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ISSN 0101 - 4366

Hoc facit, ut longos durent bene gesta per annos.


Et possint sera posteritate frui.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183, n. 488, pp. 11-316, jan./abr. 2022.


INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO
Considerado de utilidade pública:
Estadual: Lei nº 1.068, de 14-9-1966 (Diário Oficial do Estado, parte I, de 20-9-1966)
Federal: Decreto nº 61.251, de 30 de agosto de 1967
Av. Augusto Severo, 8, Rio de Janeiro, CEP 20021-040

Fundado em 21-10-1838, em plena Regência, por 27 sócios da prestigiosa Sociedade


Auxiliadora da Indústria Nacional, o IHGB originou-se de proposta anterior do marechal de
campo Cunha Matos e do cônego Januário da Cunha Barbosa. Pedro II logo o tomou sob seus
auspícios.
Os objetivos estatutários eram, entre outros: coligir, metodizar, publicar ou arquivar
documentos, promover cursos e editar a Revista Trimestral de História e Geografia ou o
Jornal do IHGB.
O Arquivo é hoje um dos melhores do Brasil, graças a sucessivas doações de papéis de
estadistas e historiadores, como José Bonifácio, o marquês de Olinda, Varnhagen, Cotegipe, o
conde d´Eu, o visconde de Ouro Preto, Prudente de Morais, Rodrigues Alves, Epitácio Pessoa,
Manuel Barata, Wanderley Pinho, Hélio Viana e Jackson de Figueiredo, entre outros.
A Biblioteca, por compra, doações e permutas, ultrapassa de 500 mil volumes, de grande
interesse para os estudos brasileiros.
A Mapoteca dispõe de cerca de 12 mil cartas geográficas, referentes, sobretudo, ao
território brasileiro.
O Museu, criado em 1851 para guardar a memória de varões ilustres em máscaras
mortuárias, retratos e lembranças pessoais, exibe hoje peças, como a espada de campanha de
Duque de Caxias (modelo dos espadins dos cadetes do nosso Exército) ou a cadeira em que
Pedro II, durante 40 anos, presidiu a 508 sessões do Instituto.
A Pinacoteca é rica, abrangendo desde a imensa tela da Coroação de Pedro II, de autoria
do sócio Araújo Porto-Alegre, até a impressionante galeria de retratos (e bustos) de monarcas,
nobres e personalidades da Colônia à República.
Os sócios, eméritos, titulares, honorários e correspondentes, no país e no estrangeiro, são
eleitos vitaliciamente. O corpo social promove conferências, congressos e cursos, anunciados
com antecedência, e realiza reuniões acadêmicas, de março a dezembro, todas as quartas-
-feiras. As atas são publicadas pela Revista no último número do ano.
R IHGB
a. 183
n. 488
jan./abr.
2022
INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO
DIRETORIA – (2020-2021)
Presidente: Victorino Chermont de Miranda
1º Vice-Presidente: Jaime Antunes da Silva
2º Vice-Presidente: João Maurício de Araújo Pinho
3º Vice-Presidente: Alberto da Costa e Silva
1º Secretária: Lucia Maria Paschoal Guimarães
2º Secretária: Maria de Lourdes Viana Lyra
Tesoureiro: Fernando Tasso Fragoso Pires
Orador: José Almino de Alencar e Silva
CONSELHO FISCAL
Membros efetivos: Luiz Felipe de Seixas Corrêa, Marcos Guimarães Sanches e
Miridan Britto Falci
Membros suplentes: Esther Caldas Bertoletti, João Eurípedes Franklin Leal e
Vera Lucia Cabana de Andrade
CONSELHO CONSULTIVO
Membros nomeados: Antonio Izaias da Costa Abreu, Armando de Senna
Bittencourt, Carlos Wehrs, Célio Borja, Cybelle Moreira de
Ipanema, Esther Caldas Bertoletti, Maurício Vicente Ferrei-
ra Júnior, Miridan Britto Falci e Pedro Corrêa do Lago.

DIRETORIAS ADJUNTAS
Arquivo: Jaime Antunes da Silva
Biblioteca: Claudio Aguiar
Cursos: Antonio Celso Alves Pereira
Iconografia: Pedro Karp Vasquez
Informática e Dissem. da Informação: Carlos Eduardo de Almeida Barata
Museu: Paulo Knauss de Mendonça
Patrimônio: Guilherme de Andrea Frota
Projetos Especiais: Mary del Priore
Relações Externas: Maria da Conceição de Moraes Coutinho Beltrão
Relações Institucionais: João Mauricio de A. Pinho
Coordenação da CEPHAS: Maria de Lourdes Viana Lyra e Lucia Maria Paschoal Gui-
marães (subcoord.)
Editor do Noticiário: Victorino Chermont de Miranda
COMISSÕES PERMANENTES
ADMISSÃO DE SÓCIOS: CIÊNCIAS SOCIAIS: ESTATUTO:
Alberto da Costa e Silva Antônio Celso Alves Pereira Antonio Celso Alves Pereira
Dora Monteiro e Silva Alcântara José Almino de Alencar e Silva Antonio Izaias da Costa Abreu
Jaime Antunes da Silva José Murilo de Carvalho Célio Borja
Fernando Tasso Fragoso Pires Maria Cecília Londres Gustavo Siqueira
Lucia Maria Paschoal Guimarães Maria Luiza Penna Marques Mo- João Maurício de Araújo Pinho
reira
GEOGRAFIA: HISTÓRIA: PATRIMÔNIO:
Armando de Senna Bittencourt Arno Wehling Antonio Izaías da Costa Abreu
Cybelle Moreira de Ipanema Marcos Guimarães Sanches Esther Caldas Bertoletti
Miridan Britto Falci Maria de Lourdes Vianna Lyra Fernando Tasso Fragoso Pires
Pedro Pinchas Geiger Paulo Knauss de Mendonça Guilherme de Andrea Frota
Vera Lúcia Cabana de Andrade Maurício Vicente Ferreira Júnior Marcus Antonio Monteiro No-
gueira
REVISTA
DO
INSTITUTO HISTÓRICO
E
GEOGRÁFICO BRASILEIRO
Hoc facit, ut longos durent bene gesta per annos.
Et possint sera posteritate frui.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183, n. 488, pp. 11-316, jan./abr. 2022.


Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ano 183, n. 488, 2022.

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Sumários Correntes Brasileiros – Google Acadêmico - EBSCO

Correspondência:
Rev. IHGB – Av. Augusto Severo, 8-10º andar – Glória – CEP: 20021-040 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Fone/fax. (21) 2509-5107 / 2252-4430 / 2224-7338
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Impresso no Brasil – Printed in Brazil
Revisora: Carolina Pereira Vicente Silva
Secretária da Revista: Tupiara Machareth

REGISTRO NACIONAL DO BRASIL DO PROGRAMA MEMÓRIA DO MUNDO – MOW DA UNESCO


Pensar O Brasil: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1839-2011

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. - Tomo 1, n. 1 (1839) -


Rio de Janeiro: O Instituto, 1839-
v. : il. ; 23 cm

Quadrimestral
ISSN 0101-4366
Ind.: T. 1 (1839) – n. 399 (1998) em ano 159, n. 400. – Ind.: n. 401 (1998) – 449 (2010) em n. 450
(2011)

1. Brasil – História. 2. História. 3. Geografia. I. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Ficha catalográfica preparada pela bibliotecária Maura Macedo Corrêa e Castro – CRB7-1142
CONSELHO EDITORIAL
António Manuel Dias Farinha – Universidade de Lisboa – Portugal
Arno Wehling – Universidade Veiga de Almeida – Rio de Janeiro-RJ – Brasil
Carlos Petit – Universidade de Helva – Espanha
Eduardo Silva – Fundação Casa de Rui Barbosa – Rio de Janeiro-RJ – Brasil
Esther Caldas Bertoletti – Ministério da Cultura – Rio de Janeiro-RJ – Brasil
José Murilo de Carvalho – Universidade Federal do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro-RJ – Brasil
Lucia Maria Bastos Pereira das Neves – Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro-RJ-Brasil
Manuela Mendonça – Universidade de Lisboa – Portugal
Maria Beatriz Nizza da Silva – Universidade de São Paulo – São Paulo-SP – Brasil
Maria José Wehling – Universidade Federal do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro – Brasil
Mary del Priore – Universidade Salgado de Oliveira – Niterói-RJ – Brasil
Mônica Dantas – Universidade de São Paulo – São Paulo-SP – Brasil
Ricardo Marcelo Fonseca – Universidade Federal do Paraná – Paraná – Brasil
Tamar Herzog – Harvard University – Estados Unidos da América

DIRETOR DA REVISTA
Gustavo Silveira Siqueira – Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro-RJ – Brasil

SECRETARIA E ASSISTÊNCIA DA REVISTA


Alanna Aléssia – Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro-RJ – Brasil
Bruna Mariz Bataglia Ferreira – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – RJ – Brasil

CONSELHO CONSULTIVO
Alfredo Flores – Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil
Amy Chazkel – Universidade da Columbia – Estados Unidos
António Manuel Botelho Hespanha – Universidade Nova Lisboa – Lisboa – Portugal (in memoriam)
Avanete Pereira Souza – Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - Brasil
Beatriz Gallotti Mamigonian – Universidade Federal de Santa Catarina – Brasil
Clarice Speranza – Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil
Cristiano Paixão – Universidade de Brasília – Brasil
Eric Palma – Universidade do Chile – Chile
Fernando Camargo – Universidade Federal de Pelotas – Pelotas-RS – Brasil
Geraldo Mártires Coelho – Universidade Federal do Pará – Belém-PA – Brasil
Guilherme Pereira das Neves – Universidade Federal Fluminense – Niterói-RJ – Brasil
Helen Osório – Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil
Henrique Espada Lima – Universidade Federal de Santa Catarina – Brasil
Jeannie Menezes – Universidade Federal Rural de Pernambuco – Brasil
Junia Ferreira Furtado – Universidade Federal de Minas Gerais – Belo Horizonte-MG – Brasil
Leticia Vita – Universidade de Buenos Aires – Argentina
Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos – Ministério das Relações Exteriores – Brasília-DF – Brasília
Luis González Alvo – Universidade Nacional de Tucumán – Argentina
Marcus Joaquim Maciel de Carvalho – Universidade Federal de Pernambuco – Recife-PE – Brasil
Maria de Fátima Sá e Mello Ferreira – ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa – Lisboa – Portugal
Maria Pia Guerra – Universidade de Brasília – Brasil
Mariana Dantas – Universidade Federal Rural de Pernambuco – Brasil
Matthias Rohrig Assunção – Universidade de Essex – Reino Unido
Otávio Luiz Rodrigues Júnior – Universidade de São Paulo – Brasil
Pollyana Mendonça Muniz – Universidade Federal do Maranhão - Brasil
Rafael Lamera Giesta Cabral – Universidade Federal Rural do Semi-árido – Brasil
Renata da Cruz Duran – Universidade Estadual de Londrina – Brasil
Renato Pinto Venâncio – Universidade Federal de Ouro Preto – Ouro Preto-MG – Brasil
Sébastien Roseaux - Universidade Toulouse - Jean Jaurès - França
Sol Calandria – Universidade Nacional de La Plata – Argentina
Stuart Schwartz – Universidade de Yale-Connecticut – Estados Unidos da América
Ulpiano Bezerra de Meneses – Universidade de São Paulo – São Paulo-SP – Brasil
Victor Tau Anzoategui – Universidade de Buenos Aires – Buenos Aires – Argentina (in memoriam)
ESTE NÚMERO CONTOU COM O APOIO DE:

Benfeitores do Campanha Revista do IHGB – 190 anos de História –


(Relação Nominal ao final da Revista) 
SUMÁRIO
SUMMARY
Carta ao Leitor 15
I – ARTIGOS E ENSAIOS
ARTICLES AND ESSAYS
O dia seguinte do primeiro Código Civil Brasileiro: 17
Vigência e prática judicial no Rio de Janeiro (1917-1927)
The Day After the First Brazilian Civil Code: Validity
and Judicial Practice in Rio de Janeiro (1917-1927)
Alan Wruck Garcia Rangel
Gustavo Silveira Siqueira
Santa Catarina na Exposição de História do Brasil de 1881 57
Santa Catarina at the Brazilian History Exhibition of 1881
Murilo Ristow Catarina
Sandra Paschoal Leite de Camargo Guedes
Em busca de outros sentidos: As críticas ao modelo 91
interpretativo Pradiano e as recentes explicações das estruturas
coloniais
In search of other meanings: Critiques of Prado´s interpretive
model and the recent explanations of colonial structures
Luís Carlos Albano Duarte Sousa
Johny Santana de Araújo
Raimundo Jucier Sousa de Assis
As crianças realmente deveriam seguir a condição 117
do ventre escravizado? Instabilidades no princípio
do partus sequitur ventrem na construção da escravidão colonial
Should children really follow the condition of the enslaved womb?
Instabilities in the principle of partus sequitur ventrem in the deve-
lopment of colonial slavery
Paulo Henrique Rodrigues Pereira
“Um tributo à memória de meu pai”: 151
as interpretações de Emílio Joaquim da Silva Maia sobre
a história do Brasil a fim de recuperar a memória de
seu pai Joaquim José da Silva Maia no século XIX
“A tribute to my father’s memory”: Emilio Joaquim da Silva Maia’s
interpretations of Brazilian History and the revival of his father´s
Memory, Joaquim José da Silva Maia, in the 19th century
Walquiria de Rezende Tofanelli Alves
Entre comendadores, cruzes e colares: 181
a ordem do mérito judiciário trabalhista no Rio de Janeiro
Among Commendations, Crosses and Collars:
the Order of Judicial Merit for Labor in Rio de Janeiro
Fernando Fontainha
Luiza Meira Bastos
Temas do Direito Administrativo na Doutrina 197
Jurídica Brasileira do século XIX:
análise quantitativa (1857-1884)
Themes of Administrative Law in the Brazilian legal
Doctrine of the 19th Century: a Quantitative
Analysis (1857-1884)
Walter Guandalini Junior
Os primórdios do lúpulo no Brasil: 233
A trajetória alcoólica brasileira até o domínio cervejeiro
e a introdução do lúpulo
The beginnings of hops culture in Brazil: History of
alcoholic beverages in Brazil until the dominance of
beer and the introduction of hops
Eduardo Fernandes Marcusso
II – COMUNICAÇÕES
NOTIFICATIONS
Origem do epíteto “Cidade Maravilhosa” 265
para designar o Rio de Janeiro: lenda e verdade
Origin of the Epithet “Marvelous City” to designate the
City of Rio de Janeiro: Legend and Truth
Ivo Korytowski
Homenagem aos 150 anos de nascimento 295
do sócio Luiz Gastão D’escragnolle Dória
Tribute to the 150 years of birth of partner Luiz Gastão
D’escragnolle Dória
Vera Cabana Andrade
• Benfeitores da Revista do IHGB 313
• Colaboradores Pareceristas 315
• Normas de publicação 317
Guide for the authors 319
Carta ao Leitor

A ciência que tem salvado o mundo do coronavírus também teve


que se adaptar às mudanças que o planeta sofreu. Nessas idas e vindas da
pandemia, a história, a sociologia, a filosofia e tantas outras ciências hu-
manas e socias foram referências e suporte para discussões e projetos de
um mundo diferente. Percebemos, ainda mais, a importância das ciências
para a nossa convivência.

É na esperança de que as pesquisas nestas áreas possam contribuir


ainda mais para os debates sobre o presente e o futuro da humanidade
que entregamos ao leitor o número 488 da Revista do Instituto Histórico
Geográfico Brasileiro.

A presente edição também é a primeira que assumo como editor da


mais antiga – e importante – revista científica do país. A edição da Revista
do Instituto Histórico Geográfico brasileiro é um desafio e uma honra.
É como colocar um tijolo em uma ponte centenária que liga o passado,
o presente e o futuro; como preencher um diário que vem sendo escrito
desde o século XIX e que tem acompanhado a história do Brasil.

Mantendo a tradição interdisciplinar da revista, publicamos artigos


que refletem o que vem sendo produzido no Brasil. Espero que leitoras e
leitores possam aproveitar os trabalhos publicados e que eles sigam con-
tribuindo para o desenvolvimento da ciência e da pesquisa.

Rio de Janeiro, inverno de 2022.

Gustavo Silveira Siqueira


Editor da Revista do IHGB
O dia seguinte do primeiro Código Civil brasileiro:
vigência e prática judicial no Rio de Janeiro (1917-1927)

17

I – ARTIGOS E ENSAIOS
ARTICLES AND ESSAYS

O DIA SEGUINTE DO PRIMEIRO CÓDIGO CIVIL


BRASILEIRO: VIGÊNCIA E PRÁTICA JUDICIAL NO RIO
DE JANEIRO (1917-1927)1
THE DAY AFTER THE FIRST BRAZILIAN CIVIL CODE:
VALIDITY AND JUDICIAL PRACTICE IN RIO DE JANEIRO
(1917-1927)
Alan Wruck Garcia Rangel2
Gustavo Silveira Siqueira 3

Resumo: Abstract
O artigo busca entender como o Código Civil The article seeks to understand how the Civil
de 1916 foi recepcionado na prática judicial ca- Code of 1916 was received by judicial practice
rioca e pela imprensa local até o ano de 1927, in Rio de Janeiro and by the local press until
contemplando o período dos seus primeiros dez 1927, covering the first decade of its validity.
anos de vigência. Foi realizada pesquisa quanti- First, a quantitative research was carried out
tativa com a finalidade de identificar a frequên- in order to identify the frequency of mentions
cia das menções ao Código nos processos cíveis of the Code in civil lawsuits in the city of Rio
que tramitaram na cidade do Rio de Janeiro de Janeiro between 1917 and 1927. Next,
entre os anos de 1917 e 1927. Em seguida, foi we conducted a qualitative research, using
realizada pesquisa qualitativa, tendo como fonte as source the main newspapers of the time
os principais jornais da época, com o objetivo de in order to analyse how the press described
analisar como a imprensa descrevia as expecta- expectations and criticisms in the application
tivas e as críticas na aplicação do novo diploma of the new code. The research was structured
normativo. Desse modo, a pesquisa foi estru- with the aim of understanding how the Code
turada buscando entender como o Código foi was applied, criticized and debated in the
aplicado, criticado e debatido na então capital capital of the county at the time. We found only
federal. Foi identificada a quase inexistência de sparse references to the 1916 Civil Code in Rio
referências ao Código Civil de 1916 na prática de Janeiro’s judicial practice. The analysis of
judicial carioca. A análise da cobertura da im- the press coverage returned likewise only a few

1 – Os autores agradecem as sugestões e críticas feitas ao trabalho por Mayara de Carva-


lho. Suas observações melhoraram essencialmente o artigo.
2  –  Pós-doutorando na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutor em
História do Direito e das Instituições, Universidade de Estrasburgo – França. Pesquisador
vinculado ao Laboratório Interdisciplinar de História do Direito. E-mail: alan.wruck@
gmail.com.
3 – Professor de História do Direito na Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ) e na Universidade Estácio de Sá (UNESA). Bolsista de Produtividade do CNPq
e Pesquisador da FAPERJ. Coordenador do Laboratório Interdisciplinar de História do

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Alan Wruck Garcia Rangel
Gustavo Silveira Siqueira

prensa da época caminhou no mesmo sentido, results, confirming the resistance and reactions
confirmando resistências e reações por parte de of jurists, politicians and the local population
juristas, políticos e da população local à aplica- to the applicability of the new civil legislation.
bilidade da nova legislação civil.
Palavras-chave: Código Civil de 1916 ; Plura- Keywords: Brazilian Civil Code of 1916, legal
lismo jurídico ; Imprensa. pluralism, Brazilian press.

“Afinal, Dr. ?
Para ser franco, não encontro solução para o seu caso.
É extraordinário! O Dr. affirma-me que tinha toda a ra-
zão, que o meu direito é liquido e, entretanto, não quer ac-
ceitar a minha causa porque ella não tem apoio na lei.
Mas de certo. O seu espanto provém do facto do senhor confun-
dir lei com direito, duas coisas que são diametralmente opostas.
Ah, julguei...
Sim, julgou o que geralmente julgam todos os leigos na
sciencia jurídica, misturam alhos com bugalhos, o direi-
to com a lei, a lei com a justiça e até a nuvem, que tem
uma face apenas, com Juno que tem duas”4.

Introdução
No dia 01 de janeiro de 1917 entrou em vigor o primeiro Código
Civil brasileiro5. Depois de muitos anos em estado de projeto, o texto foi
Direito. Sócio Honorário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). E-mail:
gsique@gmail.com.
4 – Crônica assinada por um advogado com pseudônimo de D. Quixote sobre a ausência
no Código Civil de dispositivos protegendo direitos do inquilino (Correio da manhã,
14.03.1920).
5 – Ainda carece, na historiografia jurídica brasileira, de estudos consistentes sobre a
história da codificação civil, ao contrário de outros países, como Bélgica (VANDERLIN-
DEN, J. Le concept de code en Europe occidentale du XIIIe au XIXe siècle, Essai de défi-
nition, Bruxelles), França (HALPÉRIN, J.-L. L’impossible Code civil, Paris: PUF, 1992),
Chile (BRITO, A. La Codificación Civil en Iberoamérica. Siglos XIX y XX. Santiago:
Editorial Jurídica de Chile, 2000), Suíça (CARONI, P. Gesetz und Gesetzbuch. Beiträge
zu einer Kodifikationsgeschichte, Basel/Genf/München, 2003), Peru (NÚÑEZ, C. Histo-
ria del Derecho Civil Peruano. Siglos XIX y XX. Lima: Pontificia Universidad Católica
del Perú, 2005), Argentina (ANZOÁTEGUI, V. T. La Codificación en la Argentina 1810-
1870. Mentalidad Social e Ideas Jurídicas. 2a ed. Buenos Aires: Histórica Emilio J. Per-
rot, 2008). Essa ausência foi sublinhada por Thiago Reis em artigo publicado no livro do
Centenário do Código Civil de 1916, que reúne outros estudos importantes em torno do
tema (REIS, T. Autonomia do direito privado ou politica codificada? O Código Civil de

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O dia seguinte do primeiro Código Civil brasileiro:
vigência e prática judicial no Rio de Janeiro (1917-1927)

finalmente promulgado6, o que deu novo ânimo aos juristas e operadores


do direito, além de despertar uma sensação de esperança e entusiasmo.
Havia, de fato, uma grande expectativa com o Código e muitos, à época, o
enalteciam, acreditando que ele contribuiria para alcançar a tão esperada
segurança jurídica7.

Até então, o direito civil brasileiro estava pautado no pluralismo


jurídico, fundado primordialmente em um ideal de justiça, que poderia
ser buscado em um conjunto de fontes, sem exclusividade da lei positi-

1916 como projeto republicano. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.


Rio de Janeiro, a. 178, n° 473, jan.-mar., 2017, p. 277). Os estudos mais citados sobre a
codificação ainda são aqueles feitos pelos positivistas do século passado: Orlando Gomes
(Raízes históricas e sociológicas do Código Civil brasileiro. Salvador: Universidade da
Bahia, 1958) e Pontes de Miranda (Fontes e evolução do Direito Civil brasileiro. Rio
de Janeiro: Pimenta de Mello, 1928), sem o rigor da metodologia da história do direito.
Alguns estudos recentes se debruçaram sobre a temática, mas o fazem de modo limitado.
O estudo da historiadora Keila Grinberg situa o tema direito civil na questão da cidadania
e problematiza a dificuldade de se empreender a codificação civil no século XIX (Código
civil e cidadania. 3a ed. Rio de Janeiro: Zahar). Com abordagem da história das ideias, a
tese de Venceslau Costa Filho (Um Código “social” e “impopular”: uma história do pro-
cesso de codificação civil no Brasil (1822-1916). Tese de Doutorado. Universidade Fede-
ral de Pernambuco. Programa de Pós-graduação em Direito, 2013) tenta compreender
as influências liberais européias no “processo de codificação civil no Brasil”. Em outro
estudo, com abordagem da história do pensamento jurídico, Armando Formiga (Aspectos
da codificação civil no século XIX. História do direito e do pensamento jurídico. Curi-
tiba: Juruá, 2012) encara a codificação civil brasileira a partir dos projetos de Teixeira de
Freitas e Coelho Rodrigues, os quais, segundo ele, formam o embrião do Código Civil
de 1916. Giordano Roberto (História do direito civil brasileiro. Ensino e produção bi-
bliográfica nas academias jurídicas do Império. Belo Horizonte: Arraes, 2016) faz um
trabalho de prosopografia dos principais civilistas da Faculdade de Direito de São Paulo
e Recife durante o Império, com dados biográficos, bibliografia e carreira, sem se preocu-
par, entretanto, com o projeto de codificação.
6 – De forma sintética, o tema da codificação pode ser dividido em três linhas: a gênese
da codificação, suas “raízes” históricas, filosóficas e doutrinárias; o processo de codifi-
cação propriamente dito, os trabalhos preparatórios, os embates travados, os interesses e
ideologias envolvidas; e, por fim, a vigência e aplicação do código, a tensão entre norma
e prática. O presente artigo se situa nessa última perspectiva.
7 – A presente pesquisa está em conexão com pesquisa anterior na qual restou compro-
vada diminuição progressiva do uso das Ordenações Filipinas a partir do final do século
XIX (SIQUEIRA, G. O direito civil antes do Código de 1916: a ausência das Ordenações
Filipinas e as expectativas na imprensa e na doutrina nacional. Revista do Instituto His-
tórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, a. 178, n° 473, jan.-mar., 2017, p. 545-
562).

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Alan Wruck Garcia Rangel
Gustavo Silveira Siqueira

va8. Para os juristas e políticos da época, a promulgação do Código Civil


se apresentava como uma “aspiração de todos os povos civilizados”9.
Partindo desses fatos, a pesquisa foi estruturada buscando responder
ao seguinte problema: considerando a primeira década de vigência do
Código Civil de 1916 (1917-1927), como o diploma normativo foi utili-
zado nas Varas Cíveis da cidade do Rio de Janeiro e como foi recepciona-
do, criticado e debatido pela imprensa da época?

Como se verá ao longo desse estudo, contrariando a expectativa vi-


gente, o Código teve muita dificuldade para ser observado por parte da
sociedade e para ser aplicado nos tribunais. Uma pesquisa preliminar, de
abordagem quantitativa, feita com base em processos judiciais tramitados
entre 1917 e 1927 nas 1a, 2a, 3a, 4a e 5a Varas Cíveis da cidade do Rio
de Janeiro10 revelou a quase inexistência de menção aos dispositivos do

8 – A expressão “pluralismo jurídico” deve ser entendida em oposição à concepção mo-
nista, que centra a produção normativa unicamente no Estado, sendo a codificação sua
maior expressão. Além do pluralismo denotar diferentes centros de produção do direito,
também demarca diferentes mecanismos para situações idênticas (VANDERLINDEN, J.
Trente ans de longue marche sur la voie du pluralisme juridique. Cahiers d’Anthropologie
du droit. Les pluralismes juridiques. Paris : éd. Karthala, 2003, p. 28). No Oitocentos
brasileiro, em que o legalismo estatal se apresentava, ideologicamente, desde a Indepen-
dência, como uma solução moderna ao antigo sistema plural de fontes do direito, o tema
aparece ainda imbricado e repleto de paradoxos, sobretudo no âmbito do direito privado
que só terá a primeira codificação em 1916. Se, até lá, algumas leis esparsas aportavam
regulação pontual ao direito privado (Lei de Terras de 1850, Lei do Casamento Civil de
1890), deve-se atentar à permanência de uma “constelação normativa” típica do Antigo
Regime. Para maior aprofundamento teórico no tema, confira: HESPANHA, A. M. Cultu-
ra jurídica européia: Síntese de um milênio. Florianópolis: Fundação Boiteux, reimpr.
2015, p. 148 e s.). Para um primeiro e amplo apontamento teórico sobre a pluralidade
do sistema de fontes no direito brasileiro: FONSECA, R. A jurisprudência e o sistema
das fontes no Brasil: uma visão histórico-jurídica. Revista Seqüência, n° 58, jul., 2009,
p. 23-34. Para a colocação do problema no direito colonial brasileiro: HESPANHA, A.
M. Por que é que existe e em que é que consiste um direito colonial brasileiro. Quaderni
Fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno, n. 35, t. 1, 2006, p. 59-61; e
WEHLING, A., WEHLING, M. J. A questão do direito no Brasil colonial: a dinâmica do
direito colonial e o exercício das funções judiciais. In: NEDER, G. História & direito:
jogos de encontros e transdisciplinariedade. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 77-94. Sobre
o pluralismo e o direito civil antes do Código de 1916: SIQUEIRA, op. cit., 2017.
9 – As palavras são de Pedro Lessa (Gazeta de notícias, 01.01.1917).
10 – A comarca do Rio de Janeiro contava, à época, com cinco varas cíveis, tendo a
pesquisa contemplado a sua totalidade.

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O dia seguinte do primeiro Código Civil brasileiro:
vigência e prática judicial no Rio de Janeiro (1917-1927)

Código Civil, o que não implica dizer que o resultado obtido valeria para
todo território nacional no período indicado11.

Partimos, portanto, da hipótese de que magistrados e demais profis-


sionais do direito atuavam no dia a dia do ofício apoiados numa prática
que não exigia tanta referência à lei. Antes do Código, não era necessário
citar a lei ou utilizá-la para fundamentar uma decisão ou argumentação
jurídica. A criação e aplicação do direito eram pautados em diferentes
fontes jurídicas para produzir decisões ancoradas pela equidade e fazer
justiça12. O princípio da legalidade, muito embora apontado como prin-
cipal norte aos jurisconsultos da época, não estava ainda no centro das
fontes do direito. Buscamos verificar se a lógica anterior ao Código Civil
de 1916 foi mantida, na prática jurídica do Distrito Federal, durante a
primeira década da vigência do texto legal.

A pesquisa quantitativa foi completada por outra, de abordagem


qualitativa, apoiada em dados coletados nos três principais periódicos da
capital federal: Correio da manhã, O Paiz e Gazeta de notícias. Nos jor-
nais, pudemos identificar, dentro do recorte temporal proposto, diferentes
reações e posicionamentos que foram interpretados e alinhados com a
problemática geral da pesquisa.

11 – Arquivo Nacional do Rio de janeiro, 1a Vara Cível do RJ (fundo CG), 2a Vara Cível
do RJ (fundo CH), 3a Vara Cível do RJ (fundo CI), 4a Vara Cível do RJ (fundo CJ), 5a Vara
Cível do RJ (fundo CK).
12 – Sobre a consciência do juiz na história do direito, CARBASSE, J.; DEPAM-
BOUR-TARRIDE, L. La conscience du juge dans la tradition juridique européenne.
Paris : Presses Universitaires de France, 1999. Existe uma tradução para o português: A
consciência do juiz na tradição europeia. Belo Horizonte : Livraria tempus, 2010. Sobre o
arbítrio dos juízes (arbitrium iudicis), cujo fundamento jurídico remonta a um fragmento
do Digesto (D., 48, 19, 13), atribuído a Ulpiano, alguns estudos já foram feitos para o
direito europeu, com enfoque no direito penal: ver o estudo clássico de SCHNAPPER,
B. Les peines arbitraires du XIIIe au XVIIIe siècle (doctrines savantes et usages français),
Tijdschrift voor Rechtsgeschiedenis, Revue d’histoire du droit (Bruxelles), t. 41, 1973, p.
237-277 e, mais recente, aquele de GAU-CABÉE, C. Arbitrium judicis. Jalons pour une
histoire du principe de la légalité des peines. In: MASCALA, C. (org.), A propos de la
sanction. Toulouse: Presses de l’Université de Toulouse 1 Capitole, 2007, p. 39-61. Artigo
na internet, consultado em 10 de junho de 2022: https://books.openedition.org/putc/1781

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Gustavo Silveira Siqueira

Identificou-se, assim, logo nos primeiros anos de vigência, uma fase


de encantamento, exaltação e grande expectativa com o Código, que apa-
recia como uma panaceia a todos os problemas do antigo sistema de direi-
to civil. Rapidamente, o encantamento deu lugar à desilusão e à crítica de
muitos dos seus dispositivos. As “falhas do código civil” passaram a ser
tema da ordem do dia, estando presente nos debates jurídicos nos jornais,
no Parlamento e nas associações civis. Essas falhas poderiam significar
lacuna na regulamentação em determinado tema ou positivação em senti-
do contrário a alguma prática social.

Os resultados da pesquisa serão apresentados, de modo sintético,


em três tópicos. No primeiro, analisaremos as expectativas dos juristas
e políticos com a promulgação do Código Civil (1). Em seguida, abor-
daremos as críticas e os debates travados entre os juristas, bem como as
diferentes demandas de reforma no Congresso Nacional (2). Finalmente,
examinaremos o Código na vida cotidiana, seus diversos usos e sua difícil
aplicação nos litígios que chegavam aos tribunais (3). Antes, entretanto,
convém apresentar os resultados da pesquisa quantitativa que serviu de
bússola ao trabalho de coleta e análise das fontes jornalísticas.

1. O Código Civil das Varas Cíveis do Rio de Janeiro


Como dito acima, a pesquisa esteve apoiada em análise dos pro-
cessos judiciais tramitados nas 1a, 2a, 3a, 4a e 5a Varas Cíveis do Rio de
Janeiro, entre os anos 1917 e 1927, conservados no Arquivo Nacional do
Rio de Janeiro. Uma equipe composta por quatro pesquisadores analisou
os processos judiciais com o objetivo de encontrar referências ao Código
Civil. Foram fixados alguns critérios para escolha da documentação exa-
minada: a princípio, analisados apenas os litígios estabelecidos entre par-
ticulares, sejam pessoas físicas ou jurídicas13.

13 – Descartou-se, assim, os processos envolvendo a Fazenda Pública (municipal ou


nacional), todas ações de execução fiscal. Esses processos se iniciavam por lavratura de
inquérito pelo fiscal da fazenda ao visitar o estabelecimento comercial ou residencial e
constatar a inadimplência do usuário de algum serviço público, na maioria dos casos
fornecimento de água. Muito embora esses processos tenham aspecto semelhante ao
rito seguido pela via do administrativo, iniciado com a autuação do fiscal, a cobrança da

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O dia seguinte do primeiro Código Civil brasileiro:
vigência e prática judicial no Rio de Janeiro (1917-1927)

Assim, em um universo de 184 processos tramitados nas varas cíveis


selecionadas, 37 foram descartados porque tinham o Estado como parte,
o que reduziu o corpus da pesquisa para 147 processos. A tabela abaixo
apresenta de modo detalhado o critério adotado:
Vara Cível N° de processos registrados N° de processos envol- N° de processos
na base judiciária vendo a Fazenda Pública selecionados
1ª Vara Cível 70 25 45
2ª Vara Cível 22 4 18
3ª Vara Cível 50 5 45
4ª Vara Cível 26 1 25
5ª Vara Cível 16 2 14
TOTAL 184 37 147

Tabela 1 – Critério para construção da amostra.

Um segundo critério para definição da amostra foi a localização e


condição dos autos. Desconsiderando os documentos perdidos, extravia-
dos, deteriorados ou com fungos, a equipe de pesquisadores teve acesso
a 116 processos. A tabela abaixo traça de modo descritivo a composição
da amostra trabalhada:
Pesquisador N° de documentos N° de documentos não N° de documentos exa-
agendados localizados minados
Pesquisador 1 40 9 31
Pesquisador 2 54 19 36
Pesquisador 3 17 1 16
Pesquisador 4 36 4 33
TOTAL 147 33 116

Tabela 2 – Dados possíveis a partir da amostra.

Analisamos o universo de 116 processos. Consideramos que o


Código Civil foi citado se, em qualquer das peças que compõem os autos,
houvesse alguma referência a dispositivo do Código para fundamentar a
argumentação jurídica.

dívida, entretanto, seguia a via judicial, com o contraditório, provas e sentença. Podería-
mos aqui questionar o papel da Vara Cível nessas lides de natureza pública dentro de um
contexto que parece desconhecer competência especializada para tratar a matéria.

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Percebemos que, na primeira década de vigência, havia escassez de


referências ao Código. Neste período, seus dispositivos apareceram em
apenas 17 processos, o que representa 19% da amostra.

Constatamos que a maioria dos argumentos faziam referência a ou-


tras fontes do Direito, mormente à doutrina, à jurisprudência e a leis an-
tigas (portuguesas e do Império) ou seguiam simplesmente a práxis do
tribunal, já consolidada há mais de um século.

Poderíamos pensar que a ausência de referências ao Código Civil na


prática judicial tinha origem na falta de hábito de se basear em uma só
fonte para buscar soluções jurídicas.

Todavia, quando colocado em perspectiva, a linha evolutiva revela


crescimento da referência ao Código Civil nos primeiros três anos de sua
vigência, alcançando, em 1920, o ponto máximo da amostra, com quatro
menções anuais. Nos anos seguintes a linha tangencia para baixo, com
queda vertiginosa até 1922, ano em que não se verifica qualquer referên-
cia. Há, em seguida, uma leve progressão, com menção em apenas um
processo em 1923 e em dois nos anos de 1926 e 1927.

O exame global dos números indica que não se trata de adaptação


ao novo diploma legal. Os dados demonstram, um período de euforia nos
três primeiros anos após a promulgação, seguido de uma fase de dimi-
nuição que se mantém, no último período da amostra, com referência ao
Código em apenas dois processos.

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O dia seguinte do primeiro Código Civil brasileiro:
vigência e prática judicial no Rio de Janeiro (1917-1927)

Tabela 3 - Evolução quantitativa da aplicação.

Também foram analisados os temas sobre os quais os dispositivos do


Código Civil foram aplicados. Mais à frente, esses dados serão confron-
tados com aqueles coletados nos jornais, a fim de verificar as conexões
entre uma e outra fonte.

É importante ressaltar que a menção ao Código não implica na dedu-


ção de que a questão de fundo esteve fundamentada com base no conte-
údo dos seus dispositivos. Em alguns processos – como no caso da carta
de arrematação – o Código Civil serve a questões de mera formalidade
processual, a exemplo da validade do mandato do advogado. Em outros,
o Código deixou de ser aplicado devido a promulgação de lei especial,
como foi o caso do decreto n° 4.403 de 22 de dezembro de 1921, que re-
gulava a locação de prédios urbanos. A tabela abaixo indica os temas que
tiveram citação do Código Civil nas varas cíveis.
Tema N° de vezes evocado
Locação de prédios urbanos 6
Locação de serviços 2
Contratos em geral 2
Falência 1

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Inventário 2
Emancipação 2
Cobrança honorários advocatícios 1
Carta de arrematação 1

Tabela 4 – Temas evocados nos processos.

O que chama atenção nessa tabela é a abundância de referência ao


código nos contratos de locação de prédios urbanos, um tema bastante
sensível à época, conforme será examinado com detalhe mais adiante.

Outro ponto a ser ressaltado é a inexistência de temas ligados ao


direito de família, bastante alterado pela nova legislação civil, o que pode
representar resistência de antigos paradigmas. Mesmo no caso da eman-
cipação, que não teve grande inovação, já que desde 1831 a maioridade
se atingia aos 21 anos, encontramos um processo que insistia em aplicar
a legislação anterior ao Código14.

Uma última consideração: uma parte que se conhece hoje como “di-
reito do trabalho” era tratado como locação de serviços, regulado na épo-
ca pelo Código Civil, assim como a locação de serviços agrícolas.

2. O encantamento com o Código Civil de 1916


Houve, de fato, verdadeiro encantamento com o Código, qualificado
de “monumento legislativo”15, que pode ser aferido nas opiniões publica-
das nos jornais e pelas diferentes homenagens feitas aos envolvidos no
projeto de codificação.

Em mensagem dirigida ao poder legislativo local, o presidente do


Estado do Paraná, Affonso Alves de Camargo, não mediu palavras para

14 – Nas três ações de emancipação encontradas, se verifica o uso do Código Civil em


duas delas. Na outra, o juiz emprega a expressão “supplemento de idade”, própria das
Ordenações Filipinas, o que revela o apego da prática ao antigo sistema de direito pri-
vado (1a Vara Cível do Distrito Federal, 8 de julho de 1925, Arquivo Nacional do Rio de
Janeiro, fundo CG, 1925, caixa 2003, galeria A).
15 – As palavras são do presidente Wenceslau Braz em discurso proferido na ocasião
de um banquete oferecido no palácio Campos Elyseos de São Paulo (Correio da manhã,
22.05.1918).

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O dia seguinte do primeiro Código Civil brasileiro:
vigência e prática judicial no Rio de Janeiro (1917-1927)

elogiar o Código Civil: “...monumento jurídico que enaltece a nossa cul-


tura de povo civilizado, veio libertar-nos de leis antiquadas, que não mais
estavam de acordo com as nossas necessidades e progresso...”16.

Wenceslau Braz, presidente da República à época, teve seu nome


associado ao feito, e recebeu diversos telegramas, um deles vindo de
magistrados e advogados de Petrópolis, elogiando o “grandioso monu-
mento da cultura jurídica do paiz”17. Já a “Associação dos Empregados
no Commercio” preferiu prestigiar o Instituto de Advogados do Brasil
(IAB), a “douta corporação representante nossa cultura jurídica”, onde a
legislação foi por anos engendrada18.

Na manhã do dia seguinte à promulgação, uma comissão formada


pelos diretores do IAB compareceu, em cerimônia fúnebre, ao cemitério
de Maruhy, em Niterói, para depositar flores no mausoléu n° 411 onde
repousa os restos mortais de Teixeira de Freitas considerado, a essa altura,
o pai fundador da legislação civil brasileira19.

Os elogios vieram também do exterior. Juan Batista Lavalle, jurista


peruano, comparou o código brasileiro ao Código Civil francês de 1804,
ao qualificá-lo de “obra mestra de codificação civil, digna do maior elogio
e do maior estudo”20. Para o jurista peruano, o código brasileiro logrou
sintetizar doutrina e prática jurídica, equiparando-o à “mais duradoura
gloria da codificação napoleônica”21.

A história da codificação civil, ao menos aquela contada logo nos


primeiros anos após a promulgação, colocava dois homens como os
principais responsáveis pelo debate da obra: Clovis Bevilacqua e Ruy
Barbosa22. As diversas Comissões pelas quais o projeto havia passado
16 – Gazeta de notícias, 11.02.1917.
17 – Correio da manhã, 02.01.1917.
18 – Correio da manhã, 04.01.1917.
19 – O Paiz, 02.01.1917. Mesma notícia em Correio da manhã, 02.01.1917.
20 – Gazeta de notícias, 16.07.1917.
21 – Idem.
22 – Pela leitura dos jornais da época, Rui Barbosa aparece como o artífice da revisão
ortográfica e do aprimoramento da linguagem jurídica do Código. A famosa polêmica
gramatical com Ernesto Carneiro reforçou essa concepção (ARRUDA, M. A polêmica

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eram apontadas como enfeites à “estrutura do monumento erguido por


mãos de mestres”23. Acusava-se, inclusive, o Congresso Nacional de ter
mutilado o projeto inicial, muito embora tenha apontado melhoramentos
em certos aspectos24.

Rodrigo Octavio, à época presidente do IAB, afirmava, em discurso,


que a vigência do código marcava “o início de uma nova era”, e que “todo
o complexo aparelho das relações civis de todo um povo começa[va] a
se movimentar sob a proteção de novos princípios”25. Reconhecia, entre-
tanto, que o Código não havia aportado “reformas radicais, nem modifi-
cações profundas”26. Pontuou que a lei positiva não deveria “dar saltos”
se quisesse ser cumprida e “atender às necessidades sociais”, já que “o
sentimento da solidariedade na família, a garantia da atividade individu-
al, o respeito aos direitos da propriedade e as estipulações dos contratos”
foram estimulados sob a égide das velhas Ordenações27. Estimava, em
tom bastante conciliador, que os princípios inaugurados com o Código
Civil não seriam “radicalmente diversos de ontem”, mas foram apenas
“sistematicamente... completados, expurgados de velhas... leis obsoletas”
e adaptados ao “espírito de nosso tempo”28. E chegava à seguinte conclu-

gramatical entre Rui Barbosa e Ernesto Carneiro Ribeiro sobre a redação do Projeto do
Código Civil. Dissertação de Mestrado. Programa de Estudos Pós-Graduados em Lín-
gua Portuguesa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2010). Além do mais,
como sugere um estudo, o presidente Campos Sales e seu ministro Epitácio Pessoa eram
inimigos políticos de Rui, o que poderia explicar sua participação restrita a aspectos gra-
maticais nos trabalhos preparatórios (LYNCH, C. República, evolucionismo e Código
Civil: a presidência Campos Sales e o projeto Clóvis Beviláqua. RIHGB, Rio de Janeiro,
a. 178 (473), jan.-mar., 2017, p. 157-180). Na década de 1960, o jurista San Tiago Dantas
encontrou um parecer, sob a forma de manuscrito, sobre a Parte Geral do Código Civil, no
arquivo da Casa de Rui Barbosa, o que pode colocar em questão a ideia de que sua par-
ticipação na elaboração do Código tenha se limitado à revisões gramaticais (BARBOSA,
R. Obras completas, vol. XXXII (1905), tomo III: Código Civil. Parecer Jurídico. Rio de
Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, Prefácio de San Tiago Dantas, 1968 p. XIV).
23 – O Paiz, 15.04.1924.
24 – O Paiz, 02.12.1926.
25 – O Paiz, 02.01.1917.
26 – Idem.
27 – Idem.
28 – Idem.

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O dia seguinte do primeiro Código Civil brasileiro:
vigência e prática judicial no Rio de Janeiro (1917-1927)

são: a “intervenção em nossa vida jurídica do Código Civil corresponde a


[uma] definitiva religião”29.

Alguns mais entusiasmados exclamaram que o Código Civil havia


promovido uma verdadeira “renascença jurídica”, como foi o caso do jor-
nalista português Alexandre de Albuquerque, em artigo publicado no jor-
nal O Paiz30. Escrevendo nos anos finais da Primeira Guerra, ele entendia
que o “extraordinário movimento jurídico em volta do Código Civil” seria
o resultado de uma coincidência com a “nova aurora do espiritualismo”31.

Após o fim da guerra, o autor lusitano cravava, em tom premonitó-


rio, que o materialismo dos últimos cinquenta anos, fundado no “culto
da força”, cederia lugar ao “culto do direito”, ao fundar uma “sociedade
essencialmente jurídica”32. A codificação brasileira estaria, portanto, em
“harmonia com a grande transformação social” que vem sendo elaborada
na Europa.

Embalado nesse espírito renovador, a promulgação do Código te-


ria, segundo Albuquerque, impulsionado debates, comentários e traba-
lhos monográficos. Ele apontava, como “admirável sintoma de renova-
ção nacional”, a obra de vinte volumes organizada pelo jurista Paulo de
Lacerda33. No Brasil, concluía ele, a edificação do Código provocaria
o renascimento da cultura jurídica, bem diferente do que ocorreu em
Portugal com a promulgação do Código Seabra de 1867 que “matou os
jurisconsultos”, colocando a literatura jurídica daquele país em plena de-
cadência34.

Dessa fase de encantamento se seguiu rapidamente uma onda de


críticas acarretadas pelas diversas falhas encontradas no Código, o que
provocou, em seguida, a sua primeira reforma.

29 – Idem.
30 – O Paiz, 24.04.1917.
31 – Idem.
32 – Idem.
33 – Idem.
34 – Idem.

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3. Crítica e reforma do Código Civil


Depois da fase de deslumbre e encantamento, seguiu-se um perío-
do de críticas causada pelas imprecisões, lacunas e “falhas do Código
Civil”35. Os questionamentos ao Código não tardaram e a necessidade de
reforma se um argumento comum.

Com pouco mais de um ano de vigência, em junho de 1918, uma co-


missão foi formada na Câmara dos deputados para elaborar um projeto de
reforma, sob relatoria de Epitácio Pessoa36. A favor da reforma, o relator
concluía que, apesar do cuidado com que foi redigido, o Código “ainda
ressentia de numerosos defeitos”: em alguns pontos a redação deturpava
o “pensamento do Código”; em outros eram “evidentes as contradições,
as demasias ou as lacunas”37.

No Senado, onde o projeto foi remetido à votação em junho de


191838, João Luiz Alves pensava diferente e considerava a proposta de
reforma como “inconveniente, precipitada e inopportuna”39, a pretexto de
corrigir erros ortográficos, se pretendia fazer “verdadeira reforma subs-
tancial” de muitos dispositivos40.

Alves e Pessoa travaram verdadeiro embate durante as discussões e


alguns trechos dos seus discursos podem ser lidos nos jornais41. No entan-
to, em 27 de julho de 1918, Alves desistiu de fazer oposição e retirou di-
versas emendas que havia proposto, ao considerar que não poderia “estar
em causa pessoas e vaidades, senão ideas e pontos de vista legislativos”,
deixando, assim, “o campo livre à autoridade do sr. Epitácio pessoa”,
com o alerta de que se a reforma passasse seria verdadeira “vitória de
Pyrrho”42.
35 – Gazeta de notícias, 08.10. 1920.
36 – Correio da manhã, 20.06.1918.
37 – Idem.
38 – Após ter sido aprovado na Câmara com 40 correções, o projeto foi remetido ao
Senado (Idem.).
39 – Correio da manhã, 14.07.1918.
40 – Correio da manhã, 13.07.1918.
41 – A respeito, ver Correio da manhã, 13, 14, 16, 23 e 27 de julho de 1918.
42 – Correio da manhã, 27.07.1918.

30 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):17-56, jan./abr. 2022.


O dia seguinte do primeiro Código Civil brasileiro:
vigência e prática judicial no Rio de Janeiro (1917-1927)

Em 31 de julho daquele ano, o projeto de reforma foi aprovado no


Senado com inúmeras correções, mas sem as emendas de Pessoa que,
a exemplo do colega, também retirou aquelas que havia proposto43. O
projeto foi devolvido à Câmara que reiniciou o debate das emendas feitas
no Senado44. Em 16 de janeiro de 1919, o presidente da República san-
cionou as “resoluções legislativas que faz diversas correções no Código
Civil e manda[va] fazer do Código corrigido uma edição de cinco mil
exemplares”45.

A partir de 1920, as críticas se tornam mais contundentes. Devido


às diversas emendas feitas ao texto original, Carlos Maximiliano o
considerava uma “colcha de retalhos”46. Sua imperfeição era a todo o
tempo ressaltada e politizada, atrelada à imagem do presidente da
República, a ponto de Borges de Medeiros o denominar, ironicamente,
“Código Wenceslao”47. Com “tantas investidas, ...tantos remendos”, dizia
Medeiros, retirou-se a autonomia da legislação civil e comprovou-se que
a “obra não foi maduramente refletida [...]. Código que se revoga, que se
altera com tanta frequência e facilidade, não é código, é lei imperfeita,
legislação apressada, suscetível de não infundir grande confiança”48.

Neste mesmo sentido, o futuro ministro do Supremo Tribunal


Federal, Álvaro Goulart de Oliveira, expressava, ainda como jornalista
do Correio da manhã, um sentimento de desencantamento a propósito
das reformas feitas ao código: “infelizmente a decepção [e a desespe-
rança] foram grandes... dos que acreditavam nos bons efeitos da urgente
reforma”, e lamentava, em seguida, o fato de “deixar à jurisprudência o
mister de criar a lei, para suprir-lhe as deficiências” 49.

Formou-se, entre os juristas, posicionamentos divergentes acerca da


qualidade do Código. Um debate digno de nota, levado a cabo por três
43 – Correio da manhã, 31.07.1918. Igualmente em O Paiz, 23.08.1918.
44 – Correio da manhã, 03.09.1918.
45 – Correio da manhã, 16.01.1919.
46 – O Paiz, 18.05.1920, p. 03.
47 – Gazeta de notícias, 31.07.1920.
48 – O Paiz, 18.05.1920, p. 03.
49 – Correio da manhã, 08.06.1920.

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conhecidos juristas à época - Pontes de Miranda, Clovis Bevilacqua e


Helvécio de Gusmão, todos membros do IAB - ocupou as páginas dos
jornais.

Tudo começou em abril de 1926, com Pontes de Miranda, à época


juiz da Vara de Órfãos, proferindo uma série de palestras sobre as falhas
do Código Civil50. Na reunião do dia 27 de maio daquele ano, os assentos
do IAB ficaram lotados para assistir a palestra de Pontes de Miranda. O
próprio Bevilacqua havia sido convidado a comparecer51.

Bevilacqua não foi à palestra, mas enviou uma carta que foi lida
por Sá Freire, à época presidente do IAB, na qual afirmava que parecia
exagerada a crítica do colega ao dizer que o Código Civil continha “erros
crassos”52. Asseverava, ainda,
que os mais eminentes juristas collaboraram nesse trabalho, auxilia-
dos pelas corporações scientificas, salientando o orador o modo por
que foi, além disso, elaborado no Congresso. Enalteceu a colaboração
de Ruy Barbosa, e diz que tratando embora apenas da sua redação, não
deixaria ele passar erros crassos53.

