Tensionamento entre razão e natureza nas Investigações de Hume
As Investigações Sobre o Entendimento Humano, do filósofo escocês David Hume,
são consideradas de suma importância para a compreensão do sistema filosófico proposto pelo autor. Nelas, o autor se propõe a aplicar o método experimental na filosofia para compreender como funciona o conhecimento humano. Seus objetivos são de estabelecer os princípios gerais que regem o entendimento e que possibilitam os nossos raciocínios. Para Hume, se empreendermos tal investigação, chegaremos à constatação da incapacidade da razão para extrair qualquer conclusão acerca do que ultrapassa nossa experiência passada ou imediata. Este resultado é considerado um exemplo do ceticismo pelo qual o autor é conhecido. Mas, não obstante, Hume afirma que essa é uma operação realizada de modo constante. Com efeito, o autor chega ao ponto de afirmar que essa capacidade nos logrou sobreviver enquanto espécie. Essas duas considerações acerca do mesmo processo podem parecer contraditórias. Nesta dissertação, buscamos demonstrar que, para o autor, apesar da investigação sobre o entendimento humano nos levar à constatação da incapacidade da razão para ir além dos sentidos e da memória, tal resultado não impede que continuemos a operar deste modo. Isso pois esse processo é garantido e regido por um princípio alheio à razão: o princípio do hábito ou dos costumes. Esse princípio estaria inscrito na natureza humana, e, assim sendo, concede ao entendimento um alinhamento com o desenrolar da natureza que, caso contrário, seria impossível de atingir somente pela razão. Em última análise, apesar da investigação filosófica chegar a um resultado cético, o próprio autor enfatiza que as atividades da vida cotidiana requerem esse tipo de conduta e que tal exigência se impõe sobre qualquer ceticismo. Para cumprir esse objetivo, retomaremos alguns trechos importantes da exposição do texto. Primeiramente, serão retomadas as ideias do autor a respeito da origem e dos princípios de associação das ideias, nas seções 2 e 3, onde são apresentadas a distinção entre impressão e ideia e os três princípios de associação de ideias. Em segundo lugar, retomaremos a distinção apresentada na seção 4, conhecida como Garfo de Hume, entre relações de ideias e questões de fato, e o exame dos raciocínios baseados em relações de causa e efeito, com especial ênfase no papel da experiência. Por fim, o trecho em que Hume descarta a razão como fundamento da inferência causal, e como apresenta o princípio do hábito como garantidor dessa operação. Será-nos proveitoso, de início, recordar as posições do autor a respeito das ideias, sua relação com a experiência e o modo como se associam. Na segunda seção das Investigações, Hume examina os conteúdos da mente e os distingue em duas categorias, com base na sua vivacidade: impressão e ideia. Impressão, para o autor, é aquele conteúdo mais vívido, que fundamentalmente experimentamos através dos sentidos. Ideia, por outro lado, é o conteúdo menos vívido, que podemos conjecturar através do pensamento. A tese central de Hume nesse âmbito é de que toda ideia deriva necessariamente de uma impressão que a precede. A ideia de calor, por exemplo, é uma cópia menos vívida da sensação de calor experimentada anteriormente. Mesmo as ideias complexas ou que seriam impossíveis de remeter à uma experiência (pois não existem como tais na realidade sensível) seriam apenas justaposições de impressões precedentes e das quais são originárias. Mais adiante, na Seção 3, Hume examina o modo como as ideias são associadas entre si. O autor nota que no pensamento humano a sucessão das ideias não é aleatória, mas obedece uma regularidade. Uma ideia que é sucedida por outra deve necessariamente guardar em si algum elemento que possibilite a associação entre as duas. Para Hume, tal associação pode se dar por três princípios: similaridade, contiguidade e causalidade. Ideias que contém entre si alguma qualidade semelhante, podem ser associadas pelo princípio da semelhança; ideias que se encontram contíguas em um determinado contexto, podem ser associadas pelo princípio da contiguidade; e ideias que estejam inseridas numa relação de causalidade podem ser associadas segundo o mesmo princípio. O princípio da causalidade é central para o problema que buscamos enfrentar nesse texto. É através deste princípio que são realizadas todas as conclusões e raciocínios que partem daquilo que observamos para o inobservado, da experiência imediata para a conjectura sobre o futuro. Vejamos como ele se relaciona com o tema a seguir. Hume inicia a Seção 4 apresentando a distinção conhecida como Garfo de Hume, que consiste na divisão dos raciocínios entre relações de ideias e questões de fato e existência. O autor concebe as relações de ideias como aquelas proposições cuja validade é demonstrativa e intuitiva, como as formulações da matemática e geometria; sua verdade é estabelecida por necessidade no interior de seu enunciado. Já as questões de fato são concebidas pelo autor no sentido oposto: sua validade não é autoevidente. Afirma Hume: "O contrário de toda questão de fato permanece sendo possível" (HUME, 2004, p. 54). Em tratando-se de questões de fato, podemos