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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO

A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Amanda Machado Chraim


Rosângela Pedralli
(organizadoras)
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C553a Chraim, Amanda Machado; Pedralli, Rosângela (org.).


Alfabetização e humanização: a apropriação inicial da escrita sob
bases histórico-culturais
Organizadoras: Amanda Machado Chraim e Rosângela Pedralli
Prefácio de Lígia Márcia Martins.
1. ed. – Campinas, SP : Pontes Editores, 2022.

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-5637-473-4.

1. Alfabetização. 2. Educação. 3. Linguística. 4. Prática Pedagógica.


I. Título. II. Assunto. III. Organizadoras.
Bibliotecário Pedro Anizio Gomes CRB-8/8846

Índices para catálogo sistemático:


1. Educação. 370
2. Formação de professores – Estágios. 370.71
3. Didática - Métodos de ensino instrução e estudo– Pedagogia. 371.3
4. Leitura. 372.4
5. Linguística. 410
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Amanda Machado Chraim


Rosângela Pedralli
(organizadoras)
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SUMÁRIO

PREFÁCIO 7
Lígia Márcia Martins

APRESENTAÇÃO 13
Amanda Machado Chraim e Rosângela Pedralli

SEÇÃO I
FUNDAMENTOS FILOSÓFICO-TEÓRICOS

AS RELAÇÕES ENTRE TRABALHO E LINGUAGEM: QUESTÕES SOBRE O


DESENVOLVIMENTO HUMANO E OS PROCESSOS EDUCATIVOS 24
Adalgiza Gonçalves Gobbi
Ana Carolina Galvão

FORMAÇÃO HUMANA E ALFABETIZAÇÃO: UM COMPROMISSO COM A


TRANSFORMAÇÃO DO STATUS QUO 46
Aline Franciele Thessing
Maíra de Sousa Emerick de Maria

SEÇÃO II
PRESSUPOSTOS HISTÓRICOS E CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO

A ALFABETIZAÇÃO NA HISTÓRIA E NOS DOCUMENTOS OFICIAIS


BRASILEIROS 70
Marcia Nagel Cristofolini

MÉTODOS SINTÉTICOS E ANALÍTICOS E SUAS IMPLICAÇÕES PARA O


ENSINO DA LÍNGUA ESCRITA 90
Cintia Franz
O CONCEITO DE CONSCIÊNCIA FONOLÓGICA NOS ESTUDOS DA
ALFABETIZAÇÃO: O FOCO NAS UNIDADES LINGUÍSTICAS 113
Amanda Machado Chraim

O PENSAMENTO DE EMILIA FERREIRO: IMPLICAÇÕES PARA A


COMPREENSÃO DO APRENDIZADO DA ESCRITA E EQUÍVOCOS DE
ABORDAGEM NO BRASIL 135
Rosângela Pedralli

OS ‘USOS SOCIAIS DA LÍNGUA’ E A ÊNFASE NO LOCAL:


PROBLEMATIZAÇÕES 157
Amanda Machado Chraim

IMPLICAÇÕES DO PENSAMENTO DA ESCOLA DE VIGOTSKI PARA A


ALFABETIZAÇÃO 177
Marina da Silva Cabral

SEÇÃO III
IMPLICAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS

ALFABETIZAÇÃO NA/PARA A PRÁTICA SOCIAL: A LEITURA E A ESCRITURA


COMO PROCESSOS ARTICULADORES E DESENCADEADORES 208
Larissa Malu dos Santos

O TRABALHO COM O SISTEMA DE ESCRITA ALFABÉTICA EM UMA


PERSPECTIVA HISTÓRICO-CULTURAL: PRESSUPOSTOS, PROCESSOS E
DESAFIOS 237
Daniela Cristina da Silva Garcia

MAS O QUE É MESMO TRABALHAR COM ORALIDADE?: A PRODUÇÃO


TEXTUAL ORAL NO PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO 258
Amanda Machado Chraim
Rosângela Pedralli

“MAS O QUE EU FAÇO NA PRÁTICA, ENTÃO?”: REFLEXÕES ACERCA DO


PLANEJAMENTO NO PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO 285
Priscila de Sousa

POSFÁCIO 309
Francisco José Carvalho Mazzeu
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PREFÁCIO

Prefaciar uma obra que traz à análise o ensino da língua, com foco
no processo de alfabetização, é uma tarefa que muito me apraz, sobre-
tudo pela rigorosidade com a qual a temática é abordada. Não obstan-
te as vastas produções existentes no campo da alfabetização, as auto-
ras, ancoradas no método materialista histórico-dialético, nos brindam
com análises originais e, mais do que isso, extremamente necessárias
para a instrumentalização dos professores e professoras engajados
na luta defensora da qualidade do ensino, notadamente, nas escolas
públicas.
Não é fato novo que a escolarização pública básica em nosso país
ainda se revela deficitária e refém de inúmeros limites no que tange
à promoção do desenvolvimento das capacidades de leitura e escritu-
ra – expressões máximas do processo de humanização e condição bási-
ca para que, por serem históricos, cada indivíduo se insira, verdadeira-
mente, na história. Contribuir para a superação deste cenário é tarefa
de maior grandeza, posto que corrobora o atendimento da função precí-
pua da educaçãoescolar: promover o desenvolvimento integral dos indi-
víduos pela via da apropriação das objetivações humano-genéricas pa-
ra-si, ou seja, da alçada da filosofia, das artes e das ciências.
O compromisso com o ensino da língua alinha-se, antes de mais
nada, ao reconhecimento de que, ao representar os objetos e fenômenos
por meio da palavra, o ser humano deu o primeiro e mais decisivo passo
em direção à sua libertação do campo sensorial imediato e, com isso,
descortinou as possibilidades para a formação da consciência e, nela
imbricadas, as capacidades para abstrair e pensar. Operar psiquicamen-

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te por meio de palavras, na qualidade de signos, aponta o nascedouro


das complexas relações que se instalam entre linguagem e pensamento,
bem como a funcionalidade da mesma (palavra) para requalificar tanto
a comunicação entre as pessoas quanto a interpretação da realidade.
Conforme postulado pela psicologia histórico-cultural, a fala – ob-
jetivada no uso e significadosdas palavras, se institui, por um lado, como
um meio de comunicação social envolvendo indivíduos em processos
correspondentes de formulação e decodificação de expressões orais e,
por outro lado, como condição para que esses mesmos processos se tor-
nem um método de análise e generalização de informações recebidas,
o que significa dizer: um meio de atividade intelectual. Por conseguinte,
a conversão da fala em instrumento do pensamento acarreta profun-
das transformações no psiquismo humano, firmando-se como conquista
requerida à representação do mundo na interioridade subjetiva sob a
forma de imagem consciente do real. Contudo, há que se levar em conta
que tal feito radica no percurso de desenvolvimento cultural da lingua-
gem, quando a própria fala se requalifica sob a forma de expressões ex-
ternas e internas.
A linguagem interna, por seu turno, não é simplesmente o corre-
lato sem som da linguagem externa, mas uma função verbal altamente
especializada e distinta, na qual ocorre uma redução fonéticaquase abso-
luta, bem como arranjos distintos entre os aspectos semânticos e fonéti-
cos, se comparados à linguagem oral. Na linguagem interna os aspectos
fásicos e fonéticos condensam-se maximamente, culminando na prima-
zia da semântica sobre a fonética e, igualmente, numa fusão de palavras
na qual imperam sentidos dinâmicos, complexos e variáveis atribuídos
a elas.
Do ponto de vista psicológico, existe uma aproximação entre a lin-
guagem interna e a escrita – que são fundamentalmente monológicas,
diferentemente da linguagem oral, dialógica e subjugada à relação ime-
diata com o interlocutor. Com isso, destacamos a necessidade de com-
preensão da linguagem escrita como aquisição psicológica altamente
complexa e como uma conquista instrumental do desenvolvimento psí-
quico. Assim sendo, os expedientes mecânicos nos quais imperam a mo-

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tricidade da escrita e a decodificação de letras não se revelam suficientes


para promover a aquisição da leitura e da escritura.
Por esta brevíssima explanação acerca do desenvolvimento da lin-
guagem – oral e escrita, procuramos apontar quão complexa é a temá-
tica da alfabetização e, especialmente, o quanto ela se aliaa concepções
de desenvolvimento e papel da educação escolar em sua promoção.
O reconhecimento deste fato é um dos méritos da presente coletânea
de textos!
Os desempenhos deficitários dos escolares no âmbito da leitu-
ra e da escritura em nosso país evidenciam a insuficiência e ineficácia
das políticas que parametrizam a alfabetização e, vale destacar, a su-
perficialidade com a qual ela é tratada nos cursos de pedagogia que,
não raro, dispensam a ela um espaço diminuto em seus currículos.
O resultado não poderia ser outro, senão, a vitimização de um número
imenso de crianças, em sua maioria filhos e filhas da classe trabalhadora,
que, ao adentrarem à escola, não encontram nela os subsídios materiais
e imaterias para desenvolverem aquilo que se institui como requisito
primeiro para a inserção na vasta cultura letrada, legado da humani-
dade que a todos(as) deveria ser disponibilizada. Essa problemática, in-
discutivelmente, radica dialeticamente na unidade sociedade-educação,
e capturarmos aquilo que nela subjaz–os interesses de classe envolvidos
e as contradições que movem seu movimento histórico, se impõe como
exigência para ações de enfrentamento e transformação deste lamentá-
vel cenário.
As autoras, com a clareza de que o processo de alfabetização se re-
vela como síntese de múltiplasdeterminações e relações diversas, não se
curvam diante dos impasses e embates nele envolvidos; explicitando
a condicionabilidade da alfabetização a processos de ensino desenvol-
ventes, que assumam a tarefa de transmitir os conhecimentos afetos
às convenções da língua e da comunicação, cientes de que eles se im-
põem como uma das condições para a própria humanização do psiquis-
mo e, consequentemente, para a plena integração das pessoas na vida
social. Nesse diapasão, versar sobre alfabetização demanda uma postura

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clara acerca desses dois polos, quais sejam, sobre as especificidadesdo de-
senvolvimento e sobre as características da sociedade em que vivemos.
Sem tergiversar que vivemos numa sociedade alienada e alienante,
injusta e desigual, assume- se, nesta obra, uma postura clara e crítica
em relação às produções no campo da alfabetização naquilo em que elas
refletem afiliações ao projeto societário vigente. E, ao fazê-lo, as propo-
nentes da mesma desnudam os interesses da classe hegemônica que se
impõem como obstáculos para a existência de uma escola pública apta
a formar capacidades humanizadoras, dentre elas, as habilidades de lei-
tura e escritura.
Para tanto, há que se evidenciar as tensões ocultas no processo
de escolarização das crianças, jovens e adultos, posto que apenas o acla-
ramento de como as coisas acontecem ao nosso redor pode orientar
ações verdadeiramente transformadoras. O referido aclaramento, sendo
da alçada de conhecimentos aptos a desvelar o real, confere centralidade
à natureza do trabalho docente e, notadamente, às políticas parametri-
zadoras da formação de professores. Instrumentalizar os(as) professo-
res(as) para que compreendam o campo da alfabetização como um cam-
po de disputas ideológicas é, a meu juízo, o primeiro passo para os(as)
docentes se libertem da contenda dos métodos,uma vez que na aparên-
cia, o sucesso ou fracasso nesse campo, via de regra, é associado quase
exclusivamente aos expedientes metodológicos adotados. Esta obra re-
aliza, portanto, mais um grande feito: contribuir para a desfetichização
dos métodos de alfabetização.
Subsidiadas pela epistemologia materialista histórico-dialética,
as autoras não perdem de vista a relação entre a dimensão ontológica e a
dimensão epistemológica do objeto que tomam para estudo, com desta-
que ao ensino da língua, fornecendo elementos analíticos imprescindíveis
à compreensão dasimbricadas relações entre a educação escolar e a bus-
ca pela inteligibilidade da realidade concreta. Com isso, a presente obra
prima por reconhecer que os objetos e fenômenos em análise possuem
uma existência objetiva, ou seja, independentemente do conhecimen-
to e da consciência que tenhamos sobre os mesmos; eles estão ai, insti-
tuindo a prática social e respaldando as ações humanas que a instituem.

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Por isso, apreender com a máxima exatidão os elementos constitutivos


da referida prática, em sua estrutura e dinâmica interna de funciona-
mento, se impõe como tarefa indispensável da atividade de investigação
científica que se coloca a serviço da emancipação humana.
Mas essa empreitada só é assumida por pesquisadores cientes
de que os objetos e fenômenos da realidade concreta podem ser apre-
endidos gnosiologicamente, ou seja, que podemos compreender e ex-
plicar o que eles são verdadeiramente. Tal como prescrito pelo método
materialista histórico-dialético, há que se superar a captação aparen-
te do real em direção à sua apreensão essencial, sem preterirmos que a
aparência fenomênica, imediata e empírica do objeto é importante e não
pode ser descartada, visto queela é o ponto de partida do processo do co-
nhecimento – necessariamente onde se inicia a elaboração do mesmo.
Entretanto, partindo desta aparência e visando alçar a essência do obje-
to em análise, há que se capturar sua lógica interna de funcionamento
pela via analítica instrumentalizada pelas abstrações do pensamento
teórico.
Portanto, se queremos descobrir a essência oculta de um dado ob-
jeto, isto é, superar sua apreensão como real empírico (pseudoconcre-
to), é preciso caminhar das representações primárias e das significações
consensuais em sua imediatez sensível em direção à descoberta de suas
diversas determinações ontológicas. Considero que a obra em tela
é emblematicamente representativa desse exercício intelectivo, à me-
dida que desvela acuradamente uma vasta gama de produções no campo
da alfabetização, evidenciando seus aspectos positivos (quando existen-
tes), bem como os limites que encerram e que se impõem como obstácu-
los ao processo de alfabetização.
Destaque-se desta obra, ainda, que as autoras ao mesmo tem-
po em que realizam o exercício analítico sobre as inúmeras variáveis
que atravessam o ensino da leitura e da escritura, estabelecem relações
com demandas da formação de professores, especialmente alfabetizado-
res, com a convicção de quem sabe que a atividade teórica por si mesma
em nada altera a existência concreta do fenômeno. Todavia, na ausência

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dela, é pouco provável que ocorram intervenções práticas transformado-


ras da realidade, sendo este um dos objetivos deste livro.
Diante do exposto, em nome das organizadoras Amanda Chraim
e Rosângela Pedralli, parabenizo todas as autoras pelo excelente traba-
lho ora materializado nesta coletânea de textos, na certeza de que ela é
de inestimável valor para todos os educadores comprometidos com os
necessários avanços no processo de alfabetização rumo à construção
de uma nova forma de ensinar – resultante da compreensão aprofunda-
da do campo em questão e da reelaboração dos erros e acertos do pas-
sado, projetando-se para um futuro assentado em passos mais seguros
no trato com o ensino da leitura e da escritura.

São Carlos, 25 de junho de 2021.


Lígia Márcia Martins

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APRESENTAÇÃO

A alfabetização é, certamente, um objeto de estudo bastante in-


vestigado no campo educacional. Há um número expressivo de produ-
ções científicas publicadas no contexto brasileiro que tomam esse objeto
para investigações e pesquisas, a partir de diferentes filiações episte-
mológicas. Diante disso, poderia se estranhar que ainda há publicações,
como a presente obra, a qual se debruça sobre o tema, retomando a his-
toricidade constitutiva do campo, ao mesmo tempo que lida com teori-
zações que têm já amplo espaço nas reflexões que envolvem essa etapa
da Educação Básica. Fundamentando-nos no materialismo histórico
e dialético, é preciso sublinhar, entretanto, nosso entendimento de que
o movimento do conhecimento é o de uma aproximação sempre mais
adensada ao fenômeno e, dado o movimento da realidade, o próprio fe-
nômeno se altera, por ser necessariamente histórico, produto da ação
humana. Dessa forma, não é possível o esgotamento quando se trata
do conhecimento científico – a tentativa de chegar à essência das cir-
cunstâncias, criadas pelos seres humanos, garante que novas compreen-
sões sejam elaboradas, outros elementos sejam adicionados, e tal percur-
so não se finda. Enquanto houver história humana, a abstração teórica
poderá ser incrementada, de modo a permitir se conhecer sempre mais
e mais profundamente a realidade. Ainda: enquanto o modo de nossa or-
ganização social for regido pela lógica capitalista, haverá a necessidade
constante de descortinamento das relações que subjazem à aparência
e que escamoteiam o que de fato determina a dinâmica das interações
sociais.
A escola pública, por certo, uma instituição medular na sociabi-
lidade do capital, não foge a tais determinações, e é somente quando

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analisada e compreendida para além das impressões fenomênicas que se


torna possível promover ações contrárias aos encaminhamentos hege-
mônicos, os quais a colocamcomo um espaço desprovido de potência hu-
manizadora, porque fica à serviço da formação de indivíduos que, pauta-
dos pelas suas experiências imediatas, vêm a compreender a realidade
social como resultadode uma ordem natural. Com isso, a sua exploração,
considerada apenas ‘parte da engrenagem’ – uma engrenagem sobre-
-humana –, é também naturalizada.
Diante deste cenário, compreendemos que a universidade públi-
ca tem um compromisso, o qual deve ser assumido pelos educadores
e pesquisadores que a constituem, de colaborar com o aprofundamen-
to e a ampliação dos conhecimentos sobre os fenômenos, considerada
sempre a dinâmica da história, desenvolvendo estudos que, em revelan-
do a sua associação a um projeto de sociedade específico, e sendo esse
projeto o de transformação, pela raiz, do modo de organização social
vigente, possam colaborar para a compreensão mais aguda da realidade,
ao mesmo tempo que servem de base para que as ações diante do real
sejam alteradas. Este livro assume, pois, este compromisso, conside-
rando-se uma necessidade permanente no atual estado de coisas: a for-
mação de professores alfabetizadores como intelectuais que, por meio
dos conhecimentos sistematizados, têm a tarefa de organizar e elaborar
as ações de ensino em favor da humanização dos estudantes.
Nesse sentido, a presente obra, para dar conta de seu escopo, con-
sidera e incorpora o vasto percurso teórico empreendido por educado-
res e pesquisadores em torno dos processos de ensino e aprendizagem
de linguagem nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental. A incorporação
desses estudos, que, em sua grande maioria, partem de pressupostos fi-
losóficos e teóricos distintos dos que defendemosneste livro, é realizada
como parte de uma dinâmica que vislumbra a superação das proposições
que historicamente se desenvolvem para a alfabetização de crianças,
jovens e adultos. Tal intuito, de superar o que está colocado até então,
é referendado por processos analíticos que se avolumam desde o século
passado, os quais indicam os limites do campo da alfabetização, sinali-
zando, no âmbito dos impactos de tais limites, que os sujeitos perten-

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centes à classe trabalhadora têm restritas as suas possibilidades de efe-


tiva participação crítica na cultura escrita, limitando-se, em decorrência
disso – ainda que não seja aúnica razão para tal –, a própria possibilidade
de viver e experenciar o mundo para além das impressõesfenomênicas.
Com este livro, frente a tais circunstâncias, pretendemos contri-
buir com um importante movimento – contra-hegemônico, por certo –
que tem se materializado em vistas da superação da condição unilateral
em voga acerca do desenvolvimento humano no âmbito da alfabetiza-
ção, no que se refere não só à formação dos estudantes, mas também
à formação dos professores alfabetizadores. As limitações depreensíveis
do processo de aprendizagem nas escolas voltadas à classe dos traba-
lhadores são objeto de consternação dos próprios profissionais respon-
sáveis pela organização e pela sistematização do ensino, e esta obra
se realiza em nome destes educadores e em favor de sua formação,a qual,
sabemos, é objeto de disputa, sendo considerados os docentes, de forma
cada vez mais expressiva, como trabalhadores manuais em face da divi-
são social do trabalho.
Frente a esta força dominante que busca organizar a educação
de modo a garantir a formação de indivíduos adaptados e adaptáveis
ao mercado de trabalho, do que não escapam os professores alfabeti-
zadores e nem os alfabetizandos, tornou-se lugar comum, nas pesqui-
sas acadêmicas, promover reflexões que, silenciando ou secundarizando
os fundamentos de base, repousam num viés metodológico, entendida
a própria metodologia de maneira utilitária, ficando os encaminhamen-
tos voltados ao ‘como fazer’, destituindo-se do processo de formação hu-
mana a sua complexidade intrínseca quando entendido à luz da indisso-
ciabilidade entre teoria e prática.
Organizamos esta obra, assim, a partir de um movimento coletivo
de pesquisas, estudos e discussões que vislumbram superar a lógica prag-
matista que acompanha grande parte das proposições do campo da al-
fabetização. Há um projeto em curso, desse modo, do qual faz parte este
livro, que vislumbra ampliar e complexificar as reflexões acerca da al-
fabetização, de modo a reconhecer os diferentes projetos de sociedade
implicados nas proposições teórico-metodológicas da educação, colo-

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cando-se, pois, junto a um esforço mais amplo de deslocar a formação


docente de viés pragmatista para um percurso que referenda a dimen-
são intelectual do trabalho dos professores, para o que é imprescindível
o domínio dos fundamentos filosóficos, teóricos e metodológicos acerca
do desenvolvimento humano, da formação escolar e da aprendizagem
da linguagem dentro do modo de produção capitalista.
Acompanhando, dessa forma, a lógica que compreendemos ser es-
truturante para uma formaçãode alfabetizadores engajada com a dimen-
são intelectual do trabalho educativo, organizamos o livro em três se-
ções: na primeira seção, são apresentados os fundamentos filosóficos
basilares acerca do desenvolvimento humano, na relação com a lin-
guagem. Nessa direção, no Capítulo 1, Adalgiza Gobbi e Ana Carolina
Galvão lidam com a constituição histórica do ser humano, centralizando
e articulando, para isso, as categorias de ‘trabalho’ e ‘linguagem’, sendo
a primeira, a atividade vital humana, anterior,de modo a possibilitar e re-
querer a objetivação da linguagem como instrumento cultural, criação
humana, portanto, o qual se configura como aspecto determinante para
o salto ontológico da espécie humana. Por meio do entrelaçamento en-
tre tais categorias e a educação, as autoras evidenciam que a apropriação
das diversas e tão desenvolvidas manifestações da língua, pois, torna-se
imprescindível para o processo de humanização dos indivíduos, o que
deve ser compromisso da instituição escolar.
No Capítulo 2, Aline Thessing e Maíra Emerick de Maria, dando
continuidade ao percurso, evidenciam que quaisquer que sejam os mé-
todos de alfabetização promovidos, em todos eles há um projeto de so-
ciedade implicado. Analisando as contradições do campo, materializadas
em proposições teóricas comprometidas com a manutenção da socia-
bilidade capitalista, as pesquisadoras defendem a necessidade do reco-
nhecimento dessa relação entre projeto social e encaminhamento teó-
rico- metodológico, e para isso torna-se preponderante a explicitação
dos fundamentos filosóficos dos métodos propostos para a alfabetiza-
ção. Em nome da humanização dos indivíduos, por meio da apropria-
ção das objetivações realizadas ao longo da história, Thessing e Emerick
de Maria sublinham a necessidade de problematização teórica e prática

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da realidade social, para que a escola possa contribuir com a almejada


transformação do modo de sociabilidade vigente.
Tendo sido desenvolvidos, nestes dois primeiros capítulos,
os fundamentos filosóficos constitutivos das discussões empreendidas
na obra, a segunda seção se volta aos pressupostos teóricos que per-
meiam historicamente o campo da alfabetização. Assim, as autoras
dessa seção retomam as principais proposições hegemônicas da área,
trazendo considerações críticas à luz da teoria histórico- cultural, no já
mencionado movimento de buscar superar os encaminhamentos com-
prometidos com a formação de sujeitos adaptados à ordem dominante.
Desse modo, no Capítulo 3, Marcia Cristofolini, embasada em estudos
seminais do campo da alfabetização, traça um percurso analítico em tor-
no dos documentos oficiais parametrizadores, tal qual a Base Nacional
Comum Curricular e o Plano Nacionalde Alfabetização. A autora eviden-
cia, então, o profundo comprometimento de tais diretrizes com os fun-
damentos das pedagogias do ‘aprender a aprender’, esfacelando-se, dessa
forma, a potência da escola em vistas de uma educação emancipatória,
esvaziando-se essa esfera, quando voltada à classe trabalhadora, de con-
teúdos sistematizados. Eis o projeto de sociedade em curso.
Na sequência a tais considerações, Cíntia Franz, no Capítulo 4, ex-
põe e problematiza o embateque historicamente se delineia no campo
da alfabetização: a eleição do ‘melhor método’ entre os métodos
analíticos e sintéticos. Em sua elaboração, a autora evidencia a maneira
como tradicionalmente são definidos os encaminhamentos do campo,
apagando-se os pressupostos filosóficos que sustentam cada uma das
proposições metodológicas hegemônicas. Como elementos constitu-
tivos da análise proposta, Franz retoma os métodos, relacionando-os
com as teorias pedagógicas com as quais se filiam, defendendo, assim,
que o reconhecimento desses imbricamentos é basilar para que sejam
compreendidas as históricas disputas acerca da alfabetização. A autora
analisa, como um elemento ilustrativo das suas considerações teórico-
-críticas, o Plano Nacional de Alfabetização (PNA), publicado em 2019
como política pública que impõe um método único como o mais adequa-
do, retirando-se dos docentes a possibilidade de escolha no que compete

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aos encaminhamentos metodológicos à luz dos percursos empreendidos


na sala de aula.
No Capítulo 5, Amanda Machado Chraim, abordando questão dire-
tamente relacionada ao capítulo precedente, focaliza, em sua discussão
analítica, as perspectivas que centralizam o desenvolvimento da cons-
ciência fonológica no processo alfabetizador, as quais, de acordo com a
pesquisadora, estão pautadas em uma concepção de alfabetização como
decodificação e codificação da linguagem escrita. Realçando-se as uni-
dades linguísticas, de modo a garantir que os educandos exercitem,
sobretudo, as relações entre grafemas e fonemas da língua, destitui-se
da alfabetização o seupotencial humanizador, que só é alcançado quan-
do os pressupostos de base transcendem a concepção de língua como
sistema estável, de modo a garantir que, por meio dos processos de leitu-
ra e escritura dediferentes gêneros do discurso, os sujeitos se apropriem
sistematicamente dos elementos da língua escrita, essa tomada como
um conhecimento altamente complexo, desenvolvido pela humanidade,
e quetem importância fulcral para a organização da sociedade.
Ainda neste percurso de análise crítica acerca das proposições he-
gemônicas do campo da alfabetização, Rosângela Pedralli, no Capítulo
6, aborda as teorizações de Emilia Ferreiro, as quais impactam forte-
mente o cenário educacional desde o século passado, incorporando-
-se, para isso, os fundamentos biologicistas do construtivismo piage-
tiano. Elucidando, dessa forma, os princípios basilares da teoria sobre
os estágios implicacionais de escrita, Pedralli pontua os arrevesamentos
da incorporação desse escopo teórico no contexto brasileiro, sendo to-
mado equivocadamente como procedimento metodológico. Ao apresen-
tar os limites do pensamento de Ferreiro à luz dos fundamentos histó-
rico-culturais, a autora do capítulo explicita, por meio de uma análise
das bases do construtivismo,o alinhamento que tem esse escopo com um
projeto de sociedade que vislumbra a conservação do estadode coisas.
No Capítulo 7, de autoria novamente de Amanda Machado Chraim,
outro construto teórico bastante presente no campo da alfabetização
se torna o centro das reflexões analíticas, os estudos do letramento.
Chraim, a partir dos fundamentos dessa perspectiva, que aparece vincu-

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

lada a pressupostos pós-modernos, coloca sob escrutínio a ênfase dada


ao local, em detrimento do que é universal da culturahumana, problema-
tizando, assim, em relação ao trabalho pedagógico, a consequente secun-
darização dos usos linguísticos materializados nos objetos culturais mais
desenvolvidos. Por meio de uma breve análise da Base Nacional Comum
Curricular, a autora pontua a ênfase dada, neste documento, ao conceito
de ‘multiletramentos’, a partir do qual o trabalho com a modalidade es-
crita da língua nas suas formas mais desenvolvidas passa a ser somente
uma dentre tantas outras tarefas das quais a escola teriade se ocupar, es-
vaziando-se, assim, do que é fundamental: a garantia da aprendizagem
da língua escritaà luz da complexidade que lhe é imanente.
Como fechamento da segunda seção deste livro, a qual retoma
e analisa as proposições teóricase seus respectivos pressupostos filosófi-
cos que têm, historicamente, grande espaço no campo da alfabetização,
e que convergem no que se refere a uma formação unilateral das crianças,
jovens e adultosalfabetizandos, Marina da Silva Cabral, autora do Capítulo
8, traz reflexões, a partir dos autores de maiorproeminência da psicologia
histórico-cultural, acerca da etapa de alfabetização – na relação com a
Educação Infantil – como um momento crucial para o desenvolvimen-
to humano, já que deve estar comprometida com a apropriação de co-
nhecimentos sistematizados e, por meio disso, com a complexificação
do funcionamento psíquico dos sujeitos. Em favor da humanização, as-
sim, Cabral defende que os motivos para a leitura e a escritura devem
ser desenvolvidos nos/pelos educandos, garantindo-se que, neste salto
qualitativo de incorporação da escrita como uma forma complexa de lin-
guagem, para o que o trabalho com os conceitos científicos é premissa,
os estudantes tenham asseguradas as condições de compreender a reali-
dade, ao mesmo tempo que conhecem a si mesmos, emvistas do reconhe-
cimento do caráter histórico da formação social e, portanto, das possibi-
lidades de transformação da sociedade por meio da ação humana.
Na terceira e última seção desta obra, estão localizados os ca-
pítulos que tematizam aqueles que podem ser considerados os princi-
pais aspectos metodológicos – depreendidos das teorias com as quais
se filiam – no que concerne ao percurso de alfabetização. Para tanto,

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

com um caráter de introdução a esta seção, o Capítulo 9, de Larissa


Malu dos Santos, coloca em foco o conceito de ‘prática social’, o qual
tem sido bastante propalado pelas perspectivas hegemônicas a partir
de um ponto de vista pragmatista. Santos estabelece, em contraponto,
a partir do materialismo histórico e dialético, que a prática social so-
mente pode ser compreendida quando da análise da realidade, porque
é fruto dela, tornando-se possível, desse modo, o entendimento de que
tal prática é originária – e originante – da relação dialética entre obje-
tividade e subjetividade. Apesar, assim, de ser incorporada por teorias
que, ao dualizar teoria e prática, repousam a prática social sob o âmbito
do utilitário cotidiano, a autora esclarece, por meio da categoria de prá-
xis, alguns dos elementos afetos à indissociável relação entre asobjetiva-
ções e o pensamento, tornando-se a abstração um processo fundamen-
tal para as lides com a/na prática social, no âmbito da sua criação e da
sua transformação de maneira consciente. O processo de alfabetização,
nesse sentido, tem indiscutível relevância, por garantir a apropriação
de conhecimentos oriundos da prática social, por meio da modalidade
escrita da língua – a tomada de consciência é possibilitada, pois, a partir
de um projeto formativo humanizador.
No Capítulo 10, Daniela da Silva Garcia propõe como enfoque
os processos a partir dos quais o sistema de escrita alfabética se tor-
na objeto de ensino e de aprendizagem na alfabetização, problemati-
zando as perspectivas que dicotomizam esse sistema das práticas sociais
dos quais ele decorre e, também, é decorrente. Garcia chama atenção,
apoiando-se em importantes categorias marxianas, para a abstração
própria do sistema de escrita, constituindo-se a modalidade escrita
da língua por meio de uma sistematização que só é possibilitada a par-
tir da concretude própria da realidade. A autora propõe, por fim, que a
alfabetização não pode descurar do ensino das regularidades da escrita,
contudo, por ser um objeto cultural produzido ao longo da história, para
que sua apropriação faça sentido no tocante à humanização dos indiví-
duos, não se pode descurar da dimensão social que lhe é fundante.
No Capítulo 11, Amanda Chraim e Rosângela Pedralli, organiza-
doras deste livro, desenvolvem uma discussão sobre aquela que é muito

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

comumente considerada, em propostas curriculares e documentos pa-


rametrizadores, um dos eixos do trabalho na alfabetização: a oralidade,
tratada, em algunscontextos, distintamente da produção de textos, dua-
lizando-se, desse modo, o que, defendem as autoras,deveria ser somente
um eixo, o de produção de textos orais e escritos. Dessa forma, Chraim
e Pedralli sustentam que o desenvolvimento da linguagem oral na alfa-
betização deve partir dos princípios da autoria, levando os estudantes,
pois, a objetivar textos materializados em gêneros do discurso comple-
xos, por meio da apropriação de conhecimentos sistematizados. Essa
prática permitiria a superação da visão pragmatista a que tende a servir
o trabalho com oralidade no âmbito da escolarizaçãoformal, do que é par-
te a alfabetização. A superação almejaria a contribuição para a formação
omnilateraldos indivíduos.
Por fim, dando fecho à terceira seção e ao conjunto das discussões
filosófico-teórico- metodológicas desta obra, o Capítulo 12, de Priscila
de Sousa, dá tratamento ao instrumento que materializa os encaminha-
mentos, delineados a partir da fundamentação de base eleita pelos pro-
fessores, os quais garantem que o percurso educativo atinja os objeti-
vos para a formação dos alfabetizandos: o planejamento. Considerando,
para isso, os princípios da pedagogia histórico-crítica, a autora afir-
ma, de modo contundente, que não há uma forma fixa para o trabalho
com alfabetização, não havendo, então, um modelo ou um esquema
a ser seguido. Contrariamente a essa lógica esquemática, Sousa aponta
paraa necessária elaboração de cada docente, na relação com o coletivo
de professores das escolas,redimensionando o lugar desses profissionais
como intelectuais que, munidos das bases filosóficas e teóricas da edu-
cação, tomam decisões acerca das formas mais coerentes e consequen-
tes de encaminharo trabalho pedagógico, à luz do reconhecimento sobre
a articulação indissociável entre objetivos de aprendizagem, conteúdos,
estratégias metodológicas e avaliação.
A partir do itinerário aqui apresentado, esperamos que as contri-
buições deste grupo de autoras se tornem subsídios pertinentes para
o trabalho educativo, com o qual assumimos um compromisso teórico
e político, tendo por certo que a formação humana – seja de docentes,

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

seja de estudantes – se dá necessariamente por meio de projetos coleti-


vos. Engajadas, desse modo, com um projeto de sociedade para o qual
a alfabetização tem papel de grande relevância, por incidir profunda-
mente na humanização dos indivíduos, esta obra se objetiva em favor
de uma educação voltada para o futuro, sendo ela elemento indispensá-
vel para a compreensão do presente e, assim, para a necessária adesão
dos trabalhadores na construção de uma sociedade que promova a liber-
dade – real e não apenas formal – para todos os sereshumanos.
Não poderíamos deixar de mencionar, por fim, que, para
a materialização deste trabalho, contamos com o apoio imprescindí-
vel da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
– CAPES –, a quem muito agradecemos, certas de que esta é uma ins-
tituição de enorme importância para o fortalecimento da pesquisa e da
formação científica no Brasil.

Amanda Machado Chraim


Rosângela Pedralli

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SEÇÃO I

FUNDAMENTOS
FILOSÓFICO-TEÓRICOS
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

AS RELAÇÕES ENTRE TRABALHO E LINGUAGEM:


QUESTÕES SOBRE O DESENVOLVIMENTO
HUMANO E OS PROCESSOS EDUCATIVOS

Adalgiza Gonçalves Gobbi1


Ana Carolina Galvão2

Primeiramente o trabalho e, em seguida,


em consequência dele, a palavra...
(ENGELS, 2000, p. 218)

Com objetivo de explorar as questões que se entrelaçam na cons-


tituição ontológica dos seres humanos, trazemos à baila as questões
acerca do trabalho e da linguagem e sua indissociabilidade. Para isto,
exploramos as premissas que envolvem o trabalho como atividade vital
e da linguagem como elaboração tipicamente humana. Tratando acerca
do desenvolvimento psíquico dos sujeitos, exploramos as funções psico-
lógicas de modo a compreender que não somente a linguagem e o traba-

1 Pedagoga, formada pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Mestre em Ensino
de Humanidades pelo Instituto Federal do Espírito Santo (IFES), doutoranda do Programa
de Pós-graduação em Educação (Ufes). Membro do grupo de pesquisa “Pedagogia histórico-
-crítica e educação escolar”. E-mail: adalgizagobbi@gmail.com
2 Pedagoga, formada pela Universidade Estadual Paulista (Unesp/Bauru), Doutora em
Educação Escolar pela Unesp/Araraquara, professora do Departamento de Teorias do
Ensino e Práticas Educacionais e do Programa de Pós-graduação em Educação da Ufes.
Membro do grupo de pesquisa “Estudos marxistas em educação” e do Núcleo de Educação
Infantil (Nedi-Ufes). Líder do grupo de pesquisa “Pedagogia histórico-crítica e educação
escolar”. E-mail: galvao.marsiglia@gmail.com

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

lho são inseparáveis em suas constituições, mas também o são em todas


as demais funções que compõem o psiquismo humano. Por fim, busca-
mos estabelecer as devidas conexões entre trabalho, linguagem e educa-
ção, explicitando suas relações de interdependência.

1 Tornar-se humano: desenvolvimento da linguagem e diferenciação


dos animais

Para compreender a intrínseca relação entre trabalho e linguagem


é necessário entender o processo de evolução humana e os sucessivos
saltos ontológicos que impulsionaram o desenvolvimento dos indivídu-
os em suas mais altas conquistas. A teoria histórico-cultural do desen-
volvimento, ancorada no materialismo histórico e dialético, reconhece
que os seres humanos precisam, desde seu nascimento, estabelecer re-
lações sociais. Neste processo, a linguagem se destaca como uma das
principais ferramentas, tendo transformado sobremaneira as relações
entre os sujeitos.
Como na epígrafe deste capítulo, ao discorrer sobre as relações
entre trabalho e linguagem em seu livro Dialética da Natureza, Engels
(2000) traz contribuições fundamentais para a compreensão dessa inter-
relação. Após apresentar questões sobre a ciência, que estavam em dis-
cussão em seu tempo, o autor chega a seu ponto principal de análise:
o ser humano, sua constituição e sua diferenciação em relação aos ani-
mais. Assumindo como uma das características principais a especializa-
ção dos órgãos humanos em relação aos demais animais, compreende
que, ao diferenciar mãos e pés, os indivíduos desenvolvem habilidades
mais complexas em relação aos símios, o que faz com que a mão humana
seja um dos principais requisitos para tal diferenciação entre as espé-
cies. A mão, para ele,

[...] significa a ferramenta; e a ferramenta significa a ta-


refa especificamente humana, a reação transformadora
do homem sobre a Natureza, sobre a produção. Também
os animais, entendidos no sentido limitado, possuem
ferramentas; mas apenas como membros de seu corpo: a

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

formiga, a abelha, o castor. Há também animais que pro-


duzem, mas sua influência produtiva sobre a Natureza
circundante é igual a zero. Unicamente o homem con-
seguiu imprimir seu selo sobre a natureza, não só tras-
ladando plantas e animais, mas também modificando o
aspecto, o clima de seu lugar de habitação; e até trans-
formando plantas e animais em tão elevado grau que as
consequências de sua atividade só poderão desaparecer
com a morte da esfera terrestre. (ENGELS, 2000, p. 25)

A evolução do gênero humano propiciou aos indivíduos mudar


o mundo por meio de sua ação, deixando nele características exclusi-
vas. Disso decorre a assertiva de que o ser humano produziu e produz
sua própria realidade por meio do trabalho. A partir desta ação funda-
mentalmente humana, as relações se alteram e os indivíduos se desen-
volvem ao ponto de que, em algum momento, tiveram a necessidade
de ter “[...] alguma coisa a dizer uns aos outros” (ENGELS, 2000, p. 218).
Deste modo, podemos afirmar que a origem da linguagem se encontra
diretamente ligada ao trabalho. Se observarmos as comunidades huma-
nas primitivas, provavelmente encontraremos uma forma de comuni-
cação rudimentar, sem uma linguagem elaborada. Seus modos de agir
na natureza para sanar suas mais diversas necessidades de sobrevivência
e permanência se modificaram gradativamente à medida que os indiví-
duos se desenvolviam na condição de corpos biológicos e de seres huma-
nos conscientes, elaborando métodos, gestos, ferramentas, expressões
que possibilitaram a perpetuação e a evolução da espécie humana.
Dentro dessas importantes elaborações, destaca-se a linguagem,
sendo a responsável por saltos qualitativos no desenvolvimento psíquico
dos sujeitos, por proporcionar a possibilidade de comunicação, de forma
mais direta, de seus planejamentos e de seus sentimentos, de permi-
tir traçar metas mais complexas para seus objetivos e, principalmente,
de registrar a história de cada geração, com suas conquistas e fracassos,
de modo que as gerações seguintes tivessem acesso à história produzi-
da pelo conjunto dos indivíduos. Desta forma, de maneira processual,
os modos de relação social foram se modificando diante da complexida-

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

de da existência humana, sendo impossível conceber a sociedade atual


sem o domínio da linguagem.
Nesses termos, segundo Martins (2013, p. 168), a linguagem “[...]
sintetiza o acúmulo da experiência social da humanidade e os mais de-
cisivos saltos qualitativos dos indivíduos, tanto do ponto de vista filo-
genético quanto do ontogenético”. Assim, não é difícil compreendermos
que estamos inseridos em uma cultura letrada (SAVIANI, 2008). Saber
ler, escrever e contar converte-se em conhecimentos fundamentais
no processo de humanização, tendo em vista que esses saberes possi-
bilitam a apropriação pelas novas gerações das produções acumuladas
ao longo da história, viabilizando o processo de produção subjetiva e de
produção do meio social e material, já que, ao ser humano, é fundamen-
tal produzir sua existência continuamente. Assim,

[...] eis um dos maiores benefícios de saber ler e escre-


ver em uma sociedade letrada: participar ativamente da
vida social, agindo e interagindo com as significações,
tanto verbais quanto de conhecimentos sistematizados
historicamente, em um processo humanizado requa-
lificador do psiquismo, fazendo-o alcançar patamares
cada vez mais elevados de desenvolvimento. (DANGIÓ;
MARTINS, 2018, p. 27)

Como observado, a linguagem não é algo puramente biológico.


Na diferenciação dos humanos em relação aos demais animais, a lin-
guagem se firma como importante conquista advinda das necessidades
de existência concreta dos seres humanos, sendo uma das premissas
para sua humanização, mas não sendo única nesse processo.
Por meio de sua ação direta na transformação da natureza, o ser
humano produz sua própria existência, sendo capaz de planejar e execu-
tar ações produtivas e intencionais. Assim, sua diferenciação em relação
aos outros animais se dá por sua atividade vital, por meio da qual é ca-
paz de criar, produzir e transformar sua atividade humana fundamental,
o trabalho (LEONTIEV, 1987), que assume característica de atividade
pela qual o sujeito adapta a si a natureza e a transforma de modo a suprir

27
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

suas necessidades e a produzir seus meios de sobrevivência. Segundo


Marx e Engels (1974, p. 19, grifo do autor, tradução nossa),

[...] podemos distinguir o homem dos animais pela cons-


ciência, pela religião ou por qualquer coisa que se queira.
Porém, o homem se diferencia propriamente dos ani-
mais a partir do momento em que começa a produzir seus
meios de vida, passo este que se encontra condicionado
por sua organização corporal. Ao produzir seus meios de
vida, o homem produz indiretamente sua própria vida
material.

Esta produção de si e de seu meio é vital ao ser humano. Como par-


te integrante da natureza e como ser finito e limitado, necessita do meio
para sustentar seu desenvolvimento contínuo. Para Marx, esse desen-
volvimento só é possível pelo metabolismo do ser humano com a natu-
reza e pela estreita relação histórica entre eles, ou seja, pelo trabalho.
Como definição, concordamos com Markus (1974, p. 22, tradução nossa)
que afirma:

O trabalho é a relação histórica real do homem com a na-


tureza e determina, ao mesmo tempo, a relação recíproca
entre os homens, isto é, a totalidade da vida humana. Por
isso o trabalho é pressuposto natural eterno da vida hu-
mana. O trabalho é, antes de tudo, uma atividade que se
orienta à satisfação das necessidades, não diretamente,
mas por meio de mediações.

Enquanto as carências dos demais animais são supridas segun-


do a natureza de cada espécie, o ser humano responde às necessidades
por meio de sua ação transformadora sobre a natureza. A diferença se dá
na ação intencional do ser humano para produzir meios para que esta
ação se torne efetiva. Os objetos naturais são transformados em ferra-
mentas e outros objetos são criados. Estes são modificados, repensados;
se originam novos objetos para as mais diferentes necessidades, o que

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

altera gradativamente seu modo de viver, convertendo o meio natural


em meio cultural, resultado do trabalho. Desse modo,

O animal apenas utiliza a Natureza, nela produzindo


modificações somente por sua presença; o homem a
submete, pondo-a a serviço de seus fins determinados,
imprimindo-lhe as modificações que julga necessário,
isto é, domina a Natureza. E esta é a diferença essencial
e decisiva entre o homem e os demais animais; e, por
outro lado, é o trabalho que determina essa diferença.
(ENGELS, 2000, p. 223)

Neste processo de produção do gênero humano e de seu meio,


a requalificação do cérebro humano em comparação ao dos demais ani-
mais se acentua, sendo a linguagem “[...] um dos instrumentos básicos
criados pela humanidade” (LURIA, 2012, p. 26), pois “[...] o trabalho so-
cial e o emprego dos instrumentos que lhe são requeridos, bem como
o desenvolvimento da linguagem, marcam, em definitivo, a transição
da história natural dos animais à história social dos homens” (MARTINS,
2013, p. 38). Assim, toma-se o trabalho como meio pelo qual se desen-
volvem formas mais evoluídas de atividades socialmente condicionadas.
A consciência humana, portanto, é socialmente condicionada e reflete
a realidade por meio da linguagem, pois:

[...] a linguagem fixa a experiência social da humanida-


de, a prática social e as idéias criadas pela sociedade.
Tudo isso é transmitido de um homenm a outro através
da palavra, é assimilado por eles, torna-se um regulador
de suas atividades, influencia seu comportamento e se
desenvolve posteriormente na sociedade. (SMIRNOV et
al, 1960, p. 17-16, tradução nossa)

Compreender que o ser humano é este ser natural e material, sen-


sorial-sensitivo (MARKUS, 1974) é chave para se apreender a intrínseca
relação entre o trabalho como atividade vital humana e o desenvolvi-

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

mento das funções psicológicas superiores, nas quais se insere a lingua-


gem. Neste caso, sobre o termo função, Martins (2013, p. 55) explica que:

Segundo Luria (1979), o conceito de função tem sua ori-


gem no campo da biologia, a partir de estabelecimento
de correlações diretas entre dado órgão e suas formas de
operação e as tarefas que executa. Nessa direção, os pri-
meiros intentos modernos, na busca pela compreensão
dos processos e fenômenos psíquicos, reproduziram o
percurso biológico, apontando o cérebro como órgão do
psiquismo. Esse autor, referindo-se ao uso da expressão
função em relação aos processos psíquicos, afirma que
essa expressão acompanhou, ao longo dos tempos, os di-
ferentes enfoques acerca do psiquismo. Em suas origens,
ainda na Idade Média, tais processos foram identificados
como “faculdades”, consideradas entidades irredutíveis a
quaisquer componentes mais elementares. Seriam, pois,
formas de manifestação do espírito expressas na “facul-
dade de percepção ou imaginação”, na “faculdade de ra-
ciocínio” e na “faculdade da memória. Essa proposição
abriu caminhos para a hipótese das possíveis relações
entre tais faculdades e os mecanismos cerebrais, dado
fortemente explorado pela ciência moderna, que inau-
gurou a ideia de que os processos psíquicos devessem
possuir uma base material orgânica e não espiritual.

Partindo, então, para a compreensão do que seja o psiquismo,


apoiamo-nos na definição de Martins (2013, p. 30), que o explica como
“[...] unidade material e ideal construída filo e ontologicamente por meio
da atividade, isto é, nos modos e meios pelos quais o homem se relacio-
na com a realidade, tendo em vista produzir as condições de sua sobre-
vivência e a de seus descendentes”. Em outras palavras, é material com-
posto pelo substrato biológico (cérebro) e pela própria materialidade
da realidade que reflete; e ideal composto pela imagem subjetiva acerca
da realidade concreta. É construído evolutivamente por meio do con-
junto dos “movimentos vivos” ou atividades do meio social (DAVIDOV,

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

1988), sendo o que permite ao indivíduo planejar e executar suas ações


de modo a perpetuar sua espécie.
O psiquismo firma-se, portanto, como sistema funcional que se
desenvolve ao longo da vida do ser humano, adquirindo “[...] proprie-
dades fundamentalmente distintas em relação aos [outros] animais”
(MARTINS, 2013, p. 27). Tais propriedades podem ser concebidas como
funções, sendo classificadas entre funções psíquicas elementares e fun-
ções psíquicas superiores.
Tomando os estudos de Vigotski como base e destacando ser sua
abordagem pautada no materialismo histórico e dialético, é importante
situar que as análises realizadas por ele buscaram se distanciar daque-
las que estudavam o sistema psíquico como composto por categorias
estanques, desconsiderando a realidade dialética e multideterminada
na qual se inserem os seres humanos. Desta forma, as funções psíquicas,
por mais que sejam categorizadas entre elementares e superiores para
fins explicativos, não são possíveis de serem observadas separadamente.
Antes de explorarmos brevemente as funções psíquicas, cabe re-
forçar que aos seres humanos é possível a superação dos atributos natu-
rais em direção a novas propriedades, que são desenvolvidas em maior
grau e exclusivamente humanas. Este salto qualitativo no desenvolvi-
mento psíquico humano se dá por meio da apropriação dos signos, sen-
do estes descritos por Vigotski (1995, p. 83, tradução nossa) como:

[...] os estímulos-meios artificiais introduzidos pelo ho-


mem na situação psicológica, que cumprem a função de
auto estimulação; aplicando a este termo um sentido
mais amplo e, ao mesmo tempo, mais exato ao que se dá
habitualmente a esta palavra. De acordo com nossa de-
finição, todo estímulo condicionado criado pelo homem
artificialmente e que se utiliza como meio para dominar
a conduta – própria ou alheia – é signo: sua origem e
função.

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Dessa forma, os signos consistem no universo de significações his-


tórico-socialmente edificadas pelos indivíduos. Sendo o desenvolvimen-
to humano dependente das relações sociais, a mediação destes signos
e o desenvolvimento das funções psíquicas dependerá essencialmente
da educação recebida pelo sujeito, suas interações sociais e culturais.
Partindo desta premissa, Martins (2013, p. 67) confirma que:

[...] o uso de signos provoca modificações que ultrapas-


sam o âmbito da função específica na qual ocorre, rear-
ticulando completamente o psiquismo. O uso de signos
determina rupturas no modo de operar já instalado de
uma função específica e, ao fazê-lo, modifica suas articu-
lações com outras funções, inaugurando novas formas de
manifestação psíquica.

Estas modificações funcionais rearticuladas por meio dos signos


e da atividade social são determinantes no desenvolvimento dos indiví-
duos, reafirmando o psiquismo como sistema funcional interligado.

2 O psiquismo humano e o desenvolvimento de suas funções

Por meio da apropriação dos signos, os indivíduos da espécie hu-


mana podem organizar seus modos de vida na natureza de forma mais
complexa, ou seja, de modo “superior”. Os signos requalificam o “[...]
reflexo psíquico da realidade, à luz do qual o homem se orienta nela”
(MARTINS, 2013, p. 73, destaques da autora). A partir dos princípios
até aqui expostos, por meio dos quais foram exploradas as bases iniciais
para o entendimento acerca do desenvolvimento do psiquismo humano
e das funções psíquicas inerentes a ele, faremos uma breve explanação
acerca destas funções, quais sejam: sensação, percepção, atenção, memó-
ria, linguagem, pensamento, imaginação, emoções e sentimentos.
Para tal, principiaremos pelas funções sensação e percepção que,
apesar de em alguns momentos aparentemente se confundirem em suas
características, possuem particularidades e qualidades exclusivas. A cap-
tação sensorial se enquadra como estímulo primário; a ela compete

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

apreender as características e especificidades dos objetos, no momen-


to inicial do contato sujeito-objeto. É por meio de dada função que o
ser humano é capaz de conhecer o mundo que existe para além de si.
Sendo a primeira via pela qual o indivíduo se relaciona com o mun-
do, a sensação caracteriza-se por ser “[...] ‘porta de entrada’ do mundo
na consciência” (MARTINS, 2013, p. 122).
Tendo sua apuração vinculada ao agir dos indivíduos sobre o mun-
do, “[...] o processo de desenvolvimento das sensações está ligado
à atividade prática e, acima de tudo, do trabalho, do homem, e depende
das exigências que apresentam a vida e o trabalho [...]” (SMIRNOV et al.,
1978, p. 98, tradução nossa). Captados os estímulos, é por meio da per-
cepção que estes são reunidos de modo a formar uma imagem unificada
do objeto. Atuando principalmente no momento em que os reflexos in-
condicionados vão dando lugar aos condicionados, a percepção confi-
gura-se como “[...] o reflexo do conjunto de qualidades e partes dos ob-
jetos e fenômenos da realidade que atuam diretamente sobre os órgãos
dos sentidos” (SMIRNOV et al., 1978, p. 145). Assim como as sensações,
a percepção é resultado do contato direto dos sujeitos com o mundo ma-
terial, mas, ao passo que as sensações captam as caraterísticas isoladas
dos objetos, a percepção as reúne de modo a criar uma imagem subjetiva
da realidade.
Diante das captações sensoriais e perceptivas e, consideran-
do que sobre os sujeitos atuam diversos fenômenos com distintas de-
terminações, é por intermédio da atenção que é possível ao indivíduo
o direcionamento de seu comportamento. Ramificando em atenção es-
pontânea e atenção voluntária, esta função é responsável pelo foco dire-
cionado diante das inúmeras ocorrências advindas da ação dos sujeitos
na realidade concreta.
A atenção espontânea, disponível também a outros animais, se ca-
racteriza pelos reflexos instintivos, de caráter circunstancial, ou seja,
pela necessidade de atenção que é condicionada pelo meio, e não pelo
sujeito. Já a atenção voluntária, é desenvolvida pela apropriação da cul-
tura e definida pela exigência dos motivos, sendo prescrita pelas fina-
lidades da ação. É produto e produtora da atividade complexa e supe-

33
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

ra os princípios dos estímulos externos predominantes, possibilitando


o encadeamento prolongado de ações e a concentração em um conteúdo
específico (MARTINS, 2013).
As imagens produzidas pela percepção, sobre as quais o indiví-
duo se atenta, precisam ser registradas, o que compete à memória, cuja
expressão funcional é a fixação (retenção dos traços resultantes da es-
timulação), o armazenamento (organização dos traços mnêmicos) e a
reprodução (evocação) das experiências sociais (MARTINS, 2013). Assim
como a atenção, a memória se expressa como involuntária (de fixação
espontânea, imediata e de seleção determinada pela força dos estímulos)
ou voluntária (mediada por recursos artificiais, dependente das ações
realizadas e evocação por apelo consciente).
Compreendendo que o conhecimento de mundo não pode se res-
tringir às captações imediatas, é necessário aos indivíduos a utilização
de um meio indireto capaz de deduzir conclusões a partir de seus conhe-
cimentos previamente adquiridos. Assim configura-se o pensamento,
que, inicialmente, corresponde à atividade prática, ou seja, pensar é agir.
Ao longo do desenvolvimento do indivíduo, o pensamento passa a ser
um exercício de análise da realidade concreta, compreendendo a gene-
ralização, a comparação e a representação verbal desta realidade. Em sua
máxima expressão, o pensamento precisa de uma infinidade de apro-
priações dependentes das condições objetivas do sujeito. Pode-se definir
o pensamento com duas expressões: empírico e teórico. O pensamento
empírico deriva diretamente da atividade sensorial em relação aos ob-
jetos da realidade. Vincula-se ao plano concreto das imagens, concen-
trando-se na aparência dos fenômenos. Já o pensamento teórico supera
a aparência sensorial, centrando-se no conceito; busca apreender as coi-
sas como são, como se tornaram aquilo e o que poderão se tornar. Sobre
o pensamento, salientando não serem as funções psicológicas estanques
umas das outras e partindo da função percepção para explicar o pensa-
mento, Martins (2013, p. 191) destaca que

[...] a percepção sempre se subjuga a um campo, isto é,


a uma determinada situação na qual as coisas são apre-

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

endidas em suas expressões singulares, casuais e ex-


ternas, em uma contiguidade espaçotemporal. Em tais
condições, suas propriedades podem até estar ‘reunidas’,
porém, não “vinculadas”. Ao pensamento cumpre a tare-
fa de superar essas condições em que as relações entre
objetos revelam-se superficiais e aparentes, avançando
do casual ao necessário, da aparência à essência, promo-
vendo a descoberta de regularidades gerais, de múltiplas
vinculações e mediações que sustentam sua existência
objetiva.

Portanto, o pensamento consiste principalmente em um condutor


do comportamento humano, sendo produzido pela atividade dos sujei-
tos na realidade concreta.
Aos seres humanos é possível direcionar o pensamento para limites
além de seu conhecimento de mundo. Sendo uma função especificamen-
te humana, a imaginação se desenvolve por intermédio da ação do in-
divíduo sobre a natureza, possibilitando ao indivíduo criar ideias novas
que vão além de sua realidade, ideias estas que depois podem se trans-
formar em realidade material (SMIRNOV et al., 1978). Desenvolvendo-se
sobre as bases das apropriações realizadas pelo indivíduo, a imaginação
é absolutamente dependente das experiências sociais e aprendizagens
para se desenvolver. Segundo Martins (2013, p. 227),

[...] a imaginação é um traço imanente do trabalho, de-


senvolvido, do ponto de vista histórico, nas atividades
que problematizam a relação do homem com a natu-
reza na luta pelo atendimento de suas necessidades. O
trabalho – como atividade que encerra uma finalidade
precedente ao seu resultado final, cujo produto existe
primeiro “na cabeça do homem” – exigiu do psiquismo
a especialização da função imaginativa. A atividade vital
humana, deixando de ser casual, passa a orientar-se por
um projeto ideal que, mesmo não tendo existência con-
creta imediata, determina e regula diferentes atos.

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Deste modo, é possível ao ser humano a abstração acerca do real


e a idealização de possíveis resultados para suas ações. Criando algo
novo que inicialmente existe apenas como ideia, é capaz de influir sobre
o mundo de forma a realizar concretamente este planejamento ideal.
Imerso na realidade, conhecendo-a e transformando-a, o ser
humano é afetado, de modo que reage de variadas maneiras por meio
das emoções e dos sentimentos. Estas funções compreendem, portanto,
o resultado das peculiaridades das relações do sujeito com a realidade/
objeto, sendo sua expressão sempre particular.
Compreendendo uma relação de completa associação entre es-
tas duas funções, para fins explicativos, é possível dizer que as emoções
dizem respeito às vivências afetivas menos complexas que se relacio-
nam diretamente com a satisfação ou insatisfação das necessidades or-
gânicas, enquanto os sentimentos se relacionam com as necessidades
que aparecem no decorrer do desenvolvimento histórico da humanidade
(SMIRNOV et al., 1978). Em suma,

Ao conhecer a realidade e transformá-la com seu traba-


lho, o homem reage de uma forma ou de outra a objetos e
fenômenos reais, coisas, eventos, outras pessoas, a seus
próprios atos e sua personalidade. Alguns fenômenos re-
ais o fazem feliz, outros o entristecem; alguns o motivam
admiração, outros indignação; há os que o enojam, ou-
tros que o provocam medo. Alegria, tristeza, admiração,
indignação, raiva, medo, etc., são diferentes tipos de ex-
periências emocionais, diferentes tipos de atitude subjetiva
em relação à realidade, diferentes formas de sentir o que
age sobre o sujeito. A realidade objetiva é a origem das
emoções e sentimentos. O sujeito tem uma atitude emo-
cional em relação a objetos e fenômenos do mundo real e
os sente de maneira diferente, dependendo das relações
objetivas particulares em que se encontra com eles. As
emoções e os sentimentos são uma das formas pelas quais o
mundo real se reflete no homem. (SMIRNOV et al., 1978, p.
355, tradução nossa, grifos do autor)

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Por fim, abordemos a linguagem, dando a ela um tratamen-


to um pouco mais alongado dado o foco de nosso texto, sobrelevando
que esta abordagem destacada não a separa das demais funções e não
descaracteriza as funções psíquicas assumidas como conjunto.

3 A linguagem como função psíquica superior

A linguagem é um sistema de signos composto por três princi-


pais campos: (i) meio de existência, tendo em vista ser fundamental
nas relações humanas e sua diferenciação na natureza em comparação
aos demais animais, (ii) meio de assimilação-transmissão da experiên-
cia histórico-social, pois é por meio dela que ao ser humano é possível
a apropriação das significações acumuladas pelo gênero ao longo da his-
tória, e (iii) meio de comunicação, sendo possível desde a comunicação
direta e imediata entre os seres ou o registro da história a ser transmiti-
da às futuras gerações.
Permanecendo no âmbito dos signos altamente complexos des-
critos por Vigotski, a linguagem se configura como uma das principais
responsáveis pelo salto ontológico do ser humano na direção de dife-
renciar-se dos demais animais. Isso porque é por meio dela que os in-
divíduos superam os limites sensoriais e inatos, fazendo a comunicação
entre os sujeitos construtora de história e desenvolvimento. Fruto de um
longo processo social e nascida da necessidade de comunicação entre
os seres humanos, a linguagem configura-se também como função psi-
cológica superior.
Partindo de uma expressão denominada por linguagem externa,
interpessoal, na qual o bebê expressa suas necessidades em relação
com o adulto, passando pela linguagem egocêntrica, que atua no pro-
cesso de internalização, na qual o sujeito “fala consigo mesmo”, como
uma espécie de treino linguístico e atingindo a linguagem interior, com-
preendida no plano intrapessoal, à qual compete a organização do pen-
samento, da consciência, graças à linguagem, “[...] a imagem subjetiva
da realidade objetiva pode ser convertida em signos” (MARTINS, 2013,
p. 167).

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Ao tomarmos a palavra como unidade mínima de análise acer-


ca da linguagem, é importante salientar que por meio desta é possível
que o sujeito crie a imagem mental daquilo que se materializa na rea-
lidade objetiva, ou seja “[...] a imagem subjetiva da realidade objetiva
pode ser convertida em signos” (MARTINS, 2013, p. 167-168). Isto signi-
fica que é possível ao ser humano dar nome aos objetos de modo que a
apreensão do real não precisa se dar no âmbito sensorial, sendo possí-
vel evocar, por meio da memória, a imagem mental daquilo que deseja
representar.
Por meio da linguagem, é possível ainda que o indivíduo seja ca-
paz de transmitir informações, emoções, pensamentos e apropriar-se
da experiência humana ao longo da história. Nessa direção, segundo
Marsiglia (2011, p. 57),

A linguagem movimenta todos os campos de atividade


da formação da consciência do sujeito: percepção (altera
a percepção do mundo e cria outras leis dessa função),
atenção (voluntária), memória (quantidade de informa-
ções e voluntariamente selecionar informações) e imagi-
nação (proporciona processos criativos porque desliga o
indivíduo da experiência imediata).

Em sua expressão por meio da linguagem, o ser humano aprimo-


rou técnicas que potencializaram suas possibilidades de registro, sendo
a escrita uma de suas formas mais complexas. Por meio dela, foi possível
ir além do registro visual e falado de sua realidade, elaborando um sis-
tema de símbolos, a fim de “[...] recordar e transmitir ideias e conceitos”
(LURIA, 2012, p. 146). Para uma breve análise sobre a pré-história da es-
crita, tomamos a infância como ponto de partida, compreendendo que a
partir do momento que a estes sujeitos é possível a utilização desse tipo
de registro, um novo modo de expressão inicia seu desenvolvimento, an-
tes mesmo da entrada na escola.
A escrita, como mediação cultural, é um processo que ocorre
primeiramente no âmbito social para posteriormente ser desenvolvi-
da como função psicológica. Em sua definição de escrita, Luria afirma

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

que esta é a “[...] utilização funcional de linhas, manchas, sinais para


conservar e transmitir determinadas imagens e conceitos, constitui
um procedimento auxiliar utilizado com fins psicológicos” (LURIA, 1987,
p. 45). Sendo assim, podemos perceber nas crianças desenvolvimento
rudimentar da escrita por meio do desenho, rabiscos ou até mesmo pela
imitação do comportamento do adulto. Esta imitação, se concebida
em sentido amplo, é a forma principal em que se realiza a influência
da aprendizagem sobre o desenvolvimento.
Ainda tomando os estudos de Luria como base de nossa investi-
gação, é possível identificar a separação (para fins didáticos) das fases
da aquisição da escrita: pré-instrumental, gráfica-diferenciada, picto-
gráfica e simbólica. Caracterizada como o início do desenvolvimento
da escrita na criança, a fase pré-instrumental reflete “[...] a completa
incompreensão do mecanismo de escrita, a relação puramente formal
diante dela, a rápida passagem da escrita a uma brincadeira que não
se encontra ligada a ela funcionalmente” (LURIA, 1987, p. 48, tradução
nossa). Ou seja, a escrita ainda não tem significado para a criança que se
utiliza dela apenas para imitar os adultos ou para inseri-la em alguma
brincadeira. Segundo o autor,

O ato de escrever é, neste caso, apenas extremamente


associado à tarefa de anotar uma palavra específica; é
puramente intuitivo. A criança só está interessada em
‘escrever como os adultos’; para ela o ato de escrever não
é um meio para recordar, para representar algum signi-
ficado, mas um ato suficiente em si mesmo, um brinque-
do. Tal ato não é, de forma alguma, sempre visto como
um recurso para ajudar a criança a lembrar-se mais tarde
da sentença. A conexão entre os rabiscos da criança e a
ideia que pretendem representar é puramente externa.
(LURIA, 2012, p. 149)

A partir das mediações que vão sendo realizadas, a um certo ponto,


é possível perceber na criança uma diferenciação em seu modo de reali-
zar registros. Quando passam a corresponder a alguma sentença que se

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

deseja recordar, ou seja, quando os registros têm função mnemônica,


perceberemos ser “[...] este o primeiro embrião da futura escrita [...]”
(LURIA, 1987, p. 50, tradução nossa). Caracteriza- se assim a segunda
fase da escrita, gráfica diferenciada, onde o registro passa a ter signi-
ficação e a função da memória se diferencia, tornando-se um podero-
so instrumento na aprendizagem infantil. Nesta fase, a criança começa
a diferenciar o rabisco e as linhas soltas de traços que possuem sentido.
De acordo com Luria (1987, p. 51, tradução nossa),

[...] o desenvolvimento da escrita da criança ocorre no


caminho da conversão do registro indiferenciado em sig-
no diferenciado. As linhas e os rabiscos são substituídos
por figuras e ilustrações; estas cedem lugar aos signos e
esta substituição constitui todo o caminho seguido pela
escrita na história dos povos e no desenvolvimento da
criança.

Na fase pictográfica, podemos perceber a mudança de relação


da criança com o desenho. Agora, o desenho tem função gráfica e não
é mais apenas uma produção não intencional. Portanto, “[...] no começo
o desenho se desenvolve como brincadeira, como processo independen-
te de representação e só depois este ato está pronto para ser utilizado
como procedimento, como meio, como via para o registro” (LURIA, 1987,
p. 53, tradução nossa). São necessários, portanto, saltos qualitativos
no desenvolvimento da criança para que esta consiga substituir o regis-
tro primário, sem diferenciação, pelo registro diferenciado, funcional.
Derivado disto, na fase simbólica, há o limite entre a pré-his-
tória da escrita e o início do processo de alfabetização sistematizado.
Neste momento, o desenho se torna insuficiente no processo de registro
da realidade, sendo necessário substituí-lo pela palavra (LURIA, 1987).
Do início indiferenciado de registro, em que rabiscos, pontos e linhas
não apresentavam diferenciação entre si, o sujeito descobre a natureza
instrumental da linguagem escrita e essa se transforma de brincadeira
e simples ato imitativo em ferramenta de auxílio na captação da rea-
lidade. Este processo é possível apenas com mediações (caráter social

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

da aprendizagem), o que torna imprescindível destacar a importância


do ensino sistematizado.
Assim, reiterando o psiquismo humano como sistema funcional
que tem seu desenvolvimento diretamente relacionado às apropriações
decorrentes das relações sujeito-mundo concreto por meio do “[...] ato de
agir sobre a natureza transformando-a em função das necessidades hu-
manas” (SAVIANI, 2007, p.154), afirmamos ser o processo de humaniza-
ção, com destaque para a linguagem em suas expressões, um processo
de educação.

4 Humanização como processo educativo

Ao produzir seu meio e a si mesmo concomitantemente, o ser


humano produz história. Esta é transmitida de geração em geração,
em suas múltiplas determinações, pois “[...] a produção do homem é,
ao mesmo tempo, a formação do homem, isto é, um processo educativo.
A origem da educação coincide, então, com a origem do homem mesmo”
(SAVIANI, 2007, p. 154). Ao tomar o trabalho como princípio educativo,
Saviani (2008) classifica a educação como sendo um trabalho não mate-
rial, por concentrar em si a “[...] produção de ideias, conceitos, valores,
símbolos, hábitos, atitudes, habilidades” (SAVIANI, 2008, p. 12).
Podemos afirmar, então, que todos os conhecimentos produzem
nos sujeitos condições de humanização? Para Saviani (2008), o traba-
lho educativo concentra as melhores possibilidades sistematizadas de se
produzir nos indivíduos a humanidade acumulada pelo conjunto dos se-
res humanos ao longo da história. Diante disto, o autor afirma que:

[...] o objeto da educação diz respeito, de um lado, à iden-


tificação dos elementos culturais que precisam ser assi-
milados pelos indivíduos da espécie humana para que
eles se tornem humanos e, de outro lado e concomitan-
temente, à descoberta das formas mais adequadas para
atingir esse objetivo. (SAVIANI, 2008, p. 13)

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Desse modo, defendemos ser a escola o espaço privilegiado


de transmissão do saber elaborado, tendo em vista sua função social
de reunir, sistematizar e colocar os sujeitos em relação de aprendizagem
com as produções humanas necessárias à humanização dos indivíduos
e sendo o professor responsável pela aproximação do sujeito com estas
produções. Justificando a importância social da escola, Saviani (2008, p.
15) afirma que

[...] a opinião, o conhecimento que produz palpites, não


justifica a existência da escola. Do mesmo modo, a sa-
bedoria baseada na experiência de vida dispensa e até
mesmo desdenha a experiência escolar, o que, inclusive,
chegou a cristalizar-se em ditos populares como: “mais
vale a prática do que a gramática” e “as crianças apren-
dem apesar da escola”. É a exigência da apropriação do
conhecimento sistematizado por parte das novas gera-
ções que torna necessária a existência da escola.

A escola é, portanto, local do ensino sistematizado, ensino que vai


além do saber popular, aprendido na vida cotidiana, por ser o saber sis-
tematizado, uma condição para a libertação dos explorados. É sistemati-
zado por conter em si uma organização própria à sua finalidade, um sis-
tema que visa seu funcionamento efetivo, considerando as múltiplas
determinações da realidade. No âmbito escolar, é necessário que se con-
sidere as relações entre os conteúdos e as formas pelas quais estes se-
rão transmitidos aos alunos, pois “[...] uma concepção dialética está em-
penhada justamente em fazer esta articulação, estabelecer esta relação
entre conteúdo e método” (SAVIANI, 2008, p. 144). Para tanto, à escola
assumida como “[...] uma mediação no seio da prática social global, cabe
possibilitar que as novas gerações incorporem os elementos herdados
de modo que se tornem agentes ativos no processo de desenvolvimento
e transformação das relações sociais” (SAVIANI, 2008, p. 143).
É dever da escola priorizar conteúdos que proporcionem ao aluno
uma aprendizagem mediada pelas produções clássicas/eruditas da hu-
manidade, pelos conhecimentos clássicos. É clássico aquilo que perma-

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

nece relevante, resistindo ao tempo e às mudanças sociais, fundamen-


tando-se como essencial na aprendizagem e não opondo-se ao atual
e nem confundindo-se com o tradicional. Para além da experiência co-
tidiana, que encerra uma quantidade limitada de saberes concentrados
no senso comum, é necessário ao gênero humano a produção de novas
necessidades. Para tanto, defendemos ser a educação escolar a principal
promotora deste salto qualitativo nas aprendizagens dos sujeitos, sendo
esta local de relevância quando se trata da transmissão do saber elabo-
rado3 ao longo da história humana.
Em se tratando da linguagem, é comum que se acredite que, por ser
um atributo que se desenvolve antes mesmo da entrada dos indivíduos
na escola, é naturalmente possível que ela se desenvolva espontanea-
mente. É certo que a linguagem se desenvolverá independentemente
da escola. Mas, também é certo que a ausência de seu ensino sistemati-
zado terá implicações ao seu máximo desenvolvimento, pois, se enten-
demos o ser humano como ser social, a escola, o que inclui o processo
de alfabetização, são premissas culturais e condição para que o indiví-
duo participe da sociedade. Desse modo, o ensino da língua não pode
ficar apenas nos limites do cotidiano, pois é condição para a apropriação
dos saberes sistematizados organizados pela escola. Segundo Martins
(2013, p. 303),

Se por meios espontâneos a criança aprende a falar, ape-


nas por procedimentos específicos de ensino pode reor-
ganizar essa capacidade, aprendendo os elementos da

3 Sobre o termo “transmissão do saber elaborado”, é necessário que se compreenda que utili-
zamos o mesmo a partir das premissas da pedagogia histórico-crítica, não se aproximando,
portanto, da transmissão de conteúdos defendida pela pedagogia tradicional. Para Saviani
(2009, p. 50-1), “[...] os conteúdos são fundamentais e sem conteúdos relevantes, conteú-
dos significativos, a aprendizagem deixa de existir, ela transforma-se num arremedo, ela
transforma-se numa farsa. Parece-me, pois, fundamental que se entenda isso e que, no
interior da escola, nós atuemos segundo esta máxima: a prioridade de conteúdos, que é a
única forma de lutar contra a farsa do ensino. Se os membros das camadas populares não
dominam os conteúdos culturais, eles não podem fazer valer seus interesses, porque ficam
desarmados contra os dominadores, que se servem exatamente desses conteúdos culturais
para legitimar e consolidar a sua dominação. [...] o dominado não se liberta se ele não vier
a dominar aquilo que os dominantes dominam. Então, dominar o que os dominantes do-
minam é condição de libertação”. Para maiores aprofundamentos acerca da transmissão do
saber elaborado, sugerimos a leitura de Lavoura e Marsiglia (2015).

