que a Bíblia chama de "ira" e
de "juízo" de Deus. Terceiro, denota a sua determinação em manter o seu
próprio governo justo, sem importar quanta resistência e oposição haja
contra esse governo - uma resolução que garante que todo pecado
eventualmente receberá a devida recompensa. A ideia bíblica acerca da
santidade deDeus envolve tudo isso.

Julgamento Contra o Pecado


Aconexão entre a santidade e o julgamento do pecado é revelada em um
versículo como Isaías 5.16, onde a Israel é dito: "Mas o SENHOR dos
Exércitos é exaltado em juízo; e Deus, o Santo, é santificado em justiça".
Quando o Deus santo manifesta-se em justo juízo contra os malfeitores, Ele
é "santificado", isto é, a sua santidade é revelada e vindicada. Esses atos de
poder e de justiça declaram a grandeza de Deus e manifestam a sua glória
perante os homens. Por esses meios, Deus se faz conhecido e é honrado. A
ligação entre essas coisas é salientada no fim de uma outra profecia de
julgamento: "Assim eu me engrandecerei, vindicarei a minha santidade e me
darei a conhecer aos olhos de muitas nações; e saberão que eu sou o
SENHOR" (Ez 38.23).
Da mesma forma que Deus se santifica, por revelar a sua santidade em
atos de julgamento, assim também, no Antigo Testamento, os homens
"santificam a Deus" quando honram a sua revelação, mediante a observância
reverente de sua vontade (cf. Nm 20.12; 27.14; Is 8.13). Esse honrar a
santidade de Deus é a essência da adoração. Em um sentido paralelo, Pedro
nos exorta: "Santificai a Cristo, como Senhor, em vossos corações" (1 Pe
3.15). Santificamos ao Senhor Jesus Cristo quando Lhe permitimos
governar as nossas vidas.
2. A SANTIDADE DO HOMEM
Asantidade de Deus, conforme vimos, aponta não somente para o seu
poder infinito, mas também para aquilo que um certo hino chama de sua
"admirável pureza". A santidade para a qual Deus chama o seu povo não é
alguma aspiração pelo poder, mas uma imitação da pureza. Santidade é o
termo bíblico que indica a devida resposta do homem para com Deus como
seu Deus, dentro do relacionamento da aliança. Deus ordena àqueles que
foram separados de outros povos para serem o seu povo, que se separem de
tudo quanto O desagrada e é contrário à sua vontade. A santidade de vida é
aquilo que Ele requer daqueles a quem Ele trouxe à comunhão consigo
mesmo.
Esse requisito é o alicerce de toda a legislação do Antigo Testamento.
"Ser-me-eis homens consagrados" (Êx 22.31). "Santos sereis, porque eu, o
SENHOR vosso Deus, sou santo" (Lv 19.2). "Eu sou o SENHOR vosso Deus:
portanto vós vos consagrareis, e sereis santos, porque eu sou santo; e não
vos contaminareis... Eu sou o SENHOR, que vos faço subir da terra do Egito,
para que eu seja vosso Deus: portanto, vós sereis santos, porque eu sou
santo" (Lv 11.44, 45). Idêntica exigência é feita no Novo Testamento (1 Pe
1.15-16). Essa exigência é por semelhança familiar: o filho de Deus (a nação
de Israel, no Antigo Testamento, Êx 4.22; o crente, no Novo Testamento,
Rm 8.14ss.) deve esforçar-se, pelo simples fato de ser filho de Deus, para ser
semelhante ao seu Pai. É isso o que está envolvido na chamada para a
santidade; e o próprio substantivo usado (no Novo Testamento grego,
hagiasmos, sempre traduzido por "santificação" na versão portuguesa)
denota o estado de estar dissociado da prática do pecado e de estar
consagrado à vida de semelhança com Deus.

Negativamente
O Novo Testamento amplia o lado negativo da santidade – separação de
todas as atividades contaminadoras - em 2 Coríntios 6.17ss.: "Por isso,
retirai-vos do meio deles, separai-vos, diz o Senhor; não toqueis em cousas
impuras; e eu vos receberei, serei vosso Pai, e vós sereis para mim filhos e
filhas... Tendo... tais promessas, purifiquemo-nos de toda impureza, tanto
da carne, como do espírito, aperfeiçoando a nossa santidade no temor de
Deus". Em outros trechos, Paulo aplica esse princípio a um caso específico - o
pecado sexual. "Pois esta é a vontade de Deus, a vossa santificação: que vos
abstenhais da prostituição, que cada um de vós saiba possuir o próprio corpo
[ou esposa, os expositores diferem quanto a isso] em santificação e honra...
porquanto Deus não nos chamou para a impureza, e, sim, em santificação"
(1 Ts 4.3-7). O estado de santidade e a prática da impureza moral são
absolutamente incompatíveis.
Podemos observar de passagem que, embora toda a santidade não se
resuma em evitar o pecado sexual, o povo de Deus precisa de uma
advertência especial quanto a esse particular (o que, sem dúvida, é o motivo
pelo qual ambos os Testamentos abordam a questão de maneira tão plena e
franca). Os registros dos "movimentos holiness" fornecem provas
abundantes, e mesmo esmagadoras, a respeito disso.
O Antigo Testamento também se refere à impureza moral, bem como à
impureza ritual. Os seus regulamentos acerca da santidade (cf.
especialmente Levítico 11 a 22) muito destacam a necessidade de evitar a
impureza ritual, e se alguém não pudesse evitá-la, precisaria eliminar tal
impureza, relacionada a coisas como alimentos, enfermidades, menstruação
e morte. Tem-se argumentado que as abstinências e purificações prescritas
tinham um valor higiênico, e talvez tenham tido; mas, o Novo Testamento
somente nos informa que essas regras eram simbólicas em seu significado, e,
portanto, temporárias em sua aplicação. Cristo declarou queaquilo que
realmente contamina não são os alimentos, mas o pecado (Mc 7.18-23).
Paulo condenou certos mestres cristãos que consideravam impuros certos
alimentos, argumentando que Deus criou todos os alimentos para serem
recebidos com ações de graças por aqueles que creem e conhecem
plenamente a verdade (1 Tm 4.3ss.). De tais passagens fica claro que a
contaminação ritual que envolvia carnes e outras coisas criadas,
consideradas "impuras" era um mero tipo da verdadeira contaminação do
coração impuro. Parece que a razão pela qual Deus sujeitou o seu povo do
Antigo Testamento a esses preceitos simbólicos era, pelo menos em parte,
manter separação da vida nacional de Israel, e, em parte, para impressionar
os israelitas quanto ao fato que, aos olhos de Deus, a contaminação era algo
real e grave, sendo importantíssimo que o povo fosse purificado.

Positivamente
O lado positivo da santidade consiste em manter-se leal a Deus e viver
uma vida que exiba diante dos outros as qualidades de fidelidade, gentileza,
boa vontade, afabilidade, paciência e retidão, segundo o modelo que Deus
revela destas qualidades, em seu admirável relacionamento conosco. O Novo
Testamento ressalta esse aspecto do assunto, apresentando a retidão como a
vereda para a santidade (Rm 6.19; cf. Ef 4.24). De acordo com o Novo
Testamento, a santidade não é um sentimento nem uma experiência, e, sim,
uma qualidade de vida, segundo a qual o caráter do Pai e do Filho é refletido
na conduta e na aparência pessoal do crente.
A santidade do crente, tal como a do seu Senhor, consiste em viver na
prática de um relacionamento para com o mundo dos homens, pela qual ele
está no mundo, sem ser do mundo (Jo 17.14-16). Isso requer tanto a
separação quanto a identificação, tanto o desligamento quanto o
envolvimento.
Pertencer ao mundo significa ser controlado por aquilo que preocupa o
mundo, como a busca por prazer, lucro e posição ("a concupiscência da
carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida" - 1 Jo 2.16). Os
crentes devem renegar tal preocupação, embora o mundo venha a odiá-los
assim como odiou a Cristo, visto que denunciam os interesses do mundo
como espalhafatosos e triviais (como, de fato, o são) e denunciam aqueles a
quem esses interesses escravizam ao ponto de degradarem a sua própria
humanidade (o que, de fato, acontece). Tal má vontade é inevitável e o
crente não deve se perturbar com ela.
A vida de uma pessoa santa não se centralizará em coisas; pelo contrário,
ela se caracterizará por uma certa frugalidade, uma abstenção do luxo e do
exibicionismo, um senso de mordomia acerca de todas as suas possessões e
uma disposição de abandoná-las, se necessário, por amor ao Senhor. As
pessoas santas não menosprezam as coisas boas deste mundo, como se Deus
não as tivesse feito nem as tivesse provido para elas (a crença maniqueísta,
que diz que as coisas materiais são más em si mesmas, não faz parte da
santidade); mas recusam deixar-se escravizar pelas coisas. Eles não
procuram comparar as suas posses materiais com as de outras pessoas, pois
sabem que procurar ter um nível de vida igual ao do vizinho não é santidade,
mesmo que o vizinho vá à mesma igreja ou pertença a algum célebre círculo
evangélico. A pessoa santa vive livre da paixão pelas possessões, tal como o
faz quanto a outras formas de autossatisfação e de autoindulgência. O seu
tesouro está com Deus e o seu coração também (cf. Mt 6.19-21). A satisfação
produzida por sua desconsideração das escalas de valores do mundo e o
franco, simples, honesto e espontâneo ardor de seu amor a Deus podem
torná-lo uma companhia um tanto irritante, ainda que isso se deva ao fato
que ele é muito mais honesto e humano do que aqueles que o observam, e
não porque ele seja esquisito e os outros sejam normais.
Juntamente com essa separação, entretanto, há uma identificação
igualmente surpreendente com o próximo e com suas necessidades. A
reivindicação dos reformadores de que ninguém pode ser santo, se
abandonar o mundo e ingressar em um mosteiro ou na caverna de um
eremita, talvez tenha sido exagerada, mas há nela uma profunda verdade.
Assim como não há (usando as palavras de Wesley) coisa alguma mais
anticristã do que um crente solitário, também nada é mais contrário à
santidade do que perder o interesse pelo semelhante. O desapego do crente
para com o mundo, no sentido de não se comprometer com seus alvos
ímpios, deve ser balanceado com o seu interesse pelo mundo, no sentido de
seu dever para com as pessoas necessitadas.
A forma externa da santidade do próprio Jesus consistia em associar-se a
todas as classes de pessoas, incluindo os publicanos e outros sem reputação,
pelos quais Ele teve tanto interesse quanto por qualquer outra pessoa. De
fato, Jesus demonstrava um interesse especial pelos pobres, pelos obscuros,
pelos desprivilegiados, que a sociedade tratava como meros números. Jesus
também era conhecido por seu hábito nada rabínico de fazer-se amigo dessa
gente e de gastar tempo na companhia deles (cf. Mt 9.9-13; 11.5, 19). Esse
elemento da santidade de Jesus também deve fazer parte da santidade dos
seus discípulos. Se a separação anteriormente descrita cumpre o primeiro
grande mandamento da lei, a identificação desse tipo se faz mister para
cumprir o segundo. O General Booth, certa vez, tomou a palavra "outros"
como lema do Ano Novo para o Exército de Salvação. As pessoas santas
trazem esse lema em seus corações o tempo todo, e a conduta delas, em casa
e fora de casa, na família e entre os homens em geral, demonstra isso. Assim
sendo, as pessoas santas não são inertes; elas são por demais ativas para
serem inertes, pois oram e laboram, derramando-se em amor ao próximo. O
Cristo dos evangelhos e o Paulo do livro de Atos e das cartas são os nossos
grandes modelos quanto a esse particular. A palavra "santidade" sugere ao
homem moderno alguma coisa pálida, anêmica, retraída, negativa e passiva.
Isso mostra quão pouco o homem moderno conhece a santidade! A
santidade ensinada na Bíblia, na realidade, é a qualidade mais positiva, mais
poderosa, e, com frequência, mais apaixonada que alguém jamais viu.
3. O DOM DA SANTIDADE
A famosa prece de Agostinho: "Dá o que ordenas, e ordena o que
quiseres", expressa um profundo discernimento quanto à teologia bíblica.
Na verdade, Deus dá aquilo que ordena. A santidade que Ele requer de seu
povo também é um de seus dons para eles. O próprio Deus santifica os
pecadores. Ele declara, no Antigo Testamento: "Eu sou o SENHOR que vos
santifico" (Êx 31.13; Lv 20.8; 21.8). O Novo Testamento proclama: "...Cristo
Jesus, o qual se nos tornou da parte de Deus... santificação..." (1 Co 1.30).
"Cristo amou a igreja, e a si mesmo se entregou por ela, para que a
santificasse" (Ef 5.25, 26). "Mas fostes santificados... em o nome do Senhor
Jesus Cristo e no Espírito do nosso Deus" (1 Co 6.11). "Nessa vontade é que
temos sido santificados, mediante a oferta do corpo de Jesus Cristo, uma
vez por todas" (Hb 10.10). A santidade, ou santificação, é aqui exibida como
um gracioso dom de Deus.