conceber uma determinada proposição e seu contrário de forma igualmente inteligível. Isso quer dizer que, diferentemente das relações de ideias, sua validade não é demonstrativa e intuitiva. Esse aspecto, portanto, nos leva à necessidade de se investigar como se estabelece a validade das nossas conclusões sobre questões de fato. Hume argumenta que todo raciocínio moral, relativo à questões de fato e existência, funda-se na relação de causa e efeito. Apenas na relação de causalidade temos a possibilidade de ultrapassar a imediatez que se nos apresenta à memória e aos sentidos, e que nos é evidente. Isso é possível pois a causalidade pressupõe estar inscrita numa temporalidade. Através da causalidade podemos inferir sobre um evento futuro ou passado com base em algo que nos é apresentado. Hume observa, porém, que essa inferência não pode surgir do nada; ela deve fundar-se na experiência. A experiência é o que possibilita uma relação de nexo causal, pois, a priori, é impossível determinar uma causa de um efeito ou um efeito de uma causa. Hume é enfático ao declarar a absoluta distinção entre causa e efeito: "todo efeito é um acontecimento distinto de sua causa" (HUME, 2004, p. 59). Assim sendo, a razão poderia conceber inúmeros efeitos sem saber qual é aquele que se confirma. Disso segue-se que não há meios de descobrir o efeito de uma causa que nos é desconhecida, da qual não obtivemos nenhuma experiência. Nesse sentido, a experiência tem um papel similar ao das impressões, mencionadas anteriormente. É condição para que dela possamos estabelecer uma relação causal. Dessa primazia da experiência, porém, nasce uma questão importante. Se é apenas a experiência que possibilita uma determinada relação causal, como pode ser que façamos inferências sobre relações de causalidade ainda não observadas, e, não obstante, acreditemos nelas? À esse problema central do texto, Hume vai responder primeiramente de forma negativa, ou seja, como não é possível que essa operação aconteça. Para o autor, uma inferência sobre uma relação causal que ultrapasse a experiência imediata não pode basear-se na razão, e Hume dedica a segunda parte da Seção 4 a defender essa posição. Para isso, examina essa inferência na sua estrutura. Trata-se da conjunção de duas proposições, fundamentalmente: da constatação de que um objeto é acompanhado de um determinado efeito e da conjectura de que objetos semelhantes devem acompanhar efeitos semelhantes. Acontece que, segundo Hume, entre essas duas proposições não há um elo racional que autorize a sua conjunção. Para objetar a essa tese, bastaria apresentar um argumento que apontasse que o elo entre as duas proposições é um processo racional do entendimento. Vamos examinar como o autor defende a sua posição. Como dissemos, as conclusões sobre questões de fato podem ser perfeitamente concebidas de maneira oposta. Portanto, esse argumento contra a tese humeana não poderia ser nem demonstrativo nem intuitivo. Tais categorias demandariam que as proposições fossem estabelecidas por necessidade, o que não ocorre neste caso, já que podemos conceber diferentes efeitos da mesma causa com igual inteligibilidade. Tampouco esse argumento poderia basear-se no conhecimento sensível, já que causa e efeito são completamente distintos entre si e, como tais, são inacessíveis aos nossos sentidos. Sobre essa incapacidade, afirma Hume: "não há conexão conhecida entre qualidades sensíveis e poderes secretos" (HUME, 2004, p. 63). Resta, ainda, a possibilidade de esse argumento fundar-se na experiência. Ora, mas o que está em jogo aqui é justamente a tomada de consequências que extrapolam a evidência de uma experiência determinada. Esse argumento, baseado na experiência, busca comprovar a tomada de conclusões para além da experiência, e dessa forma repõe a própria questão que busca solucionar: trata-se de uma petição de princípio. Ainda na seção 4, Hume formula dois problemas nesse sentido que gostaríamos de ressaltar aqui. Primeiramente, há o fato de que, se a mente se depara com uma relação entre causa e efeito uma única vez, ela não projetará necessariamente que essa relação se seguirá no futuro. A situação muda de figura, contudo, caso a mente se depare com uma série regular de relações de causalidade: nesse cenário, será inevitável que da próxima vez que se depare com a mesma relação, ela espere o mesmo resultado. Não obstante, a informação que obtém em um caso ou em mil casos é a mesma. Fica claro, portanto, que não é uma operação racional do entendimento que está atuando no segundo cenário, pois, se fosse, já seria possível inferir a mesma conclusão da primeira observação. Em segundo lugar, como explicar o fato de que mesmo as crianças tiram conclusões sobre relações de causalidade, antes mesmo de elaborarem a própria racionalidade? Se fosse uma operação racional que permitiria esse tipo de conclusão, uma criança não seria capaz de fazê-la, pois não poderia nem mesmo explicar como a fez. Podemos dizer que subjaz à essa conjunção exposta anteriormente a ideia geral de que causas semelhantes acompanham efeitos semelhantes e de que a natureza opera com uma certa regularidade. Porém, se essas conclusões não são autorizadas pela razão, como é possível que