Em junho daquele mesmo ano de 1926, o jurista Helvécio de Gusmão


rechaçava, em dois artigos publicados no Gazeta de notícias, as observa-
ções de Pontes de Miranda a propósito do art. 1455 do Código Civil que
versava sobre contrato de seguro54.

Em 12 de junho, Pontes de Miranda respondeu às objeções de


Gusmão, afirmando que suas colocações foram retiradas de observações
do próprio Bevilacqua a propósito da redação do referido artigo, que
apontava “dois meios de emenda-lo” e que apenas “esses meios... pode-
riam ser atacados”55.

50 – As palestras foram reportadas no Gazeta de notícias, na seção intitulada “gazeta


jurídica”, dos dias 29 e 30 de abril, 25 e 28 de maio e 12 de junho de 1926.
51 – Gazeta de notícias, 28.05.1926. Igualmente em Correio da manhã, 28.05.1926.
52 – O Paiz, 23.05.1926.
53 – Idem.
54 – Gazeta de notícias, 02 e 03 de junho de 1926.
55 – Gazeta de notícias, 12.06.1926.

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O dia seguinte do primeiro Código Civil brasileiro:
vigência e prática judicial no Rio de Janeiro (1917-1927)

Em réplica, Gusmão escreveu que Pontes de Miranda tinha uma


“fantasiosa erudição”, uma “egolatria caricata” e, após discorrer sobre
gramáticos célebres da língua portuguesa, sublinhou, um erro gramatical
de seu interlocutor56.

Ainda em julho de 1926, se publicava nos jornais a “necessida-


de inadiável de se proceder a uma revisão no texto do Código Civil”57.
Passou-se até mesmo a elogiar o antigo direito civil e afirmar que o Código
promoveu verdadeira “involução jurídica” na doutrina e no direito po-
sitivo58. Até a parte gramatical passou a ser objeto de questionamento
quando comparada com os códigos do Império: “quanto à redacção, nem
é bom falar, pois nenhuma das nossas leis mais modernas se recomenda
pela linguagem clara, simples, absolutamente incisiva, apanágio do nosso
código criminal de 1830, do código comercial de 1850 e do precioso re-
gulamento 787 de imperecível memoria”59.

Como se vê, um frenesi por reformas havia tomado conta da opinião


pública, do governo60 e de parte do Congresso Nacional. Na tentativa de
estancar a onda reformista, Afonso Arinos de Mello Franco, relator do
projeto de Código Civil, criou a teoria de que “só depois de uma experi-
ência de 10 anos, pelo menos, se deve alterar o código”61. Nenhum outro
projeto de reforma geral teve lugar depois daquele de 191962.

56 – Gazeta de notícias, 17.06.1926.


57 – Gazeta de notícias, 15.07.1926.
58 – Idem.
59 – Idem.
60 – Em julho de 1919, o ministro da justiça Urbano dos Santos interpelava Clóvis Be-
vilácqua a fazer “regulações e complementações” de diversos pontos - bem de família,
reintegração de posse sem anuência do esbulhador, enfiteuse, hipoteca, etc. -, que fa-
ziam divergência nos tribunais e que mereciam de ser revistos na lei (Correio da manhã,
12.07.1919. Igualmente em O Paiz, 12.07.1919).
61 – O Paiz, 26.11.1920.
62 – Em 1925, o deputado fluminense Júlio dos Santos subia à tribuna para discursar
que a Comissão de Constituição e Justiça deveria ser “ouvida sobre a conveniência de ser
feita uma revisão do Código Civil da República, a fim de se ampliarem alguns de seus
dispositivos e de se harmonizarem outros” (O Paiz, 10.12.1925).

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No entanto, a teoria não conseguiu que se evitasse alterações pon-


tuais ao texto do Código, como foi o caso da Lei do Inquilinato de 1921,
que modificou dispositivos concernentes ao contrato de locação.

No início do século, o projeto de reforma sanitária e urbana do Rio


de Janeiro, visando “civilizar” a cidade nos moldes da Paris haussman-
niana, levou à demolição de estalagens, cortiços, casas de cômodo, casa-
rões e extensas edificações que abrigavam a população mais pobre.

Em 1914, com o início da Primeira Guerra, deflagrou-se uma crise


no setor da construção civil e o “parque imobiliário” da cidade não con-
seguiu acompanhar o crescimento acelerado da população. Rapidamente,
os imóveis ficaram concentrados nas mãos de um número pequeno de
pessoas abastadas que passaram a ditar as condições do contrato de loca-
ções e o preço dos aluguéis.

O Código Civil, elaborado segundo os princípios do individualismo


e da livre iniciativa, favorecia ao desequilíbrio dos contratos de locação,
que não eram mais regidos pelo acordo de vontades, mas com cláusu-
las e condições impostas por apenas uma das partes. Muitos proprietá-
rios majoravam os valores dos aluguéis “sem atender a razoes praticas e
moraes”63.

Além disto, o Código dava ao locador o direito de arbitrar, segun-


do seu livre alvitre, aluguel à título de multa ao locatário notificado que
não deixasse o imóvel em trinta dias64. O número de despejos aumentou
vertiginosamente. Cenas de pessoas sendo retiradas dos prédios locados
à força, com seus móveis e pertences atirados à rua, passaram a ser cada
vez mais frequentes. A questão da moradia urbana estava no centro dos
debates à época e isto se verifica tanto nos jornais, como nos processos
judiciais compulsados, com a ação de despejo liderando a amostra (ver
tabela 4).

63 – Gazeta de notícias, 22.01.1921.


64 – Código Civil de 1916, “Art. 1.196. Se, notificado, o locatário não restituir a coisa,
pagará, enquanto a tiver em seu poder, o aluguer que o locador arbitrar e responderá pelo
dano, que ela venha a sofrer, embora proveniente de caso fortuito”.

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vigência e prática judicial no Rio de Janeiro (1917-1927)

O Gazeta de notícias publicou uma extensa matéria sobre o assunto


com o título “O direito dos inquilinos”65. No texto, o jornal defendia os
direitos daqueles que viviam de aluguel e condenava os abusos dos pro-
prietários protegidos pelo Código Civil.
Armados com a nova lei, os proprietários sentiram que podiam escor-
char livremente os inquilinos: bastava uma notificação do augmento
do aluguel, augmento que ficava ao arbítrio deles, e findos os trinta
dias, com um requerimento rápido e fácil, o inquilino era despejado66.

O jornal lamentava, ainda, que esse abuso tenha nascido do “próprio


Código Civil”, uma legislação protetora de “ricaços imprudentes” e “capa
de agiotas”, que permitia “lançar mão de todos os recursos para extorquir
dinheiro do povo”67.

Com o Código, não era mais necessário contratar “advogados, pagar


custas, aguardar prazos, esperar intimações”, bastava contratar “capan-
gas” e dar-lhes a “incumbência de atirar à rua os trastes dos inquilinos,
de destelhar as casas” e os expor a um “vexame doloroso e aos prejuízos
decorrentes dessa violência sem par”, isto tudo com o aval de delegados
e comissários de polícia68. O periódico carioca terminava a matéria com
uma assertiva lapidar ao colocar em questão o individualismo do Código
Civil:
A liberdade, a tão apregoada liberdade de negociar, tem um limite, e
esse limite está escandalosamente sendo excedido pelos proprietários,
em detrimento daqueles que são forçados a habitar casas de aluguel69.

Em novembro de 1920, o Deputado Nicanor do Nascimento apre-


sentou projeto de lei visando reformar a abordagem do tema pelo Código
Civil70. Remetido ao Senado, a Comissão de Constituição e Justiça exa-

65 – Gazeta de notícias, 22.01.1921. O jornal Correio da manhã de novembro de 1919


trazia uma matéria com o seguinte título: “O Código Civil manteve o instituto do des-
pejo?” (Correio da manhã, 30.11.1919).
66 – Gazeta de notícias, 22.01.1921.
67 – Idem.
68 – Idem.
69 – Idem.
70 – O Paiz, 26.11.1920.

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minou o PL com estudo comparativo das legislações de diversos países71


e promoveu diversas alterações em seu texto72.

Em outubro de 1921, o projeto foi devolvido à Câmara para ser de-


batido antes de aprovada a redação final da lei73. Em 22 de dezembro de
1921, entrava em vigor, em caráter de emergência, o decreto n° 4.403 (Lei
do Inquilinato), que revogava disposições do Código Civil e limitava a
liberdade de contratação com regras precisas sobre tempo de duração dos
contratos, valor dos aluguéis e casos de despejo74.

Seis outras leis restringiram o alcance da Lei do Inquilinato75. Em


janeiro de 1927, nova lei restabeleceria a aplicação do Código Civil nos
contratos de locação em todo território nacional, com exceção do Distrito
federal76.

O Código Civil também deixou em aberto a questão dos registros


públicos de pessoas físicas e jurídicas e de imóveis. No mesmo mês
do início da vigência do Código, em janeiro de 1917, o presidente da
República precisou regulamentar às pressas, por decreto, os “registros
civis” criados pelo código, porque “não tiveram a necessária regulamen-
tação pelo Congresso”77.

O Código Civil trazia, igualmente, uma inovação na matéria: a partir


de agora, a inscrição e averbação das sentenças de interdição, ausência e
emancipação caberia aos escrivães do registro civil. Antes, os registros
eram feitos nas Pretorias Cíveis do Distrito Federal e, nos Estados, peran-

71 – Correio da manhã, 14.09.1921.


72 – Correio da manhã, 22 e 23 de setembro de 1921.
73 – Correio da manhã, 22.10.1921.
74 – Correio d manhã, 26.12.1921.
75 – ANDRADE, L. A. As Leis do Inquilinato: evolução e projeto para sua consolida-
ção. Revista de Direito Ministério Público do Estado da Guanabara, Rio de Janeiro, nº
18, maio/dez., 1973, p. 5.
76 – Decreto n° 5.177 de 17 de janeiro de 1927, “Art. 1º A lei n. 4.403, de 22 de dezem-
bro de 1921, continuará em vigor sómente no Districto Federal, ficando restabelecidas em
todos os demais logares do paiz as disposições do Codigo Civil, modificadas por essa lei”.
77 – Correio da manhã, 02.01.1917.

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te os juízes de paz. Finalmente, com o decreto n° 4.827 de 1924, a matéria


teve regulação definitiva, revogando o decreto provisório de 191778.

Outras propostas de reforma do Código Civil foram apresentadas,


mas não tiveram êxito. A proibição ao casamento entre parentes colaterais
até o terceiro grau, prevista pelo código (art. 183, IV), provocou enorme
debate, ocupando por meses as páginas dos jornais, e envolveu diversos
setores da sociedade: associações religiosas – Igreja Católica e a Aliança
Evangélica Nacional – e civis - sociedades médicas, faculdades de direito
e institutos de advogados. Essa proibição, que alcançava o casamento
entre tios e sobrinhos, não existia no antigo sistema civil – não consta-
va, por exemplo, nas Ordenações Filipinas, e nem no decreto n° 181 de
189079. Não constava, também, no projeto original de Clovis Bevilacqua.
Tratava-se de uma inovação feita pela comissão revisora do Senado.

A favor da alteração, a Igreja se dizia representante do “governo ca-


tólico do Brasil” e pressionava o Congresso Nacional para elaborar um
projeto de emenda ao código80. O cardeal arcebispo Joaquim Arcoverde
de Albuquerque Cavalcanti reconhecia a existência do “impedimento di-
rimente do 2° grau” como dogma oficial da Igreja, mas admitia a possibi-
lidade de casamento entre tios e sobrinhos desde que houvesse “razoes ou
motivos graves”, que para ele eram muitos, como a “paz e felicidade das
famílias” e o “bem estar da sociedade” 81.

Por outro lado, a Aliança Evangélica Nacional era contrária ao pro-


jeto de reforma, ao alegar que, em face da doutrina religiosa, esses matri-
mônios “ferem a legislação divina”. Em seu argumento, citava passagens
bíblicas (Lev. 18, Vers. 12 a 14; 20, Vers. 19) 82. Lembrava, ainda, que o

78 – O Paiz, 12.01.1917.


79 – O artigo 7, §1 desse decreto de 1890 previa impedimento ao casamento entre pa-
rentes colaterais somente até o segundo grau.
80 – O Reverendo Monsenhor Fernando Rangel de Mello compareceu pessoalmente ao
Congresso Nacional para entregar uma mensagem aos “representantes do povo” sobre o
artigo que veda o casamento entre tios e sobrinhos (O Paiz, 24.05.1919).
81 – Correio da manhã, 24.05.1919.
82 – Correio da manhã, 22.09.1919.

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próprio Concilio de Trento (Atas, Sess. XXIV, Cap. V) preceituava impe-


dimentos ao casamento entre tios e sobrinhos.

A sociedade médica posicionou-se contra a reforma, partindo de ar-


gumentos baseados na eugenia, ao afirmar que esses casamentos causa-
vam “degenerescencia da prole, herança de moléstias, tara duplicada de
vícios orgânicos, mudez e surdes, cretinismo, sífilis e até... hábitos morais
e sociais devidos ao sangue e à insuficiência mesológica” 83. Igualmente,
o Instituto de Advogados de São Paulo se posicionou pela manutenção do
dispositivo no Código Civil proibindo essas uniões84.

Em abril de 1919, o Correio da manhã publicou matéria denuncian-


do que a movimentação legislativa para flexibilizar as proibições do ca-
samento entre parentes tinha motivação pessoal: um deputado paulista
queria promover o casamento do filho (milionário) com a sobrinha (tam-
bém milionária)85.

O jornal acusava, ainda, a falta de escrúpulos da Igreja que renuncia-


va aos seus dogmas tradicionais para favorecer interesses de “magnatas e
argentários” e argumentava que todos os códigos da cristandade europeia
proibiam uniões entre tios e sobrinhos86.

Muito embora casos como este, de uso da lei civil para atender a
interesses privados, não sejam raros na história do direito brasileiro87, tal-
vez o jornal tenha exagerado. Na realidade, havia uma tradição na Igreja
Católica do Brasil em admitir esses casamentos, como se nota no já men-
cionado decreto n° 181 de 1890 e no Esboço, projeto de Código Civil de
Teixeira de Freitas, de 1860, em que o impedimento poderia ser dispensa-
do pelo “Governo, na Corte pelo Ministério dos Negócios da Justiça, nas
Províncias pelos respectivos Presidentes” (art. 1.278).
83 – Correio da manhã, 22 e 24 de setembro e 21 de novembro de 1919.
84 – Gazeta de notícias, 14.06.1919.
85 – Correio da manhã, 25.04.1919.
86 – Correio da manhã, 28.05.1919.
87 – Veja o famoso caso da “lei teresoca”, no qual Getúlio Vargas alterou o Código Civil
por dois decreto (n° 4.737 de 1942 e n° 5.213 de 1943) para que Assis Chateaubriand
pudesse reconhecer uma filha havida fora do casamento e ter direitos sobre ela.

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Uma Comissão de Justiça formada no Senado, composta por três


membros – Gonzaga Jayme, Raymundo de Miranda e José Euzebio –, se
reuniu em 1919 para deliberar sobre o projeto de reforma88. Um parecer
foi elaborado, com base em “estudo criterioso” produzido por instituições
científicas, dentre elas a “Sociedade Eugênica que opinou pela manuten-
ção da proibição de tais casamentos”89.

A Faculdade Livre de Direito de Minas Gerais também opinou em


sentido contrário à proposta de emenda e manutenção da proibição “fosse
o parentesco legítimo ou ilegítimo”. O parecer produzido na Comissão
levava em conta, também, o aspecto moral da questão, já que o projeto de
reforma tinha aprovação da Igreja e da sociedade brasileira, e não colidia
com o “senso moral dominante”, para o qual esses casamentos eram “con-
siderados como fatos naturais afeiçoados a nossa cultura e civilização”90.
Não atentava, concluía o parecer final da Comissão, à “moralidade da fa-
mília brasileira [que] nunca sentiu estremecimentos com esses casamen-
tos, ao contrário, dia a dia se apura, pondo em relevo as excelsas virtudes
e a divina bondade das mães de família”91.

Depois de aprovado no Senado, o projeto de emenda foi remetido à


Câmara dos deputados onde foi rejeitado. A discussão se ampliou e to-
mou outros rumos, para depois perder o foco. Na tentativa de estabelecer
um consenso, um deputado pretendeu conciliar o projeto com “princípios
da biologia” para fazer depender o casamento de “atestado médico”92.
Em setembro de 1921, cresceram os argumentos de que a alteração deve-
ria alcançar o Código Penal para incluir o tio no rol de pessoas que têm
causa de aumento de pena por cometimento do crime contra a honra da
mulher93. Com o passar do tempo, o debate se arrefeceu e o projeto ficou
esquecido no Senado para ser, finalmente, arquivado.

88 – O Paiz, 22.08.1919.


89 – Idem.
90 – Idem.
91 – Idem.
92 – Correio da manhã, 07.09.1919.
93 – O Paiz, 03.09.1921.

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Outra tentativa de reforma ao Código que restou frustrada foi aque-


la que pretendia ampliar os casos de incapacidade jurídica. A expressão
“loucos de todo gênero”, trazida pelo artigo 5°, II, do Código Civil, jul-
gada como restritiva e ultrapassada, deixava de fora outras formas de
incapacidade, como os “cocainômanos”, “morfinômanos”, “alcoóla-
tras”, “desmemoriados” e “outros inveterados no vicio, ou doentes da
vontade”94.

Além disto, não dava conta dos estágios intermediários de incapaci-


dade, dos inúmeros casos de “anomalia da inteligência e de redução do
poder inibitório da vontade que impõem a necessidade da tutela”95. A lei
civil mantinha, assim, a antiga dicotomia entre “normal” e “louco”, pró-
pria do Código Criminal de 1830.

Em outubro de 1920, o jornal O Paiz, em matéria intitulada “Uma


reforma inadiável”, pugnava pela urgência na aprovação do projeto96. Em
seu argumento, apontava um caso ocorrido à época: uma idosa de 80
anos, com demência, havia se casado com um jovem de 30 anos que visa-
va seus bens e posses. O juiz não tinha base normativa para interditá-la97.

Em 07 de agosto de 1920, o tema já havia sido levado à Câmara pe-


los deputados Antonio Austregésilo e Gumercindo Ribas98. Em outubro,
uma Comissão foi formada para elaborar o projeto de reforma, que não
teve sequência99. A expressão “loucos de todo gênero” se manteve por
longos anos, cabendo aos juízes interpretá-la de modo ampliado para al-
cançar outros casos tirados da prática.

94 – O Paiz, 18.05.1920, p. 07. Igualmente em Gazeta de notícias, 08.10.1920.


95 – O Paiz, 11.10.1920.
96 – Idem.. O Correio da manhã já havia alertado sobre a questão em matéria assinada
por Álvaro Goulart de Oliveira sob o título “Interdicção e o Código Civil” (Correio da
manhã, 08.06.1920).
97 – O Paiz, 11.10.1920.
98 – O Paiz, 07.08.1920.
99 – Gazeta de notícias, 08.10.1920.

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Com tantos arremedos e leis especiais, o texto original do Código


Civil aparecia descaracterizado nos anos finais da Primeira República e o
Congresso Nacional era apontado como o principal responsável.

Para Loureiro Sobrinho, colunista do jornal O Paiz, o Código já


apresentava, em 1927, “as rugas de uma senilidade precoce” 100. Ele atri-
buía a formação da “estrutura granítica” do Código aos primeiros projetos
históricos de Nabuco de Araujo, Felicio dos Santos, Coelho Rodrigues
e Clovis Bevilacqua, que foi, em seguida, adulterada com “remedos de
barro e massa de papel”101. Para ele, quando o Congresso Nacional passou
a “legislar fracionariamente”, destruiu “o conjunto de linhas estéticas que
deveria compor o systema jurídico de uma nação nova..., [e] ao invés
disso assistimos a um trabalho legislativo... cheio de incongruências, de
variações, desarticulado e sem orientação”102. Lamentava, por fim, que
a legislação civil se apresentava como uma “teia emaranhada e impene-
trável”, uma “composição de retalhos”, que o judiciário se esforçava em
cerzir e pespontar103. Ou seja, dez anos depois da vigência, as críticas feita
ao Código lembravam as críticas à ausência de Código.

Tudo isto revela o grau de descontentamento dos juristas, dos po-


líticos e da opinião pública em geral com o Código Civil. Sua vigência
causou, igualmente, problemas à vida da população que teve bastante di-
ficuldade em se adaptar aos novos comandos legais.

4. Problemas da vida cotidiana


Ao lado do acirrado debate travado entre juristas e parlamentares,
com inúmeras propostas de reforma do código, sobrevieram, também,
problemas na vida cotidiana da população.

Para alguns de seus críticos, certas situações haviam sido regulamen-


tadas em sentido contrário a antigas práticas arraigadas por séculos na

100 – O Paiz, 06.03.1927.


101 – Idem.
102 – Idem.
103 – Idem.

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sociedade; para outros, o código trazia regulamentação bastante conser-


vadora, na contramão do que se observava nos “países mais adiantados”.
A nova legislação acarretava, assim, verdadeira tensão entre tradicional e
moderno, inflamava as opiniões, e provocava dúvida e resistência quanto
à sua aplicabilidade.

Os problemas na vida cotidiana eram os mais diversos e poderiam,


em certos casos, ser apenas um sintoma do desconhecimento da nova
lei. Era bastante comum, nesses primeiros anos, que juristas fossem en-
trevistados para explicar os efeitos civis de determinado fato de grande
repercussão social104. Em diversas situações, os novos comandos legais
haviam alcançado a população com surpresa. Foi o caso dos hóspedes de
um hotel “no bairro chique de Botafogo”, que tiveram suas malas retidas
como forma de penhora devido ao não pagamento da estadia, conforme
previsto no Código Civil105.

Alguns juízes formularam pequenas apostilas explicativas com a fi-


nalidade de orientar a população sobre as novas regras, como foi o caso
de Aniceto de Medeiros Correia, juiz de Santa Thereza de Valença, que
elaborou folhetos para dirimir dúvidas surgidas de algumas disposições
relativas ao casamento106.

Com efeito, algumas das novas regulamentações sobre direito de fa-


mília eram polêmicas, causando desconforto e dúvidas. Não surpreende,
portanto, sua total ausência na amostra da pesquisa quantitativa apresen-
tada. A inédita previsão legal da possibilidade de perda ou suspensão do
“pátrio poder”, por exemplo, foi objeto de ataque dos pais, que se consi-
deravam ameaçados pelo Estado.

104 – Como foi o caso do assassinato do coronel José Guilherme de Sousa, em plena


avenida Rio Branco, que comoveu a opinião pública. Capitalista, homem de muitas pos-
ses, ele havia deixado grande fortuna em imóveis espalhados pela cidade, e todos deseja-
vam saber se o seu genro, Álvaro Paes Leme, acusado da autoria do crime, poderia herdar
o patrimônio do sogro, já que estava casado em comunhão de bens. Uma dúvida trivial,
que demonstrava o grau de incerteza da opinião pública sobre as alterações promovidas
pelo código às relações privadas (Gazeta de notícias, 30.03.1918).
105 – Correio da manhã, 03.07.1919.
106 – O Paiz, 15.02.1917. Igualmente em Correio da manhã, 15.02.1917.

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Em coluna intitulada “Um casamento falado. Inconvenientes das


nossas leis”, o periódico Correio da manhã, de março de 1917, alerta-
va que o “Código Civil começa a dar seus maos frutos” porque um pai
zeloso e cuidadoso poderia ser doravante “privado do exercício dos seus
direitos do pátrio poder”107.

A ameaça à legitimidade da “sagrada família” também vinha por par-


te dos filhos naturais, que agora poderiam ir a juízo propor ação de inves-
tigação de paternidade. O tema chegou rapidamente ao Supremo Tribunal
Federal108.

No caso dos filhos órfãos de pai e mãe, o Código Civil conferiu o


direito de preferência do pátrio poder aos avôs maternos (art. 409), sem
nada prever quando a criança tivesse apenas avós vivas, constituindo,
neste ponto específico, uma lacuna109. Também, nesse mesmo tema, al-
guns bradavam que o Código havia prejudicado os órfãos ao ter acabado
com o regime das soldadas sem prever uma solução à falta de lugar e
lotação dos estabelecimentos assistenciais110.

A manutenção da incapacidade da mulher casada incomodou juristas


mais progressistas e associações femininas da época111. O artigo 242 pre-
via que a mulher casada precisaria de autorização do marido para realizar
muitos atos jurídicos, dentre eles estar em juízo e “exercer profissão”112.

107 – Correio da manhã, 26.03.1917.


108 – Correio da manhã, 21.11.1918.
109 – O jornal Gazeta de notícias relatou o caso de duas vovós brigando pelo pátrio
poder sobre seus netinhos (25.01.1917).
110 – Correio da manhã, 18.03.1917.
111 – Vale anotar que o Centro das Classes Operárias havia apresentado ao Senado, em
1 de maio de 1902, uma petição reivindicando a exclusão da mulher casada do rol de pes-
soas incapazes (MARQUES, T. C. A mulher casada no Código Civil de 1916. Ou, mais do
mesmo. Textos de historia, vol. 12, n° 1/2, 2004, p. 139).
112 – Código civil de 1916, “Art. 242. A mulher não pode, sem autorização do marido
(art. 251): I - praticar os atos que este não poderia sem o consentimento da mulher (art.
235); II - alienar ou gravar de ônus real, os imóveis de seu domínio particular, qualquer
que seja o regime dos bens (arts. 263, II, III e VIII, 269, 275 e 310); III - alienar os seus
direitos reais sobre imóveis de outrem; IV - Aceitar ou repudiar herança ou legado; V -
Aceitar tutela, curatela ou outro munus público; VI - Litigar em juízo civil ou comercial,
a não ser nos casos indicados no arts. 248 e 251; VII - Exercer a profissão (art. 233, IV);

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Na cerimônia de posse de Anna Cesar, diretora da Legião da Mulher


Brasileira, em maio de 1920, Artur Pinto da Rocha, jurista e depois depu-
tado federal pelo Rio Grande do Sul, proferiu discurso fervoroso contra
essas restrições que equiparava a mulher casada aos menores, pródigos
e silvícolas113. Essa incapacidade era considerada capitis diminutio, ver-
dadeiro absurdo, pois “enquanto não é casada, a mulher tem capacidade;
casa-se, torna-se incapaz”114.

Neste mesmo sentido, Bertha Lutz, presidente da Federação


Brasileira pelo Progresso Feminino, escrevia, em dezembro de 1927, que
o Código Civil havia dado “posição privilegiada à mulher casada como
companheira do marido e não como sua inferior, não lhe exigindo na so-
ciedade conjugal obediência, mas, sim, colaboração”115.

O tema chamou a atenção das instituições internacionais e o dire-


tor da União Pan-Americana solicitou um impresso do Código Civil nas
questões sobre a condição da mulher no Brasil116. Preocupado com a ima-
gem perante o estrangeiro, um artigo publicado no Gazeta de notícias
afirmava que o “preconceito da inferioridade da mulher” era coisa do
passado e, o quanto antes, deveria ser modificada a lei quanto a “essa
tutela do sexo forte sobre o fraco..., mesmo para não servir de zombaria
aos paizes de legislação mais adiantada”117.

Por outro lado, a previsão legal de incapacidade da mulher casada


traduzia a mentalidade patriarcal dominante à época, o que ficou evidente
diante de um episódio que tomou conta dos jornais. Em setembro de 1918,
uma mulher havia pedido inscrição no concurso público da Secretaria
das Relações Exteriores, sendo imediatamente aceito, por despacho, pelo
ministro do exterior Nilo Peçanha, com a justificativa de que a admissão

VIII - contrair obrigações, que possam importar em alheação de bens do casal”.


113 – O Paiz, 18.05.1920, p. 07.
114 – Idem.
115 – O Paiz, 16.12.1927.
116 – O Paiz, 10.06.1924.
117 – Gazeta de notícias, 27.02.1926.

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O dia seguinte do primeiro Código Civil brasileiro:
vigência e prática judicial no Rio de Janeiro (1917-1927)

da inscrição se dava com base na igualdade entre homens e mulheres,


conferida pelo Código Civil118.

No dia seguinte, um texto foi publicado apontando trechos da justifi-


cativa do ministro e questionando se as mulheres “desempenhariam com
proveito a diplomacia onde tantos atributos de discrição e de capacidade”
que eram “privilegio dos homens” eram exigidos. O texto terminava com
a seguinte advertência: “melhor fôra que a mulher se consagrasse toda a
direcção do seu lar”119. Outra publicação em reação à atitude do minis-
tro, intitulada “Diplomacia e saias”, desferiu críticas misóginas contra
a admissão de mulheres em cargos públicos, questionando a igualdade
prevista no Código Civil120.

O tema do divórcio também agitou a opinião pública121. O Código


Civil reproduziu o que já estava previsto no decreto n° 181 de 1890122: a
possibilidade de separação de corpos sem dissolução do vínculo matri-
monial. O “desquite”, expressão empregada pelo Código, significava que
os cônjuges, mesmo separados, não poderiam alterar o estado civil para
segundas núpcias123.

O colunista J.M Gomes Ribeiro criticou os casos previstos no Código


Civil que justificavam a ação de desquite: adultério, tentativa de morte,
maus-tratos ou injúria grave e abandono voluntário do lar durante dois

118 – Correio da manhã, 01.09.1918. O artigo 243, parágrafo único, previa uma exceção
à regra da autorização marital, quando se tratasse de “ocupar cargo público”.
119 – Correio da manhã, 02.09.1918.
120 – Correio da manhã, 07.09.1918.
121 – O jornal Correio da manhã abriu uma coluna, que vinha estampada na sua pri-
meira página, intitulada “O divorcio. O Correio da Manhã abre um inquérito a respeito”,
na qual diferentes personalidades da época escreveram sobre o tema.
122 – Esse decreto retirou o casamento da jurisdição eclesiástica para o tornar civil. A
separação de corpos estava prevista no artigo 88, de redação bastante confusa, indicada
pelo termo “divórcio”. Decreto n° 181, de 24 de janeiro de 1890, “Art. 88. O divorcio não
dissolve o vinculo conjugal, mas autoriza a separação indefinida dos corpos e faz cassar o
regime dos bens, como se o casamento fosse dissolvido”.
123 – Mais acertadamente, porque em sentido estrito o divórcio pressupõe o rompimen-
to do vínculo matrimonial e a possibilidade de constituir segundas núpcias.

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Alan Wruck Garcia Rangel
Gustavo Silveira Siqueira

anos consecutivos. Cada um desses motivos foi examinado e comentado


com ironia pelo autor, pois eram desfavoráveis à mulher124.

O jornal Gazeta de notícias denunciou a existência de agências de


anulação de casamentos, bem como de uma comarca onde as ações cor-
riam e terminavam com uma “inaudita facilidade”125. Defendia-se à época
que o Ministério Público tomasse providências para que a lei não fosse
fraudada126. A anulação do casamento era vista como uma esperança de
nova habilitação ao casamento127.

Em 1926, algumas vozes defenderam, cada uma a sua maneira, a


inclusão do divórcio no texto da lei. Moniz Sodré, professor de direito
criminal, apontava os inconvenientes do desquite, pontuando a desvanta-
gem dos seus efeitos sociais no campo do direito penal, e reputava a dis-
solução do vínculo matrimonial como o “único remédio heroico [contra]
as desgraças definitivas do lar”128.

Carlos de Maia, no Correio da manhã, postulava pela introdução


do divórcio na legislação brasileira com base no direito comparado e em
estudos sociais que apontavam que as mulheres predominavam na autoria
dos pedidos de divórcio, concluindo que se tratava de uma instituição
“protectora do estado social da mulher casada”, sendo o “único remédio
que a liberta de um casamento infeliz”129.

Na posição oposta, estavam aqueles que rechaçavam absolutamente


o divórcio, ou que o admitiam em casos excepcionais. O engenheiro civil
Alexandre Gois reprovava veemente por considerar uma “doutrina que
legaliza a polygamia sucessiva e favorece a prostituição”130. O advogado
Tolentino Gonzaga refutava o divórcio, dizendo que a questão jurídica

124 – O Paiz, 14.11.1923.


125 – Gazeta de notícias, 04.03.1926.
126 – Idem.
127 – Não era raro jornais relatarem casos de pedidos de anulação de casamento (Cor-
reio da manhã, 29.06.1926).
128 – Correio da manhã, 01.10.1926.
129 – Correio da manhã, 10.09.1927.
130 – Correio da manhã, 08.10.1926.

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O dia seguinte do primeiro Código Civil brasileiro:
vigência e prática judicial no Rio de Janeiro (1917-1927)

estava sempre desviada para o “terreno sentimental” e alertava aos seus


detratores que o próprio Código Civil previa a possibilidade de contrato
perpétuo, como era o caso da enfiteuse131. Já para a União dos Obreiros
Evangélicos, o divórcio só se fazia necessário no caso de adultério132.

A falta de referência ao Código Civil na prática judicial carioca tam-


bém pode ser explicada pelo fato de os magistrados decidirem deliberada-
mente observar o antigo direito. Isto aconteceu não só no interior do país,
onde a nova legislação demorou a penetrar, mas também nas capitais133.

Em Cabo Frio, uma pequena cidade na região litorânea do estado


do Rio de Janeiro, os casamentos eram celebrados conforme o direito
anterior. Como relatou o Correio da manhã, muito embora o ato estivesse
assinado pelo juiz local e pelo seu escrivão, “o casal não [estava] casado
coisa nenhuma” porque não foram observados os novos ritos da lei. O jor-
nal ainda alertava sobre provável falta de observação em outros lugares:
Ora, quando um advogado, um técnico da lei, assim a infringe e se
amanceba com a cumplicidade de juiz e escrivão que não podem des-
conhecer as leis vigentes, imaginem agora o que não se está passando
pelas longínquas paragens da União134.

5. Considerações finais
Ao termo final da pesquisa, traçamos, em linhas gerais, algumas ex-
plicações sobre a escassez de referências ao Código Civil de 1916, du-
rante seus dez primeiros anos de vigência, nas Varas Cíveis do Rio de
Janeiro.

Como se tentou demonstrar ao longo do estudo, a primeira década


de vigência da legislação civil foi bastante agitada, com reformas gerais
e pontuais aportadas ao conteúdo dos seus dispositivos, debates acirrados
entre juristas, além de dúvidas e incompreensões por parte da população

131 – Correio da manhã, 18.12.1926.


132 – Correio da manhã, 14.08.1926.
133 – Um juiz de Curitiba celebrava casamentos à margem do Código Civil (Gazeta de
notícias, 23.11.1927).
134 – Correio da manhã, 07.03.1917.

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Alan Wruck Garcia Rangel
Gustavo Silveira Siqueira

sobre as mudanças trazidas pela nova lei. Todos esses elementos represen-
taram uma resistência à recepção do Código, sendo apenas um sintoma
o reduzido número de referências aos seus artigos nos atos processuais.

Podemos afirmar que o fiel cumprimento às leis e códigos não se


consolidou automaticamente no Brasil. Por isto, é bastante difícil co-
nhecer a história do direito brasileiro unicamente através da legislação,
principalmente no campo do direito civil, que por muito tempo restou
mergulhado no pluralismo jurídico.

A quase inexistência de citações do Código nas Varas Cíveis do Rio


de Janeiro se deve ao ambiente plural, impreciso e confuso do ordena-
mento jurídico civilista que, até então, dava grande liberdade a juízes e
profissionais do direito para construir argumentos e decidir segundo sua
própria consciência, sem se preocupar com o fundamento na lei. Neste
processo de criação do direito, o tradicional e o moderno se combinavam
numa trama entre práxis e legislação. Temos consciência que a pesqui-
sa analisou apenas uma parte das experiências jurídicas do Código, que
pode, por exemplo, ter tido utilizações diversas em tribunais superiores.
Com base nos dados coletados, podemos esboçar as conclusões a seguir,
ainda que provisórias.

Pensando no período pesquisado, é difícil imaginar uma mudança ra-


dical no modo como os juízes aplicavam suas decisões, já que todos eram
formados na tradição do direito civil sem código. Era de se esperar que os
artigos da nova lei restassem letra morta aos juízes mais conservadores e
menos adeptos à inovação ou àqueles que se preocupavam menos em se
atualizar e decidiam os litígios de acordo com o direito vigente antes do
Código Civil. A determinação de que, em pouco tempo, deveriam buscar
uma solução aos litígios em apenas uma fonte jurídica pode ter significa-
do a diminuição ou amputação da liberdade de decidir na visão de alguns
juízes.

A pesquisa mostrou que juízes e profissionais do direito, bem como a


população carioca, pareciam ter embarcado no ideal da codificação, fun-

48 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):17-56, jan./abr. 2022.


O dia seguinte do primeiro Código Civil brasileiro:
vigência e prática judicial no Rio de Janeiro (1917-1927)

dados na ideia de que caberia ao Estado o monopólio da produção de leis;


na prática, por outro lado, tiveram dificuldade de aceitar que o Direito
pudesse ser prescrito por uma fonte exclusiva.

Outro elemento que pode explicar a menor frequência de menções ao


Código nas Varas Cíveis cariocas é o pouco acesso da população à justiça.
Os litígios civis eram muitas vezes resolvidos em outras esferas longe
do judiciário, como perante cartórios ou mediante acordos extrajudiciais.

Um processo judicial custava caro e podia se alastrar por anos. Não


surpreende, portanto, que boa parte dos processos tramitados nas Varas
Cíveis no período estudado tenha origem em ações propostas pelo próprio
Estado contra particulares – ações de fiscalização, de cobrança.

O reduzido acesso à justiça foi percebido à época por Luiz de


Niemeyer como um dos motivos da quase inaplicabilidade do Código
Civil. Em artigo publicado no Gazeta de notícias, ele defendia uma refor-
ma judiciária que permitisse a gratuidade da justiça àqueles que não po-
diam pagar um processo judicial. O que adianta, questionava o articulista,
ter um Código que é um “monumento de saber”, se, na prática, “quando
se trata de aplicar aos casos concretos aquellas regras tão sabias, a ilusão
se destroe. Sente-se, então, em toda a sua brutalidade, a mentira da lei
que nunca se effectiva, a impotência do Direito ao qual não corresponde
a acção”135.

Niemeyer concluía que o problema não estava no legislativo, nem


entre os advogados, mas na lei processual e na organização judiciária
do país, que permitia o acesso à justiça unicamente àqueles que podiam
pagar, o que deixava a legislação e os direitos nela previstos reservados
a alguns poucos:
Que me adianta saber que tenho direito, que a lei me garante esse
direito, se, para tornar effectiva essa garantia, preciso gastar o que
não tenho e esperar eternamente, enquanto aquelle que contesta o meu

135 – Gazeta de notícias, 16.10.1923.

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Gustavo Silveira Siqueira

direito sorri da minha pobreza, ou se aproveita das chicanas protelató-


rias oriundas da deficiência e da miséria das leis processuais?!136

De uma forma ou de outra, são diversas as versões que chegam até


hoje sobre o Código Civil de 1916. O que a pesquisa demonstra é que sua
aceitação e aplicação não foram automáticas e que ainda estão cercadas
por debates e discussões. Por outro lado, não podemos esquecer da longa
vigência do Código, que entre críticas e elogios, tem presença marcante
na história do direito do Brasil e na vida das pessoas que nasceram e mor-
rem sob as suas normas.

Referências bibliográficas
Processos judiciais
ARQUIVO NACIONAL DO RIO DE JANEIRO, 1a Vara Cível do RJ (fundo CG),
2a Vara Cível do RJ (fundo CH), 3a Vara Cível do RJ (fundo CI), 4a Vara Cível do
RJ (fundo CJ), 5a Vara Cível do RJ (fundo CK).
Jornais (em ordem cronológica)
O CÓDIGO CIVIL ENTRA HOJE EM EXECUÇÃO. O que nos dizem os Drs.
Pedro Lessa e Paulo de Lacerda. Gazeta de notícias, 01 jan. 1917, p. 2.
O CÓDIGO CIVIL. As comemorações pelo seu início. O Paiz, 02 jan. 1917, p.
2.
O CÓDIGO CIVIL. As homenagens do Instituto dos Advogados. Correio da
manhã, 02 jan. 1917, p. 2.
TELEGRAMAS RECEBIDOS PELO PRESIDENTE DA REPÚBLICA.
Correio da manhã, 02 jan. 1917, p. 2.
TOPICOS E NOTICIAS. Correio da manhã, 02 jan. 1917, p. 1.
TOPICOS E NOTICIAS. Correio da manhã, 04 jan. 1917, p. 1.
ECHOS E FACTOS. Do registro público. O Paiz, 12 jan. 1917, primeira
página.
AVÓS QUE RECLAMAM O DIREITO DE TER UM NETINHO EM SUA
COMPANHIA. O CÓDIGO CIVIL NÃO COGITA DA PREFERÊNCIA. A avó
materna – pensa o Dr. Astolpho Rezende – deve assistir esse direito. Gazeta de
notícias, 25 jan. 1917, primeira página.
MENSAGEM DIRIGIDA AO CONGRESSO LEGISLATIVO DO ESTADO

136 – Idem.

50 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):17-56, jan./abr. 2022.


O dia seguinte do primeiro Código Civil brasileiro:
vigência e prática judicial no Rio de Janeiro (1917-1927)

PELO DR. AFFONSO ALVES DE CAMARGO, PRESIDENTE DO ESTADO


DO Paraná, ao instalar-se a 2a Sessão DA 13a LEGISLATURA, EM 1° DE
FEVEREIRO DE 1917. Gazeta de notícias, 11 fev. 1917, p. 7.
UM BOM SERVIÇO PRESTADO AOS ESCRIVÃES DE PAZ. Correio da
manhã, 15 fev. 1917, p. 3.
O CASAMENTO E O CÓDIGO. O Paiz, 15 fev. 1917, p. 2.
HÁ GENTE QUE SE CASA PELA LEI ANTIGA. Correio da manhã, 07 mar.
1917, p. 3.
O ABANDONO DOS ORPHAOS. Correio da manhã, 18 mar. 1917, p. 1.
UM CASAMENTO FALADO. Inconvenientes das nossas leis. Correio da
manhã, 26 mar. 1917, p. 6.
RENASCENÇA JURÍDICA. O Paiz, 24 abr. 1917, p. 01.
O CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO. COMMENTARIOS DE UM
JURISCONSULTO PERUANO. A cultura jurídica do Brasil. Gazeta de notícias,
16 jul. 1917, p. 2.
O CRIME DA AVENIDA. Álvaro Paes Leme poderá herdar da sua victima?
A opinião dos jurisconsultos Clovis Bevilacqua e Paulo de Lacerda. Gazeta de
notícias, 30 mar. 1918, primeira página.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA EM SÃO PAULO. O banquete de hontem
no Palácio dos Campos Elyseos. Correio da manhã, 22 maio 1918, p. 4.
AS COMISSÕES NO SENADO. O que fez a de legislação e justiça. Correio da
manhã, 20 jun. 1918, p. 2.
TOPICOS E NOTÍCIAS. Correio da manhã, 13 jul. 1918, p. 2.
O DIA NO SENADO. Ainda a ameaça que paira sobre o Código Civil. Correio
da manhã, 14 jul. 1918, p. 3.
O DIA NO SENADO. O que se prepara contra o Código Civil. Correio da
manhã, 16 jul. 1918, p. 2.
TOPICOS E NOTÍCIAS. Correio da manhã, 17 jul. 1918, p. 2.
TOPICOS E NOTÍCIAS. Correio da manhã, 23 jul. 1918, p. 2.
O CÓDIGO CIVIL NO SENADO. Por que o Sr. João Luiz abandona a liça
deixando os reformadores em campo livre. Correio da manhã, 27 jul. 1918, p.
3.
O DIA NO SENADO. Vota-se a reforma do Código Civil: emenda-se o projecto
da emissão lastreada e aprovam-se créditos e licenças. Correio da manhã, 31 jul.
1918, p. 3.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):17-56, jan./abr. 2022. 51


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CONGRESSO NACIONAL. Senado. Câmara. O Paiz, 22 ago. 1918, p. 5.


A MULHER NO FUNCIONALISMO PÚBLICO. Correio da manhã, 01 set.
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TRAÇOS DA SEMANA. A senhorita Maria José de Castro Rebello Nunes foi
em a como candidata a um concurso do Ministério das Relações Exteriores.
Correio da manhã, 02 set. 1918, p. 2.
TOPICOS E NOTÍCIAS. Correio da manhã, 03 set. 1918, p. 2.
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O SUPREMO TRIBUNAL RESOLVE O CASO DO MILLIONARIO TEIXEIRA
PINTO. Correio da manhã, 21 nov. 1918, p. 3.
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52 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):17-56, jan./abr. 2022.


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GAZETA JURÍDICA. Gazeta de notícias, 04 mar. 1926, p. 7.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):17-56, jan./abr. 2022. 53


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Gustavo Silveira Siqueira

REUNIÕES CIENTÍFICAS. O Instituto dos advogados. Gazeta de notícias, 29


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NO INSTITUTO DOS ADVOGADOS. A reforma judiciária. Um novo membro
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INSTITUTO DOS ADVOGADOS. Os erros do Código Civil e a critica do Dr.
Pontes de Miranda. Uma carta de Clovis Bevilacqua. O imposto sobre a renda e
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UMA SENHORA DESQUITADA E DE CASAMENTO ANNULLADO,
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O DIVÓRCIO. O “Correio da Manhã” abre um inquérito a respeito. Correio da
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VIDA JUDICIÁRIA. O código do processo e suas antinomias. O Paiz, 02 dez.
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O DIVÓRCIO. O “Correio da Manhã” abre um inquérito a respeito. Correio da
manhã, 18 dez. 1926, p. 1.
VIDA JUDICIÁRIA. Legislação a retalho. O Paiz, 06 mar. 1927, p. 12.

54 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):17-56, jan./abr. 2022.


O dia seguinte do primeiro Código Civil brasileiro:
vigência e prática judicial no Rio de Janeiro (1917-1927)

DIVÓRCIO E DESQUITE. Correio da manhã, 10 set. 1927, p. 2.


FEMINISMO. Desde que uma só exista não há motivo para que não sejam
eleitoras todas as mulheres habilitadas no Brasil. A mensagem de duas mulheres
ao Senado Federal. O Paiz, 16 dez. 1927, p. 5.

Texto apresentado em junho de 2022. Aprovado para publicação em


julho de 2022.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):17-56, jan./abr. 2022. 55


Santa Catarina na Exposição de História do Brasil de 1881

57

SANTA CATARINA NA EXPOSIÇÃO DE HISTÓRIA DO


BRASIL DE 1881
SANTA CATARINA AT THE BRAZILIAN HISTORY
EXHIBITION OF 1881
Murilo Ristow Catarina1
Sandra Paschoal Leite de Camargo Guedes2

Resumo: Abstract:
O presente artigo pretende compreender os va- In the paper, we seek to understand the values
lores atribuídos ao Patrimônio Cultural de Santa attributed to the Cultural Heritage of Santa
Catarina a partir da análise dos itens enviados Catarina by analysing the documents sent by the
pela Província, ao Rio de Janeiro, para fazer Province for the Brazilian History Exhibition in
parte da Exposição de História do Brasil de Rio de Janeiro in 1881. The documents were
1881. A metodologia utilizada foi a de análise de collected from digital libraries such as the
documentos relativos à exposição. Os documen- Biblioteca Nacional and Biblioteca do Senado
tos foram encontrados em plataformas digitais and analysed based mainly on data collected by
como o acervo digital da Biblioteca Nacional e Lilia Moritz Schwarcz (1998), Alois Riegl (2014)
da Biblioteca do Senado. Os documentos foram and Janice Gonçalves (2016). We conclude that
analisados com base, principalmente, em Lilia the values attributed both by the empire and by
Moritz Schwarcz (1998), Alois Riegl (2014) the Province of Santa Catarina to the cultural
e Janice Gonçalves (2016). Como resultados heritage aimed at showing the organization and
compreendemos que os valores atribuídos, tanto development of the country, thus contributing to
pelo Império quanto pela Província de Santa Ca- the discourse on the progress and greatness of
tarina, ao patrimônio cultural selecionado para the Empire.
a exposição, pretendiam demonstrar a organiza-
ção e o desenvolvimento do país, contribuindo
assim com o discurso relacionado ao progresso
e à grandeza do império.
Palavras-chave: Patrimônio Cultural; Exposi- Keywords: cultural heritage; values of cultural
ção; Valores; Santa Catarina. heritage; exposition; Santa Catarina.

Introdução
No Rio de Janeiro, capital do Império do Brasil, em 2 de dezembro
de 1881, iniciava-se uma exposição de história nacional para comemorar
o aniversário do imperador D. Pedro II, com a presença do imperador e

1  –  Licenciado em História e Mestre em Patrimônio Cultural e Sociedade pela Univer-


sidade da Região de Joinville (Univille). Bolsista CAPES. Email: muriloristowc@gmail.
com.
2  –  Doutora em História e pós-doutora em Museologia. Professora Orientadora da Uni-
versidade da Região de Joinville (Univille). Email: sandraplcguedes@gmail.com.

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Murilo Ristow Catarina
Sandra Paschoal Leite de Camargo Guedes

sua esposa, que contou com um público de 7.621 visitantes nas instala-
ções da Biblioteca Nacional no decorrer do mês de sua duração.3

Realizada sob a liderança do Ministério dos Negócios Interiores4 e


a coordenação de Ramiz Galvão, então diretor da Biblioteca Nacional, a
Exposição de História do Brasil também contou com o apoio de membros
da corte que ajudaram na análise dos itens que seriam expostos e empres-
taram muitos outros para a exposição. Estima-se que aproximadamente
20 mil itens bibliográficos e iconográficos de todo o território brasileiro
foram enviados ao Rio de Janeiro para a Exposição, sendo dos mais di-
versos tipos, como livros, mapas, gravuras, jornais, documentos, moedas,
medalhas e outros.

O objetivo desse artigo é compreender os valores atribuídos aos do-


cumentos enviados por Santa Catarina para a Exposição de História do
Brasil de 1881, através da análise com base em Riegl5, que escreve no sé-
culo XX, e Gonçalves6, que escreve sobre o valor do patrimônio cultural
catarinense no século XXI.

Benjamin Ramiz Galvão esteve vinculado a instituições ligadas à


produção histórica no país, como ao Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (IHGB) e à Biblioteca Nacional (BN), onde foi diretor de 1870
a 1882. Galvão teve como primeiro objetivo na Biblioteca a moderniza-
ção da instituição, valorizando seu nome, e aproximando e ganhando a
confiança de possíveis doadores para aumentar o acervo documental e
bibliográfico da Biblioteca:
A “abertura” da Biblioteca e a compra de novas coleções aumentaram
também a confiabilidade da instituição, o que reverteu em um bom
número de doações que só vieram valorizar o seu acervo7.

3  –  BRASIL. MINISTÉRIO DO IMPÉRIO. Relatório do ano de 1881 apresentado a


Assemblea Legislativa na 1ª sessão da 18ª legislatura. Rio de Janeiro, 1882.
4 – Idem.
5  –  RIEGL, Alois. O culto moderno dos monumentos: a sua essência e a sua origem.
Tradução de Werner Rothschild Davidsohn e Anat Falbel. São Paulo: Perspectiva, 2014.
6  –  GONÇALVES, Janice. Figuras de valor: patrimônio cultural em Santa Catarina.
Itajaí: Casa Aberta, 2016.
7 – CARVALHO, Gilberto Vilar de. Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Iradiação Cul-

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Santa Catarina na Exposição de História do Brasil de 1881

Embora Ramiz Galvão receba os louros pela organização da


Exposição, ele mesmo atribuiu parte da ideia ao Ministro dos Negócios
Interiores do Império, Barão Homem de Mello, que também esteve en-
volvido com exposições anteriores, e inclusive, fora membro das comis-
sões que organizaram a participação do Brasil na Exposição Universal da
Filadélfia em 1876, onde conheceu Ramiz Galvão.8

Ramiz Galvão também foi o responsável pelo início das publicações


dos Anais da Biblioteca Nacional em 1876, que tinha como objetivo com-
partilhar documentos raros, transcrições e até mesmo publicar matérias
referentes à Instituição. Foi com esse objetivo que, em 1881, foi publi-
cado o Catálogo da Exposição de História do Brasil, que foi dividido em
três partes: duas delas publicadas no mesmo ano da exposição, contando
com 1758 páginas, e um Suplemento, publicado em 1883. O Catálogo
da Exposição de História do Brasil – CEHB foi considerado um trabalho
extremamente relevante,
É um trabalho insuperável, produto da competência, da obstinação e
da dedicação de Ramiz Galvão que, em tempo recorde para as enor-
mes dificuldades da época, organizou, em 1881, em comemoração do
aniversário de D. Pedro II, a maior exposição bibliográfica e icono-
gráfica sobre o País, publicando o respectivo catálogo em dois tomos
que, junto com o suplemento, organizado por seu sucessor, Saldanha
da Gama, constituíram o vol. IX dos Anais da Biblioteca Nacional9.