Posição
O Novo Testamento deixa claro que esse dom tem dois aspectos. O
primeiro aspecto é uma questão de relação e de posição. Nesse sentido, Deus
santifica os pecadores de uma vez e para sempre, quando os traz aSi,
separando-os do mundo, livrando-os de Satanás e do pecado, e recebendo-os
em seu companheirismo. Nesse sentido, pois, a santificação tem significado
semelhante ao de justificação, adoção e novo nascimento. A epístola aos
Hebreus sempre usa o verbo "santificar" nesse sentido (Hb 2.11; 10.10, 14,
29; 13.12). Segundo esse ponto de vista, a santificação é um benefício
recebido de uma vez para sempre, que o crente começa a desfrutar após sua
conversão, mediante a fé em Cristo (At 26.18), e para o qual o crente pode
olhar como um acontecimento passado. É em virtude desse acontecimento
que o Novo Testamento refere-se ao crente como "santo" (no grego, hagios),
por ter sido "santificado em Cristo Jesus", no sentido explicado (1 Co 1.2). O
Novo Testamento não diz que os crentes devem ter vidas santas a fim de se
tornarem santos; ao invés disso, ensina que os crentes, por serem santos,
devem viver vidas santas! Esse, pois, é o primeiro e fundamental aspecto do
dom divino da santificação.