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

linguagem e sua utilização tanto no discurso coordenado


quanto na própria organização do pensamento. O domí-
nio da linguagem se realiza, pois, no processo ativo que
vai além da assimilação do material fonético, da apren-
dizagem e domínio do aparato verbal e do entendimento
geral da língua.

Considerando, portanto, todo o processo de desenvolvimento hu-


mano e tomando o trabalho como princípio educativo, é correto afir-
mar que garantir os meios necessários para que os sujeitos se desenvol-
vam em suas máximas possibilidades é tarefa fundamental da escola.
Isso requer a organização do ensino com o propósito de colaborar para
a emancipação dos sujeitos, rompendo a barreira do senso comum e das
aprendizagens cotidianas. Esse é o objetivo com o qual se compromete
a pedagogia histórico-crítica.

Referências

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crítico: contribuições didáticas. Campinas: Autores Associados, 2018.
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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

MARSIGLIA, Ana C. G. A prática pedagógica histórico-crítica na educação infantil


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MARKUS, Gyorgy. Marxismo y antropología. Barcelona: Grijalbo, 1974.
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contribuições à luz da psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-
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MARTINS, Lígia M.; ABRANTES, Angelo A.; FACCI, Marilda G. D. (org.).
Periodização histórico-cultural do desenvolvimento psíquico: do nascimento à
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MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. La ideologia alemana. Montevideo: Pueblos
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Revista Brasileira de Educação, v.12, n. 34, 2007, p. 152-165.
SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 10. ed.
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VIGOTSKI, Lev S. Historia del desarrollo de las funciones psíquicas superiores.
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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

FORMAÇÃO HUMANA E ALFABETIZAÇÃO:


UM COMPROMISSO COM A
TRANSFORMAÇÃO DO STATUS QUO

Aline Franciele Thessing 1


Maíra de Sousa Emerick de Maria2

Compreender o processo de alfabetização e suas especificidades


é condição para o trabalho do alfabetizador. Por isso, questões referen-
tes ao ensino da linguagem, como ‘qual concepção teórica move a es-
colha metodológica?’, ‘qual o melhor método para alfabetizar?’, ‘qual
o momento mais adequado para iniciar o processo de alfabetização?’,
‘como tratar das complexidades específicas da língua?’, entre outras,
permeiam os cursos de formação inicial e continuada de professores e os
estudos no campo da alfabetização. Além disso, essas mesmas ques-
tões ganham relevo nas políticas públicas materializadas em documen-
tos oficiais acerca da alfabetização, como posto na Política Nacional
de Alfabetização – PNA (BRASIL, 2019).
No entanto, parece-nos que, quando as questões são debatidas
nos documentos oficiais, o foco recai, sobremaneira, sobre os resultados
da alfabetização, obtidos por meio da aplicação de provas de larga esca-
la, como a Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA). Os dados da ANA
e de outras avaliações com essas especificidades ganham notoriedade,

1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de


Santa Catarina.
2 Doutora em Linguística Aplicada pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística da
Universidade Federal de Santa Catarina.

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

pois apontam para o chamado “fracasso da alfabetização”. Os números


apresentados, portanto, pretendem demonstrar a incapacidade da es-
cola em ensinar às crianças a leitura e a escrita, e as reverberações des-
sa incapacidade no mercado de trabalho, com trabalhadores inaptos
a cumprir suas funções. Por isso, na PNA, afirma-se “[...] que [se] busca
elevar a qualidade da alfabetização e combater o analfabetismo em todo
o território brasileiro”, bem como “[...] melhorar os processos de alfabe-
tização no Brasil e seus resultados” (BRASIL, 2019, p. 7).

Esta visão romantizada e salvacionista sobre a formação


escolar, em especial sobre a alfabetização, efetiva um
posicionamento não crítico tanto sobre a escola quanto
sobre a sociedade, quando retira a escola do contexto so-
cial, não entendendo a realidade objetiva marcada pelas
desigualdades das classes econômicas (SAVIANI, 2012a
[1983]). A escola ocupa, assim, um lugar de redentora,
aquela capaz de tirar os indivíduos da ignorância em que
se encontram, e ao fazer isso promoveria também a equi-
dade social, resolvendo, a seu termo, o problema da mar-
ginalidade. Desse modo, o ideal de construir uma socie-
dade democrática é um ideal burguês, com o intuito de
formar trabalhadores para assumir postos de trabalhos.
Tal demanda é tão emergente que se tornam cada vez
mais presentes nas estruturas governamentais projetos
em escala nacional promovidos por ditos “reformadores
educacionais” (FREITAS, 2012), que visam a um só tem-
po a formação cada vez mais restrita ao mercado de tra-
balho, em alinhamento ao tecnicismo (SAVIANI, 2012a
[1983]), e a implementação desse ideal de igualdade que
escamoteia as desigualdades da própria sociabilidade vi-
gente, a capitalista, pois “[...] o que passa a ser discutido
é se a escola teve equidade ou não, se conseguiu ou não
corrigir as ‘distorções’ de origem, e esta discussão tira
de foco a questão da própria desigualdade social, base
da construção da desigualdade de resultados” (FREITAS,
2012, p. 383).

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Certas da importância da compreensão deste contexto e também


do arcabouço teórico já desenvolvido sobre os processos de alfabetização
na perspectiva histórico-cultural por Martins (2013), Dangió e Martins
(2018), Galvão (2020) e outros pesquisadores, neste capítulo debruçamo-
-nos sobre os fundamentos da formação escolar. Para isso, discutiremos,
em três seções, acerca das concepções de formação humana – unilateral
e omnilateral –, dos projetos de sociedade que movem estas formações,
das reverberações dos projetos sociais na área da alfabetização, e tam-
bém sobre a constituição do conhecimento, da objetivação à apropriação
pela humanidade.
Por isso, iniciamos o percurso articulando a história da alfabe-
tização e sua marcação na eleição do melhor método para alfabetizar
com a compreensão da formação humana posta em prática na escola
e sua indissociável relação com o projeto social que se almeja alcan-
çar. Em seguida, apontamos as incoerências em assumir determinada
perspectiva teórica e metodológica com a formação de um sujeito crí-
tico, participativo e reflexivo, uma vez que essa perspectiva objetiva
a adaptação, e não a transformação do status quo. Por fim, reiteramos
a importância da escola como lugar de socialização dos conhecimen-
tos historicamente acumulados para que todos os sujeitos se apropriem
em equidade de condições, o que, necessariamente, exige consciência
das contradições da sociedade de classes e um esforço nosso, como edu-
cadores, de criticar e de lutar nos espaços formativos dos quais fazemos
parte, de modo comprometido com a transformação social.

1 Fundamentos filosóficos da educação: a dialética entre educação


escolar, formação humana e projeto social

A história da alfabetização assenta-se no embate promovido acer-


ca dos métodos de alfabetização, uma vez que é longo e profícuo o de-
bate sobre o que se intitula de “mesmo problema” (MORTATTI, 2006),
o ensino de leitura e escrita para crianças pequenas. Nesse sentido, nos-
sa busca, neste capítulo, não é apresentar cronologicamente tal percur-
so, ou sequer propor soluções, ou ainda promover uma tentativa de con-

48
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

ciliação para tais embates, mas apresentar – a partir dos fundamentos


do materialismo histórico e dialético – uma discussão que contribua
para o que tem sido, ao longo dos anos, uma verdadeira celeuma pe-
dagógica, que é “[...] a dificuldade de nossas crianças em aprender a ler
e a escrever, especialmente na escola pública” (MORTATTI, 2006, p. 1).
Para isso, buscamos subsídios na compreensão da natureza e das espe-
cificidades da educação, entendida como fenômeno da história humana,
e que, por seu caráter social, tem como tarefa principal a emancipação
dos indivíduos que dela fazem parte, compreensão que já foi introduzida
no primeiro capítulo desta obra. Tal emancipação só é possível a par-
tir da superação da sociabilidade vigente, a capitalista. Nesse sentido,
procuramos marcar, ao longo deste capítulo, a relação dialética existen-
te entre os fundamentos filosóficos e a educação escolar, desvelando,
mesmo que, por vezes, de modo embrionário, dado o espaço de que dis-
pomos, as implicações da assunção de uma perspectiva histórico-social
da educação e as reverberações de tal assunção para a educação escolar.
É consenso – ao menos entre aqueles que se filiam a uma perspec-
tiva crítica3 – que, ao nos referirmos à educação, tratamos necessaria-
mente de desenvolvimento humano. Tal assertiva se dá em razão de que
a educação é um processo que “[...] não pode ser eliminado do desen-
volvimento humano e [é] uma das condições pelas quais o ser humano
adquire seus atributos fundamentais ao longo do processo histórico-
-social” (MARTINS, 2012 [2004], p. 49), o que significa que a natureza
da educação não se dá apartada da natureza humana, necessariamente,
porque, como sabemos – dado nosso alinhamento filosófico ao materia-
lismo histórico e dialético –, o que difere o homem dos demais animais
é que o homem produz sua própria humanidade no decurso da histó-
ria, ao produzir continuamente – e cada vez de modos mais elabora-
dos – sua própria existência, diferentemente dos demais seres vivos,
que se adaptam à realidade natural buscando apenas a sobrevivência
biológica da espécie. Corroboramos, então, nesse sentido, Marx e Engels

3 Assumimos, tal qual Tonet (2013, p. 11), crítica no sentido marxiano, o que “[...] signifi-
ca sempre a busca dos fundamentos históricos e sociais que deram origem a determinado
fenômeno social, permitindo, com isso, compreender a sua natureza mais profunda e não
simplesmente o questionamento de lacunas ou imperfeições”.

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

(2007 [1845-6], p. 87), quando afirmam: “[...] pode- se distinguir os ho-


mens dos animais pela consciência, pela religião ou pelo que se queira.
Mas eles mesmos começam a se distinguir dos animais tão logo come-
çam a produzir seus meios de vida”.
Portanto, é pelo trabalho, atividade vital humana, que o homem
garante sua existência individual e de toda a sociedade que a sustenta,
pois é a atividade vital que reproduz a vida, “[...] é a base a partir da qual
cada membro de uma espécie reproduz a si próprio como ser singular e,
em consequência, reproduz a própria espécie” (DUARTE, 2013, p. 22).
O trabalho humano tem, nesse sentido, dois elementos fundamentais,
a saber: (i) a fabricação de instrumentos – os animais apenas utilizam
elementos da natureza como instrumentos, não os produzem, e (ii)
a atividade coletiva mediada, portanto, social. Desse modo, a atividade
de trabalho, mediada pela criação e pelo uso de instrumentos, promove
a transformação tanto do mundo circundante quanto dos próprios seres
humanos e possibilita o salto ontológico da passagem do psiquismo ani-
mal ao psiquismo humano.
Em se tratando da espécie humana, assegurar a mera sobrevivên-
cia biológica garante sobremaneira a continuidade da espécie, mas não
assegura a reprodução do gênero humano – a reprodução das caracterís-
ticas fundamentais humanas, a humanidade em si. Essa é garantida pela
“apropriação das objetivações resultantes das atividades das gerações
passadas” (MARTINS, 2012, p. 49), e, por tal processo, o homem constrói
a sua genericidade de tal modo que a vida individual e a vida genérica
encontram-se imbricadas. Ao homem, pois, não basta o que a natureza
lhe dá, tal qual aos demais animais, pois, além de ser um produto bio-
lógico, o homem é também produto histórico e, assim, a “[...] formação
humana difere essencialmente dos animais precisamente porque estes
não produzem história. Nesse sentido, os resultados da história social
devem ser apropriados pelos indivíduos para que estes se objetivem
no interior do processo histórico” (DUARTE, 1999, p.48). Corroboramos
Martins (2012, p. 51) quando afirma que

50
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

O desenvolvimento humano implica a superação de um


sistema de vida fechado, denominado por uma natureza
biológica (“corpo orgânico”) que garante uma organiza-
ção hominizada, em direção a um sistema de vida aberto,
criador de uma natureza construída socialmente (“corpo
inorgânico”) do qual passa a depender sua existência.

Se a humanidade não nos é dada biologicamente, mas garantida


no processo apropriação das objetivações resultantes das atividades da-
queles que nos antecederam na história (MARTINS, 2012), cumpre, pois,
como tarefa de cada novo ser da espécie humana, apropriar-se dos conhe-
cimentos produzidos pelas gerações que o precederam, uma vez que as
capacidades tipicamente humanas se desenvolvem por apropriação e de-
terminação da vida social (MARTINS, 2011, p. 46). É, como veremos mais
demoradamente na seção final deste capítulo, a apropriação das formas
elaboradas da cultura que cria nos indivíduos novas necessidades, que,
ao se complexificarem, os diferenciam dos demais animais. A educa-
ção é, desse modo, um fenômeno próprio dos seres humanos (SAVIANI,
2015). Nesse sentido, Leontiev (2004 [1959], p.176) ratifica:

No decurso da sua história, a humanidade empregou for-


ças e faculdades enormes. A este respeito, milênios de
história social contribuíram mais que milhões de anos
de evolução biológica. Os conhecimentos adquiridos du-
rante o desenvolvimento das faculdades e propriedades
humanas acumularam-se e transmitiram-se de gerações
em gerações.
Salvaguardada a compreensão da educação como fenô-
meno na história humana, em se tratando da institucio-
nalização da educação, ou seja, da educação escolar e das
contradições que a acompanham, assumir a educação
escolar sob tais bases sociais tem implicações bastante
radicais para o trabalho do professor. Isso porque temos
entendido que o espaço escolar, por não ser apartado
da realidade social, mas por refleti-la em suas contradi-

51
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

ções4, tem em seu interior projetos educacionais distin-


tos que podem estar alinhados a ideais também distin-
tos, de transformação do status quo ou de manutenção
do status quo.

Na alfabetização, ao menos nas últimas décadas, evidencia-se


um forte alinhamento a uma perspectiva biologicista de desenvolvimen-
to humano, materializada na perspectiva interacionista ou sociointera-
cionista5 de Jean Piaget. A implementação da perspectiva construtivista
nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN, 1996) consagrou o prin-
cípio biológico na base da alfabetização em nível nacional, o que signi-
ficou a consolidação de um ideal de acomodação e adaptação dos indi-
víduos à realidade circundante. Nesses termos, “[...] ser bem sucedido
na perspectiva biológica implica a possibilidade de conseguir um ponto
de equilíbrio entre as necessidades biológicas fundamentais à sobre-
vivência e as agressões ou restrições colocadas pelo meio” (AZENHA,
1993, p. 24).
Uma vez que temos assumido que a humanidade não nos é dada
de antemão pela natureza – caráter biológico –, nossa defesa passa a ser
a de que a educação escolar é uma das condições para o desenvolvimen-
to das potencialidades e para o enriquecimento das necessidades dos in-
divíduos, desde a mais tenra idade, o que implica a necessária compre-
ensão de que a função precípua da educação é a humanização. Saviani
(2003, p. 13), ao definir o trabalho educativo como a “[...] a produção
direta e intencional, em cada indivíduo, das conquistas históricas al-
cançadas no processo de desenvolvimento do gênero humano”, afirma,
com isso, necessariamente, que:

4 Cumpre assinalar nossa distinção às perspectivas crítico-reprodutivistas de educação, uma


vez que entendemos que, apesar de a escola reproduzir a realidade social, ela também é
capaz de reagir a essa realidade, não sendo mero reflexo condicionado. (SAVIANI, 2012a
[1983]).
5 Trataremos, tal qual Duarte (2012), dos conceitos de interacionismo, sociointeracionismo e
construtivismo como sinônimos, em razão de referirem-se a um mesmo modelo epistemoló-
gico, o interacionista construtivista.

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

[...] o objeto da educação diz respeito, de um lado, à iden-


tificação dos elementos culturais que precisam ser assi-
milados pelos indivíduos da espécie humana para que
eles se tornem humanos e, de outro lado e concomitan-
temente, à descoberta das formas mais adequadas para
atingir esse objetivo.

Nesse sentido, entendemos ser necessário – dada nossa marcação


da natureza social da educação um regaste dos enfrentamentos que se
sustentam no campo didático-pedagógico. Tomemos, então, o embate
filosófico entre as correntes pedagógicas e as implicações desse emba-
te para a definição da natureza, da especificidade e do ideal formativo
da educação. O embate entre essas duas perspectivas filosóficas, denomi-
nadas de Essencialismo e Existencialismo (SUCHODOLSKI, 2002), se dá
em um ponto bem específico: o modo como compreendem o homem.

Enquanto o Essencialismo assume o homem como um


ser ideal, “um vir a ser”, ligado ao espírito e descurado de
tudo o que é existência empírica, no Existencialismo se
ascende a compreensão de que “[...] a vida social pode e
deve basear-se nos homens tal como existem realmente”
(SUCHODOLSKI, 2002, p. 28). Da contraposição entre as
referidas correntes filosóficas, resulta um embate signi-
ficativo no âmbito das bases da educação escolar, movi-
do pela busca por firmar uma das duas correntes como a
mais adequada para a formação dos indivíduos, assumi-
dos, portanto, ou como sujeitos abstratos que em nada
se identificam com as relações sociais, ou como indiví-
duos tão imersos nestas relações, que impossibilitados
de emergir da cotidianidade.

Deriva desse embate filosófico entre essência e existência as duas


grandes vertentes pedagógicas da Escola Tradicional e da Escola Nova,
que, dada sua ampla difusão na sociedade (SAVIANI, 2008), se cristaliza-
ram no senso comum educacional, influenciando os processos de ensi-
no e aprendizagem em todas as etapas da escolarização. Nesse sentido,

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

a tendência tradicional possui como sua marca constitutiva uma ênfase


na teoria e no papel do professor como detentor do conhecimento ela-
borado, que deve transmitir tal conhecimento a alunos que o recebem
passivamente; a escola surge, então, como um ‘antídoto’ à ignorância
(SAVIANI, 2012a [1983]). De outro modo, a tendência escolanovista traz
à tona, pelo seu caráter de oposição, o primado do aluno que só aprende
com a atividade prática. O professor, nesta perspectiva pedagógica, au-
xilia o aluno que, a partir de seus interesses e gostos, coloca em prática
sua educação, e o eixo da questão pedagógica se desloca do “[...] intelec-
to para o sentimento; do aspecto lógico para o psicológico; dos conteú-
dos cognitivos para os métodos ou processos pedagógicos; do professor
para o aluno; do esforço para o interesse [...]” (SAVIANI, 2012a [1983],
p. 8-9).
Apesar da diferença radical entre os paradigmas essencialista
e existencialista, que resulta em modos bastante distintos de conce-
ber a formação dos indivíduos no âmbito educacional, há, entre eles,
um ponto significativo de convergência, uma vez que ambos repre-
sentam uma visão social de mundo (LÖWY, 1987) de caráter adaptati-
vo. A assunção dessa compreensão do caráter adaptativo das referidas
perspectivas filosóficas e os seus reflexos no campo educacional revelam
que ambas as teorias estão voltadas para a manutenção do estado de coi-
sas e, por isso, não visam à superação de uma formação que se dê em
favor da acomodação dos indivíduos à realidade circundante, que é desi-
gual e excludente, resultado da luta de classes.
Assumir que a educação escolar desempenha um papel funda-
mental na constituição da humanidade nos indivíduos é, como já disse-
mos, uma proposta bastante radical, que requer, também, a seu termo,
um alinhamento a perspectivas também radicais de educação – uma pe-
dagogia revolucionária, a Pedagogia Histórico-Crítica, filiada à Filosofia
da Transformação (SUCHODOLSKI, 2004) –, uma vez que, quando conce-
bemos que a educação escolar refere-se à socialização do conhecimen-
to elaborado, não nos limitamos a um conhecimento cotidiano, do sen-
so comum e, também, não falamos do conhecimento teórico abstraído
de toda a exterioridade, mas tratamos de “[...] um conhecimento obje-

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

tivo, elaborado pelo gênero humano, a ser apropriado pelos indivíduos


[...]” (MARTINS, 2012 [2004], p. 57), ou seja, à escola cabe a socialização
do saber elaborado, tendo em vista a máxima humanização dos indiví-
duos que dela fazem parte.
Ocorre que, em uma sociedade marcada pela ampla divisão de clas-
ses – antagônicas entre si –, os diferentes projetos educacionais que coo-
correm e concorrem no espaço escolar expressam, dentre outras coisas,
ideais de formação humana e concepções sociais, por vezes fortemente
influenciados por “crenças místicas e princípios idealistas” (DUARTE,
2015, p. 11). E, não raro, a escola ganha contornos que a distanciam
de sua atividade principal, o estudo (DAVIDOV, 1987), transformando-se
em replicadora da sociabilidade vigente, a capitalista. A defesa por uma
educação escolar voltada à emancipação dos sujeitos trata-se, nesse
sentido, da assunção, em âmbito escolar, de um processo de formação
que seja comprometido com a socialização do conhecimento produzido
ao longo da história, não apenas apresentando conhecimentos, mas ex-
plorando as melhores potencialidades de desenvolvimento dos indiví-
duos e, do mesmo modo, as potencialidades humanizadoras da cultura,
ou seja, “[...] a identificação dos elementos culturais que precisam ser as-
similados pelos indivíduos da espécie humana para que eles se formem
humanos” (SAVIANI, 2015, p. 287). Nesse sentido, corrobora- se Duarte
(2018, p. 140) quando este afirma:

A questão das possibilidades, no que se refere ao desen-


volvimento dos indivíduos, se apresenta numa relação
dialética entre o indivíduo e as circunstâncias sociocul-
turais, ou seja, numa ininterrupta dinâmica entre sub-
jetividade e objetividade. O trabalho educativo precisa
conhecer as possibilidades tanto do indivíduo aluno
quanto da cultura humana que vem sendo produzida e
reproduzida ao longo da história.

Assim, a um projeto formativo com vistas à emancipação dos su-


jeitos acompanha necessariamente uma visão social de mundo, pauta-
da em uma necessidade premente de se pensar em novas possibilidades

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

de organização da sociedade, que não aquela fundamentada na divisão


de classes opostas, o que concede à escola uma função social bastante
específica: contribuir para que cada novo ser da espécie se reconheça
como sujeito histórico – individualidade e genericidade, simultanea-
mente. Nesse sentido, Duarte (2015, p. 13) pontua:

Quando a concepção do mundo não é crítica e coerente,


mas ocasional e desagregada, pertencemos simultane-
amente a uma multiplicidade de homens-massa, nossa
própria personalidade é composta de uma maneira bi-
zarra: nela se encontram elementos de homens das ca-
vernas e princípios da ciência mais moderna e progres-
sista; preconceitos de todas as fases históricas passadas,
grosseiramente localistas, e intuições de uma futura
filosofia que será própria do gênero humano unificado.
Criticar a própria concepção de mundo, portanto, signi-
fica torná-la unitária e coerente e elevá-la até o ponto
atingido pelo pensamento mundial mais desenvolvido.

Novamente, em uma sociedade marcada pela divisão em classes


antagônicas, em que os bens tanto materiais quanto imateriais são alie-
nados como mercadorias do capital, acentua-se, de forma cada vez mais
aguda, a importância do trabalho educativo em direção à “[...] conquista
de níveis cada vez mais elevados de elaboração consciente da concep-
ção de mundo” (DUARTE, 2015, p. 14). É, pois, através da escola que as
objetivações são apresentadas – de modo organizado e sistematizado
– aos sujeitos, por meio do trabalho educativo, possibilitando a trans-
formação desses indivíduos e, dada a relação dialética existente entre
educação e sociedade, contribuindo, também, para a transformação
da sociabilidade vigente. Na segunda seção deste capítulo, buscamos
apresentar mais especificamente como concebemos que se dá a alfabeti-
zação sob tais bases e a que projeto social se vincula uma prática trans-
formadora na educação escolar.

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

2 A alfabetização em favor da emancipação humana: a impossibi-


lidade de formar sujeitos críticos, participativos e reflexivos sob a
lógica da adaptação

Movidas pela compreensão de que os diferentes projetos de escola


estão alinhados diretamente a projetos sociais com objetivos radical-
mente opostos, nosso compromisso em assumir uma formação integral
converge não só com a necessidade, mas com a possibilidade concreta
de outro modo de sociabilidade que supere o sistema capitalista, sis-
tema este pautado na exploração dos homens pelos homens – gerador
de desigualdades sociais – e na exclusão dos sujeitos. Por isso, a esco-
la, em uma concepção crítica da educação, erige-se como espaço privi-
legiado de superação de visões não críticas e críticas-reprodutivistas,
com vistas a orientar para uma formação omnilateral.
Tomamos, assim, pautadas no conceito de homem omnilateral
em Marx (2010 [1932]), e em consonância com autores marxianos da edu-
cação, como Manacorda (2010), Saviani (2012a [1983], 2012b) e Duarte
(2016, 2017), que a formação omnilateral possibilita o desenvolvimento
de todas as dimensões que constituem o ser humano – em sua face mate-
rial e corpórea e também em seu desenvolvimento intelectual, cultural,
educacional, social, afetivo e estético. Nesse sentido, entendemos que

A onilateralidade é, portanto, a chegada histórica do ho-


mem a uma totalidade de capacidades produtivas e, ao
mesmo tempo, a uma totalidade de capacidades de pra-
zeres, em que se deve considerar sobretudo o gozo da-
queles bens espirituais, além dos materiais, e dos quais
o trabalhador tem estado excluído em consequência da
divisão de trabalho (MANACORDA, 2010, p. 95).

Importa-nos marcar que esse pleno desenvolvimento humano


não será alcançado na atual sociedade capitalista. Desse modo, faz-se
necessária uma mudança radical das relações sociais e também das re-
lações de produção e reprodução da vida humana, uma vez que a forma-
ção humana omnilateral objetiva a superação das relações capitalistas

57
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

de produção (DUARTE, 2017), o que será possível somente com a or-


ganização da classe trabalhadora, no interior da luta de classes, rumo
à transformação social.
Nesse ínterim, a especificidade da educação escolar, alinhada
à prática social, é a socialização sistematizada dos conhecimentos his-
toricamente acumulados (SAVIANI, 2003), enfrentando a fragmentação
imposta pelo sistema capitalista de divisão de redes de ensino diferen-
ciadas para o acesso ao conhecimento, sob as mais diferentes justificati-
vas de adequação às necessidades de adaptação ao mercado e ao mundo
moderno (DUARTE, 2017).
Conscientes do fundamento privatizante do capitalismo, exclu-
dente na origem, e, portanto, compreendendo que a escola está inse-
rida nesta lógica alienante e, assim como outras instituições, reproduz
as contradições burguesas, ao assumirmos a perspectiva histórico-cul-
tural, assumimos o fundamental papel da escola, e de todos os agentes
envolvidos nela, de socialização do saber sistematizado. Para isso, é im-
portante atentar para o significado de socialização diretamente relacio-
nado ao ensino equânime, com garantia de que todos possam atingir
a aprendizagem; bem como para o sentido dos saberes sistematizados,
compreendidos como os conhecimentos científicos que condensam
as experiências humanas propícias a colaborar com a nossa capacidade
de lidar com a realidade, com o objetivo de elevação cultural generaliza-
da da população (DUARTE, 2013).
Assim, inscritas na perspectiva histórico-cultural, a concepção
de alfabetização por nós assumida se alinha, necessariamente, ao proje-
to formativo omnilateral, porque alinhada a outro projeto de sociedade
– com o objetivo de atingir o socialismo como etapa para o comunismo
–, uma vez que defendemos que o ensino da leitura e da escrita fazem
parte do continuum em que se converte o processo de educação esco-
lar, que transcende o ensino instrumental da língua em seus usos no/
para o cotidiano, com fins de atender às demandas impostas pelo capital.
Para isso, “[...] a luta dos educadores comprometidos com a superação
da sociedade capitalista deve ser [...] pelo domínio consciente [das] for-
ças que atuam no interior da educação escolar e contenham possibili-

58
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

dades latentes de avanço em direção à formação humana omnilateral”


(DUARTE, 2017, p. 106).
A alfabetização, desse modo, não corresponde apenas a uma etapa
preparatória ao devir, com o intuito de ensinar o sistema de escrita alfa-
bética para a apropriação de outros conhecimentos, que serão ensinados
nos anos seguintes de escolarização, em consonância com uma forma-
ção unilateral. A alfabetização é, de acordo com a nossa perspectiva, par-
te constitutiva e fundamental da formação escolar, em que os sujeitos
não somente se apropriam do sistema de escrita alfabética, das regula-
ridades e da função da língua, mas também se inserem de modo efetivo
nos modos de organização social, baseados na escrita, e acessam a di-
ferentes formas de cultura e arte apresentadas por diferentes artefatos
culturais. Por isso a importância de um ensino que transcenda o imedia-
tismo do cotidiano em favor de práticas que corroborem a compreen-
são da própria condição humana, possibilitando que os sujeitos acessem
artefatos artísticos, desenvolvam a fruição e a estética e façam escolhas
reflexivas e críticas.
Entendemos, portanto, “[...] que alfabetizar não é formar no do-
mínio de uma técnica, é inserir a pessoa no mundo da escrita, de modo
que ela transite pelos discursos mais variados e tenha condições de ope-
rar criticamente com os modos de pensar e produzir da cultura escrita”
(BRITTO, 2012, p. 105). Para isso, é necessário desenvolver as diferentes
faces da humanidade – nos campos da filosofia, da ciência, da história,
da política e da arte – para que não corramos o risco de formar os sujei-
tos sob a lógica da ideologia da adaptação e do conformismo, que visa
atender às demandas imediatas do mercado e fragmenta os sujeitos e,
consequentemente, sua formação.
No entanto, como citamos na primeira seção deste capítulo,
no Brasil, o campo da alfabetização tem sido reduzido à eleição do mé-
todo mais eficiente para alfabetizar, como afirma Mortatti (2006, p. 1):
“[...] a história da alfabetização tem sua face mais visível na história
dos métodos de alfabetização, em torno dos quais, especialmente desde
o final do século XIX, vêm-se gerando tensas disputas relacionadas [às
explicações acerca do problema de apropriação da leitura e da escrita]”.

59
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Porém, entendemos que essa discussão acerca do “como fazer” não pode
prescindir do compromisso formativo e social que deve ser assumido
pela educação escolar, uma vez que, ao fazê-lo, a escola elege uma vi-
são unilateral de formação comprometida com um projeto de adaptação
do status quo e, assim, forma sujeitos fragmentados para responderem
às exigências neoliberais, cumprindo um papel significativo na manu-
tenção de uma sociedade dividida em classes.
Essa preocupação com os métodos do ensino é refletida nas po-
líticas públicas atuais, em especial na PNA, lançada em abril de 2019,
que define, fundamentada na ciência cognitiva da leitura, a alfabeti-
zação como o ensino das habilidades da leitura e da escrita priorizan-
do as relações grafofonêmicas. Depreendemos, assim, que a concep-
ção de alfabetização referendada pela PNA está alinhada à pedagogia
das competências (PERRENOUD, 1999), apesar de não se anunciar como
tal, porque, ao elencar o método fônico, a PNA estabelece níveis linea-
res de aprendizagem, com um movimento dos conteúdos mais simples
aos mais complexos, seguindo a maturação biológica dos estudantes,
por isso a marcação das etapas da escolarização em que as habilidades
serão atingidas.
Ainda sobre a PNA, o documento, logo em suas primeiras pági-
nas, estabelece como foco melhorar os processos de alfabetização e os
resultados desses processos, visto que apresenta dados negativos acer-
ca da leitura e da escrita baseados em testes de larga escala aplicados
no Brasil, bem como os compara com os de outros países. A partir dessa
realidade, alça o método fônico como o caminho de resolução dessa pro-
blemática, sob a justificativa de que o citado método é embasado na ci-
ência, sem esclarecer a que tipo de ciência está se referindo. Portanto,
assume que a produção científica tem apenas uma via – a da neutralida-
de e a da objetividade –, sem considerar outras concepções epistemoló-
gicas e teóricas.
Esse posicionamento coaduna com o que discutimos sobre os pro-
jetos formativos e, consequentemente, sobre os projetos de sociedade
aos quais eles se relacionam e os quais defendem. Entendemos, pois,
que há, na origem dessa política pública, a impossibilidade de promo-

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

ver mudanças efetivas na alfabetização apenas olhando para a super-


fície do processo, o fazer metodológico, em especial quando se assume
um método pautado no desenvolvimento de habilidades relacionadas
ao sistema de escrita alfabética, descontextualizado das práticas sociais
e das produções e dos usos dos discursos e de suas relações ideológicas
e de poder. Concordamos com Osakabe (1983, p. 150) quando afirma que,
nesse tipo de concepção, “[...] alfabetiza-se o indivíduo para que seja
mais produtivo: [...] para que leia e compreenda instruções escritas
no trabalho, para que leia e compreenda ordens e mandamentos que ze-
lam a todo o canto para a manutenção da ordem social”.
Há, assim, uma evidente contradição posta no documento, porque
este objetiva promover a cidadania por meio da alfabetização, cidadania
concebida como pleno desenvolvimento dos direitos e deveres indivi-
duais do sujeito em sociedade; no entanto, esse objetivo não é alcança-
do por meio de uma formação para a adaptação, como a que está posta
no documento. Afinal, “[...] diferentemente dos outros animais, que se
adaptam à realidade natural tendo a sua existência garantida natural-
mente, o homem necessita produzir continuamente sua própria existên-
cia. Para tanto, em lugar de se adaptar à natureza, ele tem que adaptar
a natureza a si, isto é, transformá-la” (SAVIANI, 2015, p. 286); nesse sen-
tido, a educação não pode estar em favor de atender ao que está posto,
como se a realidade fosse constituída natural, e não socialmente.
Além disso, creditar à escola a responsabilidade de equalização so-
cial é tirá-la de seu contexto e das contradições presentes na sociedade
de classes e romantizar a sua ação diante da realidade, o que demonstra
um alinhamento às teorias não críticas da educação. Isso porque “[...]
a educação emerge aí como um instrumento de correção [das] distor-
ções. Constitui, pois, uma força homogeneizadora que tem por função
reforçar os laços sociais, promover coesão e garantir a integração de to-
dos os indivíduos no corpo social” (SAVIANI, 2012a [1983], p. 4). Essa
ideia pode ser observada no texto do PNA, ao afirmar que

[...] as pessoas em vulnerabilidade social são aquelas que


têm menos contato com ambientes ricos linguisticamen-

61
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

te. Nesse sentido, a alfabetização baseada em evidên-


cias científicas é um fator de redução de desigualda-
des sociais e educacionais, uma vez que permite aos
mais vulneráveis o acesso a abordagens mais eficientes.
Assim, a PNA pretende proporcionar a toda criança, jo-
vem e adulto não alfabetizado as melhores condições e
oportunidades de aprendizagem para alcançar seu
pleno desenvolvimento pessoal. (BRASIL, 2019, p. 42,
grifos nossos)

Defendemos, a partir de nosso assentamento teórico, a impossi-


bilidade de se assumir quaisquer métodos de alfabetização apartados
de sua fundamentação filosófica e teórica, afinal, entendemos que essa
fundamentação representa o projeto de sociedade que se almeja cons-
truir e que, necessariamente, afasta-se de uma sociedade de classes,
de dominantes e dominados, propositalmente excludente. Para isso,
como estudiosos da área da educação, precisamos estar cientes de nosso
compromisso de problematizar a sociedade e a ordem posta pelo capital.

3 Objetivação e apropriação: movimento dialético da atividade vital


humana

Como já expusemos ao longo deste capítulo, a humanidade não é


dada ao homem ao nascer, mas conquistada pela relação dialética entre
apropriação e objetivação. O homem, ao se inserir na natureza, se apro-
pria dela, incorporando-a à prática social, ao passo que, ao mesmo tempo,
se objetiva ao produzir sua realidade objetiva portadora de característi-
cas humanas, pois acumula a atividade criada pelas gerações anteriores
(DUARTE, 2008), o que move a um novo tipo de necessidade de apropria-
ção, não mais com a natureza, mas das objetivações do gênero humano.
É, pois, a dialética entre objetivação e apropriação aquela que consti-
tui a dinâmica fundamental da historicidade humana, pois essa relação
gera uma realidade humana mais enriquecida, uma vez que apropriações
e objetivações geram novas necessidades, cada vez mais complexas.

62
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Desse modo, para fazer-se humano, o indivíduo precisa se apro-


priar das atividades objetivadas pelas gerações passadas e, esse, como
já afirmamos, é um processo educativo. É nesse sentido que temos en-
tendido que a escola, apesar das contradições presentes nas instituições
na sociedade de classes, tem como seu objetivo central facultar a todos
os sujeitos que se apropriem dos conteúdos relacionados aos campos
das ciências, das artes e das filosofias, desde os anos iniciais, porque,
se as características típicas da espécie humana são transmitidas via có-
digo genético, as características do gênero humano são apropriadas pelo
processo histórico de objetivação, e devem, portanto, ser ensinadas
aos novos membros da humanidade (DUARTE, 2016). Ou seja,

A concepção do processo de formação do indivíduo na


perspectiva da dialética histórica entre objetivação e
apropriação não procura ‘conciliar’ as influências das
dicotomias [justaposição dos fatores sociais aos fatores
biológicos, ou dos fatores ambientais aos fatores inatos,
ou ainda do processo de socialização ao desenvolvimen-
to da individualidade], pois tais dicotomias [...] impedem
a compreensão da peculiaridade do processo de forma-
ção dos indivíduos humanos, diante do processo de on-
togênese animal (biológica). (DUARTE, 2013, p. 38)

Assim, apesar de biologicamente um organismo humano ser ca-


paz de se desenvolver como qualquer outro organismo humano, simul-
taneamente ao seu desenvolvimento biológico ele realiza a apropriação
da cultura humana, o que corresponde a dois processos que coocorrem
e que estão imbricados, visto que “[...] certas estruturas do sistema ner-
voso humano formam-se não por um processo de maturação, mas em
decorrência das atividades realizadas pelo indivíduo, ou seja, essas es-
truturas podem não se formar se não existirem [...] certas atividades”
(DUARTE, 2013, p. 40-1). Portanto, o sujeito, ao se apropriar de uma ob-
jetivação, se relaciona com a história social, por isso, a objetivação é um
processo individual e coletivo ao mesmo tempo.

63
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Ao assumir, então, uma formação escolar comprometida com a hu-


manização do indivíduo, assentada em uma concepção crítica de edu-
cação, concebemos o indivíduo como um ser social. Assim, a escolha
dos conteúdos deve estar em consonância com esta concepção, pois,
como afirma Duarte (2016), à educação escolar cabe o papel de media-
dora entre a esfera da vida cotidiana e as esferas não cotidianas de obje-
tivação do gênero humano, transcendendo o imediatismo e possibilitan-
do apropriações nos campos da ciência, da arte e da filosofia, as formas
mais desenvolvidas de objetivação do gênero humano (DUARTE, 2013).
Reiteramos que essa mediação deve iniciar desde a inserção das crianças
na escola, uma vez que a alfabetização é parte constituinte e fundamen-
tal do continuum do processo de formação dos sujeitos.
Para isso, a escola precisa apresentar artefatos que não se limi-
tem às referências cotidianas e às experiências imediatas, tampouco
às funcionalidades pragmáticas do capital, o que, ao se observar empi-
ricamente as ações em sala de aula, não tem ocorrido, pois, assim como
exemplifica Britto (2012, p. 112), “[...] muito do que se tem produzido
como literatura para as crianças é apenas um produto da indústria cul-
tural, um produto de consumo ligeiro, formado conforme as exigências
do mercado”. As obras destinadas às crianças e aos jovens, costumeira-
mente, visam atender a nichos de mercado específicos, fragmentando
os interesses por idade e gênero, por exemplo; organizam-se em cole-
ções ou séries, justamente com o objetivo de serem colecionadas; imi-
tam a realidade tal qual ela se constitui, isto é, não problematizam o que
está posto; e costumam banalizar os conteúdos, tratando os assuntos
de forma artificial e superficial. Assim, distanciam-se do papel da arte
e da sua possibilidade humanizadora, que faz o ser humano pensar sobre
sua própria constituição.

A arte [...] vincula-se definitivamente ao tempo livre,


interpretado na ordem da sociedade totalitária como o
momento em que as pessoas se desocupam das obriga-
ções do trabalho e da responsabilidade social e podem
ocupar-se com o não pensar e esquecer as agruras da
vida. A arte suave e alegre faz parte dos lazeres moder-

64
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

nos, realizando-se como produto do consumo ligeiro e


descomprometido. (BRITTO, 2012, p. 123)

Como tratamos na segunda seção deste capítulo, o tempo livre,


do ócio e da apreciação descomprometida com o pragmatismo cotidiano,
não é possível enquanto nossa sociedade for assentada no sistema capi-
talista, em que os trabalhadores precisam trabalhar sem terem as suas
condições objetivas garantidas, limitados a atender as suas necessidades
de sobrevivência apenas. No capital, os trabalhadores tornam-se produ-
tos, assim como tudo aquilo que produzem; do mesmo modo, a arte fica
relegada ao lugar do entretenimento esvaziado e do prazer, como cos-
tumeiramente observamos nas salas de aula da Educação Infantil e dos
Anos Iniciais, quando se priorizam atividades com histórias em quadri-
nhos, por exemplo, que já são objeto de consumo de muitas crianças
fora da escola e que contribuem pouco com o seu desenvolvimento. Isso
se opõe, como já pontuamos, ao “[...] processo realizado pela obra de arte
[que] não é o da disseminação para a sociedade daquilo que o indiví-
duo sente em seu cotidiano, mas sim [...] a apropriação, pelo indivíduo,
de formas socialmente desenvolvidas de sentir” (DUARTE, 2016, p. 68).
Nesse sentido, a vida cotidiana, como já dissemos ao longo do tex-
to, nos fornece meios de sobrevivência, mas a mera garantia de condi-
ções mínimas objetivas e subjetivas não é a mesma coisa que viver plena
e maximamente. E a educação escolar, embora não esteja livre das con-
tradições da sociedade capitalista, tem o importante papel na huma-
nização dos seres humanos, por meio do ensino dos clássicos da arte,
da filosofia e da ciência. Em se tratando da alfabetização, é praticamente
consenso que o clássico é alfabetizar, uma vez que mais do que apenas
a apropriação da linguagem escrita, “[...] a alfabetização desponta como
necessidade para o desenvolvimento da individualidade livre e univer-
sal, necessária no interior do processo de superação do capitalismo”
(MARSIGLIA; SAVIANI, 2017, p. 12). Por isso, mais uma vez marcamos
a importância da presença dos clássicos já nos primeiros anos de escola-
rização, para que as crianças tenham acesso às diferentes formas de arte,
bem como sejam convidadas a refletirem sobre sua historicidade indivi-
dual e sua história como membro da humanidade.

65
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Finalizamos reiterando que a sobrevivência física e a reprodução


biológica garantem a continuidade da espécie humana, porém, não as-
seguram a reprodução do gênero humano; portanto, o trabalho, como
atividade vital humana, assegura não somente o indivíduo, como tam-
bém a sociedade. Nesse sentido, para atender as suas necessidades, o ser
humano produz meios para isso, não sendo, pois, um mero consumidor
da natureza: em um movimento adaptativo, ele transforma os objetos
naturais em instrumentos, ou seja, apropria-se da natureza, que ago-
ra tem funções sociais. E nesse movimento dialético entre objetivação
e apropriação, o ser humano se constitui individual e coletivamente
num processo histórico permeado por rupturas e continuidades, por isso
a importância da apropriação das características do gênero humano
por todos os sujeitos.

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A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

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68
SEÇÃO II

PRESSUPOSTOS
HISTÓRICOS E
CONCEPÇÕES DE
ALFABETIZAÇÃO
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

A ALFABETIZAÇÃO NA HISTÓRIA E NOS


DOCUMENTOS OFICIAIS BRASILEIROS

Marcia Nagel Cristofolini1

No presente capítulo, serão retomadas as concepções de alfabe-


tização prevalecentes no cenário nacional, embasando-se nos estudos
de Mortatti (2000), Soares (2002) e Saviani (2013), e, a partir dessas con-
cepções, será feita a discussão de alguns marcos legais e documentos ofi-
ciais importantes para a alfabetização – PNC (Parâmetros Curriculares
Nacionais), BNCC (Base Nacional Comum Curricular) e PNA (Política
Nacional de Alfabetização) –; além disso, serão desenvolvidas algumas
reflexões sobre a concepção de alfabetização pautada na formação hu-
manizadora, através dos estudos de Britto (2012), Saviani (2012, 2013)
e Duarte (2016), buscando-se subsídios para superar as propostas elen-
cadas na BNCC e na PNA.

1 De qual alfabetização tratamos na perspectiva da formação


humanizadora?

No decorrer da Revolução Industrial, Karl Marx desenvolveu o so-


cialismo científico, bastante centrado na elaboração da “teoria da mais
valia”. Nela, o autor explica e comprova os mecanismos, os bastidores,
o caráter oculto e os meandros do capitalismo. Para Marx, a “mais va-

1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de


Santa Catarina. Mestre em Educação pela Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE).
Supervisora Escolar na Rede Municipal de Ensino de Garuva – Santa Catarina.

70
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

lia” significa que nem toda a força de trabalho exercida pelo trabalhador
é remunerada, e sim incorporada como lucro ao capital do empregador.
Quando Marx cria o “Método de Economia Política” e a “teoria
da mais valia”, segundo Saviani (2012), consegue elucidar que as leis
que regem o desenvolvimento da sociedade estão intimamente ligadas
ao funcionamento dos meios de produção. Dessa forma, também mos-
tra a trajetória a ser percorrida pelo homem nos processos de apropria-
ção e objetivação do conhecimento. Para Marx, o homem desenvolve-se
e humaniza-se através do trabalho, concebido como atividade vital hu-
mana, não alienado/alienante. Portanto, para ser livre e fazer suas esco-
lhas conscientes, o homem precisa ter acesso aos conhecimentos acu-
mulados pela humanidade através de uma educação plena, ainda que tal
educação seja possível em essência apenas numa sociedade que tenha
superado o capital.
Saviani (2012) esclarece que os estudos de Marx não focaram es-
pecificamente a Educação, porém muitos pesquisadores identificaram,
no conjunto de sua obra, a relação dos seus escritos com a Educação,
como no Manifesto do Partido Comunista, quando Marx escreve sobre
a necessidade de ensino público a todas as crianças e sobre a abolição
do trabalho infantil nas fábricas. No texto Instruções, por sua vez, re-
gistra o que as crianças deveriam aprender na escola: ensino intelec-
tual, tecnológico e físico, para se desenvolverem como sujeitos plenos.
Posiciona-se e questiona a criação de ensino elementar para todos,
questionando se as classes dominantes se limitariam aos conhecimen-
tos elementares propostos aos filhos dos trabalhadores e camponeses.
É, em boa medida, a partir dessas premissas que, nos anos 1980,
Saviani elabora a Pedagogia Histórico-Crítica – embasada, assim, no ma-
terialismo histórico e dialético. Na proposta do autor, destaca-se o papel
do trabalho educativo para a formação e transformação da concepção
de mundo dos estudantes por meio do ensino dos conhecimentos clás-
sicos dos campos da ciência, da arte e da filosofia, por entendê-los como
essenciais para o desenvolvimento do psiquismo humano e, consequen-
temente, para a compreensão da realidade em sua totalidade. Ao fazer

71
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

tal marcação, distancia-se das pedagogias do aprender a aprender2,


as quais “[...] são antes de mais nada pedagogias que retiram da escola
a tarefa de transmissão de conhecimento objetivo, a tarefa de possibili-
tar aos educandos o acesso à verdade” (DUARTE, 2011, p. 5).
De acordo com Saviani (2013), uma das tarefas da Pedagogia
Histórico-Crítica é identificar as formas mais desenvolvidas do conhe-
cimento elaborado pelo gênero humano na sua essência, buscando suas
condições de produção, as principais manifestações e possibilidades
de transformação; portanto, a tarefa de identificar os conhecimentos
que devem fazer parte dos currículos escolares, visando ao desenvolvi-
mento humanizador, é fundamental. A chave principal nessa identifi-
cação não poderia ser outra senão a “prática social na sua totalidade”3,
entendendo-se o conhecimento mais desenvolvido como sendo

[...] aquele que permite a objetivação do ser humano de


forma cada vez mais universal e livre. O critério é, por-
tanto, o da plena emancipação humana. Em termos edu-
cativos, há que se identificar quais conhecimentos po-
dem produzir, nos vários momentos de desenvolvimento
pessoal, a humanização do indivíduo. (DUARTE, 2016, p.
67)

Através da ciência, da arte e da filosofia, a Pedagogia Histórico-


Crítica busca refletir sobre a realidade na sua essência: “[...] a ciência e a
arte refletem de maneiras distintas a mesma realidade, mas não cons-
troem diferentes realidades [...]” (DUARTE, 2016, p. 72). Já a ciência “[...]
trabalha com as abstrações, com conceitos”, refletindo sobre a realida-
de objetivamente, partindo da prática social, porém, não de modo neu-
tro, nem superficial, mas pelo [...] afastamento em relação à aparência,
em busca das leis essenciais explicadas por meio de conceitos abstratos”
(DUARTE, 2016, p. 77).

2 De acordo com Duarte (2011), “aprender a aprender” foi um lema defendido pelo movi-
mento escolanovista e que ganhou um revigoramento principalmente por meio do discurso
construtivista.
3 “[...] é o contexto a partir do qual as ideias são produzidas e têm sua significação” (DUARTE,
2016, p. 64), porém, num movimento histórico e dialético.

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Nesse sentido, o conhecimento científico favorece o desenvolvi-


mento do pensamento conceitual, porém, age sobre uma base de con-
ceitos espontâneos, num processo de superação por incorporação, sendo
que, “[...] no caso dos conceitos espontâneos, haveria uma relação direta
entre o conceito e o objeto. Já no caso dos conceitos científicos, a re-
lação com o objeto deixa de ser direta” (DUARTE, 2016, p. 69). A força
dos conhecimentos científicos estaria na sua capacidade de “[...] sínte-
se, de sistematização e de generalização [...] a fraqueza [...] estaria, po-
rém, em seu caráter abstrato [...] os conceitos espontâneos teriam a for-
ça de sua proximidade imediata ao objeto, dando-lhes concretude [...]”
(DUARTE, 2016, p. 69), e a fraqueza estaria na sua incapacidade de siste-
matização e de ir além das aparências.
No que se refere ao campo da filosofia, não é apenas um conteúdo
escolar a ser ensinado, mas abrange concepções de mundo, perpassando
questões referentes aos problemas da sociedade. Os professores e estu-
dantes, através dos conhecimentos filosóficos, buscam refletir sobre tais
problemas em busca de soluções, sendo que “[...] refletir é o ato de re-
tomar, reconsiderar os dados disponíveis, revisar, vasculhar numa busca
constante de significado. É examinar detidamente, prestar atenção, ana-
lisar com cuidado” (SAVIANI, 2014, p. 16). Assim, não é qualquer tipo
de reflexão, mas uma reflexão filosófica embasada em requisitos como:
radicalidade (ir até as raízes da questão, com profundidade), rigor (siste-
maticidade) e de conjunto (na totalidade).
No que se refere à arte, é um campo que, por sua vez, trabalha
com as emoções. Lida com o processo de superação das emoções coti-
dianas, por incorporação das formas mais desenvolvidas de sentir: “[...]
a arte gera nos indivíduos, adultos ou crianças, um processo de superação
por incorporação das formas cotidianas de reação emocional” (DUARTE,
2016, p. 70). A arte surge de desdobramentos de determinados aspectos
da ação humana na transformação da natureza, visando à garantia da re-
produção da vida, sendo antropomórfica, porque, através de elaborações
humanas, representa o mundo humano e “[...] trabalha com imagens
da realidade, sejam essas imagens captáveis por alguns dos sentidos hu-
manos, sejam imagens literárias que passam pela mediação da lingua-

73
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

gem” (DUARTE, 2016, p. 78). Para representar o conteúdo da realidade,


o artista esmera-se na perfeição da forma, e o receptor, por sua vez, volta
sua atenção prioritariamente para o conteúdo, através da forma.
Dando sequência a esta discussão e trazendo as reflexões para a ci-
ência que estuda a linguagem, percebe-se que a educação linguística,
também no processo de alfabetização, tem como objetivo um trabalho
pedagógico que leve o estudante a apropriar-se dos conhecimentos clás-
sicos sistematizados ao longo da história pela humanidade, ao mesmo
tempo que percebe as finalidades, os usos e as formas da linguagem,
que está sempre em desenvolvimento nas relações sociais. Para Britto
(2012 apud Britto 2006, p. 357), a educação escolar e linguística deve
levar os estudantes a uma ampliação do conhecimento de língua e de
mundo, garantindo aos educandos:

Ampliação da capacidade de interpretação da realidade,


o que conduz compreender o ato de conhecer como es-
forço sistemático e abrangente.
A apreensão de conceitos – percebidos como modelos de
compreensão da realidade em permanente reelaboração
–, para a busca permanente do conhecimento, e
A problematização da vida concreta, como condição de
compreender a realidade e atuar sobre ela para transfor-
má-la.

Britto (2012) esclarece que a educação escolar, incluindo a educa-


ção linguística, deve proporcionar aos estudantes a apropriação de co-
nhecimentos que ultrapassem os conhecimentos cotidianos, ou seja,
há a necessidade de acesso aos conhecimentos científicos e à problema-
tização da vida concreta. Para esse autor, “Fica evidente que a finalidade
da educação escolar é a ampliação do conhecimento de língua e de mun-
do, e não a correção de desvio ou imposição de um modelo hipotetica-
mente correto de uso da língua” (BRITTO, 2012, p. 96).
A essa compreensão da realidade social, função da escola e da con-
tribuição potencial da educação linguística, alguns pressupostos são es-

74
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

senciais. Um deles é o ensino da literatura, conhecimento do campo


da arte e que não se manifesta comumente no âmbito cotidiano. Na con-
dição de direito humano, contudo, precisa ser garantida na escola. Por li-
teratura, pois, entende-se toda criação poética, ficcional ou dramática,
dos níveis mais simples aos mais complexos, criada pela humanidade.
Candido (1988, p. 175) afirma:

A função da literatura está ligada à complexidade da


sua natureza [...] analisando-a, podemos distinguir pelo
menos três faces: (1) ela é uma construção de objetos
autônomos como estrutura e significado; (2) ela é uma
forma de expressão, isto é, manifesta emoções e a visão
do mundo dos indivíduos e grupos; (3) ela é uma forma
de conhecimento, inclusive como incorporação difusa e
inconsciente.

O trabalho com a literatura, no campo da arte, torna-se imprescin-


dível para a apropriação de conhecimentos clássicos acumulados pela
humanidade e para a formação humana plena, pois faz com que os sujei-
tos envolvidos reflitam a condição humana e aprendam a lidar com sen-
timentos e, portanto, fica evidente que, já no período de alfabetização,
há a necessidade de ir além do ensino da técnica de aquisição da es-
crita, sendo a literatura uma importante aliada, devendo ser entendi-
da como um instrumento humanizador e não como um complemento
da alfabetização.
Na seção que segue, buscamos posicionar a alfabetização conside-
rando a trajetória histórica da educação no Brasil.

2 Um pouco de história: o lugar da alfabetização no embate


educacional

De acordo com Saviani (2013, p. 29), com a instituição do governo


geral de Tomé de Souza e a chegada dos jesuítas liderados por Manuel
da Nóbrega, visando à consolidação dos interesses em relação à coloni-
zação do Brasil, a corte portuguesa atuou em três frentes “[...] a posse

75
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

e a exploração da terra subjugando os habitantes (os íncolas), a educa-


ção enquanto aculturação [...] e a catequese [...]”. Os jesuítas criaram
escolas, colégios e seminários com o intuito de converter os gentios à fé
católica, de acordo com os interesses da coroa, sendo que os jesuítas
exerceram “[...] o monopólio da educação nos dois primeiros séculos
da colonização” (SAVIANI, 2013, p. 41), sendo que no ano de 1750, havia
um total de 728 casas de ensino no Brasil.
De acordo com Soares (2002), no período histórico em questão
conviviam três línguas na colônia brasileira: a língua geral (advinda
do tupi), o português (trazido pelos colonizadores) e o latim (utilizado
no ensino secundário e superior ofertado pelos jesuítas).
Destaca-se, na evangelização dos indígenas, o padre jesuíta
José de Anchieta, que, chegado ao Brasil em 1553, aos dezenove anos,
com grande facilidade em aprender línguas, logo aprendeu a língua geral
(falada pelos nativos e pelos colonizadores) e a utilizou na catequização
dos indígenas. De acordo com Soares (2002, p. 158), “[...] com a língua
geral evangelizavam os jesuítas, nela escreveram peças dramáticas para
a catequese; era ela que os bandeirantes falavam [...] foi ela quase sem-
pre a língua primeira das crianças, dos filhos tanto dos colonizadores
quanto indígenas”.
Aprendia-se a ler, a escrever e a falar em português na escola, po-
rém, eram poucos os privilegiados (filhos dos colonizadores), portanto,
era uma educação elitista. O português não era um componente curricu-
lar, mas um instrumento de alfabetização: “Da alfabetização, praticada
nas escolas menores, passava-se diretamente ao latim: no ensino secun-
dário e no superior estudava-se a gramática da língua latina e a retórica
[...]” (SOARES, 2002, p. 158), com vistas aos estudos maiores (ingresso
em universidades de Portugal).
As ideias pedagógicas que embasavam a educação nesse período
histórico, e expressas no Ratio Studiorum, é o que se denominou na mo-
dernidade como Escola Tradicional, por meio da filosofia da essência.
Nessa filosofia, de acordo com Saviani (2013, p. 58), “[...] o homem é con-
cebido como constituído por uma essência universal e imutável, [...]”,

76
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

sendo feito à imagem e semelhança divina, cabendo à educação moldar


essa existência particular (real, terrena) em uma essência (ideal, cria-
ção divina), atingindo assim a perfeição e o merecimento da vida eter-
na. Tais orientações predominaram até 1759, quando ocorreu a reforma
pombalina e a expulsão dos jesuítas de todas as colônias portuguesas.
Nomeado como ministro no reinado de Dom José I, no ano de 1750,
Sebastião José de Carvalho e Melo torna-se o Marquês de Pombal (1769),
e realiza inúmeras mudanças baseadas nas ideias iluministas que já cir-
culavam na Europa. Marquês de Pombal permanece no poder até 1777,
quando cai em desgraça e é condenado ao exílio, em 1781, por Dona
Maria I. No reinado de Dona Maria I, as reformas pombalinas continua-
ram em vigor, com a implantação e a expansão das aulas régias, que pas-
saram a ser denominadas aulas de ler, escrever, contar e de catecismo.
No que diz respeito ao acesso à literatura, nos primórdios da co-
lonização brasileira encontrava- se a literatura oral trazida pelos mari-
nheiros portugueses, misturada com as lendas indígenas e com as histó-
rias dos africanos escravizados contadas às crianças pelas amas de leite.
Os filhos das elites também tinham acesso à literatura europeia, trazida
pelos seus responsáveis diretamente da Europa (ARROYO, 1990).
Após a promulgação da primeira Constituição (1824), fez-se a pri-
meira lei de educação do Brasil: Lei de 15 de outubro de 1827, que de-
terminava a criação das Escolas de Primeiras Letras, com a obrigatorie-
dade do método mútuo. Nessas escolas, aprendia-se “[...] leitura, escrita,
gramática da língua nacional, as quatro operações de aritmética, no-
ções de geometria, ainda que tenham ficado de fora as noções elemen-
tares de ciências naturais e das ciências sociais (história e geografia)”
(SAVIANI, 2013, p. 126).
No ano de 1834 houve a promulgação do Ato Adicional
à Constituição do Império, delegando às províncias a obrigatoriedade
em relação à instrução pública primária e secundária. Com tal obriga-
toriedade, as províncias criam as Escolas Normais, visando à formação
dos professores. Nessas escolas, os professores aprendiam as mesmas
matérias que iriam ensinar a seus alunos nas classes (SAVIANI, 2013).
No entanto, a formação de professores e as questões relacionadas à al-

77
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

fabetização só vêm à tona de maneira mais explícita após a Proclamação


da República, tornando-se necessária a implementação de um novo pro-
cesso de ensino da leitura, visando atender aos anseios de um projeto
positivista de sociedade.
Assim, no ano de 1878 esteve no Brasil o professor de matemática,
da Universidade de Coimbra, Antonio Zeferino Candido, divulgando o
“método João de Deus”4, e foi assim que Antônio da Silva Jardim co-
nheceu o método e tornou-se um grande divulgador a partir da déca-
da de 1880. De acordo com Mortatti (2000), a atuação de Silva Jardim
foi vista como fundante de uma tradição, por ter sido ele o primeiro
a fundamentar teoricamente o “método João de Deus” de maneira sis-
temática, programática e científica, apresentando como base a filosofia
positivista, as ciências que estudam a linguagem (estudos fonéticos) e as
teorias de Comenius, Petalozzi, Froebel, Herbart e Spencer, Comte, Mill,
entre outros, explicando a adequação do método e a natureza da criança.
Dessa forma, o “método João de Deus”, contido na Cartilha Maternal –
a Arte da Leitura, a primeira a ser usada no Brasil, foi considerado cien-
tífico. A partir desse acontecimento, inicia-se, no Brasil, uma disputa
entre os métodos de alfabetização.
Para os reformadores desse período, era essencial a formação
adequada dos professores, com embasamento científico, e dois pontos
tornam-se fundamentais: “[...] enriquecimento dos conteúdos curricu-
lares anteriores e ênfase nos exercícios práticos de ensino, cuja marca
característica foi a criação da escola-modelo anexa à Escola Normal [...]”
(SAVIANI, 2009, p. 145), modelo que se expandiu para todo o país, pro-
movendo-se o método analítico para o ensino da leitura, com disputas
a respeito do modo mais eficaz de processar esse método – palavração,
sentenças ou historietas. Para garantir a sua aplicação no ensino, no fi-
nal da década de 1890 passam a ser publicadas as cartilhas brasileiras.

4 O “método João de Deus” foi criado, em Portugal, pelo poeta João de Deus, que elabora
a Cartilha Maternal – a Arte da Leitura com o objetivo de ensinar uma de suas filhas a ler
e a escrever. Foi publicada em Portugal no ano de 1876, tornando- se estrondosamente
popular, vindo a ser declarada pelo governo português, em 1888, como o método nacional
(analítico).

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Para Mortatti (2000), um importante momento da consolidação


da alfabetização como objeto dee estudo ocorreu entre meados do ano
de 1920 e da década de 1970. Diferentes acontecimentos marcaram esse
momento histórico, dentre eles o Manifesto dos Pioneiros da Educação
Nova (1932) e a promulgação da primeira Constituição Federal (1934),
garantindo a obrigatoriedade do Ensino Fundamental com duração
de quatro anos, sendo ampliado para oito anos em 1967, e reformulado
no ano de 1971, dando origem ao ensino de primeiro e segundo graus.
Em relação ao ensino inicial da leitura e da escrita, os aspectos da psi-
cologia experimental e comportamentalista, baseados em Claparède,
Pièron, Binet, Simon, Watson, Janet e Piaget, vão se sobressaindo em re-
lação aos aspectos linguísticos e pedagógicos. O aluno e seus interes-
ses passam a se destacar em relação ao método e ao papel do professor.
O ideário da Escola Nova passa a relativizar a questão do método e a
adotar o método misto ou eclético, visto que se entende que mais de um
método pode ajudar no ensino da leitura e da escrita. Nesse momen-
to, passa-se a valorizar o caráter funcional e instrumental do ensino,
de acordo com o ideário liberal previsto para a sociedade.
Com o advento da industrialização brasileira e da necessidade
de mão de obra qualificada, ocorre a democratização do ensino, na qual
a educação deixa de ser destinada às classes da elite e passa a receber,
de maneira intensa, estudantes advindos das classes populares, e com
isso há uma queda nos índices de aprovação. Percebe-se, então, a partir
do final dos anos 1970, que a disputa entre os métodos de alfabetização
não deu conta de resolver o problema do fracasso da alfabetização, e
“[...] objetivando responder às novas urgências sociais e políticas decor-
rentes das pressões pela abertura política e pela reorganização demo-
crática das instituições e relações sociais [...]” (MORTATTI, 2000, p. 257),
surgem outras discussões.
As novas proposições para a educação, em especial para a alfabe-
tização, estão embasadas na sociologia, na filosofia, na história, na psi-
cologia (sobretudo a vertente cognitivista piagetiana de base construti-
vista) e na linguística (sobretudo as vertentes da psicolinguística de base
estruturalista chomskyana). Nesse contexto, as pesquisas desenvolvidas

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

por Emília Ferreiro, orientanda e colaboradora de Jean Piaget, tornam-se


valorosas pela revolução conceitual “[...] representada pelo postulado
da construção do conhecimento linguístico pela criança, em decorrência
do quê, o eixo da discussão é deslocado para o processo de aprendiza-
gem do sujeito cognoscente e ativo em detrimento dos métodos [...]”
(MORTATTI, 2000, p. 253).
Pelo fato de os postulados de Ferreiro configurarem uma teoriza-
ção e não uma metodologia, os professores apresentaram muita dificul-
dade em colocar em prática a nova proposição conceitual (O que ensinar?
Como ensinar? Qual o papel do professor?), embora as universidades,
os pesquisadores e os responsáveis pela educação estivessem investindo
em pesquisas, e as normatizações ainda circulassem de maneira escan-
carada ou disfarçada pelas velhas cartilhas do ensino tradicional, con-
trariando os discursos acadêmicos. Houve, então, a publicação de “[...]
novas cartilhas [...] denominadas ‘construtivistas’ ou ‘socioconstrutivis-
tas’ ou ‘construtivistas-interacionistas’” (MORTATTI, 2000, p. 257). Tais
cartilhas construtivistas, com passos determinados, chocavam-se com a
necessidade de construção individual, pela criança, do objeto de apren-
dizagem. Propunha-se, no lugar das cartilhas, a utilização da literatura
infantil e de textos reais, usados no cotidiano e sem marcas ideológicas,
como listas, bulas de remédio, receitas, quadrinhas, notícias de jornal,
entre outros.
De acordo com Mortatti (2000), no ano de 1989, Smolka apresen-
ta um novo discurso, destoante do discurso construtivista de Ferreiro
e Piaget, aproximando-se das teorizações de Vygotski. Em relação à al-
fabetização, vai ocorrendo um gradativo deslocamento das discussões
construtivistas para o discurso interacionista, “[...] processo do qual aca-
ba por resultar um outro tipo de ecletismo, sintetizado nas expressões
‘socioconstrutivismo’ e ‘construtivismo-interacionista’” (MORTATTI,
2000, p. 276). Ferreiro e Piaget entendem que a criança constrói indivi-
dualmente seu conhecimento, numa relação de descoberta, interagindo
com o objeto do conhecimento, sem dar ênfase no suporte dado por um
sujeito mais desenvolvido, o que, de acordo com os teóricos em questão,
prejudicaria o desenvolvimento infantil. Por sua vez, o pensamento e a

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

teoria de Vygotski apresentam as zonas de desenvolvimento, afirmando


que a criança fará amanhã sozinha o que hoje faz com a ajuda de alguém
mais desenvolvido, ou seja, do adulto regulador.
Na seção que segue, são analisados alguns documentos oficiais
e a forma como eles se posicionam em relação à garantia da educação,
com foco no trabalho com a alfabetização.

3 A educação brasileira sob a ótica dos documentos oficiais

Diferentes documentos oficiais foram formulados a partir da rede-


mocratização brasileira, visando à garantia dos direitos de todos os bra-
sileiros, em especial no que diz respeito à educação; dentre eles estão:
a Constituição Cidadã (1988), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
(1996), os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997), as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação Básica (2013), a Base Nacional
Comum Curricular (2017) e a Política Nacional de Alfabetização (2019).
Com a redemocratização do Estado brasileiro, a Constituição
de 1988, em seu Artigo 205º, enfatiza que todos os sujeitos têm direi-
to à educação para o pleno desenvolvimento, para o exercício da cida-
dania e sua qualificação para o trabalho. Já a Lei de Diretrizes e Bases
da Educação (LDB), em seu Artigo 2.º, vem reafirmar que a educação
“[...] tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu pre-
paro para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”
(BRASIL, 2020, p. 8).
Para garantir que os direitos estabelecidos pela Constituição
de 1988 e pela LDB de 1996 fossem colocados em ação, são lançados,
no ano de 1997, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), documen-
to de natureza aberta e flexível, sendo referência para a atualização ou a
elaboração das propostas curriculares de estados e municípios, visando
à formação plena dos sujeitos. No entanto, percebe-se, logo na introdu-
ção, na seção “Orientações Didáticas” dos PCN, uma tendência à pedago-
gia do aprender a aprender (construtivismo, escolanovismo), colocando
em risco a formação para o pleno exercício da cidadania e a preparação
para o trabalho, estabelecidos nos documentos anteriores:

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

[...] os Parâmetros Curriculares Nacionais incluem orien-


tações didáticas, que são subsídios à reflexão sobre como
ensinar. [...] Cada aluno é sujeito de seu processo de
aprendizagem, enquanto o professor é o mediador na
interação dos alunos com os objetos de conhecimento.
(BRASIL, 1997, p. 61, grifos nossos)

A referência ao aluno como sujeito do seu processo de aprendi-


zagem e ao professor como mediador remete diretamente à Escola
Nova, já referenciada em documentos oficiais, e a qual esteve no centro
das discussões da educação brasileira a partir de 1920. Importa men-
cionar que diferentes estudos já comprovaram sua ineficácia na reso-
lução dos problemas referentes à educação e à alfabetização em vistas
da formação plena dos sujeitos, porque, de acordo com Saviani (2013),
quando o aluno é protagonista de seu processo de aprendizagem, há um
favorecimento da formação humana unilateral, a qual foca no sujeito
empírico: um sujeito com necessidades imediatas, que deseja realizar
atividades prazerosas, e que ainda não entende que precisa apropriar-se
de determinados conhecimentos os quais vão subsidiar seu desenvol-
vimento como ser humano. Tal compreensão quem tem é o professor,
sujeito mais desenvolvido, portanto, quem reconhece quais são os co-
nhecimentos de que o aluno concreto precisa se apropriar para se de-
senvolver como ser humano pleno (omnilateral), porque nem tudo o que
o sujeito concreto precisa aprender para o seu desenvolvimento é praze-
roso, porém, faz-se necessário.
No que diz respeito à alfabetização, encontram-se, nos PCN, al-
gumas orientações para o ensino da leitura e da escrita, enfatizando-
-se a necessidade do trabalho com textos reais, como listas, quadrinhas,
parlendas, canções, embalagens comerciais, anúncios, folhetos, entre
outros, com o intuito de ensinar o sistema de escrita alfabética. Apesar
de recomendar o ensino construtivista, defende o ensino sistematizado
do sistema de escrita, do modo como é proposto pelo método fônico.
Em relação ao trabalho com a literatura, dá ênfase ao gosto pela leitura,
e não menciona a questão da formação humana plena.

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Objetivando-se a melhoria dos currículos escolares, no ano de 2013


é lançada a revisão e a atualização das Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação Básica, documento estrutural, de caráter mandatá-
rio, no qual estão reunidos os princípios (éticos, políticos e estéticos),
os fundamentos e os procedimentos da educação brasileira, vindo a nor-
tear as políticas públicas para elaboração, organização, execução e ava-
liação das propostas curriculares dos estados, municípios e do Distrito
Federal, e os projetos político-pedagógicos das escolas (BRASIL, 2010).
Alguns anos depois, em 2017, foi publicada a versão final da Base
Nacional Comum Curricular (BNCC) para a Educação Infantil e o Ensino
Fundamental, trazendo o detalhamento das aprendizagens tidas como
essenciais, devendo ser entendido como um documento normatizador,
criado pelo Governo Federal, a partir de um determinado período sócio-
-histórico-ideológico, para atender a um determinado projeto político-
-pedagógico. Importa ressaltar que esse documento é pautado no desen-
volvimento de competências5.
Na BNCC, o processo de alfabetização é descrito como o perío-
do (equivalente ao primeiro e segundo ano) no qual os estudantes
se alfabetizam, pressupondo-se que “[...] desde que nasce e na Educação
Infantil, a criança esteja cercada e participe de diferentes práticas letra-
das” (BRASIL, 2017, p. 350), portanto, ao chegar à escola, será necessá-
rio aprender o “[...] alfabeto e a mecânica da escrita/leitura, [para que]
consiga codificar/decodificar os sons da língua (fonemas) em material
gráfico grafemas/letras” (BRASIL, 2017, p. 36), num período de dois anos,
ou seja, houve a diminuição, neste documento, de um ano no tempo an-
tes previsto como destinado ao processo de alfabetização, o que pode
impactar na formação das crianças menos favorecidas economicamen-
te. A realidade posta na BNCC é de um Brasil ideal e não real, porque
na realidade brasileira não chegam às escolas grupos homogêneos e com
as mesmas vivências em relação ao acesso à leitura e à escrita. Entende-
se que, quando não há acesso à cultura escrita em suas diversas mani-

5 Perrenoud (1999, p. 7) define competência “[...] como sendo uma capacidade de agir eficaz-
mente em um determinado tipo de situação, apoiada em conhecimentos, mas sem limitar-
-se a eles”.

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

festações fora da escola, ele precisa acontecer na escola, promovendo


a todos direitos iguais de acesso aos conhecimentos acumulados pela
humanidade por meio da formação humana integral (omnilateral).
Apesar de a BNCC indicar diferentes campos de atuação – vida co-
tidiana, artístico-literário, estudo e pesquisa e vida pública –, há uma
priorização de textos simples e curtos, voltados à apropriação do código,
como listas, bilhetes, recados, avisos, convites, cartas, cardápio, diários,
receitas, regras de jogos e brincadeira, contos, lendas, entre outros, vol-
tados mais para o ensino da técnica, visto que o foco enfatizado na BNCC
é o processo de alfabetização centrado na consciência fonológica, tendo
como base um ecletismo teórico com ênfase no construtivismo.
A BNCC é uma diretriz, tem força de lei, porém, não é uma propos-
ta curricular. Há a necessidade e a possibilidade de se pensar para além
dela nos documentos curriculares dos municípios e estados, e de conce-
ber um processo de alfabetização que possibilite aos estudantes uma for-
mação crítica, questionadora e transformadora, que os leve para além
da leitura mecânica, e que esteja para além de uma educação que visa
formar mão de obra qualificada para atender às demandas do mercado.
Deve-se distanciar, assim, de um ensino voltado ao mercado, o qual vê a
escola como “[...] o lugar apropriado para satisfazer as suas necessida-
des” (BONINI; COSTA- HUBES, 2019, p. 31).
Quando se pensa em formar um sujeito crítico e consciente,
com vistas à sua humanização, a literatura passa a ocupar um papel
de destaque, porém, no que diz respeito ao trabalho com a literatura,
a BNCC procura formar o estudante para a contemplação, a fruição, o en-
tretenimento, a ludicidade e as dimensões formais do texto. Focando-se
nas dimensões formais e estéticas, não se aprofunda na “[...] dimensão
social com vistas a atingir o papel humanizador a que se propõe a litera-
tura” (ARBOLEYA; LOTTERMANN, 2019, p. 323).
Sendo o documento mais recente, lançado no ano de 2019 pelo
Ministério da Educação, por meio de decreto, a Política Nacional
de Alfabetização (PNA) traz como destaque que o problema da alfabe-
tização no Brasil está ancorado no uso inadequado do método (discus-

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

são já superada a partir dos anos 1980, como discutido neste capítulo),
e indica como método mais apropriado para a resolução de tal problema
o método fônico, para que seja aplicado em todas as escolas brasileiras,
enfatizando, assim, o [...] aluno empírico, refratado no funcionamento
aparente de seu cérebro” (FRANCO; MARTINS, 2021, p. 80).
A PNA apresenta um discurso de cientificidade de base cogniti-
vista comportamental, e Martins (2021, p. 70) complementa que “[...]
a concepção de ciência em que se fundamenta a PNA está ancorada
no pensamento positivista e na lógica formal”. As evidências científi-
cas destacadas na PNA buscam dar um caráter de incontestabilidade,
credibilidade, neutralidade ao documento, retirando da discussão “[...]
a classe social, renda e as condições concretas para o desenvolvimento
e humanização” (FRANCO; MARTINS, 2021, p. 66) dos sujeitos envolvi-
dos nos processos de ensino e aprendizagem.
Percebe-se, por meio dessas breves reflexões, que a PNA não veio
com o objetivo de formar sujeitos emancipados e livres. É mais um do-
cumento oficial voltado à formação unilateral dos sujeitos, com objetivo
de formação de mão de obra qualificada para o mercado de trabalho. Vale
ressaltar, ainda, que as proposições pautadas na BNCC voltadas para
a alfabetização têm pontos de divergência com as proposições da PNA,
de forma que a primeira tem como base o construtivismo, que trouxe
a desmetodização, e a segunda propõe o método fônico, voltando-se
à discussão acerca do melhor método para alfabetizar, a qual já havia
sido dada como superada na década de 1980 (FRANCO; MARTINS, 2021).

Considerações finais

Como se pode perceber no decorrer da história da educação,


e principalmente da alfabetização, a educação não foi destinada a todos,
apenas a alguns. Também esse parece não ter sido um aspecto relevante
para os governantes, sendo esses oriundos da monarquia ou da repúbli-
ca. Quando o Estado, na figura do monarca ou do presidente, demons-
trava algum interesse relacionado à educação e à alfabetização, esses
interesses eram reverberações do projeto social dominante – por exem-

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

plo: educação como pré-requisito para a formação de lideranças (filhos


dos colonizadores/das elites); para aculturação; para catequização; en-
sino da escrita e do cálculo para preparação de mão de obra qualificada;
ou educação com cunho moral e cívico –, e não se vê o intuito da promo-
ção de uma educação humanizadora.
Fica claro, no decorrer deste capítulo, que as perspectivas de edu-
cação contidas em documentos oficiais, como os PCN, a BNCC e a PNA,
contemplam as pedagogias do aprender a aprender (escolanovista, tec-
nicista, das competências, metodologias ativas, construtivista, professor
reflexivo), não avançando em direção a uma educação emancipatória,
porque apenas trocam de roupagem, fazendo as mesmas proposições,
que resultam nos mesmos objetivos formativos: “[...] esvaziar a edu-
cação escolar destinada à maioria da população enquanto, por outro
lado, são buscadas formas de aprimoramento da educação das elites”
(DUARTE, 2011, p. 9).
Em proposta de superação por incorporação da pedagogia
da Escola Tradicional e das pedagogias do aprender a aprender, Saviani
(2013, p. 14) afirma que o papel da escola “[...] diz respeito ao conheci-
mento elaborado e não ao conhecimento espontâneo; ao saber siste-
matizado e não ao saber fragmentado; à cultura erudita e não à cultura
popular”, ou seja, a escola precisa trabalhar com a formação de concei-
tos, podendo partir dos conhecimentos cotidianos, mas não se limitando
a eles, e, para isso, precisa do professor como sujeito mais desenvolvido
em relação aos conhecimentos elaborados, o qual utilizará métodos “[...]
que estimularão a atividade e iniciativa dos alunos sem abrir mão, po-
rém, da iniciativa do professor; favorecerão o diálogo dos alunos entre
si e com o professor, mas sem deixar de valorizar o diálogo com a cultura
acumulada historicamente” (SAVIANI, 2012, p. 69), orientando os estu-
dantes no acesso a esses conhecimentos para que se desenvolvam como
sujeitos concretos, visando à ampliação da sua visão de mundo, em bus-
ca de encontrar a verdade diante da sociedade de classes.
Britto (2012, p. 97 apud BRITTO, 2006, p. 357) traz a reflexão do pa-
pel da educação linguística para a formação de sujeitos emancipados
desde o período de alfabetização, devendo ser um ensino que os leve à

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

“[...] ampliação da capacidade de interpretação da realidade [...] apreen-


são de conceitos [...] e problematização da vida concreta, como condição
de compreender a realidade e atuar sobre ela para transformá-la”, por-
tanto, não dá para conceber o período de alfabetização com o objetivo
único do ensino do sistema de escrita alfabética, utilizando-se o método
fônico ou através de textos simples do cotidiano, como bilhetes, listas,
quadrinhas, panfletos, entre outros.
Por todo o exposto, torna-se urgente pensar para além de docu-
mentos como os PCN, a BNCC e a PNA, visando à construção de uma al-
fabetização, considerada como um período de humanização, para a qual
a literatura tem um papel de destaque, por sua força formadora e por
ser um instrumento para a apropriação do conhecimento histórico acu-
mulado, e não mero complemento da alfabetização como técnica.

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

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89
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

MÉTODOS SINTÉTICOS E ANALÍTICOS E SUAS


IMPLICAÇÕES PARA O ENSINO DA LÍNGUA ESCRITA

Cintia Franz1

Historicamente, o termo alfabetização está atrelado ao embate


metodológico, uma vez que os métodos analíticos e sintéticos foram
os destaques quando da instituição da alfabetização escolar no país.
No entanto, alfabetizar vai além de um método, pois neste processo
tão importante precisam estar interpenetrados outros aspectos, para
que a humanização possa ser promovida.
Nesse sentido, para que se compreenda a questão, organizamos
este capítulo em três seções. A primeira delas terá como enfoque a alfa-
betização no Brasil e o surgimento dos métodos, com seus desdobramen-
tos; a primeira subseção abordará as teorias educacionais e sua relação
com os métodos, e a segunda subseção faz uma provocação sobre as for-
mas recorrentes de ensino nas salas de alfabetização do país. Na segun-
da seção do capítulo, a ênfase se dá sobre a abordagem da alfabetização
e sua relação com a apropriação dos objetos culturais. Na terceira seção,
discorremos sobre a recente tentativa de implementação de um único
método de alfabetização, oriundo da Política Nacional de Alfabetização,
posicionando-nos em favor de uma ação escolar que ensine o sistema
de escrita alfabética em contextos de sentido, tendo como eixo norte-

1 Doutoranda em Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora


efetiva de Língua Portuguesa e Diretora de Gestão Pedagógica da Rede Pública Municipal
de Rio do Sul – Santa Catarina.

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

ador a forma como as pessoas usam a linguagem escrita para interagir


socialmente, nos termos tomados pela Escola de Vigotski.
A provocação deste capítulo se situa na compreensão histórica
que traz o passado para o presente, incluindo as reflexões de que os mé-
todos, de modo geral, não perspectivam a formação omnilateral, uma vez
que a leitura e a escrita são consideradas operações mecânicas e/ou cir-
cunscritas à dimensão cognitiva estrita, e o retorno a tais concepções
fragiliza tanto o sistema educacional quanto a formação humana em si.

1 A alfabetização no Brasil e os métodos sintéticos e analíticos:


uma retomada histórica

Encontramos em Mortatti (2000) considerações históricas com base


em um estudo de duas décadas a respeito da alfabetização no Brasil,
que parte da denominada metodização, iniciada ao final do século XIX.
Foi com o começo do regime republicano que surgiu uma nova ordem
política e social, e, paralelamente a isso, a universalização da escola.
Essa premissa de universalização trazia uma ideia de que a alfabetização
seria uma possibilidade de crescimento e desenvolvimento econômico
do país, no entanto, este “direito de todos” voltava-se aos interesses
da burguesia a fim de consolidar a democracia burguesa (SAVIANI, 2012
[1983]).
A leitura e a escrita, na época condicionadas a poucos e, na atuali-
dade, conforme veremos adiante, ainda negadas a uma parcela altíssima
da sociedade, eram consideradas capacidades privilegiadas e, no entorno
domiciliar, ocorria o seu ensinamento de modo geralmente assistemáti-
co. Com a instituição de uma política educacional, profissionais tiveram
de ser capacitados para que o ensino das letras pudesse ser sistematiza-
do, o que não se mostrou eficaz, uma vez que a capacitação desses pro-
fissionais culminou no ensino de uma única metodologia cujo objetivo
não era o de tornar as crianças e os jovens capazes de operacionalizar
o sistema de escrita alfabética em suas relações sociais; pelo contrário,
apenas os instrumentalizavam a usar a escrita de maneira mecânica,
descolada de situações que possibilitasse a estes sujeitos ações de meta-

91
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

cognição, para as quais importa compreender e verificar o que se lê, es-


tabelecer relações tanto entre as partes do texto lido quanto em relação
a outros textos, entre outros importantes processos.

Foi João de Deus quem escreveu, em Portugal, a primeira cartilha


de alfabetização, Cartilha Maternal ou Arte da Leitura, cujo princípio lin-
guístico considerava o ensino da leitura através da palavra palavração –,
e somente depois esse componente era analisado por meio dos seus va-
lores fonéticos, sendo este método denominado de sintético. Os méto-
dos sintéticos, como o próprio nome informa, focalizam a língua escrita
das partes para o todo.

A partir de 1890, com a Escola Normal de São Paulo, instituiu-se


obrigatoriamente nas escolas outro método, o analítico, muito criticado
pelos professores especialmente por não conseguir exprimir resultados
rápidos. A metodologia analítica baseia-se num ensino da leitura que vai
do todo para as partes, através de sentenciação, de historietas e de con-
tos. Também para este método as cartilhas constituíam as diretrizes di-
dáticas (MORTATTI, 2000).

Uma disputa entre os métodos analíticos e sintéticos foi iniciada


em meados de 1920, período no qual ocorreram reformas educacionais,
cujos posicionamentos renderam-se ao método analítico (MORTATTI,
2000). É nesse sentido que, historicamente e no contexto nacional, alfa-
betizadores e estudiosos tomam o processo de alfabetização sob o pon-
to de vista destes dois encaminhamentos metodológicos distintos e do
embate travado entre ambos: métodos sintéticos e métodos analíticos.

Para que compreendamos mais efetivamente o processo de alfa-


betização no Brasil, faz-se relevante uma retomada histórica a respei-
to desse movimento, trazendo reflexões sobre a relação dos métodos
com as teorias educacionais, e sinalizando, nesse sentido, a importância
do aporte teórico-epistemológico e das reflexões teórico-metodológicas,
que possibilitam as condições necessárias em torno do trabalho escolar
com leitura com vistas à formação humana integral.

92
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

1.1 A compreensão dos métodos pelas teorias educacionais

Em meio à já referida universalização da escola no Brasil, sur-


gia, como reflexo do movimento iluminista, sendo, portanto, difundi-
da inicialmente na Europa, a Pedagogia Tradicional, que se fez presente
no contexto escolar até o fim do século XIX. No contexto europeu, essa
pedagogia surgiu concomitantemente à ascensão da burguesia, classe
que teve um papel revolucionário na história por lutar contra o feudalis-
mo, e em favor do capitalismo.
No centro dessa pedagogia, estava a memorização dos conteúdos
e, por serem transmitidos com esse fim, acabava-se por deslocar os con-
teúdos da realidade social e do cotidiano dos alunos, ignorando- se toda
a constituição do conhecimento teórico produzido a partir da prática so-
cial. Além disso, nessa tendência pedagógica, o professor era tido como
autoridade máxima. Saviani (2012 [1983], p. 6) assim a descreve:

Seu papel é difundir a instrução, transmitir os conheci-


mentos acumulados pela humanidade e sistematizados
logicamente. O mestre-escola será o artífice dessa gran-
de obra. A escola organiza-se como uma agência centra-
da no professor, o qual transmite, segundo uma gradação
lógica, o acervo cultural aos alunos. A estes, cabe assimi-
lar os conhecimentos que lhes são transmitidos.

O lema da Pedagogia Tradicional era o de levar a ciência e a ra-


zão a todos, libertando a sociedade da ignorância. Saviani (2012 [1983],
p. 6), assim, define que “A escola é erigida no grande instrumento para
converter os súditos em cidadãos”. No entanto, este ensino, baseado
em realização de tarefas em nome da assimilação de conteúdos por par-
te dos aprendentes, não alcançou a universalização, primeiro porque
não chegou a todos e, segundo, porque aqueles que tinham o acesso
não se ajustavam dentro do modelo de sociedade que se buscava conso-
lidar (SAVIANI, 2012 [1983]).
No século XX, essa pedagogia foi combatida pelo escolanovismo,
que surgiu por meio da crítica ao tradicionalismo, afirmando que essa

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

teoria não levava em conta o estudante nem seu processo de aprendi-


zagem, centrando-se apenas nos conteúdos pelo seu valor enciclopédi-
co. Para Saviani (2012 [1983]), essa nova perspectiva teórica mantinha
os mesmos propósitos de equalização social, e não tinha o ignorante
como o marginalizado, mas sim como o rejeitado.
O escolanovismo, comprometido com uma ruptura em rela-
ção ao modelo pedagógico tradicional, trouxe consigo o lema “apren-
der a aprender”, que tem como princípios valorativos a centralidade
nos alunos, o que inclui a definição dos conteúdos feita por eles mes-
mos, partindo de suas necessidades e de seus interesses, espontanea-
mente, de acordo com o seu cotidiano. Essa pedagogia, apesar da tenta-
tiva de ruptura, pouco se diferencia do tradicionalismo, especialmente
num ponto: ela também impossibilita qualquer tentativa de transformar
a sociedade por meio da superação do capitalismo, na medida em que
prevalece a perspectiva de manutenção da sociedade vigente. Sobre esta
aproximação entre ambas a partir de um projeto social comum, assim
pontua Saviani (2012 [1983], p. 9-10) em relação ao escolanovismo:

[...] não conseguiu alterar significativamente o panora-


ma organizacional dos sistemas escolares. Isso porque,
além de outras razões, implicava custos bem mais ele-
vados do que aqueles da Escola Tradicional. Com isso,
a “Escola Nova” organizou-se basicamente na forma de
escolas experimentais ou como núcleos raros, muito bem
equipados e circunscritos a pequenos grupos de elite.

Nesse contexto, ao findar o século XX, o escolanovismo começou


a apresentar sinais de exaustão, ou seja, foi perdendo suas forças, prin-
cipalmente pela ineficiência em relação à superação da marginalidade.
Em contrapartida, surgiu uma teoria também considerada não crítica,
a tecnicista, que centralizava seus propósitos na instrumentalização:

Buscou-se planejar a educação de modo a dotá-la de


uma organização racional capaz de minimizar as inter-
ferências que pudessem pôr em risco sua eficiência. Para

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

tanto, era mister operacionalizar os objetivos e, pelo


menos em certos aspectos, mecanizar o processo. Daí a
proliferação de propostas pedagógicas tais como o enfo-
que sistêmico, o microensino, o tele- ensino, a instrução
programada, as máquinas de ensinar etc. (SAVIANI, 2012
[1983], p. 12).

Enquanto na Pedagogia Tradicional o professor era central no pro-


cesso educativo, para a Escola Nova o aluno deveria ocupar esse papel
de centro. Já na Pedagogia Tecnicista, professor e aluno são secundários,
ou seja, “[...] é o processo que define o que os professores e alunos devem
fazer e, assim também, quando e como o farão” (SAVIANI, 2012 [1983],
p. 13). Nessa abordagem, a questão da marginalidade também era exis-
tente, mas, no caso da Escola Tecnicista, esta é considerada por meio
dos critérios de incompetência e improdutividade, “[...] neste contexto
teórico, a equalização social é identificada com o equilíbrio do sistema
(no sentido do enfoque sistêmico)” (SAVIANI, 2012 [1983], p. 13).
Engendrada desse modo, a Escola Tecnicista fortaleceu negativa-
mente a fragmentação das ações pedagógicas, e ao magistério passou
a caber como atividade prioritária o ritual de preencher formulários
como modo de controle do sistema. Um processo educativo que con-
tribuiu e ainda contribui para o aumento da marginalidade no contex-
to escolar e, por conseguinte, para a elevação dos índices de evasão
e repetência.
Demarcar esses três momentos fundamentais da história da edu-
cação também no cenário nacional, que se refletem nos debates/embates
do campo da alfabetização, torna-se importante para lembrar que o tra-
balho na educação não é neutro, e sim profundamente ideológico. Essas
teorias pedagógicas materializam um embate que tem marcado histori-
camente o campo educacional, mas tais marcas são, antes de mais nada,
reflexo do embate político entre forças que pouco (ou nada) avançam
em relação ao movimento de transformação do modo de organização
social capitalista. Nesses termos, compreender as teorias da educação
é basilar para a compreensão das disputas no âmbito da alfabetização,

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

materializadas nos métodos. A questão metodológica, nunca é demais


destacar, reflete uma fundamentação teórico-epistemológica, e essa,
a seu turno, coaduna-se a projetos formativos derivados sempre de pro-
jetos de sociedade.
Na reflexão que delineamos a seguir, tecemos algumas considera-
ções que buscam explicam os métodos prevalecentes, para, na sequên-
cia, promover uma discussão acerca das escolhas teórico- metodológicas
que contribuem para um processo de formação humana com contornos
omnilaterais.

1.2 Sobre (não) alfabetizar pelo viés dos métodos sintéticos e analí-
ticos: inquietações e proposições

À luz da compreensão de que a educação linguística merece espe-


cial atenção quando assumimos sua importância para o percurso forma-
tivo dos sujeitos e, relacionado a isso, que é a escola a instituição respon-
sável por facultar uma formação humana considerando-se os contornos
relacionados à omnilateralidade, ressaltamos que essa formação só se
torna possível por meio da apropriação do patrimônio cultural humano,
rompendo-se com a unilateralidade presente nos métodos pelos quais
muitos alfabetizadores desenvolvem seus planejamentos.
A superação de um ensino pragmático, conforme será demarcado
nesta subseção, em direção a uma educação comprometida com o de-
senvolvimento humano, só se torna real se a instituição escolar se afas-
tar das práticas estruturalistas e reprodutivistas acerca da leitura, es-
pecialmente, e posicionar-se num movimento que se pauta pelo direito
de poder ler (BRITTO, 2003). Nessa direção, afirmamos que tal posicio-
namento não nega a conformação cerebral ou a face biológica do sujeito,
mas não a trata como imutável, como tais teorias geralmente sugerem.
Assumimos essa conformação como base para o desenvolvimento de no-
vas funções, sendo a linguagem concebida como importante instrumen-
to psicológico de mediação simbólica, dado seu papel na (re)formulação
de conceitos generalizados culturalmente.

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Consideramos, nesse sentido, que a criança tem o direto de com-


preender como a escrita funciona, de entender as convenções sociais,
os usos das letras, a segmentação de palavras, ou seja, de se apropriar
da escrita alfabética e das práticas sociais de leitura e escritura. Dessa
forma, é contraditório afirmar que estes conhecimentos só são possíveis
pelo treino mecânico, perspectiva centrada na Pedagogia Tradicional,
na qual a transmissão dos conhecimentos existentes em livros e aposti-
las são transmitidos do professor para o aluno, sobretudo através da me-
morização (SAVIANI, 2012 [1983]).
Dando sequência a essa discussão, apresentamos, em linhas ge-
rais, os métodos de alfabetização sobre os quais temos feito menção
neste capítulo. Em relação aos métodos sintéticos, podem ser conside-
rados o fônico, o silábico e o abecedário. Por meio do método sintético
fônico orienta-se que se inicie o processo de alfabetização pela relação
entre os grafemas e os fonemas, ou seja, entre as letras e os sons. Os alfa-
betizadores defensores do método fônico começam o trabalho com essas
relações pelas correspondências mais simples: os fonemas /p/, /b/, /t/,
/d/, /f/, /v/ e os grafemas que os representam, respectivamente, p, b, t, d,
f, v.
Tendo em vista essa compreensão e sob essa perspectiva, iniciar
desse modo facilitaria o processo de alfabetização, porque tais fonemas
são representados apenas por tais grafemas e, como consequência, esses
grafemas representam sempre esses fonemas; tratam-se de correspon-
dências estáveis, biunívocas (BRASIL, 2008). Este facilitador, no entanto,
coloca em risco o processo de desenvolvimento de leitura e escritura
se tratado de modo isolado, por meio de listas de palavras soltas, bus-
cando-se a memorização das mesmas, ignorando-se o sentido que elas
podem fazer dentro de um determinado gênero discursivo.
No método fônico, quando um mesmo grafema representa mais
de um fonema (o grafema c representa os fonemas /k/ em boca, e /s/
em cebola, por exemplo) ou quando um mesmo fonema é representado
por mais de um grafema (como o fonema /s/ representado por c em cedo;
representado por s em saia; representado por sc em piscina), essas re-
lações são consideradas mais complicadas, ficando para o final do pro-

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

cesso de alfabetização (BRASIL, 2008). Em uma sala de alfabetização,


no entanto, o processo de compreensão destas relações pode se esvair
se, metodologicamente, forem delineados processos de leitura e de es-
crita que estejam focados no treino e na memorização de correspondên-
cias e não na compreensão dos textos objetos desses processos.
No método sintético silábico, o processo de alfabetização acontece
por meio do estudo das famílias silábicas e tem como foco inicial o nome
das letras. Na verdade, porém, na prática pedagógica dos alfabetizadores
que optam pelos métodos sintéticos, tendemos a ver uma adoção destas
três abordagens – silábica, fônica e alfabética (MORAIS, 2012). Muitos
focalizam nas relações entre fonemas e grafemas na escrita e entre gra-
femas e fonemas na leitura, mas fazem isso em interface com as famí-
lias silábicas e recorrem sistematicamente às letras do alfabeto (BRASIL,
2008). Tanto as famílias silábicas quanto as letras do alfabeto normal-
mente estão expostas de modo bem visível nas classes desses alfabe-
tizadores, com cartazes e banners pregados às paredes (de modo que a
criança possa visualizar e memorizar).
Quanto aos métodos analíticos, esses costumam ter como foco
a palavração – o processo se inicia por palavras que fazem parte do uni-
verso dos alfabetizandos – ou a sentenciação – as frases curtas. Às vezes,
o processo contempla pequenas histórias, criadas especificamente para
tal. Assim, da palavra, da frase ou da pequena história o alfabetizador
chega às unidades menores da língua – as relações entre grafemas e fo-
nemas e entre fonemas e grafemas (BRASIL, 2008). Muitos materiais di-
dáticos são produzidos para tal finalidade, em que contos, rimas, lendas
são usados apenas como pretextos para trabalhar com situações isola-
das, e há pouco trabalho com os textos como um todo nas suas relações
com a história e o tempo.
Ao descrever e analisar os métodos, importa destacar que não ne-
gamos o ensino de grafemas e fonemas, e cabe salientar que concorda-
mos com a promoção da consciência fonológica que é defendia há déca-
das por pesquisadores, no entanto, compreendemos que ela não é a base,
o fundamento para o aprendizado da leitura e da escrita, conforme afir-
ma Leal (2019, p. 78):

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

O Método Fônico, além de propor treino de habilidades


que evidências científicas têm mostrado que não são
necessárias, tem muitos limites no que se refere ao tra-
balho para que os estudantes compreendam o funciona-
mento do SEA e desenvolvam de fato a leitura e a escrita
de textos. Embora a consciência fonológica faça parte do
processo de aprendizagem do Sistema notacional, ela
não é suficiente.

Neste ínterim, Morais (2012) afirma que, diferentemente daqui-


lo que defendem os seguidores do método fônico, certas habilidades
de consciência fonêmica não são, de modo algum, requisito para alguém
se alfabetizar. Dessa forma, é equivocado dizer que a consciência fono-
lógica por si só é suficiente para que os estudantes compreendam e se
apropriem do sistema de escrita alfabética. Isso posto, Morais (2019, p.
70) reitera que as habilidades fonológicas não precisam estar desenvol-
vidas para que se alfabetize, nem tampouco é preciso perpassar o ano
letivo treinando a pronúncia de fonemas:

No âmbito do ensino do SEA, sempre defendemos uma


metodologia que promova a consciência fonológica (mas
não certas tarefas de consciência fonêmica que são tor-
turantes e desnecessárias) e sempre entendemos que,
quando a criança entra numa fase silábico-alfabética,
tem o direito de vivenciar um ensino sistemático e pro-
gressivo das relações fonema-grafema e grafema-fone-
ma do português.

Acreditar que fatores biológicos permitem que crianças da mesma


idade consigam operacionalizar segmentos sonoros das palavras, em de-
trimento de focalizar nas oportunidades vivenciadas dentro e fora da es-
cola (essas sim, fatores determinantes para o desenvolvimento das ha-
bilidades com a língua escrita), é apostar num ensino pautado pelas
teorias pedagógicas tradicionais. A alfabetização, no sentido proposto
por nós, deve englobar a consciência fonológica, mas, se o ensino a to-
mar como foco, secundarizando as interações materializadas nos textos,

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

o propósito de fundo da educação estará vinculado à formação de pesso-


as conformistas, não críticas, que obedecem àquilo que lhes é imposto.
Talvez tais definições nos remetam a um processo de alfabetização
pelo qual muitos de nós passamos, com materiais moldados, cuja escrita
era totalmente prescrita para este ensino mecânico, descontextualizado
e fragmentado. O foco na repetição e na memorização imposto por este
sistema nos vendava os olhos, impedindo-nos de conhecer o mundo para
além da escola. Esses encaminhamentos, assim, ficam distantes do pro-
cesso de humanização dos sujeitos, da possibilidade de compreensão
real da sociedade em que vivemos, impondo-se um ensino que convida
a não pensar, referendado pelas teorias pedagógicas anteriormente des-
critas. Gontijo (2015, p. 54), a quem corroboramos, reflete criticamente
sobre a ação educativa de alfabetizar em tais perspectivas hegemônicas:

[...] o processo de desenvolvimento da escrita é pensado de


forma linear, baseado em um constante aperfeiçoamento
sem consideração ao contexto sociocultural e às práticas
de ensino e de aprendizagem. Independentemente do
contexto e das práticas, há um percurso de desenvolvi-
mento da escrita nas crianças que é conhecido previa-
mente. Como consequência, se as crianças passam pelos
mesmos percursos, cabe aos professores conformar prá-
ticas, principalmente avaliativas, que permitam verificar
os níveis alcançados pela escrita infantil.

Portanto, concordamos com a autora, posicionando-nos contra-


riamente a estas teorizações afrontosas que denegam o modo como
a criança aprende, que não levam em conta que tais práticas de ensino
as privam de oportunidades, muitas vezes únicas, de participar da leitu-
ra de textos reais (MORAIS, 2019). Posicionamo-nos frente a uma con-
cepção de formação humana em que se faz necessário compreender o ser
humano historicamente, e compreender historicamente implica conhe-
cer a realidade.
Dando sequência às nossas reflexões, cabe destacar que, a partir
da década de 1980, Emilia Ferreiro passou a ter grande expressão no cam-

100
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

po da alfabetização no Brasil, adotando-se o chamado construtivismo,


o qual trouxe grandes contribuições, mas também deixou grandes lacu-
nas ao “desbancar os métodos tradicionais de alfabetização” (MORAIS,
2012, p. 45) com a teoria da psicogênese da escrita.
Essa estudiosa em menção, em livro muito conhecido que escre-
veu com Ana Teberosky, registrou a forma como crianças, em contato
inicial com a escrita, criam hipóteses sobre o ato de escrever, confirman-
do ou não tais hipóteses, e percorrendo estágios de desenvolvimento
no domínio da escrita, desde um estágio pré-silábico, passando por um
estágio silábico, um estágio silábico-alfabético e, finalmente, um estágio
alfabético (MORAIS, 2012). A autora não propunha um método de al-
fabetização, como fora deliberado nos métodos analíticos e sintéticos,
mas suas ideias, em muitos espaços escolares, foram tomadas como
tal e, em alguns desses espaços, houve compreensões equivocadas sobre
o ideário construído por Ferreiro.
Por outro lado, o fato de Ferreiro descrever estágios pelos quais
a criança passa para chegar ao domínio da escrita, mostrando que o ra-
ciocínio infantil na apropriação do sistema alfabético se dá por hipóte-
ses, motivou compreensões espontaneístas, ou seja, de que não existiria
erro a ser corrigido e de que o papel do alfabetizador não seria o de in-
tervir no processo de desenvolvimento da criança, mas de deixá-la fazer
suas descobertas por si mesma.
Ao mostrar que o sistema de escrita alfabética é um sistema nota-
cional, a teoria da psicogênese da escrita indicava a necessidade de mu-
dar as diretrizes sobre o ensino na alfabetização. Com essas considera-
ções, atreladas, mais à frente, à divulgação dos estudos do letramento,
podemos perceber que, historicamente, a alfabetização passou (e ainda
passa) por momentos turbulentos, onde encontramos posicionamentos
contrários ao ensino das relações entre grafemas e fonemas, posicio-
namentos de quem corrobora esse ensino, e outros, ainda, que fazem
má interpretação das teorias, metodizando superficialmente as mesmas.
Soares (2012) alertou para as consequências desse processo, que ela cha-
mou de “desinvenção da alfabetização”.

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

No entanto, é preciso registrar que Emília Ferreiro contribuiu


para os estudos da alfabetização ao mostrar que as crianças passam
por determinadas fases de descoberta acerca de como a escrita funciona,
e que fazem isso no seu dia a dia, em contextos de sentido; portanto,
a ação escolar que focaliza os quadros silábicos com textos artificiais,
oriundos de cartilhas como a Caminho Suave e seus similares, deixou
de parecer produtiva. Gontijo (2015) concorda com as críticas reali-
zadas por Ferreiro quanto aos métodos, principalmente aquelas diri-
gidas aos métodos sintéticos (fônico, alfabético e silábico), que foram
mais acentuadas, condenando o modo como esses métodos organizam
o ensino e a aprendizagem. Gontijo (2015) salienta que, aos considerar-
mos o sistema de escrita alfabética como um objeto de conhecimento,
a criança aprenderá, por meio do ensino, que este possui regras próprias,
distintas da fala, abolindo-se, assim, um ensino tecnicista.
A autora em menção reflete, ainda, sobre a concepção de sujeitos
autônomos e ativos trazida nos estudos da psicogênese da língua es-
crita, uma vez que deve ser problematizada esta autonomia, pois, para
a linha construtivista, as crianças vão construindo hipóteses, de modo
que o papel do ensino é secundarizado. Pode-se dizer que Ferreiro teve
a preocupação de fazer uma descrição formal da psicogênese da língua
escrita, mas, cabe ressaltar, a língua como objeto social não é o seu foco
de estudo, mas sim, a cognição humana, como se origina e se desenvolve
o conhecimento sobre a escrita.
Ainda em meio à discussão dos métodos, foi na metade da déca-
da de 1990 que surgiram os estudos do letramento, entendidos como
um fenômeno mais amplo, que transcende a escola para ganhar lugar
na sociedade, mas, na visão de muitos pesquisadores, foi tratado como
mais um método de alfabetização. Sobre a compreensão de letramento,
é importante salientar que este não pode ser confundido com um mé-
todo, e não constitui um conjunto de técnicas de alfabetização, como
indicam algumas estratégias elencadas como projetos de letramento,
ou ainda atividades de letramento em que há mera combinação do ensi-
no da codificação com atividades consideradas contextualizadas, dentro
de um texto ou de um tema gerador.

102
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Daí decorre o perigo subjacente a essas interpretações, pois no-


vamente encontramos, em sites, livros didáticos e apostilas, exercícios
separados por níveis, classificando as crianças, contradizendo concep-
ções, escamoteando processos, inferindo-os como se estivessem vincu-
lados a uma perspectiva social, mas de modo totalmente equivocado,
fragilizando, assim, o acesso aos bens culturais por aqueles sujeitos
que já estão à margem de quaisquer outros acessos que possibilitem
a sua humanização.

2 A linguagem escrita e a possibilidade de acesso aos bens culturais

Atualmente, tem havido propostas de retorno ao método fônico,


ignorando-se e até não se reconhecendo o sistema de escrita alfabética
como um sistema que vai além da convenção da escrita, desconsideran-
do-se, assim, a alfabetização como parte de um processo de pertenci-
mento à cultura escrita.
Estudos na área da neuropsicologia têm mostrado que, quando le-
mos, ativamos uma área do cérebro que envolve tanto a visão quanto
a região da fala, o que nos levaria a comprovações científicas de que,
ao ler, relacionamos grafemas e fonemas e, em nome disso, deveríamos
ensinar a leitura focalizando essas relações – das mais fáceis para as mais
complexas, tal qual prevê o método fônico. Entendemos que essas des-
cobertas são importantes e servem para que tenhamos a certeza de que
o processo de alfabetização exige que ensinemos às crianças as relações
entre grafemas e fonemas na leitura, e entre fonemas e grafemas na es-
crita. Porém, discordamos de que isso tenha de ser feito por meio do mé-
todo fônico, da forma como esse método prescreve o ensino da língua
escrita; o ensino do código tem de se dar em contextos de sentido, a par-
tir dos usos da escrita tal qual se dão na sociedade, por meio de gêneros
discursivos.
Nesse sentido, compreendemos que a alfabetização tem papel
central para o desenvolvimento humano se o seu processo for planejado
em aproximação à omnilateralidade, por meio do instrumento psicológi-
co de mediação simbólica (VIGOTSKI, 2007 [1984]), a língua. É por meio

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

desta interação que se promove a aproximação aos conhecimentos cien-


tíficos por parte dos sujeitos, contribuindo para o processo de humani-
zação dos aprendizes que estão em contato com este sistema complexo.
A teoria histórico-cultural de Vigotski se contrapõe às teorias
naturalistas e mentalistas, e as suas postulações apontam para dire-
cionamentos que contribuem significativamente para a (re)definição
da função da escola, principalmente no que diz respeito às concep-
ções de língua e sujeito, uma vez que esse autor afirma que o desen-
volvimento humano é social e que os signos e as relações interpessoais
são mediações – e para a compreensão do conceito de mediação, há de
se considerar a relação entre os homens no meio social e cultural, isto é,
circunscritos na história.
Nesta compreensão, o papel da alfabetização tem um direciona-
mento exclusivo de instrumentalizar o sujeito para a inserção, a partici-
pação e a imersão mais efetivas (VIGOTSKI, 2007 [1984]) na cultura es-
crita. O alinhamento à perspectiva histórico-cultural objetiva voltar-se
contra o pragmatismo e o utilitarismo, indo na contramão de práticas
que ignoram os valores éticos, políticos, sociais e ideológicos que são
exercidos através da leitura e da escrita.
Nessa percepção, Britto (2012) atenta para a necessária transcen-
dência do domínio do sistema de escrita alfabética em si mesmo, ou seja,
o autor preconiza uma educação linguística que ultrapasse a técni-
ca de decifração e ganhe contornos específicos na/da cultura. Assim
ele apresenta a reflexão:

O que se propõe como princípio orientador da ação edu-


cativa é que entrar no universo da escrita é operar com
signos e significados dentro de um universo de valores
e de sentidos historicamente produzidos e socialmen-
te marcados. Operar com esses discursos, em particular
quando se pensa em sujeito autônomo, inserido e indig-
nado, supõe que se possa sempre pôr em questão as for-
mas de alienação e de dominação. (BRITTO, 2012, p. 107)

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Se pensarmos a alfabetização como uma maneira de levar os alu-


nos a irem além de codificar e decodificar, e assim compreender/con-
ceber a formação desses sujeitos de uma forma omnilateral, no senti-
do de consciência, de cultura, de criticidade e de autonomia, a escrita
tem fundamental importância nesse processo de formação, considerada
sua centralidade para a apropriação, por parte dos sujeitos, das obje-
tivações humanas (LEONTIEV, 1978). Considerar a alfabetização ape-
nas como domínio da codificação e como leitura fluente, considerada
a escrita um mero somatório de palavras, impossibilita a compreensão
de que o que lemos e escrevemos são objetos culturais e sociais.
Optar por um ensino mediado por cartilhas, apostilados e livros
didáticos, que condicionam a alfabetização a um sistema unilateral e de-
formativo, num país onde o acesso aos bens culturais é escasso e de-
sigualmente distribuído (BRITTO, 2012), é optar por uma política (não
apenas educacional) falaciosa, desastrosa e manipuladora, em que os di-
reitos das crianças são dispensados. Nessa mesma direção, Britto (2012)
defende que a escrita é poder, e que surgiu com o poder. Portanto, a es-
cola não deve ensinar a escrita como algo pronto e acabado, nem neutro,
uma vez que também essa modalidade da língua é ideológica. E ignorar
essa questão implica em orientar o processo de alfabetização de modo
a contribuir para a lógica da dominação e da fragmentação.
Ao contrário desse posicionamento, compreendemos que tal pro-
cesso deve estar orientado para a formação humana omnilateral (MARX,
2004 [1844]; FRIGOTTO, 1999; FERREIRA JR.; BITTAR, 2008):

Trata-se, pois, de uma proposta educacional radicalmen-


te humanista. [...] opera com o princípio de que tanto o
corpo como a espiritualidade do homem têm que se de-
senvolver de forma harmoniosa e concomitante, ou seja,
o homem não é apenas materialidade corporal ou, muito
menos, se reduz somente à subjetividade adstrita, por
exemplo, a uma visão teleológica do mundo circundante.
(FERREIRA JR.; BITTAR, 2008, p. 645)

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

O que deve estar em foco na ação pedagógica, quando se trata


de alfabetização, é a ideia de que o conhecimento da leitura e da escrita
não se faz pela codificação e decodificação de mensagens; o princípio
que orienta a ação educativa, nessa perspectiva, é o da imersão no uni-
verso cultural, com especial atenção às manifestações escritas mais de-
senvolvidas da cultura humana.
Este nos parece ser o movimento o qual professores envolvidos
com alfabetização precisam compreender – um trabalho educativo
que não priorize apenas uma particularidade do sistema escrito, uma vez
que isso pouco ou nada contribui para a aprendizagem da linguagem
escrita e, consequentemente, para o desenvolvimento e a possibilidade
de enfrentamento da realidade social das/pelas pessoas.

3 Sobre a inaplicabilidade do Plano Nacional de Alfabetização

Tudo o que foi mencionado até aqui, desde o surgimento e a dis-


puta dos métodos e das proposições do construtivismo e dos estudos
do letramento, provoca um debate movido por vários entendimentos,
muitas vezes dissociados do verdadeiro sentido da educação. Não obs-
tante o processo histórico vivenciado e as décadas de pesquisas difundi-
das por estudiosos em alfabetização, surge em 2019 uma política de al-
fabetização de âmbito nacional, provocando críticas e, mais uma vez,
confundindo professores e contribuindo com o retrocesso educacional.
Logo nas primeiras páginas do documento encontramos:

Ao aprender as primeiras regras de correspondência en-


tre grafema-fonema/fonema-grafema, a pessoa começa
a decodificar, isto é, a extrair de uma sequência de letras
escritas a sua forma fonológica (ou pronúncia), e a codi-
ficar, isto é, a combinar em sinais gráficos (letras ou gra-
femas) os sons produzidos na fala. Em outras palavras,
começa a ler e a escrever. (BRASIL, 2019, 18-19)

Vê-se, pois, a ênfase na apropriação das convenções do sistema


de escrita na sua imanência, e o documento justifica tais proposições

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

por meio de dados, resultados de avaliações de âmbito nacional, tal qual


a ANA (Avaliação Nacional da Aprendizagem) e o PISA (Programa
Internacional de Avaliação de Estudante), escamoteando o fato de que
processos formativos de professores alfabetizadores foram interrom-
pidos abruptamente, como é o caso do PNAIC (Pacto Nacional pela
Alfabetização na Idade Certa). Trazer dados que medem o impacto de um
programa que foi interrompido mostra que os especialistas que pensa-
ram esta nova política não estão interessados em promover uma forma-
ção cidadã centrada na omnilateralidade. Morais (2019), diante disso,
chama atenção para aquilo que os professores alfabetizadores têm, ain-
da, condição de operacionalizar: seu planejamento didático, incluindo
as escolhas metodológicas consideradas adequadas para determinado
nível de ensino. Com o Plano Nacional de Alfabetização, a obrigatorie-
dade do ensino através do método analítico, tal qual instituída no século
passado, obrigando profissionais da educação a ensinar por meio de ati-
vidades repetitivas, mecânicas, sem contexto e sem abertura para debate
e reflexão, volta a acontecer no Brasil.
O autor identifica esse Plano como autoritário e mercantilista,
de forma que empresários, políticos e especialistas não demonstram
compromisso com o direito constitucional de ensinar. Nas palavras
de Morais (2019, p. 67):

[...] impondo [-se] o método fônico, querendo varrer da


história recente da alfabetização brasileira o letramen-
to, o cuidado de alfabetizar ao mesmo tempo em que se
ampliam as práticas de leitura e escrita. Os preconceitos
descabidos com o construtivismo e com o letramento, ao
lado da sectária visão de que só estudos experimentais
podem dizer como devemos alfabetizar, são obra dos au-
tores da PNA que, como já dissemos, adotavam esse dis-
curso desde 2003.

Nessa premissa, Mortatti (2019, p. 27, grifos do autor) atenta para


os indícios antidemocráticos desta proposta:

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

a PNA infringe princípios estabelecidos pela Constituição


Federal do Brasil (1988), em particular, no Art. 206: “II–
liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar
o pensamento, a arte e o saber”; e “III – pluralismo de
ideias e de concepções pedagógicas”; [...]
é apresentada por seus autores “[...] como se fosse a ver-
dade científica revelada e o fazem por meio de um discur-
so característico da ‘retórica de púlpito’, como tal, ide-
ológico, autoritário e pseudocientífico.” Trata-se, então,
de “[..] um discurso mobilizador do silêncio obediente,
cuja função mais característica não é impedir as pessoas
de falar ou agir, mas é sobretudo obrigá-las a dizer e fa-
zer o que não querem ou não poderiam dizer ou fazer, se
não com base na fé” [...].

Ao se formular um plano que promete solucionar os problemas


de analfabetismo no Brasil, considerando-se ineficazes os princípios
do construtivismo dos estudos do letramento, conceituando estes como
métodos, os quais, como discorrido na seção anterior, não são métodos,
mas concepções teóricas acerca da leitura e da escritura, visa-se silen-
ciar os avanços já obtidos em estudos sobre alfabetização. O que esta
nova política está fazendo é falsear o que de fato é a ciência.
A introdução do método fônico como a salvação da alfabetiza-
ção esconde uma série de outros projetos que podem colocar em xe-
que a educação do país, tais quais o ensino domiciliar, a defesa da es-
cola sem partido, a inserção e a construção de escolas cívico-militares,
num jogo de interesses políticos, ideológicos e econômicos do Governo
Federal (MORTATTI, 2019).
A pedagogia revolucionária, por outro lado, é crítica, entendendo-
-se, assim, a educação não como redentora da sociedade, como no caso
das Pedagogias Nova e Tradicional, mas como processo fundamental
para que não nos rendamos ao que está posto. Observemos: não bas-
ta que os sujeitos se tornem capazes de codificar e decodificar palavras
e textos com autonomia, como cita o Plano, numa falsa interpretação
de alfabetização, como já tratado anteriormente, “[...] pois se trata

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

de conceito rudimentar de alfabetização, que penaliza alunos de escolas


públicas e reforça as desigualdades sociais” (MORTATTI, 2019, p. 29).
Nesse sentido, concordamos com Morais (2019) quando chama
a atenção para o que a educação brasileira está vivenciando neste mo-
mento, ao impor um método único de alfabetização: não se quer que o
professor seja um agente pensante, que decida sobre como alfabetizar
seus alunos. Portanto, desrespeita, completamente, os conhecimentos
pedagógicos e as experiências dos alfabetizadores. Morais (2006) atenta,
ainda, para os possíveis interesses políticos e empresariais da proposta,
num momento em que muitos profissionais da educação são favoráveis
ao método fônico de alfabetização. O autor afirma que há a necessidade
de rever metodologias, mas que, nesta análise, é preciso compreender
que um único método, desprendido de fundamentos teórico-episte-
mológicos, não é suficiente. Caso contrário, estaremos correndo o risco
de excluir das escolas a sua potência humanizadora.

Considerações finais

As discussões que nortearam este capítulo visam contribuir


para a clarificação acerca de quais são os métodos que foram difundi-
dos no país e quais as teorias instituídas na educação, compreenden-
do- se que teoria e metodologia não podem ser tratadas isoladamen-
te. No entanto, cabe ressaltar que esta inter-relação se dá no campo
epistemológico, por isso a escolha de um método único e exclusivo,
identificado como o “salvador” da alfabetização e dos índices educacio-
nais, não pode ser concebido. Deve-se considerar o percurso formativo
dos professores, especialmente dos alfabetizadores, como condicionan-
te para o processo educacional, dadas as especificidades do seu trabalho
em relação ao ensino da leitura e da escritura, de maneira a se colocar
na contramão de projetos que desqualificam a formação dos professores.
Neste ínterim, compreender que o sistema de escrita alfabética
é um sistema produzido pela humanidade e que não pode ser aprendido
com ações de memorização e repetição é a primeira premissa. Sua apro-
priação deve acontecer no lócus educativo, com a valorização dos arte-

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

fatos escritos que permeiam a sociedade, pois dessa forma não se dará
ênfase ao grafema ou ao fonema, mas sim, será facultada a interação en-
tre os sujeitos por meio da língua escrita. Este percurso de metacognição
não deve se limitar ao comodismo e ao imediatismo da vida cotidiana
(BRITTO, 2012).
Constitucionalmente, a formação cidadã é um direito de todos
e deve ser em prol do desenvolvimento humano. Por isso, as instituições
educacionais e seus profissionais não devem permitir práticas estrutu-
ralistas e reprodutivistas acerca da leitura, oriundas de teorias conver-
gentes com o relativismo moderno e de interfaces com projetos mer-
cantilistas que pouco ou nada contribuem com a educação de meninos
e meninas das camadas populares. Deve haver o cuidado para não cair-
mos em armadilhas escondidas em receitas prontas, por meio de práti-
cas trazidas em apostilas, livros didáticos e, agora, em plataformas virtu-
ais de aprendizagem, cujo objetivo é ludibriar os profissionais que estão
em processo formativo e que ainda não se apropriaram de tais debates
em profundidade.
Considerando o exposto, faz-se necessário que as redes e as escolas
tenham autonomia para definir sua política de alfabetização (MORAIS,
2019), conferindo aos professores o potencial de análise e reflexão sobre
como definir, nos projetos político-pedagógicos, as formas pelas quais
as crianças, desde pequenas, irão se apropriar não somente do código,
mas dos conhecimentos científicos e culturais que devem ser garanti-
dos pela escola, local onde, em nosso entendimento, há a possibilidade
de compreensão crítica da realidade: a apropriação dos conhecimentos
veiculados possibilitará a problematização dessa realidade, de modo
a modificá-la através da interação que é mediada pela escrita.

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

O CONCEITO DE CONSCIÊNCIA FONOLÓGICA


NOS ESTUDOS DA ALFABETIZAÇÃO: O
FOCO NAS UNIDADES LINGUÍSTICAS

Amanda Machado Chraim1

Em meio às diferentes concepções de alfabetização, há determina-


das perspectivas que, pelo fato de tomarem como foco do ensino de lin-
guagem nos anos iniciais da Educação Básica as relações entre grafemas
e fonemas da língua, deslocam a totalidade do processo de alfabetiza-
ção para esse lugar, de maneira que o desenvolvimento da consciência
fonológica é qualificado como preponderante, em detrimento do en-
sino da leitura e da autoria voltadas à humanização dos sujeitos, para
o qual o referido desenvolvimento é parte do processo, mas nunca ponto
de chegada (nem de partida).
Ainda que se pontue, em estudos vinculados a essa perspecti-
va, que há outros aspectos pertinentes à alfabetização – como é o caso
de Scliar-Cabral (2003), autora de grande proeminência nos estudos psi-
colinguísticos, a qual enfatiza que, embora o reconhecimento das letras
e os valores atribuídos aos grafemas para reconhecer a palavra escri-
ta seja um processo imprescindível no ato de ler, não é o único, já que
o objetivo da leitura é chegar à compreensão, à interpretação, à inter-
nalização e ao aprofundamento do conhecimento –, o que se torna ob-
jeto de nossa análise é esse dualismo que subscreve o desenvolvimen-
to da consciência fonológica como prioritário, anterior e preparatório
1 Doutora em Linguística Aplicada pela Universidade Federal de Santa Catarina e membro do
Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Linguística (GEPEL).

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

ao que, depois, será o ensino da leitura. De acordo com Sebra e Dias


(2011, p. 311), baseando-se nas constatações experimentas de que os su-
jeitos apresentam dificuldade em, de forma consciente, discriminar, seg-
mentar e manipular os sons da fala, propõe-se que essa dificuldade seja
“[...] diminuída significativamente com a introdução de atividades explí-
citas e sistemáticas de consciência fonológica, durante ou mesmo antes
da alfabetização”; as autoras ainda afirmam que, por meio da associa-
ção dessas atividades “[...] ao ensino das correspondências entre letras
e sons, as instruções de consciência fonológica têm efeito ainda maior
sobre a aquisição de leitura e escrita”.
Vê-se, pois, que a própria concepção acerca do que seja a leitura
e a escritura é balizada pelos processos de decodificação e codificação,
conforme se verifica no exposto pelas três autoras em menção; isso fica
explicitado quando Scliar-Cabral (2003, p. 34) explica que a leitura en-
volve “[...] o reconhecimento das letras e os valores atribuídos aos grafe-
mas para reconhecer a palavra escrita [...]”, e a escrita seria a conversão
das realizações dos fonemas em grafemas. O nível de leitura prospecta-
do é aquele do estritamente utilitário, sendo alcançado quando o sujeito
‘junta os pedacinhos’ com desenvoltura (OLIVEIRA, 2012). Faz sentido,
à luz de tais preceitos, que o desenvolvimento da consciência fonoló-
gica se torne prioritário, porque assumida uma compreensão de leitura
a qual esvazia as suas dimensões culturais, históricas e políticas, recain-
do a ênfase às investigações das neurociências e da psicologia cogniti-
va, como fica evidente em Dehaene (p. 17): “De todas estas pesquisas,
emerge uma nova esperança: a de ver aparecer uma neurociência ver-
dadeira da educação, na fronteira entre a psicologia e a medicina [...]”.
A Pedagogia é morta.
Diante de tal cenário, o presente capítulo tem como foco a explici-
tação dos fundamentos teóricos e dos encaminhamentos metodológicos
deles derivados no que se refere ao desenvolvimento da consciência fo-
nológica na alfabetização e, para tanto, tendo a teoria histórico-cultural
como base, a exposição analítica lida, necessariamente, com proposições
que assumem que o comprometimento do trabalho com os estudantes
em início de processo de alfabetização deva ser o do desenvolvimen-

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

to da consciência fonológica. Sublinha-se, assim, que tais proposições


importam para esta discussão à medida que serão tensionadas critica-
mente, propondo-se, por fim, a superação de um percurso alfabetizador
unilateral, por meio da assunção de um projeto formativo humaniza-
dor. Nesse sentido, o trabalho não fica voltado à consciência fonológica,
sendo considerado não como objetivo final do percurso, mas como par-
te de um movimento que vislumbra a formação leitora e autora: “Além
das letras e das convenções do uso do código, está a construção de dis-
cursos com referenciais específicos, cujo acesso está articulado aos mo-
dos de se relacionar com os próprios discursos e não com o domínio
do código ou com alguma técnica de ensino” (BRITTO, 2012, p. 106).

1 O desenvolvimento da consciência fonológica com fim em si mesmo:


alfabetização entendida como decodificação e codificação da língua

Para tratar das especificidades do desenvolvimento da consciência


fonológica, importa situá-lo a partir de um conceito mais amplo, o de
metacognição, esta entendida como “[...] o ato de controlar o próprio
ato de pensar, a administração deliberada das formas de raciocínio e de
interação [...]” (BRITTO, 2012, p. 88). Para tanto, assume-se, desde já,
que, em direção a esse controle do pensamento, há que haver ensino,
e os encaminhamentos desse processo se materializam de maneiras dis-
tintas, a depender de qual seja, neste caso, a concepção de alfabetização
adotada. Nesse sentido, nas proposições teóricas ocupadas em discutir
a consciência fonológica, assume-se a dimensão mais geral da consciên-
cia linguística como relacionada à capacidade de compreender, refletir
e manipular – numa manipulação consciente e deliberada (CIELO, 2001)
– as unidades da língua. Em síntese, conforme registram Yavas e Haase
(1988, p. 31), a consciência linguística é “[...] a capacidade do indivíduo
de tratar a linguagem como um objeto de análise e reflexão e é observa-
da claramente em situações em que o indivíduo emite julgamentos sobre
as unidades linguísticas [...]”. O foco, vê-se, está nas unidades da língua
em si mesmas, numa abordagem que as consideram na sua imanência.
O que é próprio da metacognição, tal qual a entende Britto (2012), pare-
ce ser delimitado, esvaziando-se.

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Nessa assunção, pois, de secundarização do conteúdo em nome


da forma, Flôres (1992, p. 50) aponta que “[...] somente quando existe
uma nítida evidência de que as crianças colocam o conteúdo entre pa-
rênteses e refletem a respeito da forma, fazendo comentários ou mani-
pulações deliberadas, é que se pode dizer que estão metalinguisticamen-
te conscientes”. Gough e Larson (1995, p. 15) convergem com a autora
no sentido de corroborar que essa consciência requer que o falante ig-
nore os significados das palavras para, então, prestar atenção na sua es-
trutura e ter a capacidade de examiná-la e manipulá-la. Eis um dualismo
bastante perigoso, que acentua uma metalinguagem esvaziada quando
analisada pelos fundamentos histórico-culturais, que podem ser vistos
nas proposições de Britto (2012, p. 98): “As formas de escrita [...] mos-
tram organizações distintas da língua oral e devem ser objeto de ensino.
Há que se considerar, entretanto, que sua aprendizagem se faz conco-
mitantemente à aprendizagem dos conteúdos que veiculam”. Não have-
ria espaço, assim, para uma etapização da metalinguagem, de maneira
que primeiramente o estudante desenvolveria a consciência fonológi-
ca para, então, dar tratamento aos constituintes mais amplos nos/dos
usos que têm a modalidade escrita como central, materializados sempre
em gêneros do discurso.
É, assim, neste contexto de dualização que parecem se colocar
as teorizações que identificam a consciência fonológica como o foco
da alfabetização, já que, em tese, o desenvolvimento dessa consciência –
hierarquicamente localizada, em tais proposições, antes da consciência
sintática, semântica e pragmática, em razão do nível de aquisição da lin-
guagem (CERUTTI-RIZZATTI, 2004) – garantiria a aprendizagem da de-
codificação e da codificação da língua escrita, por meio da manipulação
das unidades fonológicas constitutivas da fala. Essa consciência impli-
ca diferentes habilidades, que formam um continuum de complexidade
– em tal processo, “[...] estão englobadas as habilidades em reconheci-
mento e produção de rimas, análise, síntese, reversões e outras manipu-
lações silábicas e fonêmicas, além da habilidade em realizar as corres-

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

pondências entre fonemas e grafemas2 e vice-versa” (CIELO, 2001, p. 47).


Para Alves (2009, p. 35), por essas habilidades “[...] serem distintas e por
envolverem unidades linguísticas também diferenciadas, revelam-se
em momentos específicos da maturação [...]” – e salta aos olhos, aqui,
a menção à maturação, o que revela indícios de uma concepção biolo-
gicista dos sujeitos, para a qual o seu desenvolvimento não dependeria
fundamentalmente da aprendizagem, mas seria determinado por aspec-
tos da evolução orgânico-biológica do ser humano.
Depreender os fundamentos que subjazem à concepção de alfa-
betização que temos em foco importa também para que os documentos
oficiais sejam considerados não de forma ingênua ou reificada, mas sob
análise crítica – em se tratando da Base Nacional Comum Curricular,
é essa concepção esvaziada de alfabetização como desenvolvimento
da consciência fonológica que se sobressai: “[...] é preciso que os estu-
dantes conheçam o alfabeto e a mecânica da escrita/leitura – processos
que visam a que alguém (se) torne alfabetizado, ou seja, consiga ‘codifi-
car’ e ‘decodificar’ os sons da língua (fonemas) em material gráfico (gra-
femas e fonemas) [...]” (BRASIL, 2017, p. 89-90). Em relação às especifici-
dades da consciência fonológica, Cerutti-Rizzatti (2004) explica que ela
pode ser dividida em, no mínimo, três subclassificações: consciência
de palavra, de sílaba e de fonema. Essas formas de consciência, afirma
a autora, surgem em momentos diferentes – e, entendemos, a participa-
ção na cultura escrita, bem como a educação escolar, se tornam determi-
nantes para este desenvolvimento –, sendo que a consciência de palavra
é a primeira a se eliciar, seguida pela consciência silábica e, por último,
pela consciência fonêmica.
Quanto à consciência silábica, que “[...] compreende a habilidade
de segmentar palavras em sílabas, aglutinar sílabas para formar palavras
e reconhecer que determinadas sílabas formam palavras” (RIGATTI-
SCHERER, 2008, p. 26), afirma Alves (2009) que é adquirida muito cedo,

2 Dehaene (2012, p. 37), sobre o grafema, explica: “Trata-se de uma ou mais letras que re-
presenta(m) uma só categoria elementar da língua falada, um ‘fonema’. [...] No português,
o fonema /s/ pode estar representado pelo grafema ‘ss’. Nosso sistema visual aprendeu a
tratar esses grupos de letras como uma unidade à parte, inteira, a ponto de não vermos
praticamente mais as letras os compõem”.

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

antes mesmo da alfabetização. O autor atenta para o fato de que a análi-


se das sílabas exige menos esforço por parte do falante do que a análise
dos fonemas, e uma explicação para isso “[...] é que a sílaba, em sua es-
trutura, contém uma vogal nuclear, usualmente caracterizada pelo pico
da energia acústica, e esse pico de energia atua como uma pista auditiva
para facilitar a localização do segmento silábico”, além do fato de, como
registra Cerutti-Rizzatti (2004), a sílaba ser um segmento usado comu-
mente nas interações humanas em esferas distintas, tendo a escansão
silábica objetivos específicos na produção de sentidos. Dada essa relati-
va facilidade, há métodos sintéticos que têm como escopo inicial do tra-
balho pedagógico a sílaba como unidade linguística, conforme já foi dis-
cutido neste livro. Nesse sentido, Frade (2005, p. 27) registra que “[...]
geralmente é escolhida uma ordem de apresentação, [...] ‘do mais fácil
para o mais difícil’, ou seja, das sílabas ‘simples’ para as ‘complexas’. [...]
O método permite que se formem novas palavras apenas com as sílabas
já apresentadas [...]”, e as pequenas frases e textos, conforme a mesma
autora, são formados de maneira forjada apenas para que se lide com as
combinações das sílabas estudadas. Em nome do foco estrito no desen-
volvimento da consciência fonológica, esvazia-se da sala de aula a rique-
za e a complexidade dos objetos culturais que identificam e representam
a humanidade – e que, por isso, importam para a humanização dos indi-
víduos –, focando-se na “[...] apresentação de textos cujo sentido é de-
pendente da composição de sílabas a serem ensinadas” (FRADE, 2005, p.
29). É tautológica, assim, a afirmação de que os encaminhamentos me-
todológicos que têm como centro o desenvolvimento da consciência fo-
nológica se utilizam de textos artificiais e empobrecidos, de maneira que
“[...] o material de leitura mais frequentemente colocado à disposição
do aluno não contribui para o efetivo aprendizado da leitura: são tex-
tos [...] com estrutura e organização que pressupõe o domínio da lei-
tura reduzido à dimensão mecânica de decodificação” (BRITTO, 2012,
p. 111). Os pressupostos para tais encaminhamentos são encontrados
em Dehaene (2012), quando esse autor, nas suas discussões que priori-
zam as descobertas das neurociências, registra que, quando se aprende
a ler (diríamos: a decodificar), a via fonológica é a única utilizada pelos

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

sujeitos. Importaria, assim, sobretudo, focalizar as especificidades pró-


prias dessa via.
Para além do método que, para o recrudescimento da consciên-
cia fonológica, focaliza na unidade da sílaba, há o método fônico, con-
temporaneamente ressurgido com roupagens distintas sobre mesmos
fundamentos, o que será discutido mais adiante neste capítulo. Sobre
a consciência fonêmica, Byrne (1995, p. 41) registra:

Os fonemas [...] não são, geralmente, compreendidos


como unidades discretas da fala; eles estão aglutinados e
integrados em uma corrente contínua de som, existindo
como unidades separadas somente na mente do falante.
É a consciência da natureza psicologicamente segmenta-
da (enquanto oposta à natureza fisicamente contínua) da
fala que chamamos de ‘consciência fonêmica’.

Ainda que não seja consenso entre os estudiosos que discutem


as relações entre consciência fonêmica e formação escolar, entende-se
que essa consciência é geralmente desenvolvida a partir do momento
em que os sujeitos iniciam o processo alfabetização; J. Morais, Mousty
e Kolinsky (1998) afirmam, de modo contundente, que não há acesso
consciente ao fonema enquanto não houver aprendizado do sistema al-
fabético, isso porque, antes desse processo, os sujeitos ouvem as pala-
vras como uma unidade acústica inteira, não tendo a capacidade de seg-
mentá-las em fonemas (ZIFCAK, 1981).
Diante de tais pressupostos, importa explicitar que, embora, sob a
base histórico-cultural, se defenda um ensino não direcionado ao desen-
volvimento da consciência fonológica com fim em si mesmo, há um lu-
gar comum, assumido também por essa base: uma das implicações para
a alfabetização identificada, aqui, por meio de um projeto formativo hu-
manizador – é a compreensão, por parte dos estudantes, de que os gra-
femas na escrita são representações dos fonemas. “É importante que a
criança [qualquer alfabetizando] focalize o aspecto sonoro da língua, ob-
servando segmentos como sílabas, rimas, começos ou finais de palavras.
Somente assim estabelecerá relações entre a escrita e a cadeia sonora

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

da fala [...]” (FRADE, 2005, p. 49). Essa é uma das condições, mas nunca
entendida como pressuposto e nem como ponto de chegada do ensino
de linguagem; a apropriação da modalidade escrita da língua é funda-
mental porque ela é um objeto cultural central para a organização da so-
ciedade (BRITTO, 2012), e o seu estudo teórico e reflexivo se justifica
quando, para além e por meio da apropriação de conceitos – e tais rela-
ções grafonêmicas estão na ordem dos conceitos –, seja garantida a am-
pliação da capacidade de interpretação da realidade e a problematização
da vida concreta (BRITTO, 2012). Torna-se extremamente problemático,
desse modo, quando se trabalha visando à codificação e à decodifica-
ção, ressaltando-se a abstração nos tipos de análises feitas – sobre isso,
Frade (2005) aponta a gravidade de um percurso que focaliza os elemen-
tos do sistema fonológico e ortográfico deslocando- se das necessidades
efetivas de leitura e escritura de textos que fazem parte do repertório
cultural da humanidade.
Diante disso, tem-se como acertado que um dos princípios mais
elementares para o processo de alfabetização é o de que os sujeitos com-
preendam a base e a organização do sistema de escrita, reconhecendo
as relações fonêmico-grafêmicas e grafêmico-fonêmicas que não são,
certamente, simples, já que, como adverte Scliar-Cabral (2003, p. 22),

[...] há grafemas [...] cujo valor é sempre o mesmo, en-


quanto outros dependem da posição e/ou das letras que
vêm antes ou depois destes grafemas; há ainda valores
que dependem do conhecimento que o indivíduo tem so-
bre o português [...]; finalmente, há vocábulos nos quais
há grafemas cujos valores são imprevisíveis [...].

Tais conhecimentos em si mesmos não garantem, no entanto,


que os educandos leiam e escrevam textos que estejam para além de um
viés pragmatista – o que é dever da escola garantir, certamente –, e por
conta disso destaca-se a necessidade de uma elaboração pedagógica vol-
tada à leitura de textos materializados em gêneros do discurso os quais
levem os sujeitos, por meio de um ensino sistematizado, a “[...] operar
com signos e significados dentro de um universo de valores e de sentidos

120
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

historicamente produzidos e socialmente marcados” (BRITTO, 2012, p.


107) – somente para isso é que se justifica a evidente necessidade de um
trabalho que lide com as especificidades grafêmicas e fonêmicas do sis-
tema de escrita alfabética, mas que não se consubstancie a isso. Quando
a alfabetização, dessa forma, é entendida não como domínio de uma téc-
nica, mas, conforme expõe Britto (2012, p. 105), como processo que in-
sere efetivamente a pessoa no mundo da escrita, “[...] de modo que ela
transite pelos discursos mais variados e tenha condições de operar cri-
ticamente com os modos de pensar e produzir da cultura escrita”, ga-
rante-se o desenvolvimento da consciência fonológica como fenômeno
imbricado nesta totalidade, ainda que não se torne, em momento algum,
o fim último do trabalho nos anos inicias da Educação Básica.
Nesse ínterim, conforme já exposto, há muitas proposições teó-
ricas acerca da relação entre consciência fonológica e instrução alfabé-
tica as quais buscam apontar se essa consciência mantém uma relação
de consequência, de correspondência ou de determinação em relação
à apropriação da escrita (CERUTTI-RIZZATI, 2004). Apesar de grande
parte dos estudos convergir para a compreensão de que há, nessa rela-
ção, uma mútua influência, alguns estudiosos tendem a destacar o papel
causal da consciência fonológica em relação ao aprendizado da leitura,
e nessa perspectiva está a compreensão da aprendizagem da língua cir-
cunscrita ao ensino de uma técnica, tomada a linguagem na abstração,
descolada dos conhecimentos históricos, visando um nível pragmático
de alfabetização (BRITTO, 2012), para o qual, estar alfabetizado garante,
sobretudo, que o sujeito “[...] não tropeçará diante de grafemas que não
internalizou [...]” (SCLIAR-CABRAL, 2003, p. 35).
Sobre esta relação, J. Morais (1991) afirma que as pessoas podem
adquirir consciência fonológica sem instrução formal, mas a consciência
fonêmica, conforme já exposto, é adquirida somente quando há instrução
acerca do sistema de escrita. O autor registra, ainda, que, para ser capaz
de analisar a fala em fonemas, o falante deve aprender a ler num sistema
alfabético – os sujeitos, completa, não representam conscientemente
os fonemas se não aprenderam o alfabeto. Ressaltamos que a consci-
ência fonêmica, em si mesma, não é a finalidade do trabalho educativo,

121
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

mas, numa relação dialética com a apropriação da escrita, desenvolve-se


à medida que os conhecimentos vão se mostrando de modo sempre mais
complexo para os educandos – “[...] a alfabetização não ocorre descolada
do uso real da escrita, mas no âmbito da cultura escrita” (FRADE, 2005,
p. 46). Por meio de um destaque feito por Frade (2005, p. 51), salienta-
mos que a análise fonológica, diferentemente do que propõem as pers-
pectivas engajadas em uma alfabetização técnica, não deve se prender
a apenas uma unidade de análise: “Pode- se enfocar, simultaneamente,
o fonema, a sílaba, as partes de palavras, os sufixos e prefixos, [...] pa-
lavras inteiras que podem ser visualizadas na grafia de outras palavras
[...]”, bem como os sentidos do conteúdo próprio de cada texto em foco
no processo educativo.
O que nos parece central, entretanto, e que fica deslocado quan-
do as reflexões se limitam a verificar a relação de causa e consequên-
cia entre consciência fonológica e instrução alfabética, é que há outras
determinações que trazem profundos e significativos impactos quanto
à aprendizagem da linguagem, as quais transcendem abissalmente o de-
senvolvimento em si mesmo da consciência fonológica – em Chraim
(2012, p. 225, grifos do autor), os resultados da pesquisa apontaram para
um dado substancial nesse sentido:

[...] a maior ou menor inserção desses sujeitos em am-


bientações grafocêntricas faz com que sua relação com
a modalidade escrita da língua apresente distinções. [...]
quanto mais efetivamente inserido em ambientes que
têm essa modalidade presente, maior tende a ser a faci-
lidade do sujeito em dominá-la e aprendê-la; e, quanto
mais ele domina a escrita, mais expressivas tendem a ser
suas habilidades em consciência fonológica [...].

No estudo em menção, há ainda a explicitação de que a referi-


da inserção em entornos grafocêntricos incide indiretamente sobre
a consciência fonológica, pelo fato de influenciar – aqui de forma dire-
ta – as reflexões (mais pragmáticas) sobre a língua, favorecendo o pro-
cesso – sistemático e intencional – de alfabetização, o que revela “[...]

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

uma proposição de imbricamento entre inserção cultural e desenvolvi-


mento de habilidades metacognitivas [...]”, de modo que haja uma “[...]
relação de mútua influência [...] entre inserção cultural, apropriação
da escrita e desenvolvimento da consciência fonológica [...]” (CHRAIM,
2012, p. 225). Levando-se em conta que a mera inserção, de modo es-
pontâneo, não garante a aprendizagem sobre a língua escrita, tem-se
aí o papel insubstituível da escola como instância formal de educação.
O foco da formação escolar recairia, assim, em ampliar ao extremo tal in-
serção cultural dos sujeitos, de forma consciente, organizando-se o pro-
cesso educativo à luz dos princípios da continuidade e da sistematicida-
de (SAVIANI, 2013 [1991], já que, para a apropriação dos conhecimentos,
é fulcral a atividade de ensino. A formação para a leitura, em nosso en-
tendimento, ocupa este importante espaço de ampliação e complexifi-
cação da participação dos estudantes na cultura escrita este será foco
da segunda seção deste capítulo, mas antes é preciso dar tratamento
ao que pode ser denominado de ‘ressurgimento’ do método fônico, mo-
vimento subsidiado pelos fundamentos que expusemos até aqui acerca
da alfabetização comprometida com o desenvolvimento da consciência
fonológica.

1.1 O ressurgimento do método fônico: a ênfase (ainda e sempre)


na técnica

Com a publicação da Base Nacional Comum Curricular – a qual,


importa sublinhar, não é um documento curricular, constituindo-se
de diretrizes a serem consideradas para a implementação dos currícu-
los pelas redes de ensino –, evidenciou-se, como já ressaltamos, a defe-
sa, como política pública, de uma formação humana unilateral, porque
voltada ao desenvolvimento de competências, numa explícita alusão
aos fundamentos da pedagogia das competências (PERRENOUD, 1999),
dos quais não nos ocuparemos neste capítulo, dados os limites de espa-
ço. Nesse ínterim, conforme já apontado, a alfabetização é identificada
como decodificação e codificação da língua escrita, perspectiva que, para
Gontijo, Costa e Perovano (2020, p. 4), tem como princípio “[...] reduzir
o que é aprendido nas escolas públicas a um aparato técnico que serve

123
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

de base para a perpetuação das relações sociais e de produção existentes


na sociedade contemporânea”.
Dois anos após a publicação da referida Base Nacional, a qual teve,
na sua elaboração, intensa participação do setor privado (MORTATTI,
2015; FREITAS, 2014; GONTIJO; COSTA; PEROVANO, 2020), concreti-
zou-se um novo documento, por meio de grandes investimentos esta-
tais, este voltado às especificidades da alfabetização no âmbito nacional,
o Plano Nacional de Alfabetização (PNA), propondo-se o método fôni-
co, um ‘método baseado em evidências’, como o percurso metodológico
mais acertado para o ensino de linguagem nos anos inicias da Educação
Básica. Não havendo espaço para o refinamento dessas reflexões, limi-
tamo-nos somente à sublinha da dissimulação de um empreendimen-
to como esse, que visa desmoralizar ou silenciar produções científicas
de grande relevância as quais lidam a partir de outros paradigmas epis-
temológicos (TONET, 2013), servindo muitas delas como alicerce para
os tensionamentos críticos acerca da (in)validade do trabalho a partir
dos propalados métodos de alfabetização, os quais aparecem despren-
didos do arcabouço filosófico- teórico que os sustenta, fazendo-se como
‘receitas’ ou ‘passo a passo’.
Ainda que ao longo das últimas décadas diversos estudos (FRADE,
2005, 2007; MORTATTI, 2000; SOARES, 2004) tenham, a partir da análise
da constituição histórica do campo da alfabetização no Brasil, constata-
do a insuficiência (ou o desastre) dos tão conhecidos métodos de alfa-
betização – sintéticos e analíticos –, o que o PNA faz, no esteio da Base
Nacional Comum, é retomar, como força diretriz, os métodos sintéticos,
por meio do método fônico. O que balizaria, assim, o campo pedagógico
da educação escolar nos primeiros anos do Ensino Fundamental são as
descobertas da neurociência, sendo esta “[...] capaz de explorar as novas
imagens do cérebro a fim de atingir o ótimo nas estratégias de ensino
e adaptá-las a cada cérebro de criança ou adulto” (DEHAENE, 2012, p.
17). Eis, novamente, os indícios da base biologizante com que o ser hu-
mano é compreendido, esvaziando-se o que é determinante para as li-
des com o desenvolvimento humano: os aspectos históricos, culturais
e políticos da formação social. Uma importante referência nos estudos

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

de alfabetização no Brasil, Morais (2019, p. 71), autor vinculado aos fun-


damentos do construtivismo, ao formular críticas contundentes ao PNA,
explica que, apesar de defender o ensino das habilidades em consciência
fonológica, há “[...] evidências de que muitas tarefas de consciência fo-
nêmica são desnecessárias para alguém se alfabetizar e só são resolvidas
quando a criança é capaz de recuperar em sua mente a imagem gráfica
das palavras” – e o estudioso continua, assertivamente: “[...] nossas pes-
quisas demonstram que a consciência fonológica é uma condição neces-
sária, mas não suficiente, para as crianças poderem se beneficiar de um
ensino sistemático de relações entre letras e sons”.
As arbitrariedades visualizadas nas proposições do método fônico
– o qual aparece desprendido de fundamentos epistemológicos, numa
tentativa de escamoteamento das relações intrínsecas entre projeto
de sociedade e formação escolar – são vistas também nos encaminha-
mentos derivados dele, já que a sua organização metodológica se reduz,
conforme registra Zaccur (2012, p. 25), “[...] a uma sequência de dificul-
dades crescentes: num primeiro momento, sons isolados [...] em corres-
pondência com sinais gráficos – as letras [...]; num segundo momento
é a vez de operações de montagem e desmontagem de palavras [...]”.
Numa compreensão de que a soma das partes daria um todo, é somente
na sequência a esse percurso que os sujeitos estariam aptos a estrutu-
rar as palavras em frases, depois em parágrafos e, por último, em textos
(ZACCUR, 2012). Em um grave enxugamento do conceito de alfabetiza-
ção, o sujeito alfabetizado aparece no PNA como aquele que é “[...] capaz
de decodificar e codificar qualquer palavra em sua língua” (BRASIL, 2019,
p. 19). Enfatizadas estão, assim, como temos reiterado, as “relações gra-
fofonêmicas do código alfabético da língua portuguesa” (BRASIL, 2019,
p. 32). Os resultados disso são expostos por Garcia (2012, p. 14-5):

Estes pressupostos nos levam a considerar impossível


“a formação de indivíduos críticos e criativos”, confor-
me todos os professores colocam em seus planejamen-
tos, embora “alfabetizem” as crianças com “o boi baba”
ou “Paloma cola a mala da macaca”, ensinando a, e, i, o,
u, trabalhando com sílabas soltas, palavras isoladas ou

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

frases sem sentido. Por este caminho, ao contrário de se


tornarem críticas e criativas, as crianças se tornarão con-
formistas, facilmente manipuláveis, treinadas que foram
na linha de montagem da escola.

Para finalizar esta seção, e agudizando as críticas em torno do mo-


vimento aqui exposto, realçamos o projeto de sociedade implicado numa
perspectiva de formação humana que considera a alfabetização a partir
do domínio da técnica – alfabetização como desenvolvimento da cons-
ciência fonológica: em se assumindo que a escola é a instituição for-
mal de maior relevância para a formação dos sujeitos sociais, esvaziar
os currículos e submetê-los ao atendimento daquilo que são os ditames
do mercado de trabalho, para o qual basta que os indivíduos saibam li-
dar pragmaticamente com a cultura escrita (e para isso a metacognição
é acessória), é um empreendimento engajado em “[...] manter um mo-
delo econômico baseado na exploração dos indivíduos, na manuten-
ção das desigualdades e, consequentemente, na falta de justiça social”
(GONTIJO; COSTA; PEROVANO, 2020, p. 21).

2 A formação para a leitura e a consciência fonológica como decor-


rência disso: a alfabetização comprometida com a humanização

Já foi objeto de nossas afirmações que não é o desenvolvimen-


to da consciência fonológica um problema ou um processo denegado
pela perspectiva histórico-cultural; pelo contrário, tem-se esse de-
senvolvimento como um dos processos elementares da alfabetização,
já que esta deve estar comprometida com a formação leitora e autora
dos educandos, e para isso é indispensável que se lide metacognitiva-
mente com a linguagem – o foco nas unidades linguísticas não é ante-
rior, mas é uma consequência dentro dessa perspectiva. A grande dis-
tância entre tais proposições e aquelas que tomam alfabetização como
sinônimo de codificação e decodificação é que a consciência fonológica
deve ser trabalhada à medida que as necessidades em torno dos proces-
sos de leitura e de escritura se colocam – as lides com as unidades lin-
guísticas se dão em nome do que deve ser o foco – desde os anos inicias

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

da Educação Básica – da educação em linguagem: um trabalho que “[...]


leve o estudante a perceber a língua e a linguagem como fenômenos
históricos e complexos, a compreender seu funcionamento, usos e for-
mas, bem como a saber usá-la com propriedade nas modalidades oral
e escrita, em especial para estudar e aprender e viver sua subjetividade”
(BRITTO, 2012, p. 84). Para tanto, fica impossibilitado o já mencionado
dualismo entre conteúdo e forma, que vem pela sugestão de que, para
analisar as unidades linguísticas, os educandos deveriam secundarizar
o conteúdo do que é lido. “O que se questiona é a ideia de que o domínio
da escrita se dê pelo conhecimento da técnica de codificar e decodifi-
car mensagens [...]. Isso supõe reconhecer que, para além da decifração,
a intelecção do texto ganha contornos diferentes quando se considera
as formas de realização dos escritos” (BRITTO, 2012, p. 106).
Em se distanciando de uma compreensão de leitura como mera de-
codificação ou, como propõe Dehaene (2012, p. 31), como mera “suces-
são de tomadas do texto” distancia-se, também, de um ensino calcado
no treino, o qual, conforme assinala Zaccur (2012, p. 25), “[...] se reduz
à conexão behaviorista de estímulo e resposta que fixa procedimentos,
sem, necessariamente implicar o pensar”. Para um processo escolar cal-
cado na garantia da aprendizagem da língua como um sistema estável
de regras, despida de suas dimensões culturais e históricas, diminui-se
a importância em torno da escolha, por parte dos docentes, de quais tex-
tos serão levados para a sala de aula, esvaziando-se, também, a própria
potencialidade da alfabetização no que se refere à possibilidade de inte-
ração com textos materializados em gêneros do discurso que transcen-
dam o pragmatismo estreito, oportunizando aos educandos a indaga-
ção e a problematização em torno da realidade natural e social. “Assim,
não se trata apenas de superar a apresentação inicial da cultura escri-
ta sob a forma de letras, sílabas, palavras e frases simples e simplistas,
mas de apresentar a escrita em suas formas mais elaboradas” (MELLO;
BISSOLI, 2015, p. 156).
Com o foco recaindo sobre o desenvolvimento da consciência fono-
lógica, o princípio que rege a escolha de textos se dá pela própria dimen-
são etapística dos métodos que têm o referido desenvolvimento como

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

centro: vai do menos complexo para o mais complexo, numa segmenta-


ção da língua em segmentos sonoros, já que a decodificação está posta
como objetivo, a qual garantiria a formação leitora, como se vê em Sebra
e Dias (2011, p. 311): “[...] após dominar essa habilidade básica de deco-
dificação, o leitor possui os pré-requisitos necessários para desenvolver
suas habilidades de leitura, necessitando basicamente da prática para
alcançar fluência e automatismo”. Fluência e automatismo aparecem
como o ápice dos processos leitores, esvaindo-se toda a complexidade
implicada no ato de ler textos que ultrapassem o cotidiano. Sob essa
lógica, passa-se a compreender que há textos ‘próprios’ para a alfabeti-
zação, sendo criados artificialmente para dar conta das especificidades
do trabalho em torno das unidades linguísticas, ou são escolhidos tex-
tos materializados em gêneros do discurso simples, “[...] tais como listas
[...], bilhetes, convites, fotolegendas, manchetes e lides, listas de regras
da turma etc., pois favorecem um foco maior na grafia, complexifican-
do-se conforme se avança nos anos iniciais” (BRASIL, 2017, p. 93), como
prevê a Base Nacional.
Acompanhamos Britto (2012, p. 126) na sua aguda crítica acerca
do trabalho pedagógico que limita a formação de leitores às interações
com textos que “[...] têm esquemas de interpretação próximos dos modos
de ser do cotidiano, de maneira que não exigem mais do que o domínio
do código e a ação mecânica de decodificação, adquiridos pelo uso e pela
repetição”. Vê-se, pois, que os textos escritos se tornam meros apêndices
em uma perspectiva que centraliza o desenvolvimento da consciência
fonológica, já que importariam, sobretudo, para ilustrar e exemplificar
as relações grafofonêmicas em foco. A leitura desses textos fica por pare-
cer mera consequência do que importa, a verificação das relações entre
grafemas e fonemas, a qual está demarcada como a totalidade da meta-
cognição na alfabetização. Opaco se torna, então, o fato de que os textos
mais desenvolvidos – e mais representativos da cultura escrita – apre-
sentam outras e mais ricas possibilidades de atividade metacognitiva,
já que este tipo de texto escrito, “[...] em razão de sua materialidade, [...]
oferece condições muito particulares de metacognição: a pessoa pode
verificar o que leu, chegar à correção de termos, estabelecer relações

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

explícitas entre partes do texto, enfim, controlar o processo intelectu-


al, o tempo em que esse se realiza e seus resultados” (BRITTO, 2012, p.
106-7).
Além de ser uma ação marcadamente metacognitiva, tal qual ex-
plicita Britto (2015), a leitura deve ser entendida como uma importante
oportunidade para a compreensão e o escrutínio da realidade, para a in-
tervenção na cultura humana (para o que é determinante a sua apropria-
ção), para a produção de conhecimentos e para o conhecer-se a si mesmo
como indivíduo indissociavelmente ligado ao que é da ordem do gené-
rico humano. Como processo vinculado à aprendizagem da escritura,
a leitura deve, também, ser compreendida a partir do conjunto daquilo
que os sujeitos leem, o qual influenciará, certamente, o que têm a dizer
e o quanto têm a dizer sobre as coisas – e os textos dos quais são auto-
res materializará esse movimento. Diante disso, sublinhamos que, ainda
que haja ênfase, nas nossas proposições, à formação de leitores, torna-
-se relevante que, desde os primeiros anos da alfabetização, os educan-
dos se formem também como autores de textos em diferentes gêneros
do discurso: por meio da produção de textos, da leitura de textos escritos
pelos colegas, as necessidades no que se refere à análise das unidades
da língua vão se eliciando, e o ensino sistemático em torno delas se faz
necessário: “O que, em vez de espontaneísmo, denota direcionalidade”
(ZACCUR, 2012, p. 34). Neste percurso que considera, então, que a maior
participação em interações que têm a linguagem escrita exercendo papel
central é um aspecto fundamental para a apropriação de conhecimentos
em torno das relações próprias do sistema alfabético, é no bojo de tais
interações – materializadas em textos – que deve se dar o processo al-
fabetizador, numa mirada de ampliação e complexificação da participa-
ção3 dos sujeitos educandos na cultura escrita. Por meio de atividades
específicas de leitura e de escritura, ao mesmo tempo em que se eliciam
os conhecimentos já consolidados pelos estudantes, aparece também
aquilo que ainda deve ser focalizado em nome da apropriação de concei-

3 Ressalta-se, à luz do materialismo histórico e dialético, que a participação social é com-


preendida a partir da dialética entre objetivação e apropriação – para que tal participação
se dê efetivamente, os sujeitos devem necessariamente se apropriar do que é do âmbito da
história e da cultura, em vistas de novas objetivações possíveis.

129
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

tos fundantes para o – sempre almejado – aprofundamento em relação


à modalidade escrita da língua e suas diversas possibilidades de uso.
Distanciando-se, desse modo, de uma concepção esvaziada de al-
fabetização, para a qual importa pouco a qualidade do conteúdo dos tex-
tos que são levados para a sala de aula, já que o foco recai na forma,
um princípio estruturador do trabalho pedagógico é a consideração
de que ‘ler’, como lembra Britto (2015), é um verbo intransitivo, exigindo
o complemento que determina o que se lê, escolha que na escola com-
pete aos professores, determinando-se, pois, a contribuição (ou não)
de cada leitura para a formação dos estudantes. Reconhecer a forma-
ção que se almeja torna-se, assim, central para o próprio movimento
cotidiano de planejamento e de escolha de textos os quais serão objeto
de leitura: somente por esse caminho é que se pode determinar se uma
leitura contribui para a perspectiva de formação com a qual cada docen-
te e cada coletivo de docentes se filia. As proposições defendidas neste
livro, e mais especificamente neste capítulo, se voltam para as possibi-
lidades de uma formação que transcenda a fragmentação e o unilate-
ralismo próprios dos encaminhamentos que, numa mirada biologicista
dos sujeitos, considerando-os todos dotados das mesmas capacidades
naturais/orgânicas, e assim desconsideram ou minimizam a necessida-
de de apropriação dos objetos culturais mais desenvolvidos no campo
da ciência, da arte e da filosofia (DUARTE, 2016). Entendemos que, como
instrumento cultural de enorme proeminência na organização social,
a modalidade escrita da língua deve ser ensinada, na Educação Básica,
por meio da sua constituição histórica, cultural, ideológica.
Dehaene (2012, p. 16), em suas discussões, escreve: “Nosso siste-
ma escolar [francês], por muito tempo submetido aos riscos da intui-
ção destes ou daquelas que decidem, não pode mais aceitar submeter-se
a reforma após reforma sem que os conhecimentos das neurociências
cognitivas não sejam levados em conta”; concordamos que tais conhe-
cimentos devam ser levados em conta, ainda que sejam apenas parte
de um extenso conjunto de conhecimentos que importam serem conhe-
cidos e dominados pelos educadores, não sendo, assim, determinantes,
já que o desenvolvimento humano está, também, circunscrito a aspectos

130
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

próprios do modo de produção e reprodução da vida – na sociabilidade


capitalista, a própria cisão da sociedade em classes é decisiva para o que
se coloca como possibilidade de desenvolvimento dos educandos.
Para finalizar as reflexões propostas neste capítulo, importa, re-
tomando Britto (2012, p. 96), assinalar que as proposições do campo
da alfabetização, tendo sido nosso foco aquelas que centralizam o de-
senvolvimento da consciência fonológica a partir do ensino das unida-
des da língua, em nome da garantia da alfabetização como decodificação
e codificação, estão todas elas arraigadas a fundamentos filosóficos es-
pecíficos: “Não há neutralidade possível em qualquer forma de conhe-
cimento, independentemente do modo como foi construída e é aplica-
da, de maneira que possa ser apropriada desprendidamente dos valores
ideológicos que carrega”. Reconhecer os fundamentos, ao mesmo tempo
que faculta uma análise mais acurada das proposições e dos encami-
nhamentos apresentados, por exemplo, nos documentos oficiais, amplia
e complexifica as possibilidades voltadas a um percurso educativo que,
ao lidar com a linguagem, compreende-a sempre como articulada “[...]
aos processos sociais de produção do conhecimento e de apropriação
dos bens econômicos” (BRITTO, 2015, p. 140).

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134
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

O PENSAMENTO DE EMILIA FERREIRO:


IMPLICAÇÕES PARA A COMPREENSÃO DO
APRENDIZADO DA ESCRITA E EQUÍVOCOS
DE ABORDAGEM NO BRASIL

Rosângela Pedralli1

Quando tratamos da alfabetização no cenário educacional bra-


sileiro, não é possível produzir quaisquer elaborações sem considerar
as interveniências do pensamento de Emília Ferreiro nas questões te-
órico-pedagógicas e metodológicas e na formação de professores para/
em atuação nesse campo. Isso precisa ser feito, como é o caso nesta obra,
ainda que seja no âmbito de (i) retomada de seu lugar no movimento
histórico, (ii) sua assunção como procedimento metodológico de ensino
em contradição com a própria teorização produzida pela autora e seu
grupo de colaboradores, e (iii) sua forma de conceber o objeto de co-
nhecimento prioritário em sua elaboração teórica, a modalidade escrita
da língua, na relação com a totalidade das manifestações simbólicas e da
história da escrita.
Para esse empreendimento, por incidir diretamente sobre o fe-
nômeno educacional na correlação, própria e inerente, com a ciência,
faz-se necessário situar a matriz epistemológica, portanto filosófica,

1 Doutora em Linguística Aplicada pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística da


Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora adjunta da mesma Universidade.
Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Linguística (GEPEL), do Grupo de
Estudos e Pesquisas Escola de Vigotski (GEPEVI) e do Núcleo de Estudos em Linguística
Aplicada (NELA).

135
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

que ampara a proposta teórica em causa. É nesse esforço que buscamos,


com a brevidade demandada por um capítulo, retomar e discutir esse
arcabouço teórico na relação estreita com o campo da alfabetização,
sem descurar do rigor exigido para a formação do profissional que se
responsabiliza pela apropriação inicial da escrita no âmbito escolar.

1 Epistemologia genética e a concepção construtivista piagetiana

O escopo epistemológico piagetiano, denominado pelo próprio


autor como epistemologia genética, reúne-se a um conjunto de tentati-
vas de explicar o desenvolvimento humano de base biologicista, mesmo
que originalmente buscasse distinguir-se dele. Tais tentativas são gesta-
das no âmbito da psicologia e são desenvolvidas como explicações sobre
o modo pelo qual o ser humano se desenvolve de forma íntegra, no sen-
tido de não serem previstas complementações e tampouco a possibili-
dade de coincidências entre os paradigmas explicativos. No limite, cada
um desses paradigmas se propõe a explicar por uma via distinta e ao
mesmo tempo radicalmente convergente o desenvolvimento de cada
novo ser da espécie humana (DUARTE, 2008). A convergência reside jus-
tamente na base biológica que se projeta nelas, apesar do esforço de al-
gumas para superá-la.

1.1 A apresentação dos fundamentos teórico-epistemológicos pró-


prios do pensamento piagetiano e a impossibilidade de retardar
a crítica

No caso da tentativa proposta na elaboração que define a obra


Epistemologia Genética, a tese central de Piaget (2012 [1990], p. 1) é de
que

[...] o conhecimento não pode ser concebido como algo


predeterminado nem nas estruturas internas do sujeito,
porquanto essas resultam de uma construção efetiva e
contínua, nem nas características preexistentes do ob-
jeto, uma vez que elas só são conhecidas graças à me-

136
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

diação necessária dessas estruturas, e que estas, ao en-


quadrá-las enriquecem-nas (quando mais não seja para
situá-las no conjunto dos possíveis). Em outras palavras,
todo o conhecimento contém um aspecto de elaboração
nova, e o grande problema da epistemologia consiste em
conciliar essa criação de novidades com o fato duplo de
que, no terreno formal, elas se fazem acompanhar de no-
vidades imediatamente elaboradas, e de que, no plano
do real, permitem (e são, de fato, as únicas a permitir) a
conquista da objetividade.

Para a resolução desse problema epistemológico, Piaget (2012


[1990], p. 3) destaca e corrobora a síntese acerca de sua elaboração
em cooperação com seu grupo de pesquisa produzida pela American
Psychological Association: “Ele abordou questões até então exclusiva-
mente filosóficas de uma forma decididamente empírica e constituiu
a epistemologia como ciência separada da filosofia, mas vinculada a to-
das as ciências humanas”. A essa síntese, o autor construtivista fez a se-
guinte complementação: “[...] sem esquecer, naturalmente, a biologia”.
Adiantando, em alguma medida, o conteúdo previsto para a sub-
seção seguinte, acerca dessa síntese sobrelevada pelo autor em sua obra,
vale uma primeira consideração: a impossibilidade original de cisão en-
tre ciência e filosofia. Nesses termos, as elaborações consistentes pró-
prias do campo da epistemologia apresentam consenso sobre a indis-
sociabilidade entre a ciência, em seus distintos padrões, paradigmas
e abordagens, e a filosofia, se não o é por outros motivos, é pela natureza
histórica e, portanto, ideológica da ciência. Limitaremos este capítulo
a uma apresentação apenas esquemática dos padrões científicos, segun-
do elaboração de Tonet (2013), e os três marcos das abordagens epis-
temológicas, apresentados e discutidos por Löwy (1985, 1987)2. Antes,
contudo, vale registrar nossa concordância com Andery et al. (1988, p.
14-5) ao asseverarem que “As ideias são a expressão das relações e ati-

2 Entendemos que a impossibilidade de dar tratamento mais detido a essa questão possa
ser plenamente suplantada pela leitura de Tonet (2013) e Löwy (1985, 1987), produções já
amplamente citadas no âmbito desta obra e reconhecidas no campo.

137
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

vidades reais do homem, estabelecidas no processo de produção de sua


existência”, o que não se dá de modo automático, neutro: “[...] aquilo
que o homem faz, acredita, conhece e pensa sofre interferência tam-
bém das ideias (representações) anteriormente elaboradas [...] [e] geram
transformações na produção de sua existência”, do que a ciência não es-
taria apartada.
No que compete, então, especificamente aos padrões científicos,
Tonet (2013, p. 9) entende que a concepção científica “[...] vai de par,
de modo geral, com a ideia de que a sociedade moderna, ou até aquela
chamada de pós-moderna, é a forma definitiva de sociedade”, posição
que balizaria a defesa de que a assunção de posições sociais e, portanto,
ideológicas significaria postura não científica. Nessa direção, estariam
presentes de forma muito fortemente marcada na história da humanida-
de o padrão de cientificidade greco-medieval e o moderno. O primeiro,
segundo o mesmo autor, expressa a forma de produção do conhecimento
própria da Antiguidade e da Idade Média, sendo regido pela perspectiva
metafísica. O segundo, fundado no primado de que o que se fez até então
não era ciência em razão do alinhamento metafísico assumido, firma-se
como o único modo de produzir conhecimento socialmente válido. Para
o padrão moderno, o polo regente do conhecimento é o próprio sujeito,
não sendo considerada a possibilidade de colocar tal polo em suspeição
em razão de desconsiderar a coexistência entre duas abordagens pos-
síveis no âmbito científico: essa, a gnosiológica, e a ontológica. É jus-
tamente enfrentando essa questão tanto quanto a premissa de que se-
ria possível cindir ideologia e ciência que se eleva o padrão marxiano,
que defenderá que a produção de conhecimento desde a origem sofre
influência e relaciona-se com as posições sociais, seja pela égide da con-
servação ou pelo vislumbre de sua transformação. Para tal, irá inflexio-
nar a verdade moderna e fundar-se sob base ontológica.
Michael Löwy, a seu turno, toma esse embate entre padrões cien-
tíficos pelo corte histórico do padrão moderno, envolvendo mais dire-
tamente as formas de manifestação epistemológicas dele e incluindo
nesse, salvaguardadas todas as distinções muito claramente marcadas
em sua elaboração, a forma de conhecer própria do marxismo. Ao produ-

138
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

zir sua categorização, Löwy (1985, p. 21) enfatiza a necessária assunção


de ideologia e ciência como indissociáveis, as visões sociais de mundo
como denomina, posicionando-as em dois tipos: as visões ideológicas,
“[...] quando servirem para legitimar, justificar, defender ou manter
a ordem social do mundo [...]”, e as visões sociais utópicas, “[...] quan-
do tivessem uma função crítica, negativa, subversiva, quando apontas-
sem para uma realidade ainda não existente”. A partir desses tipos, seria
possível situar as abordagens epistemológicas prevalecentes em: posi-
tivista, historicista e marxista. As duas primeiras, apesar de assentadas
em perspectivas de produção do conhecimento diametralmente opostas,
seriam concretizações do tipo de visão ideológica; enquanto a última,
marxista, seria uma manifestação da visão social utópica. A título de es-
clarecimento, vale apresentar a definição de utopia assumida por Löwy
(1985, p. 21): “É uma aspiração a uma ordem social, a um sistema social
que ainda não existe em nenhum lugar e que, portanto, está em contra-
dição com a ordem existente, com a ordem estabelecida”.
Retomando a proposição epistemológica de Piaget, nessa mesma
direção, importa uma consideração sobre o padrão científico e a concep-
ção de ciência depreensíveis nessa síntese da mencionada associação.
Quer parecer-nos que, ao reverenciar a contribuição da epistemologia
genética pela produção de ‘forma decididamente empírica’ de uma ‘ci-
ência separada da filosofia’, recai-se no padrão científico hegemônico,
porque reconhecido como ‘a’ ciência de fato, o padrão moderno, para
o qual a ideia da neutralidade e a superioridade do sujeito sobre o obje-
to são pontos fundamentais. Por neutralidade aqui, entende-se, dentre
outros focos possíveis, a assepsia das dimensões sócio-histórica e cul-
tural – e, portanto, política – para que se produza conhecimento cien-
tífico genuíno, o que remete a importantes categorias do positivismo
– concepção científica pertencente ao padrão moderno, que tem como
marca nodal a tentativa de haurir da atividade de pesquisa a dimensão
ideológica inerente a ela e, com isso, inclinando-se a uma visão social
de mundo pró-manutenção do status quo, conservadora. Muito desse
alinhamento, cabe esse registro, é confirmado por uma busca por to-
mar a ordem social e tudo o que decorre dela como naturalizadas. Numa

139
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

tentativa de antecipação à crítica e de defesa sobre tal questão, o autor


assim se situa em relação ao embate epistemológico, sem, contudo, su-
perar a mera dimensão retórica:

[...] encontrar-se-á nestas páginas a exposição de uma


epistemologia que é naturalista sem ser positivista,
que coloca em evidência a atividade do sujeito sem ser
idealista, que se apoia igualmente no objeto ao mesmo
tempo que o considera um limite (portanto, existindo
independentemente de nós mas sem ser completamente
alcançado) e que, sobretudo, vê no conhecimento uma
construção contínua. [...] (PIAGET, 2012 [1990], p. 6)

É interessante notar, nesse mesmo fragmento destacado na avalia-


ção da associação, a importância conferida ao caráter empírico que marca
o fundamento construtivista na elaboração piagetiana. Apenas a título
de confirmação: trata-se também aqui de elemento nodal das elabora-
ções teóricas típicas do padrão científico moderno, seja nas derivações
que preconizam a subjetividade (o historicismo de modo geral) ou ainda
a hipercentralidade na subjetividade (o paradigma pós-moderno em sua
vasta gama de refinamentos), seja nas que delimitam as formas de co-
nhecer a realidade ao manejo pelo pesquisador de métodos cristalizados
e pré-concebidos no âmbito de fundamentos teóricos tipificados (gene-
ricamente, o positivismo) (TONET, 2013; LÖWY, 1985, 1987).
Merece ainda uma consideração a complementação apresentada
por Piaget à avaliação da American Psychological Association. Ao apor,
ao registro da revista sobre o alcance da epistemologia genética ‘a todas
as ciências humanas’, o complemento de que não se poderia ‘esquecer,
naturalmente, [d]a biologia’, Piaget (2012 [1990], p. 3) acaba por corrobo-
rar um aspecto nodal dos paradigmas desenvolvimentais biologicistas,
a prevalência da dimensão biológico-orgânica sobre a dimensão social,
o que parece ser referendado quando enfatiza que “[...] as próprias fases
psicogenéticas mais elementares são precedidas por fases que, de uma
certa maneira, são organogenéticas”. A identificação dessa prevalência
biológico-orgânica coloca sob suspeição quaisquer argumentos em favor

140
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

de uma possível aproximação/complementação entre concepção cons-


trutivista e as ideias da Psicologia Social, projetadas especialmente pela
Escola de Vigotski.
Acerca das especificidades que envolvem as tentativas de aposição
das proposições dessas duas formas distintas de explicar o desenvolvi-
mento humano, Duarte (2008, p. 20-1), retomando a prioridade da di-
mensão ontológica do mundo social, a qual envolveria tanto a produção
do conhecimento (sobre o que já tratamos anteriormente neste capítu-
lo) quanto o próprio trabalho educativo, assim escreve:

Em uma perspectiva histórico-social, mais importan-


te do que apenas superar unilateralismos na análise da
relação sujeito-objeto é buscar compreender as especi-
ficidades dessa relação, considerando-se que sujeito e
objeto são históricos e que a relação entre eles também
é histórica. Não é possível compreender essas especifici-
dades quando se adota um modelo biológico da interação
entre organismo e meio-ambiente.

Nesse ponto, vale o que entendemos ser um importante reparo con-


siderando-se o campo da alfabetização. Trata-se da eleição da psicogê-
nese da escrita por Magda Soares, na obra, prêmio Jabuti, Alfabetização:
a questão dos métodos. Ao justificar a contribuição sui generis dessa ela-
boração para a discussão do que a autora denomina de ‘faceta linguística
da alfabetização’ no âmbito dessa mesma obra, evoca os estudos desen-
volvidos por Luria, integrante da Escola de Vigotski, e assim posiciona
a diferença entre ambos:

[...] embora essa teoria [psicogênese da escrita] e a de


Luria analisem aproximadamente o mesmo período
do processo de desenvolvimento da criança [...], dife-
renciam-se em relação ao objeto de conhecimento
privilegiado: na pesquisa de Luria[,] o foco é posto nos
grafismos utilizados pela criança para apoio à memó-
ria, ou seja, o objeto do conhecimento é uso da escrita
pela criança como instrumento; na pesquisa de Ferreiro

141
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

e Teberosky, o foco é posto nos processos cognitivos da


criança em sua progressiva aproximação ao princípio al-
fabético de escrita, ou seja, o objeto do conhecimento é a
escrita como um sistema de representação [...]. (SOARES,
2017, p. 62, grifos da autora)

A nosso ver, parece, no mínimo, uma simplificação abissal posicio-


nar a diferença entre os dois escopos no que a autora chama de ‘objeto
do conhecimento’, no limite, porque a distinção mais elementar entre
ambos reside justamente na prevalência da dimensão biológico-orgânica
da concepção construtivista em relação à dialética entre essa dimensão
e a sociocultural na Psicologia Social, o que certamente oferece implica-
ções para a forma como o objeto língua e sua apropriação são assumidos.
Materializando num contínuo a psicogênese dos conhecimentos,
a partir desses pressupostos e sob a mencionada base biologicista, Piaget
(2012 [1990]) assim define os níveis que, divididos em dois momentos –
um anterior ao desenvolvimento da linguagem pelo indivíduo e outro
já com ela desenvolvida como capacidade –, caracterizariam o desen-
volvimento humano: (i) os níveis sensoriomotores; (ii) o nível do pen-
samento pré-operatório; (iii) o segundo nível pré-operatório – entre 5-6
anos; (iv) o primeiro nível do estágio das operações “concretas” – entre
7-8 anos; (v) o segundo nível das operações “concretas” – entre 9-10
anos; e (vi) as operações formais – entre 11-12 anos.
Ao introduzir a especificação desses níveis na obra em causa, o au-
tor destaca que o conhecimento, ao contrário do que estaria na base
do apriorismo ou do inatismo, por exemplo, não procede nem de um su-
jeito consciente de si mesmo nem de objetos já constituídos, mas de in-
terações que se produziriam “[...] a meio caminho entre sujeito e objeto,
mas em virtude de uma indiferenciação completa e não de trocas en-
tre formas distintas” (PIAGET, 2012 [1990], p. 8) ou, ainda nas palavras
de Piaget (2012 [1990], p. 9), “[...] o problema inicial do conhecimento
será, portanto, o de construir tais mediadores”; eis o foco no sujeito.
Para tal, partir-se-ia da zona de contato entre o próprio corpo e as coisas.

142
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Ao asseverar essa dinâmica a partir da qual se instauraria o conhe-


cimento, e nos parece que, nos termos definidos pelo autor, essa é mes-
mo a palavra mais correta, Piaget, supostamente, estaria assumindo que,
portanto, o homem seria geneticamente social, o que, como defende
e explica La Taille (1992, p. 12), “[...] não significa optar por uma teoria
que explique como este ‘social’ interfere no desenvolvimento e nas ca-
pacidades da inteligência humana”. Interessante que, para precisar essa
definição de ‘homem como ser social’, esse debatedor do pensamento
piagetiano evoca uma passagem do nome do paradigma desenvolvimen-
tal construtivista em que ele justamente posiciona o desenvolvimento
social do ser humano na absoluta correlação com o critério etário, des-
tacando, ao contrário do que parecia ser seu objetivo, a natureza biolo-
gista desse fundamento. Eis a mencionada passagem: “O homem normal
não é social da mesma maneira aos seis meses ou aos vinte anos de idade
e, por conseguinte, sua individualidade não pode ser da mesma qualida-
de nesses dois diferentes níveis” (PIAGET, 1977, p. 292 apud LA TAILLE,
1992, p. 12).
Para dar maior definição a tal aspecto da elaboração piagetiana,
La Taille (1992, p. 14, grifo do autor) vai destacar o conceito de equili-
bração, segundo o qual “[...] o ‘ser social’ de mais alto nível é justamen-
te aquele que consegue relacionar-se com seus semelhantes de forma
equilibrada”. Em consequência dessa forma de compreensão do de-
senvolvimento humano, a personalidade não é mais do que o indiví-
duo submetendo-se voluntariamente às normas de reciprocidade e de
universalidade, o que reforça a um só tempo os caráteres biologicista
e adaptativo da concepção em foco, além de posicionar inegavelmente
o construtivismo, defendido pelo autor, em alinhamento à visão social
de mundo conservadora.
É especialmente sobre tais pressupostos evidenciados nesse
fundamento que, na subseção que segue, apresentaremos os limites
que identificamos nele e em teorias dele derivadas, do que é exemplo
a teorização de Ferreiro e colaboradores, principalmente para a educa-
ção escolar, incluindo-se obviamente a alfabetização.

143
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

1.2 Crítica ao escopo epistemológico piagetiano à luz de uma pers-


pectiva crítico-transformadora

Uma matriz teórico-filosófica e pedagógica crítico-transformado-


ra certamente entende haver problema em assumir as dimensões bio-
logista e adaptativa como pressupostos tanto para pensar o projeto so-
cial quanto para pensar projetos formativos, a exemplo dos escolares,
que assumem concepções de desenvolvimento humano normalmente
na prevalência biológico-orgânica, como é o caso do construtivismo.
De forma geral, essas concepções envolvem o processo de conhecimento
e podem ser classificadas em três grandes grupos, quais sejam: inatismo/
apriorismo, empirismo e interacionismo (BECKER, 1993 apud DUARTE,
2008), suscitando compreensões de que, sendo esses os únicos grandes
marcos possíveis para pensar o desenvolvimento humano, no último
desses grupos, estariam reunidos tanto Piaget quanto Vigotski, sendo
o último classificado como sociointeracionista, com o que temos discor-
dância radical, nos termos antecipados na subseção anterior, mas para
o que vale retornar, dada a projeção dessa tentativa de reunião também
no campo da alfabetização.
Nessa direção, importa retomar e ampliar as distinções entre
as ideias dos autores em razão do fundamento epistemológico que as
sustentam. No caso do construtivismo piagetiano,

Nenhum leitor da obra do pensador genebrino desconhe-


ce que ele interpretava o desenvolvimento da inteligên-
cia como parte do processo de adaptação do indivíduo ao
meio ambiente, numa direta referência ao processo bio-
lógico de interação adaptativa entre organismo e meio
ambiente. (DUARTE, 2000, p. 91)

O meio ambiente, nos termos assumidos pela epistemologia ge-


nética, “[...] é definido sempre por referência ao sujeito” e não como
existência independente da consciência dele, o que leva a compreensão
de que “[...] o conhecimento é algo que se refere não ao mundo exte-
rior, mas sim aos processos e às estruturas de percepção e ação do su-

144
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

jeito” (DUARTE, 2000, p. 93). O desenvolvimento humano, à luz dessa


concepção, portanto, seria sinônimo de adaptar-se (logo, acriticamente)
ao meio ambiente (às realidades natural e social), para o que a constru-
ção de conhecimento desde o próprio sujeito seria elemento constituin-
te, sendo a transmissão do conhecimento reservada para casos em que
ela fosse inevitável (DUARTE, 2000). Nas palavras de Azenha (1993, p.
24), “[...] ser bem sucedido na perspectiva biológica implica a possibili-
dade de conseguir um ponto de equilíbrio entre as necessidades biológi-
cas fundamentais à sobrevivência e as agressões ou restrições colocadas
pelo meio à satisfação dessas mesmas necessidades”.
Assumindo como pressuposto a ideia de que, afora as claras dis-
tinções entre esses três grupos, eles convergem na assunção de um mo-
delo explicativo biológico, naturalizante do desenvolvimento humano,
e marcando a distinção entre tais concepções expressas por esses grupos
e um modelo desenvolvimental de matriz histórico-social, Vigotski e sua
Escola colocam a apropriação do conhecimento produzido historica-
mente num lugar destacado para o desenvolvimento humano, uma vez
que seria justamente tal apropriação o elemento fundamental para
a promoção da humanização, o que envolve a confirmação para si de
capacidades humanas garantidas ontogeneticamente apenas como po-
tência. De acordo com Duarte (2008), quando uma concepção de desen-
volvimento humano que denega ou, pelo menos, secundariza esse cará-
ter histórico, passa a balizar projetos educacionais, impõe implicações
pedagógicas como “[...] a secundarização do ato de ensinar e da trans-
missão de conhecimentos” (DUARTE, 2008, p. 21). Nesse sentido, o custo
para a formação humana não pode ser desprezado, uma vez que se assu-
me que, na esteira da adaptação humana e da naturalização/biologiza-
ção de seu desenvolvimento, os projetos formativos teriam como fim a
conservação da ordem vigente, como naturalmente presente e não como
resultado da ação humana no curso da história.
Contribuindo e adensando essa posição acerca do construtivismo,
Rossler (2005) destaca quatro pontos que poderiam explicar a adesão
a esse ideário pela educação escolar, ainda que Fosnot (1998), a partir
de alinhamento compatível com as ideias de Piaget, defenda que ele

145
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

não se trate de uma teoria de ensino. O primeiro deles diz respeito


ao poder de sedução que a concepção teria em razão da aproximação
a elementos fortemente ideológicos e sedutores reificados no cotidia-
no da sociedade capitalista. No que tange ao segundo ponto, em razão
desse caráter de sedução, portanto de alienação, o construtivismo te-
ria aderência por ser uma “[...] teoria de natureza imediata, espontânea,
pragmática, carente de reflexão, de rigor lógico [...]” (ROSSLER, 2005, p.
16). Já o terceiro desses pontos põe em destaque a alienação humana
e defende

A presença de processos de sedução na vida dos indiví-


duos e, sendo assim, a sedução nas atividades que com-
põem a prática educativa dos educadores é, por sua vez,
uma manifestação da alienação desses mesmos educa-
dores, assim como da alienação de sua prática, de seu
pensamento e, em última instância, de sua formação [...].
(ROSSLER, 2005, p. 16)

Por fim, o último dos pontos dá relevo à relação entre o elemen-


to de sedução na propagação de determinadas teorias da educação e a
ocorrência dos modismos educacionais (ROSSLER, 2005).
Isso posto, por ilação, é possível entender que a adesão por profis-
sionais da educação a uma concepção não pautada na reflexão, na cons-
ciência e na crítica revelaria um indivíduo profundamente movido pela
subjetividade em si e, consequentemente, alienado, o que nos leva a um
ponto fundamental, se assumirmos as demandas da atividade profissio-
nal do professor e as implicações delas para a sua formação: é possí-
vel pensar um currículo voltado para um projeto formativo humaniza-
dor, bem como planejar/organizar/sistematizar um trabalho educativo
com vistas a contribuir para tal objetivo se não se desenvolveu em si
formação correlata? Se não se entende, no limite, que essa seria a verda-
deira função social da escola? Nesse sentido, os argumentos de Rossler
(2005) e a própria análise da epistemologia genética, ainda que incipien-
te no âmbito deste capítulo, parecem por si só apontar para a resposta
a essas questões imbricadas.

146
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Parece-nos, como veremos na seção que segue, que a adesão


ao pensamento de Ferreiro e colaboradores, fundamentada nessa epis-
temologia, na forma de uma orientação teórico-metodológica no cam-
po da alfabetização, carrega consigo essas mesmas contradições. Eis o
que se busca desvelar.

2 O pensamento de Emília Ferreiro como materialização do constru-


tivismo no âmbito da alfabetização: implicações e equívocos

É certo que as discussões no campo da alfabetização no cenário


nacional enfrentam ou, no mínimo, se defrontam com uma pergunta
elementar e ao mesmo tempo complexíssima: como garantir que alunos
das classes populares, sejam eles adultos ou crianças, se alfabetizem?
As respostas a essa questão serão tão diversas quanto as ideias do que
signifique estar alfabetizado. É nesse sentido que o trabalho teórico de-
senvolvido por Ferreiro e colaboradores pretendeu avançar e é sobre al-
guns elementos considerados centrais a essa teorização que nos debru-
çaremos, ainda que brevemente, quiçá esquematicamente.

2.1 O fundamento, as elaborações teóricas e as implicações para


a alfabetização

As autoras produziram o que entenderam converter-se em uma


contribuição ao campo da alfabetização, como a própria autora enuncia,
a partir de fundamento epistemológico piagetiano: “Em todas as mi-
nhas apresentações e publicações anteriores tenho afirmado que a te-
oria de Piaget foi minha principal fonte de inspiração para a pesquisa
sobre leitura e escrita” (FERREIRO, 2009 [1986], p. 9). Do mencionado
fundamento, a autora haure, além de outros aspectos, a pergunta funda-
mental que orientou a pesquisa desenvolvida por Piaget – como passar
de um estado menor a um estado maior de conhecimento? –, para cuja
resposta ela considerou fundamental “[...] procurar identificar os modos
de organização relativamente estáveis que podem caracterizar os níveis
sucessivos de conhecimento de um dado domínio [...]” (FERREIRO, 2009
[1986], p. 9).

147
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Perscrutando essa agenda, é que a autora, em coautoria com Ana


Teberosky, chega à contribuição possivelmente mais conhecida de sua
elaboração, os estágios implicacionais da aquisição3 da escrita, quais
sejam: pré-silábico, silábico-alfabético e alfabético4. Tais estágios são,
na exposição das autoras, divididos em cinco níveis, conceptualizados
da seguinte forma:

NÍVEL 1 – Neste nível, escrever é reproduzir os traços típi-


cos da escrita que a criança identifica como a forma básica
da escrita. Se esta forma básica é a escrita de imprensa,
teremos grafismos separados entre si, compostos de li-
nhas curvas e retas ou de combinações entre ambas. Se a
forma básica é a cursiva, teremos grafismos ligados entre
si com uma linha ondulada como forma de base, na qual
se inserem curvas fechadas ou semifechadas. (FERREIRO;
TEBEROSKY, 1999, p. 183, grifos das autoras)
NÍVEL 2 – A hipótese central nesse nível é a seguinte:
Para poder ler coisas diferentes (isto é, atribuir signifi-
cados diferentes) deve haver uma diferença objetiva nas
escritas. O progresso gráfico mais evidente é que a for-
ma dos grafismos é mais definida, mais próxima à das
letras. Porém o fato conceitual é o seguinte: segue-se
trabalhando com a hipótese de que faz falta uma certa
quantidade mínima de grafismos para escrever algo, e
com a hipótese da variedade nos grafismos. (FERREIRO;
TEBEROSKY, 1999, p. 189, grifos das autoras)
NIÍVEL 3 – Este nível está caracterizado pela tentativa de
dar um valor sonoro a cada uma das letras que compõem

3 Mantemos, ao longo da remissão direta à proposta teórica dessa autora, o termo aquisição
em oposição ao conceito vigotskiano de apropriação, por entendermos que, sob a lógica de-
fendida por Ferreiro e Teberosky, trata-se de um processo que, ao sobrepor a natureza bio-
lógico-orgânica à ‘descoberta’ do sistema de escrita alfabética produzido historicamente e
ao complexo processo de incorporação à segunda natureza que dela decorre, ele explicaria
melhor os limites da concepção em causa.
4 No âmbito deste capítulo, com os objetivos que movem nossa proposta de contribuição,
não nos ocuparemos de descrever tais estágios, limitando-nos a apresentar as conceptuali-
zações dos níveis, por serem eles já amplamente reconhecidos por profissionais que atuam
na alfabetização. A discussão original pode ser encontrada na obra Psicogênese da língua
escrita, sob autoria de Emília Ferreiro e Ana Teberosky e publicada em 1999.

148
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

uma escrita. Nesta tentativa, a criança passa por um pe-


ríodo da maior importância evolutiva: cada letra vale por
uma sílaba. É o surgimento do que chamaremos a hipóte-
se silábica. Com esta hipótese, a criança dá um salto qua-
litativo com respeito aos níveis precedentes. (FERREIRO;
TEBEROSKY, 1999, p. 193, grifos das autoras)
NÍVEL 4 – Passagem da hipótese silábica para a alfabéti-
ca. Vamos propor, de imediato, nossa interpretação deste
momento fundamental da evolução: a criança abandona
a hipótese silábica e descobre a necessidade de fazer uma
análise que vá “mais além” da sílaba pelo conflito entre a
hipótese silábica e a exigência de quantidade mínima de
grafias (ambas exigências puramente internas, no senti-
do de serem hipóteses originais da criança) e o conflito
entre as formas gráficas que o meio lhe propõe e a leitu-
ra dessas formas em termos de hipótese silábica (confli-
to entre uma exigência interna e uma realidade exterior
ao próprio sujeito). (FERREIRO; TEBEROSKY, 1999, p.
196/209, grifos das autoras)
NÍVEL 5 – A escrita alfabética constitui o final desta evo-
lução. Ao chegar a este nível, a criança já franqueou a
“barreira do código”; compreendeu que cada um dos ca-
racteres da escrita corresponde a valores sonoros meno-
res que a sílaba, e realiza sistematicamente uma análise
sonora dos fonemas das palavras que vai escrever, isto
não quer dizer que todas as dificuldades tenham sido
superadas: a partir desse momento a criança se defron-
tará com as dificuldades próprias da ortografia, mas não
terá problemas de escrita, no sentido estrito. (FERREIRO;
TEBEROSKY, 1999, p. 213, grifos das autoras)

Trata-se de um trabalho amplamente conhecido e que permitiu


a identificação desses modos de organização precedentes à representa-
ção5 alfabética da linguagem e o ordenamento em que se sucedem:

5 Para Kosik (1976 [1963], p. 15), “A representação da coisa não constitui uma qualidade na-
tural da coisa e da realidade: é a projeção, na consciência do sujeito, de determinadas con-
dições históricas petrificadas”.

149
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

[...] primeiro, vários modos de representação alheios a


qualquer busca de correspondência entre a pauta sonora
de uma emissão e a escrita; depois, modos de represen-
tação silábicos (com ou sem valor sonoro convencional)
e modos de representação silábico-alfabéticos que pre-
cedem regularmente a aparição da escrita regida pelos
princípios alfabéticos. (FERREIRO, 2009 [1986], p. 10)

Tais achados são convergentes com o compromisso de “[...] com-


preender a ‘lógica interna’ desses modos de organização, bem como
a de compreender as razões da substituição de um modo de organização
por outro [...]” (FERREIRO, 2009 [1986], p. 10), o que a autora define ser a
tarefa de quem pensa sobre a gênese da escrita, entendemos, portanto,
por pesquisadores e professores que atuam, ao menos, na alfabetização.
Dessa assertiva, é depreensível uma premissa fundamental: a teoriza-
ção em causa, como teorização que é, não se propõe a definir ou mes-
mo apresentar caminhos metodológicos para a ação docente no âmbito
da alfabetização.
Em decorrência dessa agenda pautada em compromisso teórico,
parece ocupar os profissionais os ‘problemas cognitivos’ identificados
em sujeitos em processo de alfabetização, sendo que a maioria deles te-
ria relação com a complexidade envolvida na simbolização não icônica.
Essa forma de simbolização típica do escrito, mas não apenas, envolve-
ria a ‘construção’ de um conhecimento sobre regularidade combinatória
entre dois tipos de linhas, os pauzinhos e as bolinhas, e sobre a denomi-
nação de alguns como letras e outros como números (FERREIRO, 2009
[1986]). Em síntese, segundo destaque da própria autora, o que estaria
em questão nesse processo e que está envolvido em apenas um desses
muitos ‘problemas cognitivos’ apresentados pelos sujeitos em processo
de alfabetização seria “[...] a relação entre o todo e as partes que o cons-
tituem” (FERREIRO, 2009 [1986], p. 11). Nessa direção, a autora argu-
menta que

Desde o momento em que uma escrita é considerada


como composta de partes (e, particularmente, desde o
momento em que se estabelece o que chamamos a ‘hi-

150
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

pótese da quantidade mínima’), a coordenação destas


partes com a totalidade constituída começa a tornar- se
problemática. De início, os elementos gráficos não são
mais que peças necessárias para constituir uma totali-
dade ‘legível’. As propriedades atribuídas às partes; um
nome atribuído à escrita toda também pode ser lido em
cada um dos elementos gráficos constitutivos, apesar do
fato de que qualquer desses elementos, tomado fora da
totalidade, perde a propriedade de ser significante (por-
que ‘com uma só letra não se pode ler’). (FERREIRO, 2009
[1986], p. 11)

Nesse ponto de sua argumentação, a autora evoca a noção de tema-


tização, tal qual definida no escopo piagetiano. Para ela, trata-se de no-
ção fundamental para compreender a concatenação entre partes e todo,
na medida em que algo que foi utilizado como instrumento do pensa-
mento pode converter- se em objeto do pensamento, reposicionando-se
como elemento do conhecimento, por implicar determinado grau de to-
mada de consciência, no caso específico focalizado pela autora, sobre
o conhecimento do sistema de escrita alfabética. Cabe destacar que aqui-
lo que a autora trata como problema cognitivo, envolvido na aquisição
inicial da escrita no que compete à coordenação entre partes e todo, en-
volveria tanto o processo de produção escrita quanto de leitura e afeta-
ria todos os níveis linguísticos, a exemplo das letras que compõem a pa-
lavra, das séries de letras que compõem um texto maior, dentre outros.
Os limites que vemos em compreensões congêneres no âmbito
da apropriação da escrita e do próprio escopo teórico para pensar os pro-
cessos de planejamento/organização/sistematização do trabalho educa-
tivo na alfabetização serão enfrentados na subseção a seguir.

2.2 Os limites inerentes à proposição teórica e equívocos na inter-


pretação do escopo

Comecemos nossa discussão neste ponto do trabalho pelo


que Ferreiro (2009 [1986]) classifica como “Os problemas cognitivos en-

151
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

volvidos na construção da representação escrita da linguagem”, ênfa-


se de produção teórica com esse título que apresenta discussão sobre
o que poderíamos entender como reflexão sobre o processo pedagógi-
co, com destaque para o fato de que constitui uma reflexão enfocada
no indivíduo para o qual a atividade principal é a aprendizagem, e não
no professor. No texto em tela, originalmente uma comunicação em jor-
nada de discussões promovida por Instituto Municipal de Educação bar-
celonês, voltado à discussão pedagógica portanto, o que a autora coloca
em relevo para tematizar o que entende serem ‘grandes problemas cog-
nitivos descritos em outros domínios’ são os problemas de classificação
necessariamente enfrentados quando se procura compreender a repre-
sentação escrita.
Disso, inferimos que o que ela concebe como ‘problemas cogniti-
vos’ são, à luz de uma concepção histórico-cultural de desenvolvimento
humano, na verdade, regularidades próprias do sistema de escrita alfa-
bética, as quais chegou-se historicamente e ainda não foram compreen-
didas e, portanto, não foram apropriadas pelos indivíduos em processo
de alfabetização nesse caso – tal questão será enfrentada na terceira par-
te desta obra. Sob essa lógica, certamente a questão não seria da ordem
de problemas ou mesmo dificuldades do indivíduo, mas de um processo
de apropriação em curso que poderá ser potencializado pela ação delibe-
rada do indivíduo mais desenvolvido, criando motivos e, com isso, pro-
movendo necessidade da linguagem escrita, explicando e evidenciando
regularidades próprias desse sistema, de forma a contribuir para um pro-
cesso de diferenciação cada vez maior e de complexificação das relações
que envolvem esse mesmo sistema, compreendido como constitutivo
da linguagem escrita, uma das formas de simbolização produzidas pelas
gerações anteriores.
Observe-se que, contrariamente à perspectiva assumida pela
autora, sob a lógica da aposta da Psicologia Social, a apropriação
da linguagem escrita obedece a um processo relacionado diretamente
com atividades humanas preponderantes na cultura em cada momento
do desenvolvimento humano. Como processo sociocultural que é, assim,
não pode ser tomado como alcançável desde o próprio sujeito e tampou-

152
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

co se dar de forma incontrolável e imprevista, porque justamente depen-


dente da intervenção dos outros com os quais o indivíduo em processo
de apropriação compartilha em maior ou menor grau a cultura, os obje-
tos e a compreensão da realidade, todos elementos históricos.
Essa assertiva, um pressuposto inalienável da filosofia da práxis
de base materialista histórica e dialética, está em desacordo desde a ori-
gem com as premissas tomadas pela autora, quais sejam: de um lado,
a prevalência da base biologicista que ampara a explicação sobre o pro-
cesso de apropriação da linguagem escrita por cada novo ser da espécie
humana, inferível também do emprego do termo ‘problema cognitivo’, e,
do outro, a forma intuitiva com que parece explicar o desenvolvimento
desse mesmo processo, depreensível, a título de exemplo, de uma im-
portante síntese apresentada:

[...] se os conflitos surgem no centro da evolução (porque


a principal razão para a elaboração de sistemas novos e
mais coerentes é na verdade a necessidade de superar as
contradições, cf. Piaget, 1975), não se pode descrever o
desenvolvimento como uma sucessão de conquistas.
Progredir na alfabetização adentro não é uma jorna-
da tranquila. Encontram-se muitos altos e baixos neste
caminho, cujos significados exatos precisam ser compre-
endidos. Como qualquer outro conhecimento no domí-
nio-cognitivo, é uma aventura excitante, repleta de
incertezas, com muitos momentos críticos, nos quais
é difícil manter a ansiedade sob controle. (FERREIRO,
2009 [1986], p. 64, grifos nossos)

Tendo essa forma de compreender a relação dos seres humanos


com a escrita, neste ponto de nossa discussão, a finalização do capítulo
destinado a esse escopo no âmbito desta obra, esperamos ter apresen-
tado elementos teórico-conceituais que permitam, dentre outras refle-
xões, o posicionamento da proposição teórica de Ferreiro e colabora-
dores no movimento histórico, relevando sua vinculação estreita com o
construtivismo piagetiano, compreendido como uma tentativa de supe-

153
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

ração dos paradigmas desenvolvimentais apriorista e empirista e dia-


metralmente distinto da concepção histórico- cultural. No que compete
mais especificamente ao campo da alfabetização, tal proposição parece
servir bem ao embate pedagógico, que refletia/reflete, também nesse
campo, a oposição entre os projetos conservadores, de diferentes matri-
zes, e os crítico-transformadores.
É, em boa medida, em razão desse mesmo embate, que ten-
de a apresentar sua face mais nítida na eleição de formas de conceber
o processo de aquisição/apropriação pela via metodológica estrita, que a
projeção de uma visão contraditória com a própria elaboração teórica
da autora em coautoria com Ana Teberosky parece ganhar lugar no cam-
po da alfabetização: como um delineamento metodológico novo (ino-
vador?) para o trabalho na alfabetização. Nesses termos, as indicações
metodológicas presentes nos trabalhos de Ferreiro aqui considerados,
derivadas da identificação do que ela chama de modos de organização
relativamente estáveis que podem caracterizar os níveis sucessivos de co-
nhecimento, a exemplo dos estágios implicacionais e dos níveis em que
esses se desdobram, parecem apresentar uma contradição de outra or-
dem, agora interna à própria elaboração: a aproximação de uma base
desenvolvimental biologicista para explicar o desenvolvimento humano
e uma perspectiva teórico- metodológica imprecisa e aleatória, quase
acidental.
Essa posição, como não poderia deixar de ser, por sua vez, inci-
de sobre a forma como o objeto de conhecimento prioritário em sua
elaboração teórica, a modalidade escrita da língua, é concebido. Trata-
se de uma concepção representacional no sentido mais rudimentar
do termo, constituído num movimento adaptativo por cada indivíduo,
que permitiria a superação de problemas cognitivos próprios e inerentes
à compreensão da escrita. O sistema escrito, na medida mesma em que
precisaria ser compreendido, o seria na dependência estrita da perfor-
mance individual daquele que a compreende. Vale, nesse ponto, enfa-
tizar uma das muitas distinções entre a concepção assumida por Emilia
Ferreiro (2009 [1986], p. 11) e a histórico-cultural: para esta, a totali-
dade das manifestações simbólicas e da história da escrita é, na rela-

154
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

ção dialética, ponto de partida e de chegada do processo de apropriação


da linguagem escrita, ao passo que, para aquela, “[...] as propriedades
atribuídas ao todo não diferem das propriedades atribuídas às partes
[...]”. Disso decorreria que a ‘hipótese da quantidade mínima’ seria fun-
damental e explicativa de toda a passagem, ainda que não linear, pelos
estágios implicacionais da escrita, materializados na conceptualização
dos níveis um a cinco, apresentados anteriormente neste capítulo.
Sendo sobremaneira da ordem da agenda individual essa passa-
gem do saber menos para o saber mais, também em relação à escrita,
projeta-se, na elaboração teórica enfocada neste capítulo, a noção de su-
jeito empírico. A noção em destaque enfatiza (ou circunscreve?) o su-
jeito no exercício da atividade prático-sensível; no bojo da qual e como
fim em si mesmo, ele elaboraria suas próprias representações das coisas
e seu sistema correlativo de noções da e para a dimensão fenomênica
da realidade. Eis a exacerbação da práxis utilitária, que, numa concep-
ção histórico-cultural de desenvolvimento humano, não é nem o fim em
si mesmo dos indivíduos históricos, quanto mais deva ser – este sim o
fim – superada ou, de forma mais radical, destruída (KOSIK, 1976 [1963]).
Tratar-se-ia, em síntese, do objetivo a ser buscado em favor da práxis
revolucionária. Esse projeto social, contudo, não seria favorecido, como
esperamos ter evidenciado, por um projeto educativo pautado na pro-
posta teórica em causa, dado seu compromisso, ainda que velado, com a
conservação do estado de coisas, compatível com uma concepção de ca-
ráter adaptativo e naturalizante.

Referências

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155
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

OS ‘USOS SOCIAIS DA LÍNGUA’ E A ÊNFASE


NO LOCAL: PROBLEMATIZAÇÕES

Amanda Machado Chraim1

Torna-se ‘mantra’ no cenário educacional tudo aquilo que, por meio


de um espraiamento acrítico, é compreendido a partir do deslocamen-
to dos seus respectivos pressupostos teórico-filosóficos sustentadores.
Lidar com os ‘usos sociais’ da modalidade escrita da língua, assim, tor-
nou-se um lugar comum há algumas décadas, sobretudo no campo da al-
fabetização, quando, em nome do contraponto a um processo que desti-
tuía o caráter social e histórico da linguagem, buscou-se recuperar essa
característica fundante da língua por meio do que se tornou, pois, man-
tra: o ensino de linguagem deve considerar o uso social que se faz dela.
Tonalidades pragmáticas são vistas desde aí.
Já foi evidenciado, neste livro, o percurso da história humana
a partir do qual a linguagem foi produzida, atendendo, pois, a demandas,
a necessidades de homens e mulheres que, ao longo da sua constituição,
precisaram de um instrumento para sua comunicação e organização.
Tendo se tornado, ao longo do tempo, um instrumento psíquico, o qual
faz a mediação entre os sujeitos e a realidade concreta, a linguagem
é assumida como determinante para a humanização da espécie humana.
Vê-se, já aqui, a tautologia implicada no termo ‘usos sociais da língua’

1 Doutora em Linguística Aplicada pela Universidade Federal de Santa Catarina e membro do


Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Linguística (GEPEL).

157
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

– a gênese da linguagem é social, portanto, todos os usos que se fazem


dela são, necessariamente, sociais.
No que se refere à escrita, uma modalidade que, diferentemente
da oralidade, somente é apropriada por meio de instrução formal, sis-
tematizada, dada a insuficiência da faceta biológica dos seres huma-
nos, também nos parece tautológica a expressão ‘usos sociais da escri-
ta’, considerando que ela, também, foi produzida ao longo da história,
pela humanidade, para dar conta de novas necessidades que surgiram,
nesse ilimitado movimento entre objetivação e apropriação: “[...] a es-
crita foi produzida principalmente em razão da necessidade do registro
da propriedade e do controle do fluxo de mercadorias e se desenvolveu
na medida em que a sociedade de classes [...] se expandiu” (BRITTO,
2012, p. 67).
Parece certo, entretanto, que, mesmo com a problematização
de que tenha se tornado um mantra no campo educacional, a expressão
‘usos sociais da escrita’ surge em um contexto bem demarcado, o qual
exigia alternativas teóricas e práticas diante do que se costuma denomi-
nar de ‘fracasso’ na alfabetização. O tão conhecido embate entre os mé-
todos sintéticos e analíticos não dava mais conta de responder à exclu-
são massiva de sujeitos que, por não dominarem o sistema de escrita,
deixavam de participar de espaços importantes da sociedade – espaços
de trabalho, sobretudo: “[...] a expansão do alfabetismo se relaciona
com os processos reguladores do cotidiano que impõem ao indivíduo
a necessidade de usos específicos da escrita, num nível de quase auto-
matismo, para seguir comandos, realizar tarefas conforme um modelo
[...], cuidar de si e organizar a vida diária” (BRITTO, 2012, p. 91). Em não
havendo sucesso no campo da alfabetização nesse sentido, surgem te-
orizações que, ao romper com o ensino tradicional da língua, apresen-
tam outros pressupostos. É neste contexto que os estudos do letramento
chegam com muita força no cenário educacional brasileiro, relacionan-
do-se, em grande medida, com o construtivismo, que já havia problema-
tizado profundamente os métodos, sem que alternativas metodológicas
fossem apresentadas.

158
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

1 Os ‘usos sociais da língua’: há usos linguísticos não sociais?

Em primeiro lugar, importa estabelecer que, no momento em que


se espraia a expressão em análise – ‘usos sociais da língua’ –, a concep-
ção de alfabetização que estava em voga, fundamentando os tão pro-
palados métodos, era a de decodificação e codificação, numa mirada
técnica, instrumental, para a qual bastava o ensino calcado no treino.
Por conta disso, as cartilhas eram suficientes, já que traziam textos es-
pecialmente produzidos para o trabalho com as especificidades priori-
zadas do sistema de escrita alfabética. A origem social da linguagem,
de fato, é apagada, secundarizada, de maneira que essa formação lin-
guística denega o caráter histórico e cultural desse fenômeno. Uma fun-
damentação teórica que, ao observar criticamente esse quadro, propõe
a ruptura com esse modo de ensinar, institui, pois, que os sujeitos so-
mente aprenderão sobre a linguagem a partir dos usos que dela se fazem
na sociedade. Faz sentido, dessa forma, naquele momento da história
da alfabetização no Brasil, para que fosse ampliada a sua conceituação,
a focalização na dimensão sócio-histórica da língua; o risco esteve, cer-
tamente, em curvar a vara para o outro extremo, de modo a apagar aqui-
lo que é sua característica também, a sua organização em um sistema
de escrita que só pode ser compreendido por meio da instrução formal.
Numa breve retomada histórica, lançamos mão de recuperar o mo-
mento em que a expressão ‘usos sociais da escrita’, atualmente tão pro-
palada, adentra o cenário educacional brasileiro: ainda que o termo
tenha se consagrado sobretudo nas pesquisas vinculadas ao arcabou-
ço teórico dos estudos do letramento, um momento importante para
o espalhamento de tal nomenclatura no campo da alfabetização se deu
quando da chegada das teorizações construtivistas em torno da psicogê-
nese da língua escrita, e também do que se denominou de teorias intera-
cionistas – essas últimas tomam também os pressupostos vigotskianos
como base, ainda que estejamos em discordância, corroborando Duarte
(2008), de que a Escola de Vigostki possa ser considerada como intera-
cionista, já que seu foco não está na interação dos sujeitos com os ob-
jetos da realidade, mas sim na gênese histórica tanto do sujeito quanto
do objeto, na dimensão cultural dessa relação, portanto.

159
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Quando, na década de 1980, o construtivismo passa a se firmar


como perspectiva hegemônica na alfabetização, o foco se coloca sobre
o estudante na sua relação individual com a modalidade escrita da língua.
Ferreiro e Teberosky (1991), autoras construtivistas de base piagetiana,
discorrem sobre o processo de aprendizagem da escrita, e fica evidente,
no excerto a seguir, a articulação teórica entre fundamentos de cará-
ter subjetivista e interacionista, o que é facilmente explicado em razão
da sua concepção biologicista de sujeito. As autoras assim se enunciam,
numa contraposição aos pressupostos tradicionais que embasavam
o processo de alfabetização até aquele momento:

[...] no lugar de uma criança que espera passivamente o


reforço externo de uma resposta produzida pouco me-
nos que ao acaso, aparece uma criança que procura ati-
vamente compreender a natureza da linguagem que
se fala à sua volta, e que, tratando de compreendê- la,
formula hipóteses, busca regularidades, coloca à prova
suas antecipações e cria sua própria gramática (que não é
simples cópia deformada do modelo adulto mas sim cria-
ção original). No lugar de uma criança que recebe pouco
a pouco uma linguagem inteiramente fabricada por ou-
tros, aparece uma criança que reconstrói por si mes-
ma a linguagem, tomando seletivamente a informa-
ção que lhe provê o meio. (FERREIRO; TEBEROSKY,
1991, p. 22, grifos nossos)

Reverberações dessa ordem indiciam-se no campo da alfabetiza-


ção no Brasil, quando, em muitos contextos, pela negação aos métodos
sintéticos e analíticos, vislumbrou-se uma metodologização das pro-
posições das autoras, as quais têm, certamente, em relação ao ensino,
um enfoque analítico, e não metodológico – o resultado disso, como
já foi amplamente discutido em pesquisas do campo, foi o abandono
aos métodos e a criação de uma grande lacuna acerca do que ensinar
nas classes de alfabetização. Parece-nos, pois, que, numa mirada super-
ficial de sua obra, toma-se as considerações das autoras de modo es-
pontaneísta: aprende-se fazendo; ou, em referência à citação anterior,

160
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

se aprenderia pela via da interação com o objeto de conhecimento, for-


mulando-se hipóteses, buscando-se regularidades da modalidade escri-
ta da língua intuitivamente, superdimensionando-se, portanto, o prota-
gonismo do sujeito. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), muito
apoiados nos ideais construtivistas, já chamam atenção para os riscos
do espontaneísmo:

Tem-se observado que a afirmação de que o conheci-


mento é uma construção do aprendiz vem sendo inter-
pretada de maneira espontaneísta, como se fosse possí-
vel que os alunos aprendessem os conteúdos escolares
simplesmente por serem expostos a eles. Esse tipo de de-
sinformação – que parece acompanhar a emergência de
práticas pedagógicas inovadoras – tem assumido formas
que acabam por esvaziar a função do professor. (BRASIL,
1997, p. 25)

Passadas décadas até o momento presente, podemos afirmar


que pouco se alterou nesse sentido, e o esvaziamento do papel do pro-
fessor tem sido uma constante, referendado pelas pedagogias hegemô-
nicas do aprender a aprender (DUARTE, 2011).
Retomando, no entanto, o que é nosso foco nesta seção, ressal-
tamos o que propõem Ferreiro e Teberosky (1991) no que concerne aos
‘usos sociais da escrita’: em lugar do trabalho com textos artificiais, cria-
dos especialmente para as lides com as regularidades do sistema de es-
crita preconizados, tal qual propunham os métodos de alfabetização,
essas autoras apontam para a necessidade do trabalho educativo se ater
ao que está ‘à volta’ da criança, ao que lhe ‘provê o meio’. A ponderação,
contudo, acerca da qualidade dos objetos culturais dos quais os estudan-
tes devem se apropriar não é encontrada nas proposições das pesquisa-
doras, já que seu foco está nas hipóteses que a criança formula em torno
da escrita e, também, numa compreensão linear de desenvolvimento
– porque lida com o ser humano a partir de sua dimensão biológica –,
em como se dá a passagem de uma hipótese à outra, até que se chegue
ao nível alfabético propriamente dito.

161
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Ainda que tal teorização seja o objeto de discussão analítica de ou-


tro capítulo deste livro, fazemos referência aos estudos construtivistas
para marcar o que se entende como o momento em que a menção aos
‘usos sociais da língua’ se efetiva nos estudos sobre alfabetização. Essa
convergência entre os dois ideários mencionados até aqui, contraditó-
ria se analisada pelos fundamentos epistemológicos, considerando-se
a base naturalista intrínseca ao construtivismo e a ênfase dada à histori-
cidade dos sujeitos nos estudos do letramento, é depreendida em diver-
sas proposições teóricas no âmbito da alfabetização.

1.1 Os estudos do letramento e a (super)valorização do local2

Os estudos do letramento, os quais já mencionamos nesta seção


e que a partir daqui se tornam o foco de nossas reflexões, constituem-
-se como uma das principais fontes teóricas do que se tem discutido
nos espaços relacionados à educação formal no Brasil, a qual tem sido
abordada muito costumeiramente a partir de uma vinculação aos fun-
damentos pós-modernos. O que se propõe nestes estudos, pois, é, em se
compreendendo os usos da escrita como situados, tematizar, à luz de ar-
gumentos também linguísticos, questões como ‘poder’ e ‘identidade’.
O conceito de ‘pluralismo’, assim, é bastante relevante nessa aborda-
gem, considerando-se os usos que se fazem da escrita – e as valorações
que se atribuem a ela são de diferentes ordens, como explicitam Barton
e Hamilton (2000) quando afirmam que algumas práticas de letramento
são mais dominantes, visíveis e influentes do que outras. Grande parte
dos estudos relacionados a essa perspectiva, apontam os autores, busca
documentar os ‘letramentos vernaculares’ de diferentes grupos sociais,
bem como explorar sua relação com os ‘letramentos dominantes’.
Para conceituar as práticas de letramento a que se referem os au-
tores, é importante retomar também o conceito de eventos de letramen-
to, ambos pertinentes para as investigações acerca da participação
dos indivíduos – alfabetizados ou não – em práticas sociais de escrita
(SOARES, 2003). Por eventos de letramento, assim, entendem-se as si-
2 Esta subseção e a segunda seção do capítulo trazem recortes de pesquisas de Chraim (2012,
2019).

162
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

tuações em que a escrita se torna parte integrante da interação entre


os sujeitos e de seus processos de interpretação (HEATH, 2002 [1982]).
Segundo Soares (2003), essa interação pode se dar face a face, processo
em que os indivíduos interagem oralmente com a mediação da língua
escrita, ou a distância – autor-leitor/leitor-autor. Dessa forma, os even-
tos de letramento são ocasiões em que a escrita medeia efetivamen-
te as interações humanas (HEATH, 2002 [1982]). Street (1988, 2003a)
e Barton (1994) também tratam do tema, enfatizando serem tais eventos
as ocasiões em que a escrita está presente, exercendo um papel nas/para
as interações.
O conceito de práticas de letramento, por sua vez, de acordo
com Street (2003a, p. 8), “[...] tenta tanto tratar dos eventos quanto
dos padrões que tenham a ver com o letramento, tratando de associá-los
a algo mais amplo, de uma natureza cultural e social”. Assim, a esse con-
ceito estão ligados os comportamentos dos indivíduos que participam
de um evento de letramento e também as concepções sociais e culturais
que configuram tal evento e dão sentido aos usos da leitura e da escrita
em cada situação (STREET, 1995). Ainda nas discussões de Street (1988,
2003a), o autor alerta que o conceito de evento de letramento, ao ser em-
pregado de forma isolada, é bastante descritivo, já que não diz muito so-
bre a forma com que os significados são construídos; ele, propõe, então,
em paralelo, o conceito de práticas de letramento, objetivando atentar
para os valores e as representações culturais que ancoram a participação
dos sujeitos em tais eventos. Assim, é o “[...] uso do conceito de práticas
de letramento como instrumento de análise que permite a interpretação
do evento, para além de sua descrição” (SOARES3, 2003, p. 105, grifos
da autora).
As práticas de letramento podem ser definidas, então, a partir
dos estudos do letramento, como as experiências mediadas pela escri-
ta que conferem valoração a essa modalidade, familiarizando ou não

3 Ainda que estejamos aproximando, aqui, proposições de Magda Soares com as de Brian
Street e seus seguidores, estamos cientes dos refinamentos que afastam e/ou aproximam as
percepções daquela estudiosa – em nossa compreensão, mais voltada para estudos do letra-
mento no plano escolar – e deste grupo de teóricos – em nossa compreensão, mais voltados
para estudos do letramento no plano da Antropologia.

163
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

o sujeito com eventos de letramento específicos. Hamilton (2000) cha-


ma atenção para a natureza visível dos eventos, deixando claro que as
práticas, ao contrário dos eventos, não podem ser vistas, apenas inferi-
das, depreendidas a partir deles. A autora se utiliza da famosa metáfora
do iceberg: os eventos seriam o topo visível; as práticas, por sua vez,
seriam a base, não exposta à visibilização, porque submersa.
Tendo apresentado, em linhas gerais, dois conceitos fundamentais
para esta perspectiva teórica, importa sublinhar, a partir disso, que os es-
tudos do letramento sugerem que as proposições a respeito da educação
linguística não devem prescindir de considerações sobre os conceitos de
‘identidade’ e ‘poder’ Zavala (2010, p. 93) afirma que “[...] os Estudos
do Letramento poderiam ser considerados uma teoria pós-colonial”;
o que está em voga, assim, segundo essa autora, é a validação do co-
nhecimento das minorias. Coadunando com os fundamentos do mate-
rialismo histórico e dialético, defendemos, entretanto, que não há um
conhecimento ‘das minorias’ e um conhecimento ‘da classe dominante’,
mas conhecimentos que, por terem sido produzidos ao longo da história
por homens e mulheres constituídos de aspectos humanos universais,
são de todo o conjunto da sociedade. À escola cabe a socialização de tais
conhecimentos, numa mirada contra-hegemônica, considerando que,
na sociabilidade capitalista, o conhecimento, ele também, aparece como
propriedade da elite.
Ainda que, desde o início deste capítulo, estejamos lidando critica-
mente com os pressupostos dos estudos do letramento, parece-nos rele-
vante assegurar que não denegamos, de forma alguma, aquilo que Britto
(2003, p. 47) sugere ser um tema central nos estudos sobre educação,
que é analisar “[...] de que maneira e com que intensidade as pessoas
dos diferentes segmentos sociais [...] participam e usufruem da produção
material e cultural da sociedade em que vivem [...]”. Compreendemos,
dessa forma, não ser possível nem coerente trabalhar com alfabetização
sem que se reconheça a centralidade da modalidade escrita da língua
para a organização da sociedade contemporânea, bem como o amplo
domínio que tem a classe dominante sobre essa modalidade, ao mesmo
tempo em que a classe trabalhadora é relegada aos usos mais pragmá-

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

ticos da escrita, denegando-se, muitas vezes por meio de justificativas


idealistas e romantizadas, o seu acesso aos bens culturais mais desen-
volvidos ao longo da história. O que buscamos tensionar, assim, são os
fundamentos de uma educação linguística que se ocupa sobremaneira
da valorização dos conhecimentos cotidianos já consolidados dos es-
tudantes, secundarizando-se a potência do espaço escolar de, por meio
da garantia da apropriação dos conhecimentos dos campos da ciência,
da arte e da filosofia, humanizar os sujeitos para o escrutínio da realida-
de concreta, cindida em classes, possibilitando, assim, o seu engajamen-
to na luta coletiva pela transformação do modo de organização social
em vigência.
Dessa forma, consideramos bastante pertinentes as análises reali-
zadas pelos estudos do letramento no que se refere aos usos empreendi-
dos com a escrita nas diferentes esferas da sociedade, e o que problema-
tizamos é o viés compreensivista/interpretativista adotado, desprendido
de um projeto de sociedade para o qual a explicação (e uma conse-
quente proposição) – e não só a compreensão/interpretação – dos fe-
nômenos da realidade se torna determinante. No que se refere a uma
espécie de mapeamento acerca dos usos sociais da linguagem, teóricos
dos estudos do letramento chamam atenção para o fato de que também
os indivíduos não alfabetizados circulam nas cidades e, ao se locomo-
verem nelas, interagem com artefatos, como outdoors, sinais de trânsi-
to, linhas de ônibus, panfletos, revistas (HAMILTON, 2000), que contêm
a escrita como principal meio de interação: essas pessoas “[...] convi-
vem com situações e materiais de leitura os mais variados em suas casas,
na rua por onde andam, no trabalho, na religião, nas atividades de lazer”
(VÓVIO, 2007, p. 91). No contexto dos estudos do letramento, tais situa-
ções são usualmente mapeadas e estudadas pelos pesquisadores da área,
para que se entenda como esta parcela da população – a qual não se
apropriou ou se apropriou pouco da língua escrita – cria estratégias para
se locomover na sociedade sem, muitas vezes, fazer uso direto da leitura
e da escrita.
Kleiman (1995), em uma defesa não consensual nos estudos
em análise, entende que os sujeitos são letrados antes mesmo de serem

165
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

alfabetizados, já que ser letrado não envolveria, necessariamente, as ati-


vidades específicas de ler e escrever, mas sim estar relacionado a prá-
ticas discursivas que tenham relação com a escrita. Os sujeitos, ao ter
contato com a escrita em seu cotidiano, então, vivenciam diferentes ati-
vidades que a envolvem, ainda que não leiam propriamente. Em uma
análise relacionada à alfabetização de adultos, Galvão (2001) pontua
que a ocupação profissional é um ponto relevante nesta discussão sobre
a participação na cultura escrita: aqueles trabalhadores em ocupações
semiespecializadas, mesmo não tendo sido alfabetizados formalmente,
revelam uma inserção mais significativa na cultura escrita do que a da-
queles sujeitos que se caracterizam por ocupações manuais, assalaria-
das ou autônomas, ou que não trabalham fora do lar. Outro exemplo
dado por Galvão (2001), que parece interferir nas práticas de letramento
dos sujeitos não alfabetizados, é a participação em movimentos sociais,
como sindicatos, por exemplo. Esses movimentos contribuem, segun-
do a autora, para o desenvolvimento de habilidades típicas da cultura
escrita, mesmo em se tratando de pessoas analfabetas. Para ela, esses
são somente alguns dos exemplos dos muitos fatores que determinam
ou influenciam os modos de inserção dos sujeitos nos mundos de letra-
mento (BARTON; HAMILTON; IVANIC, 1993). Em uma crítica contun-
dente a esse posicionamento teórico, Britto (2012, p. 86) registra que

Nessas circunstâncias, “ser letrado” significaria ser fun-


cionalmente alfabetizado, isto é, capaz de usar da escrita
para a realização das tarefas cotidianas características da
sociedade urbano- industrial. O letramento, desse ponto
de vista, se resume ao fato de o modo de produção supor
um uso de escrito que permita aos indivíduos operar com
as instruções de trabalho e normas de conduta e de vida.

Nessa relação, em outro posicionamento que consideramos bas-


tante arriscado, Kleiman (1995) afirma que a escola é somente uma das
agências de letramento existentes na sociedade, sendo as suas práticas
específicas apenas um tipo de prática, que desenvolve algumas habili-
dades também específicas, e que determina uma forma de utilizar o co-

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

nhecimento sobre a escrita. Quando se trata da alfabetização, porém,


das crianças, dos jovens e dos adultos das camadas populares, esse é um
discurso bastante perigoso, já que retira a centralidade da instituição
escolar para a garantia da apropriação da escrita nas suas formas mais
desenvolvidas. Podemos concordar com um posicionamento que relega
a escola a ‘mais um espaço’ quando se tratam dos grupos privilegiados
economicamente, mas não podemos deixar de sublinhar que os esforços
de todos os educadores comprometidos com os interesses da classe tra-
balhadora devem estar voltados para o fortalecimento da escola e dos
processos de formação que se dão dentro/por meio dela.

2 O que se ensina e quem se forma à luz dos estudos do letramento?

Como procuramos evidenciar até aqui, quando os estudos do letra-


mento focalizam os ‘usos sociais da escrita’, trata-se de um movimento
teórico que incorpora às suas análises todos os tipos interações, nos di-
ferentes campos de atividade humana, que têm a escrita como elemento
constitutivo. Ressaltamos, para além desse caráter geral, que há auto-
res vinculados aos estudos do letramento que se voltam a discutir es-
pecificamente como tais usos sociais se dão na escola, instância formal
de educação. Neste contexto, Soares (2003, p. 107), ao tratar da relação
entre eventos e práticas escolares de letramento e eventos e práticas so-
ciais de letramento, afirma que “[...] de certa forma, a escola autonomiza
as atividades de leitura e de escrita em relação a suas circunstâncias
e usos sociais, criando seus próprios e peculiares eventos e suas próprias
e peculiares práticas de letramento”.
Assim, ainda de acordo com a autora, por mais que os eventos
de letramento da escola tentem reproduzir os eventos sociais reais, ge-
ralmente são artificiais e didaticamente padronizados; no entanto, mes-
mo com essas diferenças significativas entre o letramento escolar e o
social, não se denega o fato de que há uma correlação positiva entre
o grau de instrução dos sujeitos e a diversidade das práticas de letra-
mento que os caracterizam. Soares (2003, p. 111, grifos da autora) afirma
que a escola, na maioria dos casos, acaba por desenvolver habilidades

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

nos sujeitos, de forma a subsidiar a sua participação efetiva nos eventos


e práticas sociais de letramento: “[...] os dados mostram que de maneira
significativa, embora não absoluta, quanto mais longo o processo de es-
colarização, quanto mais os indivíduos participam de eventos e práticas
escolares de letramento, mais bem sucedidos são nos eventos e práticas
sociais [...]”. Assim,

A hipótese é aqui, então, que letramento escolar e letra-


mento social, embora situados em diferentes espaços e
em diferentes tempos, são parte dos mesmos processos
sociais mais amplos, o que explicaria por que experiên-
cias sociais e culturais do uso da leitura e da escrita pro-
porcionadas pelo processo de escolarização acabam por
habilitar os indivíduos à participação em experiências
sociais e culturais de uso da leitura e da escrita no con-
texto social extraescolar. (SOARES, 2003, p. 111, grifos
da autora)

Kleiman (1995, 1998), outra referência fundante para os estudos


do letramento no Brasil, a qual se dissocia de Magda Soares em algumas
proposições acerca da educação em linguagem a partir desses pressu-
postos, localiza as teorizações acerca do letramento como centrais para
a preservação da heterogeneidade cultural e das identidades, numa bus-
ca por preservar as práticas de letramento locais ou regionais, ao mes-
mo tempo em que tais práticas possam servir de ponte para a aquisição
daquelas oficialmente legitimadas. O ensino de linguagem pode, segun-
do Kleiman (1998, p. 270), “[...] constituir- se no lugar privilegiado para
a reafirmação e o reconhecimento da identidade linguístico-cultural
do aluno”.
A partir de uma pesquisa realizada com mulheres adultas em pro-
cesso de alfabetização, a autora argumenta que aquelas práticas de le-
tramento que somente reproduzem as relações macrossociais na escola
e que “[...] não são contextualizadas relativamente às identidades e re-
lações sociais dos participantes, aos seus objetivos específicos, às suas
necessidades [...]” (KLEIMAN, 1998, p. 299) conduzem os sujeitos ao fra-

168
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

casso, de maneira que continuem reproduzindo as representações nega-


tivas que eles têm de si mesmos. Vê-se, aí, uma perspectiva culturalista,
em que há o distanciamento de práticas pedagógicas que contemplem
“[...] funções universais da escrita independentes do contexto de uso”
(KLEIMAN, 1995. p. 51). Tais contornos se justificam, à luz dos estu-
dos do letramento, não só pela crítica à concepção tradicional de en-
sino da língua, mas, principalmente, para evitar o que os autores des-
sas teorizações compreendem como a imposição da cultura dominante.
Kleiman (1995, p. 48), nesse sentido, escreve:

A interação na aula de alfabetização de adolescentes e


adultos é potencialmente conflitiva, pois nela se visa ao
deslocamento e [à] substituição das práticas discursivas
do aluno por outras práticas, da sociedade dominante.
Ao mesmo tempo em que a aquisição das novas práti-
cas é percebida como necessária para a sobrevivência e a
mobilidade social na sociedade tecnologizada, essa aqui-
sição se constitui no prenúncio do abandono das práticas
discursivas familiares.

Ao problematizar, destarte, o que é da ‘tradição’ escolar, tal concep-


ção propõe a valoração da cultura local, regional, em detrimento de uma
educação que privilegie aqueles conteúdos que se querem universais,
pois nessa perspectiva, por haver notórias relações com o que é do âmbi-
to da ‘condição pós- moderna’ (LYOTARD, 2013 [1979]), há a denegação
de verdades universais. A escola, assim, na seleção de seus conteúdos,
teria privilegiado historicamente uma tradição da cultura branca e euro-
peia. A busca se coloca, então, numa crítica àquilo que é da ordem do et-
nocêntrico, e isso somente pode se dar, à luz dessas teorias, por meio
da valoração do que é ‘pluri-’, ‘multi-’, ‘trans-’ (CELANI, 1998; MOITA
LOPES, 2006). A valoração do local se amplia, e desse modo os conteúdos
escolares são agudamente problematizados.
Contra-argumentações a determinadas proposições dos estudos
do letramento surgem, pois, a partir daquilo que se poderia chamar ‘ro-
mantização’ acerca dos conceitos cotidianos dominados pelos sujeitos,

169
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

problematizando-se, assim, o risco de, em nome dessa mesma romanti-


zação, insularizarem-se grupos sociais em suas próprias e quase sacra-
lizadas representações de mundo, sobretudo em se tratando daqueles
grupos que têm no sistema escolar o principal (na maioria dos casos,
o único) meio para o acesso aos bens culturais produzidos ao longo
da história.
Brandt e Clinton (2002), ao afirmarem que há um exagero em tor-
no da proeminência dada aos contextos locais, argumentam que críticos
do modelo de letramento dominante acabaram por deixar à margem as-
pectos importantes relacionados ao letramento. Ao rejeitar uma concep-
ção de letramento como força determinística, as críticas dos revisionis-
tas, segundo aquelas autoras, foram muito longe numa direção contrária
e subestimaram o poder de transcontextualização dos objetos culturais
(com base em LATOUR, 2013 [1994]). Propõem, então, que o local deve
ser um dos elementos colocados em voga, entretanto sem deixar de ser
associado àquilo que é do âmbito mais global, já que, segundo elas,
o letramento pode surgir a partir de interações locais, ao mesmo tempo
em que chega de outros lugares, se infiltrando, deslocando a vida local
(BRANDT; CLINTON, 2002). A exacerbação, pois, das análises em torno
do que é local limita, em grande medida, de acordo com essas autoras,
um estudo mais amplo das práticas sociais mediadas pela escrita.
Street (2003b), ao responder a tais críticas e àquilo que Brandt
e Clinton (2002) apontam como “os limites do local”, concorda com a
análise de que são as relações entre o que é do âmbito do local e o que é
distante que devem ser o foco, e não a escolha por um ou outro. O autor
explicita, desse modo, uma das críticas centrais dos estudos do letra-
mento à ‘tradição’ escolar, que é o distanciamento das práticas empreen-
didas pela escola com as práticas de letramento dos sujeitos em processo
de aprendizagem – há uma notória evocação à necessidade de ampliar
os espaços, nas escolas, daquilo que é da cultura local, das vivências
dos estudantes. Outro mantra tem se colocado nesse sentido, que é o de
‘partir da realidade dos sujeitos’ para a educação escolar, compreenden-
do-se essa realidade como individual e subjetiva.

170
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Em se tratando do trabalho com educação em linguagem sob a ló-


gica dos estudos do letramento, tem-se uma elisão do que é da ordem
dos conhecimentos científicos, dos conceitos propriamente ditos. É pos-
sível compreender, desse modo, que tais propostas atreladas às pedago-
gias fundamentadas sob bases contemporâneas não encontraram, ainda,
possibilidades metodológicas coerentemente delineadas, e isso parece
se explicar justamente porque, nesta perspectiva, não há estabilidades
ou unidades. Há, ao contrário, e como já apontado, o ‘multi-’, ‘o pluri-’,
o ‘trans-’ (CELANI, 1998), que evocam a dispersão, a qual tangencia
uma prospecção de futuro, um lugar comum a se chegar, pois o próprio
princípio vinculado ao paradigma pós-moderno é a ‘diversidade’.

2.1 A Base Nacional Comum Curricular, os multiletramentos e o esfa-


celamento da linguagem escrita

Um critério pertinente para ser analisado quando se lida com as


teorizações acerca do ensino de linguagem é aquilo que aparece nos do-
cumentos parametrizadores nacionais, os quais não podem deixar de ser
considerados para a formulação de currículos e, consequentemente,
de planejamentos pedagógicos. Dessa forma, a Base Nacional Comum
Curricular (BNCC) é um documento que explicita encaminhamentos
teórico-metodológicos que podem ser compreendidos como hegemô-
nicos, e alguns dos pressupostos dos estudos do letramento aparecem
com grande força, como pode ser visto no trecho que segue, que tra-
ta do componente de Língua Portuguesa, dentro do qual está inserida
a alfabetização: “Ao componente Língua Portuguesa cabe, então, pro-
porcionar aos estudantes experiências que contribuam para a amplia-
ção dos letramentos, de forma a possibilitar a participação significativa
e crítica nas diversas práticas sociais permeadas/constituídas pela orali-
dade, pela escrita e por outras linguagens” (BRASIL, 2017, p. 65-6).
Ancorada nos estudos do letramento, Rojo (2008, p. 585), impor-
tante referência neste campo, defende que a educação linguística leve
em conta os multiletramentos, “[...] deixando de ignorar ou apagar os le-
tramentos das culturas locais de seus agentes (professores, alunos, co-

171
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

munidade escolar) e colocando-os em contato com os letramentos valo-


rizados e institucionais [...]”, apontando para o que já explicitamos sobre
um preciosismo em torno das ‘culturas locais’. Na BNCC, essas proposi-
ções da autora em menção aparecem traduzidas, adicionando-se a ênfa-
se ao que tem sido denominado de ‘letramentos digitais’:

Não se trata de deixar de privilegiar o escrito/impresso


nem de deixar de considerar gêneros e práticas consa-
grados pela escola, tais como notícia, reportagem, entre-
vista, artigo de opinião, charge, tirinha, crônica, conto,
verbete de enciclopédia, artigo de divulgação científica
etc., próprios do letramento da letra e do impresso, mas
de contemplar também os novos letramentos, essencial-
mente digitais. (BRASIL, 2017, p. 67)

Vê-se, pois, pela necessidade de se adicionar um complemento


para ‘letramento’, como em ‘letramento da letra’, que se destitui desse
conceito aquilo que parecia estar na sua origem, a vinculação à moda-
lidade escrita da língua, à letra. Neste viés dos multiletramentos, a lin-
guagem escrita passa a ser somente mais uma modalidade dentre tantas
outras com as quais a escola teria de se ocupar, sobretudo, agora, as di-
gitais, incluindo aí o processo de alfabetização, em que, supostamen-
te, leitura e escrita deveriam ser prioridade. O risco, mais uma vez, é o
de secundarizar o que, em tese, é central: o ensino da escrita nas suas
formas mais desenvolvidas – “[...] o conhecimento de leitura e de escrita
não se dissocia dos outros conhecimentos objetivos, em suas diversas
formas de produção, manifestação, circulação e apropriação. Disso de-
corre a impossibilidade de pensar um conceito de letramento que se li-
mite a um saber-fazer” (BRITTO, 2012, p. 87).
Numa discussão voltada a essas questões, Cerutti-Rizzatti
e Irigoite (2015, p. 261) advertem que, ainda que se reconheça “[...]
a fantástica revolução que as redes sociais significam em se tratando
da forma como a interação global se dá hoje [...]”, por ser um fenômeno
social, há muitas faces constitutivas dessas redes. As autoras chamam
atenção, assim, para que não se reifiquem as tecnologias, “[...] porque

172
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

o que de fato nos importa são as práticas sociais que se valem delas para
se instituir: dispositivos eletrônicos são meios e não fins em si mesmos
[...]” (CERUTTI-RIZZATTI; IRIGOITE, 2015, p. 276). Já Britto (2014, p 11)
adverte:

Enfim, é preciso reconhecer que, se é fato que as novas


tecnologias e os novos modos de comunicação e de ex-
pressão que permitem, assim como os processos de pro-
dução que se instauraram com a revolução microeletrô-
nica, supõem um sujeito ágil e que aprende na prática
e na diversidade, é fato também que, limitados a estes
espaços, os sujeitos não disporão de conhecimentos que
contribuam para a crítica a essa mesma e nova condição
de alienação.

E para que seja possibilitada a crítica a que se refere o autor


em menção, torna-se responsabilidade da escola garantir a formação
de leitores e autores de textos escritos nos gêneros do discurso mais
representativos da história social, de modo que os estudantes se apro-
priarem de ferramentas teóricas, desenvolvendo-se e humanizando-se
por meio desse percurso. E para dar conta disso, o foco, de forma alguma,
precisa repousar sobre plataformas digitais, mas sim, sobre a ampliação
do acesso, por parte dos sujeitos, aos objetos da cultura escrita, já que,
conforme aponta Britto (2015, p. 141), “[...] o que e o quanto um cidadão
é leitor depende, acima de tudo, de sua condição social e da possibilida-
de de ter acesso ao escrito, e isso depende das relações sociais”, defini-
das, é claro, pelo modo de produção, em relação ao qual a esfera escolar
é determinada, mas, ao mesmo tempo, determinante.
Por fim, não podemos deixar de explicitar que a alfabetização,
se entendida como um processo em que se ensina a linguagem por meio
da indissociabilidade entre as suas dimensões sistêmica e sócio- histó-
rica, considerações em torno de um suposto ‘alfabetizar letrando’ per-
dem qualquer sentido. A organização do percurso de alfabetização deve
ser dar pelo reconhecimento das regularidades do sistema de escrita
que devem ser apropriadas, por meio dos processos de leitura e escritura

173
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

de gêneros do discurso diversos, para que os estudantes possam refletir


sobre a linguagem, ao mesmo tempo que, com essa apropriação de co-
nhecimentos, tenham suas funções psíquicas complexificadas, amplian-
do, dessa forma, as suas possibilidades de interpretar a realidade social
e natural. O pragmatismo, pois, inerente às perspectivas que cultuam
o local em detrimento da dialética entre o singular, o particular e o ge-
nérico humano, deixa de ter sentido quando da assunção de um processo
educativo pautado na humanização dos sujeitos, para a qual a alfabeti-
zação é indispensável e essencial.

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176
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

IMPLICAÇÕES DO PENSAMENTO DA ESCOLA


DE VIGOTSKI PARA A ALFABETIZAÇÃO

Marina da Silva Cabral1

O processo de alfabetização sob o olhar da psicologia histórico-


-cultural presume uma elaboração sobre o desenvolvimento da lin-
guagem, o que precede a apropriação da escrita. Isso porque a inserção
social do bebê dá-se desde o nascimento, considerando-se o ambiente
em que vive e sua interação com os adultos à sua volta, o que condicio-
nará, em boa medida, a qualidade da apropriação da linguagem, que in-
cidirá, por sua vez, na alfabetização. Diante disso, o desenvolvimento
da fala é tomado como ponto crucial desse processo. Decorre desse mo-
tivo a responsabilidade de, já na Educação Infantil, enriquecer-se tanto
quanto for possível não só o vocabulário das crianças, mas a qualidade
das interações mediadas pela palavra e sua conceituação.
Também por essa razão, é de suma importância que professores
da Educação Infantil, de Língua Portuguesa e alfabetizadores, em par-
ticular, e de outros componentes curriculares, em geral, tenham clareza
sobre como se dá a apropriação da linguagem pela criança, a fim de que
se organize, de forma adequada e com vistas à complexificação do fun-
cionamento psíquico, interações que favoreçam o processo de forma sa-
tisfatória aos fins planejados. Tais objetivos de ensino e aprendizagem
têm relação direta com o projeto educativo desenvolvido que, por sua
vez, está relacionado com o projeto social vislumbrado pelo coletivo
de professores no que toca à formação humana. Nessa esteira, como afir-
1 Mestra em Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina (USFC).

177
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

ma Duarte (2016), o ponto de partida do trabalho do professor deve ser a


prévia-ideação de um projeto social igualitário. Isso ganha desdobra-
mentos de efetiva possibilidade quando se elege perspectiva pedagógi-
ca fundamentada na psicologia histórico-cultural2, que visa a formação
do indivíduo para a transformação da sociedade.

Tal ponto de partida, ao se considerar a psicologia his-


tórico-cultural em correlação com a teoria pedagógica,
deriva de um projeto social ancorado no materialismo
histórico e dialético. Quando se elege, assim, uma teoria
pedagógica fundamentada filosoficamente nesse ideário,
o objetivo central da educação escolar torna-se a eman-
cipação humana por meio de formação onilateral3. Ainda
que tal ideal formativo não seja plenamente possível no
modo de organização social vigente, trata-se da máxi-
ma aproximação a ele. Para isso, a linguagem, tomada
como instrumento psicológico de mediação simbólica
(VIGOTSKI, 1995), desempenha importante papel, o que
ressalta a impressibilidade da educação escolar, tendo
em vista sua função na complexificação do desenvolvi-
mento psíquico, o que passa pela apropriação, por meio,
principalmente, da linguagem, dos conceitos científicos
e objetos culturais elaborados pelo gênero humano ao
longo da história.

Sem deixar de considerar que o processo de alfabetização é mul-


tideterminado (DANGIÓ; MARTINS, 2018), o recorte deste capítulo está
nas contribuições da Escola de Vigotski naquilo que dá conta do desen-
volvimento da linguagem oral/sinalizada e escrita na criança. Ainda,
2 Tendo em vista que a psicologia histórico-cultural não pode ser transposta como teoria da
educação organizativa da prática pedagógica, tal condição não impede a existência de uni-
dade teórico-metodológica entre teorias da educação e teorias psicológicas, como defende
Martins (2013) ao explicitar a base filosófica comum entre a pedagogia histórico-crítica e a
psicologia histórico-cultural.
3 Entendida como “[...] a chegada do homem a uma totalidade de capacidades produtivas
e, ao mesmo tempo, a uma totalidade de capacidades de consumos e prazeres, em que se
deve considerar, sobretudo, o gozo dos bens espirituais, além dos materiais, e dos quais o
trabalhador tem estado excluído em consequência da divisão do trabalho” (FERREIRA JR.;
BITTAR, 2008, p. 644).

178
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

ao final deste capítulo, encontram-se abreviadas elaborações acerca


do trabalho educativo no componente curricular de Língua Portuguesa,
o qual representa a continuidade do processo de alfabetização e confi-
gura-se como parte do projeto que pode possibilitar um salto qualitativo
no desenvolvimento do indivíduo a caminho de abstrações mais com-
plexas, as quais reconfiguram o funcionamento psíquico e, em relação
a isso, a forma de pensar, de estar e transformar a sociedade. Entende-se,
assim, que o arcabouço histórico-cultural se trata de teoria consistente
e segura como ponto de partida e fundamentação para o trabalho edu-
cativo e, em decorrência disso, para a alfabetização. Antes de se aden-
trar às atividades de escritura e leitura, componentes da alfabetização
e mote deste capítulo, entretanto, é importante que se conceda espaço
para outra atividade caríssima ao processo de alfabetização: a fala.

1 Alguns pressupostos para se pensar sobre o desenvolvimento


da linguagem

Ao se assumir a psicologia histórico-cultural como arcabouço teó-


rico para a escolha metodológica a ser empregada na prática educativa,
é imprescindível que se tenha claro o ideal formativo humano que abar-
ca tal concepção, que, como já mencionado, deriva do materialismo
histórico e dialético. É o marxismo, assim, que dá o tom da concepção
de indivíduo que se quer formar: um indivíduo pensante, crítico e livre
porque revolucionário. Trata-se, dessa forma, de formação pensada para
a transformação da consciência, para a qual o desenvolvimento da lin-
guagem é condição. É pelo desenvolvimento da linguagem, afinal, que se
complexifica o pensamento.
Como visto em capítulo anterior desta obra, o trabalho (MARX,
2010) foi e é categoria central para o desenvolvimento da linguagem,
transformando-se, em relação dialética, em instrumento para a conti-
nuidade de tal atividade vital humana, de modo que “[...] ao transformar
a natureza [o trabalho] cria as condições para a expansão do universo
linguístico” (HADDAD, 1999, p. 20). Ao incidir sobre a natureza, huma-
nizando-a e humanizando-se, o gênero humano elabora a realidade so-

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

cial (ENGELS, 2004), criando ferramentas e instrumentos, como a lin-


guagem, que permite a comunicação, a prévia ideação e a continuidade
do legado produzido historicamente.
Deriva daí a união entre pensamento e linguagem mediada pela
palavra. Para se apropriar das objetivações elaboradas ao longo da his-
tória, lança-se mão da subjetivação proporcionada pelo instrumento
linguístico, internalizando-se o mundo exterior sob a forma de signos.
Assim, “[...] a formação nos indivíduos dos resultados do desenvolvi-
mento histórico e social se realiza por intermédio de mediações entre
o indivíduo e o gênero humano, sendo essas mediações exteriores ao or-
ganismo e não resultado da herança genética” (GONTIJO; LEITE, 2002,
p. 145, grifos dos autores). Trata-se, pois, de atividade mediada pela lin-
guagem dentro da história, o que engloba a realidade social, a realidade
natural, os próprios indivíduos e os objetos.
É nessa relação que o indivíduo se humaniza, diferenciando-se
dos demais animais e inserindo- se na história. A palavra, “matriz mul-
tidimensional complexa” (LURIA, 1981, p. 269), e, por extensão, o do-
mínio da escritura e da leitura são centrais para a qualificação das fun-
ções psíquicas. É a escrita, afinal, entre outras formas de representação,
que carrega consigo a história representada nos objetos culturais ela-
borados e acumulados pelo homem. A aproximação da criança aos con-
ceitos que vão sendo apropriados a faz complexificar o funcionamento
psíquico. Isso, é claro, se tal apropriação se dá por meio da atividade
direta com os objetos culturais, de forma planejada pelo outro, não se
tratando, assim, de apropriação das palavras por simples imitação e re-
petição, apenas em sua face fonética, o que limita as contribuições para
a complexificação do pensamento.
Com base no exposto, o domínio da escritura e da leitura, para
a psicologia histórico-cultural, é central para a qualificação das funções
psíquicas superiores. O desenvolvimento da linguagem humana supe-
ra, assim, sua função de instrumento de comunicação, servindo tam-
bém como instrumento de organização do pensamento e de assimilação
da experiência histórico-cultural e do mundo ao redor. Tal relação deve
ficar mais clara no desenrolar deste capítulo, no qual se busca mapear,

180
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

a partir das contribuições da Escola de Vigotski, o caminho da apropria-


ção da linguagem pelo indivíduo em correlação com o papel da educação
escolar desde sua primeira etapa.
Tendo em vista o papel central da escritura e da leitura para a com-
plexificação psíquica, torna- se tarefa da escola, neste tempo histórico,
a função de agir intencionalmente e de forma planejada para o alcance
da efetiva alfabetização. Afasta-se, com isso e de partida, de qualquer
aproximação às pedagogias do aprender a aprender (DUARTE, 2011),
de inspiração construtivista, que relegam à criança a responsabilidade
pelo seu próprio desenvolvimento, empobrecendo suas potencialidades.
Considerada, nessas perspectivas, o sujeito ativo e principal do processo
educativo, a criança carrega boa parte da responsabilidade por seu ‘su-
cesso escolar’, não sendo considerada como indivíduo que precisa apren-
der a partir da relação com o outro mais desenvolvido – o professor4.
Em tais proposições teórico-metodológicas de inspiração cons-
trutivista, ancoradas principalmente na epistemologia genética de Jean
Piaget, há uma base biológica predominante nas internalizações con-
quistadas pelos sujeitos, as quais amparam a relação da criança com o
objeto, sendo o interlocutor mais desenvolvido apenas parte acessória
no processo, e não determinante. Dessa forma, para Piaget, “[...] o desen-
volvimento mental é independente da educação e do ensino da criança,
especialmente pelos adultos” (DAVIDOV, 1988, p. 48). Ou seja, o desen-
volvimento psíquico do sujeito, em tal perspectiva, está garantido por sua
relação com os objetos e não depende da ação intencional da educação
escolar. Ao se considerar que o ensino e o outro mais desenvolvido –
o professor – são parte acessória do desenvolvimento psíquico, a escola
incorpora um papel situado na retaguarda do desenvolvimento, traçan-
do seus objetivos de acordo com os níveis já alcançados pela criança in-
dependentemente do ensino, o que acaba por não gerar necessidades
4 O professor é encarado como interlocutor mais desenvolvido no processo de ensino e
aprendizagem por ser aquele que dispõe de apropriação conceitual mais elaborada. Além
de ser o adulto, que carrega consigo mais experiência de vida, há o traço distintivo que
marca sua atividade principal: ele já se apropriou de seu objeto de ensino e das formas de
ensiná-lo. Tem condições, com isso, de continuar apropriando-se do mundo e reelaborando
sobre tal objeto e sobre as práticas didático- metodológicas, exercendo as funções de estudo
e ensino.

181
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

nos sujeitos, mas apenas inserindo estímulos para que eles se desenvol-
vam a partir das relações com o meio.
Se para a epistemologia genética de Piaget ensino e desenvolvi-
mento estão apartados, para a psicologia histórico-cultural “[...] a tese
fundamental é que o desenvolvimento mental da criança é mediado pela
sua educação e ensino” (DAVIDOV, 1988, p. 55), entendendo-se que “[...]
aprendizado e desenvolvimento estão inter-relacionados desde o pri-
meiro dia de vida da criança” (VIGOTSKI, 2007, p. 95). Encarado o pro-
cesso dessa forma, a ação pedagógica não pode se voltar para aquilo
que o indivíduo já sabe ou já alcançou fora da escola; pelo contrário, deve
guiar-se por aquilo que a criança é capaz de aprender a partir do ensino
orientado pelo indivíduo mais desenvolvido no seio da prática social,
tendo ciência de que o aprendizado apropriado fora do ambiente esco-
lar tem caráter diferente daquele aprendido na escola, “[...] o qual está
voltado para a assimilação de fundamentos do conhecimento científico”
(VIGOTSKI, 2007, p 94). Deriva daí o conceito de zona de desenvolvimento
iminente5 elaborado por Vigotski (2007, p. 97): “[...] ela é a distância en-
tre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através
da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento
potencial, determinado através da solução de problemas sob a orienta-
ção de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes”.
Dentre outros fatores, em orientação teórico-metodológica
que elege a perspectiva histórico- cultural como fundamentação psi-
cológica do processo educativo, o ensino e a aprendizagem devem
ser orientados pelo reconhecimento do nível de desenvolvimento real
e pela projeção para o nível de desenvolvimento potencial do indivíduo,
entendendo-se que tal processo tem caráter mediado. Assim,

Precisamente nesta passagem das formas externas, re-


alizadas, coletivas, da atividade, às formas internas,
implícitas e individuais da realização da atividade – ou
seja, no processo de interiorização, de transformação do

5 Na edição consultada, tal conceito é traduzido como ‘zona de desenvolvimento proximal’.


Segue-se, neste capítulo, o entendimento de Prestes (2012) acerca de tal tradução.

182
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

interpsíquico em intrapsíquico – é que acontece o desen-


volvimento psíquico do homem. (DAVIDOV, 1988, p. 56,
grifos do autor)

É nessa esteira que a linguagem se coloca como instrumento im-


portante de reprodução e apropriação das objetivações elaboradas pelo
homem ao longo da história, de modo que a educação intencional e pla-
nejada incide diretamente na capacidade e qualidade de tais apropria-
ções. É por meio do ensino, portanto, principalmente em se tratando
dos filhos da classe trabalhadora, que o indivíduo é possibilitado a re-
produzir para si as conquistas sociais elaboradas pelo gênero humano,
apropriando-se cada vez mais do curso da história e, com isso, podendo
transformá-la. É sobre essas bases que se elabora, a seguir, uma compi-
lação sobre a alfabetização sob o enfoque histórico-cultural.

2 O desenvolvimento da fala e as contribuições da Educação Infantil


na complexificação do pensamento por meio da linguagem

A escrita, apesar de ser atividade mais complexa que a fala e re-


querer níveis de abstração nunca antes elaborados pela criança, está
relacionada, ainda assim, à linguagem oral. Ao apropriar-se da fala,
a criança, muito antes de escrever, já internaliza as funções linguísti-
cas que regem a língua materna, tais como “[...] aspectos fonéticos, le-
xicais, semânticos, sintáticos e gramaticais da língua, que se impõem
como fundamentos da aquisição da leitura e da escritura” (FRANCO;
MARTINS, 2021, p. 105). A fala é, portanto, ferramenta importante para
a apropriação da escrita, pois organiza o pensamento por meio de con-
ceitos, complexificando o funcionamento psíquico. Dessa maneira, a co-
meçar pela apropriação da linguagem oral/sinalizada, vai se constituin-
do, na criança, a possibilidade de uma capacidade unicamente humana:
o acúmulo da experiência cultural por meio da linguagem (VIGOTSKI,
1995), função que tende a se complexificar a depender das relações em-
preendidas, principalmente, no ambiente escolar, com o ensino da es-
critura e da leitura. Luria (1981, p. 269, grifos do autor) conceitua a fala
da seguinte maneira:

183
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

A psicologia moderna considera a fala como um meio es-


pecial de comunicação que usa a linguagem para a trans-
missão de informações. Encara a fala como uma forma
complexa e especificamente organizada de atividade cons-
ciente que envolve a participação do indivíduo que for-
mula a expressão falada e a do indivíduo que a recebe.

Trata-se, portanto, de uma atividade que serve, para além da comu-


nicação, como instrumento intelectual, organizador e regulador do pen-
samento, mediando a realidade. Tendo em vista sua importância para
o desenvolvimento psíquico, não há como ignorá-lo na educação esco-
lar, relegando-o à naturalidade de sua apropriação e negando as formas
de contribuir para sua evolução. É preciso, assim, que se incida de modo
intencional na reestruturação dessa fala, complexificando-a. Para isso,
lança-se mão da psicologia histórico-cultural no intento de demonstrar
a história de tal desenvolvimento desde muito cedo na criança, conhe-
cimento imprescindível para professores da Educação Infantil e para
alfabetizadores.
Ao se atentar para o desenvolvimento da fala na criança, há de
se salientar que, inicialmente, as emissões vocais produzidas pelo bebê
não estão relacionadas ao pensamento e à atividade linguística significa-
da. As primeiras reações vocais são reflexos incondicionados (VIGOTSKI,
1995) que, no decorrer do contato social, transformam-se em demandas
que visam atender a necessidades imediatas, como a fome. As reações
vocais incondicionadas e que visam ao contato social ou ao suprimento
de necessidades básicas não são linguagem propriamente dita, não ten-
do, também, qualquer relação com o pensamento, manifestando-se in-
dependentemente dele. Se tal reação configura um reflexo fisiológico,
a linguagem só pode desenvolver-se na relação dialética entre tal face
fisiológica e outra face, a psicológica/cultural.
A unidade entre pensamento e linguagem só se dará, portanto,
quando a criança internalizar a linguagem, passo importante e indis-
pensável para a formação de conceitos e a abstração, condições necessá-
rias ao desenvolvimento da escrita. Tal união, segundo Vigotski (1995),

184
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

deve acontecer por volta dos dois anos de idade, quando a criança come-
ça a elaborar conexões entre a palavra e o objeto, não operando, ainda,
com as faces que se encarregam do signo e do significado. Antes de tal
união, pensamento e linguagem são duas unidades que se desenvolvem
independentemente uma da outra. Em certo momento, diz Vigotski
(1995, p. 120, tradução nossa), pensamento e linguagem, “[...] que se-
guiram caminhos diferentes, parecem se encontrar, se cruzar, e é então
que se interceptam mutuamente. A linguagem é intelectualizada, ela se
junta ao pensamento e o pensamento é verbalizado, ele se junta à lin-
guagem”. A criança, então, estando inserida no meio social e em fre-
quente comunicação com adultos, rodeada pelos signos, vai, aos poucos,
descobrindo suas funções.
É, então, a partir do desenvolvimento da linguagem em sua for-
ma verbal/sinalizada e do pensamento, agora de forma unificada, já que
um requalifica o outro, que o indivíduo começa a humanizar-se, dife-
renciando-se dos animais. Quando a criança começa a falar, nomeando
objetos, cria- se “[...] a possibilidade da representação de algo, e esse
momento marca o início de um longo processo que traz em seu bojo
a possibilidade do desenvolvimento da escrita enquanto ferramenta psí-
quica” (FRANCO; MARTINS, 2021, p. 110). Decorre daí a importância
de relações qualificadas entre professores, principalmente da Educação
Infantil, e seus alunos, entendendo-se que, em nosso tempo histórico,
a tarefa de apresentar o mundo às crianças recai, em boa medida, aos pro-
fessores. Além do que, conforme Mukhina (1996 apud SACCOMANI,
2019), o período sensível de apropriação da fala pela criança correspon-
de à idade de um a três anos, sendo que, se tal apropriação não se inicia
nesse período, compromete-se o desenvolvimento pleno da linguagem.
A qualidade e a quantidade de palavras apropriadas pelas crian-
ças dependerão das pessoas que a rodeiam, o que é muito significati-
vo se pensarmos no salto qualitativo que a apropriação da linguagem
proporciona. É a partir de tal desenvolvimento linguístico que a relação
com o pensamento se redimensiona e organiza-se, proporcionando a re-
presentação mental do mundo exterior e o desenvolvimento de concei-
tos. A linguagem passa a ser instrumento do pensamento, organizan-

185
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

do, inclusive, o planejamento de ações, faculdade unicamente humana.


Por essa razão, esse é um período crítico para o domínio, pela criança,
da função dos objetos, o que não significa dizer que o papel da Educação
Infantil seja, apenas, o de colocar criança e objetos em interação, já que

Embora seja nuclear a relação da criança com os objetos,


Elkonin pontua que os domínios dessas ações não se efe-
tivam sem a participação dos adultos, isto é, sem um pro-
cesso educativo. Não basta, pois, guiar os movimentos
por meio de gestos, mas também por meio da linguagem.
Conforme Mukhina (1996, p. 124), “[...] o crescente inte-
resse da criança pelos objetos leva-a a procurar a ajuda
do adulto. É esse o principal estímulo que anima a crian-
ça a aprender a linguagem”. (SACCOMANI, 2019, p. 14)

Assim, a função social dos objetos e seus significados não estão


dados de imediato pela sua manipulação, como quer a epistemologia
genética de Piaget. Portanto, a criança não os assimila sem a mediação
dos significados atribuídos pelo adulto, que é o modelo e revela a função
social do objeto6. É a partir da relação com os adultos e, no caso espe-
cífico do mote deste capítulo, da relação entre professor e aluno, então,
que pode haver significativo desenvolvimento da linguagem, uma vez
que “[...] quando o adulto satisfaz os desejos da criança atendendo a seus
gestos, não há a necessidade de falar. Nesse sentido, é preciso que o
adulto provoque a fala da criança de modo que ela formule seus pedidos”
(SACCOMANI, 2019, p. 14). Aí está uma das chaves para o nascimento
cultural de um falante, que complexifica, com a ação planejada do pro-
fessor, a estrutura da língua e, em relação a ela, do pensamento.
Na Educação Infantil, portanto, é importante que se supere por in-
corporação a orientação do trabalho educativo para a face fonética-arti-
culatória da palavra, tendo em vista o primoroso e fundamental trabalho

6 Afasta-se, aqui, uma vez mais, de concepções de ensino derivadas da perspectiva constru-
tivista, para a qual a interação do sujeito com o objeto é a mais significativa para a apren-
dizagem. A psicologia histórico-cultural, pelo contrário, tem na relação com o interlocutor
mais desenvolvido e nos objetos que esse apresenta à criança a face mais importante para
o desenvolvimento e a aprendizagem.

186
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

desta etapa de ensino no desenvolvimento de sua face semântica, o que


requer que se enfatize “[...] o significado das coisas e [...] o pareamento
da palavra com uma imagem objetiva determinada” (DANGIÓ; MARTINS,
2018, p. 36). A transição entre as significações mais diretas, dadas pelos
objetos, para outras mais gerais e abstratas, é um importante avanço
para o desenvolvimento não só da linguagem, mas do pensamento. É as-
similando, dessa forma, que o significado da palavra tem uma referência
material, que a face semântica da palavra se desenvolve no psiquismo,
processo que ocorre ao longo da apropriação da linguagem. Quando
a criança começa o processo de substituição do objeto material em signo
internalizado, libera-se da presença de tal objeto para poder falar, o que
representa um salto qualitativo para o psiquismo, pois, a partir disso,
sua capacidade de abstração avança. A palavra desponta, assim, como
signo dos signos (VIGOTSKI, 2009).

Segundo Elkonin (1960), para que o bebê comece a en-


tender o idioma, é importante a orientação visual no
ambiente ao seu entorno. A compreensão inicial das pa-
lavras que os objetos denominam se expressa no bebê
que gira sua cabeça, procura e estende as mãos na dire-
ção da coisa chamada pelo adulto que questiona: “Cadê
o cachorro?”. Esse tipo de pergunta provoca na criança
reações de orientação e, quando o objeto é nomeado à
criança, ao mesmo tempo em que o observa e atua com
ele, “[...] após várias repetições, a criança estabelece a
relação entre a palavra dita e o objeto definido por essa
palavra” (idem, ibidem). O tom da pergunta, conforme
Mukhina (1996) determina a compreensão que a criança
tem da linguagem, sendo que a criança não procura o ob-
jeto apenas para ter contato com ele, mas para continuar
em relação com o adulto. (SACCOMANI, 2019, p. 9)

Isso significa dizer que, desde muito cedo, a educação escolar


deve estar comprometida com o desenvolvimento linguístico da crian-
ça, não devendo postergar ações em favor da alfabetização apenas para
o início dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Importante ressal-

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

tar, assim como o faz Saccomani (2019, p. 9), que a repetição de pala-
vras é importante à apropriação da fala, mas não como caminho único,
dado que tal processo “[...] exige a exposição a diferentes estimulações
que ampliem as relações entre objetos, sons e significados”. Dessa forma,
a tarefa primordial da Educação Infantil no que diz respeito à linguagem
é a de operar para que a criança deixe de nomear objetos apenas em sua
presença, como se o nome fosse uma extensão colada ao objeto, e passe
a operar psiquicamente com tal objeto em forma de signo, contribuindo
para a elaboração de generalizações.
Tal tarefa “[...] deve ter como objetivo favorecer a compreensão
e uso da linguagem em seus aspectos fonéticos, léxicos e gramaticais,
tendo em vista a correta articulação dos sons constitutivos das pala-
vras, a ampliação do vocabulário, a ordenação e articulação das palavras
nas orações” (SACCOMANI, 2019, p. 16). Essas apropriações são dadas
em parte pela própria estrutura do idioma em que a criança se alfabe-
tiza e, em parte, pela ação direta e intencional do professor, que deve
favorecer tais apropriações, tendo em vista, também, que são aspectos
caros à aprendizagem da leitura e da escritura. A ação do professor deve
levar em consideração, portanto, que a atividade verbal da criança se in-
tensifica no fim da primeira infância com o contato social mais amplo,
fora do círculo familiar. É nessa fase que “[...] as crianças conquistam
a capacidade de memorizar pequenos versos e contos, reproduzindo-os
com precisão. [...] essa capacidade é fundamental para enriquecer a lin-
guagem e, portanto, destacamos que esse é um dos focos do trabalho
pedagógico” (SACCOMANI, 2019, p. 16).
Para além do estudo e da consciência acerca do desenvolvimen-
to da linguagem na criança, é caro aos professores que relacionem
tal conhecimento com a periodização do desenvolvimento psíquico, pois
o planejamento de ações tendo em vista os estágios de desenvolvimento
(ELKONIN, 1987) fica mais claro e torna-se mais efetivo para os fins al-
mejados. O jogo de papéis é um estágio que deriva e se relaciona com es-
tágios precedentes, os quais compreendem a idade de zero a três anos:
comunicação emocional direta e atividade objetal manipulatória. Assim,
tal estágio de desenvolvimento é identificado quando a relação da crian-

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

ça com o objeto começa a pautar-se pelas ações dos adultos, em um jogo


de imitação. É nesse momento que a finalidade do objeto começa a mo-
dificar-se, uma vez que a criança, não tendo acesso aos objetos e às ações
do mundo dos adultos, representa, a partir daquilo a que tem acesso,
as ações e o mundo dos adultos.

Nesse sentido, segundo Varotto (2013), é importante


nesse momento o trabalho com a literatura de modo que
a criança possa interagir com a história, por meio da uti-
lização de fantoches, materiais e objetos que represen-
tem os personagens sem que necessariamente se pare-
çam com eles. Além disso, é importante promover ações
em que as próprias crianças sejam capazes de recontar as
histórias com tais objetos. O fato de os objetos não se pa-
recerem com os personagens e, portanto, representá-los,
explora a linha acessória do desenvolvimento, impulsio-
nando a criança para atividade seguinte. (SACCOMANI,
2019, p. 16)

Nesse sentido, a atitude do professor não deve estar centralizada


na diversão da criança por meio da contação e representação de histó-
rias, mas na sua capacidade de abstração ao assumir os papéis, contro-
lando, assim, seus impulsos imediatos e organizando sua conduta a par-
tir das regras. A autorregulação da conduta (VIGOTSKI, 1995) configura,
assim, objetivo central da educação escolar nesse período, conquista im-
portante no estágio do jogo de papéis. É essa regulação que abrirá espaço,
em meio a crises7, para que o próximo estágio, caracterizado pela ativi-
dade de estudo, possa firmar-se na criança. É elaborando a brincadeira
planejada pelo indivíduo mais desenvolvido do processo, portanto, que a
criança alça outro patamar em se tratando do funcionamento psíquico
relacionado à linguagem. É comunicando-se com os outros, respeitan-
do as regras do jogo, da brincadeira, expressando seus desejos e com-
7 As crises são caracterizadas por momentos em que as necessidades da criança se reconfi-
guram, o que precede o surgimento de um novo estágio e sua respectiva atividade-guia. O
desenvolvimento em meio às crises “[...] é turbulento e precipitado” (DAVIDOV, 1988, p. 92),
podendo resultar, em muitos casos, em conflitos com as pessoas que cercam a criança ou,
mesmo, insatisfação com suas atividades, pois seus interesses estão se modificando.

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

preendendo as instruções verbais recebidas que a criança desenvolve


uma linguagem mais coerente, assimilando a estrutura da língua e pre-
parando o terreno para a aprendizagem da escrita. O papel do professor
deverá ser, nesse estágio, de propor e complexificar a brincadeira, o que
pode ser feito por meio de regras de jogos e da literatura, por exemplo.
Ao compreender, através dessas propostas, o significado das formas gra-
maticais, as crianças começam a internalizar a linguagem e são capazes
de articular orações para expor o pensamento; trata-se da intelectuali-
zação da linguagem e da verbalização do pensamento (VIGOTSKI, 1995).
Trata-se, assim,

[...] da superação da linguagem situacional em direção à


linguagem contextual. A primeira é pouco organizada e a
comunicação surge motivada por uma situação concreta;
geralmente, é compreendida somente pelas pessoas en-
volvidas no diálogo e tem muitos advérbios e expressões
estereotipadas, como a palavra “aí”. [...].
A depender da qualidade das mediações, a criança desen-
volve a linguagem contextual, na qual descreve a situação
com um número suficiente de detalhes que permitem ao
interlocutor compreendê-la sem vivenciá-la (MUKHINA,
1996). Isso não significa que a linguagem situacional dei-
xa de existir. Ademais, não apenas as crianças continuam
a fazer uso dela, como também adultos o fazem em situa-
ções cotidianas. O que é importante garantir é que o uso
dessas modalidades de linguagem pela criança passe a
ter um caráter mais voluntário e socialmente apropriado.
(SACCOMANI, 2019, p. 19-20, grifos do autor)

Novamente, é papel do professor contribuir para o desenvolvi-


mento da linguagem contextual, utilizando-se dela e propondo situa-
ções em que a criança é desafiada a lançar mão de recursos linguísticos
distintos daqueles que já são do seu domínio para se comunicar ou cum-
prir tarefas – voltadas, é claro, para a humanização dos indivíduos, e não
situações artificiais e mecânicas de mero treino. A criança deve ser insti-

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

gada, assim, a elaborar construções narrativas com riqueza de detalhes,


caminhando para o uso consciente da linguagem.
É tarefa precípua da Educação Infantil, dessa forma, a organização
do trabalho educativo com vistas ao desenvolvimento consciente e vo-
luntário da fala, complexificando, tanto quanto for possível e em conso-
nância com a faixa etária e o estágio de desenvolvimento, a linguagem.
Ressalta-se que, para que as atividades que proporcionam tal objetivo
ocorram de forma planejada e intencional, é necessário que, a partir
de uma formação sólida, os professores tenham conhecimento acerca
dos conceitos linguísticos, sabendo identificar os jogos, as leituras e as
brincadeiras que proporcionam tal complexificação da linguagem.

3 O desenvolvimento da escrita e o papel central da educação esco-


lar para a alfabetização

A concepção de escrita que perpassa a psicologia histórico-cultu-


ral dá conta de uma função psicológica superior que “[...] pode ser de-
finida como uma função que se realiza, culturalmente, por mediação”
(LURIA, 2017, p. 144). Podemos afirmar, dessa forma, que é pela ativi-
dade humana que os sujeitos se apropriam de funções complexas como
a escrita, sendo condição, portanto, que se ensine e se aprenda, pela
prática educativa, a escrever, atividade para a qual o interlocutor mais
desenvolvido é parte indispensável. Tal acepção difere de metodologias
que tomam o construtivismo como fundamentação, as quais tendem
a priorizar, para o desenvolvimento, a relação entre o sujeito da apren-
dizagem e o objeto, apostando na herança genética como motor decisivo
das aquisições da criança. Para a psicologia histórico-cultural, que pauta
as práticas educativas assentadas no materialismo histórico e dialético,
as apropriações conquistadas pela criança são de outra ordem: sempre
mediadas pelo curso da história, o que implica relação entre o indiví-
duo na sua subjetividade e o gênero humano. A alfabetização, ao fim
e ao cabo, configurar-se-á como meio para que tal relação se efetive
nas práticas sociais. Pode-se dizer que, assim como no desenvolvimento
de outras funções psíquicas de segunda ordem, na apropriação da es-

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

crita coocorrem estágios plenos de descontinuidades (VIGOTSKI, 2007),


que evoluem de forma paulatina e que se iniciam na criança muito antes
do processo educativo (LURIA, 2017), de modo que cada criança replica
em si e para si o que é da história da escrita como um todo.
Ao conceber a escrita dessa forma, a concepção de alfabetização
só pode ser aquela que considera a sua função social, que está a ser-
viço, assim, da elaboração complexa do pensamento, não entendida
meramente como ato mecânico. A partir de tal pressuposto, o traba-
lho com alfabetização voltar-se-á para a aproximação a uma formação
humana integral, tomando o Sistema de Escrita Alfabética (SEA) como
instrumento para o trabalho com leitura e escritura. Nesse sentido,
a formação dos conceitos propiciada pela apropriação da fala se com-
plexifica com a apropriação da escrita, processo no qual a criança eleva
suas funções psíquicas pela condução do professor, abstraindo a lingua-
gem oral, organizando-a e transformando-a em representação gráfica
do pensamento.
Para que a alfabetização realmente se efetive como atividade hu-
manizadora, é imprescindível que o professor tenha conhecimento e in-
cida nas fases anteriores à escrita em sua função simbólica, tendo em vis-
ta que sua aprendizagem só ocorre de forma relativamente rápida “[...]
porque durante os primeiros anos de seu desenvolvimento [...] a criança
já aprendeu e assimilou um certo número de técnicas que prepara o ca-
minho para a escrita” (LURIA, 2017, p. 143-4). Isso significa, então, que a
alfabetização não caracteriza o primeiro estágio de desenvolvimento
da escrita e que é função, não só, mas também, da educação escolar a ati-
vidade intencional que promova a representação simbólica nessas fases
que antecedem a escrita como, inicialmente, recurso de memória.
Luria (2017) desenvolve suas análises sobre a pré-história da es-
crita na criança a partir de estudo experimental, elaborando sobre como
ela se apropria de tal instrumento e acaba por remontar a história da es-
crita na humanidade, ou seja, os estágios pelos quais a criança passa
ao desenvolver a linguagem escrita se assemelham àqueles percorridos
pelo gênero humano ao desenvolver tal recurso. Esse conhecimento
por parte dos alfabetizadores é necessário na medida em que, munidos

192
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

da consciência do caminho percorrido pela criança, sabendo como elas


já conseguem operar, os professores conseguem planejar o ensino e a
aprendizagem daquilo que elas ainda não capazes em relação à operação
com a linguagem escrita.
A primeira fase da pré-escrita na criança é a pré-instrumental
e coincide com a atividade de jogo – na qual as crianças reproduzem
as relações sociais8 e desenvolvem a função simbólica (DAVIDOV, 1988).
Nela, a criança imita o ato de escrever do adulto, sem ainda se utilizar
da escrita como recurso mnemônico, ou seja, o instrumento não auxilia
na rememoração do que foi ‘escrito’. Trata- se de um ato mecânico, imi-
tativo, apenas, em que os rabiscos são invariáveis. Assim, o nível de de-
senvolvimento real da criança, nessa fase, demonstra: “1) sua compreen-
são de que as pessoas utilizam a escrita; 2) sua capacidade de grafar; 3)
o conhecimento de um conjunto de objetos, situações e relações com de-
terminadas funções sociais e significados” (MARSIGLIA; SAVIANI, 2017,
p. 7). Os rabiscos registrados pela criança de forma indiferenciada de-
monstram, assim, que ela ainda não percebeu que a escrita pode repre-
sentar a fala de forma que possa se utilizar de suas anotações para res-
gatar o texto. Tais percepções por parte da criança dependerão, também,
do ambiente em que está inserida, de modo que é importante compre-
ender que, embora a fase pré-instrumental compreenda as idades de três,
quatro e cinco anos, tal período pode variar e, ainda, misturar-se a ou-
tras fases em um processo paulatino de desenvolvimento.
O objetivo por parte da pré-escola, nessa fase, deve pautar-se,
como já mencionado, pelo conhecimento do nível de desenvolvimento
real. A criança deve, assim, superar a imitação, alçando ao uso dos re-
gistros gráficos como ferramenta que auxilia a memória, para posterior-
mente assumir a função de operação psicológica. Tal crise no desen-
volvimento ocorre na fase da escrita não diferenciada, na qual, embora
a escrita ainda não tenha assumido sua função social mais ampla, a re-

8 Ressalta-se que as crianças não estão fadadas a reproduzir as relações sociais somente de
seu entorno imediato, de modo que “[...] a literatura é de grande importância para possi-
bilitar à criança o contato com personagens, tempos históricos e contextos que lhe per-
mitam a reprodução lúdica das mais variadas situações que enriqueçam seu repertório”
(MARSIGILIA, SAVIANI, 2017, p. 9).

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

lação da criança com os rabiscos é significativamente alterada: “[...] po-


de-se dizer que esses traços constituem sinais indicativos primitivos au-
xiliares do processo mnemônico” (VIGOTSKI, 2007, p. 139). Os rabiscos
funcionam, nesse caso, como recurso de memória apenas para a criança
e, ainda assim, não contêm estabilidade. Apesar disso, parece que esse
seja o primeiro rudimento da forma de escrita, já que carrega um traço
que, embora se complexifique adiante, mantem-se por toda a escrita:
a função de servir como auxiliar da memória. Trata-se, todavia, como
Vigotski (2007) pontua, de uma forma primitiva de escrita, tal qual aque-
la empregada pelos povos primitivos, transcritas por meio de sinais to-
pográficos (LURIA, 2017).
Com base nesse traço é que a criança, na fase da escrita não dife-
renciada, elabora as condições para a diferenciação exigida pela escrita.
A substituição, assim, de um signo primário não diferenciado por um
signo propriamente diferenciado caracteriza um salto qualitativo no de-
senvolvimento psíquico, configurando as condições necessárias para
a apropriação da escrita propriamente dita. A significação do signo mar-
ca, então, um passo importante no desenvolvimento da escrita, quan-
do a criança será capaz de refletir, por meio da atividade gráfica, sobre
o conteúdo registrado. Trata-se da fase da escrita gráfica diferenciada.
Luria (2017, p. 164) indica dois fatores importantes que podem le-
var a criança a passar da atividade de escrita não diferenciada para a dife-
renciada: o número/a quantidade e a forma:

Observamos que o número, ou a quantidade, foi talvez


o primeiro fator a dissolver este caráter inexpressivo e
puramente imitativo da atividade gráfica, na qual ideias
e noções diferentes foram expressas por exatamente o
mesmo tipo de linhas e rabiscos. Introduzindo o fator
número no material, pudemos prontamente produzir
uma atividade gráfica diferenciada nas crianças de qua-
tro, cinco anos, levando-as a usar signos para refletir o
número dado. É possível que as origens reais da escrita
venham a ser encontradas na necessidade de registrar o
número ou a quantidade.

194
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Para a educação escolar, tal assertiva deve refletir na introdu-


ção de elementos quantitativos em atividades que criem necessidades
e sentido para a criança. Isso, é claro, quando seu registro é ainda indi-
ferenciado, a fim de se reconfigurar e alcançar a função de instrumento
funcionalmente empregado (LURIA, 2017). A criança é capaz, aí, de ‘ler’
a sua ‘escrita’. É imprescindível, também, neste caso, que não se des-
valorize a escrita da criança por não corresponder à escrita socialmen-
te aceitável, compreendendo o salto qualitativo importantíssimo para
a continuidade do desenvolvimento e da apropriação da escrita.
O segundo fator ao qual o autor recorre para ilustrar o salto qua-
litativo entre a escrita não diferenciada e a diferenciada é a forma, aí en-
volvidas as cores:

[...] observamos que a diferenciação da escrita poderia


ser consideravelmente acelerada se uma das sentenças
ditadas dissesse respeito a um objeto bastante evidente
por causa de sua cor, forma bem-delineada ou tamanho.
[...] vimos como a produção gráfica subitamente come-
çou a adquirir contornos definidos à medida que a crian-
ça tentava expressar cor, forma e tamanho. (LURIA, 2017,
p. 166)

Deriva da combinação entre quantidade e forma a emergência


de uma nova fase: a escrita pictográfica. Nela, a criança passa a utilizar
o desenho como recurso de memória – e não mais como parte de uma
brincadeira. O desenho torna-se, assim, instrumento, o qual evolui-
rá para escrita em sua fase simbólica. Trata-se da repetição, individu-
almente, da história da escrita no curso da humanidade. Tal repetição
só ocorre devido ao caráter social – e não natural – da escrita. A função
do professor, nessa fase, é auxiliar a criança a superar por incorporação
tal recurso de memória, substituindo-o pela escrita; para que possa ope-
rar dessa maneira, “[...] o professor precisa entender esse processo desde
a sua origem na linguagem oral, ou seja, na estrutura psicológica da ati-
vidade de linguagem” (DANGIÓ; MARTINS, 2018, p. 36).

195
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

A transição entre a fase pictórica e a escrita simbólica ocorre, ge-


ralmente, entre os anos finais da Educação Infantil e os anos iniciais
do Ensino Fundamental. Daí decorre a necessária atenção ao processo
de alfabetização nesse período, que engloba, geralmente, os seis e sete
anos de idade. Aí, “[...] a fase da ‘Escrita simbólica’ já se apresenta – des-
de que, nas etapas anteriores, a promoção do desenvolvimento da crian-
ça tenha conduzido a saltos abstrativos e enriquecido sua capacidade
para elaborar generalizações mais complexas” (MARSIGLIA; SAVIANI,
2017, p. 10). Isso significa dizer que a criança, nessa fase, superou o de-
senho como forma de recurso de memória, utilizando-se, agora, apenas
do Sistema de Escrita Alfabética, que, daqui em diante, deve ser comple-
xificado com a aprendizagem de conteúdos relacionados à gramática,
como concordância nominal e verbal, gênero, número e grau, acentua-
ção, pontuação etc.
Isso não significa que o processo de alfabetização deva voltar-se
para o ensino mecânico da escrita. Não se trata, como diz Vigotski (2007),
de ensinar a criança a desenhar letras e construir palavras, de forma
que se aproprie da relação entre fonemas e grafemas, mas não seja capaz
de generalizar a relação entre sons e símbolos, o que impede uma escri-
ta autônoma. Precisa-se, para isso, “[...] ultrapassar a conexão aleatória
fonema/grafema convertendo o som em signo” (MARTINS CARVALHO;
DANGIÓ, 2018, p. 344). Tal superação está no plano da significação,
quando a criança domina o sistema simbólico de escrita, convertendo-
-se em “[...] ponto crítico de todo o desenvolvimento cultural da criança”
(VIGOTSKI, 2007, p. 126). Trata-se, pois, de um processo histórico e não
de um ato mecânico. Ainda assim, deve-se atentar para a

[...] necessidade da repetição, requerida à memorização


da relação fonema/grafema, bem como da criação do há-
bito de escrita, conferindo ênfase aos aspectos técnicos
do ato de escrever que, diga-se de passagem, muitos al-
fabetizadores tendem a abolir em nome de uma possível
descoberta espontânea por parte da criança. Quando as
ações se convertem em operações de escrita tem início
a escrita simbólica, predominantemente marcada pelos

196
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

domínios léxicos e gramaticais da língua. O salto qua-


litativo presente nesta etapa é o alcance da atividade de
es- crita, pela qual ocorre a conversão da linguagem in-
terna em linguagem externa gráfica, atendendo aos de-
terminantes do pensamento e das regras gramaticais da
língua. (MARTINS; CARVALHO; DANGIÓ, 2018, p. 344,
grifos do autor)

A linguagem escrita deve ser tomada, nesse âmbito e a partir


da psicologia histórico-cultural, como instrumento indispensável para
a complexificação do funcionamento psíquico, de modo que não pode
significar, por conta disso, apenas um hábito motor específico. Tal asser-
tiva orienta o trabalho pedagógico para uma alfabetização focada na ca-
pacidade de abstração, e não na decodificação mecânica. Novamente,
o conhecimento, por parte do professor, dos estágios do desenvolvimen-
to e suas respectivas atividades-guia torna-se de grande valia. Isso por-
que o período entre os 6 e os 10 anos de idade, correspondente à etapa
dos anos iniciais do Ensino Fundamental, condiz com a atividade de es-
tudo, e é nesse período que a alfabetização deve se consolidar. Lançando
mão de tal conhecimento, o professor deve ter como ponto de partida
tal atividade-guia, compreendendo que a atividade de jogo, embora ainda
componha o psiquismo da criança, já não é mais a atividade dominan-
te, devendo, assim, a alfabetização ser orientada majoritariamente pela
atividade de estudo, e não pela de jogo. A brincadeira, ainda que plane-
jada e com objetivos bastante marcados e conscientes, não é mais o que
colabora significativamente para o desenvolvimento da criança. O que
guia o seu desenvolvimento, neste estágio, é o estudo orientado a um
fim. Enquanto, no jogo, a criança representa as ações do adulto, no estu-
do ela está focada em dominar aquilo que o adulto domina, sem preci-
sar reproduzir suas ações para se inserir mais efetivamente nas relações
sociais, já que pela dominação da linguagem escrita e pela capacidade
de abstração cada vez mais elevada, pode compartilhar e apropriar-se
dos bens culturais produzidos historicamente.
Considera-se que o desenvolvimento do psiquismo naquilo que se
relaciona com a linguagem é marcado por três saltos qualitativos: de-

197
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

senvolvimento da fala, apropriação da escrita e conquista do pensamen-


to rigorosamente abstrato, que marca a transição à idade adulta. Sendo
assim, a escrita, na sociedade vigente, é fator importante para a huma-
nização e a pertença social. É por meio de tal apropriação que a criança
terá acesso a muitos dos bens culturais produzidos ao longo da história
e registrados por meio da escrita. Tal acesso possibilita a humanização
dos indivíduos, uma vez que cada sujeito se apropria da história inse-
rindo-se nela, em um processo contínuo de objetivação e apropriação,
o que faz com que complexifique seu pensamento. Dessa forma, “[...]
criar a necessidade de ler e escrever deve ser uma preocupação didática
de todo professor atento ao ensino produtor de desenvolvimento” (DANGIÓ;
MARTINS, 2018, p. 26, grifos das autoras). Tendo-se discorrido sobre
o desenvolvimento da fala e a apropriação da escrita, passa-se, na pró-
xima seção, àquilo que diz respeito à educação escolar quanto ao pen-
samento rigorosamente abstrato, salto qualitativo no desenvolvimento
por meio da linguagem, em direção à humanização.

4 A continuidade da educação escolar e a complexificação do pensa-


mento por meio da leitura e da escritura

Apesar de a alfabetização não se encerrar em sua função instru-


mentalizadora para o restante do percurso formativo, devendo dar-se
de maneira a possibilitar uma aproximação à humanização, ainda as-
sim ela é a “espinha dorsal da aprendizagem de todos os componentes
curriculares” (MARTINS; CARVALHO; DANGIÓ, 2018, p. 338) e, a par-
tir disso, do desenvolvimento complexo do funcionamento psíquico.
Entende-se, dessa forma, que o trabalho com a leitura e a escritura seja
de suma importância para a requalificação do pensamento, alçando suas
formas mais abstratas para, na relação com tais abstrações, possibilitar
a transformação da consciência do indivíduo e, eventualmente, do modo
de organização social vigente, o que depende também de outros fato-
res. De qualquer forma, é pela abstração possibilitada pelas formas mais
complexas de linguagem que o indivíduo coloca em xeque sua concep-
ção de mundo e desenvolve a individualidade para si (DUARTE, 2013).

198
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

O componente curricular de Língua Portuguesa consolida, dessa


forma, a continuidade do trabalho educativo focado na linguagem falada
e escrita. Tal trabalho, pensado a partir da psicologia histórico-cultural,
deve possibilitar a aproximação a essa formação humana integral, o que
vem ganhando contornos conceituais na forma da Educação Linguística,
terminologia que deriva de Britto (2012) e que corresponde ao trabalho
com o componente curricular de Língua Portuguesa a partir da perspec-
tiva que converge com o ideal formativo proposto pela filosofia marxista.
A Educação Linguística9 se orienta pelos pressupostos elencados
por Britto (2012) de que (i) a educação está a serviço do desenvolvimen-
to intelectual e social dos sujeitos e de que (ii) o ensino de língua deve
estar pautado na percepção, pelos sujeitos que aprendem, do fenômeno
linguístico como histórico e complexo, aprendendo, a partir daí, a lín-
gua em seu funcionamento, para poder utilizá-la em suas modalidades
e, principalmente, para desenvolver sua subjetividade. Nesse sentido,
acompanhando a psicologia histórico-cultural, a compreensão é de que a
língua deva ser assumida como um dos instrumentos que possibilitam
o acesso a esse saber elaborado, entendendo-se a linguagem como ins-
trumento psicológico de mediação simbólica (VIGOTSKI, 1995).
Em sendo a tarefa da educação escolar “contribuir para o de-
senvolvimento intelectual e social dos alunos” (BRITTO, 2012, p. 83),
a Educação Linguística só pode estar em favor, juntamente a outras áre-
as, desse propósito. Dessa relação, decorre que compete aos professores
de Língua Portuguesa uma “[...] ação pedagógica que leve o estudante
a perceber a língua e a linguagem como fenômenos históricos comple-
xos, a compreender seu funcionamento, usos e formas, bem como saber
usá-la com propriedade nas modalidades oral e escrita” (BRITTO, 2013,
p. 84), sem perder de vista que essa prática educativa precisa ter como
objetivo geral a humanização dos indivíduos, que diz respeito ao primei-
ro pressuposto elencado pelo autor em menção.

9 As elaborações delineadas a seguir derivam da dissertação de mestrado da autora deste


capítulo, intitulada “As possibilidades de trabalho com a especificidade da disciplina de
Língua Portuguesa em proposta educacional pautada pela pesquisa como princípio educati-
vo: uma análise à luz da pedagogia histórico-crítica”, publicada no ano de 2020.

199
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Para contribuir para essa humanização, o componente curricu-


lar de Língua Portuguesa conta com o desenvolvimento das especifici-
dades da língua, mas também da literatura, a qual “[...] não corrompe
nem edifica [...], mas, trazendo livremente em si o que chamamos o bem
e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz vi-
ver” (CANDIDO, 2012, p. 85, grifos do autor). A humanização por meio
da Educação Linguística tem por objetivo, assim, formar homens onila-
terais, “[...] alcançar o fim educativo de evitar nos jovens toda unilate-
ralidade e de estimular-lhes a onilateralidade, com o resultado prático
de torná-los disponíveis para alternar a sua atividade, de modo a satis-
fazer tanto as exigências da sociedade quanto as suas inclinações pes-
soais” (MANACORDA, 2017, p. 36). Para tal objetivo, conta-se com os
recursos da língua, promovendo a leitura e a escritura nas “[...] formas
mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações”
(CANDIDO, 2017, p. 176). Significa dizer que a promoção dos clássicos
é fator indispensável para a Educação Linguística, entendidos estes
como “[...] patrimônio cultural da humanidade, que deve ser assimi-
lado pelas novas gerações como elemento de sua plena humanização”
(SAVIANI; DUARTE, 2012, p. 30).
É função do trabalho educativo, dessa forma, trazer à tona os clás-
sicos das ciências, das artes e da filosofia, que são, ao fim e ao cabo,
os conhecimentos produzidos historicamente pela humanidade.
Partindo da compreensão da arte como “[...] a expressão defini-
tiva do desejo de construir outro mundo” e aí incluída a literatura –,
compreendemos que o estímulo à leitura a partir dessas concepções,
sem instrução do professor, não possibilita, por si só, “[...] este proces-
so de construção de outro mundo [que] supõe uma espécie de voltar-
-se para a própria vida e indagar a condição humana” (BRITTO, 2003, p.
111). A leitura de um ‘livro qualquer’, ‘por prazer’, evoca o puro entre-
tenimento, oposto do que se busca na Educação Linguística, já que “[...]
o entretenimento supõe o esquecimento, o apagamento, a evasão, a ne-
gação da própria condição humana. O entretenimento me faz esquecer
que eu morro. A arte me faz lembrar da própria morte” (BRITTO, 2003, p.
111). A promoção da literatura entra, assim, como “fator indispensável

200
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

de humanização” (CANDIDO, 2017, p. 177), tarefa que recai, a nosso ver,


no trabalho educativo comprometido com a transformação.
A aprendizagem da leitura e da escritura se configura, assim, como
o ponto de partida para a complexificação do pensamento por meio
da linguagem, em dois sentidos interligados: primeiro, como condição
para uma Educação Linguística efetiva, que esteja em favor do objetivo
mais amplo da educação; segundo, como ferramenta para o desenvol-
vimento de conhecimentos outros, como condição para o desenvolvi-
mento do próprio pensamento, como aponta Vigotski (1995, p. 128, tra-
dução nossa) ao considerar que a linguagem escrita se configura como
“[...] um sistema especial de símbolos e sinais cujo domínio significa
uma mudança crítica em todo o desenvolvimento cultural da crian-
ça”. A apropriação da escrita incorpora e supera, nessa perspectiva,
o caráter instrumentalizador. Considera-se, dessa forma, que é por meio
da internalização de signos, propiciada pela interação entre os sujeitos,
que ocorre o desenvolvimento do pensamento.
A Educação Linguística deve contribuir, assim, para o desenvol-
vimento do pensamento, entendido “[...] como função psíquica a quem
compete a conversão das relações sincréticas aparentes captáveis do real
concreto (instância empírica) em relações sintéticas, próprias ao real
pensado” (MARTINS, 2015, p. 49). É por meio da contradição entre es-
sas categorias que a Educação Linguística possibilita o desenvolvimento
do pensamento, visto que

[...] a tensão entre o empírico e o abstrato não resulta


espontaneamente, ela precisa ser provocada, instigada,
dado que nos permite afirmar a educação escolar como
uma importante condição na geração dessa tensão, e o
ensino dos conceitos científicos como criação de “des-
confiança” em relação ao imediatamente evidente na re-
alidade concreta. (MARTINS, 2015, p. 50)

Martins (2015, p. 51) acrescenta que, para Vigotski (1996),

201
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

[...] o desenvolvimento do pensamento é um processo


de desenvolvimento cultural, histórico e socialmente
condicionado que supera, por incorporação, as bases ele-
mentares e estruturais do psiquismo – inclusive as or-
gânicas. O núcleo dessa evolução reside, por sua vez, na
formação de conceitos, que sintetiza em suas diferentes
formas o movimento evolutivo do pensamento.

A Educação Linguística deve estar em favor, portanto, da forma-


ção de conceitos científicos, de modo que contribua para a superação
da experiência sensível dos sujeitos por meio de abstrações que pos-
sibilitem “[...] generalizações em graus sucessivos de complexidade,
com correspondente aprimoramento da função simbólica da linguagem”
(MARTINS, 2015, p. 53).
Como já mencionado, para a psicologia histórico-cultural exis-
te uma dependência entre o processo de abstração do pensamento
em relação às condições em que a educação escolar ocorre. Assim, se não
há acesso aos conceitos científicos na escola, mas uma exacerbação
dos conceitos espontâneos, o processo de desenvolvimento do psiquis-
mo, que deveria estar em seu mais alto nível de abstração na adoles-
cência, pode ficar comprometido. Por mais que tenha boas intenções,
o ensino que prioriza conceitos espontâneos está fadado a condicionar
os sujeitos ao seu próprio cotidiano. Mesmo que em seus objetivos se in-
clua a promoção da formação humana, caso os meios para isso estejam
pautados nos conceitos espontâneos, dificilmente se chegará a essa
formação humana integral. Por esse motivo, destaca-se a importân-
cia da coerência entre os fundamentos, a teoria e aquilo que efetiva-
mente se emprega na prática, entendendo-se que, embora a psicologia
histórico-cultural oriente a Educação Linguística para a humanização
dos indivíduos, tal formulação precisa eleger uma teoria pedagógica
para que possa se concretizar. O caminho para o trabalho com Educação
Linguística em sala de aula pode percorrer, assim, em reverberações
de Britto (2012), o conhecimento científico – entendido nas questões
especificamente linguísticas – em relação com a experiência literária –

202
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

entendida na promoção dos clássicos/da arte (DUARTE, 2016; SAVIANI;


DUARTE, 2012).

Considerações finais

Ao se entender que o ponto de partida do trabalho educativo seja,


na sociedade vigente, o vislumbre de um projeto social outro (DUARTE,
2016), destaca-se a pertinência de que isso seja realizado pelo professor
ao possibilitar o acesso, a reflexão crítica, a reprodução e a apropriação
dos bens culturais elaborados pelo homem ao longo da história. Tal di-
nâmica permite aproximação à formação humana integral dos indivídu-
os, tendo em vista que a máxima humanização está comprometida pelo
modo de produção capitalista.
Para que o indivíduo se aproprie histórica e culturalmente das ela-
borações mais complexas disponíveis e para que, assim, complexifique
seu pensamento por meio da abstração, o ensino intencional e plane-
jado é condição indispensável. Entende-se, dessa forma, que a relação
com um ser humano mais desenvolvido (no caso da educação escolar,
o professor) é condição para a realização desta tarefa central: a supera-
ção de conceitos cotidianos em direção aos conhecimentos científicos.
Para isso, é necessário que haja interação e intenção do professor para
que os alunos passem do pensamento sincrético – compreensão pulveri-
zada e confusa do todo – ao pensamento sintético – compreensão orga-
nizada da totalidade por meio de abstração teórica.
Diante disso, como buscou-se demonstrar, a alfabetização torna-
-se um dos pontos cruciais que possibilita o processo de apropriação
e complexificação do funcionamento psíquico. Não se trata, entretanto,
de ensinar a escrever para o automatismo restrito, que não se desprende
da forma fonética da palavra, mas de alfabetizar pela e para a humani-
zação, criando motivos para que a leitura e a escritura sejam necessárias
à criança. Só por esse caminho o indivíduo desenvolve, de forma revo-
lucionária, o salto qualitativo que incorpora a escrita como uma forma
complexa de linguagem, coisa que o hábito motor não proporcionará.
Portanto, “[...] o que se deve fazer é ensinar às crianças a linguagem es-

203
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

crita e não apenas a escrita de letras” (VIGOTSKI, 2007, p. 145). Trata-se,


nesse sentido, de incidir no desenvolvimento do pensamento abstrato,
relacionando de forma dialética a face fonética da palavra à sua face se-
mântica, a fim de que, cada vez mais, o indivíduo seja capaz de explicar,
entender e transformar a si e ao mundo em que vive, não estando à mer-
cê do campo semântico alheio.
Diferentemente do que possa parecer e daquilo que as orientações
nacionais em documentos oficiais têm encaminhado, esse processo,
que é, enfim, a própria formação humana integral, deve ser empreendido
desde muito cedo, já na Educação Infantil. Vigotski (2007, p. 142), aliás,
aponta que “[...] seria natural transferir o ensino da escrita para a pré-
-escola”, já que crianças bem pequenas são capazes de perceber a fun-
ção simbólica da escrita, sendo, a maioria delas, capaz de ler aos quatro
anos e meio. Novamente, isso não significa ensinar pelo hábito motor,
mas partir da zona de desenvolvimento iminente da criança, projetando-se
o futuro em suas máximas possibilidades.

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206
SEÇÃO III

IMPLICAÇÕES
TEÓRICO-
METODOLÓGICAS
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

ALFABETIZAÇÃO NA/PARA A PRÁTICA SOCIAL:


A LEITURA E A ESCRITURA COMO PROCESSOS
ARTICULADORES E DESENCADEADORES

Larissa Malu dos Santos1

Ao assumirmos como estofo o entrelaçamento da psicologia histó-


rico-cultural e da pedagogia histórico-crítica, alguns pressupostos-base
colocam-se de saída em nossa compreensão sobre o processo educati-
vo e, igualmente, sobre o processo de alfabetização. O primeiro deles,
poderíamos dizer, refere- se ao fato de serem as produções humanas –
aí incluída a linguagem escrita – fruto do trabalho humano, no sentido
materialista, histórico e dialético do termo (MARX, 2010 [1844]). São as
condições históricas e objetivas que culminam na objetivação dos co-
nhecimentos produzidos pela humanidade, assim como na própria rea-
lidade social.
Nesse sentido, compreendemos que o mundo real é um mundo
transformado e criado intencionalmente, por meio da atividade teleoló-
gica que é o trabalho (MARX, 2010 [1844]), a partir de um processo dialé-
tico entre objetivação e apropriação. Esse mundo criado e transformado
pela atividade humana não é algo dado a priori aos sujeitos: “[...] en-
quanto tal, apresenta-se a cada indivíduo como um problema a resolver”
(LEONTIEV, 1959, p. 180), isto é, cada novo indivíduo da espécie humana
precisa se apropriar daquilo que já foi objetivado pelas gerações anterio-

1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal


de Santa Catarina, na área de concentração Linguística Aplicada. Graduada em Letras-
Português e mestre em Linguística pela mesma universidade.

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res, processo esse que não acontece de forma linear e espontânea, mas,
sim, de forma revolucionária (VYGOTSKI, 2012 [1931]). Fato é que a rea-
lidade, enquanto algo que é criado pelos homens, precisa ser apreendida
por cada novo indivíduo da espécie humana, de modo que ele se aproxi-
me do que denominamos como genérico humano.
Ao pensarmos sobre o conceito de prática social, a compreen-
são de que a realidade é fruto da atividade humana torna-se essencial.
Para que ampliemos essa noção de modo que ultrapasse uma acepção
que se restrinja ao campo da cotidianidade, faz-se necessário que reto-
memos a teoria materialista, a qual defende que a prática social é fruto
da história e de uma relação dialética entre objetividade e subjetividade.
Tal relação aponta para o fato de que essa prática não pode ser apenas
do campo utilitário, isto é, não pode ser estritamente prática. Como de-
fendeu na sua filosofia da práxis, Gramsci (1968) nos mostra que pensar
em práxis significa compreender a realidade a partir da relação entre
teoria e prática, entre o pensamento e aquilo que é de fato objetivado,
de modo que a capacidade de abstração entra como ponto fundamental
para a compreensão e a criação/transformação do que assumimos como
prática social.
Tomando, portanto, a centralidade da capacidade de abstração para
que a relação dialética entre objetivação e subjetivação funde a própria
prática social, assumimos a relevância que o conhecimento tem nessa
perspectiva. Corroborando a definição da escola como “uma instituição
cujo papel consiste na socialização do saber sistematizado” (SAVIANI,
1984, p. 2), de modo que esse saber faculte aos indivíduos a compreen-
são de que são eles produtores dessa prática social, a qual é produzia
através do processo dialético entre teoria e prática, defendemos que,
se quisermos tomar essa noção como horizonte nas nossas salas de aula,
faz-se necessário uma compreensão epistemológica do que ela de fato
significa. Nas últimas décadas, vimos sobremaneira o conceito de prá-
tica social adentrar os documentos e as teorias pedagógicas, sem que,
na grande parte das vezes, os professores de fato compreendessem a que
prática se refere. Seria uma prática social vinculada ao dia a dia dos in-
divíduos, ou se propõe uma prática social que ultrapasse a vida empírica,

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

de modo a reproduzir diretamente nos sujeitos a humanidade produzida


pela história?
Defendendo, portanto, uma acepção de prática social em que
se suscite questões relacionadas ao genérico humano, facultando aos in-
divíduos uma compreensão de que tal prática é fruto de suas próprias
mãos, veremos que o desenvolvimento da capacidade de abstração des-
ponta como fundamental. É por meio dela que os indivíduos podem
se tornar capazes de perceber as contradições impostas na atual forma
de se viver em sociedade e o fato de que, se quisermos superá-la, faz-se
necessária uma apreensão do que seja a realidade. Quer dizer, os indi-
víduos precisam conhecer e ver a si mesmos espelhados nessa prática
social para poderem transformá-la. Para tanto, os conhecimentos ob-
jetivados pelas gerações anteriores precisam ser apropriados, de modo
que a alfabetização, certamente, entra aí, como passo importante nesse
processo que permitirá a almejada formação da consciência (de classe)
nos indivíduos.
Nesse sentido, corroboramos a afirmação de que a apropriação
da linguagem escrita é “[...] certamente, a mais importante função da es-
cola, já que outros processos de aprendizagem são dependentes dela”
(MARTINS; CARVALHO; DANGIÓ, 2018, p. 338). Os processos de leitura
e escritura, como objetivações criadas pela humanidade que necessitam
ser apropriadas, tornam-se de suma importância uma vez que, através
da possibilidade de escritura e, sobretudo, de leitura, os indivíduos po-
dem se apropriar de tantos outros conhecimentos, especialmente da-
queles que propiciam os mais altos graus do desenvolvimento humano,
sejam eles do campo científico, filosófico ou artístico. Por assim dizer,
“[...] a apropriação da escrita se torna um dos requisitos básicos para
que os indivíduos se humanizem e conquistem pertença social efetiva,
haja vista que ambas se firmam, cada vez mais, como lastros da socieda-
de moderna” (MARTINS; CARVALHO; DANGIÓ, 2018, p. 338).
Ao tomar o processo de apropriação da linguagem escrita como
algo que é desencadeador e articulador da própria prática social, dis-
cutiremos sobre como, ao longo do processo de alfabetização, diversos
saltos qualitativos são gerados em termos do desenvolvimento psíquico

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dos indivíduos, de modo que, nesse percurso, a própria inserção des-


ses sujeitos naquilo que denominamos como genérico humano vai sendo
efetivada. Ao realizar atividades, dentro da prática social, que veiculam
tanto questões práticas quanto questões subjetivas, psíquicas, veremos
que o processo de alfabetização cumpre papel importante no desenvol-
vimento de uma futura compreensão abstrata e consciente da realidade.
Ao tomarmos, enfim, como estofo desta discussão, o materialismo
histórico-dialético, procuramos evidenciar que defender uma prática so-
cial que se coloque como revolucionária significa assumir o nosso com-
promisso com uma formação humana que tenha em vistas a transforma-
ção da atual forma de vivermos em sociedade, a qual se pauta na lógica
do capital. Para tanto, precisamos que a consciência pautada na vida
empírica, a qual reproduz uma compreensão acerca da natureza de for-
ma fetichizada, seja superada, de modo a se instaurar, enfim, uma práxis
revolucionária.

1 Mas que prática social é esta?2

Afirmamos, anteriormente, que o trabalho é categoria central para


pensarmos a formação humana. Isso porque, para Marx (2010 [19844]),
é a partir dessa atividade teleológica que nos distanciamos dos animais
e, portanto, podemos confirmar o homem como ser genérico. A história
social emerge e se distancia da história puramente animal quando, para
além de satisfazer apenas suas necessidades básicas – de alimentação
e de segurança –, os indivíduos passam a transformar o mundo natural
intencionalmente. Retomemos a distinção apresentada por Marx (2010
[1844], p. 85) nos Manuscritos econômico-filosóficos:

É verdade que também o animal produz. Constrói para


si um ninho, habitações, como a abelha, castor, formiga
etc. No entanto, produz apenas aquilo de que necessita
imediatamente para si ou sua cria; produz unilateral[-

2 A discussão aqui apresentada de forma bastante introdutória é fruto da pesquisa intitula-


da Mas que prática social é esta? Diferentes acepções e implicações para o ensino de línguas
(SANTOS, 2020).

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mente], enquanto o homem produz universal[mente]; o


animal produz apenas sob o domínio da carência física
imediata, enquanto o homem produz mesmo livre da ca-
rência física, e só produz, primeira e verdadeiramente, na
[sua] liberdade [com relação] a ela; o animal só produz a
si mesmo, enquanto o homem reproduz a natureza intei-
ra; [no animal,] o seu produto pertence imediatamente
ao seu corpo físico, enquanto o homem se defronta li-
vre[mente] com seu produto. O animal forma apenas se-
gundo a medida e a carência da species à qual pertence,
enquanto o homem sabe produzir segundo a medida de
qualquer species, e sabe considerar, por toda a parte, a
medida inerente ao objeto; o homem também forma, por
isso, segundo as leis da beleza.

Nesse sentido, compreendemos que o que nos torna huma-


nos é justamente essa possibilidade de criar “livremente”3, no sentido
de não estarmos restritos àquilo que o código genético nos disponibiliza,
tal como nas espécies de abelhas e de formigas. Nos tornamos genéricos
na medida em que utilizamos da natureza não apenas para satisfazer
aquilo que é da ordem do imediato, mas para criar instrumentos inúme-
ros que servirão, de alguma forma, a nosso favor.
Para embasar tal discussão, faz-se necessário rememorar que, para
a fundamentação marxista, a realidade social é criada a partir de um
processo dialético entre objetividade e subjetividade (TONET, 2013).
Nessa perspectiva, compreendemos que a natureza, a objetividade, pre-
cede a razão humana, enquanto a subjetividade funda-se a partir da-
quilo que está posto, daquilo que existe. O que existe, existe para além
da razão humana. Porém, quando compreendemos que o trabalho é a
categoria que nos permite tomar a realidade social como um processo
mediado e previamente idealizado pelas ações humanas, significa dizer
que as gerações anteriores tiveram de se apropriar daquilo que já estava
posto para, através de um processo de abstração – e aí entra a subje-

3 As aspas aqui são utilizadas para marcar a impossibilidade de se criar, de fato, livremente
num mundo premido pela lógica capitalista, discussão adensada à frente.

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A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

tividade – retornar à realidade para transformá-la. É justamente esse


processo dialético que funda a própria práxis.
Para que a referida práxis, ou, se quisermos, a prática social seja
engendrada, os processos de objetivação e apropriação se tornam, por-
tanto, essenciais. Se afirmamos que é através da capacidade de prévia-
-ideação, mediada pelo trabalho (MARX, 2010 [1844]; LESSA, TONET,
2012), que o intercâmbio do homem com a natureza ganha luz, para
que tal nascimento da história social se edifique fez-se necessário que o
homem imprimisse na realidade características humanas. Quer dizer,
a natureza passou a conter características para além daquelas produ-
zidas por intempéries ou fatores puramente naturais; passou a existir
uma realidade objetivada, porque fruto do trabalho humano. Nas pa-
lavras de Marx (2010 [1844], p. 80): “O produto do trabalho é o traba-
lho que se fixou num objeto, fez-se coisal, é a objetivação do trabalho.
A efetivação do trabalho é sua objetivação”. O objeto passa, portanto,
pelas mãos humanas, ocupando uma função social e efetivando-se como
um instrumento ao ocupar um lugar na prática social.
A respeito do processo de apropriação, podemos tomá-lo como
o caminho inverso da objetivação: trata-se do momento em que os in-
divíduos passam a deter as propriedades que estão contidas no obje-
to, sejam elas fruto da ação humana ou puramente naturais. E é a par-
tir da apropriação daquilo que foi criado e/ou daquilo que está posto
que podem os homens gerar novas objetivações. Nesse sentido, corro-
boramos Duarte (2013) quando da afirmação que podemos chamar esse
ciclo como ‘nascimento que se supera’: o homem parte da realidade,
apropria-se dela, gerando novas objetivações4. E a cada nova objetivação
realizada, torna-se necessário que a realidade seja novamente apropria-
da, já que não é mais a mesma.

4 Frisamos, aqui, que o processo de objetivação não ocorre apenas quando se cria algo novo;
trata-se de um processo histórico que permite o engendramento da própria práxis. A lin-
guagem, a exemplo, é um instrumento que necessita ser objetivado por cada novo indivíduo
pertencente à espécie humana, já que dela precisa se apropriar.

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Importa dizer que, tendo em vista que estamos longe de defender


uma perspectiva de cunho estritamente biológico5, para que os homens
se tornem pertencentes àquilo que defendemos como genérico huma-
no, o processo de apropriação é fundamental. Destacando a distinção
feita por Duarte (2013) entre espécie humana e gênero humano, com-
preendemos que, enquanto a primeira diz respeito ao código genético,
à reprodução puramente biológica do organismo, a segunda categoria
relaciona-se com a apropriação que as novas gerações precisam realizar
daquilo que foi produzido no curso da história. Isto é, para que a gene-
ricidade humana seja efetivada, faz-se necessário que cada novo indiví-
duo seja inserido no curso da história, a fim de que se aproprie das obje-
tivações já criadas pelos homens, o que só é possível através das relações
sociais. Mais do que isso: tal processo apenas se efetiva a partir da inter-
locução com o outro mais desenvolvido6.
Tomando como ponto de partida, portanto, o fato de a realidade
social, a práxis, ser fruto da relação dialética entre objetividade e sub-
jetividade, e compreendendo que tal relação se torna possível a partir
dos processos de objetivação e de apropriação, podemos afirmar que

Precisamente por isso, na elaboração do mundo objetivo


o homem se confirma, em primeiro lugar e efetivamente,
como ser genérico. Esta produção é a sua vida genérica
operativa. Através dela a natureza aparece como a sua
obra e a sua efetividade. O objeto do trabalho é portanto
a objetivação da vida genérica do homem: quando o ho-

5 Evidentemente, há predisposições biológicas que nos permitem desenvolver certas apti-


dões humanas – a exemplo da própria linguagem. No entanto, seguindo os postulados da
psicologia histórico-cultural, compreendemos que mesmo as características que se colo-
cam como biológicas são fruto do desenvolvimento humano, o qual está diretamente rela-
cionado ao trabalho. Ainda sobre a linguagem, Engels (2004 [1876], p. 15) afirma: “a neces-
sidade criou o órgão”, justamente por compreender que o desenvolvimento da humanidade
está diretamente relacionado às necessidades que foram se impondo ao longo da evolução,
de modo que as próprias questões biológicas foram se modificando a partir do percurso
histórico.
6 Tendo em vista que o palco da discussão aqui fundada é a educação escolar, cabe ressaltar
que compreendemos que o papel do professor, nesse processo, não é apenas ‘mediar’ – no
sentido que as diversas perspectivas do aprender a aprender dão ao termo – mas, sim, de
fato transmitir aos estudantes os conhecimentos que necessitam ser apropriados pelos su-
jeitos, para que estes possam acessar o que é do âmbito do genérico humano.

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A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

mem se duplica não apenas na consciência, intelectu-


al[mente], mas operativa, efetiva[mente], contemplan-
do-se, por isso, a si mesmo num mundo criado por ele.
(MARX, 2010 [1844], p. 85, grifos do autor)

Ou seja, quando pensamos em prática social a partir do funda-


mento do materialismo histórico- dialético, estamos tomando de forma
central o trabalho como a categoria que permite que a práxis seja ins-
taurada, a partir de um processo mediado, perpassado pela consciência.
A tomada de consciência nos é bastante cara por compreendermos que a
criação da realidade social é efetivada, assim como o ser humano como
ser genérico, por meio da dialética entre razão e mundo, entre homem
e natureza. Se esta se impõe de antemão, é apenas através da interferên-
cia do homem, da abstração, que ela ganha outro contorno, quer dizer,
que se torna uma realidade objetivada. A dialética entre objetividade
e subjetividade é o motor da prática social, a qual se funda por meio
de uma ação consciente, teleológica, intencional do homem. Disso de-
corre a importância do conhecimento, para que essa prática social se es-
tabeleça da forma como a compreendemos. É preciso que os homens
se apropriem daquilo que foi criado ao longo da história para que essa
prática seja passível de transformação.
O que percebemos, no entanto, é que, na atual forma de vivermos
em sociedade, a lógica do capital não faculta aos indivíduos tal tomada
de consciência. Apesar da história social, da cultura dos homens ser fru-
to do trabalho – no sentido marxiano do termo (MARX, 2010 [1844]) –,
o que vimos, na realidade, é uma desefetivação do trabalho como catego-
ria vital. Ao entrar para a lógica mercantilista, pautada puramente no lu-
cro, o trabalho humano, no lugar de nos aproximar daquilo que com-
preendemos como genérico humano, torna-se a própria desefetivação
de tal genericidade. Isso porque, muito longe de ser uma atividade
que advém de um processo teleológico, a partir do qual os indivíduos po-
dem transformar a realidade a seu favor, o trabalho torna-se puramen-
te uma forma de se manter vivo. Nas palavras de Duarte (2013, p. 22),
o trabalho “[...] deixa de ser uma atividade humanizadora para ser meio
de sobrevivência”.

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A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Assim, se o que nos torna humanos é a capacidade de antecipar


na nossa consciência o resultado de nossa ação (LESSA; TONET, 2011),
de modo que os indivíduos, antes de transformar a natureza, são capazes
de vislumbrar os possíveis desdobramentos de tal atividade, de idealizar
previamente o que se pretende criar, vimos, no mundo capitalista, como
essa lógica é, ao fim, invertida. O trabalho, na forma como se concretiza
em nossa sociedade, não faculta aos indivíduos tal tomada de consciên-
cia, tal compreensão da realidade e das suas possibilidades de transfor-
mação. O trabalho, como aponta Marx (2010 [1844]), torna-se uma ati-
vidade estranha, uma atividade feita apenas para a manutenção da vida.
Transformado – como tudo – em pura mercadoria, o trabalho é, para
a grande massa de trabalhadores, apenas um meio de (sub)existência,
que faculta, quando muito, condições para que o ‘exército de trabalha-
dores’ se mantenha vivo.
Essa discussão é de suma relevância, uma vez que, se estamos pen-
sando em gênero humano e na importância da apropriação dos diversos
conhecimentos para que as novas gerações se aproximem desse gené-
rico, a tomada de consciência de que somos nós os criadores da referi-
da prática social é essencial. Isso porque, na atual forma social em que
vivemos, no mundo do capital, essa consciência é brutalmente negada.
Ora, se o que nos distancia dos animais é justamente o fato de podermos
transformar a natureza a nosso favor, como poderíamos dizer que isso
se concretiza na sociedade capitalista, quando uma massiva parte da po-
pulação assume jornadas incansáveis para a produção de instrumentos
que, de forma generalizada, raras vezes são usufruídos pelos próprios
trabalhadores? Daí a noção de trabalho estranhado, empregada por Marx
(2010 [1844]). O trabalho, que deveria ser a atividade pela qual nos hu-
manizamos, torna-se algo que é estranho porque não pertence ao tra-
balhador. E, como aponta Marx (2010 [1844], p. 85), “[...] consequente-
mente, quando arranca do homem o objeto de sua produção, o trabalho
estranhado arranca-lhe sua vida genérica, [...] e transforma sua vanta-
gem com relação ao animal na desvantagem de lhe ser tirado seu cor-
po inorgânico, a natureza”. Nesse sentido, o processo de objetivação
e apropriação, motor da própria prática social, torna-se, na forma social

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A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

burguesa, a perda do objeto e seu estranhamento (MARX, 2010 [1844]).


Na medida em que cria objetos que não são seus, o homem perde a sua
própria criação, perde sua genericidade. Sem poder se apropriar das ob-
jetivações já existentes, não é possível que os trabalhadores acessem
aquilo que é do campo universal da humanidade, aquilo que toca o gê-
nero humano.
Gramsci (1968), ao aprofundar suas reflexões acerca do que seja
a práxis, adensa tal discussão por compreender, a partir da dialética
marxiana, que a realidade social só se faz possível por meio da relação
direta entre o fazer e o pensar; entre teoria e prática. Afirmando que a
transformação da natureza, a criação da história da cultura dos homens,
só emerge através do intelecto humano, o filósofo defende que “[...] to-
dos os homens são intelectuais, poder-se-ia dizer então; mas nem to-
dos os homens desempenham na sociedade a função de intelectuais”
(GRAMSCI, 1968, p. 7, grifos nossos). Ainda que nem todos os indivíduos
ocupem posições sociais relacionadas diretamente a produções intelec-
tuais, todos os trabalhadores realizam atividades que são, a um só tem-
po, fruto de abstrações teóricas e de objetivações concretas. Em suas pa-
lavras: “[...] não existe atividade humana da qual se possa excluir toda
intervenção intelectual, não se pode separar o homo faber do homo sa-
piens” (GRAMSCI, 1968, p. 7, grifos do autor). Ainda:

Na verdade, o operário ou o proletário, por exemplo, não


se caracteriza especificamente pelo trabalho manual ou
instrumental, mas por este trabalho em determinadas
condições e em determinadas relações sociais – em qual-
quer trabalho físico, mesmo no mais mecânico e degra-
dado, existe um mínimo de qualificação técnica, isto é,
um mínimo de atividade intelectual criadora. (GRAMSCI,
1968, p. 7)

Isso significa que toda atividade humana envolve sempre um mí-


nimo de abstração teórica, por mais prática – no sentido estrito do termo
–, por mais mecânica que seja. Ainda que, como apresentado, no mundo
do capital os homens não tenham consciência da relação, da forma como

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
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os conhecimentos são mobilizados para que as diversas atividade sejam


efetuadas, fato é que o caráter intelectual das atividades está sempre
presente, já que as transformações que realizamos na natureza são fruto
de um processo que é sempre mediado pela nossa subjetividade7.
Ora, ao pontuarmos que a práxis, ou a prática social, só se torna
possível mediante a relação dialética entre teoria e prática, de modo
que se parte da realidade existente, apropriando-se dela para objetivá-
-la, e que para tanto é fulcral a capacidade de abstração teórica da reali-
dade, destacamos a importância do conhecimento para essa perspectiva.
Isto é, só podemos transformar a prática social se a conhecermos, já que
partimos sempre daquilo que está posto, e, mais importante que isso,
assumimos que a realidade não é fruto de criações divinas e nem mesmo
regida pela força do pensamento – como perspectivas neoliberais exaus-
tivamente tentam propagar –; a história social é fruto das objetivações
concretas, realizadas por homens e mulheres concretos.
Nesse sentido, parece-nos bastante relevante assumir a importân-
cia do conhecimento para essa perspectiva, já que estamos defendendo
uma noção de prática social que vincula teoria e prática. Temos visto,
de forma bastante alargada, perspectivas do campo pedagógico advo-
gando por uma prática social que, no mais das vezes, circunscreve-se
apenas ao âmbito da prática em si, ao fazer. Sendo tomado a partir de um
viés que tem em vista a vida operativa, o conceito de prática social as-
sume um compromisso relativo puramente à vida utilitária, de modo
que importa que os alunos aprendam a fazer. Podemos citar, a exemplo,
a chamada pedagogia tecnicista, cujas premissas advogam por um ensino
escolar em que os alunos aprendam questões práticas, para que possam
se adequar à vida em sociedade. Também, que aprendam questões relati-
vas ao trabalho, às operações técnicas, enfim, questões voltadas ao mer-
cado. Porém, se pretendemos lutar por uma prática social que ultrapasse
essas questões puramente empíricas e que se volte para uma formação
humana preocupada sobretudo com a apropriação dos conhecimentos

7 Importante ressaltar que, quando falamos de subjetividade, longe de defender uma pers-
pectiva subjetivista, estamos utilizando tal categoria sempre em relação dialética com a
categoria da objetividade, em conformidade com as teorizações marxianas.

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A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

elaborados pelas gerações passadas, que não tenha como norte a mera
adequação dos sujeitos ao modo social vigente, não basta que fiquemos,
em nossas aulas, restritos às questões puramente práticas e imediatas
da vida dos estudantes.
A fim de adensar tal discussão, retomamos Vázquez (2011 [1967])
quando o autor aponta a distinção entre a prática social que é do campo
da imediatez e aquela que seria vinculada a uma práxis revolucionária.
Segundo o autor, faz-se necessário que superemos o que ele denomi-
na de consciência comum, sendo justamente a consciência pertencente
à classe dos trabalhadores, a qual, desprovida de consciência de classe,
não se torna capaz de alçar uma compreensão da prática social como
algo que é fruto de suas próprias mãos. Para a consciência comum, não há
uma compreensão da dialética aqui apontada, entre teoria e prática, en-
tre apropriação e objetivação; a vida é prática no sentido restrito da pa-
lavra. Defendendo a superação de tal consciência para que se alce a uma
verdadeira compreensão da práxis como fruto de um processo histórico,
o autor defende que

[...] a destruição da atitude própria à consciência comum


é condição indispensável para superar toda consciência
mistificada da práxis se elevar-se a um ponto de vista ob-
jetivo, científico, a respeito da atividade prática do ho-
mem. Só assim podem unir-se conscientemente o pensa-
mento e a ação. No entanto, sem transcender os limites
da consciência comum, não só é impossível uma verda-
deira consciência filosófica da práxis, como também é
impossível elevar a um nível superior – isto é, criador –,
a práxis espontânea e reiterativa de cada dia. A teoria da
práxis revolucionária exige a superação do ponto de vista
natural, imediato, adotado pela consciência comum do
proletariado. (VÁZQUEZ, 2011 [1967], p. 32-3, grifos do
autor)

Por assim dizer, Vázquez (2011 [1967]) reflete sobre a necessidade


de romper com essa consciência comum que, em sendo do âmbito da co-

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A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

tidianidade, do fazer, da vida utilitária, compreende que a vida prática


é autossuficiente. Trata-se, portanto, de uma consciência que, sem com-
preender as contradições impostas pelo mundo do capital, vê a tomada
de consciência intelectual, teórica, como algo dispensável, já que, para
a consciência comum, pode se compreender o mundo apenas através
da forma como ele se estabelece, apenas através do campo das relações.
Registra Vázquez (2011 [1967], p. 38):

O homem comum e corrente, imerso no mundo de inte-


resses e necessidades do cotidiano, não se eleva a uma
verdadeira consciência da práxis capaz de ultrapassar os
limites estreitos de sua atividade prática para perceber
[...] até que ponto, com seus atos práticos, está contri-
buindo para escrever a história humana.

Se pretendemos, portanto, pensar em uma prática social que esteja


vinculada a uma concepção de práxis revolucionária – e isso significa es-
tar vinculado a um projeto social marcado, em que se busque uma efetiva
transformação da referida prática social, tendo em vista uma outra forma
de se viver em sociedade –, é necessário que compreendamos a impor-
tância de se efetivar a relação aqui exposta entre teoria e prática. A re-
alidade precisa ser compreendida pelas novas gerações a partir de sua
essência, que nada mais é do que o próprio trabalho humano. O conhe-
cimento das contradições impostas na nossa sociedade, de forma geral,
precisa ser apropriado pelas novas gerações, assim como o conhecimen-
to dos conteúdos mais desenvolvidos já produzidos pela humanidade.
Esse processo é central quando pensamos em uma formação que se
queira humana e propiciadora de uma prática social revolucionária.
Nesse sentido, ao refletir sobre o ensino engendrado no espaço es-
colar, retomamos as discussões realizadas pela pedagogia histórico-crí-
tica (SAVIANI, 2012 [1983], 2013; DUARTE, 2016) acerca da importância
da transmissão dos conhecimentos, especialmente aqueles do campo
da ciência, da filosofia e da arte. Duarte (2001, 2008, 2010) apresenta,
em diversos trabalhos, a forma como as pedagogias hegemônicas, de-
nominadas como pedagogias do aprender a aprender (pedagogias pauta-

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

das no construtivismo, a pedagogia do professor reflexivo, a pedagogia


das competências, a pedagogia dos projetos e a pedagogia multicul-
turalista), têm alçado uma perspectiva de educação em que o conhe-
cimento acaba ocupando um lugar muito periférico nas salas de aula.
Segundo Duarte (2010), para tais correntes pedagógicas importa muito
mais que os alunos desenvolvam um método de aprendizagem, ou seja,
que eles aprendam sozinhos, do que de fato eles aprendam os conteúdos
que são ensinados por outra pessoa (no caso, o professor). Tais perspec-
tivas se colocam como problemáticas a partir do fundamento que aqui
se apresenta, na medida em que, por mais que haja uma defesa por se
voltar os conteúdos para as práticas sociais dos sujeitos, tais práticas es-
tão diretamente relacionadas às questões cotidianas, empíricas desses
sujeitos. No campo da alfabetização, podemos citar, a exemplo, os pro-
jetos de letramento (KLEIMAN, 2000) como uma perspectiva que tem
como centro essa prática social que é circunscrita ao cotidiano, àquilo
que é do campo da imediatez. Ao corroborar os postulados das peda-
gogias do aprender a aprender, tal perspectiva coloca no centro do pro-
cesso educativo os sujeitos e os métodos, secundarizando os conteúdos.
Retomemos a definição proposta por Kleiman (2000, p. 238):

[...] por projeto de letramento entendemos um conjun-


to de atividades que se origina de um interesse real na
vida dos alunos, e cuja realização envolve o uso da es-
crita, isto é, a leitura de textos que, de fato, circulam na
sociedade e a produção de textos que serão lidos, em um
trabalho coletivo de alunos e professor, cada um segundo
sua capacidade.

Apresentar o processo educativo como algo que se origina a partir


de um interesse da vida dos alunos, relacionado com sua vida ‘real’, pa-
rece-nos sobremaneira vinculado a um projeto que pretende ter em foco
a vida empírica dos sujeitos, e não as objetivações já desenvolvidas pelo
gênero humano. Ancorando-se na pedagogia histórico-crítica, defende-
mos que é o professor, como adulto mais desenvolvida na relação profes-
sor-aluno, quem deve ser responsável pela sistematização e também pela

221
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

transmissão dos conteúdos que são significativos para os estudantes. E o


fato de ser significativo, aqui, não está relacionado com aquilo que é
da ordem do imediato, com aquilo que os alunos precisam aprender para
se inserir no mercado de trabalho e na lógica capitalista. A escola, como
espaço que pode ser propulsor de uma transformação social, deve com-
preender como conteúdos pertinentes ao ensino sistematizado aqueles
que se referem às mais complexas elaborações criadas pelas gerações
anteriores e que necessitam ser apropriadas pelas novas gerações. É por
esse motivo que Saviani (2012 [1983], p. 55, grifos nossos) defende que

[...] nós atuemos segundo essa máxima: a prioridade de


conteúdos, que é a única forma de lutar contra a far-
sa do ensino. Por que esses conteúdos são prioritários?
Justamente porque o domínio da cultura constitui um
instrumento indispensável para a participação política
das massas. Se os membros das camadas populares não
dominam os conteúdos culturais, eles não podem fazer
valer os seus interesses, porque ficam desarmados con-
tra os dominadores, que se servem exatamente desses
conteúdos culturais para legitimar e consolidar a sua
dominação. Eu costumo, às vezes, enunciar isso da se-
guinte forma: o dominado não se liberta se ele não vier
a dominar aquilo que os dominantes dominam. Então,
dominar o que os dominantes dominam é condição
de libertação.

Corroborando a afirmação de que se faz necessário ultrapassar


os conteúdos relativos ao dia a dia, retomamos a discussão apresentada
por Heller (2014 [1970]) sobre a vida cotidiana e as relações com a vida
genérico-humana. Compreendendo que a história é a substância da so-
ciedade, uma vez que esta “[...] não dispõe de nenhuma substância além
do homem [...], cabendo-lhe exclusivamente a construção e transmissão
de cada estrutura social” (HELLER, 2014 [1970], p. 12), a autora indica
que tal substância não pode jamais ser individual, posto que a individu-
alidade “[...] não pode jamais conter a infinitude extensiva das relações
sociais” (HELLER, 2014 [1970], p. 13). Ainda assim, os homens encon-

222
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

tram-se sempre numa relação com a vida social que é, a um só tempo,


particular e genérica.

Enquanto indivíduo, portanto, é o homem um ser gené-


rico, já que é produto e expressão de suas relações so-
ciais, herdeiro e preservador do desenvolvimento hu-
mano; mas o representante do humano-genérico não
é jamais um homem sozinho, mas sempre a integração
[...] cuja parte consciente é o homem e no qual se forma
sua “consciência de nós”. Não é casual que acentuemos o
elemento “consciência”. (HELLER, 2014 [1970, p. 36)

Ao acentuar a importância da consciência, Heller (2014 [1970], p.


12) vai ao encontro da discussão apontada, quando apresentamos a im-
portância de os homens e as mulheres da sociedade compreenderem-se
como pertencentes àquilo que é do genérico humano, para poderem vis-
lumbrar a capacidade humana de transformação da natureza, de modo
a compreender que “a história é a substância da sociedade” e que “a
sociedade não dispõe de nenhuma substância além do homem”. Nesse
sentido, poderíamos compreender, enfim, que, ao contrário do que a so-
ciedade capitalista tenta nos fazer acreditar,

As alternativas históricas são sempre reais: sempre é


possível decidir, em face delas, de um modo diverso da-
quele em que realmente se decide. Não era obrigatório
que o desenvolvimento social tomasse a forma que to-
mou; simplesmente foi possível que surgisse essa con-
figuração (ou outra). (HELLER, 2014 [1970], p. 28, grifos
da autora)

Para que tal consciência seja alçada, enfim, é preciso que os indiví-
duos compreendam a realidade de forma que ultrapassem a vida cotidia-
na, e que compreendam as relações humano-genéricas; é preciso que se
ultrapasse uma relação com a prática social que é em si para uma relação
que seja para si. Retomando a definição de consciência comum apontada

223
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

por Vázquez (2011 [1967], p. 35, grifos do autor), podemos compreender


que

O homem comum e corrente considera-se a si mesmo


como verdadeiro homem prático; é ele quem vive e atua
praticamente. Dentro de seu mundo, as coisas não são e
apenas existem em si, como também são e existem, sobre-
tudo, pela sua significação prática, enquanto satisfazem
necessidades imediatas de sua vida cotidiana. Mas essa
significação prática apresenta-se a ele como imanente.
Às coisas, isto é, apresentando-se nelas, independente
dos atos humanos que lhes confere tal significação. As
coisas não apenas são conhecidas em si, à margem de
toda atividade humana – ponto de vista do realismo in-
gênuo – como também significam por si mesmas, isto é,
ignora que pelo fato de significar, de ter uma significação
prática, os atos e objetos práticos somente existem pelo
homem e para ele. O mundo prático é – para a consciên-
cia comum – um mundo de coisas e significações em si.

Para que essa consciência seja superada e para que os indivíduos


se percebam como criadores dessa realidade e, mais do que isso, para
que compreendam que o mundo não é algo em si, mas sim algo obje-
tivado pelos homens para sua própria efetivação, para seu uso, para si,
precisamos compreender essa prática social de forma que ultrapasse
a empiria, a vida utilitária, a vida estritamente prática. Compreensão
essa que apenas se efetiva a partir de uma relação entre teoria e prática,
de modo que o conhecimento tenha aí, nessa relação dialética, seu peso
bastante marcado.
Na seção seguinte, evidenciaremos de que modo o processo
de alfabetização pode, ao fim, articular e desencadear essa compreensão
da prática social da forma revolucionária, tal como se vislumbra nesta
discussão.

224
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

2 A leitura e a escritura como processos articulados à práxis

Ao se defender a necessidade da capacidade de abstração da reali-


dade para a compreensão e a transformação dela, o papel da linguagem
entra como um instrumento fundamental nessa mediação. Para a psico-
logia histórico-cultural, a língua é tomada como “[...] condição específica
indispensável do processo de apropriação dos indivíduos dos conheci-
mentos adquiridos no decurso do desenvolvimento histórico da huma-
nidade” (LEONTIEV, 1959, p. 182), e, mais do que isso, é um instrumento
de mediação simbólica que faculta aos indivíduos o desenvolvimento
da própria capacidade de abstração aqui defendida.
A partir dos estudos de Vygotski (2012 [1931]), compreendemos
que o desenvolvimento humano sempre parte daquilo que é da ordem
do social para se afirmar como algo que é individual do sujeito. Assim,
todo processo de desenvolvimento parte daquilo que é tomado como in-
terpsíquico, isto é, do campo social, para formar o que é denominado
como intrapsíquico, próprio do indivíduo singular. Tais afirmações cor-
roboram o método marxiano ao defender a relação entre objetividade
e subjetividade, já que, para este, assume-se que a realidade precede
a razão humana e que esta é desenvolvida através daquela. Do mesmo
modo, a relação entre aquilo que é do âmbito do interpsíquico e do in-
trapsíquico se dá de forma dialética, já que, ao se apropriar da realidade
objetiva de forma abstrata, o ser humano pode compreendê-la de forma
sintética, podendo, enfim, transformá-la.
Para que tal relação possa ser efetivada, há uma chave fundamen-
tal para a transição daquilo que é interpsíquico para o âmbito intrapsí-
quico: a mediação através dos signos. Compreendendo a palavra como
o signo dos signos, tomamos estes como os instrumentos psicológicos
que permitem a transformação radical das funções psíquicas do homem
(MARTINS, 2015). Quer dizer, é por meio dos signos, ou da mediação
simbólica, que os indivíduos passam a compreender a realidade e pas-
sam a agir nela. Nas palavras de Vygotski (2012 [1931], p. 146): “El signo,
al princípio, es siempre um médio de relación social, um médio de influen-
cia sobre los demás y tan sólo después se transforma em médio de influen-

225
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

cia sobre sí mismo”. Assim, no princípio, os signos, como instrumentos


que permitem a mediação entre o mundo externo e a nossa consciência,
precisam ser apropriados pelas novas gerações e, vale dizer, esse pro-
cesso não é fruto do acaso: somente é apropriado a partir da mediação
do outro mais desenvolvido.
Nesse processo de desenvolvimento do psiquismo, que se efeti-
va a partir da mediação simbólica, a linguagem desponta como funda-
mental, tendo em vista que permite aos indivíduos os mais altos níveis
de capacidade de generalização. É a partir da linguagem que os homens
e as mulheres são inseridos na cultura e é também por meio dela que o
mundo pode ser compreendido como algo que não é externo, mas algo
que é seu, interno, para si. Ao estudar todas as fases de desenvolvimento
das crianças até a chegada à fase adulta, Vygotski (2012 [1931], p. 156)
compreendeu que esse desenvolvimento tem um caráter totalmente re-
volucionário, de modo que “[...] el desarrollo no se produce por la vía de
cambios graduales, lentos, por una acumulación de pequeñas peculiarida-
des que producen en su conjunto y al final alguna modificacion importante”,
pelo contrário: todo o desenvolvimento da consciência ocorre através
de radicais transformações psíquicas que, invariavelmente, necessitam
de uma formação anterior já instaurada. Como veremos, o processo
de apropriação da linguagem escrita segue o mesmo caminho: não acon-
tece de forma gradual, mas, sim, através de processos que permitem
a apropriação da criança desse instrumento criado pela humanidade.
E, nesse sentido, a apropriação da linguagem escrita vincula- se direta-
mente ao processo desenvolvimento do psiquismo:

Na psicologia histórico-cultural, a capacidade para a lei-


tura e a escrita se revelam umbilicalmente dependentes
de um processo mais amplo, qual seja, o desenvolvimen-
to do psiquismo. Caracterizando o psiquismo como um
sistema instituído pelas funções psicofísicas sensação,
percepção, atenção, memória, linguagem, pensamento,
imaginação, emoção/sentimentos, a quem compete for-
mar o reflexo consciente da realidade objetiva (Martins,
2013), essa matriz teórica advoga a apropriação da cul-

226
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

tura como o fator que, decisivamente, transforma as


referidas funções conferindo-lhes propriedades exclu-
sivamente humanas. (MARTINS; CARVALHO; DANGIÓ,
2018, p. 339)

Na seção anterior, evidenciamos de forma bastante incisiva a im-


portância da apropriação daquilo que foi produzido pela humanida-
de ao longo da história para que as novas gerações pertençam àquilo
que denominamos como genérico humano. Ao nos referirmos especifi-
camente à apropriação da linguagem escrita, compreendemos que esta
é também um instrumento objetivado pelas gerações anteriores, o qual
se firma como uma objetivação de extrema importância na sociedade
em que vivemos. Importa ressaltar que, na perspectiva aqui assumida,
o processo de alfabetização só pode ser efetivado por meio do referido
desenvolvimento do psiquismo, o qual tem seu início já nos primeiros
anos de vida das crianças. Nesse sentido,

Resulta, pois, inquestionável que a aprendizagem da lei-


tura e da escrita se subordine à conquista de tais pro-
priedades funcionais, dado que nos conduz à afirmação
segundo a qual a alfabetização, de partida, é uma
conquista condicionada pelo processo de formação
de um psiquismo complexo, tipicamente humano,
cujo principal atributo se revela na capacidade de
abstração. Interessa-nos, com tais observações, locali-
zar a alfabetização no bojo de um processo mais amplo,
qual seja o desenvolvimento psíquico, com o qual ela
estabelece uma relação de condicionalidade recíproca.
(MARTINS; CARVALHO; DANGIÓ, 2018, p. 339, grifos
nossos)

Ao se compreender o processo de alfabetização de forma correla-


cionada com o desenvolvimento do psiquismo humano, compreende-
mos que o próprio processo de apropriação da língua escrita se configura
como um passo importante no referido desenvolvimento, de modo que,
a partir da capacidade de generalização facultada também pela língua

227
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

escrita, podem os indivíduos atingir os mais altos graus de complexifica-


ção do psiquismo. Isso porque, “[...] apreendendo o psiquismo humano
como formação cultural, nela destacam-se três grandes saltos qualita-
tivos: o desenvolvimento da fala, a aquisição da escrita e a conquista
do pensamento rigorosamente abstrato, que marca a transição à idade
adulta” (MARTINS; CARVALHO; DANGIÓ, 2018, p. 339).
Apesar de se afirmar a apropriação da escrita como um ‘salto qua-
litativo’, é importante retomar os escritos da psicologia histórico-cultu-
ral quando os autores compreendem o processo de alfabetização a par-
tir de um desenvolvimento mais amplo, de modo que Luria e Vygotski
denominaram tal processo de conquista da escrita como a “pré-história
da escrita”. Afirmando que “[...] a história da escrita na criança começa
muito antes da primeira vez em que o professor coloca um lápis em sua
mão e lhe mostra como formar letras”, Luria (2017 [1979], p. 143) defen-
de que o fato de a criança ser capaz de, ao entrar na escola, apreender
a linguagem escrita, apenas é possível porque outros processos em seu
desenvolvimento psíquico foram desencadeados.
Segundo Vygotski (2012 [1931]), o primeiro passo para que a lin-
guagem escrita seja posteriormente apreendida começa quando aparece,
nas crianças, o uso do gesto como um signo visual. Nas palavras do au-
tor, “[…] el gesto, precisamente, es el primer signo visual que contiene la fu-
tura escritura del niño igual que la semilla contiene al futuro roble. El ges-
to en la escritura en el ayre y el signo escrito es, frecuentemente, un gesto
que se afianza” (VYGOTSKI, 2012 [1931], p. 186). Para o autor, os gestos
estão diretamente ligados aos rabiscos das crianças, que irão se transfor-
mar posteriormente em desenho, posto que, muitas vezes, quando so-
licitados a realizar um desenho, esses pequenos indivíduos se utilizam
do gesto para a expressão daquilo que foi requerido. Por esse motivo,
“[...] los primeiros dibujos de los niños, sus garabatos, son más bien ges-
tos que dibujos en el verdadeiro sentido de la palavra” (VYGOSTSKI, 2012
[1931], p. 187), fato esse percebido quando, por exemplo, ao precisar de-
senhar o ato de pular, a criança utiliza sua mão para fazer movimentos
que indicam tal ato. O segundo momento que se reflete no desenvolvi-
mento do psiquismo da criança para facultar a posterior aprendizagem

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

da língua escrita diz respeito aos jogos infantis. Essa atividade se cons-
titui como um fator decisivo para o desenvolvimento, tendo em vis-
ta que possibilita o desenvolvimento da capacidade de representação
simbólica. Uma criança que utiliza uma régua para fazer de conta que é
aquilo uma varinha mágica, por exemplo, consegue fazer essa utilização
a partir de gestos que dão ao primeiro objeto uma função diferente: se-
gura a régua pela ponta, aponta-a para outros objetos falando palavras
que são, supostamente, mágicas...Quer dizer, “[...] lo importante no es
la semejanza entre el juguete y el objeto que designa. Lo que tiene mayor
importancia es su utilización funcional, la posibilidad de realizar con su
ayuda el gesto representativo” (VYGOTSKI, 2012 [1931], p. 187). E, assim
como o desenho, apoiando-se inicialmente no gesto, os jogos irão dis-
tanciando-se da forma gestual e adquirindo significados independentes,
de modo a trazer uma nova significação para o objeto que é utilizado.
Nesse sentido, ao se utilizar um objeto para representar outro,
através da brincadeira, o objeto acaba por distanciar-se da sua primeira
função (embora não a perca, já que no instante seguinte pode-se reti-
rar a régua do jogo e utilizá-la para traçar uma linha), o que representa
ao fim, um simbolismo de segunda ordem. A partir dessa ressignificação
conferida ao objeto, as crianças apresentam um passo em direção à re-
presentação simbólica, a qual “[...] en el juego y en uma etapa más tem-
prana es, en esencia, uma forma peculiar del linguaje que lleva diretamente
al linguaje escrito” (VYGOTSKI, 2012 [1931], p. 191). Compreendendo
que a escrita é justamente uma forma de representar, através de signos,
o nome das coisas, o jogo infantil desponta como fase essencial no de-
senvolvimento das crianças. Sobre esse período, Leontiev (2017 [1981])
denomina a atividade dos jogos protagonizados como a atividade-guia8
principal das crianças de três a seis anos, pois é justamente aquela
que propicia uma maior possibilidade de desenvolvimento humano nes-
sa fase da vida.

8 Segundo Leontiev (2017 [1981], p. 65), “[...] a atividade principal [atividade-guia] é então
a atividade cujo desenvolvimento governa as mudanças mais importantes nos processos
psíquicos e nos traços psicológicos da personalidade da criança, em um certo estágio de seu
desenvolvimento”.

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Outra etapa pela qual as crianças passam e que se torna de extre-


ma relevância para a apropriação da língua escrita diz respeito ao de-
senho. Vygotski (2012 [1931], p. 192) afirma que, “Por su función psico-
lógica, el dibujo infantil es un lenguaje gráfico peculiar, un relato gráfico
sobre algo. La técnica del dibujo infantil demuestra, sin lugar a duda, que en
realidad, se trata de un relato gráfico, es decir, un peculiar lenguaje escrito”.
Luria (2017 [1929]), ao escrever sobre a pré-história da escrita, realiza
diversos experimentos em que crianças não alfabetizadas são solicitadas
a escrever frases ditadas pelos pesquisadores. Tendo passado pela fase
pré-instrumental da escrita, em que “[...] o escrever [...] não era instru-
mental ou funcionalmente relacionado com o conteúdo do que tinha
de ser escrito” (LURIA, 2017 [1929], p. 151), de modo que não passava
de uma brincadeira, as crianças chegavam à chamada fase pictográfica
do desenvolvimento da escrita, a qual “[...] baseia-se na rica experiência
dos desenhos infantis”, já que “[...] inicialmente o desenho é uma brin-
cadeira, um processo autocontido de representação; em seguida, o ato
completo pode ser usado como estratagema, um meio para o registro”
(LURIA, 2017 [1929], p. 174).
Compreendendo que a escrita se consolida, na história da humani-
dade, como um recurso mnemônico, durante os experimentos mencio-
nados sempre se questionava, após feitos os registros, o que cada criança
tinha escrito. Com o auxílio dos desenhos, as crianças conseguiam re-
presentar a fala do adulto de modo a recordar a frase dita anteriormente
– ao contrário dos primeiros rabiscos realizados sem grandes distinções.
No entanto, apesar da importância dessa fase para o desenvolvimen-
to, é importante ressaltar que não é qualquer desenho que será tomado
como um estágio preliminar no desenvolvimento da escrita, posto que
“[...] uma criança pode desenhar bem, mas não se relacionar com seu de-
senho como um expediente auxiliar” (LURIA, 2017 [1929], p. 176). Nesse
sentido, é preciso que a criança passe a “[...] se relacionar com o desenho
como algo mais do que um tipo de brinquedo”, a fim de “[...] desenvolver
e compreender o uso instrumental de uma imagem como um símbolo
ou um expediente” (LURIA, 2017 [1929], p. 176) – tal como a linguagem
escrita se caracteriza.

230
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Para que as crianças enfim cheguem à etapa final do simbolismo


de segunda ordem, “[...] que consiste en la utilización de signos de escri-
tura para representar los símbolos verbales da palavra”, isto é, à própria
escrita, precisam compreender que “[...] no sólo se pueden dibujar las co-
sas, sino también el lenguaje” (VYGOTSKI, 2012 [1931], p. 197). Nesse sen-
tido, o processo de alfabetização se concretiza na medida em que o de-
senho de coisas se desloca para o desenho de palavras, da fala. Por assim
dizer, torna-se bastante evidente que, quando a criança de fato apren-
de a escrita, esse ponto culminante é, na realidade, um desdobramento
de todo um processo anterior, que suscitou saltos no psiquismo, sobre-
tudo através do desenvolvimento da capacidade de representação sim-
bólica, mediada pela capacidade de converter aquilo que é intrapsíquico
em interpsíquico.
A retomada de todo esse processo, que se configura como a pré-
-história da linguagem escrita, é relevante, uma vez que, como defende-
mos anteriormente, pensar em prática social, ou em práxis revolucionária,
significa compreender a relação com a capacidade de abstração humana,
de desenvolver o psiquismo de forma a transformar o mundo a seu fa-
vor. Vimos que o processo de alfabetização das novas gerações permeia
diversas atividades que, de alguma forma, fazem parte da vida prática –
no sentido estreito do termo – dos indivíduos, tais como o gesto, o dese-
nho e o jogos infantis. Porém, mesmo essas atividades tão corriqueiras,
que parecem mesmo apenas do âmbito da concretude, são permeadas
de questões que tocam o psiquismo das crianças, de modo que, pode-
mos dizer, o desenvolvimento da capacidade de abstração já está aí em
desenvolvimento.
Nesse sentido, podemos afirmar que a escritura e a leitura se tor-
nam processos que estão articulados à prática social, na medida em que
são desenvolvidos por meio dela, e também são desencadeadores dessa
prática, já que todo o processo de apropriação da linguagem irá facul-
tar aos indivíduos que, posteriormente, alcancem os mais altos graus
de abstração teórica. Vygotski (2012 [1931]) esboça, em sua teoria, a for-
ma como o pensamento se estrutura ao longo dos anos iniciais das vidas

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

das crianças, de modo que, no princípio, os objetos são – como apresen-


tado na fase pré- instrumental da escrita – apenas extensões, não pos-
suem uma significação simbólica, são apenas objetos em si. No decorrer
da vida e, sobretudo, a partir da apropriação dos conhecimentos elabo-
rados historicamente pela humanidade, os indivíduos passam a desen-
volver o pensamento conceitual, em que se passa a compreender o mundo
através de conceitos. Tal pensamento, ainda, pode ser desdobrado entre
os conceitos espontâneos e os científicos, sendo estes os que permi-
tem os mais altos graus de desenvolvimento da psique humana. Tendo
em vista o escopo teórico-filosófico deste capítulo, compreendemos
que a apropriação dos conhecimentos científicos deva ser, enfim, um ho-
rizonte a ser alcançado por meio da escola.
Não poderíamos finalizar este texto sem destacar a importância
do outro mais desenvolvido para o processo de aprendizagem. Como
afirmado anteriormente, para a pedagogia histórico-crítica, o profes-
sor assume um papel central para que o desenvolvimento das crian-
ças se efetive. O professor, como adulto mais desenvolvido da relação,
é aquele que domina os conhecimentos que precisam ser transferidos
às novas gerações e que, ao compreender de forma sintética a realida-
de, pode facultar aos indivíduos tal compreensão. Como aponta Saviani
(2012 [1983]), ao propor uma metodologia de ensino que tenha como
ponto de partida e de chegada a prática social, esta é, para os estudan-
tes, sincrética no início – um todo caótico. É através da problematiza-
ção, da instrumentalização e da catarse que os sujeitos podem retornar
à referida prática social de modo a compreendê-la de maneira sintética.
O professor, nesse processo, é aquele que compreende, já de saída, a re-
alidade de forma sintética, de modo que é capaz de decidir, frente ao seu
planejamento, quais conteúdos permitirão uma melhor compreensão
da prática social. Ele se funda, portanto, não como um mediador ou faci-
litador do processo pedagógico, mas, sim, como o adulto mais desenvol-
vido, capaz de planejar de forma intencionada os conteúdos que neces-
sitam ser apropriados, por meio da transmissão, pelos estudantes.

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Considerações finais

Ao defender uma acepção de prática social fundada no materialis-


mo histórico-dialético, procuramos evidenciar como se torna um pres-
suposto básico o fato de que tal prática é fruto da atividade humana,
do trabalho. Partindo da compreensão de que “[...] a realidade pode
ser mudada de modo revolucionário só porque e só na medida em que
nós mesmos produzimos a realidade, e na medida em que saibamos
que a realidade é produzida por nós” (KOSIK, 1976, p. 22-3, grifos do au-
tor), tentamos evidenciar a importância de que esse conhecimento seja
transmitido às novas gerações. Apesar estarmos cientes de que a escola,
por si só, não é capaz de transformar a realidade social, compreendemos
que ela pode, como instituição formativa, propulsionar uma efetiva mu-
dança na sociedade, a partir da formação de consciência dos estudantes
– futuros homens e mulheres da classe trabalhadora. Para tanto, torna-
-se condição central que nossas aulas lidem com as contradições pre-
sentes na realidade social, premida por desigualdades alarmantes e pelo
acúmulo de capital nas mãos de uma minoria.
Para que esse projeto – e não nos negamos a afirmar que a pers-
pectiva de educação aqui apontada está vinculada a um claro proje-
to político – seja consolidado, compreendemos que o conhecimento
não pode ser relegado, sobretudo às classes populares. Ao afirmar que a
prática social que norteia as nossas aulas deva tocar em questões teóri-
cas e práticas, tencionamos a ênfase nas questões teóricas justamente
por entender a capacidade de abstração como algo elementar à formação
humana. É através do desenvolvimento dos mais altos graus de comple-
xificação do psiquismo humano, e, portanto, da capacidade de abstração,
que os homens puderam se desenvolver tanto quanto conhecemos hoje.
Ademais, foi através da capacidade de visualizar previamente na mente
os fins de sua ação que pôde o homem criar a natureza humanizada,
que vem a ser a própria práxis.
Ao realizar a defesa do conhecimento como algo central para
a noção de prática social vinculada a uma transformação da sociedade,
o processo de alfabetização desponta como essencial, já que atravessa

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

todo o desenvolvimento do psiquismo humano e permite que, ao longo


da sua vida, os indivíduos se apropriem de outros tantos conhecimentos.
Além disso, vimos como o próprio processo de apropriação da lingua-
gem escrita vai ao encontro da definição de prática social aqui apontada,
já que veicula, a todo momento, uma relação entre objetividade e sub-
jetividade, entre materialidade e pensamento. Compreendemos, enfim,
que as capacidades de leitura e de escrita são de suma importância para
a humanização dos sujeitos, já que os aproxima daquilo que defendemos
como genérico humano, e, dessa forma, podem possibilitar uma amplia-
ção da tomada de consciência desses sujeitos.
Por fim, vale dizer que é nosso papel, enquanto professores, que o
ensino escolar tenha em seu horizonte não apenas uma função instru-
mental, prática, utilitária da escritura e da leitura, mas que vislumbre
a potência da apropriação dessas objetivações humanas para a supera-
ção da consciência comum. Só assim poderemos pensar em uma práxis
revolucionária que não tenha outro fim senão a superação da sociedade
pautada em classes.

Referências

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DUARTE, Newton. Vigotski e o “aprender a aprender”: crítica às apropriações
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234
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

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236
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

O TRABALHO COM O SISTEMA DE ESCRITA


ALFABÉTICA EM UMA PERSPECTIVA
HISTÓRICO-CULTURAL: PRESSUPOSTOS,
PROCESSOS E DESAFIOS

Daniela Cristina da Silva Garcia1

O processo de apropriação do Sistema de Escrita Alfabética


(SEA) pela criança apresenta-se como elemento indispensável para
uma instrumentalização que a possibilite se inserir na cultura escrita e,
por consequência, mostra-se fundamental para que essa criança possa
se apropriar de conceitos mais elaborados, os quais incidem no seu de-
senvolvimento e também no desenvolvimento das formas sociais e de
produção da sociedade. Desse modo, a apropriação da língua escrita sig-
nifica mais do que o aprendizado de um instrumento de comunicação,
significando, sobretudo, a possibilidade de apropriar- se, entra outras
coisas, desse instrumento de comunicação para, por sua vez, alcançar
a possibilidade de construir estruturas de pensamento capazes de reali-
zar abstrações necessárias à apreensão da realidade concreta, pois,

[...] alfabetizar não é somente formar o domínio de uma


técnica, é inserir a pessoa no mundo da escrita, de modo
que ela transite pelos discursos mais variados e tenha
condições de operar criticamente com os modos de pen-
sar e produzir da cultura escrita. (BRITTO, 2012, p. 105)
1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC), mestra em Linguística pelo mesmo Programa e licenciada em
Letras-Língua Portuguesa e Literaturas também pela UFSC.

237
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

É inegável, portanto, como o domínio do sistema da escrita é hoje


um objeto central na formação intelectual dos sujeitos. Essa centralida-
de, todavia, por vezes cria certo temor por parte dos alfabetizadores, seja
pela própria história da alfabetização e de seus métodos (MORTATTI,
2006), seja pela projeção atual dos estudos do letramento, sua defesa
romantizada – e por vezes equivocada – de ‘partir da realidade do aluno’
e sua grande inserção nos processos pedagógicos. Então, com compreen-
sões apressadas tanto das teorias acerca do ensino do Sistema de Escrita
Alfabética quanto das teorias do letramento, cria-se uma falsa dicoto-
mização entre centralidade no SEA ou centralidade nas práticas sociais
de escrita nos processos de alfabetização e, com isso, uma abordagem
com enfoque no sistema, como elemento abstrato que é, acaba por ser
escamoteada sob o receio de que haja um retrocesso que remeta a práti-
ca pedagógica aos métodos sintéticos de alfabetização.
Essa dualidade, porém, fazemos questão de enfatizar, é problemá-
tica e demonstra um extremismo comum na própria história da educação
no Brasil, como apresentado na conhecida teoria da curvatura da vara
(SAVIANI, 2012). Enquanto nessa analogia colocavam-se nos extremos
da curvatura ora o processo de ensino e a centralidade do professor,
ora o processo de aprendizagem e a centralidade no estudante, parece-
-nos que, na discussão a qual nos propomos neste capítulo, os processos
de alfabetização colocam-se ora em uma preocupação demasiada no en-
sino do sistema de escrita, ora nas práticas socias. Assim como na teoria
apresentada por Saviani (2012), porém, qualquer um desses lados, se to-
mados como opostos, se apresenta como problemático e cabe ao profes-
sor alfabetizador, então, se desvincular dessas dicotomias e, com bases
teóricas bem estabelecidas, elaborar seu próprio trabalho pedagógico.
Não raro, por exemplo, vimos defesas de que o professor alfa-
betizador deve ‘alfabetizar letrando’. Essa defesa, porém, na essência,
já demonstra a falsa dicotomia que buscamos questionar e, ainda, cor-
re-se o risco de fazer com que as práticas sociais de escrita sejam ape-
nas um pretexto e transformem-se numa técnica utilizada para alfabe-
tizar, o que, de maneira contraditória ao que se defende com seus usos,

238
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

descaracteriza seu caráter social. O que defendemos, então, por partir


da perspectiva histórico-cultural e, por consequência, de uma análise
da realidade pautada no método materialista histórico-dialético, pres-
supõe que, mais que ‘alfabetizar letrando’, o que se deve compreender
é a vinculação mútua entre as relações abstratas – no caso, o próprio SEA
– e como essas são constituídas e constituintes das relações sociais. Para
isso, neste capítulo buscamos traçar essa discussão por meio dos pressu-
postos necessários para sua compreensão, dos caminhos possíveis de se
percorrer para tal e, por fim, dos desafios que são consequências de uma
ação pedagógica que correlacione de maneira dialética a concretude
das práticas de escrita e a prática de abstração que essa exige.

1 Os pressupostos

Lidar com a apropriação do Sistema de Escrita Alfabética por uma


criança requer, antes de tudo, considerar o caráter abstrato desse código,
visto que

A escrita é uma função específica da linguagem, que


difere da fala não menos como a linguagem interior di-
fere da linguagem exterior pela estrutura e pelo modo
de funcionamento. Como mostra nossa investigação, a
linguagem escrita requer para o seu transcurso pelo me-
nos um desenvolvimento mínimo de um alto grau de
abstração. Trata-se de uma linguagem sem o seu aspec-
to musical, entonacional, expressivo, em suma, sonoro.
É uma linguagem de pensamento, de representação [...].
(VIGOTSKI, 2010, p. 312)

E é esse grau de abstração, por sua vez, que irá determinar o desen-
volvimento das funções psíquicas superiores, ao passo que essas ocorrem
com a apropriação dos produtos da cultura humana, quando generaliza-
dos em categorias ou, o que é foco de nossa discussão, na forma verbal.
Para discutir essa relação por uma perspectiva histórico-cultural
e, portanto, marxista, é preciso resgatar o método de análise da realida-

239
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

de apresentado pelos autores do socialismo científico: o método mate-


rialista histórico-dialético. Esse método, apesar de não ter sido o objeto
de elaboração teórica em nenhuma obra de Marx e Engels, é encontrado
de maneira pulverizada ao longo de suas obras, especialmente no ensaio
Do socialismo utópico ao socialismo científico (2005), de Engels. A partir
dos elementos apresentados por Marx e Engels, então, convencionou-se,
dentro do campo marxista, esquematizar esse método em um caminho
que parte do concreto aparente, que, por sua vez, possibilita abstrações
necessárias para, com isso, retornar para o concreto pensado.
Dessa maneira, para chegar aos níveis de abstração, é preciso to-
mar o material como ponto de partida. Para isso, precisa-se considerar
que o pressuposto de qualquer análise é o de que os indivíduos estejam
vivos, pois é assim que esses estarão constantemente produzindo meios
de satisfazer suas mais diversas necessidades, sejam elas do estômago
ou da imaginação (MARX, 2013a). Com isso, é estabelecido o pressupos-
to de que a história humana tem como sua primeira condição a de que in-
divíduos reais produzem sua própria existência, sendo esse o primeiro
ato histórico que diferencia os homens dos demais animais (MARX;
ENGELS, 2007). É partindo daí que se compreende que, além da pro-
dução e reprodução das necessidades humanas, pressupõem-se outros
pontos indissociáveis na análise materialista, que demonstram que a
satisfação das necessidades leva ao surgimento de novas necessidades
e que a satisfação dessas deve levar em conta as necessidades das futuras
gerações. Esses três elementos – a produção da vida, a criação das neces-
sidades e a reprodução da vida – não devem, porém, ser pensados como
um suceder de ações, mas sim como concomitantes e inseparáveis.
Esse primeiro pressuposto, que faz com que a história humana
possa ser analisada à parte da história da natureza, mas ao mesmo tem-
po interrelacionada com ela, constitui-se, assim, a base do metabolismo
entre homem e natureza que nos remete à categoria fundante de ho-
mens autônomos em relação à natureza, que é o trabalho, sendo esse

[...] antes de tudo, um processo entre o homem e a na-


tureza, processo este em que o homem, por sua própria

240
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a


natureza. Ele se confronta com a matéria natural como
com uma potência natural [Naturmacht]. A fim de se
apropriar da matéria natural de uma forma útil para sua
própria vida, ele põe em movimento as forças naturais
pertencentes a sua corporeidade: seus braços e pernas,
cabeça e mãos. Agindo sobre a natureza externa e mo-
dificando-a por meio desse movimento, ele modifica, ao
mesmo tempo, sua própria natureza. Ele desenvolve as
potências que nela jazem latentes e submete o jogo de
suas forças a seu próprio domínio. (MARX, 2013a, p. 255)

E é essa dupla ação transformadora do trabalho – sobre a natu-


reza e sobre o próprio homem – que nos ajuda a entender os diferen-
tes momentos dos pressupostos materialistas. A produção e a reprodu-
ção da vida, então, são feitas por meio da transformação da natureza
e nela se inclui a procriação, o cuidado das futuras gerações, um suceder
de indivíduos que satisfazem as próprias necessidades e as necessidades
de outros, sobretudo porque, inicialmente, esse outro é alguém muito
jovem ou muito velho para satisfazer as próprias necessidades.
É nesse processo histórico que, por sua vez, o ser humano desen-
volve a consciência de que ele é algo diferente da natureza e de outros
seres humanos, e é dessa diferenciação em relação aos outros que surge
a necessidade de se comunicar e, com isso, configura-se a linguagem
que, para Marx e Engels (2007, p. 35), “é a consciência real, prática”.
Assim, vê-se que a consciência surge como uma percepção do mundo
exterior e que é a partir dessa percepção que os indivíduos articulam
todos os momentos do processo de trabalho, a saber: o planejamento
de uma ação para satisfazer uma necessidade, a identificação do objeto
que deve ser transformado para a satisfação da necessidade, e a identi-
ficação dos meios necessários para executar a transformação do objeto
que será trabalhado. Por meio da linguagem é possível organizar, siste-
matizar e comunicar informações necessárias à realização de atividades,
e ela permite, ainda, o acúmulo de experiências socialmente realizadas
em um processo de troca de informação, pois só é possível codificá-la

241
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

pela palavra. Essas são, assim, características da humanidade, indepen-


dentemente do período histórico, pois

O processo de trabalho, como expusemos em seus mo-


mentos simples e abstratos, é atividade orientada a um
fim – a produção de valores de uso –, apropriação do ele-
mento natural para a satisfação de necessidades huma-
nas, condição universal do metabolismo entre homem e
natureza, perpétua condição natural da vida humana e,
por conseguinte, independente de qualquer forma parti-
cular dessa vida, ou melhor, comum a todas as suas for-
mas sociais. (MARX, 2013a, p. 261)

Com isso, vimos que o processo de trabalho, nesses seus momen-


tos, como metabolismo entre homem e natureza, apesar de não ser o
elemento diferenciador dos diferentes estágios do desenvolvimento hu-
mano, é a base sobre a qual se estrutura a colaboração entre os dife-
rentes trabalhos e a produção e circulação dos meios de subsistência.
Assim, cria-se um processo de mútua transformação: os homens atri-
buem à natureza elementos de suas ações e a humanizam, ao mesmo
tempo que também produzem a si mesmos, humanizando-se, e, dessa
forma, criando tecnologias, artefatos, instrumentos, crenças, valores
e mecanismos para elaboração de ideias, como planejamento, raciocínio
e abstração. É nessa relação, pois, que interesses materiais distintos po-
dem dar origem a diferentes explicações do mundo. Dessa forma,

A produção de ideias, de representações, da consciên-


cia, está, em princípio, imediatamente entrelaçada com
a atividade material e com o intercâmbio material dos
homens, com a linguagem da vida real. O representar, o
pensar, o intercâmbio espiritual dos homens ainda apa-
rece, aqui, como emanação direta de seu comportamen-
to material. O mesmo vale para a produção espiritual,
tal como ela se apresenta na linguagem da política, das
leis, da moral, da religião, da metafísica etc. de um povo.
Os homens são os produtores de suas representações,

242
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

de suas ideias e assim por diante, mas os homens reais,


ativos, tal como são condicionados por um determinado
desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo inter-
câmbio que a ele corresponde, até chegar às suas forma-
ções mais desenvolvidas. A consciência [Bewusstsein]
não pode jamais ser outra coisa do que o ser consciente
[bewusste Sein], e o ser dos homens é o seu processo de
vida real. (MARX; ENGEL, 2007, p. 93-94)

Assim, fica demonstrado que o movimento de abstração parte


da produção material da vida e que as diferentes formas de teorização
ou representação são reflexos conscientes da realidade na mente huma-
na. E como, para pensar nos elementos conceituais e abstratos, deve-se
considerar que eles “[...] não se desenvolvem exatamente como os espon-
tâneos, que o curso do seu desenvolvimento não repete as vias de desen-
volvimento dos conceitos espontâneos” (VIGOTSKI, 2010, p. 252), par-
tiremos nossa análise sob esse método e essa percepção das abstrações
como reflexo da concretude, como buscamos abordar nesta seção.

2 O processo

O caminho para a apropriação da escrita de uma criança já teve


início muito antes de sua entrada na escola, ou “[...] a história da escri-
ta na criança começa muito antes da primeira vez em que o professor
coloca um lápis em sua mão e lhe mostra como formar letras” (LURIA,
2010, p. 143), visto que, além dos recursos gráficos e das técnicas primi-
tivas na tentativa de memorização, a pré-história de sua escrita (LURIA,
2010), muitas dessas crianças – desde muito pequenas – estão em con-
tato com a escrita em função da relação que mantêm com outras pes-
soas que leem e escrevem, possibilitando uma interação com diversos
materiais escritos. Essa interação, todavia, mesmo que exista e que nela
a criança estabeleça hipóteses ou crie relações, ainda, por se tratar ape-
nas de uma exposição não mediada, não se configura como uma possi-
bilidade de conhecimento efetivo da língua. Essa relação prévia, porém,
não pode ser desconsiderada, pois,

243
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Se apenas pararmos para pensar na surpreendente rapi-


dez com que uma criança apresenta esta técnica extre-
mamente complexa, que tem milhares de anos de cultura
por trás de si, ficará evidente que isto só pode acontecer
porque durante os primeiros anos de seu desenvolvimen-
to, antes de atingir a idade escolar, a criança já apren-
deu e assimilou certo número de técnicas que prepara o
caminho para a escrita, técnicas que a capacitam e que
tornaram incomensuravelmente mais fácil de aprender o
conceito e a técnica da escrita. (LURIA, 2010, p. 143-144)

Nesse contexto, para a apropriação do Sistema de Escrita Alfabética


e, consequentemente, da escrita, criar interações da criança com os ar-
tefatos escritos não é suficiente, pois o processo de conhecimento so-
bre a língua não é natural. Ressaltamos aqui, então, o papel do pro-
fessor que, como interlocutor mais desenvolvido, precisa intervir, pois
é ele que possibilitará a incidência na zona de desenvolvimento iminente
dos alunos, facultando-lhes uma apropriação da sua realidade histórica
e cultural por meio deste instrumento que é a língua. É preciso, então,
enfatizar que a escrita não é algo inato, mas apreendida e significada
pelos sujeitos nas relações sociais que vão se estabelecendo ao longo
de seu desenvolvimento, e que esse processo, como vamos abordar aqui,
depende da relação com sujeitos mais desenvolvidos, nesse caso o pro-
fessor. E é essa ação do professor que será o foco desta seção, para que se
possa pensar um caminho para o trabalho com o SEA e, de maneira mais
ampla, para a consolidação do processo de alfabetização.
Frente à necessidade de apropriação do processo de escrita pela
criança, salienta-se, incialmente, o caráter abstrato do código, e que esta
não é uma habilidade inata, que já nasce com a criança. A escrita é re-
sultado da interação do sujeito humano com os membros de sua espécie,
os quais, por necessidade de comunicação, ao longo de sua trajetória,
criam signos atribuindo-lhes significados culturais. É nesse caráter abs-
trato, então, que se encontra possivelmente a grande dificuldade do pro-
fessor alfabetizador, considerando que

244
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Neste sentido a linguagem escrita difere da falada da


mesma forma que o pensamento abstrato se difere do
pensamento concreto. [...] é exatamente este lado abs-
trato da escrita, o fato de que esta linguagem é apenas
pensada e não pronunciada que constitui uma das maio-
res dificuldades com que se defronta a criança no pro-
cesso de apreensão da escrita. (VIGOTSKI, 2010, p. 313)

Lidar com essa instância abstrata, porém, atualmente tende a ame-


drontar os professores alfabetizadores pela própria história da educação,
da alfabetização e seus métodos, marcados por um viés positivista, pelo
receio de que o trabalho com algo não tão palpável, como um sistema,
retome as práticas pedagógicas das cartilhas e dos métodos sintéticos.
O risco, porém, está em, como mencionamos na introdução deste capí-
tulo, buscar a oposição a essas práticas ditas tradicionais com a adoção
de um outro extremo que secundariza o sistema.
Para abordar essa relação, então, é preciso primeiro desfazer a ideia
– tal como está presente em abordagens ditas tradicionais, as quais já fo-
ram apresentadas em outros capítulos deste livro –, de que o sistema po-
derá ser apreendido na sua imanência. Com isso, cria-se um contraponto
a um processo em que

[...] a escrita ocupou um lugar muito estreito na prática


escolar, em relação ao papel fundamental que ela desem-
penha no desenvolvimento cultural da criança. Ensinam-
se as crianças a desenhar letras e construir palavras com
elas, mas não se ensina a linguagem escrita. Enfatiza-se
tal forma mecânica de ler o que está escrito que se acaba
obscurecendo a linguagem escrita como tal. (VIGOTSKI,
2007, p. 125)

Essa abordagem mecânica privilegia a palavra isoladamente, a qual


restringe as possibilidades de significação por parte da criança, ou as
sílabas e letras abordadas também isoladamente, as quais, ainda mais,
não se configuram como sentidos possíveis para ela. Então, se conside-

245
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

ramos a língua como instrumento para significação, o foco do ensino


do código escrito precisa se dar com a compreensão bastante marcada
de que o domínio do SEA não tem seu fim em si mesmo, mas se configura
como um elemento importante na efetivação da compreensão do pró-
prio objeto do processo de alfabetização, que é a língua.
Nossa, defesa, então, é a de que esse trabalho com as instâncias
abstratas considere que essas se configuram como um reflexo. Esse pres-
suposto materialista e o movimento de abstração do real já aparecem
de maneira explícita no posfácio da segunda edição d’O capital, quando,
ao descrever o seu método de análise, Marx (2013b, p. 90, grifos nossos)
afirma que

Meu método dialético, em seus fundamentos, não é ape-


nas diferente do método hegeliano, mas exatamente seu
oposto. Para Hegel, o processo de pensamento, que ele,
sob o nome de Ideia, chega mesmo a transformar num
sujeito autônomo, é o demiurgo do processo efetivo, o
qual constitui apenas a manifestação externa do primei-
ro. Para mim, ao contrário, o ideal não é mais do que
o material, transposto e traduzido na cabeça do ho-
mem.

Com isso, fica evidente o ponto de partida, que é o material –


que também pode ser chamado de real ou concreto –, para qualquer
reflexão que parta de uma base marxista, tal como propomos aqui.
As abstrações, porém, como aponta Marx (2013b), exatamente por serem
analisadas por um método dialético, não seriam contrárias a essa base
material, mas seriam essas ideações desenvolvidas pela humanidade,
seriam transposições, ou reflexo, na cabeça humana, dessa concretude.
Assim, para pensar no Sistema de Escrita Alfabética à luz da teoria his-
tórico-cultural, deve-se considerar que esse código – por ser uma abs-
tração – tem como base o real. É nessa relação, então, que se poderá
abordar o SEA nos processos de alfabetização.

246
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

A base concreta para o domínio do sistema que irá desmantelar


essa relação mecânica está, então, nas práticas sociais da escrita, pois
são elas que, como objetivação do trabalho humano, funcionarão como
artefato do concreto aparente que permitirá análises mediadas capazes
da elaboração do concreto pensado. Isso porque, no processo de alfabe-
tização, que tem como objeto central a própria língua, as unidades for-
madoras de sentido dessa língua encontram-se nos textos orais ou es-
critos – aqui nos restringimos ao segundo em função das especificidades
deste capítulo –, e é com base nesses textos, então, que serão possibili-
tadas às crianças apreensões desses sentidos.
Para abordar o ensino do Sistema de Escrita Alfabética por meio
dos textos escritos é preciso, inicialmente, atentar-se ao cuidado de que
esse não deve, de forma alguma, se limitar a um pretexto que apresenta
apenas palavras e frases de acordo com as convenções grafêmico-fonê-
micas que são o foco nas atividades de alfabetização, pois isso resulta-
ria no contato das crianças com textos artificiais e de conteúdo infértil,
os quais as distanciariam das tantas possibilidades provenientes dos ar-
tefatos da cultura escrita. Esse tipo de abordagem é comumente visto
no trabalho com textos equivocadamente considerados mais adequados
a crianças no processo de alfabetização, o que acaba remetendo àqueles
presentes nas cartilhas.
Ainda, para se constituir o processo da alfabetização com as práti-
cas sociais, é preciso sempre retomar o caráter genérico dos textos para
que, em uma tentativa de aproximar-se da realidade concreta, não se
desvie para o engano de circunscrever os estudantes em textos elemen-
tares, que se configuram como já presentes em sua zona de desenvol-
vimento real. Lidar, por exemplo, com projeto de letramento que “[...]
se origina de um interesse real na vida dos alunos e cuja realização en-
volve o uso da escrita” (KLEIMAN, 2000, p. 238) e que, nessa perspectiva,
se utiliza de textos muito elementares, pode acabar limitando esse su-
jeito em processo de alfabetização a adquirir os conhecimentos peculia-
res do seu entorno e não necessariamente aqueles que se constituíram
como elementos culturais sintetizados ao longo da história humana,
o que interfere diretamente no de humanização desse sujeito.

247
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Desse modo, o processo de alfabetização deve lidar com os con-


teúdos básicos de apreensão do sistema, como letras, sílabas, famílias
silábicas e segmentação, ao mesmo tempo que trabalha com elementos
de coesão, coerência, clareza dos textos, bem como seu contexto de pro-
dução e significação. Ou seja, a alfabetização será constituída por pro-
cessos de ensino e de aprendizagem da língua escrita em que há um ob-
jetivo mais amplo de compreensão das funções sociais do texto escrito,
mas que, ao buscar alcançá-lo, utilizam-se de procedimentos de siste-
matização para domínio do código.
Para que isso aconteça, é preciso, antes, compreender que não
se devem tardar as propostas de produção de texto somente para o mo-
mento em que os alunos já souberem grafar palavras de maneira inde-
pendente e, dessa forma, desde o início do trabalho com a alfabetização
esse deve se pautar na realização de atividades de produção de texto,
pois é a partir delas, enquanto elementos de significação da realidade
concreta, que os processos de abstração do sistema serão apreendidos.
Essas ações, certamente, apresentam em suas fases iniciais muitos equí-
vocos, o que poderia levar o professor à enviesada compreensão de que
a criança só deveria iniciar suas produções escritas quando fosse capaz
de não cometer mais – ou pelo menos não de maneira demasiada – esses
equívocos. Com isso, reforçamos que esse retardamento se mostra pre-
judicial para o processo de alfabetização, tanto porque posterga o uso
da escrita em situações reais, possibilitando que os alunos se desinte-
ressem pelo aprendizado, quanto por levar os estudantes a uma preo-
cupação acentuada à forma de seus textos e não ao seu conteúdo, visto
que precisariam utilizar apenas estruturas que já dominam perfeita-
mente, mas que, por essas serem ainda limitadas, resultariam em tex-
tos sem originalidade e com conteúdo não relevante. Não se trata aqui
de desconsiderar os tantos equívocos que certamente aparecerão nas pri-
meiras escritas da criança, mas, pelo contrário, de conceber que esses
virem objeto de reflexão para que sejam assimilados e superados. Para
que isso aconteça, então, é preciso encorajar as crianças a registrar suas
ideias em tentativas de escrita.

248
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Exemplo desse tipo de trabalho que lida com a apropriação do SEA


por meio dos usos sociais é bastante evidente no relato de uma experi-
ência realizada na Escola Estadual Básica João Frassetto, no município
de Criciúma, em Santa Catarina (SOUZA; PEDRALLI; ARAGÃO, 2017).
Nessa atividade, que foi realizada com alunos do primeiro ano do Ensino
Fundamental, a professora alfabetizadora teve o Estatuto da Criança
e do Adolescente (ECA) como objeto do conhecimento a ser apropriado
pelos alunos. Para o início desse trabalho,

A professora explicou ao grupo que: (i) tratava-se de um


documento com valor de lei, (ii) dividido em dois livros,
(iii) sendo definidos no livro I os direitos das crianças e
dos adolescentes. Os alunos olharam o tomo, a profes-
sora mostrou-lhes o sumário e depois propôs que les-
sem que direitos eram esses, já que boa parte das crian-
ças verbalizou não conhecê-los. (SOUZA; PEDRALLI;
ARAGÃO, 2017, p. 48)

Essa leitura se deu pela própria professora, que a fez em voz alta
para a classe. Porém, o que precede a leitura do documento em si é que
deve ser destacado, pois esse preâmbulo e, de maneira mais efetiva,
a própria escolha do objeto de conhecimento a ser apresentado aos alu-
nos já demonstram um contraponto aos reducionismos que vimos criti-
cando ao longo da discussão traçada neste capítulo, sejam eles relacio-
nados ao ensino do sistema pela sua iminência, sejam eles pela escolha
de textos apenas para serem utilizados como pretextos, a fim de ilus-
trar sílabas, palavras ou famílias silábicas específicas. É visível aqui que,
muito mais do que o texto do ECA na sua materialidade, o que estava
sendo destacado pela docente era também o papel social, histórico e le-
gal deste documento.
Após a leitura dos direitos das crianças e dos adolescentes, os alu-
nos foram questionados sobre qual daqueles direitos mencionados lhes
parecia mais interessante e, com esse direcionamento, destacaram
o Direito à Educação, à Cultura, ao Esporte e ao Lazer. Essa escolha foi,
assim, ponto de partida para as propostas de produção de texto, pois

249
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

a professora solicitou que os alunos relatassem as atividades de la-


zer de que mais gostavam, para que as socializassem com os colegas.
Algumas dessas produções que foram apresentadas no relato de experi-
ência seguem:

Imagem (1): Exemplar de produção textual escrita em curso Fonte: SOUZA;


PEDRALLI; ARAGÃO, 2017, p. 48

Imagem (2): Exemplar de produção textual escrita em curso Fonte: SOUZA;


PEDRALLI; ARAGÃO, 2017, p. 49

250
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Imagem (3): Exemplar de produção textual escrita em curso Fonte: SOUZA;


PEDRALLI; ARAGÃO, 2017, p. 49

Essas produções que, vale frisar, foram elaboradas por alunos


do primeiro ano do processo de alfabetização, apresentam na práti-
ca vários dos pressupostos apresentados ao longo de nossa discussão.
Inicialmente, cabe ressaltar nossa abordagem anterior acerca dos equí-
vocos no processo de escrita e o quanto eles poderiam ser limitadores
nas propostas de produção por parte dos professores. Pelo contrário,
nos exemplos apresentados, é visível que as crianças foram encoraja-
das ao processo de escrita, mesmo que para isso se valessem de usos
equivocados do SEA, os quais, como veremos adiante, foram também
recurso de análise. Esse estímulo para a escrita também se deu, o que
vale destacar, pois elas tinham muito claramente um projeto de dizer
(GERALDI, 1991), tanto por estarem contextualizadas com uma relação
maior que a escrita em si – que são os direitos das crianças estudados
na leitura do ECA – quanto por existir uma motivação de compartilhar

251
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

suas preferências com os colegas de turma. Com isso, a relação entre


o modo de vida da criança e as suas potencialidades acaba por fazê-la
superar e reorganizar os estágios de sua atividade, considerando que
“[...] por atividade, designamos os processos psicologicamente caracte-
rizados por aquilo a que o processo, como um todo, se dirige (seu obje-
to), coincidido sempre com o objetivo que estimula o sujeito a executar
essa atividade, isto é, o motivo” (LEONTIEV, 1988, p. 68).
No que diz respeito propriamente ao uso do Sistema de Escrita
Alfabética, a professora acompanhou individualmente as escritas ainda
em seu curso, e nesse processo propôs aos discentes a releitura do es-
crito, momento em que esses já conseguiam perceber algumas incon-
sistências em suas produções e, com isso, a docente pôde fazer inter-
venções quanto à grafia de determinadas palavras, perguntando o que
desejavam escrever e propondo a reescrita do texto e operações afins.
Dessa forma, os objetos do conhecimento que até então haviam sido
apropriados apenas pela professora – a interlocutora mais desenvolvida
– foram compartilhados com os aprendizes. Busca-se, com isso, a efe-
tivação do aprendizado, o qual requer que os sentidos acerca do objeto
sejam compartilhados entre ambos os envolvidos nesse processo, extra-
polando-se a zona de desenvolvimento real e incidindo-se na zona de de-
senvolvimento iminente daquele que é o interlocutor menos desenvolvi-
do em relação ao objeto de conhecimento. Nesse processo, há a busca
para que o aluno prescinda desse auxílio de terceiros para ter autonomia
acerca de determinado objeto de conhecimento, para que sua conduta,
em se tratando da apropriação cultural em questão, até então heterorre-
gulada, passe a autorregular-se. Disso, ressaltamos a importância do in-
terlocutor mais desenvolvido na incidência na zona de desenvolvimento
iminente dos alunos, facultando-lhes uma apropriação da cultura histo-
ricizada por meio da autorregulação da conduta.
É nessa relação que, por fim, haverá a tomada de consciência, pois

[...] no campo dos conceitos científicos, ocorrem níveis


mais elevados de tomada de consciência do que nos
conceitos espontâneos. O crescimento contínuo des-

252
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

ses níveis elevados no pensamento científico e o rápido


crescimento no pensamento espontâneo mostram que o
acúmulo do conhecimento leva invariavelmente ao au-
mento dos tipos de pensamento científico, o que, por sua
vez, se manifesta no desenvolvimento do pensamento
espontâneo e redunda na tese do papel prevalente da
aprendizagem no desenvolvimento do aluno escolar.
(VIGOTSKI, 2010, p. 243)

Além das intervenções individuais, a professora também possibili-


tou processos de reescrita coletiva, que foi o que ocorreu com as produ-
ções das imagens (1) e (2). Na discussão em grupo, no texto da Imagem
(1), a ênfase da reescrita se deu na palavra ‘biblioteca’, a qual foi reescri-
ta da maneira convencional após a procura de sua grafia no dicionário.
Outro elemento que demandou atenção da professora no mesmo texto,
quando da sua análise com o grupo, foi a percepção de uma noção ainda
embrionária do conceito de palavra, o que ficou perceptível com a con-
densação de palavras no início do texto (‘amigos to’ – ‘amigos gosto’ e
‘brircarol’ – ‘brinca com a Carol’). Com isso,

[...] a profissional se ocupou de explicar que a mesma sí-


laba pode se repetir em diferentes palavras, mas que a
mesma sílaba não pode estar ao mesmo tempo em mais
de uma palavra, ou por outra, sendo aproveitada em duas
ou mais palavras próximas. Em seguida, procedeu a rees-
crita do texto seguindo as orientações do grupo. (SOUZA;
PEDRALLI; ARAGÃO, 2017, p. 50)

Por mais simples que esse exemplo pareça, ele sintetiza muitas
das nossas defesas, ao passo que a própria concepção de palavra se trata
de uma abstração que necessita desse intermédio para ser assimilada
pelos alunos.
Esses exemplos apresentados no relato de experiência, ain-
da que bastante restritos, por mostrarem apenas uma pequena parte
do trabalho pedagógico elaborado pela alfabetizadora, já encaminham

253
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

possibilidades e corroboram o que vimos destacando ao longo desta


discussão, de que é necessário que o professor desenvolva atividades
específicas que auxiliem os alunos nas compreensões acerca das síla-
bas, das palavras e do próprio sistema, por meio da percepção em torno
do que é permanente nesses usos, sem que isso se dê de maneira assép-
tica das relações sociais da escrita.

3 Os desafios

Vimos, no decorrer deste capítulo, que a língua escrita altera


os modos de funcionamento da percepção, da memória e do pensamento
e, assim, ao apropriar-se da língua escrita, a criança se apropria também
das técnicas oferecidas por sua cultura. Esse sistema simbólico é consi-
derado um dos instrumentos culturais mais bem elaborados pela huma-
nidade, sendo produto, mas, ao mesmo tempo, um elemento importante
para o próprio desenvolvimento do homem. Assim,

Só quando as relações da criança com o mundo que a


cerca se tornam diferenciadas dessa maneira, quando
ela desenvolveu a relação funcional com as coisas, é que
podemos dizer que as complexas formas intelectuais do
comportamento humano começaram a se desenvolver.
(LURIA, 2010, p. 145)

Nesse contexto e a partir de fundamentos de base histórico-cul-


tural, podemos definir dois eixos principais sobre a função da educação,
uma função social – que considera a totalidade da humanidade e a re-
lação dos indivíduos com o gênero humano – e uma função individual,
que diz respeito ao desenvolvimento das próprias funções psicológicas
dos indivíduos, mas que sempre considera que esse desenvolvimento
individual está inserido em um contexto de produção da vida em socie-
dade, logo, apresenta aspectos sociais também. Sabe-se, com isso, que a
produção e a reprodução da vida se dão pela transformação da natu-
reza, e é por meio dessa relação que a cultura é sintetizada ao longo
da história.

254
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Com relação à primeira função mencionada, vemos a educação


como uma consequência imediata do metabolismo entre homem e na-
tureza, mediado pelo trabalho. Ao produzir a própria vida, satisfazendo
as suas necessidades e também as das futuras gerações, e desenvolvendo
novas necessidades, a humanidade precisa garantir, por exemplo, que a
prática de fazer faíscas com o atrito de duas pedras não seja esquecida
e que o domínio do fogo se perpetue. Esse conhecimento desenvolvido
pela prática social precisa ser conservado e transmitido, e a transmissão
desses conhecimentos, dessas descobertas, é a forma de educação mais
antiga desenvolvida, uma relação exclusiva do homo sapiens sapiens;
tal como o trabalho, é uma ação fundamental no processo de humaniza-
ção. A apropriação dos artefatos culturais – do domínio do fogo à bomba
atômica – produzidos nos milhares de anos de existência da espécie é do
papel da educação como elemento de humanização dos indivíduos.
Já a segunda função da educação nos permite ver as consequên-
cias desse processo nos indivíduos, além de nos apresentar elementos
que possibilitam a compreensão das relações educacionais atuais. O de-
senvolvimento dos indivíduos nesse processo pressupõe o desenvol-
vimento de algumas funções: a atenção deliberada, a memória lógica,
a capacidade de abstração e a capacidade para comparar e diferenciar.

[...] só a presença de condições externas e o estabeleci-


mento mecânico de uma ligação entre a palavra e o ob-
jeto não são suficientes para a criação de um conceito.
[...] a formação de conceitos não segue o modelo de uma
cadeia associativa, em que um elo suscita e acarreta
outro, mas um processo orientado para um fim, uma sé-
rie de operações que servem como meio para a solução
do problema central. A memorização de palavras e a sua
associação com os objetos, não leva por si só, à formação
de conceitos; para que o processo se inicie, deve surgir
um problema que só possa ser resolvido pela formação
de novos conceitos. (VIGOTSKI, 2010, p. 156-157)

255
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Esse pressuposto se aplica tanto em relações mais elaboradas


quanto em elementos aparentemente muito simples. Por exemplo, a ação
de juntar madeira e pedra para fazer um machado, algo que não se en-
contra na natureza, por mais prosaica que pareça, representa um acú-
mulo de cultura importante na reprodução da vida humana. Ao utilizar
um machado ou uma lança, então, necessidades e habilidades que exis-
tiam como possibilidade se manifestam, fazendo se desenvolver novas
necessidades como, por exemplo, polir pedras para fazer machados mais
eficientes. Surge, com isso, também, a necessidade de se saber que tipo
de pedra se usa para os machados e que tipo de pedra se usa para polir
outras. Esse exemplo, mesmo elementar, pode, via de regra, nos reme-
ter ao processo de permanência e de superação dos artefatos da cultura
e apontar para o fato de que nós, professores responsáveis por criar no-
vas possibilidades de apreensão dessa cultura pelos alunos, podemos fa-
zê-lo por meio dos artefatos que os possibilitam conhecer e se apropriar,
como, dentre tantos outros, um sistema alfabético responsável pela ela-
boração da linguagem escrita.

REFERÊNCIAS

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Campinas: Mercado de Letras, 2012.
ENGELS, Friederich. Do socialismo utópico ao socialismo científico. São Paulo:
Centauro, 2005.
GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
KLEIMAN, Angela B. O processo de aculturação pela escrita: ensino da forma ou
aprendizagem da função? In: Kleiman, Angela B.; Signorini, Inês. O ensino e a
formação do professor: alfabetização de jovens e adultos. Porto Alegre: Artmed,
2000.
LEONTIEV, Alexei N. O desenvolvimento do psiquismo. 2. ed. São Paulo:
Centauro, 2004.
LURIA, Alexander R. O desenvolvimento da escrita na criança. In: VIGOTSKI,
Lev S.; LURIA, Alexander R.; LEONTIEV, Alexei N. Linguagem, Desenvolvimento
e Aprendizagem. 11. ed. São Paulo: Ícone Editora, 2010. p. 143-190.

256
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.
MARX, Karl. O capital. Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo:
Boitempo, 2013a.
MARX, Karl. Posfácio da segunda edição. In: MARX, Karl. O capital. Livro I: o
processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013b.
MORTATTI, Maria Rosário Longo. História dos métodos de alfabetização no
Brasil. Conferência proferida no Seminário Alfabetização e Letramento em
Debate, 2006.
SAVIANI, Dermeval. Escola e Democracia. 42. ed. Campinas: Autores Associados,
2012.
SOUZA, Cristina Albertina Rodrigues de; PEDRALLI, Rosângela; ARAGÃO,
Jovino Luiz. Alfabetização nos/para os usos sociais da escrita: a produção
textual escrita como ponto de partida para a apropriação do sistema de escrita
alfabética. In: SILVEIRA, E.; AGUIAR, M. A. L.; PEDRALLI, R. Alfabetização de
crianças de 6 a 8 anos: relatos de experiência docente. Volume 3. Florianópolis:
Núcleo de Publicações do Centro de Ciências da Educação, 2017. p. 48- 50.
VIGOTSKI, Lev Semenovich. A formação social da mente. São Paulo: Martins
Fontes, 2007.
VIGOTSKI, Lev Semenovich. A Construção do Pensamento e Linguagem. São
Paulo: Martins Fontes, 2010.

257
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

MAS O QUE É MESMO TRABALHAR COM


ORALIDADE?: A PRODUÇÃO TEXTUAL ORAL
NO PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO

Amanda Machado Chraim1


Rosângela Pedralli2

Em um momento histórico profundamente assolado pelo ‘obscu-


rantismo beligerante’3 (DUARTE, 2018), discutir currículo escolar e pla-
nejamento/organização do trabalho educativo não é questão acessória
especialmente se entendermos que uma importante forma de revolu-
ção social envolve diretamente ações em favor da formação humana
(LÉNINE, 1975 [1957]). Essas ações, no modo de sociabilidade vigente,
são centradas nas instâncias formais, escola e universidade; então, pen-
sar o que se prioriza na forma de currículo e de que maneira isso re-
verbera nas práticas pedagógicas é tema de significativa importância,
merecendo tratamento teórico acurado.
1 Doutora em Linguística Aplicada pela Universidade Federal de Santa Catarina, e membro
do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Linguística (GEPEL).
2 Doutora em Linguística Aplicada pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística da
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora adjunta da mesma Universidade.
Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Linguística (GEPEL), do Grupo de
Estudos e Pesquisas Escola de Vigotski (GEPEVI) e do Núcleo de Estudos em Linguística
Aplicada (NELA).
3 O termo obscurantismo beligerante procura conceituar “[...] difusão de uma atitude de ata-
que ao conhecimento e à razão, de cultivo de atitudes fortemente agressivas contra tudo
aquilo que possa ser considerado ameaçador para posições ideológicas conservadoras e
preconceituosas. Essa atitude vai além da defesa de posições de direita, caracterizando-
-se pela disseminação de um ambiente de hostilização verbal e física a qualquer ideia ou
comportamento considerados ‘esquerdizantes’, ‘vermelhos’ ou ‘imorais’” (DUARTE, 2018,
p. 139).

258
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Esse rigor é garantido, em consonância com o materialismo his-


tórico e dialético (MARX; ENGELS, 2007 [1926]; MARX, 2010 [1844];
LÖWY, 1987; TONET, 2013), à medida que as produções do campo cien-
tífico consigam, no enfoque da Educação, desvelar orientações políticas
inerentes aos projetos e ações educacionais, tanto quanto deslindar pos-
sibilidades de reposicionamento do que diz respeito à dimensão meto-
dológica do trabalho de ensino.
Para isso, especificamente no que compete à Educação Linguística,
convém dar destaque à necessária superação da oposição teoria e prática,
prevalecente também nesta dimensão do trabalho educativo, que secun-
darizam elaborações teóricas que evidenciam a impossibilidade de sus-
tentar essa oposição, considerando-se o compromisso com um debate
acadêmico rigoroso (MARX, 2013 [1843]; 2010 [1844]; VÁZQUEZ, 1977
[1967]; KOSIK, 1976). Nessa direção, a contribuição de Britto (2012) me-
rece ser destacada.
Assumindo um movimento que vai da Educação para a Linguagem,
entendida como produto do trabalho humano, Britto (2012, p. 83-4, gri-
fos do autor) define dois pressupostos básicos a partir dos quais concebe
o ensino de língua nesses termos: (i) “a função primordial da educação es-
colar é contribuir para o desenvolvimento intelectual e social dos alunos” e:

[...] (ii) a educação linguística implica a ação pedagógica


que leve o estudante a perceber a língua e a linguagem
como fenômenos históricos complexos, a compreender
seu funcionamento, usos e formas [...] usá-la com pro-
priedade nas modalidades oral e escrita, em especial para
estudar e aprender e viver sua subjetividade.

Esses dois pressupostos sinalizam para as múltiplas determina-


ções que envolvem os processos de ensino e aprendizagem da língua(-
gem), pelo menos no escopo da educação formal.
A educação linguística no âmbito da alfabetização, assim, não pas-
sa ilesa da necessidade de reflexão crítica a partir dessas mesmas deter-

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

minações, uma vez que o trabalho educativo já na alfabetização deve


contribuir para: (i) a ampliação da capacidade de interpretação da re-
alidade; (ii) a apreensão de conceitos; e (iii) a problematização da vida
concreta (BRITTO, 2012). Tais aspectos evidenciam, ainda, uma compre-
ensão da especificidade do ensino escolar, pautada na perspectiva críti-
ca e ocupada com um objetivo formativo que supera a mera adaptação
dos indivíduos à ordem vigente, ao apostar numa “[...] educação escolar
formativa e não instrucional [...]” (BRITTO, 2012, p. 97), ainda que edu-
cação escolar formativa seja entendida numa lógica de superação por in-
corporação do aspecto instrucional.
O trabalho com o que os documentos oficiais vêm chamando, des-
de a década de 1990 (PCN, 1997) e ainda hoje (BNCC, 2017), de eixos
do ensino e da aprendizagem de língua – leitura, produção textual es-
crita, análise linguística e oralidade –, supostamente tem presente es-
sas múltiplas determinações, porque necessariamente submetido a elas
e, consequentemente, reconhece-se voltado à promoção de um ideal
de formação humana. Isso não passa ao largo da especificidade do cam-
po da alfabetização, já que os processos orientados para esse momento
da educação formal têm como premissa um objetivo formativo que pode
estar mais ou menos evidente nos projetos educacionais, mas sempre
está presente. Neste capítulo, priorizaremos a reflexão sobre o que
os mencionados documentos oficiais do país têm posicionado como
eixo do trabalho de Língua Portuguesa no ensino escolar, a oralidade.
Nessa direção, tal reflexão se dará a partir de dois objetivos: (i) revelar,
pela mediação teórico-conceitual de filiação marxista, as determinações
que envolvem o trabalho educativo com essa dimensão da linguagem
verbal e (ii) a partir dessa mesma mediação, avançar com a proposição
do que deva ser priorizado no âmbito dos currículos para a alfabetização
e a possibilidade de fazê-lo, por concebermos que também as ações edu-
cativas que tomem a linguagem verbal na modalidade oral estão a ser-
viço da adaptação ou da humanização nesse momento da escolarização.

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

1 Sujeito empírico e sujeito concreto/histórico: contribuições para


pensar sobre o papel da oralidade nos projetos formativos

O capitalismo utiliza diversas formas de inculcação da ideia de que


suas organização e manutenção se dão naturalmente, escamoteando
o fato de que, ao se valorizar o mundo das coisas, aumenta-se proporcio-
nalmente a desvalorização do humano e das necessidades do ser social
como produção histórica (MARX, 2010 [1844]). Isso porque o trabalho
no capitalismo “[...] não produz somente mercadorias; ele produz a si
mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isso na medida em que
produz, de fato, mercadorias em geral”, sendo “[...] o objeto [...] que o
trabalho produz, o seu produto, se lhe defronta como um ser estranho,
como um poder independente do produtor” (MARX, 2010 [1844], p. 80,
grifos do autor). Neste modo de sociabilidade, a objetivação – efetiva-
ção da atividade humana (MARX, 2010 [1844]) – subsome o trabalhador
à desefetivação, na medida em que reposiciona essa relação: “[...] a ob-
jetivação [passa a ser tomada] como perda do objeto e servidão ao obje-
to, a apropriação como estranhamento [...], como alienação [...]” (MARX,
2010 [1844], p. 80, grifos do autor).
Compreender a organização social dessa forma e a constituição
dos seres humanos nessa dinâmica requer um movimento de supera-
ção da dimensão fenomênica, superação que é demandada para que haja
compreensão da realidade social como resultado da ação humana ao lon-
go da história e, por isso mesmo, não natural, transformável. Reconhecer
a realidade concreta, material-sensível, nesses termos, torna-se funda-
mental e possível apenas pela identificação dos elementos em movi-
mento, em contradição e na totalidade, o que não é possível no plano
da aparência do fenômeno, no contato/na experiência estrita com a rea-
lidade imediata (KOSIK, 1976).
“O ser humano é um ser genérico” (MARX, 2010 [1844]) consis-
te em um pressuposto irrevogável da compreensão da realidade como
resultante de um processo histórico, envolvendo o trânsito metabóli-
co ativo entre ser humano-natureza-sociedade. É nesse e desse trânsito
que se funda a necessidade de pensar o ser humano como ser social,

261
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

na dimensão ontológica. Tal dimensão significa suprassumir (RANIERI,


2010), simultaneamente, compreensões do ser humano meramente bio-
logicistas e centradas/hipercentradas na subjetividade. A partir desse
pressuposto, reconhece-se que o ser humano se humaniza a partir da di-
mensão biológica/orgânica, a qual é base e condição para o seu desen-
volvimento, e que, ao fazê-lo, constitui, à medida que a vive, sua subje-
tividade, ainda que essa dimensão em si não determine e tampouco seja
suficiente para a compreensão do que forma a gênese do ser humano,
concebido como indissociavelmente genérico, particular, singular e que
compartilha a mesma base biológica/orgânica.
Essa compreensão da gênese humana requer a assunção do indi-
víduo como ser social, que se constitui ontogeneticamente, implicando
concebê-lo como ser que se humaniza nas/pelas atividades das quais
participa. Isso se dá porque, ao fazê-lo, congrega em suas ações, em favor
de tal atividade, teoria e prática, a práxis (VÁZQUEZ, 1977 [1967]). Aqui,
importa um registro: originalmente as atividades humanas só poderiam
ser concebidas dessa forma; “A prática, para desenvolver-se e produzir
suas consequências, necessita da teoria e precisa ser por ela iluminada”
(SAVIANI, 2013a [1991], p. 120). Ocorre que, no capitalismo, há uma ci-
são artificial e deliberada entre trabalhos manual e intelectual, a qual
incide nas (im)possibilidades da compreensão do trabalho como ativi-
dade vital humana, porque pautada na lógica da alienação. Reconhecer
tal cisão impõe a necessidade de empreender-se um esforço, que envolve
também a formação dos seres humanos, de redialetização dessas dimen-
sões do agir do ser social.
A formação humana associa-se a esse processo em razão da im-
possibilidade de se identificar essa relação em dialética pela mera ob-
servação ou atuação na imediatez cotidiana. Nesses termos, para co-
nhecer a realidade na lógica da práxis, é necessário superar a centração
nas ideias de que isso seja sinônimo de sua identificação fenomênica
e de produção de representações sobre a realidade. Isso porque “[...] ‘a
existência real’ e as formas fenomênicas da realidade [...] são diferen-
tes e muitas vezes absolutamente contraditórias com a lei do fenômeno,
com a estrutura da coisa e, portanto, com o seu núcleo interno essen-

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

cial e seu conceito correspondente” (KOSIK, 1976, p. 10, grifos do autor).


Da mesma forma, “A representação da coisa não constitui uma qualidade
natural da coisa e da realidade: é a projeção, na consciência do sujeito,
de determinadas condições históricas petrificadas” (KOSIK, 1976, p. 15,
grifos do autor).
Conhecer a realidade, se não é isomórfica às tentativas de tomada
do real em abordagens fenomênicas ou representacionais, suprassume
essas tentativas ao conceber que “O mundo fenomênico tem uma es-
trutura, uma ordem própria, uma legalidade própria que pode ser reve-
lada e descrita” (KOSIK, 1976, p. 11), a despeito das tentativas de natu-
ralização impostas pelo capitalismo. Não se trata, pois, de eleger o que
tem primazia ou mesmo promover uma ruptura entre fenômeno, repre-
sentação e essência, mas de reposicioná-los dialeticamente.
Nessa mesma direção, importa apresentar a relação entre o sujeito
que conhece e a realidade a conhecer. Para isso, a partir do fundamento
marxista e da tendência de cindir teoria e prática que se projeta ao lon-
go da história, é possível categorizar as abordagens sobre essa relação
em três concepções: (i) sujeito abstrato, (ii) sujeito empírico e (iii) sujeito
concreto/histórico. A primeira tende a focalizar a lógica exclusivamen-
te teórica, para sustentar que o sujeito cognoscente é “[...] uma mente
pensante que examina a realidade especulativamente” (KOSIK, 1976, p.
9). Já a segunda, ainda sob essa lógica artificialmente partida, identifica
o sujeito com aquele que conhece, tendo como ponto de partida e de
chegada a práxis utilitária imediata e o senso comum, os quais permitem
ao sujeito “[...] orientar-se no mundo, de familiarizar-se com as coisas
e manejá-las, mas não proporcionam a compreensão das coisas e da re-
alidade” (KOSIK, 1976, p. 10, grifos do autor). O que permitiria efeti-
vamente a compreensão do real se pauta justamente na terceira forma
de conceber o sujeito, a que o toma como concreto/histórico sob uma
lógica superadora por incorporação das demais concepções; é a par-
tir da relação pela via do trabalho que o sujeito, na busca por atender
suas necessidades, as reelabora, complexificando-as, ao mesmo tempo
em que as representa, valora e fixa – provisoriamente. Isso se dá no caso

263
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

de o sujeito tomar parte da realidade como práxis histórica/revolucioná-


ria (MARX, 2010 [1844]; KOSIK, 1976).
É nesse e por esse processo que os indivíduos, pela mediação
da abstração e do conceito, reconhecem-se e se formam como sujeitos
concretos/históricos. Enfatizar essa forma de conceber o ser humano
significa alinhar-se a uma compreensão de que o problema do conhe-
cimento precisa ser enfrentado numa lógica ontogenética, não cindida
– sujeito e objeto –, mas em consonância com o que se grassa no padrão
filosófico-científico marxiano (TONET, 2013): o objeto tem primazia so-
bre o sujeito, porque as realidades natural e social têm existência, ainda
que como resultado da ação humana historicamente, independente-
mente de cada novo indivíduo da espécie humana ter ou não consciência
sobre essa existência.
Para se conhecer a realidade, é necessária uma passagem que vai
do empírico ao concreto sob a mediação do abstrato (MARX, 2011 [1857-
8]). Essa passagem envolverá, no plano da formação humana, ação siste-
mática e organizada a fim de “[...] possibilitar que as novas gerações in-
corporem os elementos herdados de modo que as tornem agentes ativos
no processo de desenvolvimento e transformação das relações sociais”
(SAVIANI, 2013a [1991], p. 121). Trata-se de uma ação que envolve com-
promisso com a orientação dos projetos educacionais para uma forma-
ção humana omnilateral.
Também nessa orientação, há que se ter no horizonte a dinâmica
entre as concepções de sujeito, para o que importa destacar a diferença
entre aluno empírico e aluno concreto, apresentada por Saviani (2013a
[1991]) e discutida mais adiante neste artigo. Nesse sentido, o autor,
ao convergir com o fundamento filosófico marxista, faz uma impor-
tante inflexão: as tendências pedagógicas inovadoras, que preconizam
o lema ‘aprender a aprender’ (DUARTE, 2006), promovem uma centração
no aluno, pautada na concepção de sujeito empírico, pela ruptura com a
lógica então prevalecente de verticalização no professor pela assunção
do aluno como sujeito abstrato. Tal promoção escamoteia a mesma
matriz política conservadora da ordem vigente que aproxima a ambas

264
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

e impede o avanço na compreensão crítica sobre que projetos formativos


seriam mais convenientes para que a agenda transformadora, assumida
pelas instituições formais supostamente, seja levada a efeito. Na base
disso, deveriam considerar os interesses do aluno concreto, que envol-
veria a concepção de sujeito histórico/concreto e, portanto, a suprassun-
ção do sujeito empírico. O autor assim explica essa relação:

[...] o que é do interesse desse aluno concreto diz respei-


to às condições em que se encontra e que ele não esco-
lheu. Assim, também as gerações atuais não escolhem os
meios e as relações de produção que herdam da geração
anterior, e a sua criatividade não é absoluta, mas faz-se
presente. [...] os educandos, enquanto concretos, tam-
bém sintetizam relações sociais que eles não escolhe-
ram. [...] firmando-se o princípio de que o atendimento
aos interesses dos alunos deve corresponder sempre aos
interesses do aluno concreto. (SAVIANI, 2013a [1991], p.
121)

Essa defesa se relaciona diretamente ao problema do conhecimen-


to, à elaboração de currículos e ao desenvolvimento das ações de ensi-
no, também no âmbito da alfabetização, na medida em que a identifica-
ção fenomênica da realidade não é sinônimo de conhecimento, por não
ser possível, de forma circunscrita a essa identificação, compreender
a gênese dos objetos do conhecimento pela aposição de partes que per-
mitiriam a ‘montagem’ do todo. Da mesma forma, os interesses origi-
nados da relação com a práxis utilitária não podem balizar o trabalho
educativo se o objetivo dele for superar os limites da adaptação humana
ou, na concepção concorrente, a existência do sujeito não pode ser subli-
mada por uma noção abstrata de humano.
Na seção que segue, assim, tendo presente essa compreensão so-
bre o objetivo da alfabetização, abordaremos as tendências pedagógicas
hegemônicas e as contribuições da práxis para a sua superação.

265
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

2 As tendências pedagógicas hegemônicas e a oralidade como dado


biológico: em busca da sua superação

Ocupamo-nos, até aqui, da abordagem daqueles fundamentos


os quais consideramos centrais, à luz de uma compreensão ontológi-
ca do ser humano e da educação, para as reflexões em torno dos pro-
cessos de ensino e aprendizagem, da alfabetização mais propriamente,
sendo a oralidade um processo que demanda subsídios teóricos consis-
tentes para que a prática pedagógica se coloque de maneira a incidir
na humanização dos sujeitos. É necessário reiterar, entretanto, que tais
pressupostos teórico- filosóficos se constituem a partir de uma visão so-
cial de mundo (LÖWY, 2015 [1985]) particular, reconhecida e assumi-
da quando das elaborações acerca da realidade concreta. Nesse sentido,
a perspectiva que defendemos tensiona frontalmente outras proposi-
ções, sobretudo aquelas que têm, na origem, a conservação do estado
de coisas como horizonte, num movimento que busca incorporá-las
em vistas da sua superação. Diante disso, torna-se tautologia afirmar
que, para além do que vimos defendendo por meio do materialismo
histórico e dialético em vistas da formação humana na alfabetização,
outros pressupostos têm ocupado espaços nesse campo, de modo a em-
preender um trabalho educativo voltado à conformação dos indivíduos
diante da realidade.
No centro de nossa exposição analítica nesta seção estão aquelas
perspectivas pedagógicas que têm grande ênfase no campo da alfabe-
tização, as quais carregam especificidades que as diferenciam entre si
– quando consideradas à luz da visão social de mundo, por outro lado,
está dado o encontro entre elas. E fazemos isso em nome também do que
nos ocuparemos na seção subsequente a esta: a elaboração de proposi-
ções que, em superando as pedagogias hegemônicas por meio práxis,
com a explicitação de elementos metodológicos no tocante à oralidade,
estejam voltadas a um projeto humanizador de formação.
Nesse sentido, na esfera escolar, tornou-se lugar comum, desde
há muito, a negação à pedagogia tradicional e às suas propostas ver-
balistas de ensino, e quando Saviani (2012 [1983]) analisa essa dinâmi-

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

ca, aponta que, para o ocupar o ‘vazio’ dessa negação frontal à escola
tradicional, as proposições escolanovistas – para as quais o construti-
vismo tem papel central – aparecem como parte de um projeto social
que, a partir de uma compreensão fetichizada da relação entre escola
e sociedade mais ampla, vislumbra formar sujeitos flexíveis, moldáveis
e adaptáveis às circunstâncias (BRITTO, 2012). Para ilustrar essas afir-
mações, recorremos a Teixeira (1978, p. 27, grifo do autor), importante
educador e pioneiro da Escola Nova, para quem “O fim da educação é,
de modo geral, levar os educandos a ter as mesmas ideias que preva-
lecem entre os adultos, e, assim, como membros reais do grupo social,
dar às coisas e aos atos o mesmo sentido que os outros” – nada poderia
ser mais elucidativo quanto ao que tratamos como uma formação para
a adaptação à ideologia dominante. A escola, sob essa toada, “[...] não le-
vará ao máximo de aprendizagens, porque a aquisição do saber, devendo
processar-se em processo natural de vida, será inevitavelmente aciden-
tal” (TEIXEIRA, 1978, p. 40). O que em alguma medida analisamos nesta
seção é justamente a ‘acidentalidade’ com que o desenvolvimento oral
das crianças é abordado na escola.
Quando concebida a ‘aquisição do saber’ como ‘processo natural’,
tem-se, por certo, como princípio, a compreensão biologizante dos su-
jeitos, para a qual as elaborações da epistemologia genética têm rele-
vância, instituindo-se que o conhecimento resultaria “[...] de interações
que se produzem a meio caminho entre sujeito e objeto [...]” (PIAGET,
2012 [1970], p. 8), estando implicados nesse movimento, que vislumbra
a adaptação do organismo humano ao meio, os processos de assimila-
ção e acomodação; sobre os postulados piagetianos, Martins e Marsiglia
(2015, p. 36) explicam: “O processo de assimilação é a incorporação
de uma experiência ou objeto aos esquemas do sujeito. No entanto,
as experiências/os objetos podem oferecer resistência, exigindo um pro-
cesso de acomodação por meio do qual o organismo se ajustará [...]”.
O ajustamento, pois, torna-se palavra de ordem.
Tendo-se em vista que os pressupostos filosóficos de quaisquer
teorizações do campo educacional incidem diretamente na organiza-
ção do trabalho docente, importa explicitar que o ideário construtivis-

267
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

ta secundariza o papel dos professores – Ferreiro e Teberosky (1991, p.


282), autoras que se tornaram referência para a alfabetização em razão
dos seus ‘estágios implicacionais de escrita’, equivocadamente adotados
como prescrições metodológicas, registram: “A escrita tem uma série
de propriedades que podem ser observadas atuando sobre ela, sem mais
intermediários que as capacidades cognitivas e linguísticas do sujeito”,
ainda que as autoras pontuem que há outras propriedades dessa mo-
dalidade linguística que “[...] não podem ser ‘lidas’ diretamente sobre
o objeto, mas através das ações que outros realizam sobre esse objeto.
A mediação social é imprescindível para compreender alguma de suas
propriedades”. A ‘mediação social’, assim genericamente, seria um aces-
sório com utilidade em alguns casos, mas não em outros, já que a centra-
lidade está na aprendizagem – nas lides pragmáticas com a linguagem.
Em uma aliança com os fundamentos escolanovistas, os propa-
lados ‘estágios de escrita’ passaram a ser adotados no Brasil a partir
da constatação do fracasso dos métodos de alfabetização que tiveram
tanto espaço até, sobretudo, na década de 1980, vinculados aos pressu-
postos da pedagogia tradicional. Gontijo (2014, p. 41) chama atenção
para o fato de que Ferreiro e Teberosky “[...] não apontam explicita-
mente um modelo de ensino ou qual unidade de ensino deve ser privi-
legiada na alfabetização, mas questionam o uso dos métodos analíticos
e sintéticos”, e essa vinculação teórica e ideológica entre construtivismo
e escolanovismo, segundo Rossler (2006, p. 227), ampliou a ressonância
das ideias interacionistas-construtivistas, tendo em vista o grande im-
pacto do ideário da Escola Nova na educação: “Se pararmos para com-
parar as teses principais de um e outro ideário, poderemos constatar
que, se existem algumas diferenças, são porém bem mais acentuadas
as semelhanças”.
Se, por um lado, estavam colocadas as problematizações em torno
da insuficiência dos métodos de alfabetização na relação com os fun-
damentos da pedagogia tradicional, por outro lado questões adicionais
passaram a ser objeto de críticas, já que os resultados da alfabetização
não se alteraram magicamente a partir das premissas escolanovistas
e construtivistas – e identificamos os Estudos do Letramento na relação

268
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

com tais proposições –, entendidas, a partir de Duarte (2011, p. 186),


como próprias das pedagogias do ‘aprender a aprender’, localizando-se
aí também a pedagogia das competências, dada a ênfase na formação de
“[...] indivíduos predispostos a aprender qualquer coisa, desde que aqui-
lo a ser aprendido mostre-se útil ao processo de adaptação do indivíduo
à vida social, isto é, ao mercado”.
Em tendo se tornado hegemônicas no campo da alfabetização,
as teorizações construtivistas, sob a égide sobretudo da pedagogia
das competências, se assentam perfeitamente em quaisquer políticas
públicas voltadas à educação para a adaptação, dado seu compromisso,
conforme analisa Derisso (2010, p. 51), com “[...] a formação de um su-
jeito pacífico, ordeiro e preparado para concorrer no mercado de traba-
lho [...]” – nesse movimento, há a entrada em cena, segundo esse autor,
da psicologia em detrimento da filosofia. “Jean Piaget é [...] um esco-
lanovista justamente por pautar sua teoria do conhecimento e da for-
mação da inteligência pela determinação do elemento psicológico sobre
o social. Os métodos ativos, tão exaltados [...], em Piaget estão funda-
mentados na ciência da psicologia genética” (DERISSO, 2010, p. 56), en-
contrando-se a subjetividade no centro das discussões.
Curiosamente, o que ressurge no cenário contemporâneo da alfa-
betização é aquilo que tinha sido dado como morto: os métodos sinté-
ticos, mais propriamente o método fônico, em alguns contextos deno-
minado/pessoalizado como ‘Sistema Scliar de Alfabetização’ (roupagem
distinta aos mesmos pressupostos). Vê-se que estamos num mesmo lu-
gar: na prevalência da abordagem biologizante e empírica dos sujeitos,
defendida à luz das ciências cognitivas, instituindo-se, por meio delas,
a ‘alfabetização baseada em evidências’ – conforme o Plano Nacional
de Alfabetização (BRASIL, 2019, p. 20), “[...] uma alfabetização baseada
em evidências traz para o debate sobre o ensino e a aprendizagem da lei-
tura e da escrita a visão da ciência, dados da realidade que já não po-
dem ser ignorados nem omitidos”. Não nos interessa aqui problematizar
as concepções de fundo em torno do que seja a ciência na relação com a
sociedade; apenas explicitamos que, ressaltando-se os estudos experi-
mentais positivistas como constituintes ‘da ciência’, faz-se uma tenta-

269
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

tiva de apagar outras formas de elaboração científica com epistemolo-


gias distintas do positivismo, o qual, deliberadamente, busca neutralizar
as relações entre ideologia e fazer científico (TONET, 2013; LÖWY, 2015
[1985]).
Corroboramos, desse modo, Duarte (2008), quando afirma que o
modelo biológico, naturalizante, une empiristas e interacionistas – anu-
la-se o que entendemos fulcral para uma análise da realidade e da edu-
cação que se coloque para além das perspectivas hegemônicas: a his-
toricidade tanto dos sujeitos quanto dos objetos. Nesse sentido, quer
se aborde o eixo da oralidade na alfabetização pelas pedagogias do
‘aprender a aprender’, quer se retome, de forma retrógrada, o método
fônico, um aspecto fulcral salta aos olhos: a cisão entre modalidade oral
e escrita, quando a primeira é concebida sobretudo pelo desenvolvimen-
to natural, biológico dos indivíduos. Sobre isso, Scliar-Cabral (2012, s.p.)
afirma que “[...] a comunicação oral é adquirida espontânea e compul-
soriamente por determinantes biopsicólogicos da espécie, enquanto
os sistemas de escrita são uma invenção tardia [...]”.
Por certo que a língua falada se tornou uma ‘herança natural’
da história humana, bastando aos sujeitos, os quais nascem já prepa-
rados biologicamente para tal, estarem em contato com interlocutores
mais desenvolvidos no âmbito do trato com as formas orais de comu-
nicação. Parece-nos, entretanto, que a problemática da qual nos ocu-
pamos tem suas origens também aí: a depender de quem sejam esses
interlocutores, estão dadas condições mais restritas ou mais amplas
para o desenvolvimento oral dos sujeitos. Desse modo, ao se assumir
a escola como instância formativa que deve, necessariamente, se voltar
para os produtos culturais que transcendem as lides cotidianas das inte-
rações face a face, desloca- se o lugar da oralidade – sem diminuir a re-
levância dos conhecimentos linguísticos adquiridos espontaneamente
pelas crianças, o processo educativo tem de se ocupar com o que está
na potência, considerado o máximo desenvolvimento já atingido pela
humanidade no tocante às possibilidades de comunicação oral, na in-
dissociabilidade com as produções escritas, garantindo ao máximo o de-

270
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

senvolvimento linguístico dos estudantes. Para isso, não basta, certa-


mente, adequação biológica.
No que respeita aos pressupostos linguísticos que embasam
as proposições acerca do ensino de linguagem, referenciamos a clássi-
ca distinção proposta por Volóchinov (2017 [1929]) entre objetivismo
abstrato e subjetivismo individualista, abordagens que têm especifici-
dades no tratamento teórico- analítico à língua, mas que compartilham
o mesmo ponto de partida, o enunciado monológico, secundarizando-
-se, pois, a dimensão sociológica dos enunciados, de modo a estabele-
cer que o enunciado singular (i) “[...] é um fato individual [...]” ou (ii)
“[...] uma expressão do mundo interior do falante”. Registra o autor,
para além dessas compreensões a-históricas do sujeito e da língua: “[...]
o enunciado humano mais primitivo, pronunciado por um organismo,
é organizado fora dele do ponto de vista do seu conteúdo, sentido e sig-
nificação: nas condições extraorgânicas do meio social” (VOLÓCHINOV,
2017 [1929], p. 216).
Vemos, pois, quer vinculando-se as pedagogias do ‘aprender
a aprender’ aos fundamentos linguísticos do subjetivismo idealista, quer
relacionando o método fônico – que hoje, diferentemente do atrelamen-
to mais estreito à pedagogia tradicional, atende perfeitamente aos fun-
damentos da pedagogia das competências – ao objetivismo abstrato,
estamos lidando com pressupostos gnosiológicos de ciência (TONET,
2013), sendo o sujeito empírico o ponto de partida, e isso tem enormes
reverberações na educação, dada a ‘retroalimentação’ própria entre essas
esferas XXX, 2021. Por meio da análise do conhecimento, as pedagogias
hegemônicas “[...] separam o processo do produto, a forma do conteúdo
e reduzem a relação entre pensamento e ação ao utilitarismo cotidiano”
(DUARTE, 2016, p. 119).
Perigosíssimas, assim, são as tratativas sobre a oralidade na alfa-
betização que a circunscrevem ao mero incentivo à fala, dadas as ‘possi-
bilidades iguais’ para todos os sujeitos que possuem uma base biológica
garantidora da fala. Duarte (2016, p. 117) registra que, dessa maneira,
há uma redução pragmática do conhecimento, com um projeto de for-
mação no qual está embutida a defesa de que “[...] a concepção de mun-

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

do é questão puramente subjetiva e individual, limitando-se a escola


a trabalhar com conhecimentos que respondem às demandas imediatas
da cotidianidade”.
Dando continuidade às nossas reflexões, apresentamos a seguir
alguns encaminhamentos metodológicos referendados pelas bases teó-
rico-filosóficas das quais temos nos ocupado neste capítulo.

3 A linguagem como simbolização produzida historicamente e as


formas relativamente estáveis com as quais ela se concretiza nas ati-
vidades humanas: a oralidade na tensão dialética entre o simples e o
complexo

No âmbito dos estudos da linguagem, é debate filosófico pouco ex-


plorado, polêmico e potente, a primazia do trabalho sobre a linguagem
ou o contrário. Para pesquisas científicas que tomam o estofo filosófico
marxista como base, essa aparente oposição está resolvida na origem
do próprio problema e é tomada numa relação dialética. A partir de uma
das premissas nodais deste fundamento – o trabalho é condição básica
e fundamental de toda a vida humana por ser ele o responsável em certa
medida pela criação do próprio homem –, Engels (2004 [1896], p. 15)
assim explica a descoberta histórica da linguagem verbal como possibi-
lidade comunicacional pelos seres humanos:

[...] o desenvolvimento do trabalho, ao multiplicar os ca-


sos de ajuda mútua e de atividade conjunta, e ao mostrar
assim as vantagens dessa atividade conjunta para cada
indivíduo, tinha de contribuir forçosamente para agru-
par ainda mais os membros da sociedade. [...] os homens
em formação chegaram a um ponto em que tiveram ne-
cessidade de dizer algo uns aos outros.

Foi, nesses termos, a necessidade derivada da coletivização


das ações humanas em razão da complexificação das próprias atividades
que criou/desenvolveu inclusive o aparelho fonador: “[...] a laringe pou-
co desenvolvida do macaco foi-se transformando, lenta mas firmemen-

272
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

te, mediante modulações que produziam por sua vez modulações mais
perfeitas, enquanto órgãos da boca aprendiam pouco a pouco a pronun-
ciar um som articulado após outro” (ENGELS, 2004 [1896], p. 15).
Para esse autor e, pela afinidade filosófica, para toda a Escola
de Vigotski, assim, a relação entre trabalho e linguagem só pode ser con-
cebida em sua origem a partir da primazia daquele no esteio do qual
se cria esta. Nas palavras de Engels (2004 [1896], p. 16), “primeiro o tra-
balho e, depois dele e com ele, a palavra articulada, foram os dois estí-
mulos principais sob cuja influência o cérebro do macaco foi se transfor-
mando gradualmente em cérebro humano [...]”.
Partindo dessa compreensão corrente no âmbito da filosofia mar-
xista, ainda que não consensualmente (HADDAD, 1999), Vygotski (2012
[1931]), ancorado em importante trabalho sobre a descoberta da escrita
desenvolvido por Luria (1988), retoma a dinâmica de desenvolvimen-
to das formas de simbolização na história humana, fazendo-o a partir
do reconhecimento de que essas se confirmam nos indivíduos pela par-
ticipação em atividades principais que caracterizam o desenvolvimento
humano (LEONTIEV, 1959). Tendo presente esse estudo e a afirmação
de que ensinar a linguagem oral e a linguagem escrita residiria numa cer-
ta artificialidade que acompanharia o processo no caso da segunda, en-
quanto que, no da primeira, a criança se integraria sozinha (VYGOTSKI,
2012 [1931]), é necessário realizar uma complementação: parece-nos
que aqui o autor reporta-se ao fato de o domínio da linguagem verbal
na modalidade oral ser reconhecido como possibilidade e, em consequ-
ência disso, tornar-se capacidade em cada novo ser da espécie humana
pela própria comunicação com outros. Não trataria o autor, nesse ponto,
especificamente, da apropriação das diferentes formas de comunicação
via modalidade oral da linguagem verbal, aquelas relacionadas às ins-
tâncias formais, organizadas socialmente, bem como das formas mais
elaboradas dessa manifestação linguística próprias dos campos do co-
nhecimento mais complexos, arte, ciência e filosofia, em síntese, das for-
mas superadoras da práxis utilitária e do senso comum.
É nessa direção que as proposições teóricas do Círculo de Bakhtin,
com destaque à teoria dos gêneros do discurso, parecem oferecer uma im-

273
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

portante contribuição para o adensamento da questão. Antes, contudo,


de apresentar os conceitos necessários a tal contribuição, convém marcar
um posicionamento acerca da fundamentação filosófica dessa proposta
teórica. Nesse sentido, há divergências em relação ao fundamento epis-
temológico-filosófico que a sustentaria (AMORIM, 2001) e notada predi-
leção por alinhamentos dela com tendências pedagógicas escolanovistas
e pós- modernistas no âmbito nacional, a exemplo do que parece se dar
com as ideias de Geraldi (1991; 2010) (FARIAS DA SILVA, 2020). No âm-
bito deste artigo, consideramos adequada a indicação de Faraco (2009,
p. 27) de que “[...] Bakhtin não vinculava seu pensamento a uma arqui-
tetônica que se pudesse classificar de marxista”, o que impõe o desafio
de aproximarmo-nos dela a partir de um enquadramento convergente
com as bases do marxismo, com os limites de suas contribuições sobre
o modo historicizado como toma as produções linguísticas, seja na mo-
dalidade oral ou na escrita, superando a mirada no que compete à cons-
tituição humana que tende a priorizar (circunscrever?) a subjetividade.
Nesses termos, importa-nos fundamentalmente a relação esfera/
campo da atividade humana, gênero do discurso e enunciado, central
para pensar a concretização da linguagem verbal na interação, na comu-
nicação demandada nas/pelas atividades humanas nas quais o indivíduo
atua. Acerca dessa relação, assim define Bakhtin (2011 [1952-3], p. 261,
grifos do autor):

Todos os diversos campos da atividade humana estão


ligados ao uso da linguagem. Compreende-se perfei-
tamente que o caráter e as formas desse uso sejam tão
multiformes quanto os campos da atividade humana [...].
O emprego da língua efetua-se na forma de enunciados
(orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos in-
tegrantes desse ou daquele campo da atividade humana.
[...] Evidentemente, cada enunciado particular é indi-
vidual, mas cada campo de utilização da língua elabora
seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais
denominamos gêneros do discurso.

274
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

É, portanto, à luz dessa forma de conceber a produção linguística


nas atividades humanas, e pretendendo esclarecer a heterogeneidade
dos gêneros do discurso e a dificuldade de definição do enunciado ge-
nericamente, que o mesmo autor diferencia os gêneros discursivos pri-
mários, os quais ele adjetiva como simples, e os secundários, aos quais
ele apõe o adjetivo complexo. Nesse ponto de sua elaboração, o filósofo
destaca que tal distinção tem caráter essencial e não meramente fun-
cional; isso significa dizer que os gêneros secundários se especificam
pela relação com “[...] condições de um convívio cultural mais complexo
e relativamente muito desenvolvido e organizado”; ainda que seu sur-
gimento se dê pela incorporação e reelaboração de gêneros primários,
eles “[...] perdem o vínculo imediato com a realidade concreta e [com]
os enunciados reais alheios [...]” (BAKHTIN, 2011 [1952- 3], p. 263).
A manutenção desse vínculo é justamente um importante traço distin-
tivo dos gêneros primários em relação aos secundários. Nessa direção,
importa ter presente que os primários se formam “[...] nas condições
da comunicação discursiva imediata” (BAKHTIN, 2011 [1952-3], p. 263).
Nesse ponto da elaboração conceitual do autor, ele sintetiza a com-
plexidade analítica que a comunicação humana exige mesmo no pla-
no da tomada da produção de enunciados em gêneros que expressam
as especificidades discursivas próprias de cada esfera, ao destacar que “a
própria relação mútua dos gêneros primários e secundários e o processo
de formação histórica dos últimos lançam luz sobre a natureza do enun-
ciado (e antes de tudo sobre o complexo problema da relação de recipro-
cidade entre linguagem e ideologia)” (BAKHTIN, 2011 [1952-3], p. 264).
Aqui, parece conveniente retomar os conceitos de sujeito empírico
e concreto para pensar a impossibilidade de sustentar tal cisão também
do ponto de vista da comunicação humana, na medida em que sua pro-
dução linguística estaria mutuamente constringida (i) pela história hu-
mana, já que é dela que surgem as formas relativamente estáveis a partir
das quais e nas quais materializa a linguagem verbal e, ao mesmo tempo,
(ii) nas atividades humanas, considerando-se que, ao se objetivar, inci-
diria nessa mesma história à medida que tanto confirmaria ou se con-
traporia a essa dinâmica. Cabe, entretanto, um reparo: não é possível
compreender, no âmbito da filosofia marxista, quaisquer movimentos

275
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

de transformação a partir do indivíduo, mas ela, antes, está condiciona-


da à organização dos indivíduos em sujeito coletivo (Tonet, 2013). Nesses
termos, os indivíduos não poderiam ser tomados na sua imediatez, hau-
ridos da história da humanidade, da mesma forma em que não poderiam
ser assumidos na abstração absoluta de sua existência empírica, tendo
que ela em si mesma seja insuficiente para explicar a potência huma-
na, passível de ser apreendida apenas na tomada do sujeito concreto/
histórico.
Do ponto de vista especificamente do trabalho educativo, uma im-
portante forma de objetivação humana será promovida pela via do pla-
nejamento/organização/sistematização, pelo professor, das ações
de ensino voltadas à produção linguística. Nesse ponto, parece-nos
fundamental problematizar a separação que os documentos oficiais
têm promovido ao posicionarem como eixos distintos ‘produção textual
escrita’ e ‘oralidade’, o que contribui para a perda da base comum a essas
formas de objetivação na realidade e, ao mesmo tempo, da especificidade
que caracteriza cada uma delas. Isso posto, a elaboração aqui realizada
fundamenta-se na defesa de que produção textual seria um único eixo,
o da produção concreta de objetivações humanas pela via da linguagem
verbal, na forma de enunciados concretos e únicos, que pode ser mate-
rializado nas modalidades oral e escrita, sempre em gêneros do discurso
portanto, os quais poderiam ser próprios da imediatez interacional co-
tidiana, os gêneros primários, ou afetos às esferas de convívio cultural
mais complexo, organizado e formalizado, instâncias sociais formadas
historicamente pela atividade humana vital. À escola caberia, pois, pri-
vilegiar a articulação entre textos orais e escritos, de modo a reconhecer,
como propõe Britto (2003, p. 36), “[...] a existência de situações inter-
locutivas na sociedade de cultura escrita em que se manifesta uma fala
orientada pela escrita”; são situações, continua o autor, “[...] em que
a intervenção oral, ainda que mantenha características irredutíveis à es-
crita – como as marcas prosódicas, a inconstância na forma das palavras
e os truncamentos sintáticos –, se apoia em um modelo de texto escrito”.
Nessa direção, considerando especificamente a função social
da escola, em convergência com a contribuição da filosofia marxista
para pensar a constituição humana e as implicações disso para os proje-

276
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

tos formativos, o que converge com a proposta pedagógica de Dermeval


Saviani, compreendemos que a ênfase do trabalho educativo deve recair,
no caso da produção de textos orais, sobre os enunciados nos gêneros
secundários. Isso porque essa forma de produção permitiria a ampliação
das formas de objetivação humana na realidade social, ao mesmo tem-
po em que contribuiria para o reconhecimento pelos indivíduos de sua
condição de sujeito concreto/histórico, que suprassume, assim, sua con-
dição empírica.
Nessa direção, convém relacionar, à guisa de exemplificação, al-
guns modos de incorporar tal indicação no trabalho educativo desen-
volvido, o que inclui o processo de alfabetização. Para isso, remetemos
à forma como tal premissa foi assumida nos estudos de Franz (2016)
e Sousa (2016), autoras que, em aproximação à assunção da oralidade
como produção textual oral, que prioriza gêneros do discurso secundá-
rios, produziram elaborações teóricas acerca de ações de ensino levadas
a efeito na Educação Básica. Nos limites deste capítulo, destacaremos,
de toda a elaboração materializada no planejamento e no desenvolvi-
mento dessas ações, aquelas desenvolvidas com vistas a contemplar
a produção textual oral, assumindo os riscos de um recorte como esse.
No trabalho de Franz (2016), com o objetivo de potencializar
a compreensão da obra literária Dom Casmurro, de Machado de Assis,
a docente propõe momentos semanais em que, organizados em duplas,
os alunos apresentam, na forma de seminários, complementações à lei-
tura do capítulo da obra mencionada ou já realizada pelo grupo ou em
realização na aula posterior. Para isso, os alunos (i) destacam um conhe-
cimento que é pressuposto pelo autor ou um conhecimento que pode-
ria contribuir para a compreensão leitora por expandir a própria obra,
relacionando-se com a realidade social/natural contemporânea; (ii) or-
ganizam, a partir da discussão com a docente, material escrito de apoio
para a exposição, muitas vezes em artefato que poderia ser consultado
de forma permanente pelos estudantes no momento da leitura da obra
em causa – é exemplo disso a elaboração de um glossário com palavras
com significado distinto do atual no âmbito da obra por uma das duplas;
e (iii) apresentação da complementação na forma de seminário pelas du-
plas de alunos, à luz do roteiro/material escrito preparado previamente

277
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

com contribuição da docente e retomando e/ou antecipando fragmentos


da obra literária em leitura pelo grupo. Tal ação acompanhou todo o pro-
cesso de leitura da obra e teve sobeja contribuição para a continuidade
e para a complexificação da compreensão da obra.
Já do trabalho de Sousa (2016), destaca-se um conjunto de pro-
duções textuais orais desenvolvidas ao longo de semestre letivo, a par-
tir de trabalho educativo que tinha por objetivo ampliar as possibilida-
des de compreensão crítica da relação ser humano-natureza-sociedade
por um grupo de estudantes que vivia no entorno de um importante
aterro sanitário da região em que se deu o estudo e que naturalizava
as condições sanitárias e, obviamente, econômicas precárias prementes.
Nesse sentido, duas ações envolvendo a produção textual oral merecem
destaque, quais sejam: (i) a realização de debate que tomou como base
a leitura de uma notícia veiculada em jornal impresso de referência es-
tadual e que contou com a problematização de seu enfoque e com o des-
velamento da posição político-ideológica nela contida pela intervenção
da docente; e (ii) realização de palestra pela professora de Geografia
da escola a convite da professora da turma, ocasião em que a profissio-
nal explorou a posição/localização das edificações em relação ao mar
como expressão de uma compreensão histórica da natureza como local
de descarte e não como meio de subsistência. Tais momentos, como bus-
camos evidenciar, se desenvolvem em estreita articulação com objetos
culturais escritos e não tem um objetivo em si mesmo, como treino para
posterior interação ou mesmo não convertem-se em ocasiões de fala li-
vre, pautada em opiniões, mas são correlacionados com modos de pro-
duzir textos próprios de instâncias sociais marcadas por convívio cultu-
ral mais complexo e relativamente muito desenvolvido e organizado e/
ou relacionados com conhecimento historicamente acumulado.
Entendemos, obviamente, que a tentativa de avançar na direção
de apresentar formas possíveis de desenvolvimento do trabalho edu-
cativo a partir dessas bases é sempre um risco na medida em que elas
não podem ser concebidas como formatos prontos e replicáveis e, ainda,
por serem apenas um fragmento de um trabalho educativo planejado
a partir de objetivos de promoção do desenvolvimento humano, os quais
não pode ser identificados no âmbito de um registro pontual. Contudo,

278
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

assumimos, tal qual propõe Saviani (2013b [1973]), que uma das dimen-
sões que compõe a atividade principal do professor é o desenvolvimento
de formas cada vez mais elaboradas de ensinar e é nesse sentido, por-
tanto, que vai nossa tentativa de contribuição no âmbito desse capítulo.

4 O desenvolvimento da oralidade no estudante concreto via práxis

Enquanto as pedagogias hegemônicas, grande parte delas fun-


damentadas em um viés biologizante dos sujeitos, promovem aborda-
gens voltadas às lides pragmáticas com a linguagem e o conhecimen-
to, buscamos defender neste capítulo que a formação escolar, e a etapa
de alfabetização como componente medular dela, deve estar voltada
não para o atendimento às necessidades imediatas do estudante em-
pírico, mas sim para a máxima potência já alcançada pela humanidade,
e diante disso é crucial a escolha de objetos culturais do campo da arte,
da ciência e da filosofia para os currículos (DUARTE, 2016). Para tan-
to, é parte inalienável do processo o reconhecimento, via compreensão
crítica da historicidade da vida humana, das necessidades do estudante
concreto, entendido o concreto como “[...] a síntese de muitas determi-
nações, isto é, unidade do diverso” (MARX, 2008 [1859], p. 258). Essa res-
ponsabilidade está, sublinhamos, nos profissionais que têm diante de si
a tarefa de (i) estabelecer objetivos para a ação educativa e (ii) definir
os meios mais adequados para a realização de tais objetivos (SAVIANI,
2013b [1973]).
Ressaltamos, assim, o que é prioridade no âmbito da formação ini-
cial e continuada de professores: a passagem do senso comum à cons-
ciência filosófica (SAVIANI, 2013b [1980]), no que está necessariamente
implicada a superação da pseudoconcreticidade (KOSIK, 1976), sendo
possível pela apropriação teórica permanente das determinações so-
ciais, as quais, na sociabilidade capitalista, estão dadas a partir da luta
de classes.
Impõe-se, então, a superação do que ainda é dualismo no con-
texto educacional, a relação entre teoria e prática, entendendo-a como
necessariamente indissociável, tendo em vista que “[...] a teoria é não
apenas retratadora da realidade, não apenas explicitadora, não ape-

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

nas constatadora do existente, mas é também orientadora de uma ação


que permita mudar o existente” (SAVIANI, 2013b [1979], p. 212). Nesta
superação, estão, ao nosso ver, as possibilidades de superar, também, al-
gumas das condições alienantes dos profissionais da educação, os quais
têm sido historicamente convertidos em trabalhadores manuais, des-
tituídos da dimensão intelectual do trabalho pedagógico (MARTINS,
2010; FREITAS, 2012; 2014). Para a determinação, pois, ‘do que’ ensinar
e ‘como’ ensinar – e ‘por que’ – é fulcral que os docentes tenham conhe-
cimento sobre a prática social; isso requer “[...] apropriar-se do modo
como está estruturada a sociedade em que vivem os alunos e o próprio
professor, captar seus fundamentos lógico-históricos, sua gênese e de-
senvolvimento, sua dinâmica estrutural e suas tendências de desenvol-
vimento ulterior” (GALVÃO; LAVOURA; MARTINS, 2019, p. 60).
Para que se não tornem reféns de teorias pedagógicas escamotea-
doras do projeto de formação ao qual atendem, importa apropriação te-
órica, estando a prática docente amparada pela própria consciência filo-
sófica dos professores, sempre em desenvolvimento, dado o movimento
da práxis. A partir disso, vislumbra-se o desenvolvimento da oralidade
nos estudantes através da relação entre apropriação e objetivação. Para
além de proposições pragmáticas e espontaneístas, que visam a forma-
ção de sujeitos ‘comunicativos’, tendo em vista os ditames do mercado
de trabalho, defendemos uma elaboração didático-pedagógica empe-
nhada em garantir que, mediante a apropriação do conhecimento sis-
tematizado, os sujeitos se objetivem através dos gêneros do discurso
secundários, alguns dos quais têm a oralidade como modalidade fun-
damental, ainda que na indissociabilidade com a modalidade escrita
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284
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

“MAS O QUE EU FAÇO NA PRÁTICA, ENTÃO?”:


REFLEXÕES ACERCA DO PLANEJAMENTO
NO PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO

Priscila de Sousa1

Conforme avança a compreensão, por parte do professor,


dos pressupostos filosófico-teórico- metodológicos acerca das concep-
ções que envolvem a alfabetização, discutidos nesta obra, vai sendo nu-
trida a preocupação com a transposição desses fundamentos para o tra-
balho educativo, efetivamente. É comum, em encontros de formação
continuada, por exemplo, ouvir dos professores o seguinte comentário:
“Entendi as discussões teóricas, mas como colocá-las em prática?”. Essa
pergunta traz consigo justamente a necessidade de uma retomada ainda
mais atenta da relação entre teoria e prática, considerando que se trata
de uma relação dialética, e não dicotômica. Nesse sentido, Kosik (1976,
p. 48) discute os referidos contextos, distinguindo:

O contexto da realidade, no qual os fatos existem origi-


nária e primordialmente, e o contexto da teoria, em que
os fatos são, em um segundo tempo, mediatamente or-
denados, depois de terem sido precedentemente arran-
cados do contexto originário do real. Como é possível,
porém, falar do contexto do real, em que os fatos exis-
tem de maneira primordial e originária, se tal contexto

1 Mestra em Letras pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), professora de Língua
Portuguesa da Secretaria Estadual de Educação de Santa Catarina, e articuladora da área de
Linguagens no Grupo Marista.

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

só pode ser conhecido pela mediação de fatos que foram


arrancados do contexto do real?

Fica evidente, portanto, a estreita relação entre a realidade e a


análise sistemática dessa mesma realidade, por meio da reflexão teórica.
Por isso, a teoria parte, em certa medida, da própria prática, da realida-
de social, vista ainda de modo sincrético. A partir de elementos e ca-
tegorias, oferecidos pela análise teórica, é possível alcançar uma visão
sintética dessa mesma realidade. (SAVIANI, 2005). Essa compreensão
sistematizada, por conseguinte, permite a identificação de necessida-
des de mudanças da realidade social e a consequente busca por formas
de superação.
Conceber teoria e prática a partir dessa perspectiva permite am-
pliar o conceito de prática, percebendo-o em sua unidade com a teo-
ria, numa relação, a um só tempo, de autonomia relativa, mas também
de interdependência. A partir disso, desenvolve-se uma prática cons-
ciente e teoricamente ancorada, a práxis, que, nas palavras de Sánchez
Vázquez (1977, p. 241) “[...] é, na verdade, atividade teórico-prática;
ou seja, tem um lado ideal, teórico, e um lado material, propriamente
prático, com a particularidade de que só parcialmente, por um processo
de abstração, podemos separar, isolar um do outro”. Assim, a cisão entre
teoria e prática não ocorre, de fato, na realidade social.
Por essa razão, acreditar que o trabalho docente pode ser dividi-
do entre momentos formativos, teóricos, e a prática pedagógica efetiva,
não passa de uma ilusão. Mais ainda quando se trata do planejamento,
especificamente, já que ele traz consigo, de forma muito clara, o lado
ideal e o lado material, o momento de racionalização das ações que se
pretende desenvolver na relação com os objetivos que se pretende al-
cançar com essas ações. Por isso, como aponta Sánchez Vázquez (1977,
p. 187), “O resultado ideal, que se pretende obter, existe primeiro ideal-
mente, como mero produto da consciência, e os diversos atos do proces-
so se articulam ou estruturam de acordo com o resultado que se dá pri-
meiro no tempo, isto é, o resultado ideal”.

286
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Ou seja, o professor idealiza o seu modo de intervir na realidade,


o que se materializa no planejamento pedagógico. Ensino e aprendiza-
gem são processos contraditórios: aquele que ensina deseja que aquele
que aprende aprenda como resultado de sua ação direta – sistematiza-
ção, organização e orientação do trabalho educativo. Mas sempre há um
movimento entre aquilo que é potência e aquilo que de fato é apropria-
do, o alcance dos objetivos.
Ainda que muitos educadores entendam o planejamento como
uma demanda burocrática, diferente da prática efetiva, é necessário des-
tacar que não há nada de mais prático, quando se trata do trabalho edu-
cativo, do que o planejamento docente. Mas não é só prático, uma vez
que, nele, ficam materializados os vínculos entre o posicionamento
filosófico, político-pedagógico e profissional e as ações efetivas que o
professor pretende realizar na sala de aula. Por isso, apesar de muito
recorrente, o entendimento de que há uma cisão entre teoria e prática
é tremendamente equivocado.
Partindo da necessidade de evidenciar essa relação dialética entre
teoria e prática, tão cara ao trabalho educativo, a intenção deste capítulo
é apresentar aspectos do planejamento na alfabetização, tendo presen-
tes as contribuições apresentadas ao longo desta obra, no que se refere
ao embasamento teórico-epistemológico oferecido pelo materialismo
histórico-dialético e à retomada histórica das concepções de alfabeti-
zação. Para isso, organizamos a discussão a partir de problematizações
que costumam ser muito levantadas por professores alfabetizadores
e que nos permitem discutir, inicialmente, acerca da importância do pla-
nejamento e, consequentemente, do professor como aquele que orga-
niza a direção de um trabalho intencionalmente planejado, culminan-
do na seleção dos conhecimentos convertidos em conteúdos escolares
com uma finalidade, um destinatário e uma delimitação metodológica.

1 “Por que preciso escrever o planejamento se a prática é outra coisa?”

É, ainda, muito comum o entendimento de que o planejamento


é apenas uma demanda burocrática, feita para os outros, inútil e repe-

287
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

titiva. Um documento que precisa ser entregue à secretaria da escola


no início do ano, ou ao coordenador pedagógico a cada quinze dias. Basta
analisar os planejamentos que ficam arquivados em muitas escolas para
perceber que, de um ano para o outro, há poucas mudanças, seja de obje-
tivos, seja dos conteúdos (BARROS, 2018). Isso significa que o educador
oferece a mesma aula todos os anos? Não necessariamente. Mas, certa-
mente, significa que ele não concebe o planejamento como uma ferra-
menta importante de orientação e organização do próprio trabalho.
É necessário, mais ainda quando se trata de alfabetização, resgatar
o entendimento de que o planejamento é um material reflexivo, inten-
cional e voltado para o futuro. Ele não é um engessamento do trabalho
educativo, no sentido de tolher a liberdade criativa do professor em sala
de aula, mas disciplina essa liberdade em face dos objetivos, isto é,
do ponto de chegada que se pretende alcançar com as ações educativas.
Nesse sentido, o planejamento alicerça a ação criadora e agiliza respos-
tas diante do inusitado. Por isso, é capaz de assegurar a racionalização,
organização e coordenação do trabalho docente, de modo que a previsão
das próprias ações possibilite ao professor a realização de um ensino
de qualidade e evite tanto a constante improvisação quanto a enfadonha
rotina. Libâneo (1994, p. 221) define o planejamento como:

[...] uma tarefa docente que inclui tanto a previsão das


atividades didáticas em termos de sua organização e co-
ordenação em face de objetivos propostos, quanto em
sua revisão e adequação no decorrer do processo de en-
sino. O planejamento é um meio para se programar as
ações docentes, mas é também um momento de pesquisa
e reflexão intimamente ligado à avaliação.

É o planejamento o instrumento responsável por assegurar a uni-


dade e a coerência do trabalho docente, uma vez que torna possível
inter-relacionar, num plano, os elementos que compõem o processo
de ensino: os objetivos (para que ensinar); os conteúdos (o que ensinar);
os alunos e suas possibilidades (a quem ensinar); os métodos e as téc-
nicas (como ensinar); e a avaliação, que está intimamente relacionada

288
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

aos demais elementos. Ao planejar, o professor é capaz de prever objeti-


vos, conteúdos e métodos a partir da identificação das exigências postas
pela realidade social, bem como do nível de desenvolvimento dos alunos.
Em relação à avaliação, é necessário admitir que não há como re-
alizar uma avaliação consistente, seja ela diagnóstica, formativa ou so-
mativa2, se não houver clareza de quais objetivos precisavam ser atin-
gidos ao longo do conjunto de ações previstas pelo professor, ou seja,
só pode ser avaliado aquilo que é passível de ser alcançado como objeti-
vo e, portanto, que consta explicitamente no planejamento. Avaliações
sem planejamento costumam ficar evidenciadas em propostas do tipo
“identificar se os alunos gostaram da atividade”, ou no ato de encarar
a avaliação como prova, “produto final”, um fim em si mesmo, e não
como um instrumento de retorno ao que foi planejado, a fim de identi-
ficar fragilidades e potencialidades do percurso tanto de alunos quanto
do próprio professor.
Ao contrário de um complicador, ou de mais uma tarefa sem sen-
tido a ser executada, o planejamento pode funcionar como um instru-
mento facilitador e, sem dúvida, potencializador do trabalho educativo.
Isso tanto em uma perspectiva pragmática – já que agiliza a preparação
das aulas, a seleção do material didático em tempo hábil, e oferece a cla-
reza das tarefas que professor e alunos devem executar – quanto no sen-
tido de replanejar o trabalho frente a novas situações que aparecem
no decorrer das aulas. Para que funcione como esse elemento agregador
na rotina docente, é necessário que o planejamento seja efetivamente
um instrumento para a ação; ele deve funcionar como guia de orienta-
ção e, por isso, precisa apresentar sequencialidade, objetividade, coe-
rência e flexibilidade.

2 De modo breve, podemos definir avaliação diagnóstica como uma atividade ou um conjunto
de atividades realizadas no início dos processos de ensino e aprendizagem, com o objetivo
de depreender o nível de desenvolvimento dos estudantes. Já a avaliação formativa ocorre
durante todo o processo educativo e permite ao professor acompanhar o desenvolvimento
dos estudantes em relação aos objetivos propostos no planejamento. Finalmente, a avalia-
ção somativa é realizada ao final do processo e promove a classificação dos alunos em rela-
ção aos níveis de aproveitamento esperado, com base, geralmente, na atribuição de notas.

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

O planejamento, como documento docente, deve estar articulado


aos demais documentos pedagógicos, desde aqueles que se colocam ain-
da na esfera da escola, como os planos institucionais e os PPPs (Projetos
Político-Pedagógicos), passando pelos documentos municipais e esta-
duais – propostas curriculares –, até os documentos nacionais, a exem-
plo da BNCC (Base Nacional Comum Curricular). Considerando essa
necessidade, configura-se como desafio para o professor a articulação
entre as normativas legais apresentadas nos documentos parametriza-
dores e a garantia de um processo de formação humana alinhado ao fun-
damento histórico-crítico.
Considerando a alfabetização como processo fundamental para
a participação efetiva dos indivíduos na sociedade – para a compreensão
apurada da realidade e, consequentemente, para o surgimento dos an-
seios de transformação dessa mesma realidade – e o sistema de escrita
alfabética como objeto do conhecimento altamente complexo, a socia-
lização da alfabetização requer um projeto de ensino sistematizado, in-
tencional, e que vislumbre a formação humana em seu máximo desen-
volvimento. Por isso, o planejamento teoricamente ancorado funciona
como alicerce para uma prática pedagógica consistente, afastada do es-
pontaneísmo e da improvisação.
O trabalho de alfabetização tem um componente fundamental,
que é o professor como aquele responsável pela sistematização, organi-
zação e orientação do processo. O professor ensina e o aluno aprende,
não a partir de uma relação autoritária, mas do ponto de vista do reco-
nhecimento da atividade principal de cada um deles (LEONTIEV, 1978,
1983), e também da dimensão ética envolvida nesse trabalho.

2 O papel do professor na alfabetização: o professor é um mediador?

Se tomarmos como ponto de partida as discussões a respeito


do trabalho (MARX; ENGELS, 1977) na constituição do ser humano, em-
preendidas nos primeiros capítulos desta obra, reconheceremos que é
ele que marca a transição da existência natural ou biológica do homem

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

para sua constituição como ser genérico. Nas palavras de Martins (2015,
p. 45):

O trabalho, tendo como característica essencial a pré-i-


deação do produto a ser alcançado por ele, por encerrar
uma atividade precedente ao seu resultado, exigiu do-
mínios cognitivos necessários à criação de uma imagem
mental de realidade. Determinou, portanto, profundas
alterações no substrato psíquico natural, próprio ao ho-
mem como animal superior, descortinando as possibili-
dades para a estruturação de um psiquismo especifica-
mente humano, apto a edificar a referida imagem. Nessa
direção, Vigotski (1997) afirmou que o trabalho social
marcou em definitivo a transição da história natural dos
animais à história social dos homens.

Cabe destacar que essas transformações que ocorreram no psiquis-


mo humano ao longo da história, a partir do trabalho, não são herdadas
pelos novos seres da espécie humana na imediaticidade das relações,
tampouco em virtude de uma herança genética, à semelhança do que
ocorre com os animais. O ser humano, ao contrário, ultrapassa essa ime-
diaticidade e produz universalmente, para além da sua sobrevivência.
Isso faz com que a ação humana não seja apenas biologicamente con-
dicionada, mas aconteça a partir da incorporação das experiências e dos
conhecimentos produzidos pela humanidade e transmitidos de geração
em geração. Entre eles, certamente, está a escrita como a forma mais
complexa de simbolização.
Assumido o trabalho como categoria fundante para a mútua cons-
titutividade do homem e da sociedade, pode-se afirmar que é a par-
tir do agir humano que são produzidas as objetivações que deverão
ser apropriadas pelos indivíduos das futuras gerações ao longo da his-
tória. Assim, cada novo ser da espécie humana refaz em si, de forma mi-
croscópica, a evolução das diversas gerações, construída historicamente.
Essas objetivações se dão no âmbito de produções materiais – artefatos
e instrumentos físicos – e imateriais, a exemplo da linguagem. E essas

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

apropriações não se dão de forma espontânea, mas tem um caráter me-


diado. De acordo com Leontiev (1978, p. 272),

[...] as aquisições do desenvolvimento histórico das apti-


dões humanas não são simplesmente dadas aos homens
nos fenômenos objetivos da cultura material e espiritu-
al que os encarnam, mas são aí apenas postas. Para se
apropriar destes resultados, para fazer deles as suas ap-
tidões, “os órgãos da sua individualidade”, a criança, o
ser humano, deve entrar em relação com os fenômenos
do mundo circundante através de outros homens, isto é,
num processo de comunicação com eles. Assim, a criança
aprende a atividade adequada. Pela sua função este pro-
cesso é, portanto, um processo de educação.

Conforme os pressupostos da pedagogia histórico-crítica, a es-


cola tem papel central nesse processo de educação, pois se encarrega
de desenvolver um projeto social voltado à humanização a partir da so-
cialização do saber sistematizado. Por isso, Saviani (2005, p. 13) define
o trabalho educativo como “[...] o ato de produzir, direta e intencional-
mente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida his-
tórica e coletivamente pelo conjunto dos homens”. Se orientado por essa
perspectiva, o professor assume posição de protagonista na organização
do trabalho educativo. É o que aponta Moretti (2007, p. 101):

Podemos dizer então que: se, dentro da perspectiva


histórico-cultural, o homem se constitui pelo trabalho,
entendendo este como uma atividade humana adequa-
da a um fim e orientada por objetivos, então o professor
constitui-se professor pelo seu trabalho – a atividade de
ensino – ou seja, o professor constitui-se professor na
atividade de ensino. Em particular, ao objetivar a sua ne-
cessidade de ensinar e, consequentemente, de organizar
o ensino para favorecer a aprendizagem.

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

O professor, sem dúvida, é um protagonista no processo de educa-


ção defendido por Leontiev (1978) e apontado por Moretti (2007), am-
bos a partir da categoria ‘trabalho’ (MARX; ENGELS, 1977). No entanto,
ao contrário do que se tem defendido em algumas instâncias formativas,
o professor não é um mediador. Mediação é uma faculdade instrumental
(estar no meio de...; fazer uma relação entre...; promover uma articula-
ção com...), e o professor, definitivamente, não é um instrumento na re-
lação pedagógica. Sujeitos, objetos e realidade devem ser concebidos
como elementos históricos. Por isso, a mediação não pode ser entendida
como elo ou ponte, como assevera Martins (2015, p. 47): “Para Vygotski,
mediação é a interposição que provoca transformações, encerra inten-
cionalidade socialmente construída e promove o desenvolvimento; en-
fim, uma condição externa que, internalizada, potencializa o ato de tra-
balho, seja ele prático ou teórico”.
Por isso, o sujeito que aprende e o sujeito que ensina, numa re-
lação como a de alfabetização, têm como mediador o conhecimento.
Ou seja, os dois, professor e aluno, estão debruçados diante do objeto
do conhecimento, do qual o aprendiz precisa se apropriar e sobre o qual
o docente tem um conhecimento mais complexo (VIGOTSKI, 2006) e,
a partir disso, o educador procura criar condições para que o aprendiz
se aproprie. Como o conhecimento se traduz em signos e significados,
a educação escolar, de acordo com Martins e Marsiglia (2015, p. 21), con-
figura-se como um “[...] ato mediado por signo [que] provoca profundas
transformações no psiquismo humano, modificando radicalmente a re-
lação sujeito-objeto, ou, a resposta do sujeito aos estímulos do meio”.
Nesse contexto de medição, o professor é aquele que apresenta
os conceitos e, a partir deles, fomenta a necessidade de conhecimen-
to formalizado sobre esses conceitos, para que aquele significado possa
ser minimamente compartilhado. De acordo com Moura et al. (2010, p.
216),

As ações do professor na organização do ensino devem


criar, no estudante, a necessidade do conceito, fazendo
coincidir os motivos da atividade com o objeto de estudo.

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

O professor, como aquele que concretiza objetivos so-


ciais objetivados no currículo escolar, organiza o ensino:
define ações, elege instrumentos e avalia o processo de
ensino e aprendizagem.

É, portanto, a partir da intervenção do professor que o aluno en-


trará em contato com conceitos que, possivelmente, na relação cotidia-
na, ele não entenderia de maneira sistemática, ainda que estivessem
presentes, em alguma medida, na realidade social. Fica claro, aqui, que,
embora o sujeito possa se apropriar dos elementos da cultura huma-
na de modo não intencional, não abrangente e não sistemático, a partir
de outras necessidades e interesses, é no processo de educação escolar
que se dá a apropriação de conhecimentos aliada à questão da inten-
cionalidade social, o que justifica a importância da organização do en-
sino (MOURA, 2002). Por isso, concebemos o professor como o portador
dos signos que medeiam o desenvolvimento psíquico (MARTINS, 2013),
não como mediador.
Em suma, a cena da alfabetização é composta por um objeto do co-
nhecimento, o sistema de escrita alfabética, que precisa ser apropriado
pelo sujeito da aprendizagem, o aprendiz que tem como atividade prin-
cipal (LEONTIEV, 1978, 1983) a apropriação, e o professor que, nesse
caso, é o interlocutor mais desenvolvido (VIGOTSKI, 2006). Tudo isso
colocado no contexto da realidade social, da qual o professor vai aurir
esse objeto do conhecimento e, a partir disso, organizar, sistematizar
e ensinar. O trabalho educativo, portanto, envolve direcionamento e in-
tervenção pedagógica direta na sistematização, organização e orienta-
ção do percurso formativo.
No momento de planejamento do trabalho educativo, não apenas
na alfabetização, é necessário sempre ter no horizonte a ideia de qual
é o nível de desenvolvimento potencial, ou seja, aquilo que se preten-
de alcançar ao fim do trabalho, para, a partir disso, definir o percurso
de ações a serem desenvolvidas. Nesse contexto, estão correlacionados
os elementos forma e conteúdo (MARTINS, 2013), no sentido de esco-
lher quais elementos culturais serão priorizados, ou seja, o que deve

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

ser selecionado da realidade para trabalhar e quais são as formas mais


adequadas, ou mais complexas, para garantir que aquilo seja apropriado
por todos os sujeitos.
Nesse contexto, aparece engendrada toda a discussão sobre currí-
culo, construído a partir de um ideal de formação humana, que, por sua
vez, age em função de um projeto social, de conformação ao estado
de coisas (FERNANDES, 1989) ou de transformação dele. Nesse ponto
não há caminho alternativo. Se a escolha é pela conformação, a forma-
ção pode ser unilateral. Em contrapartida, se for de aproximação à om-
nilateralidade, como é o caso do planejamento articulado à perspectiva
assumida nesta obra, será necessário envolver as dimensões intelectual,
física e técnico-manual, bem como os conhecimentos da arte, da ciência
e da filosofia. Esses pressupostos apontam para uma discussão muito
importante: o que ensinar e de que modo?

3 Letras, sílabas, fonemas ou textos: o que (e como) ensinar?

Como discutido até aqui, o sistema de escrita alfabética, na condi-


ção de conhecimento produzido pela humanidade ao longo da história,
é um objeto do conhecimento que carece de mediação para que tenha
sua socialização garantida. A palavra, oral e escrita, tem um papel mui-
to importante nesse processo. É a partir da descoberta da possibilidade
de grafar palavras ditas que a criança começa a compreender a neces-
sidade de apropriação do sistema. Nesse sentido, o conceito de palavra
(VIGOTSKI, 1996) é muito precioso. No entanto, isso não significa dizer
que a palavra deva ser tomada em si mesma.
Como discutido em profundidade na segunda seção deste livro, há,
no Brasil, uma tradição de alfabetização muito centrada em determina-
da escolha. Os métodos, de forma geral, se desenvolvem em uma pers-
pectiva de trabalho com os conhecimentos que a criança precisa adquirir
para se relacionar com a unidade palavra, e escolhem uma especificida-
de para tornar-se objeto de ensino. Retomando, de modo panorâmico,
esses métodos, a fim de evidenciar um ponto comum – o foco nas regula-
ridades sistêmicas –, podemos afirmar que o método silábico, em linhas

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

gerais, entende que é pelo reconhecimento e pela apropriação da for-


ma como a língua se organiza por sílabas, simples e complexas, que a
criança seria capaz de se relacionar com palavras e, automaticamente,
com qualquer portador de palavras, independentemente de que texto
seja. Já os partidários do método alfabético acreditam que, para se alfa-
betizar, a criança precisa, antes de tudo, aprender o alfabeto. Isso signifi-
ca reconhecer o nome que as letras têm e a ordem alfabética, elementos
que seriam uma condição para que a criança se relacione com a palavra
e, automaticamente, com os textos. Há, ainda, os sistemas que apostam
na especificidade grafo-fonológica, como o método fônico, e entendem
que o reconhecimento das especificidades como a relação letra-som/
som-letra seja condição para que a criança possa se relacionar com a
palavra: possa ler palavras, escrever palavras, e assim por diante. Para
isso, é comum que se exponha a criança a certas regularidades grafofo-
nológicas que se queiram ensinar, a exemplo do clássico “Ivo viu a uva”.
Os acartilhamentos são bastante conhecidos, pois costumam trazer es-
ses pseudotextos esvaziados de significados, mas com profusão das re-
gularidades grafofonêmicas.
Em suma, essas perspectivas mais tradicionais costumam tomar
a palavra como finalidade última do trabalho educativo. Ela é o ápice,
no sentido de ponto de chegada a partir do conjunto de ações desen-
volvidas. Veremos adiante que, sim, a criança precisa saber o que é o
alfabeto; diferenciar letras de outros sinais gráficos; reconhecer que o
nosso sistema grafofonológico, em algum momento da história, se dete-
ve a representar letras em sons e sons em letras, mas que há uma certa
coexistência com o sistema organizativo por sílabas. Porém, em nossa
perspectiva, tudo isso não é um preparatório para a relação da criança
com a palavra.
Em contrapartida a essas abordagens mais tradicionais de alfabe-
tização, que tomam a palavra como fim do trabalho educativo, há outras
abordagens que apostam no abandono dessas regularidades sistêmicas e,
com isso, no abandono da eleição de uma delas como resolutiva do pro-
cesso de alfabetização, ou, em última instância, a renúncia do próprio
ensino sistemático em prol do trabalho com textos, com o uso da escrita.

296
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Essas perspectivas voltam a atenção para textos que circulam no coti-


diano, atendendo a demandas pragmáticas, e o fim do trabalho educa-
tivo passa a ser ainda o conceito de palavra, mas agora a ser apropria-
do de forma intuitiva pela criança. Há, nessa abordagem, certa cautela
em relação ao ensino sistemático das regularidades sistêmicas.
Esse trabalho com textos apartado de uma reflexão mais sistemáti-
ca sobre a língua se mostra tão problemático e ineficiente quanto a esco-
lha de uma regularidade sistêmica como fim do trabalho educativo. Há,
aqui, um problema não apenas de método, mas especialmente de conte-
údo, como apontam Marsiglia e Saviani (2017, p. 12): “Pouca exigência
(conteúdos simples, sem ‘provocações’ psicológicas) leva à desmotiva-
ção, desinteresse, indisciplina e retrai a aprendizagem”. Por outro lado,
a partir da teoria histórico-cultural, entendemos que não é possível
se posicionar nem junto aos tradicionalistas nem junto aos existencia-
listas (SAVIANI, 1984), porque, para se apropriar do sistema de escrita
alfabética, a criança precisa ter descoberto a possibilidade de escrever,
a escrita como possibilidade de simbolização, junto com o desenho,
o gesto, a música. Nesse sentido, de acordo com Marsiglia e Saviani
(2017, p. 12),

Conteúdos sofisticados, adequadamente dosados e desa-


fiadores terão condições de contribuir categoricamente
para a humanização dos indivíduos (Saviani, 2013) e,
especificamente a linguagem escrita, terá decisivo papel
na formação de conceitos teóricos, determinante para a
elevação da capacidade de pensamento dos sujeitos.

Então, é a partir do momento em que a criança descobre a pos-


sibilidade de se relacionar com o escrito como forma de simboliza-
ção (VIGOTSKI, 2000, 2007; LURIA, 2010), descoberta que geralmente
é acompanhada do desenvolvimento dessa capacidade de representa-
ção simbólica, que ela vai lidando de forma simbolizada com a realidade
e vai entendendo que, na realidade social da qual faz parte, os sujeitos
a sua volta têm uma forma de representação privilegiada, que é a escrita.
Neste mesmo processo de desenvolvimento de representação simbólica,

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

ela vai entendendo a função social e a centralidade que a escrita tem no


universo dos adultos. Ao descobrir isso, abre-se algo que é fundamental
para a aprendizagem: a necessidade de apropriação daquele conheci-
mento (MOURA, 2002).
Nessa perspectiva, ao contrário do que ocorre em outros métodos,
não há nada preparatório. Tudo é desenvolvido na própria atividade.
Por isso, um traço distintivo muito importante desse fundamento te-
órico em relação aos demais é justamente o fato de rechaçar qualquer
tentativa de treino preparatório para a alfabetização. Ainda assim,
se ousássemos dizer que há algum movimento considerado como pre-
paratório, seria o desenvolvimento da representação simbólica a partir
do reconhecimento de formas de simbolização presentes em nossa rea-
lidade social e o reconhecimento da função social que a escrita tem. Isso
poderia ser chamado de preparatório porque desenvolve a necessida-
de do escrito e da intervenção pedagógica, apresentando regularidades
e possibilidades de escrita que a criança não conhece.
Por isso, é muito mais eficiente, nos primeiros contatos da crian-
ça com o sistema de escrita, investir em produções humanas presentes
na cultura que rompam com o senso comum e com o cotidiano das crian-
ças – cantigas de roda (que contemplam a aliteração, agregam os aspec-
tos físico, intelectual e produtivo e apresentam, de modo geral, uma rea-
lidade diferente da realidade da criança), leitura e contação de histórias
(nas quais o leitor completa o sentido do texto) –, do que se ocupar de re-
gularidades do sistema, tomadas em sua imanência e de forma isolada.
Embora alguns métodos de alfabetização apostem em um proces-
so no qual a criança vai se apropriando das ferramentas (regularidades
de partes separadas) que o professor oferece quase como um exercício,
o planejamento que defendemos vai na direção contrária. Na perspec-
tiva aqui defendida, a criança precisa reconhecer a natureza da ativi-
dade e a função social daquilo que ela vai aprender, pois, dessa forma,
ela vê a necessidade e o motivo para se apropriar daquele conhecimento.
Então, é possível ensinar, a partir daqueles textos, qualquer regulari-
dade, entendendo a especificidade do processo, compartimentalizando
esse processo, reconhecendo que o conceito de palavra é o grande con-

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

ceito agregador do processo de alfabetização, e que é a partir dele que se


organiza o planejamento.
Evidentemente, apenas o entendimento da importância da es-
crita como forma de representação simbólica na sociedade não garan-
te a aprendizagem do sistema de escrita alfabética. Isso significa que,
na seleção dos conteúdos de ensino, não deve haver, necessariamente,
uma escolha entre regularidades sistêmicas ou textos. Em primeiro lu-
gar, é preciso trazer a realidade social para o processo de ensino, e ela
se materializa em textos. Porém, circunscrever as ações apenas ao do-
mínio sincrético do texto para uma criança que não domina o sistema
de escrita alfabética não promove a apropriação do sistema, porque
ela sequer sabe que critérios deve utilizar para se aproximar daquele sin-
cretismo. Além disso, não é qualquer todo sincrético da realidade social
que pode ser agenciado, ou seja, não é porque determinado elemento
está presente no entorno social daquela criança que ela, necessariamen-
te, conseguirá identificar ou ter uma visão conceitual-reflexiva sobre ele.
O diferencial de um planejamento amparado na perspectiva histó-
rico-cultural está justamente nesta articulação entre a dimensão dos tex-
tos e o entendimento das regularidades sistêmicas atreladas ao conceito
de palavra. Todos os conhecimentos a respeito das regularidades sistê-
micas produzidos historicamente, mesmo por métodos aos quais o edu-
cador não se filia, precisam ser apropriados por ele. Porém, ele precisa
ter um conhecimento teórico-epistemológico, ou seja, reconhecer a qual
concepção se associa para organizar o ensino. Isso implica considerar
quais elementos da realidade social serão trazidos pelo professor, pen-
sando no seu objetivo de formação e ampliação de repertório, e que tipo
de relação sintética ele escolhe priorizar desse todo sincrético que é
o texto escrito para as crianças. Essa relação sintética sempre deverá
ser pensada na contribuição de determinada compreensão para a apro-
ximação do conceito de palavra. Isso porque o conceito de palavra é um
conceito agregador, não separador. Ele é um conceito, a um só tempo,
particularizador, generificador, mas ao mesmo tempo agregador, por-
que o texto é feito de palavras e porque a palavra é feita de todas essas
regularidades.

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Entender o conceito de palavra como signo dos signos (VIGOTSKI,


2001) para o universo da alfabetização não significa ater-se às regula-
ridades sistêmicas escolhidas e tomar a palavra como fim, tampouco
tomar o texto como objeto de estudo, para, no máximo, chegar à pala-
vra de forma intuitiva. Ao contrário, significa lidar, a todo tempo, com a
realidade da qual os textos são “retirados” e, a partir dos próprios tex-
tos, verticalizar determinadas reflexões, já que estamos lidando com o
conceito de palavra. Fica claro que lidar com o conceito de palavra en-
volve muitos movimentos, desde o reconhecimento de que há espaços
em branco dentro do texto, que demarcam o limite de uma palavra para
outra, até, por exemplo, o fato de que toda palavra tem sílaba, de que
toda sílaba tem uma vogal, mas nem toda sílaba tem consoante, e tem
sílaba com duas consoantes, ou com duas vogais, enfim, uma série
de generalizações.
Dessa forma, tudo isso está envolvido no desenvolvimento do con-
ceito de palavra, mas não pode ser tomado em sua imanência e trabalha-
do de forma isolada. Ao contrário, esse conjunto de regularidades não é
inventado por cada novo ser da espécie, nem é propriedade de deter-
minado método ou fundamento teórico, mas é propriedade do sistema
de escrita alfabética. Ele está presente nos textos que compõem a rea-
lidade social, e foi produzido historicamente. Por isso, na organização
das aulas, o professor agencia o texto como objeto de estudo, mas, além
disso, elege o conceito de palavra no texto, recua e, no âmbito da pala-
vra, discute as referidas regularidades.
O conteúdo da alfabetização, assim, é o vocabulário: a palavra.
Porém, cabe destacar que não se trata de um vocabulário solto, nem com
fim em si mesmo. Do ponto de vista da lógica da concepção do desen-
volvimento humano e de como isso se converte em trabalho educativo,
independentemente da etapa de ensino, é sempre da realidade que são
selecionados os objetos de estudo. É da totalidade que os conteúdos
são selecionados, a partir de um ideal de formação humana, ou seja,
do potencial emancipatório que cada conteúdo tem. Por isso:

300
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Ao afirmar que é preciso trabalhar com vocabulário (con-


teúdo), há, na seleção de materiais (livros, brincadeiras,
músicas etc.), também um critério a ser utilizado: aque-
les mais ricos e, portanto, mais avançados e que sejam
os mais indicados para determinados procedimentos
propostos, diante dos recursos disponíveis (forma)
para determinados alunos (destinatário) (MARSIGLIA;
SAVIANI, 2017, p. 8).

A mesma reflexão pode ser utilizada para lidar com o alfabeto.


A criança precisa conhecer o alfabeto, evidentemente, mas não apenas
do ponto de vista da regularidade alfabética (a, b, c...). Ela não preci-
sa reconhecer o alfabeto como condição para se relacionar com as for-
mas de simbolização e com a função social que a escrita tem. O alfabeto
ganha espaço significativo quando a escrita é necessária e o professor
começa a apresentar as letras que são imprescindíveis para aquela ati-
vidade específica. E a criança vai se apropriando desse repertório, or-
denando-o, organizando-o, colocando-o em relação sistêmica e como
possibilidade de escrita.
Geralmente, num primeiro momento, a criança entra numa rela-
ção que é “o que é letra e o que é não-letra”. Inventa códigos, mistura
números e letras, até que entende que o alfabeto tem uma regularidade
própria, ele já foi pensado, ele tem uma especificidade e não é possí-
vel inventar símbolos, porque o significado daquilo que alguém inven-
ta, individualmente, não é compartilhado. Nesse caso, a escrita perderia
sua possibilidade de interação social, e também de recurso de memória,
porque se poderia esquecer daquilo que se inventou contingencialmente.
Quando assumida uma perspectiva tradicional de trabalho com o
sistema de escrita, o professor costuma planejar esse trabalho partindo
da premissa de que a escrita pode ser explicada pela contraparte oral,
ou seja, que todo o sistema de escrita alfabética é estruturado pela re-
lação entre letra e som. Nesse contexto, a criança entende que o que se
diz é transformado em escrita, literalmente. Porém, chega um momen-
to em que é necessário se ocupar daquilo que é convencional, daquilo
que não pode ser explicado pela relação grafofonológica. Nesse estágio,

301
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

o professor acaba precisando desconstruir tudo aquilo que antes foi ex-
plicado para o educando a partir de um só esquema de regularidade
priorizado. Nesse momento, geralmente, a criança passa por um grande
conflito.
Se, por outro lado, a criança for alfabetizada por meio de uma ação
educativa que a leve a compreender que há um conjunto de regulari-
dades que se sobrepõem, se correlacionam, estão em síntese dialética
nas palavras que compõem os textos, ela não encontrará uma grande
ruptura neste processo, apesar dos saltos de desenvolvimento, comuns
e necessários. De acordo com Marsiglia e Saviani (2017, p. 5),

A não-correspondência da forma com o novo conteúdo,


à medida que esse se desenvolve, torna- se sempre mais
aguda e finalmente um conflito explode entre o conte-
údo e a forma: o novo conteúdo rejeita a antiga forma,
destrói o sistema relativamente estável de movimento e,
baseado em um novo sistema relativamente estável de
movimento (isto é, da forma), transforma-se passando a
um outro nível qualitativo.

Então, esse processo de rejeição da forma antiga e a busca por um


novo sistema relativamente estável é algo característico do próprio
movimento da relação do indivíduo com o conhecimento. Ao lidarmos
com o conhecimento, nós, inicialmente, o prospectamos como algo cris-
talizado e, em seguida, rompemos com este primeiro formato estanque
e entendemos que há um certo conjunto de elementos que precisam es-
tar presentes, mas que não são, necessariamente, formas fixas. Trata-se
de um sistema relativamente estável que precisa alcançar algumas coi-
sas, mas não apenas no ponto de vista da forma, e sim na tensão entre
forma e conteúdo. Explicam Marsiglia e Saviani (2017, p. 5):

Assim, ao explicarmos como se dá o desenvolvimento da


escrita (conteúdo) na criança (destinatário) e associá-lo
aos mecanismos pedagógicos necessários (forma), esta-
mos atendendo aos princípios do materialismo históri-

302
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

co dialético de historicidade, movimento e contradição.


Em relação à primeira categoria (historicidade), a escrita
tanto tem um caráter histórico enquanto construção so-
cial, como tem esse mesmo caráter no que se refere às
técnicas que cada indivíduo utiliza, bem como transfor-
ma e supera no processo de apropriação da linguagem
escrita. Isso permitiu que Luria (2006) denominasse o
processo de conquista da escrita – que perpassa um lon-
go caminho até que a criança comece, de fato, a escrever
– de pré- história da escrita.

Considerando este longo e, possivelmente, árduo caminho, é ne-


cessário ter muita clareza de onde se pretende chegar, isto é, do que
o professor almeja alcançar com o conjunto de ações planejadas por ele.
Os objetivos de cada atividade presente no planejamento precisam es-
tar muito claros, sob pena de que os movimentos presentes nele fiquem
diluídos e dispersos, e o professor, fatalmente, não consiga alcançar
o avanço necessário, aquele que ele se propôs a alcançar.
Fica claro, assim, que há um conjunto de operações, de tarefas,
de modo mais estrito, que a criança precisará fazer, também nessa pers-
pectiva. A diferença é que, em outras concepções, isso é preparatório,
e na perspectiva aqui defendida isso se configura como uma espécie
de recuo. Há um ponto de partida simples em direção ao complexo, e é
necessário ter sempre presente a realidade social. Dessa realidade social,
o professor promove recuos para trabalhar com essas operações mais es-
tritas, voltando sempre para a realidade social. Nesse movimento é que
a criança vai apreender essas realidades, quaisquer que sejam, necessá-
rias à aproximação cada vez maior ao conceito de palavra.
O sistema de escrita alfabética é um grande objeto do conheci-
mento que aparece na prática social sempre em textos, eminentemente
escritos. Porém, a alfabetização também se debruça sobre a oralidade,
normalmente para fomentar a apropriação do escrito. Por isso, o mes-
mo movimento de análise pode ser agenciado para explicar o processo
de desenvolvimento da consciência fonológica. Em outras perspectivas,
a consciência fonológica é tomada como preparatória para a aprendiza-

303
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

gem da escrita. Já na perspectiva histórico-cultural, o período pré-esco-


lar se dedica à apresentação e ampliação das possibilidades de represen-
tação simbólica para que a criança alcance a descoberta e a função social
que a escrita tem. A partir disso, é possível, do ponto de vista do processo
de ensino, suprir e promover necessidades, na criança, para a simbo-
lização pelo escrito. E ela vai desenvolvendo a consciência fonológica
justamente porque é capaz de identificar o que consegue e o que ain-
da não consegue fazer, seus avanços e limites. A consciência fonológi-
ca é concebida, então, como resultado de um processo em que a crian-
ça descobre as possibilidades de grafar não só os objetos que encontra
no mundo, mas também as palavras que ela fala.
Nessa perspectiva, o quanto a criança vai desenvolver leitura e es-
critura tem menos relação com o alfabeto, com os fonemas e as sílabas
(não que eles não sejam importantes), e mais com a compreensão da es-
trutura gramatical, sintática, e com o conhecimento de gêneros do dis-
curso diversos (entre eles os literários, mas não apenas). Então, as pos-
sibilidades de leitura e escritura da criança não podem ser explicadas
pelo conhecimento do alfabeto, ou de outra determinada regularidade,
mas sim pela ideia da totalidade, em que gêneros, gramática e o próprio
alfabeto, bem como as demais formas de compreender as regularidades
sistêmicas, estão articulados.
Cabe destacar, mais uma vez, a necessidade de garantir no pla-
nejamento a presença daquilo que de mais especializado a humanida-
de já produziu, e a noção de clássico é muito importante nesse senti-
do. De forma geral, podemos afirmar que clássico é aquilo que nasce
em determinado período histórico, mas, como apontam Saviani e Duarte
(2010, p. 430), “[...] permanece como referência para as gerações seguin-
tes que se empenham em se apropriar das objetivações humanas pro-
duzidas ao longo do tempo”. Em função de sua perenidade e potencial
explicativo, os clássicos convertem-se em importantes objetos cultu-
rais representativos de um tempo histórico específico e, em razão disso,
são potencialmente humanizadores. A escolha de clássicos se justifica,
portanto, em virtude de seu potencial de enriquecimento da formação
humana e, consequentemente, pelo alcance dessa produção humana

304
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

em relação às questões do gênero humano. Por isso, são elementos es-


senciais no processo de alfabetização, já que permitem que os sujeitos
se reconheçam e façam parte do processo histórico, elevando-se ao ge-
nérico humano (HELLER, 2008).
Nesse sentido, ao selecionar o conteúdo de ensino, ou seja, o objeto
do conhecimento sobre o qual se debruçará, é necessário considerar o po-
tencial que o objeto cultural selecionado pelo professor tem em relação
ao enriquecimento da formação das crianças. Em suma, o planejamento
teoricamente ancorado apresenta profunda articulação entre objetivos,
conteúdos, estratégias metodológicas e avaliação, elementos do traba-
lho educativo que precisam ser pensados a partir da clareza em torno
da natureza e da especificidade do trabalho educativo, bem como do pa-
pel emancipador que tem a alfabetização na formação humana.

Considerações finais

Ao fim deste conjunto de discussões, fica evidente a complexidade


do trabalho educativo voltado à alfabetização, bem como o entendimen-
to de que boa parte dos métodos utilizados historicamente na educação
brasileira não oferecem, de forma completa, elementos para uma práti-
ca pedagógica alfabetizadora consistente. Entendemos que o problema
da alfabetização não se resolve pela escolha de um método, até porque
assumir isso significaria acreditar que há uma regularidade mais impor-
tante e que seria ela a responsável por resolver o problema da apropria-
ção do sistema de escrita alfabética.
Ao assumirmos a pedagogia histórico-crítica, não concebemos
que exista uma forma fixa de organização do trabalho. É justamente
em razão disso que este capítulo não apresentou nenhum tipo de mode-
lo ou esquema a ser seguido para organizar o planejamento na alfabeti-
zação. Marsiglia e Saviani (2017, p. 4) justificam:

É por essa razão que autores como Duarte (2013), Martins


(2013b) e o próprio Saviani (2013) têm alertado para o
fato de que não existe “a” forma de organização do traba-

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

lho didático na pedagogia histórico-crítica e menos ain-


da que essa forma sejam sequências de atividades con-
tidas em planejamentos de ensino para a prática social,
outras para a problematização, outras para a instrumen-
talização e assim por diante. A proposta metodológica
da pedagogia histórico- crítica parte da prática social e
retorna a ela de forma enriquecida; vai da síncrese à sín-
tese pela mediação da análise, sendo que esse processo
não é linear, estanque e/ou compartimentalizado, justa-
mente por apoiar-se filosoficamente numa base lógica de
cunho dialético-materialista.

A partir dessas conclusões, buscamos evidenciar a importância


de um planejamento reflexivo, intencional e voltado para o futuro, pro-
duzido por um professor que conhece a natureza e a especificidade de seu
trabalho. Por isso, reconhece que a alfabetização não se dá unicamen-
te pelo entendimento de regularidades sistêmicas da escrita, tampouco
pelo trabalho com textos abordados de forma pragmática e espontânea.
Ao contrário, a partir das contribuições oferecidas pelo fundamento his-
tórico-dialético, assumimos uma ação pedagógica que não abandona
a abordagem das regularidades do sistema, porém, não as concebe como
finalidade última do trabalho educativo, como um fim em si mesmo,
mas as contempla em um movimento de síncrese para a síntese e vi-
ce-versa. Ou seja, o professor traz aspectos da realidade concreta para
dentro do planejamento, refina a compreensão dessa mesma realidade
e retorna a ela. Esse movimento da síncrese para a síntese, pela me-
diação da análise, não está presente em nenhuma outra possibilidade
metodológica.
O reconhecimento da escrita como uma produção humana histo-
ricamente acumulada, como um sistema de signos culturalmente ela-
borado e socialmente compartilhado, é fundamental para que o próprio
processo escolar possa se desenvolver. Para isso, a criança precisa apren-
der a empregar – também, mas não só – um conjunto de técnicas neces-
sárias, ou seja, aprender o modo de operar com a escrita. Isso não pode
ser confundido com treino de formato de letra, de caligrafia, por exem-

306
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

plo. Concebemos técnica, neste caso, como o emprego dessas regulari-


dades na escrita de palavras. E as palavras não são escritas como treino
para “a” escrita posterior, mas são escritas pela necessidade, ou de re-
curso de memória, ou de interação com o outro. Neste processo, são fei-
tos recuos para a discussão e a orientação sobre algumas regularidades
do sistema, as quais a criança ainda não conhece.
A partir disso, é necessário reconhecer que o sistema de escrita
alfabética, como resultado de produção humana historicamente acumu-
lada e altamente complexa, precisa ser apropriado por cada novo ser da
espécie humana. Para que a apropriação desse sistema aconteça, efeti-
vamente, dada sua complexidade, torna-se essencial o ensino sistemáti-
co, organizado e orientado, que só poderá ocorrer a partir de um plane-
jamento teoricamente ancorado e voltado à transformação.

Referências

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307
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

MARTINS, Lígia Márcia. A internalização de signos como intermediação


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308
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

POSFÁCIO

Escrever o posfácio de uma obra tão rica em reflexões e com forte


densidade teórica representa um desafio, pois um livro desse teor é aves-
so às sínteses didáticas e às conclusões definitivas, já que busca a am-
pliação dos horizontes e dos questionamentos sobre o tema. Ao mesmo
tempo, terminada essa enriquecedora leitura, abre-se a possibilidade
de estabelecer um diálogo, tanto com as autoras quanto com os leitores,
sobre as ideias apresentadas no livro. Para estimular esse diálogo, pode-
mos destacar alguns pontos.
Os textos aqui reunidos não tiveram o intuito de propor um novo
método de alfabetização, no sentido de uma sequência definida de pas-
sos ou procedimentos didáticos, mas fazem uma aposta na autonomia
e capacidade das professoras que alfabetizam para direcionar sua prática
de modo mais intencional, a partir da explicitação de alguns dos funda-
mentos teóricos e do compromisso ético-político que precisa permear essa
prática. A Pedagogia Histórico-Crítica e a Psicologia Histórico-Cultural
pressupõem a valorização do educador como trabalhador que pro-
duz “a humanidade em cada indivíduo singular” (SAVIANI) e, portan-
to, não pode ser visto como mero aplicador de “métodos milagrosos”,
alheios às condições materiais objetivas e subjetivas em que se desen-
volve o trabalho educativo, especialmente na escola pública.
Nesse sentido, a centralidade da categoria trabalho para a compre-
ensão da linguagem e do processo de alfabetização perpassa toda a obra
e assenta o debate sobre as bases sólidas do materialismo dialético e his-
tórico. Parte-se do pressuposto do trabalho como produção da existên-
cia humana, atividade vital em que, diferentemente dos outros seres vi-

309
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

vos, o homem produz os meios que satisfazem as suas necessidades e,


ao fazê-lo, cria sempre novas necessidades, provenientes do “estômago
ou da fantasia” (MARX). Assim se produz a “essência humana”, histórica
e cultural, sob a base da natureza biológica da espécie. Sendo o trabalho
ao mesmo tempo o meio de criação do próprio homem e um produto
do seu metabolismo com a natureza, as capacidades humanas acumula-
das precisam ser assimiladas pelas novas gerações para que essa ativida-
de vital possa se desenvolver. Portanto, o trabalho constitui o princípio
organizador geral do processo educativo, especialmente da sua forma
mais desenvolvida que é o ensino sistemático na escola, o que se mani-
festa de modo implícito e explícito no currículo. Sendo o conhecimento
acumulado registrado principalmente por meio da escrita, a alfabetiza-
ção, desde a Revolução Industrial, vem se tornando um dos elementos
fundamentais para o acesso aos elementos do saber historicamente acu-
mulado que são demandados para a realização das formas mais desen-
volvidas de trabalho humano. No entanto, a escrita, além de ser um ins-
trumento necessário ao trabalho, também é a linguagem que permite
ao indivíduo realizar formas mais elaboradas de atividade científica, ar-
tística, filosófica e política. Por isso, nas sociedades divididas em classes
como a nossa, o domínio da escrita tem sido historicamente um privi-
légio das camadas dominantes, que evitam por todos meios a univer-
salização desse acesso, reduzindo-o aos limites das necessidades prag-
máticas do trabalho alienado e da vida cotidiana. Para a reprodução
do Capital, a alfabetização interessa apenas como parte da formação
de uma “destreza geral mínima” da força de trabalho, necessária para
operar com signos gráficos no trabalho e no consumo, e não como meio
para a plena humanização dos indivíduos. Nessa perspectiva, este livro
traz não apenas um posicionamento teórico crítico a esses mecanismos
que alienam os alunos do acesso às formas mais elaboradas de conhe-
cimento, mas defende um compromisso ético e político com as classes
populares, que necessitam da alfabetização como parte da instrumen-
talização para sua luta emancipatória, individual e coletiva. Assegurar
a todas as crianças o domínio dos conteúdos do sistema de escrita e a
capacidade de ler e escrever é tarefa ineliminável de uma perspectiva
pedagógica crítica.

310
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

Esse tipo de alfabetização, todavia, precisa ir muito além de uma


assimilação das relações entre fonemas e grafemas, para se configurar
como a primeira etapa de um processo mais amplo de formação linguís-
tica e literária. Abordar o ensino do ler e escrever dessa forma não im-
plica em referendar as propostas de substituição do ensino sistemático
dos conteúdos do Sistema Alfabético-Ortográfico por atividades espon-
tâneas de leitura e escrita, feitas pela professora ou simuladas pelos
alunos. Os equívocos da incorporação distorcida do conceito de letra-
mento, esvaziando a especificidade da alfabetização já foram apontados
por Magda Soares1 e outros autores. Reconhecer o avanço dessas críticas
e o esforço de superação dos limites do construtivismo e das práticas
e métodos tradicionais (como o método fônico) requer ao mesmo tempo
uma grande cautela diante das tentativas de “conciliação”, que podem
resultar na justaposição eclética desses dois modelos de ensino, o tec-
nicista/associacionista e o escolanovista/construtivista. A proposta de
“alfabetizar letrando”, tal como vem sendo formulada pela autora citada,
acaba por deixar de lado a contribuição radical da teoria da aprendi-
zagem histórico-cultural, que rejeita o biologismo, seja da abordagem
skinneriana subjacente aos métodos fônicos, seja dos pressupostos pia-
getianos que sustentam o construtivismo de Emília Ferreiro.
As ideias instigantes apresentadas neste livro ao mesmo tempo
que aportam essas e outras contribuições, nos levam a indicar alguns de-
safios teóricos e metodológicos para o avanço da alfabetização na pers-
pectiva da Pedagogia Histórico-Crítica. Um desses pontos é a necessidade
de aprofundar os estudos sobre a questão do “significado” na lingua-
gem escrita e nos processos de compreensão e expressão do pensamen-
to, inerentes ao ler e escrever e ao seu ensino. Existe uma rica discus-
são a respeito desse tema na Psicologia Histórico-Cultural que poderia
ser sistematizada e incorporada de modo mais incisivo às categorias
de análise dos problemas da alfabetização e à elaboração de propostas
nesse campo. A abordagem desse assunto por Vygotski, Luria, Leontiev
e outros (embora com diferenças ou nuances) contribui para romper

1 SOARES, M. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Revista Brasileira de Educação,


Rio de Janeiro, n. 25, jan./abr. 2004.

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

com a definição formal da palavra (e do signo em geral) como “uma uni-


dade indissolúvel de um significado e um significante”, definição esta
ilustrada pela metáfora de uma moeda com uma face semântica e uma
face fonética ou gráfica, o que acaba por pressupor um significado de-
finido e estático que se relaciona de modo “arbitrário e convencional”
com um conjunto de sons ou sinais gráficos. Vygotski2 comprovou que o
significado das palavras evolui no desenvolvimento da criança, sendo
a manifestação, em cada momento, dos processos de elaboração con-
ceitual e representação do real que ela realiza. Se, por um lado, toda
palavra generaliza a percepção dos objetos, por outro lado as formas
de generalização se modificam e avançam na direção de uma represen-
tação cada vez mais objetiva e concreta, culminando com a apropriação
dos conceitos científicos. Desse ponto de vista, o significado é uma uni-
dade dinâmica da relação entre o pensamento e a linguagem e vai sendo
produzido na atividade social dos indivíduos frente ao real. Ao mesmo
tempo, o significado de uma palavra ou de um signo, segundo o mesmo
autor, não passa de uma “zona mais estável” na trama dos seus senti-
dos potenciais e efetivos. Sendo assim, o aspecto conceitual do signo
é inseparável da sua dimensão afetivo-volitiva. Essa dimensão integra
os conceitos, materializados no âmbito do discurso (interior e exterior),
com os sistemas de motivos envolvidos na atividade concreta em que
esse discurso se insere. Esses motivos contribuem para definir o senti-
do dos signos e das próprias atividades para os sujeitos, como explicou
Leontiev3. Por sua vez, Luria4 traz essa discussão para o campo da lin-
guagem escrita e aborda o “subtexto” subjacente ao texto literário, cha-
mando a atenção para os motivos implícitos às ações dos personagens
e às intenções do autor. Tais indicações são apenas exemplos de aportes
que podem contribuir para superar a ideia de que exista uma passagem

2 VYGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. Tradução de Paulo Bezerra. São


Paulo: Martins Fontes, 2001.
3 LEONTIEV, A. N. O desenvolvimento do psiquismo. Tradução de Manuel Dias Duarte. Lisboa:
Livros Horizonte, 1978. (Coleção Horizonte Universitário, n. 9).
4 LURIA, A. R. Curso de psicologia geral. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1979. Vide tam-
bém: LURIA, A. R. Pensamento e linguagem: as últimas conferências de Luria. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1986.

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

automática do domínio das relações grafema-fonema para a compreen-


são e expressão dos significados e sentidos na escrita.
Saindo do campo da psicologia, autores como Adam Schaff5 ofere-
cem elementos para uma compreensão dos signos e do significado/sen-
tido como produtos históricos e sociais, com complexas relações, como
a cultura específica no seio da qual são gerados e utilizados. Esse autor
problematiza, por exemplo, o suposto caráter convencional e arbitrário
da relação entre a linguagem e a realidade, entre os signos e os obje-
tos que representam, mostrando que esse convencionalismo se ancora
em uma epistemologia idealista, que acaba por conceber a linguagem
como uma atividade destacada da prática social e como a própria defini-
dora da realidade dos indivíduos. Portanto, o autor considera a significa-
ção (que nesse caso seria uma unidade de significados e sentidos) como
uma relação entre sujeitos que se comunicam sobre a realidade, situ-
ados em determinadas relações e condições histórico-sociais. Também
apresenta uma tipologia dos signos que organiza um quadro conceitual
a partir do qual se pode distinguir como mais clareza o que seriam sig-
nos, sinais, símbolos, etc.
Particularmente importante para fundamentar a pesquisa so-
bre o processo de alfabetização e o trabalho de alfabetizar é a Teoria
da Enunciação esboçada por Valentin Volóchinov6, por apontar para
uma concepção de linguagem articulada aos pressupostos do materia-
lismo dialético. Essa teoria contribui para evidenciar a natureza múl-
tipla da linguagem como fenômeno psicológico, sociológico, histórico,
etc. As relações entre psiquismo e ideologia, entre o signo exterior e o
interior, entre o discurso próprio e o discurso alheio lançam luz sobre
o caráter dialético da linguagem, permitindo repensar os conteúdos
da alfabetização, bem como o lugar das diferentes ciências que funda-
mentam o trabalho da professora que alfabetiza. A Pedagogia, como ci-
5 SCHAFF, A. Introdução à semântica. Tradução de Célia Neves. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1968 (Série Perspectivas do homem. Estudos semânticos, 46). Vide também do
mesmo autor: Linguagem e Conhecimento. Coimbra: Livraria Almedina, 1974.
6 VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do mé-
todo sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e
Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017. Vide também: A construção da
enunciação e outros ensaios. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013.

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

ência geral da educação, precisa buscar essas interfaces para avançar


na compreensão do trabalho de alfabetizar como totalidade concreta
e síntese de múltiplas determinações. Por exemplo, a tipologia dos sig-
nos de Schaff converge com a distinção feita por Volóchinov entre o sinal
(sonoro ou gráfico) que demanda um reconhecimento (o que pode ocor-
rer nos limites que uma associação entre estímulo e resposta) e o signo
propriamente dito, que requer uma compreensão, a qual só pode ocorrer
no contexto de sistemas ideológicos definidos. Desse quadro conceitual
decorre a ideia de que uma letra e um fonema isolados são sinais e não
signos, portanto ensinar a reconhecer esses elementos e associá-los
não é o mesmo que ensinar a ler. As concepções dominantes procuram
reificar a palavra, apresentando seu significado como algo já dado, está-
tico e unívoco. A natureza essencialmente polissêmica das palavras fica
obscurecida e com isso se abafam os conflitos sociais que se manifes-
tam nas disputas e embates de significados e sentidos. Os materiais di-
dáticos de alfabetização, sejam tradicionais, construtivistas ou fônicos,
em sua quase totalidade apresentam palavras isoladas associadas a uma
imagem (desenho ou foto), reduzindo o ato de compreensão ao simples
reconhecimento. Por exemplo, mostram a figura de um pato junto à pa-
lavra “pato”. Essa abordagem limita a apropriação pelo aluno das ideias
objetivadas na palavra e na própria figura. Por que considerar que a fi-
gura só poderia ser a imagem de um pato e não de uma pata? Em que
contexto tal imagem se encontra, trata-se de uma pintura (obra de arte)
ou de uma foto de uma fazenda (criação de animais)? O significado dessa
palavra (e dos signos em geral) é uma imagem mental do objeto? Se fos-
se, a palavra perderia sua capacidade de condensar um reflexo genera-
lizado dos objetos e, portanto, o significado deixaria de ser um concei-
to que expressa determinados traços essenciais da realidade. Por outro
lado, se esse pato for o personagem “patinho feio” do conto tradicional,
não estamos diante de outro significado? E se a palavra “pato” for colo-
cada em diferentes situações discursivas, que outros significados e sen-
tidos emergem? Se um grupo de empresários faz uma campanha com o
mote “não vou pagar o pato”, o que isso significa? Quem está “pagando
o pato” dessa campanha até agora? Quando essas questões são levanta-
das, compreende-se porque Volóchinov coloca a palavra como uma are-

314
ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

na em que se manifesta a luta de classes. Como essas ideias poderiam


enriquecer o debate sobre o conceito de alfabetização, seus pressupos-
tos científicos e filosóficos e os fundamentos que a professora que alfa-
betiza necessita dominar?
Se os desafios da Pedagogia Histórico-Crítica são grandes do ponto
de vista teórico, da pesquisa básica e da formação de educadores, não são
menores no terreno da construção de propostas metodológicas coeren-
tes com os seus pressupostos, posto que não se trata apenas de derivar
orientações diretamente das reflexões de diferentes autores, mas de es-
tabelecer um diálogo e uma cooperação entre quem pesquisa e quem
de fato alfabetiza, para que tais propostas levem em conta as condições
efetivas em que a atividade de ensino ocorre no contexto das escolas
públicas, particularmente, com a situação das crianças das classes popu-
lares na sala de aula, cuja exclusão agravou-se fortemente como resul-
tado das políticas equivocadas de enfrentamento à pandemia. Trata-se,
portanto, de buscar uma participação qualificada da abordagem históri-
co-crítica em um debate permanente como os trabalhadores da escola
de educação infantil e de ensino fundamental, imersos em um contex-
to de imposição velada ou explícita das concepções hegemônicas sobre
alfabetização, legitimadas pelas políticas públicas e pelos materiais
didáticos.
Alguns capítulos do presente livro avançam nesse diálogo, for-
mulando argumentos consistentes para a crítica à Política Nacional
de Alfabetização, com seu ranço tecnicista, comportamentalista e auto-
ritário. A reflexão sobre a questão dos processos de compreensão e ex-
pressão de significados e sentidos na alfabetização também pode contri-
buir com esse debate, ao evidenciar o caráter mecanicista dessa proposta
oficial, que reduz a leitura ao momento da decodificação, e ao desnudar
a dimensão ideológica do chamado método fônico. As contribuições
da Psicologia Histórico-Cultural para a compreensão do funcionamen-
to do cérebro humano situam os estudos das neurociências no terreno
da prática social em que as atividades dos sujeitos, como trabalhar, ler e
escrever, etc., produzem “órgãos funcionais” (LEONTIEV) ou “sistemas
funcionais complexos” (LURIA), rearticulando as estruturas biológicas

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

cerebrais. Com isso, fazem um contraponto essencial à apropriação frag-


mentada de evidências produzidas por grupos de neurocientistas posi-
tivistas e de adeptos do método fônico, que criam experimentos envie-
sados para confirmar suas convicções e apresentam os resultados como
verdades estabelecidas, neutras e incontestáveis.
Daí decorre a importância, destacada em alguns capítulos desta
obra, de trabalhar a alfabetização tendo por referência textos significa-
tivos e não apenas fonemas, sílabas ou palavras isoladas como propugna
o associacionismo. Cabe indicar que esses textos seriam pontos de par-
tida para um trabalho sistemático com o seu conteúdo e não meras ilus-
trações ou “elementos de caráter lúdico”, como costumam ser utilizados
em determinadas cartilhas, nas quais apenas servem como pretexto para
fixar o reconhecimento de determinada letra e sua associação com o res-
pectivo fonema7.
A seleção desses textos, por sua vez, reveste-se de caráter desa-
fiador. Está claro que, do ponto de vista da Pedagogia Histórico-Crítica,
a alfabetização não poderia se restringir a textos situados no plano
mais próximo da oralidade e da vida cotidiana, posto que a escola tem a
ver exatamente com os elementos do conhecimento que não são dados
espontaneamente nesse cotidiano, o que implica em colocar a criança,
desde logo, em contato com textos de natureza científica e literária.
Dessa forma, configura-se problemática a escolha, feita no contexto tan-
to de abordagens construtivistas quanto dos métodos fônicos, em utili-
zar somente os tipos de texto que já fariam parte do cotidiano da criança,
como: parlendas, cantigas infantis, letras de músicas, nomes dos alunos
e de seus colegas, etc.8 Se o propósito da alfabetização é formar leitores
que acessem a cultura letrada nas suas formas mais elaboradas, por que

7 Vide, por exemplo, o uso de textos em: CAPOVILLA, A. G. S.; CAPOVILLA, F. C. C.


Alfabetização: método fônico. São Paulo: Memnon, 2002.
8 Além da obra de Capovilla, já citada, a opção preferencial por esse tipo de texto ligado ao
cotidiano pode ser encontrada na coleção de materiais didáticos “Ler e escrever”, baseada
no construtivismo: SÃO PAULO, Secretaria da Educação. Ler e escrever: guia de planeja-
mento e orientações didáticas; professor alfabetizador, 1º ano. 4. ed. São Paulo: FDE, 2014.
Na versão de 2021 dessa coleção foram incluídos três contos de fadas, mas somente para
leitura a ser feita pela professora.

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

não trabalhar com os textos clássicos da literatura infantil, como fábulas


e contos, por exemplo?
Trabalhar com esses e outros textos clássicos da literatura infan-
til não se reduz a fazer sua leitura para “deleite” dos alunos, e menos
ainda para apresentá-los como exemplos de determinado “gênero tex-
tual”, com o objetivo de ensinar a usar “diferentes gêneros” na escrita.
Embora essa questão dos gêneros do discurso seja bastante complexa
e tema para uma discussão aprofundada9, do ponto de vista pedagógico
introduzir esse conceito pode representar um desvio de foco em rela-
ção aos conceitos essenciais ligados ao sistema de escrita (sílaba, pa-
lavra, consoante, vogal, etc.) que são imprescindíveis para a compre-
ensão da lógica desse sistema10. Vale destacar, considerando a teoria
da enunciação de Volóchinov, que o ato pedagógico pode ser conside-
rado uma situação que configura seu próprio gênero discursivo, pois
estabelece entre os sujeitos uma situação social peculiar, por se tratar
de um contexto de trabalho educativo. A natureza e especificidade dessa
relação foram abordados por Saviani11, que aponta que o ensino se situa
na esfera do trabalho não material, em que o produto (a aula) não se
separa do produtor (professor), e que cuja especificidade consiste em en-
sinar os conteúdos do saber escolar buscando as formas mais adequadas
para que sejam assimilados por cada um dos alunos, no tempo e nas
condições disponíveis na escola e na sala de aula. Portanto, o texto (seja
literário como se sugere aqui, seja do cotidiano como é proposto pelas
abordagens hegemônicas construtivistas ou associacionistas) não entra
no processo de alfabetização apenas para ser lido, para que com ele se
realize uma atividade de compreensão. O texto entra como um instru-
mento pedagógico, um objeto sobre o qual os alunos se debruçam me-
9 Vide, por exemplo: MEYER, K.; MAZZEU, F. J. C. Linguagem, enunciação e gênero discur-
sivo: aproximações entre Bakhtin e Leontiev e o ensino de língua portuguesa. InterSaberes
Revista Científica, Curitiba, v. 12, p. 473-487, 2017. A citação a Bakhtin nesse artigo faz refe-
rência à teoria da enunciação de Volóchinov, cujas obras foram, por longo tempo, atribuídas
àquele autor, especialmente no Brasil.
10 MAZZEU, F. J. C.; FRANCIOLI, F. A. S. Os conteúdos da alfabetização: elementos para um
debate curricular. Revista Espaço do Currículo (online), João Pessoa, v.11, n. 2, p. 219-233,
mai./ago. 2018.
11 SAVIANI, D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. Campinas: Autores
Associados, 2013.

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ALFABETIZAÇÃO E HUMANIZAÇÃO:
A APROPRIAÇÃO INICIAL DA ESCRITA SOB BASES HISTÓRICO-CULTURAIS

diados pelas explicações e instruções da professora, para que aprendam


a ler. Portanto, a escolha e a elaboração de meios de ensino, métodos,
materiais, exercícios, deveria ter como horizonte os fins a atingir e os
conteúdos a transmitir. Esse debate coloca a questão do uso de textos
na alfabetização, pois esse uso deveria estar articulado à finalidade
do processo: formar leitores capazes de compreender um texto e expres-
sar ideias por escrito, dominando para isso os fundamentos do sistema
de escrita alfabético-ortográfico. Em outro lugar12, sugerimos que a or-
ganização do trabalho de alfabetizar em torno de um conjunto de pala-
vras significativas pode ser um caminho para atingir esse objetivo.
Esperamos que estas breves considerações suscitadas pela leitura
do livro contribuam para provocar reflexões e debates e motivem ain-
da mais os autores e leitores para a produção de novas obras que fa-
çam avançar esse processo coletivo de construção de uma abordagem
Histórico-Crítica da alfabetização, cuja necessidade se faz sentir no dia
a dia das professoras das escolas públicas, bem como das crianças e dos
adultos alijados do acesso à linguagem escrita, cerceados no seu pleno
desenvolvimento como seres humanos e como sujeitos que buscam a su-
peração dos limites impostos pela sociedade atual.

Francisco José Carvalho Mazzeu

12 COELHO, Izac Trindade; MAZZEU, Francisco José Carvalho. Notas introdutórias para um
método histórico- crítico de alfabetização. Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação,
Araraquara, v.11, n. esp. 4, p. 2576-2593, 2016.

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