A proposta inicial de Ramiz Galvão para a exposição de história do


Brasil foi de serem feitas conferências sobre a história e a geografia do
país durante a mostra, mas não foi o que aconteceu, por falta de inscrições
de trabalhos em número suficiente.10
tural, 1994. p. 66.
8 – TURAZZI, Maria Inez. A EXPOSIÇÃO DE HISTÓRIA DO BRASIL DE 1881 e a
construção do patrimônio iconográfico. In: “Usos do Passado” XII Encontro Regional de
História ANPUH-RJ, 2011. Anais. Rio de Janeiro: ANPUH, 2011. p. 3-4.
9  –  BIBLIOTECA NACIONAL (Brasil). Catálogo da exposição de história do Brasil.
Introduções de José Honório Rodrigues e de Otaciano Nogueira. Brasília: Editora do Se-
nado Federal, 1998. 3 v
10 – TURAZZI, Maria Inez. A EXPOSIÇÃO DE HISTÓRIA DO BRASIL DE 1881 e a
construção do patrimônio iconográfico. In: “Usos do Passado” XII Encontro Regional de
História ANPUH-RJ, 2011. Anais. Rio de Janeiro: ANPUH, 2011. 10p.

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Murilo Ristow Catarina
Sandra Paschoal Leite de Camargo Guedes

A análise para esse artigo foi feita a partir de documentação, refe-


rente à citada exposição, existente nas plataformas virtuais da Biblioteca
do Senado e da Biblioteca Nacional. A partir dessas fontes constatamos
que a Província de Santa Catarina enviou, aproximadamente, 286 itens
à capital do império para contribuir com a exposição, dentre panoramas,
pinturas, desenhos, plantas, mapas, cartas topográficas e fotografias, que,
no entanto, embora enviadas, não foram expostas.

Com relação à iconografia enviada para a Exposição, trata-se de


imagens de cidades e colônias recém-criadas, como da Colônia Dona
Francisca, atual Joinville, assim como imagens relacionadas à segurança
da Província, como fotografias de bugreiros11, soldados e plantas de fortes.
Neste artigo, analisaremos oito imagens sobre a Colônia Dona Francisca
que se encontram disponíveis no portal Brasiliana Fotográfica, pertencen-
te à Biblioteca Nacional, e parte do Álbum intitulado “Vistas Fotográficas
da Colônia Dona Francisca”, produzidas na década de 1860 por Louis
Niemeyer, diretor da Colônia de 1860 até 1873. Segundo Wanderley12
o álbum foi dedicado ao imperador Dom Pedro II e passou a fazer parte
da coleção Dona Thereza Christina Maria, hoje pertencente ao acervo da
Biblioteca Nacional. Ainda segundo a autora, as fotos foram enviadas à
exposição de 1881, contudo, não foram expostas, pois não constam no
Guia da exposição.

A coleção Dona Thereza Christina Maria é composta de 23 mil foto-


grafias pertencentes ao imperador e doadas, por ele, à Biblioteca Nacional
em 1891, após a Proclamação da República. Tais fotografias, frutos das

11  –  Bugreiros eram forças paramilitares armadas presentes em Santa Catarina, Paraná,
Rio Grande do Sul e localidades de São Paulo no século XIX, compostas por colonos,
tinham a função de caçar bugres (nomenclatura da época para indígenas). ZANELATTO,
João Henrique; JUNG, Gilvani Mazzucco; OZÓRIO, Rafael Miranda. Índios e brancos no
processo colonizador do sul catarinense na obra de histórias do grande Araranguá de João
Leonir Dall’alba. Revista de História Comparada, Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, p. 174-202,
2015. Disponível em: www.hcomparada.historia.ufrj.br/revistahc/revistahc.htm. Acesso
em: 14 set. 2021.
12  –  WANDERLEY, Andrea C. T. Exposição de História do Brasil de 1881-1882. 2019.
Disponível em: https://brasilianafotografica.bn.gov.br/?tag=exposicao-de-historia-do-
-brasil-de-1881-1882. Acesso em: 07 nov. 2021.

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Santa Catarina na Exposição de História do Brasil de 1881

viagens de D Pedro II, retratavam aspectos do Brasil e do mundo no sé-


culo XIX: vistas do Brasil, acontecimentos históricos, personagens, foto-
grafias científicas e curiosidades13.

A metodologia utilizada foi a de análise documental14. O princi-


pal documento utilizado nesta pesquisa foi o Catálogo da Exposição de
História do Brasil, que está disponível no site da Biblioteca Nacional. Os
três tomos do Catálogo contam com mais de 20 mil itens, organizados em
ordem crescente pelo número de inscrição e ordem alfabética e, em al-
gumas partes, separados por províncias, de onde foram enviados. Alguns
objetos não estão catalogados com nome ou número de registro, ou ain-
da pela província de origem, já que foram enviados por uma instituição,
como foi o caso das fotografias que se referem à Colônia Dona Francisca,
em Santa Catarina.

Os objetos enviados pela província de Santa Catarina foram loca-


lizados no Catálogo, listados em uma tabela e identificados por nome,
número de registro, se foi exposto ou não, e os tomos do catálogo em que
se encontram. O próximo passo foi a classificação e análise dos mesmos,
com base no texto de Barros15, que sugere a utilização de perguntas para
uma análise crítica do documento, tais como: “Quem é o autor”, “Qual
seu contexto”, “Onde”, “Quando” e “Porque ele escreve”.

Assim, a análise documental foi realizada considerando o documen-


to como um monumento, “fruto do esforço de uma sociedade no passado
que se projeta ao futuro”, e entendendo que todo documento é redigido

13 – SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos


trópicos. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 623 p. A Coleção Dona Thereza
Christina Maria recebeu este nome em homenagem à Imperatriz, esposa de D. Pedro II,
a seu pedido. Esta coleção recebeu o Registro Internacional de Memória do Mundo em
2003 devido à importância e diversidade dos registros fotográficos que ela compõe.
14 – BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício de Historiador. Tradução: André
Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. 159 p.
15  –  BARROS, José D’Assunção. Ranke: considerações sobre sua obra e modelo histo-
riográfico. Diálogos, Maringá, v. 17, n. 3, p. 977-1005, set. 2013.

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Murilo Ristow Catarina
Sandra Paschoal Leite de Camargo Guedes

conforme os valores da sociedade em que foi produzido, levando em con-


ta suas relações de poder16.

Para além da crítica ao documento e o entendimento da subjetivi-


dade que o autor imprime, foi necessária uma análise da relação entre a
fabricação e a percepção do acontecimento, pois segundo Dosse17, “esse
movimento de revisitação do passado pela escritura histórica acompanha
a exumação da memória nacional e contempla ainda o momento memo-
rial atual”.

O conceito de valor atribuído ao patrimônio cultural será importante


para a análise desses documentos. Alois Riegl18 afirmava no início do
século XX, em 1903, que os valores atribuídos por uma sociedade são
subjetivos e que havia identificado três tipos principais de valores: o valor
histórico, relacionado à história do patrimônio em questão; o valor inte-
lectual, que se refere ao conhecimento envolvido naquele patrimônio; e o
valor artístico, ligado às qualidades artísticas, principalmente qualidades
técnicas de arte daquele patrimônio. Para complementar esse conceito
usaremos a discussão proposta por Janice Gonçalves19 em 2016, que adi-
ciona o valor afetivo, quando o patrimônio é valorado por meio de rela-
ções de memória.

A análise de documentos e dos textos empregados na descrição dos


objetos permitiram compreender o valor desses objetos no período, para
que fossem considerados bens importantes a ponto de serem expostos em
um evento nacional.

As informações constantes na lista de itens enviados por Santa


Catarina foram cruzadas com o Guia da Exposição de História do Brasil20
16  –  LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução: Bernardo Leitão. Campinas:
Unicamp, 1990. 476 p.
17 – DOSSE, François. A História. Tradução de Maria Elena Ortiz Assumpção. Bauru:
Edusc, 2003.p 108.
18  –  RIEGL, Alois. O culto moderno dos monumentos: a sua essência e a sua origem.
Tradução de Werner Rothschild Davidsohn e Anat Falbel. São Paulo: Perspectiva, 2014.
19  –  GONÇALVES, Janice. Figuras de valor: patrimônio cultural em Santa Catarina.
Itajaí: Casa Aberta, 2016.
20  –  BIBLIOTECA NACIONAL (Brasil). Guia da Exposição de História do Brasil. Rio

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Santa Catarina na Exposição de História do Brasil de 1881

para saber quais e quantos itens foram realmente expostos, chegando


ao número de apenas um item, sendo ele a “Planta da costa do Brazil,
desde a cidade do Rio Grande do Sul até a ilha do Arvoredo em Santa
Catharina”21, já que não há registro da exposição das fotografias. Será
que esse número simboliza o que significava a Província para o Império?

História, Documento Histórico e Patrimônio Cultural


Para entender o contexto da ciência no século XIX, Gouvêa22 apre-
senta as transformações pelas quais o processo de construção do conhe-
cimento estava passando. Para a autora, a criação de métodos e técnicas
para produção de conhecimento, como a catalogação regular, deu início
ao que conhecemos hoje como cientificidade. No campo historiográfi-
co, uma das primeiras tentativas de tornar a história um conhecimento
científico ficou a cargo do historicismo alemão que, segundo Barros23,
estabelece uma metodologia de estudo do passado a partir de análise de
documentos escritos oficiais. Essa metodologia, que teve como principal
expoente Leopold Von Ranke (1795-1886), possui aspectos considerados
importantes até os dias de hoje.

Já no século XX, a história avançou como ciência, discutindo a re-


lação do historiador com os documentos. Marc Bloch24, ainda na déca-
da de 1940, apontava para a necessidade de o historiador analisar um
documento dentro do seu tempo de criação. Posteriormente, Jacques Le
Goff25 demonstrava a não neutralidade de um documento, características
que deverão permear a análise documental neste artigo. O documento é
de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1881.
21 – Idem, p. 153.
22  –  GOUVÊA, Maria Cristina Soares de. Estudos sobre desenvolvimento humano no
século XIX: da biologia à psicogenia. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 38, n. 134. ago.
2008. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-
-15742008000200013&lng=pt&tlng=pt. Acesso em: 23 jul. 2020.
23  –  BARROS, José D’Assunção. Ranke: considerações sobre sua obra e modelo histo-
riográfico. Diálogos, Maringá, v. 17, n. 3, p. 977-1005, set. 2013.
24 – BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício de Historiador. Tradução: André
Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. 159 p.
25 – LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução: Bernardo Leitão. Campinas:
Unicamp, 1990. 476 p.

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Murilo Ristow Catarina
Sandra Paschoal Leite de Camargo Guedes

para Le Goff um recorte consciente ou não de uma época, que também é


ressignificado pelo tempo. O pesquisador, segundo o autor, também não é
neutro ao escolher determinado documento ao invés de outro, exercendo
então, o poder de transformar um documento em testemunho e retirá-lo
do conjunto histórico que foi criado, além de estar relacionado à organi-
zação mental do historiador.
No limite, não existe um documento-verdade. Todo o documento é
mentira. Cabe ao historiador não fazer o papel de ingênuo. Os me-
dievalistas, que tanto trabalharam para construir uma crítica – sempre
útil, decerto – do falso, devem superar esta problemática porque qual-
quer documento é, ao mesmo tempo, verdadeiro – incluindo, e talvez
sobretudo, os falsos – e falso, porque um monumento é em primeiro
lugar uma roupagem, uma aparência enganadora, uma montagem26.

François Dosse também vê a necessidade de entender a subjetivi-


dade da história. O autor relaciona a subjetividade à construção da his-
tória, sendo a ciência histórica uma linha tênue entre a realidade e a fic-
ção. Para ele a análise deve ser feita na perspectiva do acontecimento, o
que revelaria as subjetividades do autor do documento e de quem o está
analisando, que no seu presente carrega consigo suas subjetividades. “A
memória, pressupondo a presença da ausência, permanece a ligação es-
sencial entre o passado e o presente, desse difícil diálogo entre o mundo
dos mortos e dos vivos”27

Para a análise do documento é importante também entender que a


noção de tempo passado é relativa. Koselleck28 discute que, ao revisi-
tar o passado com problematizações feitas em um determinado presente,
há também, uma ressignificação do passado. Para o historiador alemão,
o tempo é um conceito totalmente humano (o passar do tempo, o futu-
ro, presente e passado, além da percepção de aceleração e desaceleração
dessa passagem temporal). Ao analisar um documento, as subjetividades

26  –  Idem, p.549


27 – DOSSE, François. A História. Tradução de Maria Elena Ortiz Assumpção. Bauru:
Edusc, 2003.p 290-291.
28 – KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre História. Rio de Janeiro:
PUC-RIO, 2000. 351 p.

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Santa Catarina na Exposição de História do Brasil de 1881

reveladas pelo tempo se tornam muito mais aparentes, tanto na tentativa


de compreensão do passado, quanto no processo de ressignificá-lo. Existe
uma correlação entre o documento histórico, o tempo e o patrimônio:
um documento pode ser criado ou não para ser histórico, isso envolve o
tempo e as percepções sobre aquele documento. O documento pode ser
visto como um monumento29, como um patrimônio histórico construído
com intencionalidades e pretensões para o tempo em que foi criado e para
o futuro.

O termo “patrimônio” tende a aparecer acompanhado de adjetivos,


tornando-o mais preciso, como por exemplo “econômico”, “natural” ou
“histórico”, em que estão inclusos os documentos do passado, da cultura,
entre outros.

Fonseca30 propõe uma concepção mais ampla, discutindo patrimô-


nios imateriais como danças, lugares e saberes, ao contrapor a visão tra-
dicional de patrimônio e discutir o bem material. A autora também evoca
o debate do aspecto imaterial inserido em um patrimônio tangível, como
as igrejas barrocas, tombadas como patrimônio material. Entretanto, o ato
de rezar, que se apresenta como um bem imaterial, está intrinsecamente
ligado àquela edificação31. Já Gonçalves32 propõe que o patrimônio passe
a ser encarado como uma categoria de pensamento, mostrando a impor-
tância da discussão sobre patrimônio intangível ou imaterial, que oferece
uma flexibilidade ao conceito de patrimônio, muitas vezes engessado e
voltado apenas para os monumentos materiais.

29 – LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução: Bernardo Leitão. Campinas:


Unicamp, 1990. 476 p.
30 – FONSECA, Maria Cecília Londres. Para além da pedra e cal: Por uma concepção
ampla do Patrimônio Cultural. In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mário (org.). Memória e
Patrimônio: ensaios contemporâneos. 2. ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009. p. 49-58
31  –  MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. Bezerra de. O campo do patrimônio cul-
tural: uma revisão de premissas. In: I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural, 1, 2009,
Ouro Preto. Anais [...], Brasília: IPHAN, 2012. Disponível em: http://portal.iphan.gov.
br/uploads/publicacao/Anais2_vol1_ForumPatrimonio_m.pdf. Acesso em: 12 set. 2019.
32  –  GONÇALVES, José R. Santos. O patrimônio como categoria de pensamento. In:
ABREU, Regina; CHAGAS, Mário (org.). Memória e Patrimônio: ensaios contemporâ-
neos. 2. ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009. p. 25-33.

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Murilo Ristow Catarina
Sandra Paschoal Leite de Camargo Guedes

Trataremos neste artigo o objeto/documento enviado para fazer parte


da exposição, como um patrimônio histórico da época. Apesar de possuí-
rem uma materialidade, todos eles continham uma subjetividade intrínse-
ca ao tempo e contexto social em que foram criados. Mais precisamente,
trataremos de documentos escritos e iconográficos, não apenas por serem
o foco da exposição, mas também porque era o que se entendia por docu-
mento histórico. Porém as iconografias não eram consideradas documen-
to histórico, segundo o conceito Rankeano33 do que é documento histó-
rico, mas é interessante pensar que esses documentos foram enviados a
uma exposição de história, como testemunhas desse passado.

Estes documentos, fazem parte do patrimônio histórico de um país


na época, e estão suscetíveis à subjetividade que permeia os sistemas de
valoração e os classificam como mais ou menos importantes.

Valores atribuídos ao patrimônio cultural


O sistema de valoração de um patrimônio cultural está sempre rela-
cionado ao tempo, seu presente e seu passado34, já que algo considerado
valoroso em um determinado contexto sócio-histórico pode perder o seu
valor em outra realidade.

Silvana Rubino35 afirma que um patrimônio é um bem cultural de


identidade social e política, com isso, atos como o de lembrar carregam
um sentido político. Muitas vezes não é negada a memória de um grupo
social, mas na luta de poderes pela lembrança promulgada como bem cul-
tural, o apagamento acontece não por uma exclusão sistematizada, mas
pelo simples não lembrar. O ato de lembrar está intrinsecamente ligado às
narrativas construídas socialmente, e os valores atribuídos ao patrimônio

33  –  BARROS, José D’Assunção. Ranke: considerações sobre sua obra e modelo histo-
riográfico. Diálogos, Maringá, v. 17, n. 3, p. 977-1005, set. 2013.
34  –  GONÇALVES, Janice. Figuras de valor: patrimônio cultural em Santa Catarina.
Itajaí: Casa Aberta, 2016.
35  –  RUBINO, Silvana. As fachadas da História: os antecedentes, a criação e os tra-
balhos do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – 1937/1968. Campinas,
1992. Dissertação (Mestrado) – Mestrado em Antropologia Social, Universidade Estadual
de Campinas, Campinas, 1992.

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Santa Catarina na Exposição de História do Brasil de 1881

cultural têm relações entre si, sendo regulados por tais narrativas - as
quais atribuem sentido a esses valores e estão ligadas a processos sociais
de produção de memória, como escreve Gonçalves36.

Compartilhando das ideias de Riegl, Choay muda a terminologia de


“valores de conhecimento” para “valores cognitivos”, intrinsecamente
ligado ao monumento histórico. Segundo a autora, a mudança de termi-
nologia se dá pelos valores ligados à cognição sobre aquele patrimônio,
e não apenas ao conhecimento, pois a palavra pode ser muito vaga. Por
outro lado, existe o valor estético e o valor artístico atribuído a um patri-
mônio, que pode caminhar ou não com o valor cognitivo, sendo o valor
estético o que envolve mais subjetividade37.

Ainda segundo Françoise Choay, temos em consideração o valor de


referências baseadas em J. Ruskin (1819-1900) em que se estabelecem
relações ligadas à memória de quem irá atribuir os valores. Assim, para a
autora, o conceito de Patrimônio Histórico está ligado ao conjunto de mo-
numentos, documentos, arquiteturas e outros objetos patrimoniais, cujo
valor poderá ou não ser atribuído. Para a autora, esse valor faz com que o
monumento histórico se torne mais universal, deixando de atender a uma
pequena parte da sociedade
Trazendo à memória a dimensão sagrada das obras humanas, o mo-
numento histórico adquire, além disso, uma universalidade sem pre-
cedentes. O monumento tradicional, sem qualificativos, era universal-
mente difundido, mas fazia reviver os passados particulares de comu-
nidades específicas; o monumento histórico fazia até então referência
a uma concepção ocidental da história e as suas dimensões nacionais.
Em contrapartida, na concepção Ruskiana, quaisquer que tenham sido
a civilização ou grupo social que o erigiram ele se dirige igualmente
a todos os homens38.

36  –  GONÇALVES, Janice. Figuras de valor: patrimônio cultural em Santa Catarina.


Itajaí: Casa Aberta, 2016.
37 – CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. 6. ed. São Paulo: Unesp, 2017. 282
p. Tradução de Luciano Vieira Machado.
38 – Idem, p. 141-142.

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Murilo Ristow Catarina
Sandra Paschoal Leite de Camargo Guedes

Existem, portanto, outras visões sobre o patrimônio. No caso do


Historiador e museólogo francês Hugues de Varine, o patrimônio é algo
atrelado às pessoas, um objeto do público, da comunidade, um fator
de identidade nas várias camadas de um Estado, do municipal ao na-
cional, ou como ele mesmo descreve: “a carteira de identidade de uma
comunidade”39. Patrimônio para o autor é um bem compartilhado por to-
dos e que representa a diversidade cultural que lhe atribui valor
Ora, o patrimônio de que eu quero falar [...] é antes de tudo de natu-
reza comunitária, isto é, emana de um grupo humano diverso e com-
plexo, vivendo em um território e compartilhando uma história, um
presente, um futuro, modos de vida, crises e esperanças40.

Essa variedade de valores que são atribuídos ao patrimônio cultural,


é também um reflexo dos vários indivíduos que possuem em seu cotidia-
no um patrimônio inserido.

Entender o discurso e os valores atribuídos aos itens enviados por


Santa Catarina para uma exposição nacional, portanto, só é possível a
partir do entendimento do que se considerava importante na época e atu-
almente. Essa análise possibilitará uma visão do que se queria demonstrar
sobre a província para o restante do Império. Contudo, ao montar uma ex-
posição de história nacional, o império brasileiro cria um discurso sobre
aquilo que é digno de representar a história do país a partir daqueles itens
escolhidos. Como cita Santos41 ao discutir a criação dos museus nacionais
no Brasil no século XIX:
Toda a autoridade dos fatos que são retomados funda-se na autoridade
da traição estabelecida principalmente pelo império. O tempo linear e
contínuo não aparece como objeto da história, e o critério de escolha
recai sobre tudo aquilo que é extraordinário e digno de ser rememora-
do sob aquele teto, ou seja, sobre o que está de acordo com os valores
já definidos42.

39 – VARINE, Hugues de. As Raízes do Futuro. Porto Alegre: Medianiz, 2013.


40 – Idem, p. 44
41 – SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. A escrita do passado em museus históricos. Rio
de Janeiro: Garamond, 2006.
42 – Idem, p. 45.

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Santa Catarina na Exposição de História do Brasil de 1881

O conceito de patrimônio concebe uma popularidade associada a in-


vestimentos de toda ordem (política, econômica, social) que são por ele
movidos. O estudo a respeito desse patrimônio oscila entre algo subjeti-
vo, que são os valores atribuídos pela sociedade. No caso da exposição
que está sendo analisada neste artigo, os valores não são atribuídos pela
sociedade como um todo, mas sim por um grupo de pessoas responsáveis
por organizar o acervo que viria a ser exposto43.

Santa Catarina na exposição de 1881


Embora Santa Catarina tenha enviado 286 itens para a Exposição
de História do Brasil, apenas um foi exposto, sendo ele o original da
“Planta da costa do Brazil, desde a cidade do Rio Grande do Sul até a
ilha do Arvoredo em Santa Catharina”. Identificada como sendo de au-
toria de José Custódio de Sá e Faria, engenheiro militar e cartógrafo, ao
que parece, o valor desse documento está atribuído ao nome de quem o
confeccionou. José Custódio de Sá e Faria teve sua importância em suas
viagens, registrando por volta da década de 1760 os mapas dos territórios
que ainda hoje constituem o Brasil, Argentina e Uruguai44.

Dentre os objetos enviados por Santa Catarina para a Exposição, a


maioria era itens documentais e relacionados à Geografia. Foram diversos
mapas, plantas, cartas tipográficas, plantas hídricas45 que, possivelmente,
pretendiam apresentar a Província à Corte Carioca, uma província, à épo-
ca, de ocupação relativamente recente em comparação a outras como São
Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro.

Um fator que, talvez, possa ter influenciado na escolha de quantos e


quais itens seriam expostos por província, além da limitação de espaço da

43 – POULOT, Dominique. Uma história do patrimônio no ocidente. Tradução de Gui-


lherme João de Freitas Teixeira. São Paulo: Estação Liberdade, 2009. 239 p.
44 – REIS, Elisa Pereira. O Estado Nacional como Ideologia: O caso brasileiro. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 187-203, 1988.
45  –  A diferença entre Mapas, Cartas e Plantas, de maneira sucinta é o nível de detalha-
mento e escala de cada um dos documentos, o mapa tem grande escala e, portanto, menos
detalhes, as cartas têm uma escala média assim como seus detalhes e as plantas represen-
tam uma pequena escala do território, mas muito detalhado. (IBGE, 1999)

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Murilo Ristow Catarina
Sandra Paschoal Leite de Camargo Guedes

própria exposição, poderia ser a relevância de cada província no contexto


nacional. Como por exemplo a província do Rio Grande do Sul, que tinha
grande importância militar e de proteção da fronteira sul46 do império teve
3 itens expostos:
Plano corographico individual do Rio Grande de S. Pedro das lagoas de
Merim e da Mangueira e Linguas de Terra que medeiam entre ellas e a
costa do mar e arroyos, etc. Original, com assign, autogr. de Sebastião
Xavier da Veiga Cabral da Camara e Francisco João Roscio. Outro
exemplar com as mesmas assign, autogr. Pertence á demarcação de
limites. Exp.: Arch. Militar e Secret, de Estrangeiros.[...]; Republica
Rio Grandense. Medalha de Cobre; [...]; Estatística da província do
Rio Grande de São Pedro por José Pedro Cezar. 1827.’Original. Exp.:
Arch. Militar47.

São Paulo, que era uma província com um pouco mais de protago-
nismo no cenário imperial, graças à produção de café, também teve três
itens expostos:
S. Paulo. Pint. a oleo. Exp.: S. M. o Imperador; [...] Mappa corogra-
phico da capitania de S. Paulo, [em] que se mostra a verdadeira situa-
ção dos logares por onde se fizeram as sete principaes divisões do seu
Governo com o de Minas Geraes. 1766. Original. Exp.: Arch. Militar;
[...] Memorias e tabellas estatísticas da província de S. Paulo. 1827.
Com a auth. por Joaquim Floriano de Toledo, um dos signatarios da
obra. (B. N.) Vide adiante o n. 67848.

O Rio de Janeiro, capital do Império, foi a província que mais teve


itens expostos, justamente por contar com uma grande quantidade de
itens emprestados pelo próprio imperador, somando aproximadamen-
te 80 itens, dentre eles, os “Trabalhos do dr. Matheus Saraiva lidos na
Academia dos Felizes do Rio de Janeiro” e os “Estatutos da Sociedade
Litteraria do Rio de Janeiro. 1786. Original.”, por exemplo49.

46  –  TARGA, Luiz Roberto Pecoits. O Rio Grande do Sul: fronteira entre duas forma-
ções históricas. Ensaios Fee, Porto Alegre, v. 11, n. 2, p. 308-344, ago. 1991.
47  –  Conforme escrita original: BIBLIOTECA NACIONAL (Brasil). Catálogo da expo-
sição de história do Brasil. Introduções de José Honório Rodrigues e de Otaciano Noguei-
ra. Brasília: Editora do Senado Federal, 1998. 3 v. p. 193.
48 – Ibidem, p. 955.
49  –  BIBLIOTECA NACIONAL (Brasil). Catálogo da exposição de história do Brasil.

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Santa Catarina na Exposição de História do Brasil de 1881

Em Santa Catarina o vazio demográfico, em meados do século XIX,


era considerado imenso já que os indígenas não eram considerados par-
te do mundo civilizado. As necessidades de abastecimento de alimentos
não produzidos pelas grandes propriedades monocultoras e de defesa das
regiões de fronteira com os países vizinhos, no sul do Brasil, impulsiona-
vam o governo imperial a promover a imigração para a região50. Segundo
Guedes, o processo abolicionista também contribuiu com o movimento
imigrantista no Brasil, já que seria necessário substituir aquela mão de
obra empregada de forma abundante no país e, especialmente, nas lavou-
ras monocultoras. Nesse contexto, a imigração europeia parecia a solução
para o governo brasileiro:
A colonização por intermédio das pequenas propriedades rurais foi a
solução encontrada para o sul do país, pois garantiria a posse definiti-
va das terras em conflito e propiciaria às demais regiões alimentos não
produzidos pelos latifúndios monocultores51.

O envio de iconografia das cidades e colônias em crescimento na


Província, provavelmente pretendia demonstrar o desenvolvimento que
ocorria em Santa Catarina com o assentamento de colonos e as ativida-
des econômicas agrárias e de pequenas manufaturas que se instalavam
na província. Um exemplo desse tipo de material enviado para a expo-
sição foi a “Planta da Colônia de Dona Francisca, na província de Santa
Catharina. 1853. Por Herman Liebich.”52, que comprovava a ocupação
daquele espaço geográfico.

Diversas fotos panorâmicas das cidades mais colônias, mapas, fo-


tografias e pinturas, foram enviados para a Exposição. Evidenciando a
importância dada, pela província, a esse tipo de documentação, que mos-

Introduções de José Honório Rodrigues e de Otaciano Nogueira. Brasília: Editora do Se-


nado Federal, 1998. 3 v. p. 558.
50  –  GUEDES, Sandra P. L. de Camargo (Org.). Histórias de (i)migrantes: o cotidiano
de uma cidade. 2. ed. Joinville, SC: Ed. da UNIVILLE, 2005. 266 p.
51 – Idem, p. 14.
52  –  BIBLIOTECA NACIONAL (Brasil). Catálogo da exposição de história do Brasil.
Introduções de José Honório Rodrigues e de Otaciano Nogueira. Brasília: Editora do Se-
nado Federal, 1998. 3 v

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Murilo Ristow Catarina
Sandra Paschoal Leite de Camargo Guedes

trava o trabalho que vinha sendo feito para cumprir os objetivos de ocupar
essas terras com imigrantes e fazê-las produzir.

As “Memórias”53, enviadas por Santa Catarina para a Exposição,


também se relacionavam ao desenvolvimento da infraestrutura na provín-
cia, relatando a abertura de estradas, linhas de comunicação ou constru-
ção de portos. Um exemplo deste tipo de documento enviado à Biblioteca
Nacional, foi o denominado “Primeiras tentativas de huma communi-
cação franca com a Villa de Lages, e Capitania de S. Paulo, ordenadas
pelo Governador da Província de Santa Catharina o Tenente Coronel de
Artilharia José Pereira Pinto, em. o anuo de 1787”54.

Com relação à segurança, foram enviados à capital documentos


com planos de construir mais fortes e seus respectivos projetos como o
“Projecto do Coronel Jozé Custodio para o Forte da Praia da Villa do
Desterro”55.

Também foram enviados jornais produzidos em colônias relativa-


mente novas como o Kolonie-Zeitung, um importante jornal fundado em
1862 e que esteve em circulação até 1941 na colônia Dona Francisca,
atual cidade de Joinville, fundada em 1851. O jornal que era o mais antigo
de matriz germânica em circulação no Brasil, tinha grande tiragem para
a época, contando com cerca de 3500 exemplares e com correspondente
internacional de Hamburgo, na Alemanha. Foi redigido em Alemão até a
Primeira Guerra Mundial, quando passou a se chamar Actualidade e ser
redigido em português56. Até hoje o jornal é considerado um documento
importante para a história de Joinville e região. Esses jornais poderiam
ser entendidos não só como um símbolo de desenvolvimento, mas como
um campo de embates simbólicos e espaço de participação política.
53  –  Nome dado à época, a documentos do tipo relatórios. PINTO, Luiz Maria da Silva.
Diccionario da Lingua Brasileira. Ouro Preto: Typographia de Silva. 1832.
54  –  BIBLIOTECA NACIONAL (Brasil). Catálogo da exposição de história do Brasil.
Introduções de José Honório Rodrigues e de Otaciano Nogueira. Brasília: Editora do Se-
nado Federal, 1998. 3 v
55 – Idem.
56  –  UFPR (ed.).  Kolonie-Zeitung. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/hand-
le/1884/46592. Acesso em: 14 set. 2021.

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Santa Catarina na Exposição de História do Brasil de 1881

Expor mapas e cartas topográficas e hidrográficas, certamente, aju-


dava a enaltecer e mostrar até onde ia o poder do imperador. O interesse
em demonstrar esse poder poderia ser ainda mais compreendido se levar-
mos em conta que a exposição aconteceu apenas 11 anos após o término
da guerra do Paraguai, cujo estopim foi a invasão do território imperial
pelo exército do Paraguai por Solano López, que avançou as fronteiras do
que é hoje o estado de Mato Grosso, em 1864, motivado por uma série
de fatores econômicos, como a disputa por Paraguai e Brasil pelo forne-
cimento de erva mate no mercado latino-americano.57 Segundo Schwarcz
no ápice do conflito a imagem do imperador teve uma alta, com a ideia do
“líder guerreiro”, entretanto o prolongamento da guerra, o elevado núme-
ro de mortes, o congelamento das reformas internas e os altos gastos que,
segundo a autora foram 614 mil contos de réis, onze vezes o orçamento
governamental para o ano de 1864, a imagem do imperador ficou bastante
prejudicada.
A despeito da oscilação, a guerra terminava com uma vitória abalada
pelo número de mortes e pela crueldade das batalhas. A imagem do
imperador também saia abalada; afinal, qual seria o motivo dessa per-
seguição, que inclusive conseguiu emprestar à memória de López um
caráter heroico e patriótico?58

Sem dúvidas, a demonstração de força do imperador passava tam-


bém pela grandeza de seu império, simbolizada por plantas e mapas de
um imenso território que se consolidava pela presença de pessoas que
cultivavam a terra, sinônimo de crescimento econômico na época.

A relação de itens enviados e expostos permitiu que fosse encontra-


da parte do acervo da exposição por meio do portal “Biblioteca Sophia”
anexada ao acervo digital da BN. Os nomes dos itens catarinenses foram
colocados no site do portal, com o filtro da data da exposição, mas não
foram encontrados resultados. Porém, quando é pesquisado “Exposição
1881” na barra de pesquisa, aparecem 115 itens relacionados ao país todo,
57 – SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos
trópicos. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 623 p.
58 – SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos
trópicos. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 313

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Murilo Ristow Catarina
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o equivalente a 0.56% do total de itens que foram enviados ao Rio de


Janeiro para serem expostos. Destes 115 itens, 66 são gravuras, 26 livros,
9 fotografias, 7 manuscritos, 6 desenhos e periódicos, em português, es-
panhol, francês e inglês; documentos esses enviados para a exposição e
incorporados ao acervo da Biblioteca Nacional.

Tendo como referencial os valores identificados por Riegl é possível


pensar em quais valores poderiam ser atribuídos a cada tipo de item en-
viado à exposição.

A julgar pelo número de itens enviados em relação ao número de


itens catarinenses expostos, podemos supor que Santa Catarina não esta-
va em sintonia com o que a exposição queria demonstrar como detentor
de valor histórico. Além do que, ao identificar os valores atribuídos ao
patrimônio histórico catarinense, talvez seja possível entender qual o dis-
curso que a província estava construindo com esses itens.

O álbum de Fotografias
Além de documentos escritos e geográficos, a província catarinen-
se enviou fotografias, mais precisamente quem as enviou foi a Colônia
Dona Francisca. São fotos de um álbum chamado “Vistas Fotográficas
da Colônia Dona Francisca”, produzidas em 1866 pelo fotógrafo Louis
Niemeyer e, segundo Wanderley59, dedicadas e entregues ao imperador.
Pelo que foi possível perceber, o álbum foi enviado para a Exposição de
História do Brasil, em dezembro de 1881, pelo próprio Dom Pedro II, já
que não há registro das fotos no catálogo de itens enviados pela província
catarinense. Em algumas fotografias há datas e em outras não, porém não
há uma data de envio dessas imagens ao imperador. Possivelmente foram
enviadas entre 1868 e 1873, sendo as datas das chegadas dos imigrantes
que tiveram as suas casas fotografadas.

59  –  WANDERLEY, Andrea C. T. Exposição de História do Brasil de 1881-1882. 2019.


Disponível em: https://brasilianafotografica.bn.gov.br/?tag=exposicao-de-historia-do-
-brasil-de-1881-1882. Acesso em: 07 nov. 2021.

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Santa Catarina na Exposição de História do Brasil de 1881

O álbum, que passou a fazer parte da coleção Dona Thereza Cristina


Maria, traz 8 imagens de casas, igrejas, imigrantes e um engenho, a fim
de exemplificar a possível representação do fotógrafo sobre a Colônia. As
fotos estão disponíveis online no portal Brasiliana Fotográfica, que faz
parte da Biblioteca Nacional.

Segundo Boris Kossoy60 as fotografias são fragmentos de um passa-


do, que passam por um filtro, o filtro cultural do fotógrafo, que por meio
dos planos e dos ângulos, cria uma narrativa naquele pequeno espaço
temporal que fica congelado. Entretanto, ao trabalhar com imagens que
foram enviadas ao imperador do Brasil e que fazem parte de uma coleção,
podemos admitir que essas imagens passam por um segundo filtro, o do
colecionador.

Ao constituir uma coleção, de quaisquer objetos, retiramos dele seu


uso principal e lhes atribuímos um status de preciosidade ou de raridade,
uma coleção procura manter o valor de troca dos objetos, porém sem
dar-lhes um valor de uso61. O autor atribui uma série de fatores a este
fenômeno de, ao colecionar algo, torná-lo raro.
Diz-se também que certas peças de colecção são fonte de prazer es-
tético; que outras – e por vezes são as mesmas – permitem adquirir
conhecimentos históricos ou científicos. Enfim, observa-se que o fac-
to de as possuir confere prestígio, enquanto testemunham o gosto de
quem as adquiriu, ou as suas profundas curiosidades intelectuais, ou
ainda a sua riqueza ou generosidade, ou todas estas qualidades con-
juntamente.62

Os objetos que saem do circuito de atividades econômicas e são


guardados com uma proteção especial, estão para Pomian63, como uma
coleção de coleções, que é o que vemos nessas fotografias que passaram
a pertencer à coleção do imperador Dom Pedro II. Contudo, essas fo-
tografias, principalmente ao serem expostas, comunicam uma memória,
60  –  KOSSOY, Boris.  Fotografia e História. 4. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2012.
179 p.
61  –  POMIAN, Krzysztof. Coleção. Enciclopédia Einaudi, v. 1, p. 51-86, 1984.
62  –  Idem, p. 54.
63  –  Idem, Ibdem.

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Murilo Ristow Catarina
Sandra Paschoal Leite de Camargo Guedes

mais precisamente uma memória cultural. Segundo Assmann64, memória


cultural é um tipo de memória coletiva que é compartilhada por um gru-
po de pessoas e que transmite a essas pessoas uma identidade coletiva,
e essa memória coletiva pode ser transmitida através de uma memória
comunicativa.
A memória cultural é um tipo de instituição. Ela é exteriorizada, ob-
jetivada e armazenada em formas simbólicas que, diferentemente dos
sons de palavras ou da visão de gestos, são estáveis e transcendentes à
situação: elas podem ser transferidas de uma situação a outra e trans-
mitidas de uma geração a outra65.

A memória cultural, segundo o autor, está aliada ao tempo histórico,


mítico e cultural, ou seja, ela se relaciona com os conceitos de tempo
como uma identidade cultural, portanto, as fotografias são um transmis-
sor de uma mensagem por repassar essa identidade, já que a memória é
compartilhada e coletiva ao grupo social que se identifica com ela.

Aliado a esse conceito, podemos compreender, então, as fotogra-


fias como um transmissor dessa memória cultural, que está impressa em
uma fração do espaço-tempo, que passa por um “arranjo” de significados
quando o fotógrafo a produz.

Partindo para as fotografias, podemos começar pela foto de um en-


genho de açúcar (Figura 1) que pertencia ao Duque D’Aumale, irmão
do príncipe de Joinville, sendo assim cunhado do imperador. A Figura
1 mostra, ao fundo, uma grande construção com alguns instrumentos à
frente, mas o que chama a atenção é a pessoa à esquerda que está com
uma vestimenta muito diferente das demais, muito bem-vestido, com
suas calças brancas, colete, chapéu e um casaco longo.

A propriedade do Duque em Joinville era chamativa por seu tama-


nho, segundo Ficker66 a propriedade já tinha um aspecto fabril, com cha-
64  –  ASSMANN, Jan. Memória comunicativa e memória cultural. História Oral, v. 19,
n. 1, p. 115-127, jan./jun. 2016.
65  –  ASSMANN, Jan. Memória comunicativa e memória cultural. História Oral, v. 19,
n. 1, p. 115-127, jan./jun. 2016. p. 118.
66  –  FICKER, Carlos. História de Joinville: subsídios para a crônica da Colônia Dona

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Santa Catarina na Exposição de História do Brasil de 1881

miné alta e com acomodação para os funcionários, além de muitas ferra-


mentas e uma vasta plantação ao longo do Rio Cubatão.
A montagem da caldeira e das máquinas, para a fabricação de cachaça
e açúcar, prosseguia em ritmo normal, oferecendo a fazenda do Duque
d’Aumale, em meados de 1866, um aspecto fabril, com a sua chaminé
alta, a casa de máquinas e diversas dependências para acomodação
dos trabalhadores, petrechos agrícolas, cavalos e bois. Grandes áreas
foram desmatadas e transformadas em pastos. As plantações de cana-
-de-açúcar se estendiam ao longo do Rio Cubatão67.

Figura 1:Engenho de açucar de S. A. R. o Duque de Aumale:


perto da rua da Ilha ao lado esquerdo do Cubatão, 1866.
Joinville, Santa Catarina/ Acervo BNDigital.

Segundo Wanderley68, o autor das fotografias, Louis Niemeyer foi


diretor da colônia Dona Francisca de 1860 até 1873 e, em 1871, enviou
um ofício ao governo imperial tratando do desenvolvimento da agricultu-

Francisca. 2. ed. Joinville, SC: Letradágua, 2008.


67  –  Idem, p. 250.
68  –  WANDERLEY, Andrea C. T. Exposição de História do Brasil de 1881-1882. 2019.
Disponível em: https://brasilianafotografica.bn.gov.br/?tag=exposicao-de-historia-do-
-brasil-de-1881-1882. Acesso em: 07 nov. 2021.

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Murilo Ristow Catarina
Sandra Paschoal Leite de Camargo Guedes

ra em Santa Catarina, requisitando ao império um pouco mais de atenção


em relação à economia da província, principalmente da colônia em que
ele era diretor. Sendo assim, se a ideia era demonstrar o desenvolvimento
da província catarinense e principalmente da Colônia na área agrícola –
nada mais interessante que dedicar ao próprio imperador uma imagem
de um engenho de açúcar e de alguém de tamanha importância como o
Duque.

A Figura 2 é a única foto do álbum que tem como foco principal a


figura humana. São 5 homens em um plano fechado, armados com seus
rifles ou empunhando ferramentas e posando olhando diretamente para
o fotógrafo. Dos cinco homens, apenas um é identificado tanto com seu
nome como sua profissão, o Engenheiro alemão A. Wunderwald.

A imagem passa um ar de desbravadores, representa os imigrantes


alemães que por aqui se instalaram como os conquistadores de uma terra
ainda inexplorada.

Figura 2: O Engenheiro A. Wunderwald com seus companheiros, 1866.


Joinville, Santa Catarina / Acervo BNDigital.

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Santa Catarina na Exposição de História do Brasil de 1881

Com a visão desses desbravadores, podemos pensar que a imagem ti-


nha a intenção de demonstrar a conquista de terras inóspitas, habitadas por
animais selvagens e indígenas, já que no século XIX, os indígenas eram
considerados selvagens e que precisariam ser civilizados. A. Wunderwald
foi um engenheiro importante para a colônia Dona Francisca, sob suas
ordens em 1855 deu-se início a construção de uma estrada para transpor
a Serra do Mar, a Estrada Dona Francisca, e que alcançava o planalto,
possibilitando o escoamento da produção não só da Colônia, mas de toda
a região69.

As demais fotos do álbum são de casas. Ao todo são 5 fotos de ca-


sas, todas atreladas ao nome dos seus donos e aos ofícios deles, dentre
elas, talvez os exemplos mais conhecidos sejam a casa de Ottokar Dörffel
(Figura 3), político influente na Colônia, fundador do principal jornal da
época, o Kolonie Zeitung, e cônsul de Hamburgo; atualmente abriga em
sua casa o Museu de Arte de Joinville (MAJ).

Figura 3:Casa do Sr. O. Dörffel, caixeiro da direção e consul de Hamburgo.


Joinville, Santa Catarina / Acervo BNDigital.

69  –  VIEIRA, C. V.; GUEDES, Sandra P. L. C.. Mapeamento das rotas dos viajantes
estrangeiros na baía da Babitonga entre os séculos XVI e XIX. Caderno de Iniciação à
Pesquisa (UNIVILLE), v. 7, p. 306-309, 2005.

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Murilo Ristow Catarina
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A outra residência fotografada foi a casa da direção da Colônia


(Figura 4), que tinha como proprietário Léonce Aubé, representante do
príncipe de Joinville e do seu irmão, Duque d’Aumale, que ocupou o
cargo de diretor da colônia até 1860 quando pediu demissão e foi substi-
tuído por Louis Niemeyer. Essa residência abriga o Museu Nacional de
Imigração e Colonização (MNIC).

Figura 4:Casa da direção: dono o Sr. L. Aubé, 1866. Joinville, Santa Catarina/ Acervo BNDigital.

A casa da Figura 5 pertencia a Jordan, influente negociante de


Joinville. Localizada na “rua do Caxoeira”, atual rua Princesa Isabel, pró-
xima ao rio de mesmo nome e que corta o centro da cidade. Assim como
o Duque, Jordan era alguém com bastante poder financeiro na Colônia
como um dos sócios da Companhia Industrial, uma empresa exportadora
de erva-mate. Mesmo depois que a Companhia se desfez, Jordan ainda
continuou como comerciante e exportador de erva-mate70.

70 – FICKER, Carlos. História de Joinville: subsídios para a crônica da Colônia Dona


Francisca. 2. ed. Joinville, SC: Letradágua, 2008.

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Santa Catarina na Exposição de História do Brasil de 1881

Figura 5: Casa do Sr. Jordan, negociante, rua do Caxoeira. Joinville, Santa Catarina / Acervo BNDigital.

Essa imagem é interessante por alguns fatores, apresenta algumas


casas em volta, um cavalo amarrado à frente da casa, onde também se
pode ver duas mulheres e um homem, vestidos com trajes que não reme-
tem ao trabalho braçal. Além de demonstrar a ocupação demográfica da
região, com as casas, a foto pode utilizar do fato dessa edificação ser uma
boa casa, para demonstrar o desenvolvimento econômico da Colônia. As
fotos mostram casas de comerciantes (Figura 5, 6 e 7), a quarta de uma
indústria e a quinta demonstrando o empenho da Colônia em desbravar
o sertão e providenciar infraestrutura para o desenvolvimento econômico
regional.

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Figura 6: Casa do Snr. Richlin, sapateiro, rua do Príncipe. Joinville, Santa Catarina / Acervo BNDigital.

Jacob Richlin, cuja residência aparece na Figura 6, por sua vez, era
um imigrante que chegou à Colônia em 1851, com 28 anos de idade, se-
gundo a lista de Imigrantes71 na Colônia Dona Francisca. Um sapateiro
protestante que viajou na 1ª classe, o que pode indicar seu poderio econô-
mico, já que os navios de imigrantes possuíam três classes e os operários,
pedreiros e lavradores, funções mais simples na época, ocupavam a 3ª
classe.

Na Figura 7 é possível observar outra casa com um bom padrão


para a época, pertencente a G. Hasse, um comerciante de 37 anos vindo
também de 1ª Classe o que, como no exemplo anterior, indica um poder
econômico mais elevado. Hasse era um imigrante que chegou à Colônia
em 1868, essa foto foi produzida entre 1868 e 1871, quando o álbum foi
enviado ao imperador.

71  –  ARQUIVO HISTÓRICO DE JOINVILLE. Lista de Imigrantes. Joinville. 2016

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Santa Catarina na Exposição de História do Brasil de 1881

Figura 7: Casa do Snr. G. Hasse, negociante, rua do Príncipe. Joinville, Santa Catarina / Acervo BNDigital.

É possível presumir que ao fotografar essas casas, o diretor da colô-


nia, além de chamar a atenção para o desenvolvimento econômico, como
já citado, poderia demonstrar a diversidade de atividades comerciais da
colônia, desde um grande comerciante de erva mate, um fabricante de
sapatos e um negociante que havia chegado recentemente.

Por fim, a Figura 8 retrata uma igreja católica ao fundo, com um ce-
mitério em primeiro plano, e uma grande árvore. A questão interessante
é, se a maioria dos imigrantes que chegaram na Colônia eram seguidores
do protestantismo72 e a Colônia possuía uma casa de oração, por que tirar
uma foto de uma igreja católica? Não se pode esquecer que o catolicismo
era a religião oficial do Império brasileiro e essa era a igreja católica da
Colônia.

72 – FICKER, Carlos. História de Joinville: subsídios para a crônica da Colônia Dona


Francisca. 2. ed. Joinville, SC: Letradágua, 2008.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):57-90, jan./abr. 2022. 83


Murilo Ristow Catarina
Sandra Paschoal Leite de Camargo Guedes

Figura 8:Igreja Catholica da rua da Telheira, 1866. Joinville, Santa Catarina / Acervo FBN.

Infelizmente não saberemos com toda certeza quais eram as inten-


ções, representações, memórias e filtros culturais que o fotógrafo se apro-
priou, porém podemos levantar hipóteses com base no que é conheci-
do pela historiografia. No caso da imagem da igreja, poderia sim haver
a intenção de Louis Niemeyer fotografar uma igreja católica a fim de
criar uma identificação com o imperador e mostrar que um dos requisi-
tos do Contrato de Colonização firmado entre o Império e a Companhia
Colonizadora de Hamburgo, que colonizou a região, era ter uma igreja,
dentre outras coisas73.

Uma exposição de história de presente para o imperador.


Ao analisar o contexto da exposição e a intenção de comemorar o
aniversário do imperador do Brasil, algumas questões podem ser levan-
tadas. Como, por exemplo, qual a importância de presentear o imperador

73 – Ibidem.

84 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):57-90, jan./abr. 2022.


Santa Catarina na Exposição de História do Brasil de 1881

com uma exposição de história? Qual a memória que se desejava cons-


truir acerca do império e do imperador?

Para entender essas ligações, precisamos relembrar da figura do im-


perador Dom Pedro II, um homem entusiasta da ciência e que se envolveu
em vários projetos para o desenvolvimento científico brasileiro, como o
de fundar o IHGB, com o objetivo de salvaguardar os documentos impor-
tantes para a história da nação. Além da história da nação, o imperador
também se interessava pela história como um todo, trazendo, inclusive,
múmias em uma de suas viagens para o Egito, que foram incorporadas
ao acervo do Museu Real74. Além de entender a afeição do imperador
pelas ciências, temos o contexto das comemorações, pois dentre os vários
rituais comemorativos em que Estado e Igreja estavam envolvidos, os
aniversários de Dom Pedro II eram festejados de manhã até a noite no
dia 2 de dezembro, com imagens do imperador pelas ruas e iluminação
especial em prédios públicos 75.

Halbwachs76 define a memória histórica como uma memória ligada


a uma cronologia e a existência de uma história. Para Halbwachs há um
sentimento de pertencimento nessas memórias que são coletivas ao mes-
mo tempo que são memórias históricas. Nesse contexto, essas memórias
se assemelham com a memória histórica associada ao imperador, sendo
memórias coletivas, produzidas por todo o aparato do império e que as
comemorações públicas imperiais reafirmavam, como uma divulgação
para a memória autobiográfica do imperador Dom Pedro II.

Para Halbwachs a memória autobiográfica, ou seja, a memória que


conta a vida de um indivíduo, e a memória histórica têm uma forte re-
lação. No caso do imperador, relacionada à ciência, pois a memória da
nossa vida possui uma história, um passado esquematizado, denso, e com
um presente e futuro narrado de forma contínua

74 – SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos


trópicos. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 623 p.
75 – BASILE, Marcello Otávio Neri de Campos. Festas cívicas na Corte regencial. Va-
ria História, Belo Horizonte, v. 22, n. 36, p. 494-516, jul/dez. 2006.
76  –  HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo. Vértice, 1990.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):57-90, jan./abr. 2022. 85


Murilo Ristow Catarina
Sandra Paschoal Leite de Camargo Guedes

[...] uma (memória) interior ou interna, a outra exterior; ou então a


uma memória pessoal, a outra memória social. Diríamos mais exata-
mente ainda: memória autobiográfica e memória histórica. A primeira
se apoiaria na segunda, pois toda história de nossa vida faz parte da
história em geral. Mas a segunda seria, naturalmente, bem mais ampla
do que a primeira. Por outra parte, ela não nos representaria o passado
senão sob uma forma resumida e esquemática, enquanto a memória
de nossa vida nos apresentaria um quadro bem mais contínuo e mais
denso77.

Pollak78 também faz alusão à relação entre a memória coletiva e a


história, quando atribuímos um valor a um passado, como tempos som-
brios, ou época de ouro, estamos fazendo muito mais relação com uma
memória histórica/coletiva do que somente com a história que se quer
contar, e isso é extremamente importante quando falamos na manutenção
das memórias acerca do imperador e seu império.