Progressão
O segundo aspecto desse dom é recreativo e progressivo. Nesse sentido, a
santificação é a obra graciosa do Espírito Santo no crente, durante toda a
sua vida terrena, mediante a qual ele cresce na graça (1 Pe 2.2; 2 Pe 3.18; Ef
4.14, 15) e é gradativamente transformado em sua mente, em seu coração e
em sua vida, segundo a imagem do Senhor Jesus Cristo (Rm 12.2; 2 Co 3.18;
Ef 4.23, 24; Cl 3.10). O verbo "santificar" é claramente usado com essa
aplicação em João 17.17, 1 Tessalonicenses 5.23 e Efésios 5.26.
Nessa obra santificadora, Deus requer a nossa cooperação, ao mesmo
tempo em que "efetua em vós [nós] tanto o querer como o realizar, segundo
a sua boa vontade" (Fp 2.13). Ele nos convida a "mortificarmos" os nossos
pecados (matá-los), por meio do Espírito (Rm 8.13; Cl 3.5) e a dedicarmo-
nos à prática das "boas obras", que as porções éticas do Novo Testamento
prescrevem com detalhes. Aquele hino que diz: "Santidade pela fé em Jesus,
não por nosso próprio esforço", descreve uma falsa antítese. Certamente, a
santidade vem pela fé em Jesus, pois toda a capacitação para a santidade
deve ser extraída dEle mediante a fé e a oração, porquanto sem Ele nada
podemos fazer (Jo 15.5ss.). Porém, é igualmente verdade que a santidade
vem pelo esforço; assim, depois de ter ajoelhado para reconhecer a nossa
fraqueza e solicitar ajuda, devemos ficar de pé contra o pecado (Hb 12.4),
resistindo ao diabo (Tg 4.7) e lutando o bom combate da fé (1 Tm 6.12; cf. Ef
6.10-18). A santidade envolve tanto a fé como o esforço pessoal, de nada
adiantando o esforço sem a fé, ou fé sem esforço. Quanto a isso, é
importante conservar o equilíbrio; e isso nem sempre tem acontecido.
4. A SANTIDADE DO CÉU
A santidade é o fim e o propósito de nossa eleição (Ef 1.4), de nossa
redenção (Ef 5.27), de nossa chamada (1 Ts 4.7; cf. 1 Pe 1.15; 2 Tm 1.9) e da
disciplina providencial de Deus sobre nós (Hb 12.10). Porém, sua completa
realização não se dará neste mundo. A visão de Zacarias de uma Jerusalém
restaurada, onde as palavras "Santo ao SENHOR" estarão inscritas nas
campainhas dos cavalos e onde ''todas as panelas em Jerusalém e Judá serão
santas ao SENHOR dos Exércitos" (Zc 14.20, 21) é um quadro em termos
simbólicos da santidade à qual a igreja está predestinada. Todavia, essa
santidade não terá cumprimento enquanto não aparecer a nova Jerusalém, a
cidade santa (Ap 21.2), adornada como uma noiva para O seu esposo. Então,
quando a obra da graça estiver terminada, o povo de Deus será separado não
meramente do domínio do pecado, mas da própria presença do pecado. No
céu não haverá pecado, pois aqueles que ali estiverem não mais terão a
fraqueza humana. Entre; outras coisas, a glorificação envolverá o
desarraigamento final do pecado de nossa natureza. Assim, a santidade será
perfeita lá no céu. Estarmos incapacitados de pecar será tanto a nossa
liberdade como o nosso gozo. Entrementes, tendo essa esperança diante de
nós, nossa chamada diária é para seguir a "...santificação, sem a qual
ninguém verá o Senhor" (Hb 12.14).
Lembro-me da primeira refeição vespertina que tive na faculdade de
teologia. Ninguém se conhecia e a conversação era exploratória, sincera e
ocasional. Informei ao homem sentado diante de mim, um pequeno e
sorridente galês, que eu apreciava muito os Puritanos. Ele perguntou-me por
quê. Disse-lhe que os Puritanos sempre tinham me feito bem; eles se
aprofundaram e foram magníficos no assunto da mortificação. Ele
exclamou: "Mortificação! Vamos conversar sobre isso depois do jantar!"
Naquela noite, ficamos caminhando às margens do rio, em Oxford, por
quase duas horas. Contei-lhe o que as sessenta páginas escritas por John
Owen, a respeito da mortificação do pecado, tinham feito por mim, quando
uma modalidade popular de ensino sobre a santidade quase me fizera perder
o equilíbrio. Ele me falou de suas agonias, em uma comunidade voltada às
emoções, onde era professado o perfeccionismo, onde os padrões morais
estavam em decadência e a palavra "mortificação" era um tabu, porque todos
supunham já haver ultrapassado essa fase.
Em uma atmosfera assim, Deus lhe ensinara que o pecado não é
desarraigado de nós, nem se torna impotente em nós, em qualquer estágio
desta vida; e que a vigilância, a oração, o suspeitar de si mesmo, com
frequentes exames do coração e dos atos, são disciplinas vitais, a fim de que
o indivíduo não caia em tentação, sem ao menos perceber o que está
sucedendo. Eventualmente, ele sentiu-se obrigado a abandonar aquela
comunidade (tendo sido difamado por ter feito isso). Porém, enquanto
estivera lá, sentira sopros de avivamento, e, tanto na época como mais tarde,
sempre se mostrara extremamente sensível diante das realidades espirituais,
conforme acontece entre os crentes moldados por avivamentos. Ele
pastoreou com sucesso duas congregações difíceis, por mais de vinte anos, e
foi usado na transformação de muitas vidas para Deus. Era um homem
gregário e extrovertido, um dos homens mais alegres que conheci. Até ao fim
de seus dias continuou ensinando regularmente a doutrina da mortificação,
o único pastor evangélico que sei ter feito isso. Ele pensava que o tema era
muito importante. Assim também penso eu: eis a razão deste estudo.
O crente está empenhado em uma luta, que perdura sua vida inteira,
contra o mundo, a carne e o diabo. A mortificação é sua investida contra o
segundo desses adversários. Dois textos paulinos mostram que se trata de
um ingrediente essencial à vida cristã: "Fazei, pois, morrer a vossa natureza
terrena" (Cl 3.5). "Se pelo Espírito mortificardes os feitos do corpo,
certamente vivereis" (Rm 8.13). Cada um desses textos usa um verbo
diferente, no original grego, embora sejam sinônimos. No segundo texto, o
verbo está no presente, dando a entender que a mortificação deve ser
contínua (Se... continuardes a mortificação... vivereis). No primeiro texto, o
verbo está no aoristo, implicando que a mortificação, uma vez iniciada, se
completará com bom êxito.
O primeiro dos dois textos diz-nos que o privilégio cristão torna a
mortificação obrigatória. Paulo argumenta, em Colossenses 3.1-5, que visto
sermos participantes da vida ressurreta de Cristo, cidadãos dos céus cujas
expectativas estão nas regiões celestes, não mais filhos da ira, mas filhos de
Deus e herdeiros da glória, devemos conduzir-nos convenientemente com
nossa posição; precisamos ser o que somos hoje, não o que éramos outrora.
Portanto, "fazei... morrer a vossa natureza terrena" (Cl 3.5). O segundo texto
informa-nos que a mortificação é necessária como meio para chegarmos a
um fim. Ela é o caminho para a "vida", para o bem-estar espiritual neste
mundo e para a glória com Cristo, no mundo vindouro. A mortificação não
compra para nós a vida eterna (Cristo já fez isso por nós), mas faz parte da
"operosidade da vossa fé" (1 Ts 1.3), por meio da qual adquirimos e
mantemos o dom gratuito de Cristo (cf. 1 Tm 6.12; Fp 3.12-14). Ela é uma
daquelas "obras" sem as quais a "fé" - a profissão de fé - é "morta" (Tg 2.26).
O argumento de Paulo pode ser expandido assim: Se quisermos assegurar a
nossa chamada e a nossa eleição, por mostrar que a nossa fé é autêntica, se
quisermos correr de tal modo a alcançar e viajar de modo a chegar, então
devemos mortificar o pecado. Observou seriamente John Owen: ''Aquele
que, em seu caminho, não aniquila o pecado, não está dando passos em
direção ao final de sua jornada''.
A evidente importância desse assunto faz parecer lamentável e estranha a
duradoura negligência dos crentes para com o mesmo. As causas dessa
negligência talvez incluam a aversão dos evangélicos ao externalismo da
tradicional mortificação católica romana (vestir cilício, ficar horas
mergulhado em água gelada e coisas dessa natureza), na qual o objeto de
ataque parece ser o corpo, e não o pecado residente na alma. E a censura de
Colossenses 2.23 obviamente aplica-se aos tais. Porém, uma causa mais
profunda dessa negligência é a superficialidade da compreensão e da
experiência cristã em nossa época. Visto que conhecemos tão pouco a Deus e
que, por isso, dificilmente conhecemos a nós mesmos, e visto que a maioria
de nós pensa que o autoexame é algo ultrapassado e mórbido, dificilmente
temos consciência do pecado no íntimo.
Há uma antiga comédia na qual um leão fugitivo toma o lugar de um cão
peludo, ao lado de uma poltrona. O cômico, afetuosamente, passa os dedos
pela juba do leão por diversas vezes, antes de notar que, conforme
costumamos dizer, ele tinha um problema nas mãos. Agimos desse modo, no
tocante aos nossos hábitos pecaminosos. Tratamo-los como amigos, não
como assassinos, e jamais suspeitamos como o pecado, quando permitido no
íntimo, debilita e enfraquece o crente. Isso, podemos temer, é porque somos
vítimas do pecado, sem sabermos o que realmente significa estarmos vivos
em nosso relacionamento com Deus, tal como as crianças aleijadas de
nascença nunca sabem o que é correr livremente, ato muito diferente de
manquejar. Tal é o merecido castigo de nossa atual negligência quanto à
mortificação.
Assim sendo, a mortificação é um tema sobre o qual parece não haver
qualquer tratamento contemporâneo de valor em evidência. Se quisermos
ajuda, para melhor entendermos o ensino bíblico sobre este assunto,
devemos voltar aos escritos dos grandes Puritanos do século XVII, "uma
época", escreveu o bispo J. C. Ryle "em que, sou forçado a dizer, a religião
experimental era mais profundamente estudada e muito melhor
compreendida do que atualmente". As obras mais úteis sobre esse o tema
são as de John Owen, que Spurgeon chamou de "o príncipe dos teólogos".
Essas obras são: The Nature, Power, Deceit, and Prevalency of the Remainders
of lndwelling Sin in Believers - A Natureza, o Poder, o Engano e a Providência
das Reminiscências do Pecado que Habita nos Crentes - e a seção sobre a
"Mortificação" (Livro 4, capítulo 8), em A Discourse Concerning the Holy Spirit
- Um Discurso Acerca do Espírito Santo - (Works, W. Goold, vols. 6 e 3). Este
escritor sente-se na obrigação de dizer que deve a esses tratados, com títulos
assustadores, não meramente grande parte do material deste estudo, mas
quase toda a luz que tem recebido sobre os temas envolvidos neste estudo.
Mortificação é guerra; e existem quatro passos a serem dados, se tivermos
de ganhar a batalha.
NOSSO INIMIGO
Precisamos conhecer o nosso inimigo. O ponto de partida para a
mortificação consiste em reconhecermos que estamos combatendo não
apenas contra pecados, mas contra o pecado. Conforme verificamos nos
estudos anteriores, a Bíblia retrata o pecado como "um princípio positivo e
destrutivo, endêmico no homem" (A. M. Hunter): um impulso hereditário,
profundamente arraigado em nossa natureza, que nos impele
permanentemente a uma cega oposição a Deus. A mente dominada por esse
princípio é simplesmente "inimizade contra Deus, pois não está sujeito [a] à
lei de Deus, nem mesmo pode estar" (Rm 8.7). O pecado é um intenso desejo
por autoafirmação, em oposição a Deus; a própria ideia de dependência
consciente, de adoração grata e de comunhão obediente com o Criador é algo
inteiramente abominável à mente controlada pelo pecado. O pecado é a raiz
de todos os pecados praticados; e, portanto, a raiz da semelhança familiar
com o homem caído (cf. Jo 8.44; 1 Jo 3.8-12). Cristo nos fornece uma lista
dos frutos mediante os quais podemos conhecer o pecado (Mc 7.21, 22).
Paulo nos dá duas dessas listas (Gl 5.19-21 e Cl 3.5, 8). O pecado é a energia
inata que dá origem a essas coisas.
O pecado escraviza inteiramente o incrédulo (cf. Rm 6.16-23). Ele está em
paz com o pecado, porque seu coração foi conquistado pelo pecado. A pessoa
convertida, porém, toma Cristo como seu Senhor e modelo, e resolve que
não mais será aquela pessoa que resistia a Deus e que se autoafirmava. Essa
é uma "mudança de mente" (que é, de fato, o significado da palavra metanoia,
a palavra grega para "arrependimento"). Mediante essa mudança mental, o
crente se despoja do "velho homem, que se corrompe segundo as
concupiscências do engano" e se reveste do novo homem (Ef 4.22-24). Ele
renuncia ao pecado; deseja que o pecado morra nele; e, assim, em intenção,
ele crucifica "a carne, com as suas paixões e concupiscências" (Gl 5.24).
Mas, nem por isso o pecado morre. Pelo contrário, o pecado assume uma
vida toda própria; o crente descobre que o pecado está ativo no seu interior,
como uma espécie de diabólico alter ego, uma sombra do seu próprio "eu",
opondo-se, resistindo e distorcendo, em menor ou maior grau, todas as suas
tentativas de fazer a vontade de Deus. Escreveu Owen: "O pecado pode ser
comparado a uma pessoa, uma pessoa viva, chamada de 'velho homem', com
suas faculdades e propriedades, com sua sabedoria, sua astúcia, sua sutileza
e sua força".
Assim, o crente se vê em conflito com uma parte de si mesmo: "A carne
milita contra o Espírito, e o Espírito contra a carne... para que não façais o
que porventura seja do vosso querer" (Gl 5.17). O crente quer ser perfeito,
mas nunca atinge a perfeição, e a cada fase de sua vida ele se vê forçado a
confessar juntamente com Paulo: "Porque não faço o bem que prefiro, mas o
mal que não quero, esse faço... já não sou eu quem o faz, e, sim, o pecado que
habita em mim'' (Rm 7.19, 20). O pecado está sempre em rebelião contra a
lei da mente do crente (Rm 7.23; cf. v. 25). Escreveu John Owen: "Não é fácil
expressarmos com que vigor e variedade o pecado se manifesta nesta
questão. Às vezes, o pecado propõe diversões, às vezes causa exaustão, às
vezes descobre empecilhos, às vezes desperta afetos contrários, às vezes gera
preconceitos e, de uma maneira ou de outra, embaraça a alma, de tal modo a
jamais permitir que a graça obtenha um absoluto e total sucesso, na
realização de qualquer dever'' . O pecado está em guerra contra nós (Rm
7.23; 1 Pe 2.11) e busca a nossa ruína. A única maneira de nos preservarmos
é lutando contra o pecado. Fazemos isso por meio da mortificação.
NOSSO OBJETIVO
Precisamos conhecer o nosso objetivo. Clarear essa questão é o segundo
passo. Se ignorar o seu inimigo, o homem lutará às cegas; sem um objetivo
claro, ele lutará sem propósito algum, como "desferindo golpes no ar".
Aquele que não tem alvo algum, nunca alcança coisa alguma. Portanto,
devemos ser claros acerca do que estamos tentando fazer.
As duas palavras gregas traduzidas por "mortificar", nos textos com os
quais iniciamos este estudo, significam ''matar''. Esse é o nosso alvo: exaurir
de tal modo a vida do pecado, que ele nem mais consiga mover-se. Não nos é
prometido que atingiremos o nosso alvo nesta vida, mas nos foi ordenado
que avancemos na direção do mesmo, atacando aquelas inclinações e aqueles
hábitos mediante os quais a presença do pecado é reconhecida. Não convém
meramente que resistamos aos ataques do pecado; precisamos tomar a
iniciativa contra ele. Nas palavras de John Owen, devemos procurar "não
apenas desapontar o pecado, para que o mesmo não se manifeste... mas
devemos buscar a vitória contra o mesmo e persegui-lo até a conquista
total''. Está em pauta não somente uma contraofensiva, mas a erradicação do
pecado. Matar, até onde isso nos for possível, é o alvo em vista.
A mortificação é uma obra que envolve a vida toda. O pecado não morrerá
de outra maneira, ''senão por ser gradual e constantemente debilitado",
adverte Owen. Ele continuou: "Poupe-o, e ele curará suas próprias feridas, e
recuperará as forças''. A Bíblia e a história da igreja prestam reiterado
testemunho das desastrosas consequências para quem cessa a mortificação,
antes que o pecado seja morto. Ora, o pecado nunca morre neste mundo,
sem importar quão enfraquecido se torne.
Além disso, a mortificação importa em uma disciplina dolorosa. Os hábitos
pecaminosos tornaram-se uma parte tão entranhada de nós mesmos que
tentar destruí-los assemelha-se ao decepar de uma mão ou ao arrancar de
um olho (cf. Mt 5.29, 30). O "eu" carnal, que naturalmente procura
sobreviver, fará tudo quanto estiver ao seu alcance para impedir-nos de
matá-lo.
No entanto, a mortificação é uma disciplina eficaz. Faz parte de uma
saudável experiência cristã desfrutar de um contínuo e crescente grau de
livramento dos pecados, porque, mediante a mortificação, a força do pecado
está sendo constantemente drenada. Poucas coisas conferem ao crente tão
grande alívio e encorajamento como a recordação de pecados que antes o
subjugavam, mas que ele conseguiu dominar pelo poder do Espírito de Deus.
NOSSA SUPERIORIDADE
Precisamos conhecer nossa superioridade. Esse é o terceiro passo. Ninguém
se encoraja muito por uma batalha sobre a qual ele pensa que não poderá
vencer. Esperar a derrota é o meio para garanti-la. Se eu imaginar que, por
mais que tente, estou destinado a fracassar, nem ao menos tentarei quanto
poderia fazê-lo. Ao crente, porém, está vedado um tão desastroso
pessimismo. Deus lhe impõe a obrigação de esperar a vitória em seu conflito
contra o pecado. Pois a Bíblia mostra-lhe que, porocasião da conversão, o
Espírito Santo uniu-o ao Cristo vivo. Aquela foi a sua regeneração. Ela fez
dele uma "nova criatura" (2 Co 5.17) e assegurou a sua permanente
superioridade no conflito contra o pecado. As Escrituras descrevem o que
sucedeu então, mediante três descrições complementares, e cada uma com
um ponto de vista diferente confirma que assim realmente sucede. Já nos
defrontamos com essas ideias, mas seria aconselhável reiterá-las.
1. OEspírito implantou um novo princípio de vida. Como resultado direto de
nossa união com o Cristo ressurreto e vivo, a regeneração é aludida como o
ter sido "vivificado" e "ressuscitado" juntamente com Ele (Ef 2.5; Cl 2.12, 13;
3.1). Por ser o início da vida espiritual de um homem, a regeneração é
descrita como um "nascer de novo", ou um "nascer de Deus" (Tg 1.18; 1 Pe
1.3; 1 Jo 5.18). A dinâmica assim implantada é o "coração novo" e o "espírito
novo", prometidos em Ezequiel 36.26, o "novo homem", do qual nos
revestimos por ocasião da conversão (Ef 4.24), a "divina semente" no
coração de seus filhos (1 Jo 3.9). Essa nova energia encontra a sua expressão
característica naquela mesma atitude e naquela mesma relação com Deus
que marcou a vida humana de Cristo: uma espontânea afinidade e amor a
Deus, à sua Palavra e ao seu povo. O pecado é tão repugnante para esta nova
energia, quanto a piedade o é para o pecado. Seus frutos naturais, a fé, o
amor e a oposição ao pecado, são sinais seguros de sua presença (Gl 5.6, 17).
Essa é a nova natureza do crente, o seu verdadeiro "eu", o "homem interior",
que se deleita na lei de Deus (Rm 7.22). Esse novo princípio vem substituir o
pecado como o poder reinante no coração e como o impulso dominante na
vida do crente. Pecar é algo que não mais faz parte inerente de sua natureza.
Sempre que o crente peca, fá-lo contrariando o seu caráter, e o seu coração
não o aprova. O crente nunca mais poderá pecar de todo o coração.
2. O Espírito Santo desfechou um golpe mortal no pecado. O que foi dito
acima deixa isso bem claro. A finalidade da justificação e da regeneração é
que "o corpo do pecado [nosso caráter pecaminoso] seja destruído [trazido
ao nada], e não sirvamos o pecado como escravos" (Rm 6.6). Por nossa união
regeneradora com Cristo e pela chegada da nova vida, o pecado recebe um
golpe do qual jamais poderá recuperar-se. Seu poder é quebrado, e a sua
destruição final é assegurada. Por essa razão, Deus diz ao seu povo: "O
pecado não terá domínio sobre vós" (Rm 6.14). O reinado do pecado
terminou, com relação aos remidos. O papel dos crentes consiste agora em
apressar, mediante a mortificação, o falecimento de seu destronado e
condenado adversário. Deus garante que por mais furioso ou renitente que o
pecado possa se mostrar, por mais profundamente que ele venha a
entrincheirar-se por trás de nossos maus hábitos e de nossas debilidades
temperamentais, a pressão contínua contra ele não poderá falhar em
desarraigá-lo e expulsá-lo.
3. O Espírito Santo veio residir em nosso coração. Agora, o Espírito reside no
crente (Rm 8.9-11; 1 Co 6.19), a fim de transmitir-lhe a vida de Cristo, a
cada momento (Cl 2.19), assim fazendo com que a "semente", em seu
coração, cresça e produza o fruto do Espírito (Gl 5.22). O Espírito Santo se
faz pessoalmente presente, a fim de opor-se ao pecado residente em nós. Ele
ensina o crente a compreender a verdade revelada e a aplicá-la a si mesmo.
Ele desperta o crente para que este obedeça à verdade e fortalece-o para que
assim possa agir. Ele "é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar,
segundo a sua boa vontade" (Fp 2.13). O pecado só pode ser mortificado
"pelo Espírito", porque somente Ele pode tornar os homens desejosos e
capazes para a tarefa. Todavia, onde o Espírito, que em nós reside, exerce o
seu poder soberano, é impossível haver fracasso.
Por conseguinte, quando o crente combate contra o pecado, ele está se
opondo a um inimigo destronado e enfraquecido. Ele é estimulado pela
energia que agora é o mais profundo e poderoso instinto de sua natureza; e
prossegue na força do Santo Espírito de Deus. Sua superioridade é garantida
e pode lançar-se à luta com confiança, pois vencerá.
NOSSOS RECURSOS
Precisamos saber como usar os nossos recursos. Esse é o quarto passo
essencial. É verdade que não podemos mortificar o pecado por nossos
próprios esforços, sem ajuda externa; mas, não é menos verdade que o
espírito Santo não mortificará o pecado em nós sem a nossa cooperação. Ele
fará prosperar os nossos esforços, mas não abençoará a nossa indolência.
Nós mesmos, portanto, devemos atacar o pecado. O resultado do conflito
dependerá de lutarmos sabiamente e de fazermos bom uso da força que
dispomos. As três regras básicas para tanto são as seguintes:
1. Crescer. Escreveu Owen: "Crescer, vicejar e aprimorar-se na santidade
universal é o grande meio para a mortificação do pecado... Quanto mais
abundarmos nos frutos do Espírito, menos preocupados ficaremos com as
obras da carne... Isso é o que derrota o pecado; sem isso, coisa alguma
contribuirá para tal derrota". Precisamos nutrir a nossa nova natureza com a
verdade de Deus e exercitá-la continuamente na oração, na adoração, no
testemunho e em uma obediência consistente e total. Deveríamos planejar a
prática e o desenvolvimento de qualidades mais contrárias aos pecados dos
quais precisamos nos desvencilhar: a generosidade, se o nosso problema é a
cobiça; o hábito de louvar, se o problema é a autocompaixão; a paciência e a
tolerância, se o problema é o mau temperamento; o planejamento da vida
diária, se é a indolência; ou quaisquer outras qualidades. Precisamos
interceptar as tentativas do pecado em recuperar o controle de nossos
corações e poderes, mantendo-nos atarefados no serviço de Deus. Crentes
débeis, descuidados, de corações e mentes divididas, jamais poderão
mortificar o pecado.
2. Vigiar. Temos a responsabilidade de esquivar-nos da tentação até onde
pudermos. É pura presunção, e não fé, esperar que Deus, em seu poder
soberano, mate em nós as concupiscências, ao mesmo tempo em que lemos
má literatura, aceitamos más companhias e nos expomos às influências que
fomentam as concupiscências; é mais provável atrair uma maldição do que
uma bênção. Tem sido dito que, embora não possamos impedir que os
passarinhos sobrevoem a nossa cabeça, podemos impedi-los de fazerem
ninhos em nossos cabelos. Precisamos ser severos em privar o pecado de
tudo quanto o alimente. Doutro modo, a mortificação tornar-se-á
impossível.
3. Orar. Somente a oração pode obter ajuda da parte de Deus. As
promessas não reivindicadas não são normalmente cumpridas: "Nadatendes,
porque não pedis" (Tg 4.2). A ajuda do Espírito Santo, na mortificação, só é
conseguida através de constante e confiante oração, quando reivindicamos a
promessa de que o pecado não nos dominará, quando apelamos
continuamente ao Senhor, o qual veio a este mundo, morreu, ressuscitou e
agora vive para salvar-nos do pecado, a fim de "acharmos graça para socorro
em ocasião oportuna" (Hb 4.16). Entretanto, se pedirmos e esperarmos, não
ficaremos desapontados. Disse Owen: "Exerce fé em Cristo, tendo em mira a
morte de teu pecado... e morrerás vencedor. Sim, por meio da providência
divina, viverás para ver a tua concupiscência morta aos teus pés".
NOSSA SAÚDE
O que tudo isso tem a nos dizer poderia ser assim colocado:
Alguns de nós precisam de correção. Pertencemos a uma geração que dá
mais valor ao prazer do que ao caráter, à autossatisfação do que, ao
autocontrole, e à maturidade emocional do que à estatura moral. Os
prazeres são considerados mais importantes do que a fidelidade, a
honestidade, o altruísmo ou o serviço bem feito. Planejamos com mais
diligência as nossas recreações do que a nossa retidão. Não é para
surpreender que muitos crentes absorvam essa atitude (ou que essa atitude
os absorva) e, na igreja, busquem uma espiral de entusiasmo, de "altos
emocionais", de novidades, de terapias psicodélicas, de intimidades
emocionantes, de pregadores entusiastas, de cânticos estimulantes, de tudo
quanto esteja continuamente fervendo. No entanto, facilmente esquecem-se
que Deus dá prioridade ao caráter, e não aos prazeres; que o alvo de Deus ao
lidar conosco é a santidade, da qual a nossa felicidade flui como um
subproduto, na forma de contentamento na situação em que nos
encontramos. Porém, é fácil esquecer o alvo de Deus, e aquele estado mental
buliçoso que acabamos de descrever, não é espiritualmente saudável. Buscar
a santidade em Cristo deve vir em primeiro lugar; e a prática da mortificação
do pecado é um elemento essencial nessa questão, primeiramente através da
crucificação diária da carne (Gl 5.24) e, em seguida, mediante a vigilância e a
oração, a fim de ser sugada a vida daquelas concupiscências particulares que
"fazem guerra contra a alma" (1 Pe 2.11). Mais semelhança a Cristo, quanto
ao caráter, é o único sinal seguro de progresso espiritual. Mas, sem a
mortificação, dificilmente isso virá a acontecer. Mortificar o pecado é uma
das primeiras coisas que precisamos aprender a pôr em primeiro lugar, em
nossa vida com Deus.
Ademais, alguns de nós precisam de orientação. Sabemos que a santidade
é uma prioridade; procuramos manter o nosso arrependimento inicial
mediante a consagração diária; queremos andar de uma maneira digna de
nossa chamada, a cada dia de nossas vidas. Porém, encontramos em nós
mesmos aquilo que, do ponto de vista da Bíblia, precisamos intitular de
hábitos do fracasso moral: inveja, ciúmes, avareza, impaciência, apatia,
concupiscência (hetero e homossexual), egocentrismo, indolência,
indisciplina, ressentimentos amargurantes, descontentamento, arrogância,
indiferença para com as coisas importantes e assim por diante. Que
devemos fazer quanto a este fato? Esses hábitos são quais feridas abertas em
nossas vidas espirituais: precisam ser interrompidos e substituídos por
virtudes apropriadas, que sigam a imagem moral de Jesus. Mas, como?
Não há formula mágica para uma substituição de hábitos não-cristãos por
outros que lhes são opostos. Agradáveis experiências interiores do amor e da
presença de Deus, cumprindo a promessa de João 14.21-23, podem
fortalecer nossa motivação para nos aproximarmos de Deus (cf. Rm 12.1) e
tem-se entendido que essas experiências servem para abafar aqueles
frequentes anelos (por álcool, drogas, fumo, jogos de azar) que foram
estimulados pelo rancor próprio. Isto tem, algumas vezes feito com que
estas demonstrações de amor sejam erroneamente entendidas como
experiências de santificação. Porém, quando a experiência acaba, a
necessidade de buscar a mudança de caráter ainda permanece, e é somente
pelo conhecimento de si mesmo, pela autodisciplina, pela autovigilância e
pela oração motivada pela autodesconfiança, diante da tentação e da
possibilidade de retorno à rotina do hábito pecaminoso, que o avanço
acontecerá. Pessoas talentosas e vibrantes, mas com falhas em seu sistema
moral, são desequilibradas e caminham para a queda; elas não devem ser
tomadas como modelo. Se nós mesmos estamos cônscios de sermos dotados
de talentos, seremos tentados a pensar que nossas habilidades
contrabalancearão nossas deficiências pessoais; porém, isto nunca acontece.
Como é necessário um exercício regular para manter a boa saúde física,
assim também o lutar e o vencer a batalha por um caráter cristão, por meio
de imitar a Cristo e do mortificar o pecado, é o exercício regular pelo qual a
saúde espiritual é mantida. Paulo realmente deixou isto bem claro; tão claro
que seremos culpados, se nos esquivarmos do assunto.
"Morrestes, e a vossa vida está oculta juntamente com Cristo, em Deus.
Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar, então vós também sereis
manifestados com ele, em glória. Fazei, pois, morrer [mortificai] a vossa
natureza terrena: prostituição, impureza, paixão lasciva, desejo maligno e a
avareza... despojai-vos, igualmente, de tudo isto: ira, indignação, maldade,
maledicência, linguagem obscena do vosso falar. Não mintais uns aos
outros, uma vez que vos despistes do velho homem com os seus feitos, e vos
revestistes do novo homem que se refaz para o pleno conhecimento,
segundo a imagem daquele que o criou... porém Cristo é tudo em todos" (Cl
3.3-11).
O que lhe sugere a palavra "comunhão"? Uma xícara de chá no salão social
da igreja? Um pouco de conversa no pátio, após o culto? Uma caminhada
com a mocidade? Uma temporada em um acampamento? Turismo na Terra
Santa, com um grupo de pessoas da igreja? Nós frequentemente dizemos
que tivemos comunhão quando tudo o que queremos dizer é que tomamos
parte em algum empreendimento social cristão, tais como os que citamos.
Mas, não devemos nos expressar nestes termos. O fato que compartilhamos
atividades sociais com outros crentes por si mesmo não implica que tivemos
comunhão com eles. Falar assim, de fato, não significa negar que pode haver
lugar para tais atividades. Nosso problema simplesmente é que igualar estas
atividades à comunhão, e a comunhão a elas, é um abuso da linguagem
cristã.
Além disso, trata-se de um abuso perigoso e que leva ao desapontamento.
Engana-nos ao fazer-nos pensar que estamos crescendo em comunhão,
quando, o tempo todo, nossas almas podem estar famintas por comunhão.
Não é um bom sinal quando uma pessoa não reconhece a diferença entre
chupar balas e comer uma boa refeição. Por igual modo, não é um bom sinal
quando os crentes não distinguem entre as atividades sociais, em companhia
de outros crentes, e a comunhão. "Comunhão" é um dos grandes vocábulos
do Novo Testamento. Ele denota algo vital para a saúde espiritual do crente,
além de ser fundamental para a verdadeira vitalidade da igreja. É de primária
importância, pois, que tenhamos ideias claras sobre o que a comunhão
realmente significa.
A comunhão figura na primeira descrição que o Novo Testamento nos dá
sobre a vida da recém-constituída igreja. "E perseveravam na doutrina dos
apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações" (At 2.42).
Conversas, caminhadas e turismo? Não; mas algo de natureza bem
diferente, em um nível bem diferente, conforme o resto dessa passagem nos
esclarece. "Em cada alma havia temor... Todos os que creram estavam juntos,
e tinham tudo em comum. Vendiam as suas propriedades e bens, distribuindo
