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A “POPULORUM PROGRESSIO” NA TRADI- CAO DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA FERNANDO BASTOS DE AVILA, S.', A Encictica Populorum L'rogressio, assuimindo posi- sao em favor dos povos subdesenvulvides, foi ucusude de exorbitar da competéncia pastoral do Sumo Voniifice, posigdo, entretanto, é assumida a partir de wma tomada de consciéncia mats clara das exigéncias da mensagem evan- gélica, ¢ deve ser juigada & tus de duas gabestées funda- mentais: o problema por ela levantado é ou ndo é 0 gran- de problema da hwmanidade contempordnca? os meios por cla propostos sito ou nia séo justos @ eficazes? O desen- volziimento integral de todo o homent e de todos os homens 5d é possivel mediante o desenvolvimento solidario da hu- manidade; éste, por sua vez, sé encontrard sua forga de aceleracdo ¢ seu principio interno de coesto na medida em que arrastor para a obra comum a mobilizegdo de to- dos os recursos disponiveis, —-recursos humanas ¢ re- cursos materiais, F. éste 0 sentido fundasmental do angus- tiado apélo de PAULO VI avs responsiveis pelos destinos das nagées, antes que seja dentasiado tarde. A ENCICLICA Populorum Progressio que o SS. PAPA PAULO VI promulgou no dia da Ressurreicio, 26 de marco de 1967, parece estar fadada a se tornar um sinal de contradicao, talvez de maiores contradicdes do que as suscitadas pela publicagio da Mater et Magistra em 1961, por JOAO XXIII, de saudosa memdria. E o que patece ser licito concluir da veeméncia dos ataques ¢ dos encdmios, 80 A “POPULORUM PROGRESSIO” NA TRADICAO DA IGKEJA como das disparidades das fontes donde procedem. Pela primeira vez, a Agéncia Tass distribuiu 4 imprensa sovié- tica os trechos que julgou mais importantes do documento pontificio. Pela primeira vez, o Wall Street Journal o atacou, como documento no qual ja se teria infiltrado a inspiragdo marxista. O tema comum a quase tédas as cri- ticas € o da exorbitancia do pronunciamento papal: que «4 Igreja cuide do pastoreio das almas; porém nio se meta nos problemas terrenos, De fato, nio ha duvida que a Enciclica 6 menos dou- trinal que programatica; ela toma posicdo em face do pro- blema do subdesenvolvimento. Pela primeira vez, na his toria das enciclicas sociais, o centro de perspectiva comega a deslocar-se: 0 subdesenvolvimento nao é focalizado de fora ou de cima, do ponto de vista das sociedades avan- gadas, como se se tratasse de um problema cuja solugao de- pendesse apenas da generosidade complacente dos povos afluentes e de uma habil adaptag4o dos principios que ga- rantem a sua prosperidade. Na Populorum Progressio o subdesenvolvimento é assumido por dentro; o Papa se iden- tifica e se solidariza com os povos desfavorecidos e, em nome déles, interpela a consciéncia das nagGes présperas. Sera isto exorbitar de sua missio espiritual? Talvez o fésse, se tal interpelacdo se fizesse em nome do ddio, de rancores mal contidos, de frustrag5es coletivas, ou em nome das exi- géncias de equilibrio da economia internacional, ou da ne- cessidade de expansdo de mercados pelo aumento do poder aquisitivo das populagdcs marginais. Mas, nao é ésse 0 caso. O Papa declara logo na Introdugao- da Enciclica que assume uma posi¢’o diante do problema a partir de uma tomada de consciéncia das exigéncias da mensagem evangé- lica: ““Apenas terminado o Segundo Concilio Vaticano, uma renovada tomada de consciéncia das exigéncias da mensagem evangélica obriga a Igreja a colocar-se a servico dos ho- mens, para ajuda-los a captar tédas as dimensdes déste grave problema (do pleno desenvolvimento) e convencé-los da urgéncia de uma acao solidaria nesta mudanga decisiva da histéria da humanidade” (1). 