continuemos a operar deste modo? A tese do autor está exposta na Seção 5: "Há aqui algum outro princípio que a faz chegar a essa conclusão. [...] Esse princípio é o hábito ou o costume" (HUME, 2004, p.74). É o princípio do hábito ou do costume que nos possibilita inferir que causas semelhantes possuem efeitos semelhantes. É através desse princípio que podemos saltar da evidência da memória e dos sentidos e para extrair conclusões sobre o inobservado. Para Hume, o princípio do hábito faz parte da natureza humana, é inerente à sua constituição e continuará operando enquanto a natureza humana permaneça a mesma. Quando um ser humano verifica através da experiência uma certa constância numa determinada relação causal, o princípio do hábito age sobre ele de modo que, da próxima vez que se deparar com o mesmo cenário, acredite que a mesma causação se repetirá. Esse processo independe da vontade do indivíduo, e assemelha-se a uma operação mecânica. Basta sermos expostos à uma experiência constante de causa e efeito para que projetemos que ela se repetirá no futuro. Uma vez encontrado o princípio, Hume dedica a segunda parte da seção 5 a investigar o modus operandi desse princípio no entendimento. Para o autor, trata-se da formação, através do hábito, de uma crença de que aquela relação causal observada com regularidade se repita no futuro. A crença é definida no texto em oposição à ficção ou imaginação: ambas tratam do que está ausente à memória e aos sentidos, mas a crença se diferencia por possuir um sentimento anexado a si. Esse sentimento se caracteriza por possuir um maior grau de vivacidade no seu conteúdo do que aquele da mera ficção, assemelhando-se, nesse sentido, à uma impressão. É por essa razão que somos levados a considerar de maneira inevitável aquela inferência autorizada pelo hábito. Toda questão de fato admite as mais diversas proposições sem que nenhuma seja necessariamente falsa, mas é aquela que foi observada com regularidade que, através do hábito, é tomada como mais provável. Essa tese humeana é a única que responde satisfatoriamente aos dois problemas colocados anteriormente. Vejamos como ela os explica e como se relaciona com o método e projeto filosófico do autor. No caso da diferença de conduta em relação à experiência de apenas uma relação causal ou uma multiplicidade de relações causais idênticas, o fato de concluirmos que uma relação que se repete com regularidade deverá se repetir no futuro é explicado pelo princípio do hábito. O hábito não nos possibilitaria concluir tal resultado de apenas uma única experiência, pois é necessário que a mesma relação causal se repita de forma constante para que o princípio comece a agir. No caso da criança, está claro que o princípio do hábito está inscrito na natureza humana, não dependendo de uma elaboração do indivíduo para entrar em operação. Em termos gerais, essa tese de Hume vai ao encontro de sua proposta de aplicar na filosofia o método experimental. Isso porque o autor não está determinado em encontrar as causas últimas desse princípio. A tese do princípio do hábito é a única hipótese que consegue solucionar e explicar os problemas colocados, e isso basta. Ao final da seção 5, o autor ainda se dedica a extrair algumas consequências sobre o resultado obtido. Em primeiro lugar, o fato de o princípio do hábito ser inscrito pela natureza no ser humano possibilita um alinhamento das suas conclusões com o desenrolar da própria natureza, coisa que seria vedada ao entendimento formado pela pura razão. Hume usa a voz ativa para se referir à natureza: "[...] ela implantou em nós um instinto que leva adiante o pensamento em um curso correspondente ao que ela estabeleceu para objetos externos" (HUME, 2004, p. 90). Essa capacidade é de suma importância para o desenvolvimento da espécie, pois através dela conseguimos superar uma condição circunscrita à imediatidade com vistas a atingir determinado objetivo. Por fim, o fato de essas inferências serem garantidas por um princípio alheio à razão torna-as imunes ao ceticismo filosófico. Com efeito, esse tipo de raciocínio é essencial para as atividades cotidianas: "a grande destruidora do pirronismo, ou ceticismo de princípios excessivos, é ação, os afazeres e ocupações da vida cotidiana" (HUME, 2004, p. 215). Hume busca manter uma postura de humildade em relação à filosofia ao longo das Investigações, e sobre esse ponto é enfático: "a natureza sempre afirmará seus direitos e prevalecerá, ao final, sobre qualquer raciocínio abstrato" (HUME, 2004, p. 73). Dessa forma, esperamos ter tornado claro a questão em tela, ou seja, o tensionamento entre razão e natureza nas primeiras seções das Investigações de Hume. Se a filosofia aplicada com rigor nos leva à compreensão da fragilidade do conhecimento humano, tal resultado não significa que esse conhecimento não seja essencial. O que está em jogo aqui são os limites da razão para compreender o entendimento humano e o mundo à sua volta. Ao apontar os limites de si mesma, a razão nos mostra a importância daquilo que reside fora dela, e, em última instância, fora da filosofia.
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Bibliografia:
HUME, David. Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral.