A constituição da robustez física no homem natural de Rousseau
O segundo Discurso de Rousseau, como ficou conhecido o Discurso sobre a origem e
os fundamentos da desigualdade entre os homens, compreende uma parte importante da filosofia política de seu autor. Nele, Rousseau busca responder às perguntas formuladas pela academia de Dijon1. A resposta do filósofo colocará em cheque algumas das certezas sociais do homem civilizado, e, por extensão, a própria sociedade como um todo. Para responder às perguntas, Rousseau primeiro delimita o escopo de seu texto. Há duas formas de desigualdade: uma desigualdade que é chamada de natural e diz respeito às diferenças de idade, estatura, vigor físico etc; são diferenças estabelecidas pela natureza e não nos cabe indagar sobre elas. A outra desigualdade é chamada de moral ou política, e diz respeito às diferenças de riqueza, poder e privilégio. Segundo Rousseau, essa desigualdade é fruto de uma convenção entre os homens, e não de uma lei natural. É a ela, portanto, que devemos direcionar nossas indagações. Para entendermos essa desigualdade que é, por assim dizermos, adquirida, o autor assinala a necessidade de se examinar as condições que levaram ao seu aparecimento. Destarte, o Discurso procura estabelecer, primeiramente, a condição primordial do homem "abandonado a si mesmo"2, o grau zero de sua história e de sua constituição. Uma vez estabelecida, trata-se de introduzir, lentamente, as transformações que se sucederam, a fim de encontrar o ponto de inflexão que deu origem à primeira diferença adquirida entre os homens e tirou-os de seu estado natural. Assim como outros autores de filosofia política que o antecederam 3, Rousseau irá recorrer ao estado de natureza para entender as origens do estado civil. A sua caracterização, no entanto, difere intensamente daqueles que o precederam. O homem natural de Rousseau é fisicamente robusto, solitário e autônomo, disposto de todos os meios para sobreviver e livre dos males que virão a ser criados pela sociedade. É um ser cuja conservação é, de certa forma, garantida por sua própria natureza e que, embora viva só, vive na abundância.
1 Nominalmente, Locke, Grotius, Pufendorf e Hobbes.
2 Rousseau, 1973, p. 242. 3 Rousseau, 1973, p. 236. Neste texto, buscamos demonstrar que a robustez física que caracteriza o homem natural rousseauniano é providenciada pela própria natureza. Há um papel exercido pela natureza ao prescrever ao homem uma destinação, cuja realização, dadas as circunstâncias do estado de natureza, favorecem a sua constituição física e criam uma espécie de ciclo virtuoso. Por tratar-se de uma marca da interpretação de Rousseau sobre o homem natural, juntamente com as noções de perfectibilidade e amoralidade, julgamos ser meritória a investigação deste ponto do segundo Discurso. Para tanto, nos será especialmente útil o primeiro terço da primeira parte do Discurso, no qual Rousseau descreve o homem natural do ponto de vista físico. Iniciaremos, porém, um pouco antes, retomando a necessidade de se estabelecer o estado de natureza e o método adotado pelo filósofo. Em seguida, examinaremos a descrição rousseauniana do homem natural segundo sua constituição física, onde suas principais características são seu vigor e sua autonomia. Por fim, demonstraremos como a natureza se encarrega de prover ao homem natural a robustez que lhe é característica, instrumento para sua conservação. Como assinalamos acima, Rousseau recorre à história na tentativa de encontrar o ponto em que o homem, que vivia na igualdade natural, passou pela primeira transformação que o introduziu à desigualdade política. Remontar ao estado de natureza é um procedimento usado por autores jusnaturalistas anteriores a Rousseau, mas o filósofo descarta, categoricamente, todas essas análises: apesar de diagnosticarem corretamente a necessidade de se estabelecer conceitualmente um estado anterior à sociedade civil, esses autores, no afã de justificar suas teorias do direito natural, incorreram no erro de imputar ao homem natural características próprias do homem civilizado4. Para Rousseau, essas noções de lei natural pressupõem a existência de razão, linguagem e paixões sociais para serem deduzidas, elementos próprios do homem civil. Uma lei natural, no entanto, deveria ser deduzida a partir da própria natureza, da consciência do homem natural que ainda não conhece a razão, a linguagem e os laços sociais. Para falarmos em direito natural, portanto, é necessário termos diante de nós o homem natural como ele é por si mesmo, despido de todas as aquisições que foram feitas durante a história e que o distanciaram cada vez mais de sua perfeição original. Por essa razão, Rousseau estabelece, metodologicamente, uma severa restrição em relação aos meios dos quais pode se servir para conhecer este homem. Para não incorrer no mesmo erro que acusa em seus predecessores, é necessário tomar algumas precauções. Em primeiro lugar, é preciso afastar-se dos livros: a história contada por eles é a do homem tal como ele se tornou, e não 4 Rousseau, 1973, p. 236. como originalmente era5. Da mesma forma, é preciso distanciar-se dos fatos, tanto bíblicos quanto da história natural: as escrituras falam de homens já saídos do estado de natureza, e o dissenso entre estudiosos da história natural, no século XVIII, suscita mais dúvidas do que certezas. Diante disso, o que nos é permitido pelo método é meditar na alma humana tão somente, afim de encontrar nela suas operações mais simples6. A história que seguirá, consequentemente, será uma história extraída de hipóteses e conjecturas, autorizada exclusivamente pelo pensamento racional. Não há qualquer compromisso de Rousseau em traçar uma história factual: "não constitui empreendimento trivial [...] conhecer com exatidão um estado que não mais existe, que talvez nunca tenha existido, que provavelmente jamais existirá" (1973, p. 234). Essa ficção racional, se é que podemos chamá-la assim, guiará todo seu trajeto. Seguindo esse procedimento, o filósofo vai deduzir a existência de dois princípios, cujo funcionamento prescinde da razão: o amor de si, que é o interesse pela própria conservação, e a piedade, que é o mal-estar diante do sofrimento de qualquer ser sensível. Por não dependerem da razão, esses dois princípios são os únicos que, segundo o método, estamos autorizados a inferir como atuantes no homem natural. Em relação a sua anatomia, Rousseau se afasta da história natural e seus dissensos, e leva em conta o homem conformado anatomicamente como o é hoje. Do ponto de vista de sua condição física, o homem natural rousseauniano é marcadamente robusto 7. Possui uma configuração vantajosa, pois, apesar de não possuir nenhum grande atributo físico, também não possui nenhum defeito. Não tem medo dos outros animais, uma vez que tem ciência da sua capacidade de combate, mas também não é intrépido. Em relação aos hábitos, possui dieta flexível, o que implica na facilidade de encontrar alimentos, e o costume de dormir muito e ter o sono leve. Não sente falta das comodidades da vida civilizada, uma vez que não precisa delas. Da mesma forma, não precisa de remédios, criados para curar as enfermidades adquiridas em sociedade. Sua única preocupação são suas necessidades físicas, que se resumem a alimentação, reprodução e repouso, facilmente alcançáveis na abundância natural. Há um tema, portanto, que permeia toda descrição física do homem natural e a determina. Trata-se da ideia de que a destinação natural do gênero humano é a sua conservação. O instrumento para essa conservação é o seu corpo, que, como já vimos, é
5 Ibid, pp. 242, 246.
6 Dada a extensão da descrição de Rousseau, nos limitaremos a parafraseá-lo neste parágrafo. Cf. Rousseau, 1973, pp. 244-250. 7 "[Os primeiros homens] não podiam compreender o bem comum nem sabiam usar entre si quaisquer costumes ou leis. Cada um levava espontaneamente a presa que a sorte lhe oferecia, porque estava habituado a usar da sua força e a viver apenas para si" (Lucrécio, 1973, p. 117). robusto. Mas há uma maneira através da qual a natureza assegura essa robustez, que se relaciona com o modo como os homens viviam no estado de natureza: dispersos entre si. Como em Lucrécio8, o homem natural rousseauniano vive solitariamente na abundância da natureza, sem formar laços sociais. Ao prescrever o isolamento ao homem natural, a natureza também assegura a sua igualdade. Todo homem precisa sobreviver por si e para si, e, sem depender de outros homens para nada, conta apenas com seu corpo. A dependência de outros homens, afinal, só acontecerá quando a fronteira do estado de natureza para o estado social for atravessada. Os homens vivem assim numa igualdade de condições, já que só podem contar com o próprio corpo para alcançar sua conservação; não contando com nenhum auxílio, são forçados a lutar por sua sobrevivência e é isso que os fortalece. Em suma, a igualdade se dá pela condição de independência do homem natural, e essa independência, por sua vez, assegura sua robustez física. A busca pela conservação, dentro da solidão em que se encontra, o obriga ao exercício do corpo, que é o meio do qual dispõe para conservar-se. Há em questão, portanto, uma espécie de ciclo virtuoso na natureza: ao buscar cumprir sua destinação natural de conservar-se, o homem fortalece a única ferramenta que possui para atingir esse fim, o corpo. A busca por um fim é, assim, um fim em si mesmo, uma vez que garante, por si só, o meio para esse fim. Em relação às enfermidades naturais, como são chamadas a infância, a velhice e a doença, o filósofo as descarta como sendo elementos desestabilizadores desse quadro. As duas primeiras não possuem o caráter debilitante que possuem na sociedade, a última não existe para o homem natural9. Afinal, o começo e o fim da vida são etapas pelas quais passam todas espécies naturais, e nem por isso elas deixam de existir. Na infância, o humano se beneficia do fato de a mãe conseguir levar seus filhos consigo; o excesso de cuidados que transforma a velhice em sociedade num problema não se coloca ao homem natural. Já as doenças só existem para o homem civilizado, que na tentativa de saná-las acaba criando novos males. A diferença entre o homem natural e o homem civilizado é trabalhada por Rousseau através da analogia com os animais: animais domesticados são sempre inferiores fisicamente aos animais selvagens. Assim, não é difícil entendermos por que Rousseau enxerga a história como a saída de um estado de perfeição rumo à decadência da civilização. Nada no estado de natureza parece
8 Rousseau, 1973, p. 246.
9 "Sem recorrer aos testemunhos incertos da história, quem não verá que tudo parece afastar do homem selvagem a tentação e os meios de deixar de ser selvagem?" (Rousseau, 1973, p. 250). apontar para a necessidade de se sair dele10. O homem no estado de natureza já possui tudo de que necessita, e não conhece a desigualdade nem os males da vida social. O rumo que o gênero humano tomou torna-se assim fruto de uma série de contingências que, em linha com o pensamento rousseauniano, poderíamos chamar de trágicos acidentes.
____________ Bibliografia:
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade
entre os homens. in: Os Pensadores, vol. XXIV. São Paulo: Abril Cultural, 1973. LUCRÉCIO, Tito. Da natureza. in: Os Pensadores, vol V. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
10 São duas perguntas: qual a origem da desigualdade, e se ela é fundada na lei natural.