81 FERNANDO RASTOS DE AVILA, S.J. S6 um catolico talvez esteja em condigdes de aquila- tar téda a gravidade desta colocagéo do problema, mas sé éle nado tem direito de subestima-la. Muitas crises na Igreja surgiram, e o fato nao é tdo antigo nem tao distante, de um impulso reformista que fazia apélo a uma inspiracao evangélica, contrapondo-a as decisdes da hierarquia estabe- lecida. V4 tentativa de opor Igreja e Evangelho. Hoje é 0 proprio Pontifice Maximo que, invocando o Evangelho, en- gaja sua Igreja na luta contra o subdesenvolvimento, Como guarda supremo do depésito relevado, cabe a éle definir, em Ultima instAncia, em que consistem, até onde vao as exi géncias da mensagem evangélica. Este dever e esta compe- téncia um catdlico nao Ihe pode negar. CRISTO prenunciou com um dos sinais inconfundiveis de sua Igreja o fato, a imensa novidade para o mundo pagiao, de que a boa nova era anunciada aos pobres: pauperes evangeltsantur, A cita- Gao explicita déste texto evangélico nesta Enciclica parece sugerir de modo suficientemente claro que a Igreja de CRISTO tinha a sensagao de perder o sew sina} distintivo, de correr 0 risco de se tornar irreconhecivel ao pagao moder no, se nao levasse ao mundo dos pobres, ao mundo sub- desenvolvido, a sua boa nova. a sua mensagem de so- lidariedade. E déste ponto de vista exclusivamente que a Finciclica deve ser julgada. Téda a questo se resume em verificar dois pontos fundamentais: 1. se o problema focalizado pela Enciclica é ou nao é 0 grande. o mais urgente proble- ma com que se defronta a humaniade; 2. se os meios pro- postos para resolvé-lo, primeiramente sio ou nio justos, e@, depois, sdo ou nio eficazes. * O problema, focalizado, alias, em varias passagens do documento pontificio, € o da condicao dos povos subde- senvolvidos e da aguda consciéncia a que ésses povos chegaram da sua condicao, e das dificuldades de supe- ra-la. E a condigio “‘daqueles que se esforcam por es- capar da fome, da miséria, das enfermidades endémicas, 82 A “POPULORUM PROGRESSIO” NA TRADICAO DA IGREJA da ignorancia; que buscam uma participagdo mais ampla nos frutos da civilizagio, uma valorizagao mais ativa de suas qualidades humanas (1) Sado aquéles que se esfor- cam por “‘ver-se livres da miséria, encontrar com mais se- guranca a propria subsisténcia, a sade, uma ocupa¢ao es- tavel. Participar ainda mais nas responsabilidades, fora de téda opressio e ao abrigo de situagdes que ofendem sua dignidade de homens. Ser mais instruido, Em uma pala- vra, fazer, conhecer ¢ ter mais, para ser mais, tal é aspira- gao dos homens de hoje, enquanto um grande nimero dé- les se vé condenado a viver em condigdes que tornam iluso- rio éste legitimo desejo” (6). E verdade que a miséria sempre existiu, mas o que é névo hoje ¢ torna a situagdo contemporanea tremendamente ameacadora é o fato da clara consciéncia coletiva que as po- pulagées margimalizadas adquiriram de sua situagio: “Ao mesmo tempo, os conflitos sociais se ampliaram até tomar as dimensées do mundo. A viva inquietagdo que se apo- derou das classes pobres, nos paises que se vao industria- lizando, se apodera agora daqueles em que a economia ¢ quase exclusivamente agraria: os camponeses adquirem, éles também, a consciéncia de sua miséria nia merecida. A isto se acrescenta o escandalo das disparidades gritantes, nao ape- nas no g6zo dos bens, mas ainda mais no exercicio do po der. Enquanto em algumas regides uma oligarquia goza de uma civilizacdo refinada, o resto da populacdo, pobre e dispersa, esta ‘‘privada de quase tddas as possibilidades de iniciativa pessoal e de responsabilidade e muitas vézes, in- clusive vivendo em condig6es de vida e de trabalho indig- nas da pessoa humana” (9) (citacgio do Gaudium et Spes). Téda questao fundamental, diziamos acima, se resu- me em saber se a situagdo descrita neste quadro, cuja ve- racidade ninguém pode em ditvida, ¢ a consciéncia viva desta situagdo é ou nao o grande problema. Para nos conven- cermos disto, se f6r o caso, poderiam ser Uteis as seguintes ponderacdes. 1°. Falar em miséria tornou-se um tdpico tao explo- rado gue muitas vézes ¢le parece se reduzir a um como sim- bolo algébrico que se utiliza num raciocinio elegante. Per- 83 FERNANDO BASTOS DE AVILA, S.J. de seu tragico ¢ doloroso contetdo humano. Miséria é fome, é dor, sio andrajos, é o barraco sérdido ou o canto de rua, é a revolta impotente diante do sofrimento ¢ da morte, é a ignorancia, o aviltamento da grandeza humana. Quando se fala no problema da miséria é preciso pensar na miséria real e hedionda como é e existe. Serd preciso pensar na mi- séria como se nds féssemos os miscriveis. Téda a dificul- dade de compreender a angustia desta Enciclica reside fun- damentalmente nesta nossa incapacidade de pensar uma mi- séria que nao seja tima mera ¢ tranqiilizante abstragdo. 