A memória segundo Halbwachs, que também é citado por Pollak é


como uma estrada de mão dupla, entre o individual e a memória coletiva,
pois ao mesmo tempo que você tem suas particularidades que o fazem ter
uma memória diferente, você está inserido em um grupo que compartilha
as memórias com você e você compartilha as suas com ele, e são alimen-
tados pela sua memória. Segundo o autor, dificilmente terá uma memória
somente sua, pois enquanto ser sociável e inserido em um grupo social,
tem referências e se baseia nas memórias desse grupo.

Assim compreendemos a dinâmica da memória criada pelos institu-


tos de memória e história no Brasil do século XIX, quando, por exemplo,
o IHGB e a Academia Imperial de Belas Artes (AIBA) trabalhavam jun-
tos para reproduzir as artes relacionadas à história do Brasil e criar uma
visão de história oficial a partir das pinturas produzidas na AIBA79. Cria-
se uma memória coletiva, a história unificada de uma nação, extinguem-
77 – Idem, p. 59.
78 – POLLAK, Michel. Memória e identidade social. Revista Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, v. 5, n.10, p. 200–212. 1992.
79 – VIERTEL, Guilherme; GUEDES, Sandra P.L. de Camargo. A obra Combate Naval
do Riachuelo como lugar de memória da Guerra do Paraguai. Revista do Instituto Históri-
co e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 180, n. 481, p. 95-120, set/dez. 2019

86 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):57-90, jan./abr. 2022.


Santa Catarina na Exposição de História do Brasil de 1881

-se os conflitos de poder que os mais diversos grupos sociais travam sobre
essa nação unificada e pacífica, e então a memória histórica se mescla
com a memória coletiva e com a memória autobiográfica.

A memória e o esquecimento detêm um poder no seu âmbito cole-


tivo, não que todos os indivíduos dividam a mesma memória, mas que
a memória seja controlada ou manipulada em sua coletividade. E isso é
alvo de estudos e de confrontos sociais para ter o poder dessa memória.
Tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes
preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram
e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios
da história são reveladores destes mecanismos de manipulação da me-
mória coletiva80.

No século XIX a memória histórica ganha uma face nacional e de co-


memoração, como um suporte para a história da nação. Para isso criam-se
vários instrumentos para essa memória se tornar hegemônica, atendendo
a essas nações e um novo simbolismo que emerge na Europa.
A comemoração apropria-se de novos instrumentos de suporte: mo-
edas, medalhas, selos de correio multiplicam-se. A partir de meados
do século XIX, aproximadamente, uma nova vaga de estatuária, uma
nova civilização da inscrição (monumentos, placas de paredes, placas
comemorativas nas casas de mortos ilustres) submerge nas nações eu-
ropeias. Grande domínio em que a política, a sensibilidade e o folclore
misturam-se e que espera os seus historiadores81.

Os indivíduos que fazem parte de um grupo social criam representa-


ções das origens, história e natureza desse grupo, baseadas em memórias
por eles compartilhadas e por quem está no domínio da ação política,
dando origem a legitimação dos desejos nacionalistas; no domínio da
ação cultural, podemos entender os discursos veiculados pelas coletivida-
des territoriais, Estados, museus e instituições de pesquisa patrimoniais.
Assim, cria-se o objetivo e a necessidade de conservar, restaurar e va-

80 – LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução: Bernardo Leitão. Campinas:


Unicamp, 1990. p. 422.
81 – LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução: Bernardo Leitão. Campinas:
Unicamp, 1990. p. 458.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):57-90, jan./abr. 2022. 87


Murilo Ristow Catarina
Sandra Paschoal Leite de Camargo Guedes

lorizar a identidade compartilhada pelos integrantes do grupo e os seus


ancestrais82.

A partir dessa discussão podemos compreender o porquê de presen-


tear o imperador do Brasil com uma exposição de história: a manutenção
da memória, através de uma exposição e dos discursos que ela possibili-
ta. Percebemos então, a possível intenção da Biblioteca Nacional em de-
monstrar todo o poder do imperador e do império por meio dos documen-
tos, iconografias e mapas, e todo o desenvolvimento da nação por meio
da história, sem esquecer do objetivo de Muniz Galvão de enriquecer o
acervo documental da Biblioteca Nacional.

Considerações finais
A partir do que vimos podemos estabelecer uma questão que irá
guiar as considerações acerca do patrimônio cultural catarinense enviado
à Exposição de História do Brasil de 1881. Podemos entender o que era
considerado patrimônio histórico para a província no contexto de uma ex-
posição nacional: documentos, mapas, legislação, documentos escritos,
muitas vezes oficiais.

Através do Guia da Exposição, em que há a relação de itens expos-


tos, percebe-se que os organizadores da exposição atribuíram os valores
cognitivos, estéticos e de raridade aos itens enviados por todo o país,
expondo itens raros sobre a história do Brasil, ou obras clássicas sobre
a nação e a produção intelectual representada por diversos documentos,
construindo um discurso de um império em desenvolvimento, organizado
e potente militarmente.

Santa Catarina queria demonstrar a ocupação de um vazio demo-


gráfico, enaltecer seu desenvolvimento, sua tecnologia e contribuir com
a construção da imagem de um imperador poderoso, demonstrando todo
seu território com os mapas, e o seu poder militar com imagens de fortes,
de soldados e de bugreiros, levando em conta que no século XIX era re-
82 – CANDAU, Joël. Memória e Identidade. Tradução de Jaime Pinsky. São Paulo:
Contexto, 2011.

88 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):57-90, jan./abr. 2022.


Santa Catarina na Exposição de História do Brasil de 1881

corrente a preocupação com as incursões indígenas no território nacional.


Nesse contexto, os bugreiros eram entendidos também como uma força
de segurança, não contra ameaças externas, mas sim contra o perigo re-
presentado pelos indígenas.83

Ao analisar as fotografias de uma das colônias Catarinenses enviadas


para a exposição, mas que não foram expostas, podemos perceber uma
memória cultural sendo reafirmada e transmitida por meio dessas foto-
grafias, inerentes à intervenção de quem as produz, que com sua visão de
mundo filtra o que preservar e o que deixar ser esquecido com o passar
dos anos.

Percebemos também a demonstração de vários aspectos da colônia


Dona Francisca, como se através das fotos, se fizesse uma grande propa-
ganda do desenvolvimento agrícola com o seu engenho e do seu comércio
com várias fotos de casas de comerciantes. Afinal, ao diretor da colônia
interessava que se demonstrasse que essa estava se desenvolvendo e que
merecia mais investimentos por parte do governo imperial.

Também se demonstra a visão do desbravador aventureiro que era


atribuída aos imigrantes e estava presente em tantos discursos sobre a
imigração europeia para Santa Catarina. Por outro lado, as armas podem
representar a defesa contra animais ferozes ou a violência contra a popu-
lação que aqui já estava quando os imigrantes chegaram, já que a ideia de
se levar a civilização e o progresso, muitas vezes significava espantar ou
exterminar os indígenas.

Talvez, por todas essas demonstrações, memórias e representações


registradas nessas fotos que foram expostas na Exposição de História do
Brasil de 1881, reforçam-se as hipóteses que foram levantadas, principal-
mente dos valores históricos dos documentos e a intenção de, no caso das
fotografias, chamar atenção do governo imperial e criar um vínculo para
atrair investimentos para a colônia.

83  –  GUEDES, Sandra P. L. de Camargo; OLIVEIRA NETO, Wilson de; OLSKA, Ma-
rilia Gervasi. O exército e a cidade. Joinville, SC: Univille, 2008. 192 p.

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Murilo Ristow Catarina
Sandra Paschoal Leite de Camargo Guedes

Por fim, a fotografia se mostra um documento rico em detalhes quan-


do analisamos o contexto em que foi produzida. Ela quebra a lógica do
tempo, que sempre tem pressa e quer passar, apresentando uma dimensão
palpável e visual de uma cidade há cento e quarenta anos.

Texto apresentado em dezembro de 2021. Aprovado para publicação


em junho de 2022. 

90 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):57-90, jan./abr. 2022.


Em busca de outros sentidos: As críticas ao modelo interpretativo
Pradiano e as recentes explicações das estruturas coloniais

91

EM BUSCA DE OUTROS SENTIDOS: AS CRÍTICAS AO


MODELO INTERPRETATIVO PRADIANO E AS RECENTES
EXPLICAÇÕES DAS ESTRUTURAS COLONIAIS
IN SEARCH OF OTHER MEANINGS: CRITIQUES OF PRADO´S
INTERPRETIVE MODEL AND THE RECENT EXPLANATIONS
OF COLONIAL STRUCTURES
Luís Carlos Albano Duarte Sousa1
Johny Santana de Araújo2
Raimundo Jucier Sousa de Assis3

Resumo: Abstract:
Este artigo tem por objetivo principal uma aná- The main aim of the paper is to carry out a
lise vertical do capítulo Sentido da colonização, vertical analysis of the chapter Meaning of
mote utilizado por Caio Prado Júnior (2011) Colonization, written by Caio Prado Júnior
para explicar a Formação do Brasil contempo- (2011) in order to explain the Formation of
râneo, em contraste com críticas e complemen- Contemporary Brazil, in contrast to critiques
tações ligadas à sua interpretação. Após expor- and additions linked to his interpretation.
mos os principais pontos que fundamentaram We present the main facts that supported
sua narrativa, buscaremos elencar, através dos his narrative, analyse the essays written by
ensaios de Costa (2010) e Souza (2010), alguns Costa (2010) and Souza (2010), and list some
pontos dignos de reconsiderações, observando a viewpoints worthy of reconsideration, in light
revisão empreendida por Novais (1969). Então, of Novais´review. (1969). Next, we analyse the
utilizaremos da obra de Luiz Felipe de Alencas- work of Luiz Felipe de Alencastro (2001) and
tro (2001) para apontarmos as aproximações point out the similarities between both authors,
entre esses dois autores, destacando as possi- highlighting the subsequent possibilities
bilidades subsequentes para a formulação de of formulating new analytical keys for the
novas chaves analíticas para o período colonial. colonial period. The purpose is to emphasize
Pretendemos expor a importância de conside- the importance of considering the colonial
rarmos as estruturas coloniais desveladas desde structures unveiled since Caio Prado Júnior for
Caio Prado Júnior na construção de modelos the construction of interpretive models about
interpretativos sobre o período, que continuam the period, which remain current in the face of
atuais diante de novos paradigmas. new paradigms.
Palavras-chave: Caio Prado Júnior; colonialis- Keywords: Caio Prado Júnior; colonialism;
mo; estrutura. structure.

1  –  https://orcid.org/0000-0002-3143-5002. Universidade Federal do Piauí, Centro de


Ciências Humanas e Letras, Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Ciência
Política, Teresina, PI, Brasil. E-mail: luis-albano@hotmail.com.
2  –  https://orcid.org/0000-0003-3082-1785. Universidade Federal do Piauí, Centro de
Ciências Humanas e Letras, Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Ciência
Política, Teresina, PI, Brasil. E-mail: johny@ufpi.edu.br.
3  –  https://orcid.org/0000-0001-6573-7175. Universidade Federal do Piauí, Centro de
Ciências Humanas e Letras, Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Ciência
Política, Teresina, PI, Brasil. E-mail: raimundojucier@ufpi.edu.br.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):91-116, jan./abr. 2022. 91


Luís Carlos Albano Duarte Sousa
Johny Santana de Araújo
Raimundo Jucier Sousa de Assis

Introdução
Os debates mais recentes em torno da colonização portuguesa nas
Américas têm ganhado muito com as contribuições que buscam ampliar
seu “sentido”, garantindo releituras capazes de dar voz aos elementos
que, muito embora não tenham sido silenciados pela empiria presente nas
obras clássicas, muitas vezes não foram explorados em suas potencialida-
des. Reconhecido o devido valor destas novas propostas, preocupa-nos,
no entanto, a tendência ao abandono das grandes estruturas elencadas
principalmente por autores marxistas, o que pode resultar na perda de
algumas contribuições relevantes para a construção da própria historio-
grafia brasileira. Aqui, destacamos Caio Prado Júnior em Formação do
Brasil contemporâneo.

Sua obra deu base para a construção de um verdadeiro “paradigma


Pradiano”, cravando o conceito de “sentido da colonização” em gran-
de parte dos trabalhos subsequentes que tratavam do tema. Prado Júnior,
em sua tese, analisou extensa documentação tendo em vista uma questão
comum à sua geração, preocupada em fundar as “raízes” da recente re-
pública brasileira, ainda em busca de sua identidade nacional: quais os
elementos explicativos de Brasil?4 Wilma Peres Costa chamou atenção
para o contexto das décadas de 1920 e 1930, com crises do sistema polí-
tico, colapso do modelo de economia agrário-exportador e instabilidades
sociais, fomentando nessa geração um profícuo debate sobre Estado e
Nação, levando novos desafios à “questão nacional”5. Assim, Caio Prado
concluiu que a exploração colonial engendrou estruturas capazes de en-
gessar o país em seu caráter de dependência, permanecendo com um ob-
jetivo exterior, o que impediu rupturas históricas mais efetivas, inclusive
no caso da independência de Portugal.

4  –  Destacamos além de Prado Júnior, dentro dessa geração, Sérgio Buarque de Holanda
em Raízes do Brasil (1936) e Gilberto Freyre em Casa-grande e senzala (1933), grandes
obras que buscaram interpretar a constituição do Brasil a partir de seus elementos forma-
dores enquanto colônia.
5  –  COSTA, Wilma Peres. “A independência na historiografia brasileira”. In: JANCSÓ,
István. Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec; FAPESP, 2005, p.
74.

92 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):91-116, jan./abr. 2022.


Em busca de outros sentidos: As críticas ao modelo interpretativo
Pradiano e as recentes explicações das estruturas coloniais

Buscaremos, neste artigo, ponderar verticalmente o capítulo Sentido


da colonização, que introduz a Formação do Brasil contemporâneo, em
contraste com alguns escritos que aprofundaram as análises ou questio-
naram as limitações do padrão analítico Pradiano, suas consequências e
possíveis superações. A saber, esses escritos são dois ensaios dos autores
Iraci del Nero da Costa e João Paulo A. de Souza; intervenções feitas por
Fernando Novais em suas Considerações sobre o sentido da colonização,
avaliando as revisões empreendidas pelo autor; além disso, a obra O trato
dos viventes. A formação do Brasil no Atlântico Sul, na qual Luiz Felipe
de Alencastro elucida a centralidade da instituição escravidão no período
colonial e na consequente formação da identidade brasileira.

O debate em torno desses sentidos explicativos de Brasil tem se


renovado nos mais diversos campos do conhecimento, em especial na
História, como chave analítica do período colonial6. Motivo de nosso in-
teresse, essa atualidade justifica-se na contínua busca por sentidos ca-
pazes de, valorizando a agência dos atores históricos e as mais diversas
formas com que a história pode se apresentar, conectarem passado e pre-
sente, de forma a preservar, nos próprios conflitos teóricos, a forma mais
condizente de aproximarmo-nos do passado.

Interessa-nos a importante compreensão das estruturas coloniais na


construção desses pensamentos. Estes modelos interpretativos não são
excludentes entre si, mas complementares: reconhecer isto, é também
distinguir as principais limitações de cada um deles, contribuindo para
uma integração que não adote o caminho simplista da exclusão de concei-
tos importantes e necessários. Por isso, importa aqui uma possibilidade
alternativa de interpretação, fomentando uma relação dialógica em que
6  –  A atualidade e relevância do debate se mostram nas recentes publicações de artigos
com considerável alcance através de citações, como pudemos observar no rastreamento
feito sobre o tema, em áreas além da História. Como exemplos, referenciamos também:
VIEIRA, Carlos Alberto Cordovano. “Sentido da colonização e revolução brasileira: crí-
tica de caracterizações do modo de produção colonial”. Serv. Soc. Soc., São Paulo, n.
129, p. 205-224, mai/ago. 2017; SALLES, Wesley Dartagnan. “A quebra do paradigma
‘Sentido da Colonização’: notas sobre o debate historiográfico do Brasil Colonial, Antigo
Sistema Colonial e Antigo Regime nos Trópicos”. Almanack, Guarulhos, n. 15, p. 245-
293, 2017.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):91-116, jan./abr. 2022. 93


Luís Carlos Albano Duarte Sousa
Johny Santana de Araújo
Raimundo Jucier Sousa de Assis

sobressaiam as contribuições intrínsecas para uma boa e ampla compre-


ensão até mesmo do que seria o próprio elemento colonial em si, para que
se possa revisá-lo sem perder a sua essência e complexidade.

O sentido da colonização para Caio Prado Júnior

Todo povo tem na sua evolução, vista à distância, um certo “sentido”.


Este se percebe não nos pormenores de sua história, mas no conjun-
to dos fatos e acontecimentos essenciais que a constituem num largo
período de tempo. Quem observa aquele conjunto [...] não deixará
de perceber que ele se forma de uma linha mestra e ininterrupta de
acontecimentos que se sucedem em ordem rigorosa, e dirigida sempre
numa determinada orientação7.

A análise histórica interpretativa que Caio Prado Júnior desenvol-


veu para o período colonial brasileiro é tributária de uma visão linear e
estruturalista da história, como se verá no segundo tópico. Tendo escrito
Formação do Brasil contemporâneo na primeira metade do século XX,
o que se percebeu no resultado foi uma explicação fortemente marcada
pelo viés econômico de sua formação, para formular respostas àquilo que
julgou como problema do seu próprio tempo. Nesse bojo, tratou de evi-
denciar as grandes estruturas que extrapolaram o período colonial em que
se formaram, e atingiram a contemporaneidade.

Dessas estruturas elencadas, sobressai aquela que constituiu o sen-


tido da colonização para Prado Júnior: a grande lavoura de monocultura
proporcionada pelo trabalho escravo, e a permanência do Brasil como
um país criado com um objetivo exterior, através do abastecimento da
Europa com produtos primários. Dessa forma, o Brasil foi interpretado
como uma das engrenagens necessárias para o acúmulo de capital, sendo
o empreendimento colonial uma peça que manteve funcionando a máqui-
na que exercia a força centrípeta: o continente europeu. Nessa analogia,
Portugal orientou todas as atividades em seus domínios para o sentido
de abastecer-se enquanto metrópole, contribuindo para a configuração do
7  –  PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2011, p. 13.

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Em busca de outros sentidos: As críticas ao modelo interpretativo
Pradiano e as recentes explicações das estruturas coloniais

mundo moderno, no qual a Europa se estendeu dominante por toda parte8.


As Américas ocuparam, aqui, o simples papel de “capítulo da história do
comércio europeu”, um obstáculo que se transpôs na corrida marítima
ibérica em direção ao oriente9.

Nessa perspectiva, a grande lavoura guiou as relações metrópole-


-colônia em todos os âmbitos, desde a ocupação do território, passando
pela exclusão dos povos nativos, até a formulação de sucessivos ciclos
econômicos. Ou seja, delimitando as relações de trabalho e de posse da
terra. A lógica da monocultura de trabalho escravo voltado para o comér-
cio exterior incapacitou a participação de diversos setores da sociedade,
até o fim do período colonial, mas sobremaneira os indígenas, sobre quem
a interpretação Pradiana ressalta a incapacidade “de fornecer qualquer
coisa de realmente aproveitável”10. O processo de povoamento e organi-
zação de território e de produção originado daí, fez-se segundo a ordem
econômica portuguesa: inicialmente nos projetos extrativistas, depois
substituído pela agricultura, oferecendo um alicerce econômico durável
aos empreendimentos coloniais11.

Dentro do processo de ocupação e inserção dos territórios das


Américas no empreendimento colonizador português, Prado Júnior cha-
mou atenção para o aspecto da exploração, a partir da tese na qual as áreas
tropical e subtropical foram, por seu caráter naturalmente repelente, des-
bravadas por aventureiros. Nisto diferenciava-se a ocupação da América
temperada, propícia para um “novo mundo”, próximo da Europa12. Essa
caracterização do Brasil contribuiu sobremaneira para a justificação da
exigência de “estímulos diferentes e mais fortes” para atrair o colono eu-

8  –  PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Compa-


nhia das Letras, 2011, p. 14.
9  –  PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2011, p. 16.
10  –  PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2011, p. 18.
11  –  PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2011, p. 19.
12  –  PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2011, p. 21.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):91-116, jan./abr. 2022. 95


Luís Carlos Albano Duarte Sousa
Johny Santana de Araújo
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ropeu e, por conseguinte, para a explicação da necessidade do trabalho


escravo: “trazendo esse agudo interesse, o colono europeu não traria com
ele a disposição de por-lhe à serviço, neste meio tão difícil e estranho. [...]
Outros trabalhariam para ele”13.

O modelo explicativo Pradiano conseguiu tecer uma linha mestra


que perpassou os mais diversos âmbitos da sociedade colonial na justi-
ficativa da grande lavoura. Dessa maneira, aquela configuração de um
Brasil inóspito, destinado à colonização de exploração, fez com que
Prado Júnior excluísse de suas interpretações grandes parcelas da socie-
dade (não só negros e índios, mas também portugueses sem posses), va-
lorizando o senhor proprietário, epicentro das unidades produtoras. Em
suas próprias palavras, a “maioria dos colonos estava assim nos trópicos
condenada a uma posição dependente e de baixo nível”14.

Essa perspectiva teleológica do período colonial fez com que Prado


Júnior caracterizasse a colonização dos trópicos como uma “vasta em-
presa comercial, mais complexa que a antiga feitoria, [...] destinada a
explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do
comércio europeu”15. A partir da diferenciação em relação à conquista
das zonas temperadas, que desconsiderava a essência danosa de qualquer
tipo de colonização, o Brasil foi colocado como resultante dos elemen-
tos econômico-sociais “da formação e evolução histórica dos trópicos
americanos”16.
Se vamos à essência da nossa formação, veremos que na realidade
nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros;
mais tarde ouro e diamantes; depois, algodão, e em seguida café, para
o comércio europeu. Nada mais que isto. [...] Tudo se disporá naquele
sentido: a estrutura bem como as atividades do país. [...] O “sentido”

13  –  PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2011, p. 22.
14  –  PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2011, p. 23.
15  –  PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2011, p. 25.
16  –  PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2011, p. 25.

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Em busca de outros sentidos: As críticas ao modelo interpretativo
Pradiano e as recentes explicações das estruturas coloniais

da evolução brasileira que é o que estamos aqui indagando, ainda se


afirma por aquele caráter inicial da colonização17.

Podemos compreender, assim, como se desenhou o sentido da colo-


nização: elegendo como foco analítico as unidades produtoras e os seus
proprietários, plenamente conectados à lógica colonial de extração para
abastecimento da metrópole, engessados nas relações daí provenientes.
Faltou, contudo, a percepção das mais diversas relações coloniais engen-
dradas nas Américas, para que se percebesse também as variantes que
fizeram com que a colonização portuguesa não tivesse um sentido úni-
co18. A escolha metodológica de Prado Júnior, muito embora indiscuti-
velmente importante, deixou lacunas igualmente importantes. Sobre isso,
discorreremos um pouco mais adiante.

Vale ressaltar que as ideias apresentadas em Formação do Brasil


contemporâneo não foram exclusivamente inovadoras à época, como
recordou Wilma Peres Costa ao estabelecer relações entre a geração de
Caio Prado Júnior e a anterior: considerações anteriores como de Manuel
Oliveira Lima, Capistrano de Abreu e Manuel Bonfim certamente pu-
deram compor linhagens comparativas entre essas gerações. No entan-
to, a originalidade da escrita é inegável em Prado Júnior, justamente por
romper com cânones anteriores, de “matriz varnhaguiana”, lançando no-
vos olhares sobre a questão racial, por exemplo19. Além do mais, não foi
pouca a influência exercida sobre as gerações seguintes, permanecendo
continuamente como referência obrigatória no trato do período colonial.

17  –  PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2011, pp. 25-6.
18  –  Elemento interessante para se pensar é a desvalorização que os nascentes núcleos
urbanos sofreram em abordagens como a de Caio Prado Júnior, em detrimento da cen-
tralidade da grande lavoura. Sobre isso, e também sobre o papel das cidades no mercado
interno, cf. ABREU, Maurício de Almeida. “Pensando a cidade no Brasil do passado”. In:
CASTRO, Iná Elias de; et al (orgs.). Brasil: questões atuais da reorganização do territó-
rio. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996, pp. 145-184.
19  –  COSTA, Wilma Peres. “A independência na historiografia brasileira”. In: JANC-
SÓ, István. (Org.). Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec; FAPESP,
2005, p. 75.

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Fernando Novais, em suas Considerações sobre o sentido da colo-


nização, buscou alargar a análise de Caio Prado Júnior, principalmente
a partir de seu modelo teórico de “antigo sistema colonial”, levando o
problema da colonização ao período de transição para o capitalismo na
Europa. Não obstante a ampliação dos processos históricos, Novais per-
maneceu no problema do Brasil formado na Europa, em relação unilateral
e restrita aos círculos inseridos no ato de acumular o capital, mantendo
a essência da abordagem Pradiana. Mas sua proposta, assim como a de
Prado Júnior, estava explicitamente interessada na visão estrutural da his-
tória do Brasil:
infelizmente, o impacto do livro [Formação do Brasil contemporâ-
neo], sem dúvida um marco na nossa historiografia, fez-se sentir qua-
se que exclusivamente nas análises particulares e não na visão global
que sugeria20.

De fato, a próxima seção deste trabalho versa sobre a problematiza-


ção dos limites encontrados na interpretação de Prado Júnior, principal-
mente através de pontos particulares, os quais a sua visão estruturalista
não foi capaz de alcançar, por serem próprios de uma perspectiva micro
histórica, ou ainda na qual essa mesma visão engessou variáveis para que
não fugissem à explicação total, evitando contradições. Mas a essência
permanece intocada. De toda forma, não se pode negar o centro da tese
Pradiana, retomado por Novais, segundo o qual a política mercantilista
da época moderna imprimiu caráter sobre os projetos colonizadores. Ora,
como bem lembrou Ana Cristina Araújo, não se pode tomar análises que
levem a crer num Estado autônomo da soberania régia por conta das dis-
tâncias e do próprio sistema jurídico da colônia, sem considerar os traços
da monarquia absolutista centralizadora21.

Sendo, pois, a colonização moderna um desdobramento da expansão


marítima e comercial do continente europeu, deve-se ressaltar o discer-
20  –  NOVAIS, Fernando A. “Considerações sobre o sentido da colonização”. Revista do
Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo, n. 6, 1969, p. 55.
21  –  ARAÚJO, Ana Cristina. “Um Império, um Reino e uma Monarquia na América: as
vésperas da independência do Brasil”. In: JANCSÓ, István. (Org). Independência: histó-
ria e historiografia. São Paulo: Hucitec; FAPESP, 2005, p. 259.

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Em busca de outros sentidos: As críticas ao modelo interpretativo
Pradiano e as recentes explicações das estruturas coloniais

nimento de Caio Prado Júnior no reconhecimento da essência centraliza-


dora e comercial que caracterizou a colonização brasileira, desvelando
muitos dos elementos que as novas vertentes historiográficas utilizariam
sob novos enfoques a partir da década de 1970, especialmente. Além dis-
so, Wilma Peres Costa recordou-nos das inovações trazidas por Prado
Júnior em outra obra sua, Evolução política do Brasil, onde definiu o
caráter central da escravidão, compreendida a partir do empreendimento
expansionista português, diferenciando-o da tradição historiográfica de
sua época. Foi a partir disso que buscou o “elo comum” entre as zonas
econômicas, encontrado na grande lavoura22.

Mas a centralidade da unidade produtora voltada para exportação


foi colocada aí como elemento principal, que não desabonava as demais
manifestações: por causa da “contradição principal” entre proprietários
de terra e a burguesia metropolitana, era que emergiam as lutas popula-
res. Da mesma forma, o processo de independência, embora envolto em
rupturas políticas, não necessariamente desenvolveu alternativas demo-
cráticas, gerando legados institucionais e a permanência da escravidão,
por exemplo, daí a insistência nas grandes estruturas que perduraram na
nação que se gestava. Para Wilma Peres Costa, é uma questão de justiça
ao conjunto de sua obra, que tratou dos “traços persistentes” do perío-
do colonial, que tornaram a colônia incapaz de engendrar a nação, al-
ternando movimentos de continuidade e descontinuidade no âmbito das
estruturas.23 Uma análise certamente muito além da historiografia, que se
cristalizou na crítica exclusiva às permanências24.

22  –  COSTA, Wilma Peres. “A independência na historiografia brasileira”. In: JANC-


SÓ, István. (Org.). Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec; FAPESP,
2005, pp. 76-81.
23  –  COSTA, Wilma Peres. “A independência na historiografia brasileira”. In: JANC-
SÓ, István. (Org.). Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec; FAPESP,
2005, p. 81.
24 – SIQUEIRA, Lucília. O ponto em que estamos na historiografia sobre o período de
rompimento entre Brasil e Portugal. Almanack Braziliense. São Paulo, n. 03, Maio/2006.
Universidade de São Paulo, p. 82.

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Problematizando alguns limites


O modelo explicativo de Caio Prado Júnior fez ampla escola de pen-
samento, ganhando diversos autores que seguiram seus parâmetros inter-
pretativos, com melhoramentos interessantes, naquilo que Souza chamou
de “regra heurística positiva”. Nesse esquema, forjado a partir das ideias
de Lakatos, a heurística guia a pesquisa em relação aos aparatos meto-
dológicos, sendo positiva aquela que desenvolve as proposições próprias
de um programa dentro das variáveis esperadas, de maneira a fortalecê-
-lo; e negativa aquela que, possibilitando a refutação das proposições do
programa de pesquisa, enfraquece-o25. Muito embora não tenham sido
poucas ou irrelevantes as críticas destinadas a Prado Júnior à época do
lançamento de sua obra26, as “heurísticas do sentido da colonização”, na
acepção positiva de complementação da linha de pensamento, ou mesmo
na explícita negação de seus pressupostos, chamam atenção para desdo-
bramentos relevantes na historiografia.

Wesley Dartagnan Salles desenhou a importante trajetória das dife-


renças em volta do modelo analítico/interpretativo do período colonial,
desde o “sentido da colonização” até a recente noção de “antigo regime
nos trópicos”27. Mesmo assim, não se conseguiu ainda esgotar as possibi-
lidades de debate, tendo em vista que esses modelos defendidos levam em
25  –  SOUZA, João Paulo A. de. “Entre o sentido da colonização e o arcaísmo como
projeto: a superação de um dilema através do conceito de capital escravista-mercantil”.
In: PIRES; COSTA (orgs.). O capital escravista-mercantil e a escravidão nas Américas.
São Paulo: EDUC; FAPESP, 2010, p. 120.
26  –  João Paulo A. de Souza faz referência às críticas dos anos 60 e 70 ao modelo Pra-
diano, especialmente as desenvolvidas por Ciro Flamarion Cardoso, Jacob Gorender e
Antônio Barros de Castro. Segundo o autor, as análises centraram-se no campo teórico,
mas também propuseram a desarticulação da economia colonial com a economia mer-
cantilista internacional, alegando as especificidades da colônia. Nestes autores, contudo,
como aponta Souza, permaneceu o “fato colonial” de dependência, sem responder às con-
tradições inerentes às críticas dos modelos de interpretação do Brasil colonial. Cf. SOU-
ZA, J. P. A de. “Entre o sentido da colonização e o arcaísmo como projeto: a superação
de um dilema através do conceito de capital escravista-mercantil”. In PIRES; COSTA. O
capital escravista-mercantil e a escravidão nas Américas. São Paulo: EDUC; FAPESP,
2010, p, 150.
27  –  SALLES, Wesley D. “A quebra do paradigma ‘Sentido Da Colinização’: notas so-
bre o debate historiográfico do Brasil Colonial, Antigo Sistema Colonial e Antigo Regime
nos Trópicos”. Almanack, n. 15, Guarulhos, 2017, pp. 245-293.

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Em busca de outros sentidos: As críticas ao modelo interpretativo
Pradiano e as recentes explicações das estruturas coloniais

conta um período vasto e heterogêneo demais para ser engessado em um


só padrão analítico. Podemos destacar os esforços do grupo do “antigo
regime nos trópicos” dentro da racionalidade pós-estruturalista, princi-
palmente na coletânea de João Fragoso e Maria de Fátima Gouvêa, que
tomou as dinâmicas do império português sob a forma de uma trama de
redes28. A proposta era exatamente uma explícita superação da dicoto-
mia então vigente entre dependência externa e uma “excessiva ênfase”
nas particularidades da sociedade colonial-escravista. Termos relevantes
como negociação, interdependência, redes sociais e monarquia pluricon-
tinental foram inseridos nos estudos que deixaram de ver as relações entre
dominados e dominadores, para caracterizar uma sociedade corporativista
onde o rei, cabeça do corpo, reunia em torno de si o centro e as periferias.

Uma governabilidade proporcionada pela atração das forças locais,


através de mecanismos de manutenção do poder real, era base do senti-
mento de pertencimento à monarquia, que era e precisava ser “comparti-
lhado de Macau aos rincões da floresta amazônica”. Assim, sustentou-se o
argumento que entende a sociedade colonial como um sistema de normas
paradoxalmente incoerentes, fraturado pelas possibilidades dinâmicas de
estratégias encabeçadas pelos mais diferentes sujeitos que transitavam
por todas as conquistas do império português, indivíduos estes que, sem
dúvida, tinham consciência das conexões de que dispunham. Isto, no en-
tanto, não nos foi dado sem o risco de procedermos numa excessiva des-
centralização do poder, ou mesmo numa descaracterização do ambiente
colonial, tomando as facilidades como regra.

Nessa mudança analítica a partir do pós-estruturalismo, que buscou


evidentemente contrastar com o modelo pradiano, as profícuas contri-
buições no alargamento de temas justamente através da individualização
de trajetórias e da valorização das experiências locais, também foram al-
vos de importantes críticas, das quais destacamos a de Laura de Mello e
Souza, que questionou a aplicabilidade do conceito de antigo regime nos

28  –  FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima. (Orgs.). Na trama das redes: po-
lítica e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2010.

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trópicos. Vale ressaltar, no entanto, que essas disputas acadêmicas não


configuram cânones pelos quais o período colonial deve necessariamente
ser analisado. Antes, servem de motivo de debate com a possibilidade de
abrir novos caminhos em temas já exaustivamente trabalhados. E aqui
reside a nossa compreensão do espaço colonial: acreditamos na importân-
cia das práticas individuais, singulares e subjetivas, buscando não perder
de vista os horizontes mais amplos da sociedade que as envolvia, ou exa-
tamente seus sentidos, ativos e conectados.

Acontece que esse movimento entre as estruturas e as especificida-


des desvela uma aparente contradição:
deseja-se preservar a essência (Sentido) porque se acredita que so-
mente ela nos permite compreender os fenômenos; porém, os fenôme-
nos parecem contradizer a essência. [...] ou se preserva a aparência, ao
custo de sacrificar a essência [...] ou se preserva a essência29.

Novais também já havia percebido isso, ao afirmar que


sem a visão estrutural mais profunda perdem sentido as manifestações
particulares e superficiais; e não somente para a compreensão daquela
fase do nosso passado, [...] torna-se indispensável uma análise expli-
citadora dos mecanismos do antigo sistema colonial.30

O que se deve buscar, então, é uma alternativa capaz de garantir a


análise das estruturas que se mostram presentes ainda em nosso tempo,
dando voz às evidências particulares que muitas vezes fomentam novas
questões capazes de ampliar ou aprofundar essas concepções teóricas,
evidenciando as contradições aparentes.

Tendo, porém, categorizado o Brasil, Fernando Novais percebeu que


incorria na mesma contradição aparente, diante das mais diversas faces
que a colonização brasileira apresentou, fazendo, por isso, duas diferen-

29  –  SOUZA, João Paulo A. de. “Entre o sentido da colonização e o arcaísmo como
projeto: a superação de um dilema através do conceito de capital escravista-mercantil”.
In: PIRES; COSTA (orgs.). O capital escravista-mercantil e a escravidão nas Américas.
São Paulo: EDUC; FAPESP, 2010, p. 133.
30  –  NOVAIS, Fernando A. “Considerações sobre o sentido da colonização”. Revista do
Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo, n. 6, 1969, p. 55.

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Em busca de outros sentidos: As críticas ao modelo interpretativo
Pradiano e as recentes explicações das estruturas coloniais

ciações. De acordo com a primeira, “nem toda a colonização da América


[...] se desenrola dentro das traves do sistema colonial. Os sistemas nunca
se apresentam, historicamente, em estado puro”. Em segundo lugar,
importa ficar bem claro que, ao tentarmos fixar categorias essenciais
desse processo histórico, não buscamos de forma alguma os denomi-
nadores comuns presentes necessariamente em todas as manifestações
concretas, mas sim as determinantes estruturais31.
No caso vertente, torna-se logo essencial analisar a posição de Portugal
no quadro do desenvolvimento econômico do Ocidente e no das re-
lações políticas internacionais, para se perceber as mediações através
das quais o sistema mais geral se expressa no segmento particular32.

Aqui somos remetidos a uma noção de história conectada, quando


destacada a posição de Portugal no comércio atlântico e nas relações daí
provenientes. Souza chamou atenção para uma literatura empírica recen-
temente trabalhada que demonstra um “mosaico de modalidades produ-
tivas não diretamente exportadoras”, contribuindo para a redefinição da
divisão da economia colonial formulada por Prado Júnior, onde o lado
exportador ocupava lugar privilegiado na “dinâmica cíclica”, e o lado
interno era “isolado das oportunidades de acumulação”33. Em pesquisa
publicada no ano de 2012, Isnara Pereira Ivo analisou os homens de ca-
minho e suas relações nos sertões da Bahia e de Minas Gerais ao longo
do século XVIII, encontrando indícios da existência de um mercado in-
terno bastante diverso e movimentado, que não aparentava ser apenas um
apêndice da economia de exportação, mas uma atividade que sobrevivia,
inclusive, ao fim dos ciclos econômicos que os mantinham34.

Como exemplo das várias faces da colonização, havia ainda


31  –  NOVAIS, Fernando A. “Considerações sobre o sentido da colonização”. Revista do
Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo, n. 6, 1969, p. 64.
32  –  NOVAIS, Fernando A. “Considerações sobre o sentido da colonização”. Revista do
Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo, n. 6, 1969, p. 65.
33  –  SOUZA, João Paulo A. de. “Entre o sentido da colonização e o arcaísmo como
projeto: a superação de um dilema através do conceito de capital escravista-mercantil”.
In: PIRES; COSTA (orgs.). O capital escravista-mercantil e a escravidão nas Américas.
São Paulo: EDUC; FAPESP, 2010, pp. 123-4.
34  –  IVO, Isnara Pereira. Homens de caminho: trânsitos culturais, comércio e cores nos
sertões da América portuguesa. Século XVIII. Vitória da Conquista: Edições UESB, 2012.

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[...] uma elite apoiada em atividades de elevado poder de acumulação


de capital e portadora de um considerável grau de autonomia ante o
capital comercial metropolitano, [...] um resultado que não se segue
diretamente do modelo explicativo do Sentido da Colonização35.

Isto se fez sentir em toda a colônia, mesmo apresentando configura-


ções regionais tão distintas. Seria ilícito, em contrapartida, utilizar destes
fatos para forjar uma realidade em que a essência colonial não esteja pre-
sente: não se pode esquecer que, mesmo as autonomias locais estavam
inseridas no contexto de dependência política e econômica em relação
aos colonizadores. Reconhecer isto não significa necessariamente uni-
formizar as trocas engendradas no seio da relação centro-periferia. Pelo
contrário, a preocupação com a essência – ou o sentido – é o que une Caio
Prado Júnior aos mais diversos autores que comungam de seu modelo
explicativo ou que defendem uma reformulação do mesmo.

Em outro sentido, Fragoso e Florentino deram luz a um modelo in-


verso: ao afirmarem que a colonização do Brasil não era resultado de uma
burguesia comercial metropolitana, mas sim da nobreza de antigo regime,
com o objetivo de demonstrar como a metrópole não se opôs ao surgi-
mento de capital na colônia, deixaram de “explicar quais as condições
que, na colônia, o permitiram”36. Os autores utilizaram o mesmo tripé
de Caio Prado (escravismo, latifúndio e monocultura) para formularem
um sentido contrário, pautado no conceito de elasticidade: a mão de obra
escrava não era exclusivamente uma empresa colonial, o usufruto da terra
era mais permissivo que a sua posse, e o “mosaico de produções internas”
balanceava a oferta e demanda das unidades produtoras além das fazen-
das exportadoras. Eis aqui os perigos de extremar a particularização, des-
conectando o fenômeno daquilo que lhe influencia.

35  –  SOUZA, João Paulo A. de. “Entre o sentido da colonização e o arcaísmo como
projeto: a superação de um dilema através do conceito de capital escravista-mercantil”.
In: PIRES; COSTA (orgs.). O capital escravista-mercantil e a escravidão nas Américas.
São Paulo: EDUC; FAPESP, 2010, pp. 131-2.
36  –  SOUZA, João Paulo A. de. “Entre o sentido da colonização e o arcaísmo como
projeto: a superação de um dilema através do conceito de capital escravista-mercantil”.
In: PIRES; COSTA (orgs.). O capital escravista-mercantil e a escravidão nas Américas.
São Paulo: EDUC; FAPESP, 2010, pp. 134.

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Em busca de outros sentidos: As críticas ao modelo interpretativo
Pradiano e as recentes explicações das estruturas coloniais

Uma possibilidade analítica que, ao expor esses perigos, evitaria in-


correr nos extremos, seria a lógica da contradição, valorizando a comple-
xidade do período colonial exatamente no seu caráter poliédrico, verda-
deiro mosaico, para utilizar o termo de István Jancsó37.
Afinal, muitas vezes é através da realização do seu contrário, ou seja,
do desenvolvimento do mercado interno, de uma economia relativa-
mente complexa e em alguma medida autônoma, e de uma elite co-
lonial assentada no capital residente, que o Sentido se realiza plena-
mente. Com efeito, embora a sociedade aqui constituída não caiba
confortavelmente nas derivações imediatas do Sentido, é inegável que
a colonização dos trópicos contribuiu, de fato, para a transição para o
capitalismo industrial na Europa e para a sua instalação na América
tropical38.

Costa sugeriu o conceito de “capital escravista-mercantil” para supe-


rar qualquer dicotomia, preservando a essência colonial e valorizando as
evidências aparentemente contraditórias, a partir de um sistema comple-
mentar. Segundo o autor, foi deixada à margem do modelo interpretativo
Pradiano, pela centralização nas ligações econômicas com o continente
europeu, uma grande parcela de pessoas do “Brasil real” em face de um
“Brasil exportacionista”, e simplesmente relegar esta parcela à condição
de marginalizada é reproduzir os ditames de uma historiografia elitista39.
Haviam as categorias que não se encaixavam nas preconizadas por Prado
Júnior, como afirmou também Jancsó ao promover o estrato social dos
homens livres pobres, ou dos “homens do comum”, “massa poliforme”,
igualmente integrada ao empreendimento colonial40.
37  –  JANCSÓ, István; PIMENTA, João Paulo. “Peças de um mosaico: apontamentos
para o estudo da unidade nacional brasileira”. In: MOTA, Carlos Guilherme. (Org.). Via-
gem incompleta. A experiência brasileira (1500-2000). Formação: histórias. São Paulo:
Senac, 2000.
38  –  SOUZA, João Paulo A. de. “Entre o sentido da colonização e o arcaísmo como
projeto: a superação de um dilema através do conceito de capital escravista-mercantil”.
In: PIRES; COSTA (orgs.). O capital escravista-mercantil e a escravidão nas Américas.
São Paulo: EDUC; FAPESP, 2010, pp. 147.
39  –  COSTA, Iraci del Nero da. “Repensando o modelo interpretativo de Caio Prado
Júnior”. In: PIRES; COSTA (orgs.). O capital escravista-mercantil e a escravidão nas
Américas. São Paulo: EDUC; FAPESP, 2010, p. 81.
40  –  JANCSÓ, István. “Independência, independências”. In: JANCSÓ, István. (Org.).
Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec; FAPESP, 2005, pp. 40-1.

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Perceber estas especificidades é importantíssimo na construção de


uma síntese interpretativa de grande envergadura, tal qual a formulada
por Caio Prado. As considerações acerca da grande lavoura conduzem-
-nos ao latifúndio excludente, mas o usufruto da terra e o autoconsumo
englobaram significativa parcela da população brasileira no período colo-
nial, de maneira a deitar também raízes sobre os nossos problemas sociais
atuais. Isto é também, perceber as grandes estruturas envolvidas nesses
processos históricos que nos atingem, sem perder de vista os movimentos
complementares. Ademais, como veremos ainda, estrutura muito maior
resultou dos fluxos ligados ao tráfico de negros africanos escravizados.
Tomados, contudo, em seu conjunto, representam uma interessante situ-
ação de coexistência.
[...] as articulações presentes na sociedade brasileira sobrepujavam
largamente um mero empreendimento dirigido pelo capital comercial
e imediatamente voltado para o mercado mundial e dele totalmente
dependente. Nesse sentido, tratava-se de uma economia com expressi-
vos traços de integração endógena e que comportava uma gama diver-
sificada de atividades produtivas voltadas ao atendimento de suas pró-
prias necessidades, dando-se, também, processos internos de acumu-
lação. [...] Não obstante, [...] todas aquelas evidências e argumentos
não conduzem à negação da sociedade escravista, ao contrário, não só
a afirmavam como teriam contribuído ativamente para sua expansão e
permanência entre nós41.

A profusão de pequenos escravistas, na maioria das vezes alheios


à grande lavoura ou ao mercado externo, foi o maior subsídio de manu-
tenção da instituição escravidão no Brasil - um caráter de dependência
que mereceu sua atenção. Longe de um “sentido abstrato”, o escravismo
moderno apresentou, em nossa história, todos os elementos estruturais de
permanência e de direcionamento de nossas relações, a partir do jogo de
dependência política e econômica. Com isso, o capital escravista-mer-
cantil, enquanto “gerador de mais-valia e calcado na produção de mer-
cadorias com base no trabalho escravo”, condicionou toda a economia

41  –  COSTA, Iraci del Nero da. “Repensando o modelo interpretativo de Caio Prado
Júnior”. In: PIRES; COSTA (orgs.). O capital escravista-mercantil e a escravidão nas
Américas. São Paulo: EDUC; FAPESP, 2010, p. 81.

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Em busca de outros sentidos: As críticas ao modelo interpretativo
Pradiano e as recentes explicações das estruturas coloniais

colonial brasileira, e consequentemente a vida social e política do país.


No entanto, por ter sua característica de funcionamento exclusivamente
interno, dependia do capital comercial para se interligar com o comércio
mundial, propiciando um complexo econômico que tinha base produtiva
no Brasil, mão-de-obra africana e contava com mercados europeus42.

O que estas análises pretenderam foi uma reformulação do mode-


lo interpretativo Pradiano, no sentido de alargar seu campo conceitual,
gerando novas análises sobre a empiria já presente nos trabalhos por ele
influenciados. Muitas delas tributárias das décadas de 1970 e 1980, com
o advento das universidades como locus de debate e o afastamento de in-
terpretações lineares de determinação econômica. Diferente das vertentes
marxistas e das versões keynesianas de desenvolvimento, do estado como
agente central do projeto nacional, a aproximação da história política com
a história cultural evidenciou os conflitos e contradições necessárias para
que se fugisse das tradições ensaísticas43. Noções que se consolidaram ao
ponto de formarem duas concepções distintas e opostas de história, uma
estruturalista, da totalidade, outra interessada nas novas possibilidades
metodológicas fomentadas pela interdisciplinaridade44. Resta-nos buscar
as ampliações destes sentidos, para fugir também do maniqueísmo teó-
rico.

Ampliando os sentidos
Não é nosso objetivo, aqui, esquadrinhar todas as obras que foram
influenciadas pelo “sentido da colonização”, mas debater a partir daquelas
que se tornaram marcos, como a obra de Fernando Novais por exemplo, o
impacto gerado pelo modelo interpretativo Pradiano na historiografia so-
bre o período colonial. E até mesmo sobre o período específico de ruptura
42  –  COSTA, Iraci del Nero da. “Repensando o modelo interpretativo de Caio Prado
Júnior”. In: PIRES; COSTA (orgs.). O capital escravista-mercantil e a escravidão nas
Américas. São Paulo: EDUC; FAPESP, 2010, pp. 103-6.
43  –  COSTA, Wilma Peres. “A independência na historiografia brasileira”. In: JANC-
SÓ, István. (Org.). Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec; FAPESP,
2005.
44  –  MALERBA, Jurandir. “Notas à margem: a crítica historiográfica no Brasil dos anos
1990”. Textos de História, v. 10, n. 1/2, 2002, p. 191.

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Raimundo Jucier Sousa de Assis

com Portugal, já que sua linha de análise conduziu a uma noção de con-
tinuidade nos processos históricos: é uma forte herança que continua a se
fazer presente nas discussões acerca das rupturas ou permanências dentro
da independência do Brasil45. Diversos foram os esforços em atualizar
esse debate, perceptíveis na publicação de coletâneas46, mas João Paulo
Pimenta felizmente recordou a dívida que essa historiografia atual tem
com autores como Caio Prado Júnior e suas “periodizações ampliadas”47.

Em resenha publicada por ocasião do lançamento da obra O trato dos


viventes. A formação do Brasil no Atlântico Sul, Maria Fernanda Baptista
Bicalho chamou atenção para a inegável proximidade da interpretação de
Luiz Felipe de Alencastro com Caio Prado Júnior, elencando-os como “o
que há de melhor em nossa tradição historiográfica”. A autora conseguiu
demonstrar como a escrita de Alencastro é tributária do caráter revolucio-
nário que Formação do Brasil contemporâneo teve (e ainda hoje tem),
para além das sucessivas retomadas, como a de Fernando Novais, que
sofisticou o sentido mercantil exploratório, adicionando na chave expli-
cativa da dinâmica colonial o exclusivo metropolitano e a engrenagem do
tráfico negreiro48.

O primeiro grande encontro entre Caio Prado Júnior e Luiz Felipe de


Alencastro repousou no reconhecimento de que o Brasil foi formado fora
de si, e por isso faz-se necessário alongarmo-nos sobre o Trato dos viven-

45  –  PIMENTA, João Paulo G. “A independência do Brasil como uma revolução: histó-
ria e atualidade de um tema clássico”. História da Historiografia, Ouro Preto, n. 3, 2009,
p. 63.
46  –  Há um importante balanço historiográfico com enfoque na independência do Brasil
feito por João Paulo Pimenta, chamando atenção para o caráter inovador das obras de
Caio Prado, Fernando Novais, Emília Viotti da Costa, entre outros, com desdobramentos
que foram capazes de colocar o Brasil dentro de dinâmicas mundiais, o que permanece
interessante na atualidade. Cf. PIMENTA, João Paulo G. “A independência do Brasil e o
liberalismo português: um balanço da produção acadêmica”. Revista de História Iberoa-
mericana, v. 1, n. 1, 2008.
47  –  PIMENTA, João Paulo G. “A independência do Brasil como uma revolução: histó-
ria e atualidade de um tema clássico”. História da Historiografia, Ouro Preto, n. 3, 2009,
p. 73.
48  –  BICALHO, Maria Fernanda Baptista. “Monumenta Brasiliae: O Império Português
no Atlântico Sul”. Tempo. Rio de Janeiro, v. 6, n. 11, 2001, p. 267.

108 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):91-116, jan./abr. 2022.


Em busca de outros sentidos: As críticas ao modelo interpretativo
Pradiano e as recentes explicações das estruturas coloniais

tes para entendermos essas conexões. Focado na superestrutura constru-


ída a partir dos mecanismos de tráfico de negros africanos escravizados,
fez um giro analítico: “sempre se pensou o Brasil fora do Brasil, mas
de maneira incompleta: o país aparece no prolongamento da Europa”49.
Numa perspectiva atlântica, o autor encontrou a chave explicativa da
formação de nosso país nas trocas mercantis impulsionadas pelo tráfico
negreiro, elo que uniu diretamente a América portuguesa ao continente
africano. Assim,
[...] a colonização portuguesa, fundada no escravismo, deu lugar a um
espaço econômico e social bipolar, englobando uma zona de produção
escravista situada no litoral da América do Sul e uma zona de repro-
dução de escravos centrada em Angola. Desde o final do século XVI,
surge um espaço aterritorial, um arquipélago lusófono composto dos
enclaves da América portuguesa e das feitorias de Angola. É daí que
emerge o Brasil no século XVIII. [...] O que se quer [...] é mostrar
como essas duas partes unidas pelo oceano se completam num só sis-
tema de exploração colonial cuja singularidade ainda marca profunda-
mente o Brasil contemporâneo.50

Ao firmar suas bases analíticas sobre uma perspectiva mais ampla,


levando em consideração as múltiplas relações intercontinentais entre
América do Sul, Europa e África, Alencastro pôde perceber que os fru-
tos da conquista nem sempre seguiram o caminho da rede mercantil ou
mesmo do aparelho institucional do Reino português. Deste espectro de
relações, a partir das evidências, resultaram algumas inferências mais di-
retas: o excedente econômico regional era muitas vezes consumido pelos
próprios colonos, em redes marítimas à parte do controle metropolitano,
e mesmo quando era captado pelas “teias ibéricas”, estava fadado a re-
organizar o poder das monarquias, pela emergência intrínseca de forças
sociais no seio de suas conquistas51.

49  – ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes. A formação do Brasil no
Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 9.
50  – ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes. A formação do Brasil no
Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 9.
51  – ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes. A formação do Brasil no
Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, pp. 11-2.

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Johny Santana de Araújo
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Mesmo a particularidade de África contribuiu grandemente para a


formação do Brasil no espaço Atlântico, como também para a própria
compreensão do período colonial. Apesar de não ter sido objetivado um
estudo comparativo entre as possessões portuguesas, Alencastro utilizou
os exemplos da soberania imposta por algumas tribos africanas em rela-
ção aos colonos, fato que nunca ocorreu na América portuguesa. Goa e
Moçambique serviram, enquanto “circuitos avessos à malha portuguesa
[...] onde o produto do trabalho extorquido aos nativos era consumido pe-
los colonos ou vazava pelo ralo do comércio regional”, para a percepção
de que “a presença de colonos num território não assegura a exploração
econômica desse mesmo território. A dominação colonial não se apresen-
ta forçosamente como uma decorrência da exploração colonial”52.

Para além da busca por uma explicação das bases da formação nacio-
nal, outro ponto de encontro entre Prado Júnior e Alencastro foi a extensa
empiria utilizada na construção de suas narrativas. A contextualização
econômica atingiu um grau de profundidade, em Alencastro, capaz de
perceber nas correntes marítimas a relação entre jurisdição e geografia
comercial de navegação a vela, como no caso da criação do Estado do
Grão-Pará e Maranhão, em 1961, parte dissociada do trânsito direto com
Angola por causa do sistema de ventos53. Num território tão complexo
mesmo geograficamente, não era crível que a metrópole exercesse sem-
pre o papel de centro, ou que mantivesse sempre trato uniforme diante da
colônia. Facilita-se, pois, o entendimento da aparente contradição entre a
relativa autonomia concedida aos colonos, enquanto as monarquias bus-
cavam centralizar seus poderes: além da utilização do capital colonial, a
concessão de títulos estabelecia uma verdadeira economia de favores que
inseriu os súditos nos vínculos diretos com o Rei. O que não significa
dizer que não houve movimento inverso:
De início, a Coroa concede amplos poderes aos seus súditos que dis-
põem de capital e também aos estrangeiros católicos ativos no além-

52  – ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes. A formação do Brasil no
Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 19.
53  – ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes. A formação do Brasil no
Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 20.

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Em busca de outros sentidos: As críticas ao modelo interpretativo
Pradiano e as recentes explicações das estruturas coloniais

-mar. Algumas décadas mais tarde, a monarquia volta atrás e inicia


um movimento de “restauração metropolitana”, restringindo a auto-
nomia dos principais atores da conquista. Por um lado, se estabelece o
monopólio metropolitano no ultramar – o “exclusivo” –, em prejuízo
dos estrangeiros. Por outro lado, editam-se leis tolhendo liberdades
dos colonos e submetendo-os a governadores encarregados de lembrar
urbi et orbi o sentido da colonização. É o processo de colonização dos
colonos: [...] os colonos compreendem que o aprendizado da coloni-
zação deve coincidir com o aprendizado do mercado, o qual será – pri-
meiro e sobretudo – o mercado reinol. Só assim podem se coordenar e
se completar a dominação colonial e a exploração colonial54.

Tratava-se de movimentos tão complexos e tão imbricados no tráfico


escravo, que levaram Alencastro a reconhecer que este não estava contido
apenas no âmbito comercial:
De consequências decisivas, na formação histórica brasileira, o tráfi-
co extrapola o registro das operações de compra, transporte e venda
de africanos para moldar o conjunto da economia, da demografia, da
sociedade e da política da América portuguesa55.

Tendo início nas periferias das trocas africanas, passando a respon-


der à demanda de mão-de-obra, os negros africanos escravizados mate-
rializaram a produção ultramarina, constituindo um elo entre Portugal e
o Oriente, uma fonte de renda ao Tesouro Régio e o vetor produtivo da
agricultura atlântica.

Foi o trato negreiro que possibilitou a reprodução do sistema es-


cravista, que não tinha essa capacidade por si, e que costurou, durante
três séculos, o Brasil à África. E nestes três séculos de sistema escravista
justificado por Portugal, o Brasil tornou-se o maior importador de es-
cravizados do Novo Mundo, o que implica dizer que a existência de um
sistema tão marcante de comercialização de viventes aos moldes do mer-
cantilismo “impede que se considere o tráfico negreiro como um efeito
secundário da escravidão, obriga a distinguir o escravismo luso-brasileiro
54  – ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes. A formação do Brasil no
Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 22.
55  – ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes. A formação do Brasil no
Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 29.

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de seus congêneres americanos e impõe uma interpretação aterritorial da


formação do Brasil”56. Foi essa “complementaridade sul-atlântica” entre
as colônias que configurou os condicionantes da presença portuguesa em
África e as singularidades do Brasil.

Duas classes ainda emergiram como variantes diretamente ligadas e


afetadas pelo trato negreiro no Brasil: os índios e os mulatos. Esse proces-
so de exploração e dominação, centrado no elemento europeu e baseado
na mão-de-obra escrava africana, impôs o aniquilamento das populações
indígenas que não se enquadravam no sistema: mesmo a liberdade dos
indígenas dependia do abastecimento de escravizados nas lavouras. Em
contraste, as populações livres fruto de mestiçagens conseguiram forjar,
muito por conta de atividades com ausência de controle direto como a
pecuária, ascensões que só esbarravam no homem branco, fazendo com
que viajantes estrangeiros tomassem o Brasil como “inferno dos negros,
purgatório dos brancos e paraíso dos mulatos”57.
No final do século XVII o Brasil formado a partir de Angola estava
prontinho. O mercado atlântico impusera o primado do tráfico negrei-
ro, interpretado pela Igreja como uma obra de caridade cristã e de
evangelização. O escravismo dominava tudo, a barreira indígena no
interior fora destroçada, o território se repovoava dentro do esquadro
colonial, o gado se expandia, os mestiços e mulatos furavam o seu
lugar. Nas décadas seguintes, a economia do ouro instaura uma divi-
são inter-regional do trabalho na América portuguesa, engendra um só
mercado e faz isso tudo virar uma coisa só58.

Elementos, pois, demonstrativos de uma longa duração na consti-


tuição do Brasil: “de 1550 a 1930 o mercado de trabalho está desterri-
torializado: o contingente principal de mão de obra nasce e cresce fora
do território colonial e nacional”59. Esta transformação da escravidão em
56  – ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes. A formação do Brasil no
Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 42.
57  – ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes. A formação do Brasil no
Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 347.
58  – ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes. A formação do Brasil no
Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 353.
59  – ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes. A formação do Brasil no
Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 354.

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Em busca de outros sentidos: As críticas ao modelo interpretativo
Pradiano e as recentes explicações das estruturas coloniais

escravismo teve o poder de modificar de modo conflitante todo o sistema


colonial, pela sua expressividade, e perceber isso foi “a grande viragem
interpretativa” de Alencastro, de acordo com Bicalho. Uma questão im-
portante colocada por esta autora, que a esta altura merece a nossa aten-
ção, é a aparente inexistência do fator pacto colonial, diante da pujante
autonomia desse comércio bilateral: sendo autônoma, o que faz uma co-
lônia permanecer nesta posição por tanto tempo?60

A questão da aparente contradição da autonomia não deita raízes so-


bre a vertente econômica, como pensou Fernando Novais, mas está muito
mais imbricada no âmbito político, onde as relações coloniais eram man-
tidas. Por isso, Bicalho ilustra o questionamento com a interpretação de
Evaldo Cabral de Mello, exatamente na economia de favores na qual o
autor analisa os pedidos de honrarias dos pernambucanos ao rei, após a
expulsão dos holandeses. Dentro da lógica de Antigo Regime, os súditos,
embora autônomos e possivelmente antimetropolitanos, esperavam rece-
ber reconhecimentos e, nesta retribuição, reafirmavam o pacto político
que unia os súditos daquém e dalém mar, “tecendo as malhas da soberania
portuguesa sobre o Império ultramarino”61.

Mesmo na contradição aparente entre os “homens ultramarinos” e


“homens coloniais”, ambos estavam inseridos num sentido comum, de
interesses comerciais e políticos que foram capazes de tecer nossa geo-
grafia. O que nos resta é o dever de buscar, dentro destas complexidades,
um lugar-comum – ou sentido – capaz de evitar a interpretação unilateral,
na qual as formas que escapam da explicação perdem espaço, tornam-se
vazias e existentes em si mesmas. Sobre isso, Costa cita uma preocupação
interessante de Ciro Flamarion Cardoso:
Tendo combatido por muitos anos as posturas que enfatizam unilate-
ralmente as relações metrópole-colônia ou centro-periferia, a extração
de excedentes, o capital mercantil [...] e mais em geral a circulação de
mercadorias como locus explicativo privilegiado, só posso me regozi-
60  –  BICALHO, Maria Fernanda Baptista. “Monumenta Brasiliae: O Império Português
no Atlântico Sul”. Tempo. Rio de Janeiro, v. 6, n. 11, 2001, p. 272.
61  –  BICALHO, Maria Fernanda Baptista. “Monumenta Brasiliae: O Império Português
no Atlântico Sul”. Tempo. Rio de Janeiro, v. 6, n. 11, 2001, p. 272.

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Luís Carlos Albano Duarte Sousa
Johny Santana de Araújo
Raimundo Jucier Sousa de Assis

jar com esses novos e sólidos argumentos. Desde que, também neste
caso, não se ceda à tentação de mais uma ênfase unilateral. Mesmo se
as análises [...] são, às vezes, delimitadas e tratam de elementos e va-
riáveis parciais, não estarão esquecendo exageradamente, empurrando
um tanto para fora do horizonte, a dependência colonial e neocolonial
– e as determinações e condicionamentos que ela sem qualquer dúvida
implicava [...]?62

São questões caras justamente às explicações macroestruturais de


longa duração, às quais Jurandir Malerba propôs um interessante exercí-
cio: ao se buscar os “sentidos” em movimentos estruturais, teríamos de
retroceder até momentos históricos excessivamente longínquos, mas que
guardam uma relação de linearidade com o objeto em estudo?63 O próprio
autor respondeu sua questão ao propor também a consideração dos enfo-
ques macro e micro analíticos como complementares, com contribuições
que sejam capazes de suprir as deficiências inerentes a qualquer método
de pesquisa, valorizando tanto explicações econômicas quanto os aspec-
tos culturais64.

Algumas considerações
Já que não nos propomos a fazer considerações conclusivas, toma-
mos a liberdade de tecer mais algumas considerações relevantes, seguindo
arestas para as quais o tema aqui trabalhado nos conduz. Recentemente,
a busca por uma razão decolonial tem representado em grande medi-
da, preocupações decorrentes do “sentido da colonização”. De acordo
com Adelia Miglievich-Ribeiro, a urgência de uma crítica pós-colonial
tem a função de revelar aquilo que a modernidade buscou ceifar atra-
vés da colonialidade, ou seja, as mais diversas formas de manifestação
e produção de conhecimento que tenham sido concebidas nas “bordas
da globalização hegemônica”. Isso se explica no fato da razão moderna

62  –  CARDOSO, Ciro Flamarion. (Org.). Escravidão e abolição no Brasil: novas pers-
pectivas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988, p. 58.
63 – MALERBA, Jurandir. “As independências do Brasil: ponderações teóricas em
perspectiva historiográfica”. História, São Paulo, v. 24, n. 1, 2005, p. 106.
64 – MALERBA, Jurandir. “As independências do Brasil: ponderações teóricas em
perspectiva historiográfica”. História, São Paulo, v. 24, n. 1, 2005, p. 121.

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Em busca de outros sentidos: As críticas ao modelo interpretativo
Pradiano e as recentes explicações das estruturas coloniais

ter naturalizado como absolutas algumas visões eurocentradas, tomando


unilateralmente as experiências do homem branco europeu nas Américas,
por exemplo, impedindo o entendimento das múltiplas diferenças envol-
vidas, muito além da simples subordinação à relação dual em que um dos
polos exerce o domínio65.

Através da dúvida mesmo de uma história linear, a autora propõe


uma razão cosmopolita capaz de colocar em xeque os próprios conceitos
de progresso, revolução e modernização em face das várias modernida-
des. No limite, sua análise nos leva a questionar a lógica produtivista eco-
nômica (a mesma que baseia a busca pelo sentido trabalhado até aqui) na
qual tudo que escapa como alternativa ou resistência ao capital é reduzido
a atraso, pobreza e ignorância. De fato, essa “cosmovisão moderna”, cris-
talizada nos moldes universais a partir da expansão europeia de um co-
nhecimento “único e verdadeiro”, impõe a consciência da geopolítica do
conhecimento. O problema, no entanto, reside em encontrar uma chave
analítica capaz de desvencilhar o espectro econômico das sociabilidades
de um espaço que foi moldado a partir de experiências coloniais voltadas
à dependência (ainda que bilateral) econômica e política, o que se refletiu
em todos os âmbitos da sociedade.

Diversos são os caminhos possíveis para se pensar as experiências


coloniais, hoje, muitos deles diretamente ligados aos parâmetros clássicos
como o de Prado Júnior, que tratamos aqui. O caminho da decolonialida-
de é um deles, especialmente quando se trata da América Latina, que teve
boa parte de suas experiências silenciadas em detrimento de uma moder-
nidade europeia, como adverte Aníbal Quijano em sua Colonialidade do
poder. Mas, insistimos, o caminho que desvela as múltiplas negociações
deve percorrer também a trilha das relações de poder, para que não se
construa uma imagem distorcida da época e suas limitações66. Além do
mais, não devemos deixar escapar a preocupação com o campo da histó-
65  –  MIGLIEVICH-RIBEIRO, Adelia. “Por uma razão decolonial. Desafios ético-polí-
tico-epistemológicos à cosmovisão moderna”. Civitas. Porto Alegre, v. 14, n. 1, jan./abr.
2014, pp. 66-80.
66  –  Cf. FAN, Fa-Ti. “The global turn in the history of Science”. East Asian Science,
Technology and Society: an international journal. v. 6, p. 249-258, 2012.

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ria pública67, capaz de engessar a historiografia clássica no senso comum


sem maiores aprofundamentos, caso da obra de Prado Júnior, cuja atuali-
dade demonstra o contínuo merecimento de profícuas revisões.

Enfim, o que tentamos neste artigo foi demonstrar a importância de


se reconhecer as grandes estruturas presentes na formação do Brasil, a
fim de compreender muitos eventos específicos sem o perigo de construir
uma análise vazia. Não resta dúvidas de que estamos caminhando para
novas possibilidades interpretativas tributárias, de uma visão mais conec-
tada da história, deixando de valorizar os modelos explicativos unilaterais
para dar voz a novos sujeitos. O encontro de Caio Prado Júnior com Luiz
Felipe de Alencastro pode representar, aqui, um ponto de equilíbrio em
que a história seja a grande favorecida. Preservando a essência, valori-
zando as aparências (ainda que contraditórias) e evidenciando a comple-
xidade intrínseca a uma interpretação da magnitude das que foram aqui
trabalhadas, estaremos contribuindo para a construção de um quadro mais
nítido de nossa história. Parafraseando Wilma Peres Costa, revolver o
terreno semeado por Caio Prado Júnior, com novos instrumentos68.

Texto apresentado em março de 2022. Aprovado para publicação em


maio de 2022.

67  –  MALERBA, Jurandir. “Acadêmicos na berlinda ou como cada um escreve a His-


tória?: uma reflexão sobre o embate entre historiadores acadêmicos e não acadêmicos no
Brasil à luz dos debates sobre Public History”. História da Historiografia, Ouro Preto, n.
15, 2014, pp. 27-50.
68  –  COSTA, Wilma Peres. “A independência na historiografia brasileira”. In: JANCSÓ,
István. Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec; FAPESP, 2005, p.
114.

116 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):91-116, jan./abr. 2022.


As crianças realmente deveriam seguir a condição do ventre escravizado?
Instabilidades no princípio do partus sequitur ventrem
na construção da escravidão colonial
117

AS CRIANÇAS REALMENTE DEVERIAM SEGUIR


A CONDIÇÃO DO VENTRE ESCRAVIZADO?
INSTABILIDADES NO PRINCÍPIO DO PARTUS SEQUITUR
VENTREM NA CONSTRUÇÃO DA ESCRAVIDÃO
COLONIAL1
SHOULD CHILDREN REALLY FOLLOW THE CONDITION OF
THE ENSLAVED WOMB? INSTABILITIES IN THE PRINCIPLE
OF PARTUS SEQUITUR VENTREM IN THE DEVELOPMENT
OF COLONIAL SLAVERY
Paulo Henrique Rodrigues Pereira2

Resumo: Abstract:
Acompanhando a ideia da escravidão geracional Following the idea of matrilineal generational
matrilinear, este artigo procura entender as for- slavery, the article seeks to understand the forms
mas de constituição do conceito e as dificulda- of conceptual constitution and the difficulties
des que o princípio do partus sequitur ventrem that the principle of partus sequitur ventrem
encontrou no espaço formativo do escravismo encountered in regions with colonial slavery.
colonial. Para tanto, o texto empreende uma We examine how the English, French, Spanish
investigação da aplicação de quatro diferen- and Portuguese slavery systems were applied
tes sistemas jurídicos no espaço do continente in the American continent and follow them up
americano – inglês, francês, espanhol e portu- in the transformation and adaptation processes
guês, buscando acompanhá-los nos processos proper to the development of the technique of
de transformação e adaptação próprios da for- passing on slavery to children in America. We
mação da técnica de construção da transmissão seek to show that the process faced difficulties
da escravidão aos filhos no espaço americano. which were perceived and overcome over time,
Procurar-se-á demonstrar que existiram difi- contributing to the definitive abolition of the
culdades performativas nesse processo, que, ao domination and ownership over the enslaved
longo do tempo, foram percebidas, instrumenta- womb.
lizadas e acabaram por contribuir para a definiti-
va destruição do domínio e da propriedade sobre
o ventre escravizado.
Palavras-chave: Direito e Escravidão; História Keywords: law and slavery; history of law; free
do Direito; Ventre Livre; Partus Sequitur Ven- womb; partus sequitur ventrem.
trem.

1  –  Esse texto foi apresentado em uma versão em língua inglesa, para a tradicional revis-
ta da Harvard Law School, a Harvard Backletter Law Jornal, onde se encontra em fase de
publicação (no prelo). Essa versão em língua portuguesa, entretanto, é inédita.
2  –  Paulo Henrique Rodrigues Pereira é doutor pelo Departamento de Filosofia e Teoria
Geral do Direito da Universidade de São Paulo. É pesquisador do Afro-Latin American
Research Institute (ALARI) da Universidade de Harvard e membro do Laboratório de
Estudos sobre o Brasil e o Sistema Mundo (LABMUNDI) da Universidade de São Paulo.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):117-150, jan./abr. 2022. 117


Paulo Henrique Rodrigues Pereira

Introdução
Nos anos de 1770, uma articulada organização de africanos e seus
descendentes, escravizados ou livres, empreendeu aquele que pode ser
considerado um dos maiores ataques legais já sofridos pela instituição da
escravidão no continente americano. Peticionando aos poderes políticos
locais da então colônia de Massachusetts, as lideranças negras opuseram
argumentos contra a continuidade do cativeiro, relevaram a incoerência
de manutenção de um regime de trabalho forçado em uma pátria que lu-
tava por liberdade e opuseram uma gama de contradições entre os pres-
supostos ideológicos da nação que se formava e a existência da escravi-
dão perpétua dos africanos. O tempo revolucionário servia como mote.
O espaço também tinha seu papel: Massachusetts consolidava uma longa
tradição de ativismo judicial3, a existência de precedentes jurídicos que
revelavam a presença de tensões arraigadas no direito local materializa-
das por um longo debate sobre a extensão legal da escravidão negra4, e
ainda condições sociais muito específicas, em que escravizados africanos
conviviam com servos brancos por contrato, experienciando um contato
que gerava expectativa de possibilidade de regimes jurídicos alternativos
ao da escravidão negra norte-americana, vinculada ao trabalho forçado
para toda a vida5.

Felix, Peter Bestes, Sambo Freeman, Chester Joie e tantos outros


africanos foram alguns dos que subscreveram as petições iniciadas em
1773. Encaminhadas alternativamente ao Governador, e aos membros das

3 – BLANCK, Emily. Seventeen eighty-three: the turning point in the law of slavery and
freedom in Massachusetts. The New England Quarterly, Cambridge: MIT Press, v. 75, n.
1, p. 24-51, 2002.
4  –  O exemplo mais claro desse processo é o chamado Body of Liberties, do começo
do século XVII: Para uma bibliografia do Body of Liberties de Massachusetts. MAS-
SACHUSETTS. Massachusetts Body of Liberties - Synopsis of the history of the Mas-
sachusetts Body of Liberties. State Library of Massachusetts, 1641. Disponível em:
https://www.mass.gov/service-details/massachusetts-body-of-liberties#:~:text=The%20
Body%20of%20Liberties%2C%20a,General%20Court%20of%20the%20time. Acesso
em: 12.12.21.
5 – COOK, Margaret Celeste. Servitude in Massachusetts as revealed in two Boston
newspapers, 1751-1763. Tese (Dissertação de Mestrado). College of William and Mary -
Arts e Sciences, Williamsburg, 1960.

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As crianças realmente deveriam seguir a condição do ventre escravizado?
Instabilidades no princípio do partus sequitur ventrem
na construção da escravidão colonial

Cortes de Representantes e de Justiça, a sequência de documentos sofreu


variações ao longo do tempo, mas, de modo geral, manteve um núcleo
forte de argumentação de ataque à possibilidade da escravidão perpétua
em uma terra que propagava a liberdade e o cristianismo. Embora o tom
das peças tenha mudado ao longo tempo, variando de pedidos de mise-
ricórdia (petition of grace) às mais agressivas reivindicações de direitos
(petition of rights), os textos basicamente denunciavam a impossibilidade
de se consagrar a igualdade dos homens e o respeito à Providência Divina
ao se reduzir cristãos à escravidão. A situação de transmissão geracional
da condição de servidão perpétua ganhava relevo no portifólio de ataques
dos peticionantes: isso porque, nesse caso, o vínculo de servidão para a
vida se aplicava a homens e mulheres nascidos naquela terra, batizados
desde o início de suas vidas.

A argumentação legal dos peticionantes era rica e se articulava desde


formulações mais principiológicas sobre o que era um bom cristão, ou a
extensão do conceito de liberdade, até elementos mais próprios da lingua-
gem jurídica como afirmar um direito natural à liberdade, ou mencionar
que não havia lei ou estatuto que permitisse a escravização na África ou
mesmo na América. Em um documento de 1774, após passar por parte
importante de todos esses tópicos de argumentação, o texto diz que a
escravidão perpétua dos africanos na América não tinha respaldo em ne-
nhuma lei. O argumento é especificado pela revelação da condição dos
filhos. Para os escravizados, não havia norma que pudesse deixar seus
filhos na servidão, porque eles haviam nascido em uma terra livre. Para
eles, nunca teria havido uma lei que condenasse os descendentes de afri-
canos à servidão perpétua (Nither can we reap an equal benefet from the
laws of the Land which doth not justifl but condemns Slavery or if there
had bin aney Law to hold us in Bondege we are Humbely of the Opinon
ther never was aney to inslave our children for life when Born in a free
Countrey). A solução seria devolver aos descendentes de africanos o seu
direito à liberdade, os fazendo livres a partir dos 21 anos de idade6.
6 – “Petition of a Grate Number of Blackes” to Thomas Gage (May 25, 1774) 8-9. In: A
Documentary History of the Negro People in the United States, Volume 1. APTHEKER,
Herbert (ed.). New York: Citadel Press, 1969.

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Como se sabe, boa parte do processo de emancipação nas Américas


se deu com um modelo de transição que obedecia a uma lógica pareci-
da com a posta nessa petição: reconhecimento da liberdade das crianças,
com direito a trabalho forçado por um período de tempo. É o chamado
modelo de libertação via ventre (ou emancipação gradual). Os primeiros
textos que começaram a prever esse modelo ocorreram exatamente no
norte dos Estados Unidos em um período posterior ao da petição mencio-
nada7. Logo após, se espalharam por todo o continente americano. O que
se quer ressaltar nesse texto, entretanto, não é exatamente o ineditismo
evidente da modelagem que os escravizados de Massachusetts apresen-
taram para sugerir o fim da escravidão no estado. O que interessa aqui é
mais a sua afirmação de que a transmissão geracional da escravidão era
ilegal, na sua categórica acusação de que jamais teria havido uma lei que
permitisse a escravidão perpétua de filhos que tenham nascido naquele
país. Chama a atenção que a petição foi remetida antes da existência de
uma carta constitucional para os Estados Unidos; na verdade, o texto é
anterior à própria declaração de independência e ao Primeiro Congresso
Continental da Filadélfia.

Qual era o fundamento, portanto, para que os escravizados disses-


sem que a escravidão perpétua era ilegal? O argumento era meramente
retórico? Sabe-se que tempos de guerra abrem espaços de liberdade, e
seguramente os escravizados de Massachusetts buscavam explorar essas
brechas havidas por conta do período revolucionário. Boa explicação po-
lítica. Entretanto, juridicamente, de onde vinha a ideia de que a escravi-
dão perpétua geracional era ilegal?

Do outro lado do Atlântico, um importante documento legal pode


dar pistas sobre essa questão. Apenas um ano antes da petição de
Massachusetts que denunciou a inexistência de legalidade para a escra-
vidão geracional dos africanos nascidos nas Américas, um documento da
administração portuguesa de 1773 enfrentou uma problemática parecida.
Em um contexto profundamente diferente, e localizado em uma tradição
7 – Para uma visão mais completa do processo: ZILVERSMIT, Arthur. The first emanci-
pation: The abolition of slavery in the North. Chicago: UCP, 1967.

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jurídica bastante afastada da inglesa, o Marquês de Pombal trouxe ele-


mentos importantes para a análise da questão. Em meio à reorganização
dos negócios da escravidão, patrocinada pelo secretário português, o Rei
D. José I editou o famoso “alvará em favor da liberdade dos Negros,
Mulatos, e Mestiços existentes no Reino do Algarve”. Esse documento
foi historicamente mal interpretado como pertencente a uma espécie de
genealogia de atos pela emancipação gradual de escravizados. Uma leitu-
ra mais cuidadosa, entretanto, revela algo diferente.

Diz a sua redação que no reino português existiam “Pessoas tão fal-
tas de sentimentos de Humanidade, e de Religião, que guardando nas
suas casas Escravas, umas mais brancas do que eles, com os nomes de
Pretas, e de Negras; outras Mestiças; e outras verdadeiramente Negras”,
as mantinham em escravidão se utilizando de “pretexto de que os ventres
das mães Escravas não podem produzir Filhos livres, conforme o Direito
Civil”. Avança a redação legal dizendo que “não permitindo, nem ainda
o mesmo Direito, de que se tem feito um tão grande abuso, que aos des-
cendentes dos Escravos, em que não há mais culpa, que a da sua infeliz
condição de cativos, se estenda a infâmia do cativeiro”. Por fim, qualifi-
cando a situação de crime de “lesa majestade divina, ou humana”; “gran-
de indecência”, e atestando as “diminuições que as escravidões gerariam
nos Vassalos do Rei”, o alvará decide que aqueles cuja escravidão vier
das “bisavós, fiquem livres, e desembargados, posto que as mães e avós
tenham vivido em cativeiro”.

Os termos e as qualificações da norma chamam muito a atenção.


Em primeiro lugar, o documento se volta à descendentes de escravizados
legítimos – não há nenhuma menção de que os ascendentes estivessem
postos na escravidão de forma ilegal, ou injusta – contestando exatamente
a transmissão geracional da condição de escravidão. Um olhar cuidadoso
sobre o texto real deixa entender que não se trata de um discurso cate-
górico sobre a legalidade da transmissão; antes, parece haver condições
próprias que possam fazer com que essa transmissão seja justa ou injusta.
Em outras palavras, a mera descendência não seria suficiente para a trans-
missão da escravidão, segundo o que seria uma interpretação correta do

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direito de então. Elementos adicionais poderiam impedir ou permitir essa


transmissão. Nesse sentido, prender em escravidão pessoas que deveriam
ser livres, ainda que descendente de escravizados, seria um abuso do di-
reito. Os conceitos manipulados pela lei abrem espaço para interpretações
de que haveria um prazo tolerável para a transmissão da escravidão8.

O Alvará falava que a manutenção de descendentes em escravidão


era um abuso da lei civil. É muito provável que o termo lei civil fizes-
se referência específica ao princípio jurídico que regulava a transmissão
geracional da escravidão: o conhecido partus sequitur ventrem (partus).
Princípio de grande circulação nos meios legais da modernidade, a regra
vinculava a condição dos filhos à da mãe, em uma operação que condi-
cionava o descendente à escravidão desde que a sua mãe também fosse
escravizada, independentemente de qualquer outro fator como a condição
do pai, lugar de seu nascimento ou a sua religião. Quando os debates
emancipacionistas explodiram e os projetos de libertação dos filhos ga-
nharam importância do debate público – já no final do século XVIII, mas
especialmente no século XIX –, a certeza e força do partus foi inteligen-
temente empenhada pelos escravistas como um estandarte indiscutível do
direito9. Para eles, libertar os filhos era violar a propriedade, destruir um
princípio jurídico consagrado desde a época dos romanos, a partir de uma
operação na qual o fruto deveria seguir a condição do bem que o gerara.

Seja no ataque direto, como no caso dos peticionantes de


Massachusetts, ou em um enfrentamento mais tangencial, como o visto
no alvará real português, existem bons motivos para entender que nem to-
8 – LARA, Silvia Hunold. Legislação sobre escravos africanos na América portuguesa.
In: Nuevas Aportaciones a la Historia Jurídica de Iberoamérica. GALLEGO, José An-
drés (Org.). Madrid: Fundación Histórica Tavera, 1st. ed. 2000, p. 359.
9  –  Para dar dois exemplos, poderia mencionar o discurso do parlamento da Virginia
James Gholson em 1832, e do membro do Conselho de Estado brasileiro, Barão do Bom
Retiro em 1868. Em ambos, o partus aparece como um princípio indiscutível do direito,
cuja violação geraria graves consequências ao estado da segurança e da proteção aos
direitos de proprietários.
BRASIL. Atas do Conselho de Estado Pleno, Terceiro Conselho de Estado, 1867-1868l??.
Brasília: Senado Federal, p. 239 (Discurso do Barão do Bom Retiro).
AMES, Julius Rubens. "Liberty": The Image and Superscription on Every Coin Issued
by the United States of America. EUA: American anti-slavery Society, 1837, p. 43–56.

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Instabilidades no princípio do partus sequitur ventrem
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dos acreditavam na constância e certeza do partus. Parece haver em am-


bos os documentos mencionados um conjunto de dúvidas, questionamen-
tos e contestações às formas de aplicação do importante princípio jurídico
da escravidão geracional. O filho realmente deveria seguir o ventre? Esse
artigo analisará exatamente essas inconsistências, defendendo que, assim
como sugeririam os escravizados de Massachusetts, a história da aplica-
ção do partus à escravidão negra nas Américas é irregular e marcada por
profundas instabilidades. Para tanto, esse breve texto (i) fará uma análise
mais cuidadosa de como o partus funcionava conceitualmente, com espe-
cial foco na sua formulação inicial, ainda no legado jurídico romano. Em
seguida, se procederá a um breve levantamento de algumas das transfor-
mações e modulações que o princípio experimentou no período posterior
ao da juridicidade romana; para (ii) então, entender como essas mudanças
geraram instabilidades jurídicas que foram transmitidas para o ambiente
da colonização americana. Por fim, (iii) o texto se encaminhará para a
conclusão, apontando como essas instabilidades foram equacionadas pelo
projeto escravista, e quais foram as consequências dessa história pouco
linear para o fim da escravidão negra nas Américas.

I – Partus sequitur ventrem: uma falsa continuidade?


Não deixa de ser verdade o que diziam os juristas escravistas do sé-
culo XIX, de que a máxima do partus é tão velha como a própria tradição
legal do Ocidente. Para ser mais preciso, embora os romanos não usassem
o termo – que provavelmente foi cunhado pelos civilistas modernos10 –,
a lógica normativa inscrita no partus estava presente no legado antigo.
Os romanos, de fato, conheciam o princípio e o aplicavam com certa re-
gularidade. Nas Institutas, embora a escravidão aparecesse como contrá-
ria à liberdade do direito natural (Título II, Liber Primus), as regras de
transmissão dessa condição pela linearidade materna estavam presentes
no primeiro livro do Título III. Seja na definição de personalidade, onde
se poderia encontrar a possibilidade de alguém nascer escravizado desde
que fosse filho de mãe escravizada (Título III, Liber Primus), seja nas
10 – HURD, John Codman. The Law of Freedom and Bondage in the United States. New
York: D. Van Nostrand, v. I, 1863, p. 148-194.

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disposições sobre casamentos desiguais, quando um filho de pais livre e


escravizado teria a sua condição definida pelo status jurídico de sua mãe,
e não de seu pai11. Também no Digesto, o conceito da transmissão pela li-
nha materna estava claro. Embora não citado literalmente, a regra do par-
tus funciona como um pressuposto lógico da solução de vários casos: Em
Tryphon, discute-se se o quarto filho gêmeo deveria ser escravizado em
um caso de promessa de liberdade após uma escravizada dar três filhos
ao seu senhor (Digesto, Livro I, 1.5, 15); Marciani relata casos de pesso-
as que nasciam escravizadas por serem filhos de escravizadas (Digesto,
Livro I, 1.5, 5); Ulpiano discute conflitos em casos de filhos de escravi-
zadas dadas em usufruto (Digesto, Livro VII, 7.1, 68). Independente dos
casos, as situações discutidas pelos juristas apenas fazem sentido quando
se considera a transmissão de escravidão via mãe como um pressuposto
lógico.

De modo geral, a ideia de uma escravidão que se transmitia geracio-


nalmente não era um problema para os romanos, na medida em que o seu
sistema jurídico condicionava – ao menos, na maior parte da sua existên-
cia – as condições de qualificação civil das pessoas exatamente a partir
de determinações provenientes do nascimento. Entretanto, uma questão
importante parece ter escapado da curiosidade historiográfica: a linea-
ridade materna, em um sistema fortemente marcado pela descendência
masculina. Nas Institutas, por exemplo, a divisão que definia capacidade
jurídica regulava um regime em que todo o núcleo familiar se submetia
(alieni juris) ao pai (sui juris). Cabia exatamente ao pai toda a dimen-
são jurídica da liberdade dos filhos desde que gerados em justas núpcias
(Institutas, Livro I, Título IX), e a extensão do seu poder definidor era
tamanha que mesmo os descendentes daqueles que estavam em seu poder
familiar (filhos dos seus filhos, ou filhos dos seus netos) continuavam, em
muitos casos, sob o seu poder. O papel do pai não era apenas de exercer
a autoridade jurídica pela família: cabia a ele a transmissão da condição
jurídica. É exatamente por isso que apenas não estavam no poder de um

11 – MOYLE, J. B. (ed.). The Institutes of Justinian. Oxford: Oxford. Univ. Press., v.


I, 1913, p. 10.

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pai os descendentes de suas filhas, pois, nesse caso, o núcleo se desloca-


va para o poder paterno da família de seu esposo, o seu respectivo pater
família. A mulher não podia transmitir a condição que herdara de seu pai:
cabia, antes, a seu esposo transmitir a condição que herdara do pai dele.
Em um regime como esse, por que os escravizados deveriam seguir a
condição jurídica da mãe, e não a do pai12?

A resposta para essa questão se encontrava na ideia de casamento re-


gular. Isso porque a casuística romana estabeleceu que nos casos de filhos
ilegítimos a presunção sobre a paternidade não poderia ser aplicada13.
Isso se dava pelo entendimento de que fora do casamento regular não era
possível se assumir legalmente a identidade paterna, de modo que nada se
poderia falar sobre o pai14. Apenas a mãe poderia ter reconhecimento le-
gal (jam autem constare certò nequit, quo patre filius sit procreatus; cum
tamen constet semper, ex quae matre sit in lucen editus)15. Esse tipo de
debate era comum para casos cotidianos sobre a extensão de cidadania e
de direitos em casos de filhos de uniões desiguais (pessoa livre e escravi-
zada; cidadão romano e estrangeiro). Nos casos de escravidão, essa lógica
ganha importância, na medida em que casamentos entre escravizados não
eram permitidos legalmente entre os romanos. Dessa forma, os juristas
entendiam que qualquer filho de escravizados era necessariamente ilegí-
timo – porque proveniente de uma união irregular – e, consequentemente,
deveriam seguir a condição jurídica de sua mãe16.

12 – LEATHLEY, Samuel Arthur. The Roman Family and de Ritu Nuptiarum: Title XX-
III (2) from the digesto of Justinian. Londres: Basil Blackwell Broad Street (ed.), 1st ed.,
1922; DIXON, Suzanne. The Roman Family. Baltimore: JHU Press, 1992, p. 47.
13 – MOREY William Carey. Outlines of Roman law: comprising its historical growth
and general principles. New York & London: G.P. Putnam's sons, 1884, p. 233.
14 – HUBBACK, John. Treatise on the Evidence of Succession to Real and Personal
Property and Peerages. Philadelphia: J.S. Little, 1845, p. 274.
15 – DELVAUX A. Delvaux et. alii. Andreae Vallensis vulgò Del Vaulx ... Paratitla
juris canonici sive Decretalium D. Gregorii papae IX, summaria ac methodica explicatio;
cui accesserat Annonis Schnorremberg Commentarium in eiusdem juris regulas. Editio
secunda matritensis plurimis foedatum mendis, purgatum prodit. Matriti: ex typographia
Placidi Barco Lopez, 1796, p. 372.
16 – LEAPINGWELL, George. A manual of the Roman civil law. Cambridge: Deighton,
Bell and co., 1859, p. 39.

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O casamento na sociedade romana era essencialmente um ato de


vontade, representativo da capacidade legal de praticar um ato jurídico.
Nem todos tinham esse privilégio legal: apenas cidadãos romanos, com
capacidade jurídica plena poderiam se casar. Na evolução do direito ro-
mano, essas regras acabariam sofrendo ponderações e exceções, abrindo
algumas brechas como no caso do reconhecimento da condição de legí-
timo para o filho que nascesse de uma relação entre senhor e escravizada
– quando não houvesse impedimento legal para tanto. De qualquer forma,
a regra geral sempre se manteve e o casamento entre pessoas escravizadas
continuou sendo categoricamente entendido como inválido legalmente17.
Essa relação entre o partus e a noção de casamentos ilegais foi sempre
destacada na casuística romana. Como dito em Ulpiano, no capítulo 5° do
primeiro livro do Digesto: a criança nascida sem conexão legal com um
casamento regular pertence à sua mãe, a não ser que haja uma lei especí-
fica (Lex naturae haec est, ut qui birthit sine legitimo matrimonio matrem
sequatur, nisi lex specialis aliud inducit)18.

Essa questão, como se verá no próximo tópico, não ficou exatamente


esquecida pelo pensamento do direito moderno. Juristas como Johannes
Arnoldi Corvinus ressaltavam a ligação entre linearidade paterna e ca-
samentos regulares19. No famoso caso Dred Scott, para dar apenas um
exemplo, a Suprema Corte dos Estados Unidos defendeu que o partus
se aplicava ao caso pelo fato de haver uma situação de casamento irre-
gular20. As ideias que permitiam que o partus existisse na antiguidade
– especialmente a transmissão paterna em caso de casamentos regulares
– chegaram inteiras na modernidade. E é a partir dessa percepção que a
complexidade do quadro se revela. Entre o mundo romano e a moderni-
17 – MOREY, William Carey. Outlines of Roman law: comprising its historical growth
and general principles. New York & London: G.P. Putnam's sons, 1884, p. 233.
18 – MOMMSEN, Theodor; KRUEGER, Paul (ed.). Corpus iuris civilis. Cambridge:
Cambridge University Press, 2014.
19 – CORVINUS, Arnoldo. Arnoldi Corvini à Belderen. Ivrisprudentiæ romanæ svm-
marivm: sev, Codicis Ivstinianei methodica enarratio. Amstelodami: apud Ludovicum &
Danielem Elzevirios, 1655-60, p. 182.
20 – UNITED STATES. Supreme Court. & S. Freeman Miller, S. Freeman, Reports of
decisions in the Supreme court of the United States.  Washington: W.H. & O.H. Morrison,
1874-76, p. 203.

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dade, uma coisa importante aconteceu: o cristianismo. E com ele muito


se alterou no que diz respeito à noção de casamento e aos vínculos de
inclusão dos membros da comunidade.

Em primeiro lugar, é preciso recordar que o processo de cristianiza-


ção alterou substancialmente a noção de casamento. Como um sacramen-
to, o casamento deixou de ser apenas um ato legal, ganhando aspectos
religiosos e sentidos salvíficos. Tornou-se, portanto, um ato complexo,
com suas raízes laicas e religiosas. Os casamentos entre escravizados –
mais comumente entre servos, na cultura do trabalho forçado da Idade
Média – foram retirados do ambiente de ilegalidade do antigo mundo
romano e passaram a ser regulados pela Igreja. A preocupação com a
existência de relações pecaminosas entre homens e mulheres fez com que
a Igreja estimulasse tais uniões, organizando um modelo em que mes-
mo escravizados e servos detinham capacidade para contrair casamento,
justificado pelo caráter sacro da sua realização21. No pensamento cristão,
essa era uma dimensão de uma espécie de dignidade que não poderia ser
dispensada nem mesmo com a condição de escravidão.

As dificuldades de inserção no mundo cristão não limitavam o partus


apenas aos problemas relacionados ao casamento. A tradição das escritu-
ras e especialmente o legado do judaísmo impunham novas dificuldades
à plena fruição do princípio. Deve-se recordar que o tema da escravidão
é central na mitologia fundacional do pensamento religioso e histórico
do povo hebreu, e uma parte importante das reflexões sobre a instituição
acabou por ser inscrita nos textos centrais da sua religião, posteriormen-
te incorporados pelo cristianismo. No velho testamento, já no livro do
Êxodo, é possível encontrar uma série de regras pertinentes aos vínculos
de servidão envolvendo judeus. Nas compilações, se encontram determi-
nações de que um escravo hebreu poderia servir por um tempo determi-
nado, mas nunca poderia ser reduzido à condição de escravo perpétuo,

21  –  Para dar um exemplo, menciono o trabalho de Laviron. O autor fala especifica-
mente da mudança do tratamento que a Igreja passou a dar sobre o tema dos casamentos:
LAVIRON, Aristide. Le Christianisme jugé par ses œuvres: ou de l'influence de la religion
Chrétienne. Paris: E. Belin, A. Bray, 1857, p. 243.

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preso por vínculo para a vida. No capítulo 21, há disposições de que o


escravo hebreu apenas poderia servir por sete anos, devendo ser liberado
depois22. No Levítico, várias regras procuram suavizar a servidão para os
judeus ao dizer que alguém que se tornasse escravizado por empobrecer
deveria ser tratado como um trabalhador contratado; ao proibir a venda
de escravizados hebreus; e, ao obrigar judeus a resgatarem outros judeus
que tivessem sido postos em escravidão por povos estrangeiros. Várias
disposições buscavam suavizar o efeito da servidão para as famílias dos
escravizados. Por outro lado, pessoas que não tivessem o vínculo hebreu
poderiam ser escravos para a vida, comercializados e deixados, inclusive,
em herança23.

De modo geral, embora o texto bíblico conviva com o tema da es-


cravidão, o velho testamento trabalha com uma dualidade, diferenciando
os regimes jurídicos do igual, do membro da comunidade (judeu) e do
estrangeiro. Se a escravidão não era exatamente proibida para os judeus,
a regra obrigava que ela se desenhasse de forma mais branda, impedindo
um regime de trabalho forçado para a vida, dificultando a conversão do
escravo em coisa negociável, e regulando o efeito da instituição no núcleo
familiar do escravizado. Deve-se lembrar que além de obrigar a transmitir
a condição de escravidão via mãe, o partus também condenava o descen-
dente a uma escravidão para a vida.

No mundo medieval, colocado em um ambiente em que os escravi-


zados e servos eram, em geral, filhos de casamentos regulares, e membros
da comunidade (porque, na maior parte das vezes, batizados desde seu
nascimento), o partus encontrou fortes resistências. Além disso, a escra-
vidão perdeu força no centro europeu dando lugar a diferentes formas de
trabalho compulsório, em geral vinculado pela terra. Dessa forma, nesses
regimes de trabalho que se consolidariam na tradição europeia – dife-
rentes da modelagem da escravidão móvel e comercial da antiguidade
–, os vínculos familiares e os filhos de escravizados foram considerados
plenamente legítimos em termos legais. A lógica do partus parece ter per-
22 – Exodus 21.
23 – Leviticus 25.

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dido espaço para uma nova sorte de respostas jurídicas voltadas a regular
o status dos filhos de escravizados a partir da condição do pai, da lei
mais dura, ou mesmo obrigando-os a serem divididos a diferentes senho-
res, quando seus pais possuíam vínculos de domínio diferentes. Também
apareceram respostas que abandonaram o vínculo geracional, para cons-
truir formas de sucessão ligadas à terra, e não à ascendência materna ou
paterna. Esse conjunto de alternativas jurídicas levou à consequências:
regulações proibiram expressamente o uso do partus em alguns lugares,
como a Inglaterra, e debates teológico-jurídicos discutiram os limites da
ideia de escravidão perpétua entre os cristais . Como se verá, em algumas
situações, se entendeu que a escravidão não podia ser transmitida de for-
ma integral aos filhos.

Um Sínodo francês do ano de 616 se insurgiu contra situações de


prolongamento de escravização de pessoas que tenham vendido a si pró-
prios por situações de miséria, exigindo que sua liberdade fosse restituída
o mais depressa possível – como previsto no texto bíblico mencionado
acima. Além disso, entendeu que os filhos de escravizados deveriam ser
livres, independente do motivo pelos quais os pais se tornaram servos (et
interim, si vir ex ipsis, uxorem ingenuam habuerit, aut mulier ingenuum
habuerit maritum, filii qui ex ipsis nati fuerint in inegnuitate permane-
ant). Para um pensador católico francês do século XIX, essa decisão (sy-
nodus incerti Loci, circa annum 616) teria inclusive revogado o partus
do ambiente da cristandade24. Muitas das mais importantes inteligências
da Igreja se engajaram no tema de entender se a regra de transmissão
matrilinear da escravidão sobreviveria à aceitação dos casamentos dessa
natureza. Na Suma Teológica de Tomás de Aquino – para dar um exem-
plo –, o tema aparece nas questões 52 e 59, em análise que faz com que o
Doutor Angélico ateste a validade de uniões entre escravizados e discuta
se a condição de servidão se transferiria aos filhos pelo pai ou pela mãe.
Embora Aquino opine pela manutenção do partus, a presença de uma

24 – Scienza e la fede, raccolta religiosa. Fasc. 871-872. Napoli: Tip. Manfredi, 1887,
p. 223.

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questão como essa em sua obra demonstra a existência de debates acerca


do tema25.

As transformações sociais, econômicas e políticas que marcaram a


transição do mundo antigo e a consolidação do medievo deixaram o par-
tus em uma condição bastante particular. De modo geral, os espaços que
experimentaram a troca do regime de trabalho da escravidão comercial
antiga para o novo modelo de regime forçado ligado à terra acabaram por
perder contato com a regra. Nos espaços em que a escravidão comercial
sobreviveu – em geral, países do Mediterrâneo, onde manteve-se ativo o
tráfico mercantil de pessoas – o princípio continuou fazendo sentido, pois
direcionado a escravizados não cristãos. Essas diferenças acabaram in-
corporadas à formação das tradições jurídicas do que em breve seriam as
nações europeias e repercutiram fortemente no processo de colonização
das Américas.

As nações que acabariam por ser as pioneiras no processo de expan-


são europeu, ocorrido a partir do século XVI, ainda tinham certo contato
com as mencionadas formas comerciais e móveis, típicas da escraviza-
ção dos infiéis, não cristãos. Na transição do século XV para o XVI, as
instituições ibéricas contavam com equipamentos legais aptos ao trato
da escravização dos Mouros que, no limite, acabariam por ser centrais
para o desenvolvimento do nascente tráfico transatlântico. Inicialmente
organizado pelos reis católicos, o tráfico dos africanos se justificou legal-
mente como um abrangente projeto de conversão ao cristianismo. Assim,
a Igreja Católica, seguida em breve pelos protestantes, passou a regular a
entrada desses novos africanos nas comunidades cristãs. Dessa forma, os
arranjos legais acumulados do trato da escravização dos Mouros e Judeus,
tão comuns na Península Ibérica, seriam fortalecidos, incorporando no-
vas complexidades advindas do esforço de ocupação das Américas e do
desenvolvimento de compreensões sobre os status dos indígenas e afri-
canos. O processo de colonização das Américas, como se sabe, não ficou
restrito aos ibéricos. O avançar desse movimento trouxe ao continente
25  –  TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. 3893-3898 Disponível em: https://suma-
teologica.files.wordpress.com/2017/04/suma-teolc3b3gica.pdf. Acesso em: 12.12.21.

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As crianças realmente deveriam seguir a condição do ventre escravizado?
Instabilidades no princípio do partus sequitur ventrem
na construção da escravidão colonial

países que já não tinham mais contatos estruturais com o partus, de modo
a criar, no complexo ambiente do escravismo americano, um cenário de
diversidades legais que redundaria no aparecimento de situações de insta-
bilidades das formas de transmissão geracional da escravidão.

Na sua adaptação para o novo mundo da escravidão dos africanos nas


Américas, o princípio jurídico, portanto, enfrentou duas dificuldades per-
formativas. A primeira delas se relaciona com a linearidade paterna. Uma
longa tradição dos sistemas jurídicos europeus faria com que, no começo
da colonização, muitos lugares empenhassem um regime de transmissão
da escravidão via pai, e não via mãe. Como se viu, isso se justifica pelo
contato dessas tradições com regimes de plena aceitação do casamento
entre servos no ambiente da sua juridicidade medieval. Naturalmente, na
colonização americana, o desequilíbrio demográfico entre os gêneros e
as constantes situações de violência sexual entre senhores e escravizadas
gerava profundos inconvenientes em um modelo legal no qual a definição
da condição de escravidão se dava pelo lado masculino26. Além disso,
muito cedo no processo colonizador, os escravistas perceberam que os
homens negros livres poderiam exercer papéis profundamente perturba-
dores para o sistema27. A linearidade paterna não se mostrava capaz de
fornecer o enraizamento de um sistema mais estável de controle sobre as
gerações de afrodescendentes.

A segunda dificuldade performativa do partus tem a ver com a ideia


de dois regimes jurídicos, baseada nas balizas oponíveis à servidão na
antiga tradição judaica. Assim como prevista na hipótese do antigo testa-
mento, não foram poucas as tensões que entenderam que o partus não se
aplicaria a cristãos, sujeitos necessariamente a um regime de trabalho di-
ferente. Advindos de uniões legalizadas e sujeitos ao batismo sem nenhu-
ma restrição, os descendentes de africanos passaram, gradualmente, a ser
26 – DORSEY, Joseph C. Women Without History: Slavery and the International Poli-
tics of “Partus Sequitur Ventrem” in the Spanish Caribbean. The Journal of Caribbean
History, West Indies: WIUP, v. 28, n. 2, p. 165-193, p. 169, 1994.
27 – DE LA FUENTE, Alejandro; GROSS, Ariela J. Becoming Free, Becoming Black:
Race, Freedom, and Law in Cuba, Virginia, and Louisiana. Cambridge: Cambridge Uni-
versity Press, 2020.

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Paulo Henrique Rodrigues Pereira

entendidos como membros plenos da comunidade cristã. Naturalmente,


essa compreensão geraria certo enfraquecimento das justificativas tradi-
cionais da escravidão perpétua por nascimento. Essa contradição acabaria
abrindo espaços legais que seriam devidamente explorados por africanos
e seus descendentes no sentido da negação da possibilidade da redução
da categoria à escravidão geracional. Os exemplos são muitos, mas para
ficar naqueles rapidamente mencionados neste texto: a sequência de peti-
ções de Massachusetts explora bastante a ideia de que a servidão oponível
ao cristão jamais poderia ser total, o reduzindo a uma mera mercadoria
(chattel), passível de ser submetido a um regime forçado para a vida. Um
olhar cuidadoso também pode perceber esse tom no alvará pombalino,
mencionado no começo desse artigo. Lá, o Rei disse que a injustiça das
pessoas postas em escravidão se dava por já estarem distanciadas da cul-
pa que justificava o seu cativeiro.

Diferentes tradições jurídicas chegaram à América com distintos en-


tendimentos jurídicos sobre o partus. Os ingleses o rejeitavam de forma
mais categórica; os ibéricos tinham um sistema mais adaptado à sua lógi-
ca; os franceses, em um papel intermediário. Essas disparidades geraram
importantes consequências. A seguir, se observará como os diferentes re-
gimes jurídicos trataram o tema no começo do processo colonizador.

II – Uma longa duração de instabilidades


Das tradições juridicamente mais importantes na montagem dos sis-
temas escravistas no continente americano, seguramente a inglesa era a
mais resistente à imposição do partus como regra geral de transmissão.
No direito da ilha, havia bastante consenso sobre a aplicação da lineari-
dade paterna em casos de transmissão de condição jurídica de servos e
escravizados, havendo, ao contrário do que era mais comum, disposições
e posições bastante expressas sobre o tema.

O caso inglês

Já no começo da unificação da monarquia inglesa, o assunto foi ob-


jeto de disposição real. Henrique I, que governou a Inglaterra entre 1100

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As crianças realmente deveriam seguir a condição do ventre escravizado?
Instabilidades no princípio do partus sequitur ventrem
na construção da escravidão colonial

e 1135, revogou expressamente o velho costume dos romanos para impor


a linearidade paterna: “sempre à patre non à matre generationis ordo
texitur”. Em uma importante história do direito inglês bastante conhecida
no começo do século XIX, George Crabb menciona que a regra romana
era efetivamente seguida na ilha no “tempo dos saxões”, mas que em um
texto de unificação de práticas entre servos e escravizados a monarquia
entendeu por bem unificar o regime para a condição geral de transmissão
de direitos – o pai28. Aparentemente, a legislação de Henrique foi efetiva,
pois são muitas as fontes que atestaram o regime do sequitur patrem in-
glês, seja nas comparações com outros países29, em tratados de filosofia30
ou mesmo em livros doutrinários de direito inglês31.

De fato, a mudança parece ter funcionado. Os juristas da tradição bri-


tânica eram relativamente unânimes em atestar a inaplicabilidade do par-
tus para o caso inglês. Sir Thomas Littleton no famoso Littleton’s Tenures
in English, de 1480, atesta a não aplicabilidade do partus no reino32; na
mesma linha, o mais importante jurista da era elisabetana, Edward Coke.
Para ele – grande consolidador das regras inglesas –, a linearidade paterna
deveria sempre vigorar em casamentos desiguais, quando uma das partes
era servo e a outra livre33. A clareza desse deslocamento – da transmissão
materna para a paterna – era também percebida em outros juristas, como

28 – CRABB, George. A history of English law: or an attempt to trace the rise, progress,
and successive changes, of the common law; from the earliest period to the present time.
London: Baldwin and Cradock, 1829, p. 78.
29 – BANKTON, Andrew MacDowall. An institute of the laws of Scotland in civil
rights: with observations upon the agreement or diversity between them and the laws of
England. In four books. After the general method of the Viscount of Stair's Institutions V.
1. Edinburgh: Printed by R. Fleming, for A. Kincaid and A. Donaldson, 1751, p. 67-77.
30 – HOFFMAN, David. Legal outlines: being the substance of the first title of a course
of lectures now delivering in the University of Maryland. Baltimore: J. Neal, 1836, p. 525.
31 – THRUPP, John. The Anglo-Saxon home: a history of the domestic institutions and
customs of England, from the fifth to the eleventh century. London: Longman, Green,
Longman, & Roberts, 1862, p. 119.
32 – LITTLETON, Thomas. Littleton's Tenures in English. New ed., cor. London: V. &
R. Stevens and G.S. Norton, 1845, p. 78.
33 – LITTLETON, Thomas et al. The first part of the institutes of the laws of England,
or, A commentary upon Littleton: not the name of the author only, but of the law itself. 1st
American, from the 19th London ed., corr. / Philadelphia: Robert H. Small, 1853, p. 723.

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Paulo Henrique Rodrigues Pereira

John Cowell em 160734. Tanto no compilado de decisões e legislação re-


alizado sob o reinado de George III ainda no século XVIII35 quanto em
coleções de instituições e práticas jurídicas do mesmo período, o assunto
parece consolidado36.

O mais importante dos juristas ingleses do seu tempo também dei-


xava clara a impossibilidade de se aplicar o partus no contexto do direito
inglês. William Blackstone foi um homem central em seu tempo, membro
do Parlamento inglês e juiz. O professor de Oxford, cujos Commentaries
on the laws of England eram talvez a mais importante fonte para a prática
e o aprendizado de direito na Inglaterra e suas colônias, era taxativo a
respeito do tema, dizendo que o partus era aplicável, na maior parte dos
casos, apenas aos animais37. Na sua obra, ao analisar a servidão, o jurista
afasta o partus sequitur ventrem por reconhecer a regularidade do casa-
mento entre servos. Nem mesmo em caso de filiação irregular, se poderia
deslocar a transmissão jurídica para a mãe38.

Os livros de Coke e de Blackstone tiveram muita circulação tanto na


Inglaterra como nas escolas de direito das suas colônias ao norte. George
M. Bibb, graduado pelo Princeton College, juiz e Senador chegou a re-
querer ao Senado Federal que algumas páginas do livro de Blackstone
fossem excluídas da Biblioteca do Estado. Para o Senador, permitir que
um jurista tão central na educação dos estudantes de direito no país veicu-
lasse páginas tão imprudentes como as mencionadas – e outras mais sobre

34 – COWELL, John. A law dictionary: or the interpreter of words and terms: used in
the common or statute laws with an appendix containing the antient names of places and
surnames. London: Walthoe, 1727, p. 306.
35 – HOWELL, Thomas et al. A complete collection of state trials: and proceedings
for high treason and other crimes and misdemeanors: with notes and other illustrations.
London: printed by T.C. Hansard for Longman, Hurst, Rees, Orme, and Brown v. 20
(1772-77), 1816-1828, p. 37.
36 – The beauties of English prose: being a select collection of moral, critical, and en-
tertaining passages, disposed in the manner of essays In four volumes. London: Hawes
Clarke and Collins, 1722, p. 19.
37 – Op. cit., p. 390.
38 – BLACKSTONE, William. Commentaries on the laws of England: In four books.
Philadelphia: Printed for the subscribers, by Robert Bell, at the late Union Library, in
Third-street, Philadelphia, 1771-72, p. 94.

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As crianças realmente deveriam seguir a condição do ventre escravizado?
Instabilidades no princípio do partus sequitur ventrem
na construção da escravidão colonial

a impossibilidade de se suprimir direitos naturais por lei positiva – seria


autorizar o envenenamento da juventude norte-americana39. Nas primei-
ras edições de Blackstone publicadas nas colônias que depois formariam
os Estados Unidos, a sua posição contrária ao partus aparecia sem ne-
nhum comentário ou tratamento adicional. É o caso da publicação feita
na Filadélfia em 177140. Entretanto, ao longo do século XIX, na medida
em que o debate sobre o fim da transmissão geracional da escravidão se
fortalecia nos estados escravistas, várias das edições do jurista passaram
a aparecer com notas de rodapé nas quais comentários adicionais atesta-
vam que o partus era universalmente seguido nos países em que existia
escravidão41. Impossível calar Blackstone, se tentava diminuir o impacto
da sua posição.

A rejeição do sistema inglês ao partus marcou o começo da sua colo-


nização nas Américas. As primeiras regulações sobre o tema nas colônias
escravistas aderiram ao modelo de transmissão paterna como no caso da
regulação de Maryland em 166342. Além disso, é provável que nos pri-
meiros momentos da colonização tenha existido dúvidas mais categóri-
cas acerca da possibilidade da transmissão da condição da escravidão.
Aparentemente, uma primeira geração de filhos de africanos pôde ficar
livre após alguns anos de trabalho em um ambiente ainda bastante des-
preparado para diferenciar as formas de servidão europeias da nova es-
cravidão dos africanos43. Além da linearidade paterna, afrodescendentes
se sujeitaram às instituições mais gerais da servidão branca por contrato,
em que o cativeiro perpétuo não se revelava como uma resposta natural44.

39 – WRIGHTS, Elizur. A curiosity of Law: or, A response in the Supreme Judicial court,
as a judge in the General Courts, and what possibly came of it. Boston, 1866, p. 89.
40 – BLACKSTONE, William. Op. cit., p. 94.
41 – BLACKSTONE, William. Op. cit., p. 72.
42 – DOUGLAS, Stephen A. Senate. Speech of Hon. S. A. Douglas, of Illinois, in the
United States Senate, March 3, 1854, on Nebraska and Kansas. Washington: Printed at
the Sentinel Office, 1854, p. 622.
43  –  O exemplo mais interessante a esse respeito é o de Mathias de Souza, filho de afri-
canos escravizados que chegou a ser representante na Assembleia de Maryland. BOGEN,
David S. Mathias de Sousa: Maryland's First Colonist of African Descent. Maryland His-
torical Magazine, 96, Maryland: MUP 68-85, 2001.
44 – Sobre isso, vide: COOMBS, John C. The phases of conversion: a new chronology

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William Tucker, filho de dois africanos presos por contrato, era homem
livre, foi batizado, e gozou das prerrogativas de um cidadão normal no
começo do século XVI45.

Em Massachusetts, foi necessário positivar em lei expressa, em


1670, que proprietários poderiam vender filhos de seus escravizados46,
assim como a Assembleia da Virgínia, em 1662, regulamentou que o fato
de os descendentes de africanos serem batizados não lhes conferia liber-
dade47. A necessidade de ter que declarar isso em lei expressa, positiva,
revela a provável existência de um ambiente de tensões e dúvidas sobre
a extensão do regime nos quais os afrodescendentes estavam inseridos.
No mesmo ano de 1662, a Assembleia da Virgínia regulamentou expres-
samente a linearidade materna, mudando o regime vigente até aquele mo-
mento. A primeira constituição da Carolina – ainda unificada – previu a
transmissão da escravidão pela via paterna48, legislação que apenas foi
alterada em 1740 para considerar a linearidade materna49.

Isso também se verificava nas colônias inglesas do Caribe. Segundo


Richard S. Dunn em Antigua um filho mestiço – tendencialmente, filho
de mulher escravizada e homem branco livre – ficava mantido na escra-
vidão apenas até a idade de 18 ou 21 anos. O partus apenas teria sido
implantado na ilha em 167250. Em Barbados, editou-se nova legislação
em 1660 diferenciando as formas da escravidão africana dos servos por

for the rise of slavery in early Virginia. The William and Mary Quarterly, v. 68, n. 3, Wil-
liamsburg: WMUP, p. 332-360, 2011.
45  –  WADE, Evan Wade. William Tucker. (1624-?). Blackpast, 16 de abril de 2014. Dis-
ponível em: https://www.blackpast.org/african-american-history/tucker-william-1624/
Acesso em: 12.12.21.
46 – SMILEY, Tavis. The covenant in action. EUA: Hay House, Inc., 2007, p. 108.
47 – SAINT-ALLAIS, M. de et. alii. L'art de vérifier les dates. Paris: Moreau, im-
primeur, v. 17, 1842, p. 320.
48 – LOCKE, John. The Fundamental Constitutions of Carolina. London: s.n., 1670.
49 – MCCORD, David J. The Statutes at Large of South Carolina. Containing the Acts
Relating to Charleston, Courts, Slaves, and Rivers. Columbia, SC: A.S. Johnston, v. 7,
1840, p. 397.
50 – DUNN, Richard S. Sugar and slaves: The rise of the planter class in the English
West Indies, 1624-1713. North Carolina: UNC Press Books, 2012, p. 228.

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As crianças realmente deveriam seguir a condição do ventre escravizado?
Instabilidades no princípio do partus sequitur ventrem
na construção da escravidão colonial

contrato, pacificando a sua condição de escravos perpétuos51. A possível


aplicação do partus era tão discutível no ambiente da regulação inglesa
que, mesmo no avançado do século XIX, a administração metropolitana
resolveu consultar formalmente quais das unidades coloniais aplicavam a
regra materna. Em relatório apresentado ao Parlamento, se encontrava a
seguinte pergunta remetida aos administradores americanos:
Qual é a condição (no que concerne à questão da liberdade ou escra-
vidão) dos descendentes de uma mulher escrava e de um pai livre, e
qual é a condição dos descendentes de uma mulher livre e de um pai
escravo52?

As respostas das ilhas caribenhas atestaram a implementação do par-


tus. A mera dúvida, entretanto, revela parte da instabilidade sobre o tema
no direito inglês.

O caso francês

A rejeição categórica do sistema inglês ao partus não voltaria a


acontecer em nenhum dos demais sistemas jurídicos predominantes no
continente, seja o francês, o português ou o espanhol – os dois últimos
unificados nesse texto como Ibéricos. Nada mais natural considerando-se
o maior nível de integração desses ordenamentos aos antigos legados do
direito romano. Entretanto, embora o pensamento jurídico francês não
apresentasse grande objeção à lógica do partus, a modelagem da trans-
missão geracional via mãe não foi natural nas colônias francesas. Ao con-
trário dos ibéricos que já experimentavam, por conta da experiência no
Mediterrâneo, formas de servidão que acabariam por ser institucional-
mente parecidas com o que o cativeiro africano se tornaria no auge do
escravismo do continente americano, os franceses tiveram um período de
adaptação até chegarem à radical solução do partus – cativeiro perpétuo
por nascimento.

51 – HALL, Richard. Acts, passed in the island of Barbados: From 1643 to 1762, inclu-
sive. London: Printed for R. Hall, 1764, p. 56.
52 – GREAT BRITAIN. Parliament. House of Commons. Parliamentary papers. Lon-
don: His Majesty's Stationery Office, v. 24, 1829, p. 142.

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Os problemas que o partus enfrentou no começo da escravidão fran-


cesa no Caribe, portanto, não se relacionavam com nenhuma incompati-
bilidade com o seu sistema jurídico. Honoré Tournely, em 1731, afirma a
lei romana, dizendo que a prole em caso de servidão sempre segue a mãe
(Prolem in servitute sequi conditionem matris, ex communi Juris civilis
effato, partus sequitur ventrem)53. Assim como Jean Lacoste em 177354,
ou, mesmo em obras mais adiantadas do século XIX, Joseph François
Gabriel Hennequin55 e Victor Alexis Désiré Dalloz56. O muito popular J.
Migne também registrou que o servo nascia sempre da mãe57. Mesmo an-
tes do Code Noir, documentação oficial demonstra relativa boa aceitação
do partus como um princípio jurídico legitimo58.

Na literatura francesa sobre o tema, existem nuances que demons-


tram que, embora o partus seja visto como um princípio legítimo de
uma raiz de direito plenamente integrável ao sistema francês, o seu uso
não foi, necessariamente, visto como universal. Pierre Collet, em livro
da segunda metade do século XVIII, menciona que a aceitação da regra
poderia variar a depender da região analisada59. Na sua história do cam-
pesinato francês, Laymarie menciona que nem todas as regiões da França
adotavam a regra. Segundo ele, a presença do partus parecia ser maior

53  –  TOURNELY, Honoré. Praelectiones Theologicae de sacramento ordinis . Venetiis:


apud Nicolaum Pezzana, 1731, p. 256.
54  –  ACOSTE, Jean de. Jani a Costa Praelectiones ad Illustriores quosdam titulos loca-
que selecta juris civilis. Luguni Batavorum: apud S. et J. Luchtmans, 1773, p. 236.
55  –  HENNEQUIN, J. François Gabriel. Esprit de l'encycloped́ ie: ou recueil des articles
les plus curieux et les plus interessans de l'encycloped́ ie en ce qui concerne l'histoire, la
morale, la literature et la philosophie. Nouv. ed. Paris: Verdière, 1822, p. 2.
56 – DALLOZ, Victor Alexis Désiré. Jurisprudence générale: Répertoire méthodique et
alphabétique de législation de doctrine et de jurisprudence. Paris: Bureau de la Jurispru-
dence générale, 1869, p. 1267.
57 – MIGNE, Jacques-Paul. Theologiae cursus completus, ex tractatibus omnium per-
fectissimis ubique habitis, et a magna parte episcoporum necnon theologorum Europae
catholicae, universim ad hoc interrogatorum, designatis, unicè conflatus; plurimis anno-
tantibus presbyteris ad docendos levitas pascendosve populos altè positis T. 28, Parisiis,
apud editores, 1845, p. 759.
58 – DELISLE, Léopold et al. Actes du Parlement de Paris. Paris: H. Plon, 1867, p. 743.
59 – COLLET, Pierre. Abrégé du Dictionnaire des cas de conscience de M. Pontas: on
y a joint les Résolutions latines imprimées à Ferrare avec la critique. Paris: Les Libraires
associé, 1768, p. 615.

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As crianças realmente deveriam seguir a condição do ventre escravizado?
Instabilidades no princípio do partus sequitur ventrem
na construção da escravidão colonial

nas regiões em que o pensamento católico, e o direito canônico, se mos-


travam mais presentes60.

De fato, parece ter havido uma íntima relação entre a validação do


partus e o pensamento católico. Muitos tratados teológicos justificavam
o princípio, defendendo sua plena harmonia com o cristianismo. É o caso
dos textos de Francis Kenrick61, Thomas Adams62 e Edward Reynolds63,
para dar alguns exemplos. São comuns passagens relacionando a escra-
vidão com a transmissão do pecado original, e argumentos de que a des-
cendência dos filhos se devia mais às mães do que aos pais, no que tange
às substâncias do corpo e outras características que, no pensamento da
época, justificariam a escravidão64.

Esse movimento de aproximação entre a Igreja e a máxima da trans-


missão geracional de escravidão perpétua via mãe não parece, entretan-
to, linear. Esse movimento – também verificado no caso ibérico – foi
se fortalecendo ao longo do desenvolvimento do escravismo americano.
Houve um grande debate no começo da modernidade que ponderou a
possibilidade de uma escravidão perpétua, Thomas Hobbes, John Locke
e Jean Bodin65. Mesmo pensadores que defenderam a escravidão, como
Francisco de Vitória, a pensaram em uma modelagem menos absoluta do
que a dos antigos, negando a ideia de uma submissão completa e total do
escravizado66.
60 – LEYMARIE, Achille. Histoire des paysans en France. Paris: Guillaumin, 1856,
p. 349.
61 – KENRICK, Francis Patrick. Theologiae moralis. Philadelphiae: Eugenium Cum-
miskey, 1841-1843, p. 255.
62 – ADAMS, Thomas. The works of Thomas Adams: being the sum of his sermons,
meditations, and other divine and moral discourses. Edinburgh: J. Nichol.1861-1862, p.
196.
63 – REYNOLDS, Edward Reynolds et al. The whole works of the Right Rev. Edward
Reynolds, Lord Bishop of Norwich. London: printed for B. Holdsworth, 1826, p. 251.
64 – ROSELLI, Salvatoris Mariae. Fratis Saluatoris Mariae Roselli Summa philosoph-
ica ad mentem angelici doctoris S. Thomae Aquinatis. Matriti: Typis Benedicti Cano,
1788, p. 310.
65  –  Para uma visão panorâmica dos pensamentos, o verbete da Enciclopedia Routledge:
SLAVERY. In: CRAIG, Edward (ed.). The Routledge Encyclopedia of Philosophy. Lon-
don: Routledge, v. 8, 1998, p. 804-805.
66  –  PICH, Roberto Hofmeister. Dominium e Ius: sobre a fundamentação dos direitos

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Paulo Henrique Rodrigues Pereira

Vale mencionar, nesse sentido, que o esforço inicial do pensamento


católico foi o de justificar o aprisionamento dos africanos e o seu tráfico
para as Américas. O empreendimento escravista dos reinos cristãos ini-
ciou-se a partir de uma retórica voltada à escravização de não cristãos, de
combate à “invasão” muçulmana na Guiné e do resgate de almas já con-
denadas pela guerra. É interessante perceber como as regulações desse
começo da escravidão buscaram distinguir africanos pagãos e cristãos67,
estes sujeitos a todos os sacramentos da fé cristã, sendo aptos ao batismo
e à ordenação na condição de missionários, padres, etc.68 Decisões dos
Papas Pio V e Paulo III incentivaram a conversão de africanos e auto-
rizaram a regularização de casamentos e de batismos em pagãos69. Em
suma, o aparelho conceitual do tráfico de escravizados dos reinos católi-
cos havia sido montado para justificar a escravização do estrangeiro e do
pagão, e não do cristão. Com o desenvolvimento do escravismo continen-
tal americano, o ferramental jurídico teve que ser atualizado para que se
pudesse justificar que pessoas nascidas nas Américas, batizadas desde seu
nascimento, pudessem também ser reduzidas à escravização.

De modo geral, embora o pensamento jurídico francês fosse ade-


sivo ao partus, a modelagem do princípio tal qual a dureza do escravis-
mo do século XIX conceberia ainda não estava pronta desde o princípio
da colonização. Uma série de dúvidas, divergências e disputas davam à
transmissão da condição de escravidão perpétua via linearidade materna
um caráter bastante poroso e instável. Jean-Baptiste Du Tertre, na sua
História das Antilhas Francesas de 1667, trata dessa questão. Tendo che-
gado ao Caribe por volta dos anos 1640, o padre teve a oportunidade de
conhecer as primeiras modelagens do escravismo francês. Em um capítu-
lo dedicado aos “mulatos” no segundo volume do seu livro, o autor fala

humanos segundo Francisco de Vitoria (1483-1546). Teocomunicação, Porto Alegre: PU-


CRS, v. 42, n. 2, 376, 2012. 
67 – LARA, Silvia Hunold. Legislação sobre escravos africanos na América portuguesa.
In: Nuevas Aportaciones a la Historia Jurídica de Iberoamérica. GALLEGO, José An-
drés (Org.). Madrid: Fundación Histórica Tavera, 1st. ed. 2000, p. 75.
68  –  LARA, Silvia Hunold. Op. cit., p. 137.
69 – HAMANN, Byron Ellsworth. Bad Christians, New Spains: Muslims, Catholics,
and Native Americans in a Mediterratlantic World. London: Routledge, 2019, p. 100.

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Instabilidades no princípio do partus sequitur ventrem
na construção da escravidão colonial

do nascimento e da condição dessa geração de filhos – em geral – des-


cendentes de homens brancos e mulheres negras. Dando testemunho dos
abusos constantes que as escravizadas sofriam, Du Tertre diz que o partus
era expressamente afastado no seu caso
[…] c’est pourquoy ils ne se sont point arrestez à cette axiome de
Droit, qui rend l’enfant de la condition de la mere qui l’enfante, Partus
sequitur ventrem, & ils les ont declarez libres pour punir le pe ché de
leurs Peres70.

O padre chega a dizer que se esses mulatos eram de uma cor negra
eles não carregavam o estigma da escravidão71. A lógica aqui é a de que
o descendente de uma mulher negra com um homem branco não poderia
ser tratado exatamente como um africano. A sua condição de inclusão na
comunidade cristã era outra.

O Padre Labat, missionário que acabaria por se envolver mais di-


retamente com os negócios da escravidão, também deu um testemunho
bastante parecido com o de Du Tertre. Tendo vivido no Caribe no final do
século XVII, o Padre diz que essa segunda geração de africanos – não fica
claro no seu texto, mas ele se refere provavelmente aos filhos entre ho-
mens brancos e mulheres negras – deveriam servir até os 24 anos, quando
ficavam livres. Eles eram obrigados a trabalhar por oito anos, como forma
de compensar os senhores de suas mães pela perda de trabalho que se ve-
rificaria por conta da sua criação. Entretanto, a sua servidão – reparatória
ao dano causado ao senhor – não era equivalente à escravidão perpétua
dos africanos, e, cumprido o período, eles eram postos em liberdade72.

À primeira análise, os testemunhos poderiam parecer anedóticos ou,


ao menos, não representativos da realidade mais geral das ilhas francesas.
Entretanto, o cotejamento da documentação oficial da administração co-
lonial e de correspondências da época, mostra que essa questão acabaria

70 – DU TERTRE, Jean Baptiste. Histoire Générale des Antilles habitées par les Fran-
çois. Paris: Chez Thomas Iolly, v. 2, 1667, p. 512.
71  –  DU TERTRE, Jean Baptiste. Op. cit., p. 512.
72 – LABAT, Jean-Baptiste. Voyages aux iles françaises de l'Amérique. Nouvelle éd.,
d'après celle de 1722. Paris: Lefebvre, 1831, p. 37.

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por ser central nas pressões políticas dos fazendeiros de então. O cresci-
mento da população de pessoas livres de cor 73, bem como a necessidade
de modernizar a máquina escravista francesa, teria gerado uma onda de
reformas e de aumento do controle social das ilhas. A documentação mos-
tra fazendeiros exigindo que mesmo os caminhos da alforria fossem fe-
chados para mulheres e seus filhos. Em ofício de 1673 – antes da primeira
regulação sobre o partus na ilha – Ruau-Palu, agente da Companhias das
Índias, discute o problema dos mulatos, dizendo que os colonos se divi-
diam: alguns defendiam a liberdade deles por serem filhos de homens
livres; outros, descontentes, queriam um endurecimento das regras. Para
esses, a solução seria adotar o partus: (“[…] disent que dans le cas où nos
lois n’ont point pouvoir, nous nous servons du droit Romain qui ordonne
que Partus sequitur ventrem, que par cette disposition la mère étant de
condition esclave, son fils ne peut être libre”)74. Nobres franceses se en-
gajaram no tema. O governador das ilhas, Blénac, em discussão travada
com o intendente Patoulet, registrou que o costume na Martinica era de
que os descendentes mulatos ficassem livres aos 20 anos, se homens; as
mulheres, aos 1575 (“[...] l’usage de la Martinique est que le mulâtre soit
libre après avoir atteint l’âge de 20 ans et la mulâtresse à 15 ans [...]”).
Existiam procedimentos jurídicos para que pais legítimos resgatassem
seus filhos injustamente postos em escravidão, por serem filhos de escra-
vizadas de outros senhores76.

Nos anos de 1670, uma onda de regulações imporia o partus como


solução legal para os descendentes. Logo mais, o Code Noir o consagra-
ria como a regra escravista por natureza.
73  –  Para uma evolução melhor dos recenseamentos nas ilhas francesas, ver: STEHLE,
Henri. Petit historique des grands recensements antillo-guyanais et en particulier de la
Guadeloupe. Bulletin de la Société d'Histoire de la Guadeloupe, Guadeloupe: SHG, n.
115, p. 3-59, 1998; SATINEAU, Maurice. Histoire de la Guadeloupe sous l'Ancien. Régi-
me (1635-1789). Paris: Payot, 1928.
74  –  LOUIS, Jessica Pierre. Les Libres de couleur face au préjugé: franchir la barrière à
la Martinique aux XVIIe-XVIIIe siècles. Tese (Doutorado em História) – Université des
Antilles et de la Guyane. Pointe-à-Pitre: UAG, 2015, p. 137.
75  –  LOUIS, Jessica Pierre. Op. cit., p. 137-138.
76 – DEBBASCH, Charles. Couleur et liberté: Le jeu de critère ethnique dans un ordre
juridique esclavagiste. Paris: Dalloz, v. 1, 1967, p. 22-27.

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As crianças realmente deveriam seguir a condição do ventre escravizado?
Instabilidades no princípio do partus sequitur ventrem
na construção da escravidão colonial

O caso ibérico

O sistema ibérico foi o locus perfeito para a proliferação do partus.


Primeiro porque, assim como no direito francês, as raízes jurídicas dos
direitos português e espanhol expressavam profundas afinidades com o
antigo direito dos romanos. Mais do que isso, Portugal e Espanha tinham
a seu favor um longo contato com a escravidão mercantil do mediterrâ-
neo, com a prática de formas de servidão de infiéis – muçulmanos, judeus
– e desenvolveram, muito antes que seus pares europeus, um modelo es-
cravista bem consolidado no Atlântico Sul.

É provável que a consolidação do partus nesses sistemas, portanto,


se deveu mais ao caráter precoce de contato dos ibéricos com as formas
típicas da escravidão que se desenvolveria nas Américas, do que propria-
mente com alguma especificidade própria da sua condição. Francisco
de Cárdenas, em estudo sobre as origens do direito espanhol de 1848,
diz que é provável que antes das primeiras consolidações espanholas, se
adotasse a transmissão via pai, e não materna. Ele atribuía o não uso
do partus à influência dos antigos reis visigodos, aderentes à linearidade
masculina77. Existem afirmações semelhantes na obra de Rousseeuw St.
Hilarie78. Francisco Martinez Mariana diz que os godos entendiam a regra
romana como absurda79. De qualquer forma, a mudança acabaria sendo
rápida. Já em Fuero Real, a lógica do partus está completamente presente
nas regras de definição de domínio de filhos de escravizados de diferentes
senhores (Lei IV, Título XI)80. Em Las Siete Partidas, a regra de trans-

77  –  CARDENAS, Francisco de. El Derecho moderno: revista de jurisprudencia y admi-


nistración. Madrid: Estab. tip. de D.R. Rodriguez de Rivera, 1848, p. 120.
78 – SAINT-HILAIRE, Eugène Rosseeuw. Histoire d'Espagne depuis l'invasion des
Goths jusqu'au commencement du xixme siècle. Paris: F. G. Levrault, 1839, p. 295.
79  –  MARINA, Francisco Martínez. Ensayo histórico-crítico sobre la legislación y prin-
cipales cuerpos legales de los reinos de León y Castilla, y especialmente sobre el código
de las Siete Partidas de D. Alonso el Sabio. 2. ed. Madrid: Imprenta de D. E. Aguado,
1834, p. 49.
80  –  Fuero de Alfonso X El Sabio. Leyes Históricas de España. Madrid: Boletín Oficial
del Estado, 2015.

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missão via mãe é mais do que um pressuposto lógico: o partus aparece


explicitamente positivado (Lei 1, Título XXI, Partida IV)81.

O pensamento jurídico e teológico dos ibéricos, como menciona-


do no caso francês, não teve dificuldades de aderir à lógica do partus.
Antonio de San José, em tratado teológico da segunda metade do século
XVIII, invoca o princípio diversas vezes para apresentar soluções sobre
casos típicos envolvendo servos e escravizados82. Jacob Magro justificava
o partus como um elemento próprio do Direito das Gentes, invocando
as tradicionais explicações dos justos títulos para referendar o uso da re-
gra romana83. Muitos juristas estrangeiros que defendiam a regra circu-
lavam na Península, em traduções para o espanhol e o português, tais
como Thomas Mackenzie84, Ferdinand Mackeldey85 e Heineccius86. Da
mesma forma, os teólogos: são inúmeros os pensadores com circulação
em Portugal e Espanha, que referendavam o partus do ponto de vista
religioso87.

A alta adesão do sistema jurídico dos ibéricos ao partus, entretanto,


não impediu o aparecimento de instabilidades que acabariam por, em di-
versos momentos, fragilizar o princípio. Como se viu no alvará pombali-
no que abriu esse artigo, até momento bem avançado do empreendimen-

81  –  LOPEZ, Gregório (Org.). Las Siete Partidas. Madrid: s./n., 1555.
82  –  SAN JOSÉ, Antonio de. Compendium Salmanticense in duos tomos distributum
universae theologiae moralis quaestiones. Editio secunda. Romae: apud Antonium Ful-
gonium, 1787, p. 261.
83 – MAGRO, Jacobo et al. Elucidationes ad quatuor libros institutionum imperatoris
Justiniani: opportunè locupletatae legibus decisionibusque juris hispani. Reimpres. Ma-
triti: apud viduam Joachimi Ibarra, 1792, p. 90.
84 – MACKENZIE, Thomas et al. Estudios de derecho romano comparado en algunos
puntos con el francés: el inglés y el escocés. Madrid: F. Gongora, 1876, p. 99.
85 – MACKELDEY, Ferdinand. Elementos del derecho romano: que contienen la teoría
de la instituta precedida de una introducción al estudio del mismo derecho. Madrid: So-
ciedad Literaria y Tipográfica, 1845, p. 150.
86  –  HEINECIUS, Jojann Gottlieb. Elementos del derecho natural y de gentes. Madrid,
1837, p. 247.
87  –  Para dar dois exemplos: ROSELLI, Salvatoris Mariae Roselli. Fratis Saluatoris
Mariae Roselli Summa philosophica ad mentem angelici doctoris S. Thomae Aquinati.
Matriti: Typis Benedicti Cano, 1788, p. 310; VON ZALLINGER, Jacob Anton. Opera
Omnia Romae: Collegio Urbano, 1832.

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As crianças realmente deveriam seguir a condição do ventre escravizado?
Instabilidades no princípio do partus sequitur ventrem
na construção da escravidão colonial

to escravista português, ainda havia dúvidas e tensões sobre os limites


do partus mesmo nos ambientes em que a sua racionalidade tinha maior
aceitação.

Em uma muito interessante petição do século XVII comentada pela


historiadora Karen Graubart, quatro moradores “pardos” de Lima, apri-
sionados e postos em escravidão em um contexto de alguma revolta colo-
nial, exigiram a restauração da sua liberdade por serem filhos de mulheres
africanas com homens espanhóis. O fato de terem nascido no Peru, e se-
rem súditos da monarquia espanhola desde sempre, parecia central na sua
argumentação. Além disso, seu pedido requeria o reconhecimento da con-
dição de liberdade para todos aqueles que tivessem na sua mesma condi-
ção – pardos e cuarterones88. A famosa petição do príncipe Lourenço ao
Papa – africano traficado ao Brasil, que acabaria por se tornar um religio-
so em Lisboa – também atacava a possibilidade de uma escravidão per-
pétua para cristãos89. Linha parecida com aquela desenvolvida no famoso
texto do Padre Manuel Ribeiro da Rocha, em que o vínculo de escravidão
era precário, ligado à noção de um penhor pelo resgate, e limitado quanto
aos seus efeitos de transmissão geracional90.

Argumentos dessa natureza mostram como no começo do processo


do escravismo americano, mesmo em ambientes de consolidação precoce
do partus, existiam espaços de tensões sobre a sua modelagem e exten-
são. Em geral, nos ambientes de maior força do princípio, os espaços de
disputa ficaram restringidos aos casos de filhos mestiços que, embora fos-
sem descendentes de mulher escravizada, reivindicavam condições jurí-
dicas próprias dos seus pais – em geral, homens livres europeus. Para dar
apenas mais um exemplo, são várias as regras das Ordenações – escritas

88  –  GRAUBART, Karen. Como esclavos y no vasallos: reclamaciones interétnicas y


nolibertad en el Perú colonial. Población & Sociedad, Argentina: UNLPampa, v. 27, n.
2, p. 30-53, 2020.
89 – GRAY, Richard. The papacy and the Atlantic slave trade: Lourenco da Silva, the
capuchins and the decisions of the Holy Office. Past and Present. Oxford: OUP, v. 115,
n. 1, p. 52-68, 1987.
90  –  ROCHA, Manuel Ribeiro Rocha. Etíope resgatado, empenhado, sustentado, corri-
gido, instruído e libertado. São Paulo: UNESP, 2017.

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no começo da modernidade – em que se reconhecem direitos aos filhos


de escravizadas com homens livres, a depender das condições em que a
união se dava91.

Nenhum caso é mais simbólico desse processo do que o dos chama-


dos “filhos da terra” de São Tomé e Príncipe. A historiografia do Atlântico
já registrou o interessante papel das ilhas africanas de dominação portu-
guesas que serviram, a um só tempo, de ensaio da produção escravista da
cana-de-açúcar que se realizaria no Brasil em pouco tempo, e de entre-
posto estratégico para o fortalecimento do tráfico transatlântico92. A in-
tensificação desses processos gerou uma onda de instabilidades e revoltas
em São Tomé e Príncipe no começo do século XVI93. Uma geração de
descendentes dos primeiros colonizadores portugueses com escravizadas
negras que havia ascendido social e politicamente acabou ganhando es-
paço no contexto desses primeiros conflitos atlânticos, como elemento de
sustentação do poder português na ilha94.

Em janeiro de 1515, Dom Manuel, rei de Portugal, resolveu declarar


livres um grupo de mulheres africanas pioneiras da colonização e seus
filhos95. A redação da Carta de Alforria – como foi batizada a disposição
real – expressa a vontade monárquica de que uma geração de africanas e
seus filhos fossem entendidos como livres e forros. Os dois termos apa-
recem conjuntamente nesse momento de pouco aperfeiçoamento das ca-
tegorias de um escravismo ainda nascente. A justificativa da ação real se
dava porque posto que “havia dúvidas se estes escravos e os filhos que es-
91 – LARA, Silvia Hunold. Legislação sobre escravos africanos na América portuguesa.
In: Nuevas Aportaciones a la Historia Jurídica de Iberoamérica. GALLEGO, José An-
drés (Org.). Madrid: Fundación Histórica Tavera, 1st. ed. 2000, p. 60.
92  –  ALENCASTRO, Luis Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlân-
tico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
93  –  CALDEIRA, Arlindo Manuel. A guerra do mato. Resistência à escravatura e repres-
são dos fugitivos na ilha de São Tomé (séculos XVI-XVIII). Povos e Culturas, Portugal:
UCP, n. 20, p. 125-144, 2017.
94  –  HLIBOWICKA-WĘGLARZ, Barbara. A origem dos crioulos de base lexical portu-
guesa no Golfo da Guiné. Romanica Cracoviensia, Cracóvia: UKP, v. 11, n. 1, p. 177-185,
p. 178, 2011.
95 – BRASIO, António. Monumenta Missionaria Africana. Lisboa: Agência Geral do
Ultramar, v. I, 1952, p. 331.

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Instabilidades no princípio do partus sequitur ventrem
na construção da escravidão colonial

tes degredados” e as pessoas “que pelo dito regimento” foram “dadas” se-
riam “nossos cativos ou forros”. Para evitar aprisionamentos injustos – o
documento cita um caso –, o Rei declarava de uma vez que todos estavam
forros e livres. Embora a historiografia tenha entendido que a posição do
Rei tenha sido mesmo a de conceder alforria a essa geração96, a redação
do documento e o contexto da ilha fazem ser mais provável a interpreta-
ção de que a vontade real era mais a de garantir uma liberdade ameaçada
pelo fortalecimento do tráfico de escravizados, do que propriamente uma
concessão de liberdade. Os “filhos da terra”, como era chamada essa pri-
meira geração, provavelmente haviam sido sempre tratados como livres.

No começo da colonização da ilha, algumas africanas foram envia-


das para viverem com os primeiros colonos portugueses97. Essa geração,
embora descendente de mulheres escravizadas, foi entendida como li-
vre por ter sido inserida como parte da comunidade portuguesa na ilha,
posta na tradição cristã, e criada como filhos legítimos dos portugueses.
Documentos mostram que, após um tempo, essa liberdade passou a ser
ameaçada, provavelmente por negociantes de escravos98. O partus jamais
teria sido aplicado para essa geração e, nesses termos, a ordem real se vol-
tava mais a consolidar e garantir a liberdade posta em discussão pela prá-
tica do acirramento das tensões da ilha, do que propriamente declará-la.

Embora o caso de São Tomé seja localizado nos primeiros passos


do escravismo português nas Américas, precedentes como esse continua-
ram a aparecer nos diversos espaços da colonização, e da futura América
independente. Independentemente do nível de aceitação e consolidação,

96 – FEIO, Joana Areosa. De étnicos a “étnicos”: uma abordagem aos “Angolares” de


São Tomé e Príncipe. Tese (Dissertação de Mestrado) – Instituto Superior de Ciências do
Trabalho e Empresa. Lisboa, 2008, p. 16.
97  –  CALDEIRA, Arlindo Manuel. Mestiçagem, estratégias de casamento e proprieda-
de feminina no arquipélago de São Tomé e Príncipe nos séculos XVI, XVII e XVIII,
ARQUIPÉLAGO-R. da U. dos Açores, Ponta Delgada: UAc, História, v. 11-12, 2ª série,
p. 49, 2007-2008.
98  –  MATOS, Raimundo José da Cunha. Chorographia histórica das ilhas de S. Thomé
e Principe, Anno Bom e Fernando Po. Lisboa: Imprensa Nacional, 3ª. ed., 1905, p. 3.

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jamais foi possível eliminar completamente algum nível de instabilidade


e incerteza sobre o partus99.

Conclusões
Nas diversas tradições jurídicas que colonizaram a América, pare-
ce ter sido comum usar o partus como forma de solução da questão da
ascendência africana. Na construção da moderna máquina escravista no
continente, a regra ajudou a manter e restringir o número de pessoas li-
vres de cor , aumentar o poder dos proprietários de escravizados, e a or-
ganizar um sistema de controle racializado da força de trabalho, baseado
na ligação categoria entre africanos e seus descendentes – concentrados
na categoria do negro – e a escravidão. O princípio do partus foi defini-
tivamente uma solução adequada para assegurar a escravidão altamente
desenvolvida e produtiva que acabaria por se viabilizar, em tempos e es-
paços diferentes, em diversas partes do continente.

A adaptação do partus às diferentes realidades legais das tradições


europeias que ocupavam o novo continente, entretanto, não foi fácil.

Chamadas neste texto de dificuldades performativas, tais problemas


de integração do partus às lógicas jurídicas predominantes no legado eu-
ropeu surgiram a partir do aparecimento de duas formas específicas de
conflituosidade, separadas por um grau de complexidade. A mais simples
destas dificuldades foi a que favoreceu a linearidade paterna e não ma-
terna. Com base na regularidade do casamento entre escravos, isto levou
a problemas, especialmente no que diz respeito às gerações de mestiços.
A segunda dificuldade envolvia a negação da possibilidade de separação
em uma comunidade de iguais. Em outras palavras, impedia a conver-
são completa dos cristãos a uma condição de escravidão total e perpé-
tua que os reduziria à categoria jurídica de mercadoria (chattel). Ambas
as dificuldades surgiram e deixaram sua marca quando o sistema legal
99  –  Para dar um único exemplo, é possível citar os vários casos mencionados por Per-
digão Malheiro, em que se destacava a liberdade de filhos mesmo em condição de mãe
escravizada. PERDIGÃO MALHEIRO, Agostinho Marques. A escravidão no Brasil. Rio
de Janeiro: Typ. Nacional, v. 1, 1863, p. 43.

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As crianças realmente deveriam seguir a condição do ventre escravizado?
Instabilidades no princípio do partus sequitur ventrem
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amadureceu no Novo Mundo. A primeira dificuldade pareceu ser mais


comum e de maior importância durante o período colonial. A segunda
dificuldade serviria mais tarde como a base dos discursos emancipadores
que levariam à montagem dos projetos de liberdade do ventre, no período
revolucionário.

Os ibéricos vieram mais bem preparados para construir seus siste-


mas de escravidão na América. Entretanto, não demorou muito para que
os franceses e britânicos percebessem os ganhos a serem obtidos com o
regime de seus pares imperiais. Uma onda de legislação, mudanças nas
interpretações e operações legais impôs o partus onde ele não existia, ou
não era bem aceito. Tais exercícios de imposição da regra foram usados
quando surgiram dúvidas e seus limites foram reforçados quando o sis-
tema vacilou. O que os ibéricos já haviam feito em suas antigas conso-
lidações legais antes de sua chegada ao Novo Mundo foi imitado pelos
franceses e britânicos, seja na promulgação de grandes regulamentações,
como o Código Noir, seja no desenvolvimento de leis locais que legaliza-
vam o partus, como no caso das colônias britânicas. Instituições relacio-
nadas foram mobilizadas e elementos aparentemente aleatórios, como as
restrições aos casamentos inter-raciais, acabaram ajudando o regime de
nascimento legal. Até mesmo os ibéricos fortaleceram o partus em suas
tradições jurídicas ao longo do século XVIII. Essa onda de consolidações
desafiou as dificuldades performáticas do partus, e mobilizou toda a for-
ça da lei para impor a escravidão perpétua, transmitida matrilinearmente,
através de gerações de africanos. Em geral, esse processo funcionou, foi
bem-sucedido, e o partus se tornou a regra de sucessão do escravismo no
continente.

Este processo, entretanto, não foi linear na complexidade de diver-


sidade do espaço americano. O princípio do partus foi consolidado no
século XIII pelos ibéricos e, no final do século XVII, pelos franceses.
Em algumas colônias britânicas no norte do continente, esta consolida-
ção simplesmente não ocorreu ou não pôde ocorrer explicitamente, até
poucas décadas antes do período revolucionário. Haveria um preço a pa-
gar por este atraso. Uma geração de africanos e seus descendentes, dos

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quais Massachusetts foi um exemplo, acabaria percebendo as fraquezas e


incertezas do partus e exploraria suas brechas. Pedidos de liberdade, pe-
tições às autoridades públicas e articulações políticas criaram o ambiente
que precederia os movimentos dos anos 1760 e 1770 no espaço que se
tornaria os Estados Unidos da América. As instabilidades do partus aca-
bariam sendo exploradas para construir um discurso de liberdade para os
descendentes e criar um regime de transição que exigiria uma escravidão
menos rígida que a escravidão perpétua por nascimento. Era a era das leis
do ventre livre, o início do fim da longa história da escravidão negra nas
Américas.

Texto apresentado em abril de 2022. Aprovado para publicação em


junho de 2022.

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“Um tributo à memória de meu pai”: as interpretações de Emílio Joaquim da
Silva Maia sobre a história do Brasil a fim de recuperar a memória de seu pai
Joaquim José da Silva Maia no século XIX
151

“UM TRIBUTO À MEMÓRIA DE MEU PAI”: AS


INTERPRETAÇÕES DE EMÍLIO JOAQUIM DA SILVA MAIA
SOBRE A HISTÓRIA DO BRASIL A FIM DE RECUPERAR
A MEMÓRIA DE SEU PAI JOAQUIM JOSÉ DA SILVA MAIA
NO SÉCULO XIX
“A TRIBUTE TO MY FATHER’S MEMORY”: EMILIO JOAQUIM
DA SILVA MAIA’S INTERPRETATIONS OF BRAZILIAN
HISTORY AND THE REVIVAL OF HIS FATHER´S MEMORY,
JOAQUIM JOSÉ DA SILVA MAIA, IN THE 19TH CENTURY
Walquiria de Rezende Tofanelli Alves1

Resumo: Abstract:
A proposta neste artigo é analisar as interpreta- The article’s aim is to analyse the interpretations
ções de Emílio Joaquim da Silva Maia (1808- of Emilio Joaquim da Silva Maia (1808-
1859), médico, naturalista e um dos sócios 1859) that marked the history of Brazil and
fundadores do Instituto Histórico e Geográfico Portugal. He was a doctor and naturalist, and
Brasileiro, sobre os principais acontecimentos one of the founders of Brazilian Historical and
que marcaram a história do Brasil e de Portugal. Geographical Institute. He never concealed his
Sem ocultar suas intenções quanto ao pagamen- intention of keeping his father´s memory alive.
to de um tributo à memória de seu pai Joaquim In the 1840s, he not only edited and published
José da Silva Maia (1776-1831), Emílio Maia his father´s posthumous writings, but also
não só editou e publicou os escritos póstumos endeavoured to write his own version about
dele na década de 1840 como se empenhou em the events that led to Brazil’s Independence.
registrar sua própria versão dos acontecimentos In the 1850s, Emilio Maia published a set of
relativos à Independência do Brasil. Na década writings entitled Historical Studies on Portugal
de 1850, Emílio Maia produziu um conjunto de and Brazil in order to revive his father’s legacy,
escritos denominado Estudos históricos sobre which had been forgotten and supplanted
Portugal e Brasil, com o objetivo de recuperar o by memory and the historical writings that
legado deixado pelo pai que havia sido esqueci- prevailed in Brazil following the country´s
do e suplantado pela memória e pela escrita da separation from Portugal. We examine the
história que se cristalizou sobre a nação brasi- actions and trajectories of father and son in
leira subsequente à separação. Neste artigo, pre- light of the dynamics between memory and
tendemos articular as atuações e as trajetórias oblivion and their political unfolding.
do pai e do filho, considerando a dinâmica entre
a lembrança e o esquecimento e seus desdobra-
mentos políticos.
Palavras-chave: IHGB; Política; Memória; Keywords: IHGB; politics; memory; historiography.
Historiografia.

1 – Orcid http://orcid.org/0000-0001-8017-5844. Universidade de São Paulo (USP).


Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História Social – Bolsista CAPES.
E-mail: walquiriatofanelli@gmail.com

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):151-180, jan./abr. 2022. 151


Walquiria de Rezende Tofanelli Alves

Nosso objetivo neste artigo é analisar as interpretações de Emílio


Joaquim da Silva Maia (1808-1859) sobre a história de Portugal e do
Brasil, enfatizando suas considerações sobre a década de 1820. Ao for-
necer seus testemunhos e interpretações, o médico e sócio fundador do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), por mais de uma vez,
evidenciou seu interesse em revitalizar a memória e as atuações de seu
pai, o negociante Joaquim José da Silva Maia (1776-1831).

Obstinado em seu propósito, Emílio Maia trouxe a público duas me-


mórias históricas póstumas escritas por seu progenitor. Na primeira delas,
publicada em 1841, foi tematizada a Revolução do Porto de 1820; o rei-
nado de D. Miguel em Portugal e a situação drástica enfrentada pelos li-
berais exilados do regime miguelista. Dedicando a obra ao IHGB, Emílio
Maia justificou aos leitores que foi “levado pela ideia de pagar um tributo
à memória de meu Pai, publicando seu escrito [...] porque nisso mesmo
quis dar uma prova de todo o meu respeito e amor filial2”.

Três anos mais tarde, em 1844, Emílio Maia publicou outra memória
histórica escrita pelo pai, dessa vez, voltada à América Portuguesa. Nessa
memória, o autor fez um balanço sobre os erros e acertos ao longo da
História Portuguesa, destacando a época do “descobrimento” do Brasil;
das Guerras de Restauração; dos Ministérios do Marquês de Pombal e
de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, apontando os prejuízos causados pelo
absolutismo que, segundo ele, foram sendo suprimidos pela Revolução
do Porto de 18203.

Além de editar tais obras, Emílio Maia produziu suas próprias refle-
xões sobre a história. Em 1852, apresentou em sessões do IHGB “perante
Sua Majestade o Imperador” D. Pedro II um trabalho intitulado História
2  –  MAIA, Joaquim José da Silva. Memórias históricas, políticas e filosóficas da revo-
lução do Porto de maio de 1828 e dos emigrados portugueses pela Espanha, Inglaterra,
França e Bélgica. Rio de Janeiro: Tipografia Laemmert, 1841.
3  –  Ver: MAIA, Joaquim José da Silva. Memórias históricas e filosóficas sobre o Bra-
sil. In: Revista Minerva Brasiliense, 1844, fls. 381-389 e ALVES, Walquiria de Rezende
Tofanelli. Política e historiografia na Independência: a trajetória de Joaquim José da Sil-
va Maia entre Brasil e Portugal, 1776-1831. In: XXV Encontro Estadual de História da
ANPUH – SP, 2020, p. 1-17.

152 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):151-180, jan./abr. 2022.


“Um tributo à memória de meu pai”: as interpretações de Emílio Joaquim da
Silva Maia sobre a história do Brasil a fim de recuperar a memória de seu pai
Joaquim José da Silva Maia no século XIX

da Revolução efetuada na Bahia no dia 10 de fevereiro de 18214. Pouco


depois, por volta de 1855, produziu os Estudos históricos sobre Portugal
e Brasil5 que, na verdade, figurou como versão mais completa do traba-
lho anteriormente apresentado. Seu objetivo era o de retomar as “causas
provocadas da agitação baiana, na qual meu Pai tomou parte mui ativa6”.

Todo o esforço empreendido por Emílio Maia para escrever a his-


tória se entrelaçou ao propósito matricial de alçar o pai a um lugar de
reconhecimento no Segundo Reinado. Assim, desenvolveu interpretações
que divergiram das narrativas “oficiais” nas décadas de 1840 e 1850,
contrariando interesses políticos vigentes. Por esse motivo, além de ter
fracassado quanto a restabelecer a memória de seu progenitor, seus estu-
dos históricos foram eclipsados pela historiografia. Lúcia Maria Paschoal
Guimarães observou essa dinâmica de poder dentro do próprio instituto
no qual Emílio Maia participou. Para a autora, o projeto político dos inte-
lectuais no IHGB, no momento de sua fundação, “só seria viável graças
a uma militância intelectual homogênea, marcada pela fidelidade ao re-
gime”. Ademais, ali se operava um “Tribunal da Posteridade” capaz de
julgar – condenando ou absolvendo – personagens e narrativas ao longo
da história7.

Lúcia Garcia, notando também essa dinâmica de poder entre lem-


brança e esquecimento, mencionou que Emílio Maia ao se esforçar
para recuperar “os feitos de D. Affonso d’Albuquerque, a literatura de
Francisco de Sá e Miranda ou a poesia camoniana” contrariou os objeti-
vos da maior parte dos letrados que procuravam “exaltar as características
tropicais brasileiras, tornar o elemento indígena um símbolo nacional, di-

4  –  MAIA, Emílio Joaquim da Silva. História da Revolução efetuada na Bahia no 10 de


fevereiro de 1821. 1852. Manuscrito. Arquivo IHGB, Lata 26, doc.11
5  –  Lúcia Garcia identificou que o primeiro estudo dessa série produzida por Emílio
Maia foi escrito em 1855. In: GARCIA, Lúcia. Emílio Joaquim da Silva Maia. Um inte-
lectual no Império do Brasil. R.IHGB, Rio de Janeiro, a.168(437), p. 107, 2007.
6  –  MAIA, Emílio Joaquim da Silva. Estudo primeiro. Arquivo do IHGB, DL. 345.1, fl.
14.
7  –  GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal. O “Tribunal da Posteridade”. In: PRADO,
Maria Emília. O Estado como vocação: ideias e práticas políticas no Brasil. Rio de Janei-
ro. Editora Acess, 1999, p. 35.

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Walquiria de Rezende Tofanelli Alves

fundir a poesia de Gonçalves Dias, a literatura de José de Alencar”, entre


outros. Para a autora, ainda que Emílio Maia tivesse galgado lugares de
destaque em instituições renomadas, “aos olhos da elite intelectual, ele se
desviava desse esforço de criação de uma imagem oficial para o Brasil8”.

O próprio Emílio Maia, aliás, tinha consciência de que a narrativa


que oferecia ao público continha elementos e temas ainda pouco aborda-
dos pelos historiadores de sua época. Chegou a prevenir seus leitores de
que “alguns sucessos do Brasil são por nós pela primeira vez publicados;
outros, por nós melhor esclarecidos, são mais razoavelmente interpre-
tados do que aparecem nas publicações existentes”, porque muitas pro-
duções até ali realizadas apresentavam-se aquém dos acontecimentos e
personagens que, para Emílio Maia, careciam de maior visibilidade9.

Todos os escritos de Emílio Maia que tematizaram a história do


Brasil e de Portugal, foram projetados para cumprir seu propósito em
relação ao pai. Assim, não é possível compreender seus argumentos polí-
ticos e suas estratégias discursivas, sem antes considerar aspectos da vida
e das atuações de seu progenitor. Nossa hipótese é a de que essas obras
de Emílio Maia foram condenadas no “Tribunal da Posteridade”, não só
porque aludiram a eventos e interpretações que não interessavam aos seus
contemporâneos, colidindo, muitas vezes, com a política para a “história
oficial”, mas, além disso, o médico fez questão de associar seus objetivos
à necessidade pessoal de pagar um tributo à memória de seu progenitor
que, há muito, havia passado ao esquecimento por ter sido vencido nos
confrontos políticos da década de 1820.

Joaquim José da Silva Maia e seus projetos políticos


Nascido no Porto, em Portugal, em 1776, o pai de Emílio Maia,
Joaquim Maia transferiu-se para o Recôncavo Baiano, na Vila de
Cachoeira, em 1796, onde iniciou carreira no comércio. Segundo Maria
Beatriz Nizza da Silva, ele se estabeleceu na capital Salvador por volta
8 – GARCIA, Lúcia. Op. cit, 2007, p. 114.
9  –  MAIA, Emílio Joaquim da Silva. Estudo primeiro. Arquivo do IHGB, DL. 345.1,
fls.14-15.

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“Um tributo à memória de meu pai”: as interpretações de Emílio Joaquim da
Silva Maia sobre a história do Brasil a fim de recuperar a memória de seu pai
Joaquim José da Silva Maia no século XIX

de 1802, onde conectou-se a importantes agentes da política local, tor-


nando-se também homem relevante na capitania. Redator do Semanário
Cívico, um dos principais periódicos que circulou entre 1821 a 1823, o
comerciante alcançou ainda o cargo de procurador do Senado da Câmara
e o de capitão de ordenança10. Casou-se com D. Joaquina Rosa da Costa
e teve com ela um menino chamado Emílio Maia. Consta que escolheu
esse nome para o filho porque “versado em literatura francesa, com es-
pecialidade na leitura dos grandes enciclopedistas, outrora de grande
voga” era também um “apaixonado em extremo dos escritos do eloquente
Rousseau” autor de Emílio ou Da Educação11.

Joaquim Maia foi representante dos “praístas” em Salvador, gru-


po composto por comerciantes que mantinham estreitas ligações com
Portugal12. Nas Cartas Baianas, aliás, há diversas referências a ele como
integrante desse grupo. À semelhança de Maia, outros apoiaram Inácio
Luís Madeira de Melo como governador das armas em detrimento de
Manoel Pedro de Freitas Guimarães durante a guerra civil na Bahia, ade-
rindo na luta à unidade do Império Português e à fidelidade às Cortes de
Lisboa13.

Segundo Bento da França, estavam ligados a Silva Maia pelos mes-


mos propósitos políticos os participantes de um tal “clube da Água Branca”
(sic)14, aludindo a um “clube” situado na região da “Água Brusca” onde
funcionou a loja maçônica Humanidade da qual Joaquim Maia fazia parte
como venerável15. Nas Cartas Baianas, Bento da França responsabilizou
a “classe mercantil” e Maia pelas agitações vividas em Salvador. Acusou

10  –  SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Semanário Cívico Bahia, 1821-1823. Bahia: EDU-
FBA, 2008, p.18.
11 – MAIA, Emílio Joaquim da Silva. Estudo décimo sétimo. Arquivo do IHGB,
DL345.17, f. 4.
12 – Ibid., p. 17.
13 – Cartas Baianas.1821-1824. Subsídios para o estudo dos problemas da opção na
Independência brasileira. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 2008, p. 115.
14 – Ibid., p. 168.
15  –  MAGALHÃES, Pablo Antonio Iglesias. A Cabala Maçônica do Brasil: o primeiro
grande oriente brasileiro (BAHIA E PERNAMBUCO, 1802-1820). In: Revista do Institu-
to Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, Recife, n° 70, p. 108-109, 2017.

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Walquiria de Rezende Tofanelli Alves

o comerciante, em julho de 1822, de atormentar os “brasileiros” que “não


querem mais que a união com o Rio” de Janeiro e com a regência de D.
Pedro16.

Exercendo a profissão de negociante, Joaquim Maia comercializou


diversos produtos e insumos para o abastecimento de Salvador, tais como:
carne-seca, farinha de trigo, couro, prata e vinho. Inserido no comércio
de cabotagem e, portanto, atento à dinâmica do mercado interno que co-
nectava as diferentes regiões, percorreu com regularidade os portos de
Santos, Rio Grande de S. Pedro do Sul, Buenos Aires e Montevidéu, sem
deixar de se lançar aos Estados Unidos, à Europa e à África17.

Além do comércio de gêneros, Maia participou do tráfico de escra-


vos. De maneira eloquente, sustentou posição favorável a esse comércio,
vaticinando sobre a necessidade do Brasil em preservá-lo como condição
para o progresso material. Nesse sentido, criticou a posição britânica no
tocante às pressões para a abolição, apontando também os efeitos noci-
vos do Tratado de 1810 que estabeleceu as mesmas taxas alfandegárias a
portugueses e ingleses nos principais portos do Reino do Brasil. Também
se mostrou desafeto ao Tratado de Viena de 1815 que proibiu o tráfico de
africanos ao norte da Equinocial.

Não obstante considerar erro diplomático a tratativa de 1810 e res-


ponsabilizar D. Rodrigo de Sousa Coutinho por isso, Joaquim Maia di-
vulgou a ideia de que a nação portuguesa havia sido colonizada pelos
britânicos via comércio18. Criticou a afluência de produtos estrangeiros
nos principais portos abertos então localizados em Recife, Belém, Rio de
16 – Cartas Baianas. Op. cit., 2008, p. 146.
17  –  ALVES, Walquiria de Rezende Tofanelli. Expectativas para a «nação portuguesa»
no contexto da independência: o projeto de Joaquim José da Silva Maia (1821-1823).
(231p.) Dissertação (Mestrado). Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filoso-
fia e Ciências Humanas, Campinas(SP), 2018, p. 72.
18  –  Joaquim Maia apontou as atuações do ministério de Pombal como o exemplo a ser
seguido no trato com os britânicos. A respeito das atuações de D. Rodrigo de Sousa Cou-
tinho disse que ninguém deveria se iludir com palavras: “como aconteceu com o Ministro
Coutinho” que no Tratado de 1810 se deixou ludibriar “com a palavra reciprocidade [e]
nos arruinou”, posto admitir uma concorrência injusta entre produtos ingleses e portugue-
ses nos portos da América Portuguesa. Imparcial, 18 de novembro de 1826, n° 39, f. 3.

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“Um tributo à memória de meu pai”: as interpretações de Emílio Joaquim da
Silva Maia sobre a história do Brasil a fim de recuperar a memória de seu pai
Joaquim José da Silva Maia no século XIX

Janeiro, Salvador e São Luís, apontando para a concorrência desleal que


grassou entre portugueses e ingleses por esse mercado19.

Empenhado em reverter a situação econômica desfavorável, Maia


engajou-se para mudar a forma de governo adotada pelo Estado depois
que as notícias da Revolução do Porto de 1820 chegaram ao Reino do
Brasil. Em sua visão a revolução seria capaz de regenerar a nação por-
tuguesa, pois ao contrário do “despotismo [que] faz escravos” levando
os súditos a apoiarem os governantes por “medo do castigo”, o governo
“sábio e liberal faz cidadãos que defendem seus direitos e propriedades
[...] porque os seus interesses estão identificados com o interesse de seus
chefes20”.

Com essas expectativas, Joaquim Maia participou ativamente do


movimento do dia 10 de fevereiro de 1821 na Bahia, conduzindo a elei-
ção à Junta Provisória de governo. Notamos que o projeto dele em 1821
era também o da maioria dos liberais nos Reinos de Portugal e do Brasil,
o que explica o sucesso de seu periódico naquele momento. Tal sucesso o
levou a solicitar às Cortes de Lisboa “algum distintivo, qualquer que seja”
para transmitir como herança aos filhos21.

Imbricadas as posições políticas aos negócios, Joaquim Maia defen-


deu o protecionismo para o mercado luso-brasileiro. Nesse sentido, fez
coro com a maior parte dos deputados das Cortes de Lisboa, fossem eles
europeus ou americanos. Márcia Berbel, ao discutir a retórica da “reco-
lonização”, desmistificou a ideia de que as Cortes de Lisboa tivessem
planos de transformar o Reino do Brasil em colônia. Ao analisar o debate
em torno da aprovação do Relatório da Comissão de Comércio no início
de 1822, a autora mostrou que a maioria dos parlamentares não propugna-
19  –  Para maior compreensão sobre a política que envolveu a abertura dos Portos, em
1808, ver: MATTOS, Renato de. Política e negócios em São Paulo: da abertura dos portos
à Independência (1808-1822). (311p). Tese (Doutorado). Universidade de São Paulo. Fa-
culdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, São Paulo, 2015, p. 135-136.
20 – Semanário Cívico, 15 de março de 1821, n° 3, f. 2.
21  –  “Pedido de mercê de Joaquim José da Silva Maia”. In: Arquivo Nacional da Torre
do Tombo. Ministério do Reino, mç. 780, proc. 23. Código de referência: PT/TT/MR/
EXP/051/0137/00023.

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Walquiria de Rezende Tofanelli Alves

vam “por reestabelecer a exclusividade portuguesa nos portos do Brasil,


mas, por meio de um escalonamento de taxas, de tornar mais vantajosa a
compra dos produtos brasileiros nos portos portugueses” e vice-versa22.
Tal proposta se diferencia de um suposto projeto para o fechamento dos
portos e revitalização do exclusivismo comercial. Tanto que nas votações
para a aprovação desse mesmo Relatório, a adesão a ele foi ampla, pois a
maioria dos parlamentares viu no protecionismo a contemplação dos seus
imediatos interesses23.

Joaquim Maia, como a maior parte dos grupos ligados à burgue-


sia ascendente no início de 1821, entusiasmou-se com a ampliação da
participação política de determinados setores sociais. Diversos grupos de
médios e pequenos proprietários então integrados ao comércio e à lavoura
puderam eleger representantes e rogar para que seus interesses particula-
res fossem considerados na esfera pública24. Soma-se a essa participação,
a importante instituição da imprensa na América Portuguesa em 1808 e o
fim da censura prévia em 1821 que ajudaram a promover o ambiente pro-
lífico de divulgação de ideias para além do restrito círculo de letrados25.

Para Lucia Bastos Pereira das Neves, as mudanças relativas à ins-


tituição da imprensa faziam parte das transformações liberais à época.

22  –  BERBEL, Márcia. A retórica da recolonização. In: JANCSÓ, Istvan (Org.). Inde-
pendência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec, 2005, p. 806.
23 – Ibid., p. 807.
24  –  Conforme observou Cecília de Salles Oliveira, “...a deflagração dos movimentos
liberais foi simultânea [no Império Português]. Revela igualmente que as transformações
nas relações de mercado processavam-se de forma concomitante tanto no Reino do Bra-
sil quanto no Reino de Portugal e que havia uma identidade de desígnios entre liberais
portugueses e liberais fluminenses. Apesar dos contraditórios interesses que defendiam,
esses homens questionavam as práticas exercidas pelos grupos que controlavam, naquele
momento, a administração pública e apresentavam-se na qualidade de portadores de um
projeto capaz de ‘regenerar’ a monarquia por intermédio de uma nova legislação que
traduzisse as mudanças verificadas no interior da sociedade e eliminasse os entraves à
mercantilização da produção, da terra e da força de trabalho”. In: OLIVEIRA, Cecília
Helena Lorenzini de Salles. Astúcia liberal. Relações de mercado e projetos políticos no
Rio de Janeiro (1820-1824). São Paulo: Editora EDUSF, 1999, p. 102-103.
25  –  MOREL, Marco. Os primeiros passos da palavra impressa. In: MARTINS, Ana
Luiza; LUCA, Tânia Regina de (Org.). História da Imprensa no Brasil. 1ª edição. São
Paulo. Contexto, 2008, p. 25.

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“Um tributo à memória de meu pai”: as interpretações de Emílio Joaquim da
Silva Maia sobre a história do Brasil a fim de recuperar a memória de seu pai
Joaquim José da Silva Maia no século XIX

Particularmente na Bahia, os periódicos sinalizavam o alinhamento da


província às Cortes de Lisboa, interessados também nas ligações comer-
ciais que mantinham com o Reino europeu. Segundo a autora, quando D.
João VI anulou a vigência da Constituição Gaditana e deixou o seu filho
D. Pedro à frente da Regência no Rio de Janeiro, em 22 de abril de 1821,
muitos grupos na Bahia passaram a desconfiar de suas intenções. Para
esses grupos, D. João havia transformado o Rio de Janeiro em um centro
político paralelo à capital em Lisboa e às Cortes Constituintes e, por esse
motivo, o retorno de D. Pedro à Europa tornou-se alternativa para desar-
ticular aquele centro de poder26.

Apesar do projeto de Joaquim Maia ser o de muitos em 1821, seu


periódico foi perdendo adeptos quando a proposta de separação tornou
tangível a realidade da nação brasileira27. Derrotado por defender a uni-
dade dos Reinos de Portugal e Brasil, Joaquim Maia se retirou da Bahia
para o Maranhão junto da esquadra portuguesa e de sua família depois
que a guerra civil cessou, em 2 de julho de 1823, tornando o grupo de
Freitas Guimarães vitorioso e ligando a Bahia ao centro de poder no Rio
de Janeiro.

Após a estadia de Joaquim Maia no Maranhão de julho a novembro


de 1823, ele e a família se retiraram para a cidade do Porto, em Portugal,
onde chegaram em 1° de janeiro de 1824. Em 1830, o negociante reme-
morou o período vivenciado em 1823, dizendo que naquele momento,
“conhecemos nossa ilusão [de lutar contra a separação]; [e] cooperamos
para acelerar a união [desta] província às outras do Brasil”. Disse que ali
tornou-se “Cidadão Brasileiro, quebrando o laço do pacto social que an-

26 – NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das. Regeneração política no Brasil: os movi-
mentos de 1821/1822 na Bahia e os primórdios da edificação do Império do Brasil. In: XXVI
Simpósio Nacional de História, 2011, São Paulo. Ementa do XXVI Simpósio Nacional de
História. São Paulo, 2011, v. 1, p. 08. Acesso em: http://www.snh2011.anpuh.org/resour-
ces/anais/14/1307718674_ARQUIVO_LBASTOSNEVES%23ANPUH%232011vf.pdf.
27  –  OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles; MARSON, Izabel Andrade (Orgs.) (2013).
Liberalismo, monarquia e negócios: laços de origem. In: OLIVEIRA, Cecília Helena de
Salles; MARSON, Izabel Andrade. Monarquia, liberalismo e negócios no Brasil: 1780-
1860, São Paulo: Difel/Edusp, p.13-14.

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Walquiria de Rezende Tofanelli Alves

tes nos ligava aos Portugueses28”. Realizou a “adesão tácita e explícita” à


Independência do Brasil e “pelo ato solene de nosso juramento na Câmara
[de São Luís] no dia 7 de agosto” de 1823, a Junta Provisória “nos deu
legal passaporte para a Europa, como Brasileiros; e à nossa embarca-
ção como propriedade brasileira29”. Joaquim Maia disse ter se transferido
para Portugal para “colocar nosso filho [Emílio Maia] na Universidade
de Coimbra30”.

Uma vez em Portugal, Joaquim Maia retomou seus negócios e re-


digiu o periódico Imparcial (1826-1828). Nele reviu suas posturas a fim
de reparar suas antigas posições em relação à separação do Brasil e a D.
Pedro31. Em 18 de julho de 1826, reconheceu publicamente sua mudança
de projeto, ao celebrar o ato da abdicação de D. Pedro ao trono português
em nome da filha D. Maria da Glória e a outorga feita pelo Imperador do
Brasil da Carta Constitucional Portuguesa32.

Contraditando aspectos de seu projeto anterior, disse que, em 1822,


o príncipe regente estava no Rio de Janeiro “nas mais difíceis circunstân-
cias”, pois declarando-se a favor do “partido europeu” teria que reconhe-
cer “o intruso governo de Portugal, que havia usurpado a autoridade de
seu Augusto Pai” sendo obrigado a cumprir ainda os decretos das “ilegais
Cortes” e retornar à Europa. Nesse discurso, rompeu com a visão favorá-
vel que tinha sobre as Cortes de Lisboa. Para ele, D. Pedro optou de forma
acertada pelo “partido brasileiro”, contribuindo para “enfrear o espírito
democrático que se havia apoderado de muitos”; “estabelecer um centro
de poder para conservar a integridade daquele império” e “conservar à
Real Casa de Bragança aquele vasto continente, e aos Portugueses a frui-
ção do seu comércio33”.

28 – O Brasileiro Imparcial, 2 de janeiro de 1830, n° 2, f. 4.


29 – O Brasileiro Imparcial, 12 de janeiro de 1830, n° 4, f. 3.
30 – Idem.
31 – Semanário Cívico, 1° de agosto de 1822, n° 74, f. 4.
32 – Imparcial, 18 de julho de 1826, n° 1, f. 2.
33 – Imparcial, 23 de janeiro de 1827, n° 10, f. 3.

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“Um tributo à memória de meu pai”: as interpretações de Emílio Joaquim da
Silva Maia sobre a história do Brasil a fim de recuperar a memória de seu pai
Joaquim José da Silva Maia no século XIX

Ao concluir tais revisões, o negociante anunciou sua nova proposta


política, afirmando que os portugueses não haviam perdido o Brasil, pois
“se ele está separado pelas relações políticas, existe ainda unido pelas
mútuas relações de fraternidade e de comércio”, haja vista que os portos
do Brasil “estão abertos aos nossos navios” e o “seu terreno franco aos
nossos emigrados”, fazendo com que a situação fosse muito semelhante à
que existia antes da separação34.

Apesar do projeto desse negociante ser o de muitos liberais em


Portugal, acabou frustrado pelo grupo representado por D. Miguel, que
subiu ao poder com a proposta de rememorar práticas associadas ao
Antigo Regime. Além de suspender a vigência da Carta Constitucional,
D. Miguel liderou campanha persecutória contra os apoiadores de seu
irmão Pedro, determinando prisões “sem culpa formada” e condenação
ao degredo ou à morte35.

O período de seu reinado (1828-1834) causou muitos revezes à fa-


mília dos Silva Maia. Tão logo o infante subiu ao poder em fevereiro de
1828, Joaquim Maia foi preso em 26 de março. Na prisão, o negociante
denunciou os vícios em seu inquérito, alegando não saber quem eram as
suas testemunhas de acusação36. Tentando conhecer o seu processo, disse
que foi preso por aparecer em devassa. Nominado como “republicano”,
teria participado das “Archotadas” de julho de 1827, protestando contra a
demissão do general Saldanha do Ministério da Guerra, ainda na regência
de D. Isabel Maria37. O próprio Maia, muito depois, reconheceu ter sido
esse um pretexto. Havia sido preso, na verdade, por apoiar D. Pedro e o
liberalismo no Imparcial38.

34 – Idem.
35 – GONÇALVES, Andréa Lisly. A luta de brasileiros contra o miguelismo em Portugal
(1828-1834): o caso do homem preto Luciano Augusto. In: Revista Brasileira de História,
v. 33, n° 65, 2013, p. 211-234.
36 – Imparcial¸ 12 de abril de 1828, n° 32, f. 1.
37 – Imparcial, 11 de março de 1828, n° 24, f. 2.
38 – Brasileiro Imparcial, 23 de janeiro de 1830, n° 7, fls. 3-4.

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Walquiria de Rezende Tofanelli Alves

Três dias após a prisão de Joaquim Maia, sua esposa faleceu. Na drás-
tica situação, o negociante lamentou que a mulher tivesse sido “sepultada
em terra estrangeira” – porque era natural da Bahia – e por ter sido en-
terrada “sem lhe podermos dizer o último adeus39”. Também entristeceu-
-se ao saber que “o nosso jovem filho [...] abandonou a Universidade de
Coimbra [para] socorrer seu infeliz pai, e sua mãe moribunda!40”.

Graças à Revolução do Porto de 1828 , Joaquim Maia foi libertado


da prisão, aderindo ao movimento. Debelado pelas forças miguelistas, o
levante durou apenas de maio a julho de 1828, obrigando os participantes
a se exilarem. Emílio e Joaquim Maia enfrentaram dificultosa travessia
pela Espanha e carestia na Inglaterra, sendo apenas bem recebidos na
Bélgica, onde chegaram em setembro de 1829. Dali emigraram para o
Rio de Janeiro onde chegaram no final daquele ano.

Estabelecido no Rio de Janeiro, Joaquim Maia publicou o periódico


Brasileiro Imparcial (1830). Apoiando D. Pedro I em momento de gran-
de impopularidade do governo, o redator foi apontado como um “por-
tuguês” que se engajou contra a Independência do Brasil no passado e
que, em 1830, tinha planos ocultos para “recolonizar” o Brasil ao lado do
Imperador. Profusas foram as críticas nos periódicos fluminenses contra
ele41. Desafeto de liberais exaltados e moderados, o redator vivenciou
muitos revezes às vésperas da abdicação de D. Pedro I, em 7 de abril de
183142. O negociante faleceu, porém, antes disso, em 2 de março de 1831.
No momento de seu sepultamento, um grupo político provocou tumulto e
ofensas contra o falecido43. O comerciante que outrora havia colhido certa
39 – Imparcial¸ 12 de abril de 1828, n° 32, f. 1.
40 – Idem.
41 – As acusações contra Maia podem ser verificadas na Aurora Fluminense, 18
de janeiro de 1830, n° 290, f. 2; na Astréa, 10 de abril de 1830, n° 554, f. 1 e na Voz
Fluminense, 05 de abril de 1830, n° 70, f. 1.
42 – BASILE, Marcello. O laboratório da nação: a era regencial (1831-1840). In:
GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (Org.). O Brasil imperial (1831-1870). Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, v.2, 2009, p. 53-119, p. 59-60.
43  –  LUSTOSA, Isabel. Silva Maia: o comerciante que as revoluções do Atlântico fize-
ram jornalista. In: Revista de História das Ideias, Coimbra, v. 39, 2ª Série, p. 200, 2020.
Acesso em: https://run.unl.pt/bitstream/10362/118327/1/8_SILVA_MAIA_2_.pdf.

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“Um tributo à memória de meu pai”: as interpretações de Emílio Joaquim da
Silva Maia sobre a história do Brasil a fim de recuperar a memória de seu pai
Joaquim José da Silva Maia no século XIX

popularidade política e mesmo alcançado opulência em seus negócios,


morreu pauperizado e com diminuto apoio a seu projeto para estreitar os
vínculos entre o Brasil e Portugal44.

Emílio Joaquim da Silva Maia e seus estudos sobre Portugal e Brasil


Emílio Joaquim da Silva Maia nasceu em Salvador, na Bahia, em 8
de agosto de 1808. Era filho do negociante e redator Joaquim Maia e de D.
Joaquina Rosa da Costa. Segundo Aristides Francisco Garnier, dos cinco
aos nove anos de idade, Emílio Maia frequentou as aulas de primeiras
letras na Bahia. Depois disso, tornou-se aluno do “erudito e bem conhe-
cido” José Estanislau Vieira com o qual aprendeu latim e grego. Também
frequentou as aulas do padre Inácio José de Macedo aprendendo “filoso-
fia racional e moral”. Emílio Maia interrompeu seus estudos quando foi
deflagrada a guerra civil na Bahia, em 182245. Nas palavras de Garnier,
o pai de Emílio Maia “comprometido por causa do partido político a que
se ligara, teve de sair da Bahia a 2 de julho de 1823, levando sua famí-
lia ao Maranhão, aonde chegaram ao fim de 12 dias”. O “jovem Maia”
continuou as aulas de latim e filosofia moral no convento das Mercês,
em São Luís, mas passados quatro meses da adesão à Independência no
Maranhão, ele e sua família partiram para o Porto, em Portugal46.

No Porto, segundo Garnier, Emílio Maia “tratando então de re-


ver o que tinha estudado, entrou como externo no colégio da rua das

44  –  O próprio Evaristo da Veiga, opositor de Silva Maia em 1830, lembrava o sucesso
que o Semanário Cívico havia feito no início da década de 1820 na Bahia, com posturas
contrárias à separação do Brasil. Entretanto, esse mesmo sucesso não seria repetido no
período subsequente em que redigiu os demais periódicos: “Mas quando foi o Imparcial
[Joaquim Maia] Leão valente? Quando decorreram os anos de sua força? Não podia ser
senão no tempo em que, debaixo do nome de Semanário Cívico, investia sem piedade
aos Brasileiros, ultrajava o nosso país, os nossos usos, e hábitos, a causa que havíamos
abraçado [...] Foi essa época, em que o Imparcial [Joaquim Maia] se achava em todo o
seu vigor: agora, ele mesmo reconhece que está decrépito”. In: Aurora Fluminense, 5 de
maio de 1830, n° 333, f. 2.
45  –  GARNIER, Aristides Francisco. Discurso biográfico pronunciado na sessão solene
da Academia de Medicina, pelo Dr. Garnier. In: Anais brasilienses de Medicina, 4 de
junho de 1860, n° 4, 1860, f. 73.
46 – Idem.

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Walquiria de Rezende Tofanelli Alves

Laranjeiras, a fim de preparar-se para a Universidade de Coimbra”. Em


24 de julho de 1824, o estudante passou nos “exames necessários para
entrar na faculdade de medicina”. Em 1826, se alistou como voluntário
do Batalhão de Acadêmicos, tomando posição em favor de D. Pedro e da
Carta Constitucional de 1826. Seu pai gabou-se de que o “filho, mancebo
de 17 anos (natural da Bahia) frequentando o 3° ano filosófico”, havia se
empenhado contra as guerrilhas miguelistas na companhia de outros “es-
tudantes brasileiros, que com generoso entusiasmo quiseram fazer causa
comum com seus condiscípulos portugueses47”. Anexou em seu jornal
uma carta enviada por Emílio Maia, na qual comunicava o alistamento:
Já lhe participei que apenas chegou a Coimbra o Coronel Pinto a orga-
nizar as companhias de Voluntários, eu, que estava certo dos seus sen-
timentos, fui dos primeiros a alistar-me, e o mesmo fizeram mais vinte
e tanto Brasileiros: queremos dar um testemunho ao nosso Imperador
que cá na Europa sabemos pugnar pelos seus direitos; e uma prova
autêntica aos Portugueses do amor fraternal que lhes consagramos.
Tenho lido e relido todos os artigos de guerra, e tenho-me exercitado
em todas as evoluções militares. Console minha Mãe; diga-lhe que
não tenha medo: e se eu morrer na campanha, lembre-lhe que para as
Espartanas era um dia de júbilo aquele em que recebia a notícia da
morte de um filho no campo da honra em defesa da pátria. Lance-me a
sua benção; e esteja certo que eu voltarei com o meu escudo, ou sobre
o meu escudo. (grifo nosso)48.

Como apontou Aristides Garnier, Emílio Maia não concluiu os estu-


dos que iniciou em Coimbra. Obteve apenas o diploma de bacharel em
filosofia natural, interrompendo sua formação devido aos “acontecimen-
tos políticos que se deram entre D. Pedro e D. Miguel”, particularmente,
foi devido à morte da mãe e à prisão do pai, como dissemos. Exilado de
Portugal, o estudante emigrou para o Rio de Janeiro, onde pôde “respirar
alguns meses o ar pátrio”, mas logo partiu para a França para completar
seus estudos e obter os diplomas de bacharel em ciências naturais e mate-
máticas pela Universidade de Paris49.

47 – Imparcial, 30 de dezembro de 1836, n° 56, f. 3.


48 – Idem.
49 – GARNIER, Aristides Francisco. Op. cit., f. 73.

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“Um tributo à memória de meu pai”: as interpretações de Emílio Joaquim da
Silva Maia sobre a história do Brasil a fim de recuperar a memória de seu pai
Joaquim José da Silva Maia no século XIX

Em 2 de setembro de 1833, tornou-se médico pela mesma Instituição


e “impaciente de ver a pátria, parte imediatamente para o Brasil”, che-
gando ao Rio de Janeiro, em 14 de março de 1834, onde permaneceu
até o final da vida, em 185950. Foi ali que conheceu sua esposa, D. Ana
Rita da Silva Costa, com quem se casou em 28 de maio de 1834 e teve
filhos51. Emílio Maia se restabeleceu no Brasil em um período contur-
bado. Vivenciou os pormenores do período regencial e acompanhou os
preparativos para o Ato Adicional de 1834 que, apesar de conservar a
vitaliciedade do Senado, consagrou certa autonomia provincial através
da instituição das Assembleias Legislativas e das presidências de provín-
cia52.

Em 12 de junho de 1834, Emílio Maia tornou-se membro da sociedade


de medicina que, posteriormente, passou a se chamar Academia Imperial
de Medicina. Para Garnier, o médico “mereceu tanta consideração dos sá-
bios, que fez parte de quase todas as sociedades literárias e científicas do
Brasil”, entre as quais: a Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, o
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o Instituto Literário da Bahia
e a Sociedade Velosiana. Produziu vários trabalhos sobre medicina além
de outros distantes de sua formação como: O elogio histórico de José
Bonifácio de Andrada e Silva; a Biografia do Dr. José Pinto de Azevedo e
os Estudos históricos sobre Portugal e o Brasil53.

Ao escreverem necrológios sobre o médico após sua morte em 21


de novembro de 1859, seus correligionários afirmaram ter sido ele inte-
lectual avesso a questões políticas. Desassociaram-no, ainda, da figura do
pai considerado como agitador. Para Garnier, desde criança Emílio Maia
tornou-se “joguete das ondas políticas” procurando recusar-se a “pres-
tar ouvidos aos partidos, que bem desejariam conquistar o auxílio desse
jovem talento”. Contraditoriamente, mencionou que a “estima e consi-
deração dos habitantes deste município, o elevaram ao honroso cargo de
50 – Ibid., f. 74.
51 – Idem.
52 – DOLHNIKOFF, Miram. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil do
século XIX. São Paulo: Globo, 2005, p. 97.
53 – GARNIER, Aristides Francisco. Op. cit., 1860, f. 74.

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Walquiria de Rezende Tofanelli Alves

vereador da câmara municipal, que exerceu durante o quadriênio de 1841


a 184454”.

Joaquim Manoel de Macedo fez semelhante descrição sobre o mé-


dico, primeiramente dizendo que seu pai era “homem de instrução, e que
não pouco se envolvia em assuntos políticos55”. Em segundo lugar, sobre
Emílio Maia, Macedo apontou que quando residiu em Portugal sendo
“época de guerra entre constitucionais e absolutistas” o estudante “já
pelo exemplos de seu pai, já pelas próprias convicções e pelo ardor da
mocidade, deixa-se levar pelas ondas revolucionárias”, no entanto, “sua
bandeira é pelo menos bela e nobre, é a bandeira da liberdade contra o
absolutismo56”. Ao voltar ao Brasil, em 1834, o médico “encontrou o seu
país em um período de violenta excitação política”, mas àquela altura,
tendo “feito o voto sagrado de consagrar-se à ciência”, optou por voltar
“as costas ao mundo político57”.

Diante dessas intervenções, fica evidente o esforço dos biógrafos


em apagar as atuações políticas de Emílio Maia ou pelo menos mino-
rá-las. Seus correligionários no IHGB e em outras instituições, preferi-
ram retratá-lo como um letrado estranho às agitações do tempo, ainda
que este não tenha tentado esconder suas perspectivas ao longo da vida.
Acumulando funções relevantes, inclusive, como o responsável pela se-
ção de História da Revista do IHGB e sendo parabenizado por Januário da
Cunha Barbosa58, não há qualquer indício de que o ilustrado tenha tentado
escamotear suas aspirações políticas.

Se compararmos os escritos de Joaquim e Emílio Maia, fica clara


a admiração que nutriam um pelo outro. Suas linhas argumentativas e
seleções dos eventos a serem narrados são muito parecidas. Apesar disso,
também há diferenças entre eles, principalmente, quanto a concepções
54 – Idem.
55  –  Discurso do Orador do Instituto Joaquim Manoel de Macedo. In: R.IHGB, tomo
XXII. Rio de Janeiro: Tipografia Imparcial, 1859, p. 707.
56 – p. 709.
57 – Idem.
58 – ENDERS, Armelle. Os vultos da nação: fábrica de heróis e formação dos brasilei-
ros. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014, p. 177.

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“Um tributo à memória de meu pai”: as interpretações de Emílio Joaquim da
Silva Maia sobre a história do Brasil a fim de recuperar a memória de seu pai
Joaquim José da Silva Maia no século XIX

de “história” e de “nação” e a respeito do papel que o Brasil deveria de-


sempenhar na marcha civilizacional. Pensando nisso, cabe destacar o que
Valdei Lopes de Araújo disse sobre os intelectuais da década de 1830.
Segundo o autor, estes buscaram construir a história da nação brasileira a
partir de aspectos que pudessem singularizá-la, para tanto, consideraram
determinada concepção de história natural que “deixa de ser apenas a
soma mecânica de histórias particulares para adquirir um campo de ex-
periência próprio, para o qual deveria contribuir cada uma das nações
modernas59”.

Ainda sobre os escritos da época, é importante considerar as defi-


nições que o autor faz sobre os conceitos/categorias epistemológicas de
“germe” e “fermentação”. Segundo Valdei de Araújo o conceito de germe
“é fundamental em uma concepção de história que precisa lidar com re-
trocessos e descontinuidades”, isso porque imaginava-se ser possível re-
cuperar no passado “certos princípios/germes que atuariam na história da
humanidade e a transformariam60”. Já o conceito de fermentação permitia
aos intelectuais imaginarem que “por detrás do caos, permanecem, fer-
mentando, as virtudes eternas que sustentam a civilização61”. A dinâmica
entre esses dois conceitos foi também instrumentalizada por Emílio Maia.

Traçando analogias entre a “história natural” e a “história civil”,


Emílio Maia disse que as nações, à semelhança dos organismos vivos,
“formam-se, prosperam e acabam”. Também ambos, quando submetidos
a um terreno fértil e condições favoráveis, potencialmente se desenvol-
vem desde que “coisas perturbadoras o não afastam da natural e progres-
siva marcha” do desenvolvimento. As perturbações reprisadas ao longo
da “história civil”, segundo Emílio Maia, provinham de “fatos horríveis,
crimes enormes, e os violentos abalos políticos” então causados pelo des-
prezo dos homens pela verdade e pela manutenção de uma “adormecida

59 – Ibid., 105.
60 – Ibid., p. 34-35.
61 – Ibid., p. 36.

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consciência”, que somente lhe serviam para afastar do curso natural pre-
parado pela Providência62.

Nesse sentido, a “estabilidade política” que o Brasil alcançou nas


décadas de 1840 e de 1850 com D. Pedro II, era fundamental para a reali-
zação das potencialidades da nação brasileira, segundo o médico. Guiado
pela Providência até o trono, o segundo Imperador do Brasil era “um
entusiasta amigo das ideias modernas, valente e fundador da naciona-
lidade brasileira” que, longe de ser apenas “o mais eficaz agente para a
conservação da unidade”, se empenhou pela prosperidade do país “para
que quanto antes haja na própria América poder capaz de equilibrar-se
com o dos Estados Unidos63”.

Responsável por evitar “medonhas revoluções”, foi também D.


Pedro II quem sintonizou os propósitos brasileiros à marcha que a própria
Providência havia reservado ao país. Desse modo, ao superar o período
regencial, a nação voltou ao seu curso natural e à sua atividade de preser-
vação física e moral. Tamanho era o entusiasmo de Emílio Maia no pre-
sente, que mais de uma vez destacou as potencialidades que o continente
americano ofertava, tendo em mente que os Estados Unidos e o Brasil,
quando atingissem a plenitude de suas forças “não poderão deixar de ir
em auxílio da regeneração da velha Europa64”. Nesse sentido, o “ditoso
instante” que o governo D. Pedro II reservava ainda para um futuro prós-
pero merecia ser sublinhado:
Nosso coração brasileiro sobressalta-se com violência, ao lembrar-se
de longe, que nesse ditoso instante, a opulência, força e beleza do
Brasil deslumbrará a vista de todo o mundo, e obrigará aos Estados
Unidos a renunciar a sua injusta pretensão de quererem ser entre todos
os povos do novo mundo, os únicos denominados Americanos. Então
dos cantos mais opostos das cinco partes da terra virá também muita
gente boa admirar e elogiar os Americanos do Sul65.

62  –  MAIA, Emílio Joaquim da Silva. Estudo primeiro. Arquivo do IHGB, DL. 345.1,
f. 02.
63 – Ibid., f. 10.
64 – Idem.
65 – Ibid., f. 9.

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“Um tributo à memória de meu pai”: as interpretações de Emílio Joaquim da
Silva Maia sobre a história do Brasil a fim de recuperar a memória de seu pai
Joaquim José da Silva Maia no século XIX

Desse modo, “enquanto não chega tão almejada idade de ouro, a qual
parece-nos próxima”, o médico considerou útil escrever sobre “alguns
dos feitos dos nossos antepassados” despertando a lembrança “de nos-
sos progenitores”. Lançava-se, assim, à historiografia por compreender
ser “a única maneira de chegar-se ao profícuo conhecimento dos passos
por menores que sejam dados pelas gerações de outros tempos”. Através
desse exame, acreditava poder “descortinar a verdade histórica tantas ve-
zes ofuscada, e alguma ideia possuir-se da ascendente marcha do espírito
brasileiro66”.

Para a realização de seus estudos, Emílio Maia reuniu artigos de


jornais, livros e documentos. Também revolveu “importantes e variados
manuscritos quer deixados por meu Pai, quer por nós colhidos e vistos na
Europa ou no Brasil”. Disse que Portugal enquanto “nosso progenitor”,
deveria servir de “exemplo mui distinto” e ser “por nós perfeitamente
conhecido” para que o Brasil “o possa algum dia imitar67”. Rememorou,
para tanto, as campanhas expansionistas do Império Português no sécu-
lo XV, recomendando aos “brasileiros filhos desses [...] portugueses de
ontem” que se interessassem pelas notícias daqueles que promoveram
o “feliz encontro da terra” americana. Apesar de constituídos em “duas
nações diferentes em dois mundos opostos, saíram, todavia, do mesmo
viçoso tronco” dos navegadores68.

Para Maia era lamentável que “a glória de serem os Portugueses os


primeiros exploradores desses países, tem sido negada em nossos dias69”.
Sobre isso apontou que Francisco Adolfo de Varnhagen “em sua histó-
ria geral do Brasil” não havia se ocupado “mais ou menos longamente
das inúmeras pesquisas náuticas e arriscadíssimas viagens anteriormente
efetuadas pelos portugueses” e que deram origem à “inesperada vista do
Monte Pascoal70”.
66 – Idem.
67  –  MAIA, Emílio Joaquim da Silva. Estudo segundo. Arquivo do IHGB, DL 345.2, f.
2.
68 – Ibid., p. 2.
69 – Ibid., p. 8.
70 – Ibid., p. 3.

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Walquiria de Rezende Tofanelli Alves

Os séculos XVI e XVII foram retratados por Emílio Maia como um


período de decadência aos portugueses. A antes conhecida nação “vigo-
rosa, afortunada e quase única possuidora do maravilhoso Oriente, berço
da humanidade”, começou a decair porque os governos “não puderam
ou não quiseram” se inteirar das soluções. Esse foi o momento em que
“a dependência portuguesa de outras nações europeias” ou mesmo a vi-
vência debaixo “do jugo estrangeiro” engendrou a nação à dominação
de outros povos. Em suas palavras, “o gigantesco colosso português do
Oriente agita-se, treme, desmorona-se”, restando-lhe somente as colônias
na Ásia de Macau, Diu, Damão e Goa e na África da Costa da Guiné, de
Angola, de Benguela e Cabo Verde71.

Foi D. Henrique quem promoveu um “dos mais heroicos movimen-


tos políticos exarados nas páginas da história” em 1640, motivando um
“levantamento quase geral do povo conquistador do Oriente inteiro” e
lançando por terra “o infausto regimen dos Fillipes”. Apesar de reconhe-
cer os triunfos da campanha pela Restauração de Portugal, o médico disse
que os portugueses continuaram a conservar “o mesmo sistema de gover-
no” que os havia lançado à “desoladora decadência” de outrora, promo-
vendo os “inveterados abusos” na administração pública72.

Para refrear essa precariedade de Portugal e afastar “as trevas [que]


pareciam cobrir todo o horizonte português”, foi preciso que um “homem
extraordinário” tomasse a frente do ministério de D. José I (1750-1777),
remetendo-se a Sebastião José de Carvalho e Mello (1699-1782) – fu-
turo Marquês de Pombal. Para Emílio e Joaquim Maia, foi Carvalho e
Mello quem iniciou a dissolução dos “vícios” promovidos pelo absolutis-
mo73. Tomando importantes decisões, expediu o alvará de 19 de janeiro
de 1759, o qual “feriu mortalmente” o jesuitismo trazendo aos “aboríge-
nes do Brasil” à “fruição dos seus naturais direitos”. Em sua administra-
71  –  MAIA, Emílio Joaquim da Silva. Estudo terceiro. Arquivo do IHGB, DL. 345.03,
f. 17.
72  –  MAIA, Emílio Joaquim da Silva. Estudo quarto. Arquivo do IHGB, DL. 345.04, f.
15.
73  –  MAIA, Emílio Joaquim da Silva. Estudo quinto. Arquivo do IHGB, DL. 345.05, f.
1.

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“Um tributo à memória de meu pai”: as interpretações de Emílio Joaquim da
Silva Maia sobre a história do Brasil a fim de recuperar a memória de seu pai
Joaquim José da Silva Maia no século XIX

ção “a orgulhosa nobreza é abatida” e “os brios nacionais, letras e artes


reproduzem-se”. Portugal “livra-se de desoladora peste não consentindo
escravos dentro de si”. Além disso, foi Pombal quem animou “o comércio
do Brasil, tirando a restrição até então usada, da navegação para esta co-
lônia em frotas”, sendo também o responsável por proteger “com sábias
disposições a agricultura e o comércio; dando vida à Companhia do Alto
Douro74”.

Apesar do progresso perpetrado por Pombal, este foi derrubado pela


“nobreza e sacerdócio [que] adquirem forças novas”. Com o afastamen-
to do ministro, “principia a formar-se denso nevoeiro” para obscurecer
novamente a nação portuguesa. Além disso, “exausto de forças e enle-
ado pela Inglaterra”, Portugal constituiu-se “espécie nova de colônia da
opulenta Inglaterra75”. Sem Pombal, “mui irregular e viciado tornou-
-se o andamento dos negócios públicos; a desgraça pouco tempo levou
em estender-se à todas as classes”. Próximo de desaparecer o Império
Português, à semelhança de outros impérios e dos seres vivos, sua extin-
ção foi impedida pela “estrondosa e aturada revolução” do Porto de 1820,
“para purificar-lhe e dar novo vigor76”.

Em sua narrativa sobre o processo de Independência do Brasil,


Emílio Maia fixou o ano de 1808 como o início da “pacífica e completa
revolução porque o Brasil passou77”. Apontou a alegria de D. João ao se
transferir para a América e subscreveu a interpretação de José da Silva
Lisboa quanto ao importante papel que a transferência da família real
trouxe para o progresso da colônia americana, sem deixar de notar as
potencialidades já existentes nesta terra78. Para ele, a “benéfica mão da
natureza, não podia ser mais pródiga do que foi para o Brasil, deu-lhe em
excesso tudo de que ele podia necessitar para bem viver e chegar ao auge
da felicidade79”.
74 – Ibid., f. 5.
75 – Ibid., f. 25.
76 – Ibid., p. 27.
77  –  MAIA, Emílio Joaquim da Silva. Estudo sexto. Arquivo do IHGB, DL. 345.06, f. 3.
78 – Ibid., p. 5.
79 – Ibid., p. 26.

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Walquiria de Rezende Tofanelli Alves

Ao desembarcar na América Portuguesa, o príncipe regente fran-


queou “os portos brasileiros às nações amigas”, permitindo a “entrada e
saída de mercadorias estrangeiras e nacionais mediante 24% de direitos
sobre a importação”, o que para Emílio Maia foi uma “sábia e justa me-
dida, origem primária de todo o progresso brasileiro80”. Sobre o even-
to, lembrou que seu pai havia lhe confessado “nunca ter assistido a ato
que tanto o tocasse e o alegrasse como a majestosa cena representada na
Bahia, no memorável dia 22 de janeiro de 180881”.

Ao contrário do pai, Emílio Maia tinha uma visão positiva de D.


Rodrigo de Sousa Coutinho. Em suas palavras, o ministro de D. João
foi um “progressista e amigo dos Brasileiros” que muito contribuiu para
as benfeitorias aqui realizadas82. Como apontou Maria de Lourdes Viana
Lyra, foi Sousa Coutinho um dos entusiastas para a transferência da Corte
à América Portuguesa, vendo-a como alternativa mais acertada para evi-
tar a desagregação da monarquia por Napoleão. Ainda que tal ideia não
fosse inédita à época, compreendia “que salvar a colônia Brasil repre-
sentava salvar o império português83”. Retomando, portanto, a utopia do
“poderoso” e “vasto” Império expressa no projeto de Sousa Coutinho,
Emílio Maia interpretou a transmigração da Corte como o início do pro-
cesso de “autonomia do Brasil”.

Ao contrário de Emílio Maia, seu pai, em 1821, não endossou a ma-


nutenção desse projeto. Recorreu à imagem utópica do “vasto” Império
Português, mas para propugnar que o progresso dos portugueses de am-
bos os hemisférios dependia da manutenção de uma capital exclusiva-
mente em Lisboa, tendo em vista que a ameaça napoleônica havia sido
dissipada. À semelhança de outros grupos mercantis situados ao Norte
(no Maranhão, Pará e Bahia, por exemplo), Joaquim Maia não viu qual-
quer vantagem em uma sede de poder no Brasil e, portanto, enfatizava a
80  –  MAIA, Emílio Joaquim da Silva. Estudo sétimo. Arquivo do IHGB, DL. 345.07,
f. 3.
81 – Ibid., p. 16.
82 – Ibid., p. 18.
83  –  LYRA, Maria de Lourdes Viana. A utopia do poderoso e vasto Império. Portugal e
Brasil: bastidores da política, 1798-1822. Rio de Janeiro: Sete Letras, 1994, p. 117.

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“Um tributo à memória de meu pai”: as interpretações de Emílio Joaquim da
Silva Maia sobre a história do Brasil a fim de recuperar a memória de seu pai
Joaquim José da Silva Maia no século XIX

dependência do Reino Americano em relação ao Europeu, especialmente,


quanto ao comércio84.

Apesar dos elogios a D. Rodrigo Coutinho, de maneira geral, Emílio


Maia criticou os ministérios formados por D. João, visto que, para ele,
mantiveram práticas e vícios absolutistas85. Por sua vez, também elencou
empreendimentos realizados no período para abrigar a Corte na América
Portuguesa, como: as aulas “de ciência econômica”; o “conselho supremo
militar”; a “mesa de desembargo do Paço e da Consciência”; da “Casa
de Suplicação do Brasil”; a “Chancelaria-Mor do Reino e Intendência
de Polícia”; a “Imprensa Régia”; o “Erário Régio”; a “Real Junta de
Comércio, agricultura, fábricas e navegação”; o “Banco do Brasil”; a
“Praça do Comércio” fluminense, entre outras86.

Foi também durante o governo joanino que apareceu o “prejudicial


tratado de 1810 com a Inglaterra”. À semelhança do que pensava seu pai,
para Emílio Maia devido às “opostas circunstâncias das duas partes con-
tratantes” não era possível “reciprocidade entre elas”, afinal, a Inglaterra
era “nação mui industriosa, forte e senhora dos mares”, enquanto a nação
portuguesa estava “desfalcada da indústria e forças e quase sem navega-
ção alguma87”. O principal prejuízo desse acordo “foi impedir a nave-
gação de um só navio português para países estrangeiros”, lançando as
“embarcações pequenas [...] ao comércio de cabotagem” e as de “alto
bordo” a se dirigirem “unicamente para Lisboa, Porto ou para algum por-
to português, da África e da Ásia88”.

Se por um lado Emílio Maia aproximou-se das posturas do pai ao


delimitar os prejuízos trazidos pela tratativa, dele se distanciou ao co-
memorar, à luz da década de 1850, que por meio desse mesmo tratado o

84 – Semanário Cívico, 25 de outubro de 1821, n° 35, f. 1.


85 – Ibid., p. 18.
86  –  MAIA, Emílio Joaquim da Silva. Estudo sétimo. Arquivo do IHGB, DL. 345.07,
passim.
87  –  MAIA, Emílio Joaquim da Silva. Estudo décimo segundo. Arquivo do IHGB, DL.
345.12, f. 6.
88 – Ibid., p. 6.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):151-180, jan./abr. 2022. 173


Walquiria de Rezende Tofanelli Alves

Brasil começava a se livrar “do infame tráfico de escravatura, sem cuja a


extinção nunca seremos felizes89”.

Na descrição do médico sobre D. João VI, disse que apesar do “sem-


blante risonho e simpático [...] possuía um caráter frouxo e tímido”. Nutria
“excelentes ideias, concepções mui proveitosas, desejos os mais puros”,
porém, vivia cercado daqueles que “julgava íntimos amigos” manejando
a “intriga, iludiam suas ordens e com a maior habilidade ocultavam-lhe a
verdade90”. Alegou que, “aos olhos dos diversos historiadores”, D. João
aparece “umas vezes [como] ambicioso e déspota; outras [como] genero-
so e liberal, e quase sempre com política governamental má91”.