o produto entre todos à medida que alguém tinha necessidade. Diariamente
perseveravam unânimes no templo, partiam pão de casa em casa, e
tomavam as suas refeições com alegria e singeleza de coração, louvando a
Deus..." (At 2.43-47).
Temos aqui um quadro da comunhão, conforme o Novo Testamento a
entende. Sem dúvida, há um mundo de diferença entre esse quadro e a
maioria das atividades às quais, atualmente, chamamos de "comunhão". A
verdade é que a palavra ''comunhão'' tem sido por demais barateada. Muito
daquilo que recebe esse nome não merece ser classificado como tal, pois a
realidade da comunhão tem praticamente desaparecido de nosso meio. Essa
é uma das razões por que mesmo aqueles segmentos da igreja que
permanecem doutrinariamente ortodoxas, com frequência, são débeis e
preguiçosos, em comparação com a situação nas igrejas de um ou dois
séculos atrás. Cristo repreendeu os crentes de Laodicéia (Ap 3.17) devido à
complacência deles, supondo que possuíam tudo que precisavam, quando,
na verdade, estavam em estado de bancarrota espiritual. E certamente Ele
nos repreenderia em termos similares, por falar de modo tão presunçoso
acerca da nossa feliz comunhão, quando, de fato, a ausência de comunhão é
uma de nossas falhas mais evidentes.
Recuperar o verdadeiro significado da comunhão é, para o povo de Deus,
uma clamorosa necessidade em nossos dias. Um corpo no qual o sangue não
circula bem sempre está aquém de suas possibilidades; e a comunhão
corresponde à circulação do sangue no corpo de Cristo. A igreja adquire
forças por meio da comunhão e perde forças quando ela se faz ausente.
Portanto, devemos esforçar-nos para reaprender o verdadeiro significado
de "comunhão". Quais devem ser as nossas ideias a esse respeito? No que
consiste, essencialmente, a comunhão cristã?
A IDEIA DE COMUNHÃO
A palavra grega traduzida por "comunhão" expressa a ideia de
compartilhar ou de ter algo em comum com outrem. A participação comum
assume uma forma dupla: ou por darmos a alguém uma parcela do que
possuímos, ou por recebermos de alguém uma porção do que ele possui ou
do que ele está fazendo. Na comunhão cristã, conforme veremos, há lugar
para estas duas formas de participação.
A comunhão cristã é bidimensional: primeiramente ela é vertical; e,
depois, horizontal. O plano horizontal da comunhão, que é o nosso interesse
imediato, pressupõe a dimensão vertical, para a sua própria existência. A
dimensão vertical da comunhão foi descrita por João, quando ele escreveu:
"Ora, a nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho, Jesus Cristo" (1 Jo
1.3). Essa comunhão é aquilo que constitui um crente. De fato, a declaração
de João fornece uma definição precisa de um crente. Aquele que não goza de
comunhão com o Pai e com o Filho, por correto e piedoso que seja, nem ao
menos é um crente. A dimensão horizontal da comunhão é aquele
compartilhar habitual, aquele constante dar e receber de cada parte, o que
também é o verdadeiro e autêntico padrão de vida do povo de Deus.
A comunhão com Deus, pois, é a fonte da qual se origina a comunhão
entre os crentes; e a comunhão com Deus é o fim para o qual a comunhão
cristã é um meio. Portanto, não devemos conceber a nossa comunhão com
os demais crentes como um luxo espiritual, uma adição opcional aos
exercícios de devoção particular. Pelo contrário, devemos reconhecer que
essa comunhão é uma necessidade espiritual; pois, Deus nos constituiu de
tal modo que a nossa comunhão com Ele é alimentada pela nossa comunhão
com os irmãos na fé, requerendo ser constantemente nutrida para o próprio
aprofundamento e enriquecimento.
Quando a fé dos crentes hebreus enfraqueceu, o escritor sagrado exortou-
os a que, entre outras coisas, tivessem mais comunhão. "Consideremo-nos
também uns aos outros, para nos estimularmos... Não deixemos de
congregar-nos, como é costume de alguns..." (Hb 10.24, 25). Isso constituiu
um ponto vital na mensagem do escritor sagrado para eles. Pois o
florescimento da igreja e o fortalecimento dos crente ocorrerão somente
onde houver a comunhão. Isso não é verdade apenas sobre a igreja que está
na terra; o céu, o lugar do aperfeiçoamento da igreja, será o local da
comunhão mais livre e jubilosa. Mas, em todos os casos, tanto aqui como na
existência vindoura, a comunhão praticada pelos remidos terá como alvo,
determinado por Deus, o aprofundamento da comunhão que cada um deles
desfruta com o Redentor. A primeira verdade a ser aprendida a respeito da
comunhão cristã é que ela não é um fim em si mesmo. A comunhão entre os
crentes tem como alvo a nossa comunhão com Deus.
COMUNHÃO COM DEUS
Acerca da relação de dar e receber que existe entre os crentes e as duas
primeiras pessoas da trindade, só podemos falar aqui de passagem. Basta
dizer que se trata de uma dupla relação, na qual os participantes do lado
divino e do lado humano mostram-se ativos. A comunhão de Deus com os
homens envolve tudo quanto o Pai e o Filho têm feito, fazem e farão, a fim
de compartilharem conosco, os pecadores, a sua glória. A nossa comunhão
com Deus envolve todos os atos de dar a Ele e de receber dEle, para
podermos expressar nosso arrependimento e nossa fé. Deus se dá a nós,
como nosso Pai, com base na redenção realizada por seu Filho. Recebemos a
filiação da parte de Deus, bem como o direito a todas as bênçãos inerentes a
essa filiação, por termos recebido o Senhor Jesus Cristo como nosso
Salvador. Disse o Senhor: "Quem me recebe, recebe aquele que me enviou"
(Mt 10.40). E João nos assegura: "Mas, a todos quantos o [Cristo]
receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus" (Jo 1.12).
Essa filiação, oferecida e aceita, é o alicerce sobre o qual descansa toda a
nossa subsequente comunhão com Deus. Dia a dia, como filhos de Deus,
aceitamos agradecidos os dons que nosso Pai celestial nos outorga - a
remissão diária dos pecados, a confirmação diária das suas promessas, as
revelações diárias de sua pessoa, nas Escrituras. Diariamente, entregamos os
nossos temores e fracassos, com confiança, ao nosso Pai celeste, tirando
deliberadamente de nossos ombros a carga de preocupações, a fim de lançá-
la sobre Ele. Em poucas linhas, nisso consiste o dar e o receber - o
compartilhar com Deus - que compõe a vida de fé. Juntamente com isso
temos aquele dar e receber que constitui o arrependimento, a resposta
cotidiana aos apelos que Deus nos faz: "Dá-me, filho meu, o teu coração";
"Oferecei-vos a Deus"; "Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim";
"...dia a dia tome a sua cruz e siga-me" (Pv 23.26; Rm 6.13; Mt 11.29; Lc
9.23). Esse é o formato estrutural da comunhão do crente com Deus. Isso é,
em essência, a vida cristã.
COMUNHÃO ENTRE OS CRENTES
De que modo a comunhão entre os crentes encaixa-se nesse quadro? A
comunhão cristã é uma atividade em família da qual participam os filhos de
Deus. Tal como a comunhão com o Pai e com o Filho, a comunhão entre os
crentes é como uma rua de mão dupla, que envolve tanto o dar como o
receber de ambas as partes. Em primeiro lugar, consiste em compartilhar
com nossos irmãos na fé as coisas que Deus nos revelou sobre Si mesmo, na
esperança de que assim poderemos ajudá-los a conhecê-Lo melhor e a
enriquecerem a sua comunhão com Ele. O apóstolo João ilustrou esse
aspecto da comunhão cristã. Ele nos diz que, quando se sentou a fim de
escrever a sua primeira epístola, o seu motivo era "para que vós igualmente
mantenhais comunhão conosco", e foi com o propósito de explicar o
significado desse desejo que ele adicionou as palavras já citadas: "A nossa
comunhão é com o Pai e com seu Filho, Jesus Cristo" (1 Jo 1.3). João
esperava atrair os seus leitores àquilo que ele mesmo chegara a conhecer da
comunhão com Deus. Essa era a "comunhão conosco" que ele queria que seus
leitores tivessem.
Esse é um dos lados da comunhão cristã; mas, existe um outro. Em
segundo lugar, a comunhão consiste em procurarmos compartilhar com os
outros aquilo que Deus nos revelou acerca de Si mesmo, como um meio para
encontrarmos forças, refrigério e instrução para as nossas almas.
Na comunhão, procuramos tanto receber quando dar. O apóstolo Paulo
ilustrou esse lado da questão, escrevendo aos romanos: "Muito desejo ver-
vos, a fim de repartir convosco algum dom espiritual, para que sejais
confirmados". E, para que não desse a impressão de que pensava na
comunhão entre ele e as jovens igrejas como uma rua de mão única,
apressou-se a acrescentar: "Isto é, para que, em vossa companhia,
reciprocamente nos confortemos, por intermédio da fé mútua, vossa e
minha" (Rm 1.11, 12). A comunhão que Paulo anelava era uma comunhão de
mão dupla. Apesar dele ser um tão grande apóstolo, mostrou-se humilde e
realista o bastante ao reconhecer que precisava de comunhão, para seu
próprio encorajamento, e ao afirmar, quando ministrava a seus irmãos na fé,
que ele o fazia na esperança não somente de que lhes causaria algum bem,
mas que eles igualmente contribuiriam para o seu benefício. Alguns crentes
mais velhos na fé são orgulhosos para se deixarem ajudar nas questões
espirituais por seus irmãos mais jovens na fé. E alguns ministros não
permitem que os membros de suas congregações os ajudem. Paulo não agia
assim! Esse é o outro lado da comunhão cristã.
Portanto, a comunhão cristã é uma expressão de amor e de humildade.
Resulta do desejo de beneficiar o próximo, juntamente com um senso de
debilidade e de necessidade pessoal. Tem um duplo motivo: o desejo de
ajudar e de ser ajudado; de edificar e de ser edificado. Tem um duplo alvo -
fazer e receber o bem. Ocorre quando o povo crente busca coletivamente
conhecer melhor ao Senhor, compartilhando mutuamente aquilo que cada
pessoa já aprendeu da parte do Senhor.
O SIGNIFICADO DA COMUNHÃO
Aanálise anterior esclarece três pontos.
Primeiro, a comunhão é um meio de graça. Mediante a comunhão, aalma
da pessoa é refrigerada e nutrida; mediante o esforço de transmitir o seu
conhecimento sobre as realidades divinas, o seu entendimento dessas
realidades é fortalecido. A alma do crente é enriquecida quando os seus
irmãos na fé oram por ele, cuidam dele como irmão e compartilham de suas
provações e de seus triunfos; e quando o crente ajuda a outros, tal como ele
também é ajudado, todos amadurecem e são beneficiados. Os constantes
apelos de Paulo para que os crentes orassem em seu favor, ao mesmo tempo
em que oraria por eles (Rm 15.30; 2 Co 1.11; Ef 6.19; Cl 4.3; 1 Ts 5.25; 2 Ts
3.1, 2; Fm 22; cf. Hb 13.18), bem como o conselho de Tiago: "Confessai, pois,
os vossos pecados uns aos outros, e orai uns pelos outros, para serdes
curados...'' (5.16), confirmam isso. A comunhão cristã é um meio de graça
que negligenciamos para nossa pobreza e para nosso próprio perigo.
Em segundo lugar, a comunhão é um teste de vida. A comunhão significa
abrir nosso coração aos outros crentes. Sempre que houver fingimento ou
encobrimento, a comunhão não poderá existir. Mas somente o homem que
está sendo franco e honesto com Deus, em seu relacionamento com Ele, é
livre para abster-se do fingimento e do encobrimento acerca de si mesmo. O
homem que não permite que a luz de Deus brilhe intensamente sobre toda a
sua vida não pode ter comunhão desimpedida com os outros crentes; de
fato, ele procurará evitar a comunhão, para que a sua insinceridade não seja
detectada. Escreveu João: "Se, porém, andarmos na luz, como ele está na luz,
mantemos comunhão uns com os outros" (1 Jo 1.7), mas jamais de outro
modo.
Em terceiro lugar, a comunhão é um dom de Deus. A bênção de Paulo, em
2 Coríntios 13.13, diz: "A graça do Senhor Jesus Cristo, e o amor de Deus, e a
comunhão do Espírito Santo sejam com todos vós" - e isto certamente está
correto. Somente onde o Espírito de Deus tem sido dado, onde os homens
estão espiritualmente vivos e ansiosos por crescerem na graça e ansiosos por
ajudarem outros a fazer o mesmo, que a comunhão torna-se possível. É
somente quando o Espírito Santo nos capacita a falar com os outros, e os
outros conosco, de tal modo que Cristo e o Pai se tornam conhecidos através
daquilo que é dito, que a comunhão torna-se uma realidade. Quando
procuramos desfrutar de comunhão, devemos fazê-lo dependendo do
Espírito, a terceira pessoa da Trindade, cujo ofício consiste em revelar-nos a
pessoa de Cristo. Doutra forma, nossas conversas uns com os outros serão
vazias e sem proveito, e o alvo de nossa comunhão - uma mais profunda
familiaridade com nosso Senhor - nunca será alcançado.
O CAMINHO DA COMUNHÃO
Quando a comunhão se torna uma realidade?
Aresposta para essa pergunta torna-se clara através daquilo que já foi
dito. A comunhão torna-se uma realidade sempre que dois ou mais crentes,
desejando ajudar-se mutuamente a conhecerem melhor a Deus, de fato
compartilham um com o outro do conhecimento de Deus que ambos
individualmente já possuem. Isso pode suceder em muitas circunstâncias: na
pregação, na oração coletiva, nas conversas particulares com um pastor, nos
grupos de estudos bíblicos, nos diálogos entre amigos crentes às refeições ou
quando marido e mulher sentam-se em uma sala a fim de conversar. Porém,
o que sucede em cada caso é sempre o mesmo: a presença e o poder do
Senhor são percebidos, e Ele toma-se mais conhecido, mediante as palavras
ditas por aqueles crentes. Pois a promessa de Jesus, "onde estiverem dois ou
três reunidos em meu nome, ali estou no meio deles" (Mt 18.20), aplica-se
tanto às reuniões informais de comunhão como às reuniões públicas de
adoração. Ela tanto se cumpre quando dois crentes se encontram para
compartilhar coisas espirituais, como quando uma congregação se reúne aos
domingos.
O que impede a comunhão? Quatro coisas, pelo menos.
O primeiro obstáculo é a autossuficiência. Não pode haver comunhão
enquanto as pessoas não percebem que dependem umas das outras para
receberem ajuda espiritual. Uma atitude de autossuficiência espiritual pode
refletir o estado de morte espiritual do não-convertido, para quem todas as
coisas espirituais parecem irreais; ou pode refletir a miopia espiritual de
crentes indolentes (cf. Hb 5.12ss.; Rm 12.1-3) - os quais podem ser até
mesmo velhos na fé. Esta atitude também pode ser a racionalização de
alguém que, pelo orgulho, pelo senso de culpa ou pela hipocrisia consciente,
ou mesmo por todos esses três defeitos, não está disposto a compartilhar as
suas necessidades espirituais e a pedir ajuda de outros. Porém, qualquer que
seja a causa, a autossuficiência exclui a comunhão desde o seu início.
O segundo obstáculo é o formalismo. Alguns compreendem que a
comunhão cristã se resume em envolver-se na adoração pública com uma
postura correta, sobretudo na ocasião da Ceia do Senhor, e evitam qualquer
comunhão mais íntima. Essa atitude tem diminuído em nossos dias,
especialmente através do informalismo do movimento carismático, embora
haja lugares onde ela persiste. Uma vívida adoração litúrgica certamente é
comunhão cristã, mas esta não se limita à adoração litúrgica, e eu espero que
isto já esteja claro para meus leitores.
O terceiro obstáculo é a amargura, que se expressa por constantes
atitudes de hostilidade. Hebreus 12.15 nos adverte sobre a perturbação que
uma raiz de amargura pode causar. A amargura parece derivar-se mais
frequentemente do orgulho ferido e da malícia defensiva, de algum senso de
injustiça, de maus-tratos ou de traição, ou então da inveja que se ressente
em face dos dons, da posição ou do sucesso de outrem. A inveja, em
particular, torna-se uma raiz oculta de amargura, exprimindo-se em
controvérsias, em frieza pessoal, em maledicência (que alguém definiu como
a arte de confessar os pecados alheios), em protesto ou em divisionismo. Na
comunhão autêntica, cujo alvo é tornar a outra pessoa mais hábil para Deus,
há um lugar próprio para a crítica construtiva. A crítica pode ser exigida pelo
amor, como os pais o sabem, mas ela precisa ser construtiva, e não
destrutiva, oferecida com gentileza e restrição, por alguém que esteja
consciente de ser ele mesmo um pecador e que reconhece que todos nós
aceitamos bem pouco qualquer crítica. Entretanto, quando o motivo por
detrás da crítica é a amargura, ela acontecerá de modo arrogante e
desenfreado, que nega a comunhão, ao invés de promovê-la.
O quarto obstáculo é o elitismo, uma atitude de superioridade que produz
"panelinhas" alicerçadas sobre o exclusivismo. Trata-se de uma imitação
satânica da verdadeira comunhão, da qual nada é excluído, exceto a
incredulidade. Quando grupos superentusiasmados se reúnem para formar
associações baseadas em pequenas peculiaridades doutrinárias ou na atração
magnética de um líder, o orgulho sobressai e a comunhão definha.
Essa lista de obstáculos à comunhão poderia ser mais minuciosa, mas sem
dúvida não há necessidade disso. Do que já foi dito, não deve haver
dificuldade alguma para responder à pergunta: Por que não desfrutamos de
comunhão? onde quer que essa pergunta seja feita. Prossigamos. Podemos
extrair algumas conclusões do que já foi dito.
A primeira delas é que hoje os crentes de todas as idades precisam de
comunhão. Ninguém é espiritualmente autossuficiente; Deus não nos criou
assim. Sem a comunhão, tenhamos consciência disso ou não, seremos e
permaneceremos crentes fracos. Essa é uma das leis da vida espiritual. Já
citamos a sábia e veraz declaração de Wesley, que nada é mais anticristão do
que um crente solitário.
A segunda é que hoje os crentes sentem falta de comunhão. Temos muitas
reuniões de "comunhão" de diferentes tipos, mas a realidade da comunhão
se faz ausente. Na verdade, raramente ela é procurada. Isso sucede porque,
em nossa maneira de pensar, temos substituído a ideia bíblica e trinitária da
comunhão, na qual nos ajudamos mutuamente e nos aproximamos mais do
Pai e do Filho, mediante o Espírito Santo, pela ideia secular e social de
comunhão como uma reunião informal e divertida. Consequentemente,
pensamos que estamos desfrutando de comunhão quando, na realidade, não
a estamos experimentando de modo algum. Precisamos de uma aquilatação
mais realista de nossa situação a esse respeito.
A terceira é que hoje os crentes devem buscar a comunhão. Tanto crentes
solitários e isolados, espiritualmente famintos e desencorajados, como
também membros de igrejas prósperas que são atarefados obreiros cristãos -
todos precisam de comunhão e deveriam esforçar-se para obtê-la. Os
Puritanos costumavam solicitar a Deus algum "amigo do peito", com o qual
pudessem compartilhar absolutamente de tudo e pudessem manter um
intenso companheirismo no terreno da oração. Juntamente com isso, eles
anelavam por grupos de conversação sobre as coisas divinas e
frequentemente estabeleciam grupos desse tipo. Seríamos sábios se
seguíssemos o exemplo deles em ambas as coisas. Na história e na teologia, a
comunhão e o avivamento avançam de mãos dadas - de fato, um renovado
espírito de comunhão entre os crentes é um dos aspectos do avivamento. À
medida em que valorizamos a saúde de nossas próprias almas e da igreja
cristã, precisamos aprender a valorizar a comunhão e trabalhar para colocá-
la no lugar que lhe cabe, como um meio de graça, para todos os membros do
corpo de Cristo.
"Todavia, ele não teve uma vida mal sucedida em sua profissão, e o único
intruso com o qual não pôde lidar foi a morte.'' Assim, no fim de seu mais
poderoso romance, Charles Williams encerrou a história do distinto jovem
que não tinha critério de valores, exceto para aquilo que lhe seria útil. As
palavras de Williams serviriam de epitáfio para muitos de nossos dias, pois
mostram, com grande exatidão, como a morte alcança o homem natural. De
fato, a morte chega de forma intrusa, sem ser convidada e com a qual não se
pode barganhar. E quando um homem vê que ela se aproxima, o pânico
brota. Sem importar quão brava ou indiferente seja a sua fisionomia fingida,
intimamente ele se sente isolado, paralisado, exaurido de forças. De fato, o
homem é incapaz de enfrentar a morte.
Disse James Denney que, de todas as experiências humanas, a mais
universal é a má consciência. Se isso é assim, então a segunda experiência
em ordem de abrangência é a morte. A epístola aos Hebreus descreve os
remidos como pessoas que "pelo pavor da morte, estavam sujeitos à
escravidão por toda a vida" (Hb 2. 15). A humanidade inteira conhece a
morte pelo que é chamada em Jó 18.14: "Rei dos terrores". Todas as épocas e
culturas têm achado traumatizante a ideia da morte: ela choca, abala,
debilita. Por todo o mundo, as pessoas ficam embaraçadas e aturdidas, se
alguém lhes fala acerca da morte. Por toda a parte, a experiência da perda de
um ente querido, ou da morte de um amigo, abala profundamente as
pessoas, e a expectativa da morte lança os inválidos em desespero apático
(esse é um dos motivos por que os médicos e os funcionários dos hospitais,
frequentemente de forma cruel, procuram ocultar dos moribundos a
verdadeira condição deles) . Por dezenove vezes a Bíblia chama de "sombra"
a expectativa da morte, e essa figura de linguagem destaca bem os nossos
sentimentos a respeito dela. Vemos a morte avultando-se à nossa frente
como uma ameaça negra e grosseira, projetando sombras diante de si,
escurecendo os nossos momentos mais radiantes com arrepios e melancolia.
Dia a dia aproximamo-nos mais da morte e o brilho da vida terá
desaparecido para sempre. Teremos passado à região tenebrosa. Quando
contemplamos aquela passagem, sentimo-nos estranhamente intranquilos.
O que há além da escuridão? Quando esta vida termina, o que começa? Essa
indagação preocupa as pessoas mais do que usualmente elas querem admitir.
Alguns, é natural, desprezam-na resolutamente. Pensar sobre a morte,
dizem eles, é melancólico, e pessoas que têm a mente saudável não fazem
isso. Porém, é duvidoso que a atitude deles seja a mais sábia. Pois, em
primeiro lugar, considerar a morte nada mais é do que um realismo sóbrio,
visto que a morte é a única grande certeza da vida. O escapismo que faz um
homem fechar os olhos diante da expectativa da morte é tão estúpido
quanto é neurótico e desmoralizante; não demonstra maior saúde mental do
que a chamada atitude "vitoriana" diante do sexo. Se pensamos que é
necessário para a saúde mental e moral enfrentar os "fatos da vida" relativos
ao sexo, devemos lembrar que um fato muito mais fundamental da vida
haverá de interrompê-la, mais cedo ou mais tarde; e não devemos duvidar da
necessidade de encarar esse fato, se a nossa concepção da vida for saudável.
Filipe da Macedônia mostrou-se sábio quando encarregou um escravo de
lembrá-lo, a cada manhã: "Filipe, lembre-se que você haverá de morrer".
Alguns de nós receberiam bem lembretes como esse.
Nestes últimos anos, a comunidade científica tem estudado intensamente
a morte física e o processo da morte. O desenvolvimento de técnicas
médicas para reavivar o coração tem anulado a antiga noção de que a morte
ocorre quando o coração cessa de bater, para dar lugar ao conceito de um
processo de morte que se torna irreversível quando as ondas elétricas
cessam no cérebro, cerca de vinte minutos após o coração ter deixado de
bater. Muitos têm narrado diversos tipos de experiência entre o momento
em que o coração para e o momento em que reinicia as suas batidas; e os
exponentes do oculto têm se agarrado a algumas dessas experiências como
revelações sobre o destino humano. Porém, visto que nenhuma delas pode
nos dizer o que sucede quando o processo da morte se completa e quando o
cérebro perde totalmente a consciência, o homem sábio não considera que
tais experiências sejam decisivas acerca de qualquer coisa. Aquele que é sábio
também não pensará que a curiosidade sobre a morte, que todos esses
estudos têm despertado, contribuirá para diminuir o efeito traumatizante
naquele que se questiona para onde irá, após a saída deste mundo.
Parece óbvio que os jovens são mais capazes de pensar corretamente
acerca da morte do que qualquer outro grupo de pessoas. Pois quando o
senso da própria individualidade e das ilimitadas possibilidades da vida
acaba de cristalizar-se na mente, o real horror da morte que se avizinha
golpeia com mais vigor e mais dolorosamente do que já fizera antes ou o fará
depois. Muitos jovens, entre os quinze e os vinte e cinco anos de idade,
algumas vezes ficam deitados à noite, solitários, a meditar: "Estou apenas
começando a viver. Mas, que horror, terei de morrer!" E tal pensamento fere
como um forte soco no estômago. As pessoas dessa faixa etária encaram a
morte como uma anormalidade, um ultraje cósmico, que zomba de todos os
seus recém surgidos anseios pela verdade, pela beleza e pela realização
pessoal. A dúvida corrói. Haverá algum sentido em seguir objetivos dignos,
se, no fim de nossa inquirição, ou mesmo antes, teremos de morrer? Em
geral, é somente durante a juventude que esse ultrajante senso acerca da
morte se manifesta com vigor. Na meia-idade, a visão da juventude é
nublada, e a pessoa simplesmente se resigna a morrer no devido tempo,
como uma necessidade natural (embora nem por isso venha a amar a
morte). Quando chega a idade avançada, esta visão está quase esquecida, e a
vitalidade física cai a um nível tão baixo que a morte pode até mesmo ser
bem recebida, como uma libertação. Todavia, o adulto jovem vê a morte
como um monstro malévolo e se ressente; e, por causa disso, ele mostra que
seu senso da realidade é mais agudo do que o de pessoas mais velhas. Pois a
morte, na verdade, é uma anormalidade, segundo veremos a seguir.
A NATUREZA DA MORTE
Quando uma pessoa morre por doença ou velhice, chamamos isso de
"morte natural", reservando a expressão "morte provocada" para os casos de
acidente ou de violência. A Bíblia confirma nosso sentimento instintivo de
que, no seu sentido mais profundo, toda morte é anormal. O que é a morte?
É a dissolução da união entre o espírito e o corpo: "O pó volte à terra... e o
espírito... a Deus, que o deu" (Ec 12.7). Há aqui uma referência à narrativa da
criação. Tal como no começo Deus criou o homem, soprando vida no que era
apenas pó (Gn 2.7), assim também agora, na morte, Deus o desfaz ao menos
em parte, separando as duas realidades que originalmente ele havia unido.
Para o homem, essa desintegração é altamente anormal. Eis a razão por que
pessoas sensíveis ficam perplexas diante de cadáveres. Alguns dizem que os
mortos têm um ar pacífico, mas isso não é verdade. O fato é que os
cadáveres parecem vazios. É o vazio evidente em que se encontram que nós
achamos debilitante - o senso de que a pessoa, cujo corpo e cujo rosto
continuam ali, simplesmente se foi.
A morte significa o aniquilamento da pessoa? Certamente que não. Nos
termos de Paulo, a morte é o "despir-se" de uma pessoa, por meio do
desmontar de seu "tabernáculo" (2 Co 5.1, 2). Mas a morte não é o fim da
existência pessoal do indivíduo. Em toda parte, a Bíblia admite a existência
perpétua da pessoa. O Antigo Testamento descreve o morto como quem
"desce" (uma metáfora natural) ao lugar que ela chama de sheol (na
Septuaginta e no Novo Testamento grego, hades). As versões traduzem tanto
sheol como hades por "inferno", mas essa tradução é errônea, pois nenhum
daqueles termos implica em qualquer infelicidade ou não por parte dos seus
residentes. Apenas algumas versões recentes retêm os nomes originais,
transliterando-os, e não traduzindo-os.
O sheol, no entanto, é a habitação final dos mortos. A Bíblia retrata o
esvaziamento do hades, quando os mortos ressuscitarem para julgamento,
no retorno de Cristo (Jo 5.28, 29; Ap 20.12, 13; Dn 12.2, 3). Aqueles cujos
nomes foram inscritos no livro da vida (Ap 20.12) serão recebidos com
alegria para a eterna bem-aventurança ("a vida eterna", Mt 25.46; "glória,
honra e paz", Rm 2.10; o reino, Mt 25.34; a nova Jerusalém, Ap 21.2 - 22.5).
Os demais, porém, experimentarão a mais extrema manifestação do
desprazer divino ("fogo inextinguível", Mt 3.12; Mc 9.43; a geena - que era o
lugar de incineração, fora de Jerusalém - "onde não lhes morre o verme, nem
o fogo se apaga", Mc 9.47, 48; "nas trevas", onde há "choro e ranger de
dentes", Mt 25.30; "o castigo eterno", Mt 25.46; "o fogo eterno, preparado
para o diabo e seus anjos", v. 41; "ira e indignação... tribulação e angústia",
Rm 2.8, 9; "a eterna destruição, banidos da face do Senhor", 2 Ts 1.9; "o lago
que arde com fogo e enxofre, a saber, a segunda morte", Ap 21.8; cf. 20.15).
Alguns afirmam que esses textos ensinam o aniquilamento dos rejeitados
- torrando por um breve momento e, então, o esquecimento eterno. Porém,
é claro que a "segunda morte" não é a cessação da existência, tal como não o
é a primeira morte. Pois (a) a palavra traduzida por "destruição", em 2
Tessalonicenses 1.9 (no grego, olethros), não significa aniquilamento, mas
ruína (cf. seu uso em 1 Tm 6.9); (b) Ainsistência, nesses textos, de que o
fogo, o castigo e a destruição são eternos (no grego, aiõnios, literalmente,
"por toda a era") e de que o verme na geena não morre seria sem sentido e
impróprio, se tudo quanto estivesse em foco fosse uma extinção súbita;
assim como o seria permanecer em dor "interminável", como resultado de
um fatal ferimento à bala. Ou essas palavras indicam que os tormentos serão
intermináveis, ou são supérfluas e enganadoras; (c) Diante do argumento
que aiõnios significa apenas "relativo à era vindoura", sem qualquer ideia de
duração infinita, parece suficiente dizer que se em Mateus 25.46 "vida
eterna" significa bem-aventurança eterna, como certamente é o caso, então a
punição "eterna", aqui mencionada, também deve ser interminável; (d)
Somos informados que no "lago do fogo" ("o fogo eterno, preparado para o
diabo e seus anjos", Mt 25.41) o diabo será atormentado "de dia e de noite
pelos séculos dos séculos" (Ap 20.10). Que qualquer ser humano para ali
enviado compartilhará da mesma sorte, torna-se claro através da linguagem
paralela de Apocalipse 14.10, 11: "será atormentado (todo adorador da
besta) com fogo e enxofre... A fumaça do seu tormento sobe pelos séculos
dos séculos, e não têm descanso algum, nem de dia nem de noite".
É evidente que esses textos não ensinam a extinção, e, sim, a perspectiva
muitíssimo pior de uma interminável percepção do justo e santo desprazer
do Senhor. Por mais terrível que isso nos pareça, e por mais repugnante que
achemos o simbolismo apocalíptico judaico, segundo o qual Cristo e seus
apóstolos falaram (afinal de contas, estamos na era pós-holocausto), um
inferno interminável não pode ser removido do Novo Testamento, assim
também como o céu interminável não o pode. Eis por que a morte física (a
primeira morte) é uma perspectiva tão espantosa para quem não tem a
Cristo; não porque significa a extinção, mas precisamente por não ter esse
significado ao referir-se à interminável dor da segunda morte. O ímpio
entende isso de modo obscuro, mediante a revelação geral de Deus (Rm
1.32). Não admira, pois, que ele tema a morte.
No Antigo Testamento, as alusões à morte indicam, pelo menos
superficialmente, a dissolução física. Porém, no Novo Testamento, o
conceito da morte é radicalmente aprofundado. Ali, a morte é vista
primariamente como um estado espiritual, o estado da humanidade sem
Cristo. Assim como a morte física significa a separação entre o espírito e o
corpo, assim também a morte espiritual expressa um estado em que o
homem encontra-se separado de Deus, cortado do seu favor e da comunhão