2.2. A miséria 4 qual o Papa se refere, € uma misé- ria que, sob suas diversas manifestacdes de fome, subali- mentacao, desabrigo, promiscuidade, ignorancia, afeta hoje a bilhdes de séres humanos. E uma miséria, pois, que, sob. © simples aspecto de sua quantidade, constitui por si mes- ma um problema, ou mais exatamente um escandalo pavo- roso. Nao é a miséria do mendigo resignado que nos habi- tuamos a encontrar em nosso caminho, na porta de nossa igreja, do mendigo que de certo modo conseguimos inte- Star pacificamente em nosso mundo como um elemento educativo para ensinar as criancas a piedade para com os pobres. E a miséria de povos, de regiées inteiras do glo bo. F verdade que a miséria sempre existiu. como é ver- dade até que nos paises hoje desenvolvidos ela regrediu, gragas 4 difusdo dos beneficios da produgdo de tipo indus- trial a camadas crescentes da populacio. O Papa reconhece éste fato: “‘seria injusto que se atribuisse 4 industrializagao mesma os males devidos ao nefasto sistema que a acom- panha. Pelo contrario, é justo reconhecer a imporlancia enorme da organizagdo do trabalho para o progresso in- dustrial da obra do desenvolvimento” (26). Mas o fato Para o qual o Papa, na linha de JoAO XXIII. procura cha- Mar nossa atencdo é precisamente que a questdo social hoje assumiu as dimensdes do mundo. Nao se formula mais apenas em térmos de disparidades de classes, dentro da mes- ma sociedade industral, mas em térmos de tensdes entre po- vos que se disputam a sua sobrevivéncia no planéta. O pro- blema estd assim relacionado com o tremendo fenédmeno da 84 A “POPULORUM PROGRESSIO” NA TRADIGAO DA IGREJA explosdo demografica, a que o Papa se refere e sobre o qual voltaremos oportunamente. 3.* O que causaria espanto seria o fato que nio se reconhecesse que esta situacgao da miséria real e consciente de bilhdes de séres humanos constitui o grande problema da humanidade contemporanea. O que seria espantoso é que nao se percebesse a cxtrema instabilidade da posigao de equilibrio em que se encontra a paz universal. Pela rapi- dez da difuséo moderna dos meios de comunicacao, a legiao dos miseraveis é informada audiovisualmente de sua pré- pria miséria e da distancia, do contraste que a separa do conférto e do requinte das sociedades afluentes. A concien- tizacgao dessas massas como ingrediente de sua explosao in- surreicional se opera dia a dia de modo fulminaate, criando dia a dia condicées mais propicias para a emergéncia das liderangas messianicas, Ultimo catalizador da explosao: “Neste caso, a tentagdo se torna tao violenta que ameaga arrastar para os messianismos prometedores, porém forjado- res de ilus6es. Quem nao vé os perigos que ha néle de rea- g6es populares violentas, de agitagdes insurrecionais e de deslizamentos para as ideologias totalitarias? (11) E, mais abaixo, continua a Enciclica: “‘E certo que ha situagdes cuja injustica clama aos céus. Quando populacées inteiras ca- rentes do necessario, vivem numa tal dependéncia que os impede de téda iniciativa e responsabilidade, da mesma for- ma que de téda a possibilidade de promogio cultural e de participagdo na vida social e politica, ¢ grande a tentacdo de repelir com violéncia tao graves injirias contra a digni- dade humana” (30). Mas nao entendamos mal o sentido pelo qual ao Papa a situacgao descrita se afigura como sendo o grande proble- ma contemporaneo. Nio é porque ela ameaca a paz daquela porcao de humanidade que ja se libertou da miséria e que disporia dos meios de resolver os problemas. A miséria constitui escdndalo em si mesma; nao apenas nas eventuais ameacas que pode representar para nds, mas enquanto atin- ge séres humanos que so a imagem de Deus criador, que sd0 realmente nossos irmios, portadores de uma vocacio a0 mesmo espléndido destino humano, cuja esperanca ¢ anun- 85 FERNANDO BASTOS DE AVILA, S.J. ciada por éste humanismo pleno, ao que se refere a encicli- ca (42). E se a miséria é também analisada pelo Papa sob seu aspecto ameagador, é porque ela, como detonadora da revolta pode “‘engendrar novas injustigas, introduzir no- vos desequilibrios e provocar novas ruinas’” (31), isto é, deteriorar ainda mais a situagao que oprime a humanidade espezinhada. Passemos agora @ andlise dos meios propostos pela En- ciclica para a solugio do problema, meios que nos propt- nhamos examinat sob o duplo Angulo de sua justiga e de sua eficacia. B evidente, a uma simples leitura do documento pon- tificio que o Papa nao tem a pretensio de apresentar um sistema néyo, em substituicéo ao capitalismo liberal cujos efeitos nefastos éle denuncia (26). O Papa nao se envolve nesta problematica de sistemas, que nio é sua tarefa nem comportaria a preméncia do prazo histérico em que a si- tuagado acelera seu ritmo de autodeterminacdo. O que o Pa- pa faz é propor uma linha concreta de ac4o, na esperanga de que, engajados nela, os homens de todos os sistemas e de tédas as ideologias se aproximem para o didlogo indis- pensavel (54) ¢ encontrem as bases para a elaboragao de um sistema e de uma ideologia da convergéncia e da solida- riedade. qt: A linha de agio proposta pelo Papa se pode resumit na idéia da mobiflizagao racional e planejada de todos os recursos disponiveis, recursos em bens e recursos humanos, para o desenvolvimento. A agio proposta nao se faz assi- nalar pela sua originalidade, mas pela veeméncia e univer: salidade de seu apélo e pela pertinéncia de suas conseqiién- cias. Parece que o simples enunciado da idéia que resume a Enciclica pleiteia pela sua justia e sua eficacia. A mobilizagéo racional e planejada parece ser a tinica saida do impasse de um subdesenvolvimento que se acentua pela prépria espiral da causac&o circular cumulativa na qual esta envolvido. Nao ha mais pais no mundo que nio tenha. através de medidas mais ou menos drasticas, orientado o es- pontaneismo da iniciativa privada para os objetivos do bem comum. Mobilizagao, entretanto, que nao significa a su- 86 A “POPULORUM PROGRESSIO” NA TRADICAO DA IGREJA pressio da liberdade criadora de individuos e grupos, mas a criagao de condig6es para seu mais pleno e racional exer- cicio. ‘A simples iniciativa individual e o simples jogo da concorréncia nao bastam para assegurar o éxito do desen- volvimento. Nao é licito aumentar a riqueza dos ricos e 0 poder dos fortes, confirmando a miséria dos pobres e tor- nando maior a escravidao dos oprimidos. S40 necessdrios programas para “‘encorajar, estimular, coordenar, suprir e integrar” a acdo dos individuos e dos organismos interme- diarios. Pertence aos podéres publicos escolher e, mesmo impor, os objetivos a atingir, os fins a alcancar e os meios para os conseguir, ¢ é a éles que compete estimular tédas as fércas conjugadas nesta agio comum. Tenham, porém, cui- dado de associar a esta obra as iniciativas privadas e os or- ganismos intermediarios. Assim, evitarao o perigo de uma coletivizagio integral ou de uma planificagdo arbitraria que, privando os homens da liberdade, poriam de parte o exercicio dos direitos fundamentais da pessoa humana. Descendo ao exame dos meios concretos que a Enci- clica propéde, devemos nos referir aos temas seguintes: 1. O problema da revotugd#o, Nao faltaram os que encontrassem na Enciclica a justificagdo doutrinal da revo- lugao armada, a sua justificagio como meio eficaz de jus- tiga social. Julgamos absolutamente distorcida essa interpre- tacao. A respeito da revolucéo, o documento pontificio con- tém: @) umu adverténcia grave, lembrando que situagdes cuja injustica clama aos céus constituem uma grande tenta- ¢4o de repelir com violéncia as injitrias contra a dignidade humana (30). O Papa chama os céus por testemunho. Deus sofreu em sua carne a injustica humana, e morreu de dor em uma cruz, que lembra muito a imagem de uma ba- langa: statera facta corporis. Deus sabe pesar a dor humana. Uma revolugio, desencadeando as paixdes mais brutais, “en- gendra novas injusticas, introduz novos desequilibrios e provoca novas ruinas”’ (31), Ela nao se faz, pois, sem um imenso acervo de dor. Esta pesa num prato da balanga. Mas nao se deve esquecer que, no outro, se vai acumutando a imensa dor humana, silenciosamente e anénima, da in- justica e da miséria diariamente sofridas. Chega um momen- 87 FERNANDO BASTOS DE AVILA, S.J. to em que seu péso é tao grande que a balanga se inclina ¢ a revolugao pode explodir; b) um repddio formal. A vio- léncia 6 uma tentag4o, 4 qual se deve resistir, precisamente porque ela engendra novas ruinas fragorosas que se somam as ruinas obscuras da miséria, ¢ novas injustigas que se so- mam As velhas injustigas do mundo da ‘‘ordem pacifica’’. Dai 0 repidio explicito: “nao se pode combater um mal real 4 custa de uma desgraga maior’ (31); c) uma excegdo (que, alias, é apresentada como nao constituindo novida- de na doutrina tradicional da Igreja pelo inciso est quidem res pernota); é a excecao que se refere ao caso da tirania, ou seja, da usurpacdo do poder para usa-lo em proveito pré- prio. O Papa se refere cumulativamente a um regime no qual os direitos primdrios da pessoa humana (direito 4 vida e 4 liberdade) nao tenham nenhuma garantia; um regime no qual os interésses do bem comum sofrem grave detrimento eum regime no qual tudo isto se exerce de modo evidente e diuturno. Identificar simplesmente éste regime com a con- digio dos paises subdesenvolvidos, como o Brasil, por exemplo, a fim de encontrar na Enciclica uma justificagio doutrinal para a revolucio armada, me parece uma distor- sio completamente alheia ao sentido do texto pontificio. 2. A propriedade e a renda. Nao ha, a meu ver, no- vidade doutrinal quanto a ésses temas. Mas ha uma expli- citagao veemente da doutrina a respeito. A propriedade é reafirmada como um direito, mas o Papa adverte que nao constitui para ninguém um direito incondicional e absoluto. File nunca pode ser exercido em detrimento do bem comum. No caso do aparecimento de conflitos, como sucedeu entre nds a propésito da reforma agraria, entre direitos privados adquiridos e as exigéncias comunit4rias primordiais, afirma a Enciclica, numa aplicagao do principio da subsidiarieda- de, cabe ao poder publico resolvé-los. Esta intervencao, en- tretanto, nio pode ser arbitraria, mas deve realizar-se com a participagio ativa das pessoas e dos grupos sociais (23). O fundamento desta posicao doutrinal é o fundamento clas- sico da destinacio universal dos bens que é reafirmado nu- ma referéncia 4 autoridade de SANTO AMBROSIO, datando, pois, do século V: ‘Nao das da tua fortuna ao seres gene- 88 A “POPULORUM PROGRESSIO” NA TRADICAO DA IGREJA roso com o pobre; tu das daquilo que lhe pertence. Porque aquilo que te atribuis a ti foi dado em comum para o uso de todos. A terra foi dada a todos e nao apenas aos ri- cos’ (23). Este principio comunitario do uso dos bens, se vale da propriedade, vale com mais fércga de renda, fruto da pro- priedade. O Papa infere déste principio duas conclusdes: o supérfluo dos ricos deve por-se a servigo dos pobres (49); as rendas provenientes da atividade e dos recursos nacionais nado devem ser transferidas para o estrangeiro, com proveito apenas pessoal, mas sdo os primeiros recursos a serem apli- cados pelos povos subdesenvolvidos na propria promocgio econémica (24), E sabido que o Papa atinge aqui um pro- blema sumamente delicado, mas baseado num evidente im~- perativo de justica. Ninguém desconhece o fato da evasao de capitais privados dos paises subdesenvolvidos, e das re- gides subdesenvolvidas de certos paises, em busca de me- Thores condigdes de rentabilidade e de seguranga. Nestas con- digGes parece quase uma impostura reclamar a ajuda estran- geira, se se levar em conta que cssas rendas transferidas fo- ram geradas também gracas ao trabalho de uma comuni- dade nacional que nunca poderd beneficiar-se de sua capa- cidade produtiva. As conclusdes que Papa deduz do principio de pro- priedade sé podem ser entendidas por quem se der conta de uma situacdo de permanente injustica criada pela concep- ¢4o e pelo exercicio individualistico do direito de apropria- ¢4o individual: a grande maioria dos homens consegue, ape- nas consegue ou nem sequer consegue, um minimo de sub- sisténcia, exclusivamente mediante um trabalho rude e pe- noso, Uma minoria se pode permitir, entretanto, um con- sumo suntudrio que nao tem proporg4o alguma com o seu trabalho, isto é, com aguilo com que contribui para o bem comum. FE espantoso que esta injustica nao salte aos olhos, como é espantoso também que muitos nao percebam a trans- paréncia do véu que a esconde ainda da maioria de injus- ticados. 3. A justica internacional. Na concepgio da Encicli- ca, trata-se aqui apenas de uma simples extrapolacio do 89 FERNANDO BASTOS DE AVILA, S.J. plano das relagGes entre pessoas e grupos, para o plano das relages entre os povos. Extrapolagao calcada sébre o pro- prio fato histérico do névo dimensionamento planetario da questao social, e baseada no mesmo principio da destinagao universal dos bens. E bem perceptivel, neste dominio, uma mudanca de t6nica entre a doutrina de JoAO XXIII e a de PAULO VI. Enquanto o primeiro insiste na idéia de ajuda dos povos ricos aos povos pobres. PAULO VI enfatiza a idéia de que, assim como as relagdes entre pessoas s6 podem ser ordenadas 4 base da justiga, assim também as relagdes en- tre nagdes obedecem a uma justiga internacional que reco- nhece em tédas sujeitos de deveres ¢ de direitos inalinaveis. Esta justica deve presidir especificamente, segundo PAULO VI, as relagGes de trocas, para que estas nio venham a se deteriorar progressivamente em desfavor dos povos forne- cedores de matérias-primas e de mercados para as economias industrializadas: ‘‘Ainda que féssem consideraveis, seriam ilusdrios os esforcos feitos para ajudar, no plano financei- ro e técnico, os paises em via de desenvolvimento, se os re- sultados féssem parcialmente anulados pelo jogo das rela- gGes comerciais entre paises ricos e paises pobres. A confian- ¢a déstes ultimos ficaria abalada, se tivessem a impressdo de que uma das mos tira o que a outra thes da. As nacdes muito indistrializadas exportam sobretudo produtos fabri- cados, enquanto as economias pouco desenvolvidas vendem apenas produtos agricolas e matérias-primas. Aquéles, gra- Gas ao progresso técnico, aumentam rapidamente de valor ¢ encontram um mercado satisfatério. Pelo contrario, os pro- dutos primarios provenientes dos paises subdesenvolvidos sofrem grandes e repentinas variagdes de preco, muito aquém da subida progressiva do outros. Daqui surgem grandes di- ficuldades para as nagSes pouco industrializadas, quando contam com as exportacGes para equilibrar sua economia ¢ realizar seu plano de desenvolvimento. Os povos pobres fi- cam sempre pobres e os ricos tornam-se cada vez. mais ricos. Quer dizer que a regra da livre troca j4 nao pode, por si mesma, reger as relagGes internacionais. Suas vantagens sio evidentes quando os paises se encontram mais ou menos nas mesmas condigées de poder econdmico: constitui estimulo 90 A “POPULORUM PROGRESSIO” NA TRADICAO DA IGREJA ao progresso e recompensa do esférgo. Por isso os paises in- dustrialmente desenvolvidos véem nela uma lei de justiga. Jao mesmo ndo acontece quando as condig6es sao demasia~ do diferentes de pais para pais: os precos ‘“‘livremente’’ es- tabelecidos no mercado podem levar a conseqiiéncias ini- quas. Devemos reconhecer que estd em causa o principio fundamental do Jiberalismo, como regra de transagdes co- merciais, Continua a valer o ensinamento de LEAO XIII, na Enciclica Rerum Novarum: em condigées demasiado dife- rentes, © consentimento das partes nao basta para garantir a justica do contrato, e permanece subordinada 4s exigén- cias do direito natural a regra do livre consentimento. O que era verdade do justo salario individual também o é dos con- tratos internacionais: uma economia de intercambio j4 nao pode apoiar-se s6bre a lei unica da livre concorréncia, que freqtientes vézes leva 4 ditadura econdémica. A liberdade das transagoes sé é eqilitativa quando sujeita as exigéncias da justiga social. Foi o que jA compreenderam os préprios paises de- senvolvidos, que se esforgam por estabelecer no interior da sua economia, por meios apropriados, um equilibrio que a concorréncia, entregue .a si mesma, tende a comprometer. muitas vézes sustentam sua agricultura a custa de: jos impostos aos setores econdmicos mais favorecidos. E também, para manterem as relagdes comerciais que se es- tabelecem entre paises e paises, particularmente em regime de mercado comum, adaptam politicas financeiras, fiscais ¢ sociais, que se esforgam por restituir a inddstrias concor- rentes, desigualmente prdsperas, possibilidades semelhantes. Mas, no se podem usar nisto dois pesos e duas me- didas, O que vale para a economia nacional, 0 que se admite entre paises desenvolvidos, vale também para as relagdes co- Mmerciais entre paises ricos e paises pobres. Sem o abolir, é preciso ao contrario manter o mercado de concorréncia den- tro dos limites que o tornam justo e moral e, portanto, hu- mano. No comércio entre economias desenvolvidas e subde- senvolvidas, as situagdes sio demasiado desproporcionadas. A justiga social exige do comércio internacional, para ser 91 FERNANDO BASTOS DE AVILA, S.J. bumano e moral, que restabeleca, entre as duas partes, pelo menos certa igualdade de possibilidades. E um objetivo a atingir a longo prazo. Mas, pata o alcangar, é preciso, desde ja, criar uma igualdade real nas discussOes e negociagoes. ‘Também neste campo se sente a utilidade de convenes in- ternacionais num Aambito suficientemente vasto: estabelece- riam normas gerais, capazes de regular certos precos, ga- rantir certas produc6es e sustentar certas industrias nascen- tes. Quem duvida de que tal esfdrgo comum, no sentido de maior justiga nas relac6es comerciais entre os povos, traria aos paises em via de desenvolvimento um auxilio positivo, cujos efeitos seriam nao sé imediatos, mas também duradou- ros?” (56-61). O pensamento da Enciclica, neste trecho, se apdia s6- bre uma teoria econdmica que, embora aceita por muitos. no deixa de ser repudiada por alguns, grandes economistas. O importante, entretanto, para o Papa nao é a teoria, que nem sequer menciona; o importante é o fato da dependén- cia em que se encontram os povos pobres dos metcados in- ternacionais, dos quais nao podem participar em igualdade de poder de barganha e cujas oscilagdes acarretam graves cri- ses econémicas, geralmente associadas a crises sociais e poli- ticas, O importante é que o Papa interpreta aqui uma das grandes reivindicagdes dos povos periféricos, que antes de receber ajuda, prefeririam receber a justa remuneracao dos produtos gerados pelo seu trabalho. 4. O problema demogrdfico. O Papa reconhece mais uma vez, como de resto ja o fizera JoOAO XXIII, que a ra- pida expansio demografica é, muitas vézes, um fator de blo- queio do desenvolvimento. “& bem verdade que um cresci- mento demogrdfico acelerado vem, com demasiada freqiién- cia, trazer novas dificuldades ao problema do desenvolvi- mento: o volume da populagdo aumenta muito mais rapi- damente que os recursos disponiveis, e cria-se uma situacao que parece no ter saida. Surge, por isso, a grande tentacao de refrear o crescimento demografico por meios radicais’’. Mas PAuto VI, pela primeira vez, na tradicgao do pensa- mento social da Igreja, reconhece no Estado um direito de intervir no processo demografico (37). Entrementes, ¢ pre- 92 A “POPULORUM PROGRESSIO” NA TRADICAO DA IGREJA ciso confessar que esta intervencgao é apresentada ainda em térmos muito vagos: “‘promovendo uma informacdo apro- priada e tomando medidas aptas’’, e ¢ rigorosamente bali- zada pelas exigéncias da lei moral e o respeito a liberdade dos cénjuges. Para um catdlico, antes de um pronunciamento auténtico do Sumo Pontifice, 4 base dos estudos da comissio por éle nomeada, é¢ impossivel definir que informagées se- rio apropriadas e que medidas poderao ser consideradas ap- tas, dentro das limitagdes fixadas. Nada autoriza no texto a afirmar que a Igreja endossa nova concepgdo do sentido to- tal ¢ da finalidade intrinseca do ato amoroso. Tudo se re- sume numa afirmagao do dever do Estado de colaborar com os pais para que realizem o ideal de uma fecundidade res- ponsavel. “Sem direito inalienavel ao matriménio e 4 pro- criagao, nao existe dignidade humana. Em tiltima anilise, é aos pais que compete determinar, com pleno conhecimen- to de causa, o numero de filhos, assumindo a reponsabili- dade perante Deus, perante si prdprios, perante os filhos que ja nasceram e perante a comunidade a que pertencem, de ac6rdo com as exigéncias da sua consciéncia, formada se- gundo a Lei de Deus auténticamente interpretada e susten- tada pela confianga n’Ble” (37). Consideramos, entretanto, que éste alertar o Estado para seus direitos e deveres em matéria demografica é de uma extrema gravidade. Ele nio poderd tomar medidas arbitrarias que compulsoriamente im- ponham a todos uma fecundidade planejada, mas, como po- der temporal. incompetente em matéria de consciéncia, ha- vera talvez de se encaminhar para uma solucio eclética, for- necendo informacSes e medidas, de ac6rdo com a conscién- cia de cada um, * Viamos que o meio proposto pelo Papa para a su- pressio do problema da miséria é a mobilizacao de todos os recursos para o desenvolvimento. O desenvolvimento é o nome névo de paz. Os recursos materiais, alimentados pelo que é gasto no supérfluo do consumo suntudrio e pelo que é perigosamente derivado para a corrida armamentista, deveriam ser aplica- 93 FERNANDO RASTOS DE AVILA, S.J. dos na formagao de um fundo internacional simbolo e ins- trumento da colaboragio mundial, permitindo “superar as tivalidades estéreis e estabelecer um didlogo fecundo e pa- cifico entre todos os povos”’ (51). O Papa procura mobilizar os recursos humanos atra- vés dos apelos patéticos que encerram a Enciclica: apelos aos catolicos, aos cristdos, e aos crentes, a todos os homens de boa vontade, jovens, homens de Estado, cientistas. O Papa lhes oferece um espléndido ideal para sua faina de cada dia: penetra-la da consciéncia de que estao construindo um mundo melhor. Da um sentido de amor ao cue poderia rz duzir-se A execucdo de uma rotina. O desenvolvimento é nome névo da paz. Mas a que desenvolvimento se refere a Enciclica? Ao desenvolvimento integral do homem e ao desenvolvimento soliddrio da hu- manidade. E por éste aspecto fundamental que a Enciclica se insere no que ha de mais auténtico na tradic¢4o pastoral da Igreja. A Enciclica nao é um texto técnico, um manual de desenvolvimento. B uma explicitagio da mensagem re- ligiosa e moral do Evangelho. Desenvolvimento integral dc homem, porque o homem é portador de uma vocacio di- vina: ser mais, fazer eclodit o que néle é apenas germe, por- que esta eclos’o o haverd de abrir para a descoberta de seu destino transcendente e sobrenatural. Desenvolvimento inte- gral do homem porque éle é criatura de Deus, e a sua ple- nitude € gléria do Soberano Artifice: Gloria Dew vi- vens homo. Desenvolvimento solidario da humanidade, porque é esta a forma concreta do movimento do amor, a realizacdo de um reino. para cujo advento todos os cristaos rezam dia- riamente, reino de amor, de justica e de paz, prefiguracio terrestre do destino pelo qual Deus se engajou pessoalmen- te na espléndida aventura humana. Ha momentos na evolucio do organismo fisico em que éste como que pressente a iminéncia de um mal irrepardvel. de uma ruina fatal. Este pressentimento se exprime pela dor e pela angustia. O mesmo se passa no organismo social. O pressentimento de um grave perigo sensibiliza 0 corpo so- cial e se manifesta numa angtstia difusa, num sentimento Ot A “POPULORUM PROGRESSIO” NA TRADICAO DA IGREJA de inseguranga e frustragao. A angustiada Enciclica Popolo- rum Progressio é um primeiro grito de alerta, partido de um dos pontos mais sensiveis da humanidade unificada, do Pas- tor Supremo da Cristandade. E seu grito se resume nestas palavras: ‘‘Dignem-se ouvir-nos os responsaveis, antes que se torne demasiado tarde” (53). EM TUDO SOBRE: sama OPERACOES BANCARIAS Descontos, ie Deptsitos e Cobrancas Nee lt eres Oh0 FORTES NGENHARIA SA GOES % INCORDORACOFS x AD MINISTERC Pyico ts Zi Gaurd 202 TELS . 222215 - 323929 95

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