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HUMOR E MALÍCIA É COISA ANTIGA NA NOSSA MÚSICA POPULAR

Mônica Leme

Quem ainda tem a ilusão de que as letras de duplo sentido e cheia de trocadilhos
maliciosos é coisa inventada pela indústria de discos de nosso tempo, pode ficar surpreso
ao pesquisar a historiografia da música popular no Brasil. É senso comum entre os
principais historiadores que um dos primeiros gêneros de música popular nascido aqui em
nossas terras foi o lundu. Junto com a modinha, outro gênero consolidado no Brasil do
século XVIII, o lundu pode ser considerado uma matriz importante para vários outros
gêneros surgidos desde então.
O lundu, antes de ser um gênero de salão, foi primeiramente um bailado praticado
pelos negros escravos. As características, segundo os críticos da época, era o gestual
“licencioso” e “vulgar” dos dançarinos. Ao som dos batuques e do canto coletivo, os negros
requebravam as cadeiras, usavam o recurso de dar uma “umbigada” no parceiro escolhido,
e, com os braços erguidos, estalavam seus dedos. Sobre essa última característica, muitos
pesquisadores acreditam tratar-se de uma influência do fandango espanhol. Gravuras da
época mostram as negras escravas de seios desnudos, com as mãos nas cadeiras e braços
erguidos. Essa maneira de se expressar, escandalizou a sociedade brasileira de então.
Apesar disso, o lundu foi levado aos salões aristocráticos pelas mãos de alguns precursores
de nossa música popular urbana. É o caso do mestiço Domingos Caldas Barbosa que, com
seus lundus e modinhas bem “brasileiras”, conquistou a corte portuguesa no século XVIII,
acompanhando-se de sua viola de arame. A brasileirice dessas canções se devia ao fato de
trazerem temas considerados picantes em suas letras. O fato é que muitos portugueses
passaram a preferir modinhas brasileiras em detrimento das portuguesas.
No século XIX, o lundu esteve em voga tanto no Rio de Janeiro como na Bahia. Na
Côrte, o gênero passou a ser um importante meio para a construção de identidades: a do
negrinho malandro, a dos sinhôzinhos encantadores (os Yoyôs), a das doces e pudicas
sinházinhas, a das baianas sensuais e exímias quituteiras, e etc. Essas construções se davam
a partir das letras dos lundus, cheias de duplo sentido, maliciosas e com muito humor.
Para ilustrar, tratamos de transcrever a letra e parte da melodia do popularíssimo
“Lundu da marrequinha”, composto provavelmente em 1863, e também conhecido como
“A marrequinha de Yayá”, cujo autor da música não foi senão Francisco Manuel da Silva, o
autor de nosso Hino Nacional. A letra foi assinada pelo tipógrafo Paula Brito:

Os olhos namoradores
Da engraçada iaiásinha,
Logo me fazem lembrar
Sua bella marrequinha.

Iaiá, não teime,


Sólte a marreca, Refrão
Senão eu morro,
Leva-me a breca.

Se dansando á Brasileira,
Quebra o corpo a iaiásinha,
Com ella brinca pulando
Sua bella marrequinha

Refrão

Quem a vê terna e mimosa,


Pequenina e redondinha,
Não diz que conserva prêsa
Sua bella marrequinha.
Refrão

Nas margens da Caqueirada


Não há só bagre e tainha:
Alli foi que ella creou
Sua bella marrequinha.

Refrão

Tanto tempo sem beber...


Tão jururú... coitadinha!..
Quasi que morre de sêde
Sua bella marrequinha.

Marrequinha era um tipo de laço dado no vestido das moças da época, usado atrás
das nádegas. A letra cheia de malícia e duplo sentido, entre outras coisas, tem o claro
significado de um pedido para soltar as cadeiras, uma das características dos requebrados
das negras ao dançarem o lundu. O uso de uma rítmica “quebrada”, através da utilização da
chamada “síncope característica” (termo cunhado por Mário de Andrade), faz do “Lundu da
marrequinha” um típico lundu de salão do século XIX. Eis um trecho do refrão:
Referências bibliográficas:

ANDRADE, Mário de. Modinhas Imperiais. São Paulo: Martins, 1964.


ARAÚJO, Mozart de. A Modinha e o Lundu no Século XVIII. São Paulo: Ricordi
Brasileira, 1963.
KIEFER, Bruno. A Modinha e o Lundu- duas raízes da música popular brasileira. Porto
Alegre: Movimento, 1986.
LIMA, Rossini Tavares de. Da Conceituação do Lundu. São Paulo, 1953.
MORAES FILHO, Mello. Cantares Brasileiros- cancioneiro fluminense. Rio de Janeiro:
SESC- RJ/ Depto. de Cultura/ INELIVRO, 1981. (1ª EDIÇÃO, Rio de janeiro, 1900-
Livraria Cruz Coutinho, Editor: Jacintho Ribeiro Santos)
TINHORÃO, José Ramos. História Social da Música Popular Brasileira. São Paulo: Ed. 34,
1998.
VASCONCELOS, Ary. Raízes da Música Popular Brasileira. Rio de janeiro: Rio Fundo
Ed., 1991.

Mônica Leme é Mestre em Música Brasileira pela UNIRIO, jornalista, musicista,


compositora e pesquisadora-verbetista do Dicionário Cravo Albin de Música Popular
Brasileira. Atualmente dedica-se ao Doutorado pelo Programa de Pós Graduação em
História da UFF, com tese sobre a música popular no século XIX.

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