com Ele, "mortos em... delitos" (Ef 2.1, 5; cf. Mt 8.22; Jo 5.24; Rm8.6; Cl
2.13; 1 Tm 5.6). Na Bíblia, "vida" denota reiteradamente a alegria da
comunhão com Deus (cf. 1 Jo 5.12). Da mesma forma, o estado de quem
está alienado dessa "vida de Deus" (Ef 4.18)é equivalente à "morte".
Precisamos ser libertos, antes de tudo, da morte espiritual.
A MORTE E O PECADO
Por toda a Bíblia, a morte, em seu aspecto físico e em seu aspecto
espiritual, é vista como um mal judicial, o julgamento de Deus contra o
pecado (cf. Ez 18.4). Como diz Paulo, a morte é o "salário" pago aos
empregados do pecado (Rm 6.23). Quando Deus disse a Adão: "...no dia em
que dela [da árvore do conhecimento do bem e do mal] comeres, certamente
morrerás" (Gn 2.17), a referência primária e evidente era à dissolução física,
conforme Gênesis 3.19. (As palavras "no dia em que" exprimem certeza de
sequência, e não, necessariamente, proximidade temporal. Compare o uso da
mesma frase em 1 Reis 2.37. Adão não morreu senão vários séculos mais
tarde - Gênesis 5.5). Portanto, quando Paulo diz, em 1 Coríntios 15.22,
"assim como em Adão todos morrem", o contexto mostra-nos que ele tinha
em mente apenas a morte física, que Cristo abolirá pela ressurreição dos
mortos.
Mas, em Romanos 5.12ss., quando ele faz menção do fato que Cristo
livrou "muitos", que Lhe pertencem, da "morte" na qual Adão os envolveu, a
sua referência é mais ampla. Pois o livramento ali exposto não é meramente
a ressurreição física (de fato, a ressurreição física nem mesmo é mencionada
naquela passagem). Antes, está em pauta a "justificação" presente (vv. 16-
19), que leva à restauração da "vida" (vv. 17, 18, 21), em outras palavras, a
cura daquele relacionamento corrompido que o homem tem com Deus, do
qual a morte física serve somente de prova e emblema. Portanto, implícito
em Gênesis 2.17, também achamos uma referência à morte espiritual, que
foi retratada quando Deus expulsou o homem do jardim do Éden (o lugar da
comunhão), a fim de impedi-lo de comer do fruto da árvore da vida.
O que teria sucedido ao homem, no fim de seu período de prova sobre a
terra, se ele não tivesse pecado? Teria morrido fisicamente?
Presumivelmente, não; pelo menos no sentido em que ele agora morre.
Talvez Deus o teria apenas "tomado", como fez com Enoque e Elias (Gn 5.24;
2 Rs 2.1, 11). Alguns pensam que ele teria sido fisicamente transfigurado, a
exemplo de Cristo (Mc 9.2ss.). Porém, tudo isso é especulação sobre um
assunto que as Escrituras silenciam; e, perguntas acerca das quais a Bíblia
nada responde devem ser deixadas sem respostas.
O CARÁTER DECISIVO DA MORTE
O mundo usualmente refere-se à morte física apenas como um ponto
final, o fechar da porta para a vida terrena de alguém. Mas, o Novo
Testamento também a encara como um começo - abrir da porta para o
destino de alguém, a nova vida na qual a pessoa começa a colher o que
semeou (cf. 2 Co 5.10; Gl 6.7).
No Antigo Testamento, é verdade, encontramos os santos procurando evitar
a perspectiva da morte, crendo que no sheol, embora Deus não estivesse
ausente do mesmo (Sl 139.8), não poderiam desfrutar daquela comunhão
doce e íntima com o Senhor, conforme haviam desfrutado na terra (cf. Sl
88.10-12; 115.17; Ec 9.5, 10; Is 38.18; etc.). O Novo Testamento parece
sugerir que os santos do Antigo Testamento estavam, de fato, esperando até
que o próprio Cristo entrasse no sheol, antes que a comunhão deles com
Deus, na Sião celestial, viesse a ser aquela comunhão completa e perfeita que
agora é (cf. Hb 11.40 com 12.18-23).
Seja como for, o Novo Testamento deixa claro que, nestes " últimos dias",
as rodas da retribuição divina estão girando a partir do momento da morte
física e cada pessoa imediatamente começa a experimentar, de modo
intenso, aquela relação com Deus (se, durante a vida terrena, ouviu o
evangelho) e com Jesus Cristo; relação essa que ela preferiu ter durante a
sua vida neste mundo - ou ficando com Deus e Cristo, que significará um
paraíso e gozo (Lc 23.43; Fp 1.23; 2 Co 5.6-8; cf. At 7.55-59), ou ficando sem
Eles, nas trevas espirituais de uma existência egocêntrica e voluntariosa (cf.
Jo 3.19), uma condição que provoca a mais autêntica agonia, quando a
pessoa começa a compreender o que perdeu (Lc 16.23ss.). Para aqueles que
estão com Cristo, em sua graça Deus faz com que a nova vida seja
caracterizada por uma alegria crescente, sem qualquer dor (Ap 7.15ss.). Mas,
para aqueles que estão sem Cristo, Deus, em sua justiça retributiva, faz com
que a nova forma de existência caracterize-se por dores crescentes, sem
qualquer gozo (Lc 16.25). Assim sendo, a predição de nosso Senhor já está se
cumprindo: "A todo o que tem dar-se-lhe-á; mas ao que não tem, o que tem
lhe será tirado" (Lc 19.26).
Porém, será tarde demais para mudar. Após a morte, é posto "um grande
abismo" entre aqueles que Deus aceita e aqueles que Ele rejeita (Lc 16.26). O
tempo da escolha terá passado. Tudo quanto restará da escolha já feita, será
receber as consequências, até certo grau, no "estado intermediário", e mais
plenamente após a ressurreição e o julgamento final (cf. Hb 9.27). Nada há
de arbitrário quanto à doutrina da punição eterna. Em sua essência, ela
mostra que Deus respeita a nossa escolha, dando prosseguimento, por toda
a eternidade, à condição espiritual na qual preferimos ficar enquanto
estávamos na terra.
Para muitos, isso parece um ensino doloroso e indesejável. Mas seremos
sábios se não o ignorarmos. Pois, grande parte desse ensino vem
diretamente de nosso Senhor. Uma reação melhor será vivermos conforme
viveram os santos antes de nós, sub specie aeternitatis – à luz da eternidade.
Com toda a razão orou o salmista: "Ensina-nos a contar os nossos dias, para
que alcancemos coração sábio" (Sl 90.12). Murray M'Cheyne pintou um pôr-
do-sol sobre o mostrador de seu relógio, para lembrar-se de quão pouco
tempo dispunha. Alguém declarou, com verdade, que teremos a eternidade
inteira para nos regozijarmos nas vitórias ganhas por Cristo, mas apenas
poucas horas, neste mundo, para conquistá-las. Todos nós precisamos ser
despertados para o senso da brevidade de nosso tempo, bem como para a
eterna significação do momento presente.
OUTROS PONTOS DE VISTA
"Acabei de ler o seu artigo sobre a morte e o achei revoltante". Assim
começava a carta, enviada por um amado evangelista irlandês, atualmente
na glória, quando os parágrafos acima apareceram em forma impressa.
Outros podem sentir o mesmo, e talvez nada haja que eu possa fazer a
respeito; porém, vejamos se mais algum esclarecimento bíblico poderá
ajudar.
Quais são as alternativas quanto ao caráter decisivo da morte física, que
acabei de demonstrar? Somente três: imortalidade condicional, evangelismo
após a morte e universalismo. Consideremos essas três alternativas.
A imortalidade condicional (a doutrina da aniquilação dos rejeitados no dia
do julgamento) foi negada acima, por razões bíblicas. Em sua carta, aquele
meu amigo evangelista lembrou-me que diversos famosos evangélicos
britânicos que estudaram na Universidade de Cambridge, no período entre
as duas grandes guerras mundiais, defenderam o condicionalismo. Isso é
verdade, mas não penso que isso lhe dê o direito de afirmar: "Você só citou
trechos bíblicos que favorecem a sua teoria e ignorou o resto". "O resto" não
é texto bíblico, mas apenas interpretação. Seja dito claramente que não há
uma única passagem bíblica da qual o condicionalismo pode, com confiança,
ser concebido. Há passagens que podem ser interpretadas como
condicionalismo; e, como vimos, com muita dificuldade podem ser
interpretadas como tal; porém, são passagens sobre as quais é necessário
haver um arrazoamento especial para o condicionalismo manter-se de pé.
Como alguém que está interessado somente no que a Bíblia realmente diz,
querendo apenas o seu sentido natural, devo dizer que esse arrazoamento
especial com o qual me tenho deparado não é convincente.
De fato, a mola mestra do condicionalismo não é exegética, mas teológica.
Sobre a suposição que a honra e a glória de Deus não requerem a
continuação da existência dos perdidos, em condição de miséria, após o
juízo, alguns afirmam que se Deus não os aniquilar, então, estará sendo
desnecessariamente cruel. Tal argumento, porém, derrota a si mesmo; pois
pressupõe que Deus também é desnecessariamente cruel ao manter os
perdidos em uma existência de miséria, durante o estado intermediário (Lc
16.23ss.), até ao dia do julgamento final. Antes, se assim fosse, Deus deveria
aniquilá-los por ocasião da morte física - o que, conforme a Bíblia ensina
claramente, não o faz. Na realidade, um julgamento justo e merecido não é
crueldade, e a posição da Bíblia é que o destino determinado por Deus para
os ímpios é um julgamento justo (cf. Lc 12.47, 48; Rm 2.5-16) e contribui
para o seu louvor (cf. Ap 16.5-7; 19.1-3).
O evangelismo após a morte, que alcançaria todos quantos nunca ouviram
o evangelho pregado de forma "inteligente", também foi defendido por meu
amigo evangelista. Porém, não há qualquer prova bíblica para isso. Os
versículos misteriosos de 1 Pedro 3.19, 20 não podem ser pressionados de
forma a servir de base para a ideia. Pois (a) os "espíritos em prisão" podem
ser homens ou anjos caídos (cf. Gn 6.1-4; Jd 6); (b) a declaração de que
Cristo pregou aos espíritos que foram desobedientes nos dias de Noé
subentende, mais naturalmente, que a pregação foi direcionada somente a
estes; (c) "pregou" (no grego, keryssõ), não sendo especificada a mensagem,
implica simplesmente uma proclamação do triunfo de Cristo, e não um
oferecimento de vida. Assim, esses versículos não provam que haja um
evangelismo universal após a morte física; nem o prova qualquer outro
trecho bíblico. Além do mais, há textos claros que rebatem essa noção, mais
notavelmente aqueles que encaram a vida presente como decisiva para a
vida futura (2 Co 5.10; Gl 6.7, etc.).
De qualquer modo, aqueles que nesta vida não ouviram o evangelho
apresentado "inteligentemente", ainda assim dispunham da luz de Deus em
suas consciências, luz essa que eles atenderam ou rejeitaram, levando-os a
buscar ou não o Deus acerca de quem receberam tais indícios. Podemos
afirmar isto com segurança: (a) Se algum pagão chegou ao ponto de
entregar-se à misericórdia do Criador, em busca de perdão, foi a graça divina
que o levou àquele ponto; (b) Deus certamente salva a qualquer um que Ele
traz a esse ponto (cf. At 10.34, 35; Rm 10.12, 13); (c) qualquer pessoa assim
salva saberá no outro mundo que foi salva por Cristo. Porém, o que não
podemos afirmar com segurança é que Deus já tenha salvado alguém dessa
maneira. Simplesmente não o sabemos. A nossa certeza é que "a ira de Deus
se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens que detêm a
verdade pela injustiça" (Rm 1.18); e Paulo não hesitou em ecoar a
generalização do salmista: "Não há justo, nem sequer um" (Rm 3.10; cf. vv.
9-18). Deus não deve a apresentação do evangelho a quem quer que seja,
quanto menos uma apresentação "inteligente".
O universalismo, a terceira dessas alternativas, usualmente é apresentado
como uma forma otimista do ensino da ''segunda oportunidade''. Assim,
todos aqueles que foram criados por Deus, mas que não se voltaram para Ele
nesta vida, encontrar-se-ão com Ele, em Cristo, após a morte, e Deus os
levará a amarem-No, ainda que tenha de enviá-los para uma geena
purgatorial por algum tempo, a fim de fazê-los cair em si. Contudo, esse não
era evidentemente o ponto de vista de Cristo (Mt 12.32; 26.24), nem é esse
o sentido natural ou necessário de qualquer texto bíblico divorciado de seu
contexto.
Um dos grandes detetives dos livros de ficção estabeleceu como regra que
depois de terem sido eliminadas todas as impossibilidades, deve ser verdade
aquilo que restar, mesmo que improvável. Por igual modo, um teólogo sabe
que depois que alguém já eliminou todas as opções não-bíblicas, aquilo que
resta, ainda que seja desagradável, deve ser a verdade divina. Não assevero
que a posição aqui exposta sobre a perdição eterna é agradável e consoladora
para que alguém conviva com ela. Afirmo apenas que ela é ensinada por
Cristo e pelo Novo Testamento, e deve ser tomada a sério.
A VITÓRIA SOBRE A MORTE
Se você não pode entender a morte, então também não pode entender a
vida. Qualquer filosofia que não nos ensine dominar a morte nada vale para
nós. É nessa altura que os filósofos batem em retirada, vencidos, e o
evangelho assume o lugar que lhe cabe. Pois o domínio sobre a morte, em
certo aspecto, é o tema central do evangelho - o tema que John Owen
sumariou como a morte da morte na morte de Cristo.
Aressurreição de Cristo não foi uma mera ressurreição temporária, como
o foram as ressurreições de Lázaro, da filha de Jairo e do filho da viúva de
Naim. "...havendo Cristo ressuscitado dentre os mortos, já não morre: a morte
já não tem domínio sobre ele... vive para Deus" (Rm 6.9, 10). "Estive morto,
mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos, e tenho as chaves da morte e
do inferno" (Ap 1.18). A ressurreição de Cristo proclamou e garantiu ambos,
no presente: o perdão e a justificação para o seu povo (Rm 4.25; 1 Co 15
.17), como também a corressurreição com Cristo, em novidade de vida
espiritual (Rm 6.4-11; Ef 2.1-10; Cl 2.12, 13; 3.1-11). Essa corressurreição
espiritual será acompanhada, por ocasião do retorno de Cristo, pela nossa
transformação física, sem experimentarmos a morte, se porventura
estivermos vivos (Fp 3.21), ou pelo nosso revestimento, se tivermos
morrido (cf. 2 Co 5.4, 5; 1 Co 15.50-54). Isso significará a destruição final da
morte, como um intruso, hostil e destruidor, no mundo de Deus (1 Co
15.26, 54, 55).
Entrementes, o temor da morte física, que se origina do senso que a
morte é a porta para o sofrimento e para o juízo (Hb 2.15), foi abolido para o
crente. Foi arrancado o aguilhão da morte (1 Co 15.55, 56), por meio do
conhecimento de que os nossos pecados foram perdoados e de que ''nem
morte, nem vida... nem cousas do presente, nem do porvir... nem qualquer
outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo
Jesus nosso Senhor" (Rm 8.38, 39). Atualmente, a morte física consiste em
um "dormir" (isto é, descanso e refrigério, Ap 14.13; não em inconsciência)
"em Jesus" (1 Co 15.18, 51; 1 Ts 4.13ss.; At 7.60) - um "dormir" que começa
com a vinda de Cristo para receber para Si mesmo aqueles para os quais Ele
tem preparado um lugar (Jo 14.2, 3). Esses partem para "estar com Cristo, o
que é incomparavelmente melhor" (Fp 1.23).
O crente pode conceber, com razão, o dia de sua morte como uma data
registrada no diário de Jesus. Chegado o dia marcado, o Salvador aproxima-
se a fim de conduzir o seu servo para a luz de sua presença íntima e para
uma comunhão mais achegada com Ele. Por conseguinte, morrer, por mais
difícil e doloroso que seja em termos físicos, torna-se uma jubilosa jornada
para o crente. Houve uma peça teatral há alguns anos, em Londres, com o
notável título de Feliz Dia da Morte. Para o crente, a morte será justamente
isso. A comunhão com Cristo e com Deus, por meio de Cristo, uma vez que
tenha início aqui na terra, jamais termina. Através da morte, através do
"estado intermediário", entre a morte e a ressurreição, e para sempre, Cristo
estará com o seu povo. Nisso consiste a vida eterna. Dessa forma, Ele
cumpre a sua promessa feita a Marta,quando ela lamentava por Lázaro: "Eu
sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá; e
todo o que vive e crê em mim, não morrerá, eternamente" (Jo 11.25, 26).
Assim é vencida a morte, e, como Margaret Baxter, o crente pode dizer
calma e alegremente:

Senhor, não cabe a mim saber


Se devo viver ou morrer.
O que me cabe é amar-Te e servir-Te,
E isto alcanço por tua graça.

Se longa a vida for, eu me alegrarei


Por obedecer-Te por longo tempo;<
Se curta, por que haveria de entristecer-me
Por voar para o dia eterno?
Cristo não me conduz por lugares sombrios
Que Ele mesmo não tenha atravessado;
Todo aquele que adentra o reino de Deus
Deve trilhar o mesmo caminho.

Do meu triste queixar me despedirei


E os dias pecaminosos esquecerei,
Quando os santos triunfantes eu encontrar
E com eles os louvores de Jeová, então, cantar.

Pouco sei sobre a vida por vir,


Os olhos da fé não a veem distintamente;
Mas, saber que Cristo a tudo conhece
É para mim o suficiente,
E com Ele eu estarei.

Estejamos Preparados
Há três séculos, corria uma crônica sobre a visita que um estudante fez a
Thomas Goodwin, o presidente puritano do Magdalen College, em Oxford.
Na penumbra do seu escritório, Goodwin abriu o diálogo indagando ao seu
visitante se ele estava preparado para morrer. O jovem fugiu. Naquela época,
isso era contado como uma piada, como o seria em nossos dias. Mas, deve
ser dito que, se de fato aquilo aconteceu, Goodwin estava fazendo uma
pergunta pastoral adequada. Aquela pergunta não deve ser ridicularizada,
seja o que for que pensemos sobre a sua abordagem. Pois, sejamos jovens ou
velhos, um dos segredos da paz interior e do viver uma vida plena é
estarmos preparados realisticamente para a morte - por assim dizer, prontos
e preparados para partir deste mundo. Não é absurdo recordarmos uns aos
outros o fato da morte.
Os crentes do passado conheciam bem essa questão. Eles encaravam a
vida inteira como uma preparação para a morte e para a eternidade; e, por
esse motivo, levavam a sério não a si mesmos, mas cada instante. As lições
medievais e puritanas sobre a arte de morrer acabam sendo uma abordagem
à arte de viver. As palavras "vive a cada dia como se fosse o teu último dia",
sempre serão aplicáveis. Vivendo assim, os crentes do passado
indubitavelmente obtinham mais da vida do que a maioria dos homens
modernos consegue. Hoje, conforme vimos, a boa saúde mental é definida
em termos não de meditar sobre a morte, mas de nem pensar sobre ela. Até
mesmo os crentes que vivem aguardando a segunda vinda de Cristo parecem
inconscientes de que a preparação para essa vinda e para a morte são os dois
lados da mesma moeda, duas facetas do mesmo tema, a saber, o fim deste
mundo para você e para mim, porque Cristo já veio para nós. Tudo isso é
retrógrado, mas o retomo à antiga sabedoria nos traria muita vantagem.
Como podem os crentes viver de modo a estarem prontos e preparados
para partir? Não há qualquer mistério nisso, o bom senso deveria nos
ensinar. Sejamos totalmente comprometidos com o serviço de Cristo, a cada
dia. Não toquemos o pecado nem mesmo de longe. Mantenhamos em dia a
conta corrente com Deus. Tenhamos cada hora como um dom de Deus para
nós, a fim de aproveitarmos o melhor possível. Planejemos a nossa vida,
fazendo cálculos para setenta anos (Sl 90.10), compreendendo que se nosso
tempo for mais curto do que isso, tal coisa não será uma privação injusta,
mas uma mais rápida promoção. Nunca permitamos que o bom tome o lugar
do melhor em nossas vidas e alegremente esqueçamo-nos do que não é o
melhor para nós. Vivamos o presente. Desfrutemos agradecidos os seus
prazeres e suportemos suas dores com a ajuda divina, sabendo que tanto os
prazeres como as dores são passos dados na viagem para o lar. Abramo-nos
inteiramente ao Senhor Jesus, gastemos tempo em sua companhia,
conscientemente, aquecendo-nos sob o seu amor e correspondendo ao
mesmo. Digamos diariamente a nós mesmos que cada dia que passa é um dia
mais perto do Senhor. Lembremo-nos que, conforme disse George
Whitefield, o homem é imortal até o momento em que sua obra esteja
terminada (embora só Deus possa definir a obra) e continuemos naquilo que
sabemos ser a tarefa que Deus tem para nós aqui e neste momento.
Paulo declarou: "...o tempo da minha partida é chegado. Combati o bom
combate, completei a carreira, guardei a fé. Já agora a coroa da justiça me
está guardada, a qual o Senhor, reto juiz, me dará naquele dia; e não
somente a mim, mas também a todos quantos amam a sua vinda" (2 Tm 4.6-
8).
Pedro exortou-nos: "Reunindo toda vossa diligência, associai com a vossa
fé a virtude; com a virtude, o conhecimento; com o conhecimento, o
domínio próprio; com o domínio próprio, a perseverança; com a
perseverança, a piedade; com a piedade, a fraternidade; com a fraternidade,
o amor... procurai, com diligência cada vez maior, confirmar a vossa vocação
e eleição; porquanto, procedendo assim, não tropeçareis em tempo algum.
Pois, desta maneira é que vos será amplamente suprida a entrada no reino
eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo" (2 Pe 1.5-7, 10, 11).
Esse é o caminho!
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