Tendo os princípios da Independência sido fixados no seu governo,


coube ao monarca enfrentar “a infausta noite de 21 de abril de 1821 no
Rio de Janeiro”, causada pelo “partido exaltado português, opondo-se à
vontade do Rei, para coagi-lo a deixar o Brasil quando Ele não queria
mais dentre nós sair92”. Para o médico, o episódio da Praça do Comércio
no Rio de Janeiro já continha o germe da Independência do Brasil, mar-
cando ali as confrontações entre “brasileiros” e “portugueses93”. Segundo
ele, “muitos brasileiros foram [...] convidados por Cartas Confidenciais
a não faltarem àquela reunião, insinuando-lhes que pedissem a ficada do
Rei”. Ademais, um curioso edital do Ouvidor Joaquim José de Queirós
publicado no dia 20 de abril, convocava “a junta eleitoral da comarca para
89 – Ibid., p. 7.
90  –  MAIA, Emílio Joaquim da Silva. Estudo décimo quarto. Arquivo do IHGB, DL.
345.14, f. 2.
91 – Ibid., p. 3.
92 – Ibid., p. 9.
93  –  Cecilia Helena de Salles Oliveira problematizou a historiografia que deu importân-
cia pontual aos acontecimentos na Praça do Comércio, em 21 de abril de 1821, abordando
o acontecimento a partir da face “mais conhecida (e simplificada) das lutas políticas do
período” de 1820 e que opunha “portugueses e brasileiros” para explicar o processo de
separação. Contrária a essa interpretação, a autora mostrou que aquela reunião de eleitores
no Rio de Janeiro, na verdade, descortinou diversos matizes entre os grupos liberais ali en-
gajados, atentos não só ao futuro da política constitucional como ao futuro das relações de
mercado entre Portugal e Brasil. OLIVEIRA, Cecilia Salles de. Imbricações entre política
e negócios: os conflitos na Praça do Comércio no Rio de Janeiro em 1821. In: OLIVEIRA,
Cecilia Salles de; MARSON, Izabel Andrade (Org.). Monarquia, liberalismo e negócios
no Brasil: 1780-1860. São Paulo: Edusp/Difel, 2013, p. 69-70.

174 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):151-180, jan./abr. 2022.


“Um tributo à memória de meu pai”: as interpretações de Emílio Joaquim da
Silva Maia sobre a história do Brasil a fim de recuperar a memória de seu pai
Joaquim José da Silva Maia no século XIX

reunir-se no dia seguinte pelas quatro horas da tarde [...] onde além dos
eleitores teria ingresso todo o mundo” que quisesse participar94.

Para Emílio Maia a população em geral havia recebido orientação


prévia para se manifestar durante o pleito e causar tumulto na Praça do
Comércio. Desse modo, na noite do dia 21 de abril de 1821, houve um
choque entre as “duas forças opostas” de “portugueses” e “brasileiros”,
produzindo “confusão, grandes sustos; muitas contusões, alguns ferimen-
tos e mortes”. No relato, é interessante notar que o médico omitiu a inter-
venção das tropas lideradas por D. Pedro que com a anuência de D. João
foram instadas para dissolver a Assembleia Eleitoral95.

Apesar de referir-se ao processo no Rio de Janeiro para adesão às


Cortes de Lisboa, foi no Pará em 1° de janeiro e na Bahia em 10 de feve-
reiro de 1821 que as primeiras adesões aconteceram. Para Emílio Maia,
“os cidadãos mais empenhados na aclamação do regime constitucional na
Bahia” tinham consciência “da má vontade do governo fluminense” para
jurar a futura Constituição.

Relatando as articulações em sua cidade natal, destacou que a maço-


naria teve papel fundamental para os sucessos do dia 10 de fevereiro de
1821. Segundo o médico, em novembro de 1820, funcionavam três lojas
maçônicas na capitania. A primeira chamada “Virtude e Razão” era com-
posta por “proprietários, fazendeiros e alguns empregados públicos” que
nutriam aspirações “democráticas”; a segunda chamada “Humanidade”
abrigava “muitas pessoas do Comércio, dominadas o maior número pelo
espírito constitucional” e a terceira de nome “União” tinha como mem-
bros “indivíduos de diversas profissões” entre os quais grande contingen-
te de militares motivados pelo “influxo democrático96”.

Logo que receberam as notícias da Revolução do Porto, muitos ma-


çons se apresentaram “nas duas primeiras lojas apontadas” para planeja-

94 – MAIA, Emílio. Op. cit., DL. 345.14, f. 10.


95 – Idem.
96  –  MAIA, Emílio Joaquim da Silva. Estudo décimo sétimo. Arquivo do IHGB, DL.
345.17, f. 18.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):151-180, jan./abr. 2022. 175


Walquiria de Rezende Tofanelli Alves

rem “igual revolução na Bahia”. Participaram da reunião “o proprietário


Joaquim José da Silva Maia e o Bacharel Cipriano José Barata d’Almeida”
ambos os maiores entusiastas da proposta, ainda que o primeiro fosse
“constitucional” e o segundo “democrata97”. A respeito de seu pai, Emílio
Maia o descreveu como “liberal de coração e com inteligência assaz cul-
tivada, não partilhava a extravagante opinião dos negociantes seus con-
terrâneos, que mostravam constitucionais só para Portugal”. Defendendo
que representantes da América ocupassem assentos ao lado dos europeus
nas Cortes de Lisboa, Joaquim Maia pregou a “igualdade em ambos os
hemisférios da vasta monarquia”. No depoimento, Emílio Maia atestou
que sendo “Filho deste prestante Cidadão, e bem ao fato do seu modo de
pensar por termos gozado da fortuna de o acompanhar ainda por alguns
anos, podemos assegurar a exatidão dessas suas ideias98”.

Seu pai, para o médico, possuía “temperamento sanguíneo, gênio


alegre e mui sociável”; contava com “instrução literária bastante varia-
da” e era “muito entendido no Comércio”. Apesar de Cipriano Barata e
Joaquim Maia terem concepções distintas para a política, segundo Emílio
Maia, se uniram pela causa comum à Bahia, apontando que “a união des-
tes caracteres sobre este objeto é boa prova que Portugueses e Brasileiros
desejavam a nova ordem de coisas99”. Nesse sentido, muito diferente foi
o processo de adesão ao constitucionalismo na Bahia e no Rio de Janeiro,
segundo Emílio Maia. Se no movimento baiano a união entre “portugue-
ses” e “brasileiros” mostrou-se evidente, no movimento fluminense os
dois grupos chegaram ao enfrentamento físico.

Articulando a adesão da Bahia às Cortes de Lisboa, o pai de Emílio


Maia mencionou ter havido uma reunião convocada pelo ministro
Palmella que, saindo de Lisboa e aportando na Bahia antes de rumar de-
finitivamente ao Rio de Janeiro, quis investigar os ânimos ali existentes
e fornecer algumas instruções para as autoridades. Palmella convocou
para a reunião o general Conde de Palma para saber os rumores dali.

97 – Ibid., p. 7.
98 – Ibid., p. 4.
99 – Ibid., p. 7.

176 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):151-180, jan./abr. 2022.


“Um tributo à memória de meu pai”: as interpretações de Emílio Joaquim da
Silva Maia sobre a história do Brasil a fim de recuperar a memória de seu pai
Joaquim José da Silva Maia no século XIX

Pediu ao militar que ganhasse tempo e esperasse “ulteriores ordens do


Rio de Janeiro”, freando qualquer levante. Chamaram à reunião o mare-
chal Felisberto Caldeira Brant Pontes e disseram-lhe que “a Constituição
portuguesa era muito democrática, e não podia convir nem àquele Reino
e menos ao Brasil, onde haviam raças heterogêneas, escravos e poucas
luzes”. Para esses homens reunidos, a “mais adequada para a atualida-
de era uma Constituição semelhante à da França ou Inglaterra com duas
Câmaras, [e] veto absoluto”. No entanto, como “em todas as províncias do
Brasil não havia alta nobreza com a qual se podia formar a Câmara Alta”
seria preciso criar uma a partir “da classe dos proprietários”. Orientaram,
desse modo, o marechal Brant Pontes “e mais duas pessoas” a produzirem
“relação dos indivíduos mais notáveis” do Brasil e enviar a lista para o
Rei100.

Após essa reunião não cessaram os constitucionais de se articular


nos “clubes” e preparar a adesão da Bahia. Segundo Emílio Maia, estes
andavam desconfiados de que haviam sido traídos e por isso decidiram
antecipar o levante. Segundo o médico, o Conde de Palma então capitão-
-general foi pressionado para tomar uma atitude enérgica pelas autori-
dades fluminenses, deixando correr o rumor de que decretaria prisões
das principais tropas envolvidas na conspiração, no dia 10 de janeiro de
1821, data dos festejos do Senhor do Bonfim de Itapagipe. O governador
receando ajuntamentos naquela data “fez adiar a festa para mais tarde”,
passando o dia sem tumultos e festejos. Foi somente na noite de 9 de fe-
vereiro que os liberais decidiram agir. A última reunião do “clube” acon-
teceu na casa do Aljube ficando ali decidido pela “resolução de efetuar o
movimento na manhã do seguinte dia, seguindo-se o plano antecedente-
mente combinado101”.

“Portugueses” e “brasileiros” então conjurados, marcharam juntos


para comunicar a adesão às Cortes de Lisboa ao governador. Segundo
Emílio Maia, uma das medidas do capitão-general foi consultar “o inspe-
tor das tropas Marechal Felisberto” Brant Pontes para saber o número de
100 – Ibid., p. 8.
101 – Ibid., p. 22-23.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):151-180, jan./abr. 2022. 177


Walquiria de Rezende Tofanelli Alves

soldados fiéis. O marechal ordenou, nesse ínterim, que o arsenal de armas


fosse guardado por suas tropas, impedindo que os revoltosos delas se
apoderassem. Tais medidas não foram suficientes. Houve enfrentamentos
de alguns militares, deixando vinte pessoas feridas “entre as quais dois
oficiais”, sendo ainda vitimado o major Hermógenes Pantoja102.

Àquela altura, o Conde de Palma convencia-se da derrota. Obstinado,


no entanto, Brant Pontes “insistia em atacar toda a artilharia com maior
força dos batalhões fiéis”, mas recusando a alternativa, o governador deu
ouvidos “ao Marechal Luís Paulino Pinto da França [...] que propôs a
convocação de um conselho” militar para resolver a questão. Ficou de-
cidido por meio do conselho “proclamar quanto antes o sistema consti-
tucional103”. Ao saber da decisão, Joaquim Maia cuja competência como
procurador do Senado era “conduzir o estandarte da Câmara [...] e convo-
car o povo a reunir-se por meio do toque do sino”, ajudou a promover o
movimento atraindo mais gente ao Largo do Palácio104.

Após o juramento à monarquia constitucional, procedeu a escolha


dos membros da Junta Provisória, mas “como nada de antecedentemente
se tinha a este respeito determinado”, adaptaram o plano optando por “fa-
zer-se esta escolha por aclamação”. Naquela conjuntura, segundo Emílio
Maia, concedia-se “voto de plena confiança ao negociante” seu pai, visto
que a ele caberia coordenar o pleito105. Segundo Emílio Maia, os mem-
bros eleitos para a junta governativa não eram “do agrado dos Brasileiros,
mas na ocasião não manifestaram nenhum sinal de desgosto, porque não
quiseram perturbar a boa marcha da revolução”. Em todo o caso, seu
pai, “não querendo descontentar a nenhum dos partidos tomou a pruden-
te e salutar medida de propor número igual de nascidos no Brasil como
de Europeus” para compor a Junta106. Propriamente com esse episódio
Emílio Maia findou seus estudos históricos.
102  –  MAIA, Emílio Joaquim da Silva. Estudo décimo oitavo. Arquivo do IHGB, DL.
345.17, f. 16.
103 – Ibid., p. 17-18.
104 – bid., p. 20.
105 – Ibid., p. 25.
106 – Ibid., p. 27.

178 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):151-180, jan./abr. 2022.


“Um tributo à memória de meu pai”: as interpretações de Emílio Joaquim da
Silva Maia sobre a história do Brasil a fim de recuperar a memória de seu pai
Joaquim José da Silva Maia no século XIX

Em outra reflexão, porém, o médico mostrou-se mais assertivo sobre


o processo de Independência do Brasil, ao recorrer aos exemplos do pas-
sado para fundamentar seu projeto. Segundo propôs, em 1852, era preciso
destruir “o mesquinho espírito de partido” e abandonar a prática do “fatal
erro” de se criar “posições para acomodar afilhados” sem que fossem
escolhidos “os homens para os lugares” devidos, pelo seu elevado grau
de ilustração. Também “com fé na importância e superioridade das belas
instituições, façamos com que elas se tornem uma realidade107”.

Recomendando ter “a história à mão”, suplicou o médico aos corre-


ligionários do IHGB, para que não se esquecessem “que os enganos em
política se pagam severamente”, pois, colhendo os “exemplos de casa”,
estes viram o “primeiro imperador do Brasil por lamentável desacer-
to perder a confiança posta nos Andradas, patriarcas da independência
a cujos esforços [...] deve a monarquia brasileira”, levando “o povo a
suspeitar de suas boas intenções”. Também não deveriam esquecer que
o Império foi arrastado “quase à borda do precipício como esteve em
1831”, uma vez que todos ali conheciam as “muitas causas que prepara-
ram o 7 d’Abril108”.

Crítico à Regência, Emílio Maia não deixou de se servir da histó-


ria para seus próprios fins políticos. Contradisse na vida as imagens que
criaram para ele na posteridade. Nisso também seguiu o destino do pai,
sobrepujado pela memória e pela historiografia constituídas ao longo dos
séculos XIX e XX.

Texto apresentado em março de 2022. Aprovado para publicação em


junho de 2022. 

107  –  MAIA, Emílio Joaquim da Silva. História da Revolução efetuada na Bahia no 10


de fevereiro de 1821. 1852. Manuscrito. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Lata
26, doc.11, f. 23.
108 – Idem.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):151-180, jan./abr. 2022. 179


Entre comendadores, cruzes e colares:
a ordem do mérito judiciário trabalhista no Rio de Janeiro

181

ENTRE COMENDADORES, CRUZES E COLARES:


A ORDEM DO MÉRITO JUDICIÁRIO TRABALHISTA NO
RIO DE JANEIRO
AMONG COMMENDATIONS, CROSSES AND COLLARS:
THE ORDER OF JUDICIAL MERIT FOR LABOR IN RIO DE
JANEIRO
Fernando Fontainha1
Luiza Meira Bastos2

Resumo: Abstract:
O objetivo deste artigo é a pergunta: é possível The aim of the article is to question the possibility
descrever uma instituição judiciária a partir da of describing a judicial institution based on the
forma como organiza e distribui medalhas, co- way it organizes and awards medals, orders and
mendas e homenagens que ela mesmo criou? honors created by the institution itself. The focus
Assim, nos interessará a forma como isto é feito, of our interest is to find out how the awarding
as normas da “Ordem do Mérito Judiciário” da process worked. We will discuss the rules behind
justiça trabalhista do Rio de Janeiro, a maneira the “Order of Judicial Merit” for Labor in Rio
como são feitas as indicações e principalmente de Janeiro, the way the nominations were made,
quem é homenageado. Investigaremos a distri- and, especially, who was honored. We examine
buição das homenagens por sua própria hierar- the distribution of honors according to both
quia (existem quatro), bem como pela relação their own hierarchy (there are four of them), and
entre estas e outros marcadores sociais, como the relationship between them and other social
gênero, região, profissão e pertença ao mundo markers such as gender, region, profession and
do direito*. belonging to the legal world**.
Palavras-chave: Justiça do trabalho; Honrarias; Keywords: labor justice; honors; sociology of
Sociologia do Judiciário. the judiciary.

Assim, encontramos oculta no fundo da alma dos juristas uma parte


dos gostos e dos hábitos da aristocracia. Eles têm como que uma in-
clinação instintiva para a ordem, um amor natural às formas; como a
aristocracia, eles têm grande desdém pela ação da multidão e despre-
zam secretamente o governo do povo3.

1  –  Professor do IESP-UERJ, bolsista PQ2 do CNPq, bolsista JCNE da FAPERJ, bolsis-


ta PROCIÊNCIA da UERJ e-mail: fernando.fontainha@iesp.uerj.br.
2  –  Doutora em Sociologia pelo IESP-UERJ, bolsista CAPES, e-mail: bastosm.luiza@
gmail.com.
*  –  BONELLI, M. G. A competição profissional no mundo do Direito. Tempo Social,
São Paulo, 10(1): 185-214, p. 186, 1998.
** – Idem.
3  –  TOCQUEVLLLE, A. A democracia na América. Livro 1: leis e costumes. São Paulo:
Martins Fontes, 2001, p. 310.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):181-196, jan./abr. 2022. 181


Fernando Fontainha
Luiza Meira Bastos

Este artigo é fruto de uma relação existente entre o primeiro autor e o


Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, efetivamente a justiça traba-
lhista do Rio de Janeiro, primeira e segunda instâncias. Desde 2012 o pri-
meiro autor tem sido chamado para várias atividades na Escola Judicial
do referido Tribunal. Já participou de seminários de planejamento e fó-
runs de gestão, como expert externo. Já proferiu palestras em encontros
de juízes e desembargadores. Já ministrou cursos na formação continuada
e inicial de servidores e magistrados. Já participou de projetos de pesqui-
sa financiada pelo tribunal.

Na esteira desta relação, mais um convite surgiu em julho de 2018:


ministrar uma oficina sobre “aristocrata judicial e comendas do TRT/RJ”
em janeiro de 2019. Para tanto, foram franqueados todos os documentos
digitalizados referentes às premiações. A segunda autora foi convidada a
coparticipar da organização, do tratamento e da preparação da oficina, que
foi enfim ministrada por nós dois juntos em janeiro de 2019, no IX Fórum
de Gestão Judiciária, sob o título “Comendas e Trajetória Institucional do
TRT1”.

Tendo sido para nós uma experiência bastante frutífera no tocante


ao judiciário como objeto de reflexão sociológica, decidimos comunicar
nossos achados e reflexões de forma mais sistemática e estendida que
através de uma oficina interna, para um público reduzido. Assim surge
este artigo, no objetivo de tentar responder à pergunta: é possível descre-
ver uma instituição judiciária a partir da forma como organiza e distribui
medalhas, comendas e homenagens que ela mesmo criou?

Assim, nos interessará a forma como isto é feito, as normas da


“Ordem do Mérito Judiciário”, a maneira como são feitas as indicações e
principalmente quem é homenageado. Investigaremos a distribuição das
homenagens por sua própria hierarquia (existem quatro), bem como pela
relação entre estas e outros marcadores sociais, como gênero, região, pro-
fissão e pertença ao mundo do direito4.

4  –  BONELLI, M. G. A competição profissional no mundo do Direito. Tempo Social,


São Paulo, 10(1): 185-214, p. 186, 1998.

182 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):181-196, jan./abr. 2022.


Entre comendadores, cruzes e colares:
a ordem do mérito judiciário trabalhista no Rio de Janeiro

Para tanto, num primeiro momento apresentaremos as fontes dis-


ponibilizadas e a metodologia com que foram tratadas. Em seguida, a
maneira como organizamos os dados e os achados, para finalmente seguir
para a discussão.

1. Metodologia e fontes
Para a realização deste trabalho, nos foram disponibilizadas pelo
Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região a lista das pessoas que rece-
beram homenagens, distribuídas pelos tipos de comendas e por ano. Essas
informações eram (1) os regulamentos que prescrevem a dita “Ordem do
Mérito Judiciário do Tribunal Regional do Trabalho da Primeira Região”,
(2) os ofícios com as indicações de homenageados, (3) as atas das reuni-
ões e, por fim, (4) a lista dos agraciados do ano vigente.

Com as informações entregues foi possível construir um banco de


dados com os nomes, as descrições de suas ocupações, o tipo de meda-
lha recebida e ano da homenagem. Para melhor análise outras variáveis
foram criadas. Primeiramente criou-se a variável sexo a partir dos nomes
dos agraciados. Posteriormente, categorizamos as ocupações descritas e,
de acordo com essas categorias, as variáveis de endogenia foram constru-
ídas (1. se a ocupação está ligada à cago da justiça; 2. se pertence à justiça
do trabalho; 3. se faz parte do TRT 1ª Região).

Ao todo, foram nove anos analisados: 2004, 2007, 2008, 2012, 2013,
2014, 2015, 2016 e 2017, somando 613 laureados. A partir dessas infor-
mações foi montado um banco de dados de onde foi possível realizar
estatísticas descritivas e cruzamentos entre as variáveis a fim de entender
qual é o perfil das pessoas agraciadas, mas, sobretudo, as condições orga-
nizacionais de distribuição destas honrarias.

No entanto, é necessário compreender em primeiro lugar como se


dá o processo de indicação. Ele não é complexo. Cada desembargador
(magistrado da segunda instância do TRT) recebe um ofício da Comissão
Organizadora da Ordem solicitando que indique nomes para a premia-
ção justificadamente. Não há obrigatoriedade de resposta ou formulário

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Fernando Fontainha
Luiza Meira Bastos

próprio. Os desembargadores indicam se e como quiserem. Em tempo,


indicam também quem quiserem.

Abaixo, vemos extrato de resposta de um dos desembargadores (cujo


nome não desvelaremos) à comissão, indicando um servidor do próprio
tribunal, seus setores de atividade e sua contribuição:
Em atenção ao Ofício Circular Nº 014/2013, datado de 28 de outubro
de 2013, indico o servidor PAULO CÉSAR CASTRO MAGALHÃES
MARTINEZ, Coordenador da CGJN, para receber a Comenda da
Ordem do Mérito Judiciário.
Ressalto que a personalidade é merecedora da homenagem devido aos
anos de dedicação e estudo, mormente em relação à reengenharia do
SAP (Sistema de Acompanhamento Processual) e aos projetos de mo-
dernização de equipamento de rede e telefonia.

Em seguida, vemos abaixo extrato de resposta de um dos desembar-


gadores (cujo nome não desvelaremos) à comissão, indicando um advo-
gado trabalhista, um chef de cozinha e um artista plástico, dando a cada
um a justificativa que achou pertinente:
DOUTOR PAULO SÉRGIO MARQUES DOS REIS
Advogado trabalhista, militante há mais de 30 (trinta) anos nesta
Justiça do Trabalho, havendo presidido a ACAT. a ABRAT e outros
órgãos.
SENHOR CLAUDE TROIGROS
Chef de Cozinha e empresário do ramo de restaurantes, oriundo de
uma das famílias mais tradicionais da França da área da gastronomia,
é formado em culinária pela Universidade de Thonon Les Bains, na
França. Apesar de ser um dos mais renomados chefs de cozinha da
década de setenta, tendo passado pelos restaurantes mais famosos do
mundo, como Paul Bocuse (Lyon), Rostang (Grenoble), Taillevent
(Paris), Connaught (Londres), Tantris (Munique), há mais de trinta
anos, escolheu o Brasil para viver, especificamente a cidade do Rio
de Janeiro, casou-se e teve filhos brasileiros. Foi o primeiro chef do
Le Pré Catelan, no hotel Rio Palace (atual Sofitel). Aqui, com seu di-
namismo, conhecimento da arte da gastronomia e empreendedorismo,
mostrou e vem mostrando para o mundo a diversidade da culinária
brasileira, sendo um dos maiores responsáveis pela projeção interna-

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Entre comendadores, cruzes e colares:
a ordem do mérito judiciário trabalhista no Rio de Janeiro

cional do Brasil nessa área. Claude é um dos integrantes do “brasilía-


nist” e vem, com suas atividades, gerando empregos diretos e indire-
tos, além de ter formado diversos chefs. Recentemente emprestou seu
nome para a campanha de propaganda do programa menor aprendiz,
por ser um entusiasta da formação profissional de jovens. Também
desenvolve trabalhos sociais por todo o Brasil, inclusive em parceria
com várias ONGs.
SENHOR ARMANDO ROMANELLI DE CERQUEIRA
Artista plástico de renome internacional e que muito contribui para a
divulgação da nossa cuttura pelo país afora.

Por fim, vemos abaixo extrato de resposta de um dos desembarga-


dores (cujo nome não desvelaremos) à comissão, indicando um oficial da
marinha do Brasil ao prêmio, sendo mais explícito quanto às suas contri-
buições institucionais, frisando ainda relações entre judiciário e executi-
vo:
Dirijo-me a Vossa Excelência para indicar o Contra-Almirante Gilmar
Ferraço para receber a Comenda do Ordem do Mérito Judiciário pelos
serviços prestados ao Judiciário Trabalhista.
Auxiliou com empenho os estudos dos desembargadores José Geraldo
da Fonseca e Marcos de Oliveira Cavalcante durante o Curso de Altos
Estudos de Política e Estratégia; colocou à disposição do Judiciário
Trabalhista as instalações militares sob seu comando, para ativida-
des de interesse do Tribunal; empenha-se em mostrar a importância
do Judiciário trabalhista no âmbito do Executivo e Legislativo; exer-
cer funções estratégicas para ações do Tribunal no estado do Rio de
Janeiro.
Trata-se de homem probo, sincero, de mentalidade aberta que pode
em muito auxiliar um maior intercâmbio entre Judiciário e Poder
Executivo.

As atas das reuniões da comissão não indicam veto a indicações


quaisquer. O que acontece é a distribuição dos indicados por tipo de co-
menda. Isto é o suficiente para a formulação da hipótese se que se trata
de um produto institucional híbrido. Como resultado de um processo, os
agraciados formam ao mesmo tempo um agregado não intencional e um

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):181-196, jan./abr. 2022. 185


Fernando Fontainha
Luiza Meira Bastos

grupo que expressa um planejamento de relações institucionais de uma


pequena comissão.

Um último ponto por ora: salientamos que os juízes (magistrados de


primeira instância, mais numerosos que os desembargadores), não parti-
cipam do processo de escolha, seleção ou organização das homenagens.
Aparecem, não raro, como homenageados.

2. Distribuição das comendas – os dados


Como já mencionado, a distribuição das comendas acontece todos
os anos de acordo com uma lista organizada a partir de indicações dos
desembargadores. Em reunião, é definida a lista final das pessoas que
receberão a medalha naquele ano, que são divididas em quatro “graus”
(expressão nativa) ou categorias: comendador, grã-cruz, grande-oficial e
grão-colar.

Inicialmente optamos por realizar uma descrição das pessoas que


receberam reconhecimento nos nove anos analisados. Entre as medalhas
de honra ao mérito distribuídas ao longo dos anos analisados, 51% delas
eram do grau comendador, 29% grau grã-cruz e 19% grau grande-oficial.
Apenas 4 pessoas receberam a ordem grau grão-colar, sendo eles um pre-
sidente do Tribunal Superior do Trabalho e 3 ex-presidentes da república.
É interessante notar que a diferença de frequência entre cada “grau” de
homenagem converge com suas funções manifestas: há uma hierarquia
entre as homenagens, e ela converge com sua raridade. Do total de 613
pessoas condecoradas, a ocupação delas é bem diversificada. No entanto
se destacam com as maiores quantidades: desembargadores (153 pesso-
as), advogados (87 pessoas), políticos e servidores (58 pessoas cada um),
juízes (51 pessoas) e ministros (46 pessoas), como demonstram os gráfi-
cos 1 e 2 abaixo:

186 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):181-196, jan./abr. 2022.


Entre comendadores, cruzes e colares:
a ordem do mérito judiciário trabalhista no Rio de Janeiro

Gráfico 1: Distribuição dos tipos de medalhas distribuídas.


Fonte: elaboração própria.

Gráfico 2: Distribuição das 10 ocupações mais citadas.


Fonte: elaboração própria.

Considerando apenas a contagem única em cada uma das categorias


de endogenia, a maior porcentagem de agraciados é de dentro do mundo
do direito, porém fora ou da Justiça do Trabalho da 1ª Região (n=200).
Analisando apenas os agraciados de origem da justiça do trabalho, eles
estão mais concentrados na 1ª região (22,19%) do que profissionais de ou-
tras regiões (16,80%). O total de agraciados do meio jurídico é de 71,6%.
Dessa proporção, 54,4% eram originários da justiça do trabalho, sendo

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):181-196, jan./abr. 2022. 187


Fernando Fontainha
Luiza Meira Bastos

que desse montante 57% faziam parte do Tribunal Regional do Trabalho


da 1ª Região, como se pode ver na Tabela 1 e do Gráfico 3 abaixo:

Endogenia Frequência Porcentagem


Não jurídico 174 28,38%
Jurídico fora do TRT 200 32,63%
TRT 103 16,80%
TRT 1ª Região 136 22,19%
Total geral 613 100,00%

Tabela 1: Distribuição da endogenia (total geral).


Fonte: elaboração própria.

Gráfico 3: Distribuição da endogenia (total por grupo).


Fonte: elaboração própria.

No tocante a variável sexo, nosso mais forte marcador social a ser


confrontado com as comendas e suas variantes (aqui tomadas como mar-
cadores institucionais), dos agraciados, 76% eram homens e 24% mulhe-
res. Entre os homens, 34% eram do meio jurídico, mas não da justiça do
trabalho ou do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região e 31% não
eram pertencentes ao meio jurídico. Quando se analisa apenas as mulhe-
res, 37% pertenciam ao Tribunal Regional da 1ª Região e 20% não eram
do meio jurídico, como se vê nos gráficos 4 e 5 abaixo:

188 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):181-196, jan./abr. 2022.


Entre comendadores, cruzes e colares:
a ordem do mérito judiciário trabalhista no Rio de Janeiro

Gráfico 4: Distribuição do total de comendas por sexo.


Fonte: elaboração própria.

Gráfico 5: Distribuição do total de comendas por ordem do mérito e sexo (total por sexo).
Fonte: elaboração própria.

Ao fazer uma frequência da distribuição de medalhas entre homens


e mulheres ao longo dos anos, verifica-se que há uma diminuição da de-
sigualdade da quantidade entre os agraciados dos dois sexos (gráfico 5).
Esses dados nos chamam atenção ao entendimento de quem são essas
mulheres que passaram, proporcionalmente, a ser mais agraciadas a partir
de 2014 (gráficos 6 e 7, abaixo).

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):181-196, jan./abr. 2022. 189


Fernando Fontainha
Luiza Meira Bastos

Gráfico 5: Distribuição de homens e mulheres por ano – total por ano.


Fonte: elaboração própria.

Gráfico 6: Distribuição de homens e mulheres por ano – total por sexo.


Fonte: elaboração própria.

As mulheres que receberam prêmios do TRT1 são, principalmente,


desembargadoras (29%), juízas (19%) e servidoras da justiça (15%). Do
total de 149 mulheres, 37% pertencem ao Tribunal Regional do Trabalho
da 1ª Região e 80,5% são do meio jurídico. Fazendo um comparativo das
10 ocupações mais frequentes, entre homens e mulheres, já se destaca que
entre as mulheres ocupações ligadas à justiça são mais frequentes, com
evidência das servidoras serem o terceiro grupo mais frequente, apenas
atrás de desembargadoras e juízas. Entre os homens, ainda se destacam
as ocupações jurídicas, porém entre os mais frequentes aparecem os po-
líticos. Outro ponto que se destaca é a diferença em relação à frequência

190 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):181-196, jan./abr. 2022.


Entre comendadores, cruzes e colares:
a ordem do mérito judiciário trabalhista no Rio de Janeiro

de juízes condecorados. Entre as mulheres, as juízas possuem destaque


e só não são as mais frequentes em receber a ordem do mérito do que as
desembargadoras. No entanto, entre os homens os juízes não possuem tal
destaque, são menos frequentes que servidores e políticos, como se vê no
gráfico 7 abaixo:

Gráfico 7: Distribuição da ocupação por sexo.


Fonte: elaboração própria.

Das 120 mulheres que pertencem ao meio jurídico, 66% fazem parte
da justiça do trabalho, sendo que desse grupo 70% integram o Tribunal
Regional do Trabalho da 1ª Região. Em relação a divisão de mulheres
entre as medalhas distribuídas, 57% receberam o grau comendador e 26%
o grau grã-cruz.

Quando comparadas com homens, mulheres tendem a receber mais


condecorações do grau comendador e homens têm uma proporção maior
de grau grã-cruz e grau grande-oficial. Apenas a porcentagem do grau
grão-colar é parecida entre homens e mulheres. Ao mesmo tempo, há
maior tendência de se escolher mulheres de dentro da carreira do TRT 1ª
Região ou mesmo profissionais do direito. Se comparadas as ocupações
por sexo, há mais homens citados fora do direito do que mulheres.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):181-196, jan./abr. 2022. 191


Fernando Fontainha
Luiza Meira Bastos

3. Discussão
No Brasil, honras, condecorações e medalhas são elementos com
elevada importância histórica, além de amplamente retratados na histo-
riografia sobre as ordens honoríficas no período imperial5. Fazem parte
da cultura das elites brasileiras a mobilização e os significados dos mais
diversos títulos nobiliárquicos6 e indumentários7. Em tese de doutora-
do recentemente defendida, foi reforçado o papel das condecorações na
construção do Estado Imperial brasileiro, demonstradas as relações entre
as ordens honoríficas e a independência do Brasil. Afirma a autora que a
concessão de comendas honoríficas por Pedro I, além de significar forte
instrumento de cooptação de alianças, cristalizava numa nova elite políti-
ca o sentimento aristocrático:
Os exemplos são inúmeros, e servem para que se demonstre que todos
se inseriam em disputas estamentais, lutando para consolidar sua po-
sição no sistema de poder profundamente instável no pós-independên-
cia, de modo que o prêmio, embora consolidasse a posição estamen-
tal do agraciado, não impedia que o mesmo buscasse melhorar sua
posição no sistema de relações e, para isso, ele poderia se distanciar
do poder central ou, ao menos, ser acusado de tal. Assim, embora a
condecoração, após ser concedida, acabasse sendo, na prática, apenas
uma expectativa de fidelidade por parte do poder central, ela não dei-
xava de ser uma importante moeda de troca, extremamente almejada
em uma sociedade de cunho estamental e profundamente marcada
pelo sentimento aristocrático. Era evidente que, por mais que o con-
decorado buscasse sempre construir em seu requerimento um discurso
5  –  POLIANO, Luiz Marques. Ordens honoríficas do Brasil (história, organização, pa-
drões, legislação). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1943. PINHEIRO, Artidoro Au-
gusto Xavier. Organização das Ordens Honoríficas do Império do Brasil. São Paulo: Typ.
Jorge Seckler & C, 1884. LAGO, Laurêncio. Medalhas e condecorações brasileiras. Co-
letânea de atos oficiais (1808-1934). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1935. RIBEIRO
FILHO, João de Souza. Ordens Honoríficas Nacionais e Estrangeiras. Rio de Janeiro:
Ed. O Cruzeiro, 1955.
6  –  OLIVEIRA, Marina Garcia de. Entre nobres lusitanos e titulados brasileiros: prá-
ticas, políticas e significados dos títulos nobiliárquicos entre o período joanino e o al-
vorecer do Segundo Reinado. Dissertação (Mestrado em História). Universidade de São
Paulo, São Paulo. 2013.
7  –  SILVA, Camila Borges da. O símbolo indumentário: distinção e prestígio no Rio de
Janeiro (1808-1821). Rio de Janeiro: Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro: Secre-
taria Municipal de Cultura, 2010.

192 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):181-196, jan./abr. 2022.


Entre comendadores, cruzes e colares:
a ordem do mérito judiciário trabalhista no Rio de Janeiro

que valorizasse a ele e a suas ações, omitindo e iluminando aspectos,


“recortando” a realidade em função de seus interesses, ele precisava
mostrar de fato algum tipo de serviço” 8.

Em se tratando das elites jurídicas brasileiras, Almeida restitui uma


parte importante deste arsenal simbólico9. Ele trata de ornamentações
bastante comuns nas faculdades de Direito, tais como placas comemora-
tivas e de homenagens de várias naturezas, bustos e estátuas de “grandes
nomes” do Direito, retratos pintados à óleo ou fotografias. O autor vai
acordar à esta mobilização simbólica em torno da reputação, da biografia
e da imagem pública dos membros da elite jurídica brasileira o caráter
de produção de mesma ideia de nobreza, mesmo quando as formas de
veiculação destes símbolos não são mais as tradicionalmente utilizadas
(como a internet, as mídias sociais, etc.). Também já há produção sobre a
presença dos marcadores ligados à formação jurídico-acadêmica nas mo-
bilizações elitárias do Direito10. Fontainha, ao tratar da eficácia simbólica
destas mesmas ornamentações11, distingue juristas e médicos dos demais
corpos profissionais também por serem suas as escolas que as cultivam
e ostentam. Ainda, em relação aos ministros do STF, foram realizados

8  –  SILVA, Camila Borges da. As ordens honoríficas e a Independência do Brasil: o


papel das condecorações na construção do Estado Imperial brasileiro (1822-1831). Tese
(doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de His-
tória, 2014, p. 425-426.
9  –  ALMEIDA, Frederico Normanha Ribeiro de. A nobreza togada: as elites jurídicas
e a política da justiça no Brasil. Tese (Doutorado em Ciência Política) – USP. São Pau-
lo, 2010, e ALMEIDA, Frederico Normanha Ribeiro de. Inherited Capital and Acquired
Capital: The Socio-Political Dynamics of Producing Legal Elites. Brazilian political sci-
ence review, v. 4, p. 32-59, 2010.
10  –  QUEIROZ, R. M. R; ACCA, T. S.; GAMA, B. P. De los bancos universitarios a la
toga: la trayectoria académica de los ministros del Supremo Tribunal Federal brasileño
(1988-2013). Precedente, v. 8, p. 67-104, 2017.
11  –  FONTAINHA, F. C. Todos Eles Juízes: um monopólio baseado na eficácia simbóli-
ca. Revista sociologia jurídica, v. 8, p. 1-20, 2009.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):181-196, jan./abr. 2022. 193


Fernando Fontainha
Luiza Meira Bastos

estudos sobre sua trajetória político-partidária12, jurídico-profissional13 e


sua mobilidade territorial14.

Ainda em relação aos ministros do STF, aludindo chave interpretati-


va orientada para o estudo da trajetória e desempenho das elites jurídicas,
foi produzido estudo especificamente tratando de medalhas e comendas
por eles recebidas15. O interesse foi o de investigar a relação desse grupo
específico da elite jurídica brasileira com outros grupos, como partidos
políticos, movimentos sociais, corporações profissionais e setores do em-
presariado.

No entanto, aqui é necessário deslocar o olhar interpretativo, pois


não é nosso interesse o laureado e os usos e mobilizações das homena-
gens, mas a instituição promotora destas distinções, e o quanto a forma de
as promover pode revelar de seu ethos dominante. Mutatis mutandis, do
ethos de seus dominantes, ou sua elite interna.

Partimos da hipótese de que o reivindicado caráter conservador e


aristocrático de práticas a priori tidas como anacrônicas não explicam
per se eventual efeito de conservação (ainda) presente na instituição. Não
pretendemos tomar por pressuposto o aludido em epígrafe, e que ainda
permanece no franco espírito republicano que considera os símbolos “ini-
migos da democracia”, especialmente em ambiente judiciário16.

12  –  FONTAINHA, Fernando de Castro; JORGE, Thiago Filippo Silva ; SATO, Leonar-
do Seiichi Sasada (2018). Os três poderes da elite jurídica: a trajetória político-partidária
dos ministros do STF (1988-2013). Revista de Ciências Sociais (UFC), v. 49, p. 93-131,
2018.
13  –  FONTAINHA, Fernando de Castro; SANTOS, Carlos Vitor Nascimento dos; OLI-
VEIRA, Amanda Martins Soares de. A elite jurídica e sua política: a trajetória jurídico-
-profissional dos Ministros do STF (1988-2013). In: ENGELMANN, Fabiano (Org.).
Sociologia Política das instituições judiciais. 1ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS/CE-
GOV, p. 98-123, 2017.
14  –  FONTAINHA, F. C; NUÑEZ, I. S.; OTERO, V. B. O lugar das elites jurídicas: o
deslocamento territorial dos ministros do STF (1988-2013). Contemporânea - revista de
sociologia da UFSCar, v. 7, p. 341-364, 2017.
15  –  ALMEIDA, Fábio Ferraz de; FONTAINHA, Fernando de Castro; SANTOS, Ga-
briela Maciel. Produzindo elites jurídicas: prêmios, comendas e distinções dos ministros
do STF (1988-2013). Cadernos Adenauer, v. 18, p. 149-171, 2017.
16 – GARAPON, A. Bien Juger. Essai sur le rituel judiciaire. Paris: Odile Jacob, 1996.

194 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):181-196, jan./abr. 2022.


Entre comendadores, cruzes e colares:
a ordem do mérito judiciário trabalhista no Rio de Janeiro

Ainda que se possa admitir que a Ordem do Mérito Judiciário do


TRT1 tenha como função latente a produção de integração e solidarieda-
de do grupo (e do grupo com outros) pela via da mobilização de símbolos
de pertença conexos à tradição, ao poder e à aristocracia, nossos dados
mostram que há mais a ser explicado.

Texto apresentado em abril de 2022. Aprovado para publicação em


maio de 2022. 

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):181-196, jan./abr. 2022. 195


Temas do Direito Administrativo na Doutrina Jurídica Brasileira do século
XIX: análise quantitativa (1857-1884)

197

TEMAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO NA DOUTRINA


JURÍDICA BRASILEIRA DO SÉCULO XIX: ANÁLISE
QUANTITATIVA (1857-1884)
THEMES OF ADMINISTRATIVE LAW IN THE BRAZILIAN
LEGAL DOCTRINE OF THE 19TH CENTURY: A
QUANTITATIVE ANALYSIS (1857-1884)
Walter Guandalini Junior1

Resumo: Abstract:
O presente artigo pretende contribuir para o The paper aims to contribute to a deeper
aprofundamento da compreensão da cultura understanding of the Brazilian legal culture
jurídica brasileira, empregando o método de using the content analysis method to examine
análise de conteúdo para examinar os principais the main “themes” discussed by the science
“temas” debatidos pela ciência brasileira do di- of administrative law in 19th century Brazil.
reito administrativo no século XIX. A análise A quantitative analysis of the main subjects
quantitativa dos principais assuntos discutidos discussed at the time by experts in administrative
pelos administrativistas do período permite law allows us to identify the most relevant
identificar os objetos de regulação considerados objects of regulation, the main concerns of
mais relevantes, as principais preocupações da the doctrine, the general function attributed
doutrina, a função geral atribuída ao direito ad- to administrative law, and the effects expected
ministrativo e os efeitos que se esperava obter from its incidence on society. In addition, a
de sua incidência sobre a sociedade. Além dis- diachronic analysis highlights the developments
so, a análise diacrônica dos temas examinados that occurred in legal-administrative thought
destaca as transformações ocorridas no pensa- during the period.
mento jurídico-administrativo durante o período
estudado.
Palavras-chave: história do direito administra- Keywords: history of administrative law,
tivo; direito administrativo brasileiro; século Brazilian administrative law, 19th century, legal
XIX; cultura jurídica; temas do direito adminis- culture, themes of administrative law.
trativo.

1. Introdução

As pesquisas histórico-jurídicas realizadas nos últimos 10 anos têm


contribuído para o progressivo aprofundamento de nossa compreensão
sobre as características do direito administrativo brasileiro no século
XIX. Sabemos, hoje, como ele foi recepcionado a partir da doutrina jurí-
dica europeia para cumprir no Brasil a função constituinte de legitimação
da soberania imperial e instituição de uma nova ordem política e jurídica
1 – Universidade Federal do Paraná. Centro Universitário Uninter. E-mail: prof.
walter.g@gmail.com, walter.guandalini@ufpr.br

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):197-232, jan./abr. 2022. 197


Walter Guandalini Junior

nacional2; compreendemos como a concepção jurisprudencial de “direi-


to administrativo” desenvolvida pelo conselho de Estado francês foi, no
Brasil, objeto de uma tradução doutrinária que lhe atribuiu a tarefa de
estruturação de um Estado Nacional3; conhecemos melhor o perfil dos ad-
ministrativistas brasileiros, predominantemente formados em São Paulo,
membros da alta burocracia de Estado e professores especialistas que di-
videm o seu tempo entre atividades eloquentes e científicas4; e podemos
identificar as principais fontes normativas desse direito administrativo,
fundado em regulamentos emitidos pelo Poder Executivo, na legislação e
no direito constitucional, além de extrair sua autoridade também do que
então se considerava a “natureza das coisas5”.

A compreensão geral da gênese, dos contextos e das funções de-


sempenhadas pela doutrina de direito administrativo no Brasil do século
XIX estabelece as condições necessárias para que possamos, agora, nos
debruçar sobre os temas e conteúdos da ciência jurídico-administrativa
do período. Uma análise descontextualizada do pensamento jurídico-ad-
ministrativo brasileiro do passado inevitavelmente levaria a uma visão
anacrônica, com o estabelecimento de linhas de evolução contínua e co-
nexão direta entre presente e passado, atribuindo-se à doutrina adminis-
trativista do século XIX o papel de “embrião” ou “antecipação primitiva”
dos temas e preocupações típicos do direito administrativo do presente

2  –  GUANDALINI JR., Walter. Espécie invasora – história da recepção do conceito de


direito administrativo pela doutrina jurídica brasileira no século XIX, in: Revista de Direi-
to Administrativo, v. 268, jan./abr. Rio de Janeiro: FGV, 2015, p. 213-247; e GUANDA-
LINI JR., Walter. História do Direito Administrativo Brasileiro: Formação (1821-1895).
Curitiba: Juruá, 2016.
3  –  GUANDALINI JR., Walter. A tradução do conceito de direito administrativo pela
cultura jurídica brasileira do século XIX, in: Revista da Faculdade de Direito da UFMG,
nº 74. Belo Horizonte: UFMG, 2019, p. 473-498.
4  –  GUANDALINI JR., Walter. As razões do direito administrativo na doutrina brasilei-
ra do século XIX (1857-1884), in: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
a. 180, nº 481, set./dez. Rio de Janeiro: IHGB, 2019, p. 219-254.
5 – GUANDALINI JR., Walter. As razões do direito administrativo na doutrina brasilei-
ra do século XIX (1857-1884), in: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
a. 180, nº 481, set./dez. Rio de Janeiro: IHGB, 2019, p. 219-254; e GUANDALINI JR.,
Walter. Raízes históricas do direito administrativo brasileiro: fontes do direito adminis-
trativo na doutrina brasileira do século XIX (1857-1884). Curitiba: Appris, 2019.

198 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):197-232, jan./abr. 2022.


Temas do Direito Administrativo na Doutrina Jurídica Brasileira do século
XIX: análise quantitativa (1857-1884)

– como costumam fazer os administrativistas de formação dogmática que


se empenham em escrever a história de sua disciplina. A contextualização
histórica desse saber permite, de outra forma, a sua compreensão crítica
nos termos da sociedade em que se originou, assim como a avaliação dos
impactos efetivos que promoveu durante o seu período de existência – em
vez da herança imaginária legada às suas posteridades, que alternadamen-
te o têm ressignificado em termos de “origens primitivas” ou “eternas
permanências” de uma a-histórica “essência” do direito administrativo
atemporal6.

Nessas condições, o presente trabalho pôde se debruçar sobre os


conteúdos da doutrina jurídico-administrativa produzida no Brasil do sé-
culo XIX com o objetivo de identificar, pelo método de análise de conte-
údo, os principais temas debatidos pelo direito administrativo do período.
Trata-se de uma fase preliminar de investigação, concentrada na avalia-
ção quantitativa desses conteúdos, a ser posteriormente complementada
por uma segunda etapa qualitativa, que deverá descrever e problematizar
os principais conceitos, institutos, debates e preocupações da doutrina do
período. A análise dos temas de reflexão pela doutrina de direito admi-

6  –  Sobre as relações que o direito administrativo dos séculos XX e XXI estabelece


com a doutrina do século XIX ver GUANDALINI JR., Walter; TEIXEIRA, Lívia Solana
Pfuetzenreiter de Lima. Um Direito Administrativo de Transição: o conceito de direi-
to administrativo na cultura jurídica da Primeira República Brasileira (1889-1930), in:
Direito, Estado e Sociedade, nº 58, jan.-jun. Rio de Janeiro: PUC-RJ, 2021, p. 422-459;
TEIXEIRA, Lívia Solana Pfuetzenreiter de Lima; GUANDALINI JR., Walter. Mitologias
Jurídicas do Estado Administrativo: crítica genealógica da noção de interesse público,
in: Revista Eletrônica do Curso de Direito da Universidade Federal de Santa Maria, v.
14, nº 2. Santa Maria: UFSM, 2019; e TEIXEIRA, Lívia Solana Pfuetzenreiter de Lima.
Discursos sobre o Interesse Público na Primeira República: análise da doutrina de direito
administrativo entre 1889-1930. São Paulo: Editora Dialética, 2021. Airton Seelaender
também analisa a questão, criticando com acidez a contínua ressignificação do passado
pelos administrativistas brasileiros: “se há algo que não falte ao Brasil, isso são autode-
clarados pais ou pioneiros da ciência do Direito Administrativo. Tivemos pelo menos
três candidatos a tal posição: o Visconde de Uruguai, no terceiro quartel do século XIX;
Viveiros de Castro, no início do século XX; e Themistocles Cavalcanti, décadas depois” –
SEELAENDER, Airton Cerqueira-Leite. O direito administrativo e a expansão do Estado
na Primeira República: notas preliminares a uma história da doutrina administrativista no
Brasil, in: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a. 180, nº 485, jan./abr.
Rio de Janeiro: IHGB, 2021, p. 165-202.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):197-232, jan./abr. 2022. 199


Walter Guandalini Junior

nistrativo em circulação no Brasil do século XIX contribuirá não apenas


para a maior compreensão do processo de formação da disciplina, mas
também para a avaliação do modo como ela se entrecruzava, sob a pers-
pectiva dos livros monográficos de caráter didático, com as mais relevan-
tes questões de seu tempo, inclusive a do processo de constituição de um
Estado Nacional brasileiro.

2. Os critérios de análise
Foram tomados como objeto de análise todos os livros monográficos
publicados no Brasil sobre o direito administrativo durante o século XIX7.
Como já se demonstrou8, trata-se de obras de maturidade, publicadas por
juristas consagrados após longas carreiras, sempre entre 40 e 60 anos de
idade; são, além disso, obras publicadas por acadêmicos especialistas,
que em sua maioria limitam sua produção bibliográfica somente a obras
de direito administrativo, o que é um importante indicador de sua dedica-
ção à construção da disciplina no país. Constituem, assim, a essência do
pensamento jurídico erudito acerca do direito administrativo no Brasil do
século XIX.

7  –  A lista de livros consultados foi produzida com base em pesquisa realizada nas bi-
bliotecas públicas do país, nas informações constantes de estudos já publicados sobre a
história do direito administrativo, e nas indicações bibliográficas das obras publicadas nos
séculos XIX e XX. Foram examinadas as seguintes obras: Direito Público e Análise da
Constituição do Império, publicada por José Antônio Pimenta Bueno (Marquês de São
Vicente) em 1857; Elementos de Direito Administrativo Brasileiro, publicada por Vicente
Pereira do Rego em 1857; Direito Administrativo Brasileiro, publicada por Prudêncio
Giraldes Tavares da Veiga Cabral em 1859; o Ensaio sobre o Direito Administrativo de
Paulino José Soares de Sousa (Visconde do Uruguai), publicado em 1862; os Estudos
Práticos sobre a Administração das Províncias no Brasil, também de Paulino José Soares
de Sousa (Visconde do Uruguai), publicado em 1865; o Excerto de Direito Administrativo
Pátrio de Francisco Maria de Souza Furtado de Mendonça, publicado em 1865; o Direito
Administrativo Brasileiro de Antônio Joaquim Ribas, publicado em 1866; e a Epítome de
Direito Administrativo de José Rubino de Oliveira, publicada em 1884.
8  –  GUANDALINI JR., Walter. As razões do direito administrativo na doutrina brasilei-
ra do século XIX (1857-1884), in: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
a. 180, nº 481, set./dez. Rio de Janeiro: IHGB, 2019, p. 219-254; e GUANDALINI JR.,
Walter. Raízes históricas do direito administrativo brasileiro: fontes do direito adminis-
trativo na doutrina brasileira do século XIX (1857-1884). Curitiba: Appris, 2019.

200 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):197-232, jan./abr. 2022.


Temas do Direito Administrativo na Doutrina Jurídica Brasileira do século
XIX: análise quantitativa (1857-1884)

As obras foram inicialmente submetidas à leitura preliminar para a


identificação dos principais temas abordados, então classificados em ca-
tegorias gerais e específicas de análise. Todos os livros foram em seguida
reexaminados, avaliando-se a quantidade de páginas de cada obra dedi-
cadas a cada uma das categorias gerais e específicas preestabelecidas,
perfazendo um total de 3.423 páginas analisadas. A pequena quantidade
de livros dedicados exclusivamente ao estudo do direito administrativo
no período permitiu a realização da contagem de forma manual, o que
tornou possível a avaliação qualitativa e contextual dos grandes temas
enfrentados, viabilizando que este estudo venha a ser complementado por
avaliação qualitativa dos conteúdos debatidos pelos juristas do período.

Um importante desafio enfrentado na construção das categorias de


análise foi o da definição dos critérios para a sua classificação, visto que
não há consenso integral entre os administrativistas do século XIX quanto
aos temas mais relevantes do direito administrativo brasileiro, nem quan-
to à sua sistematização racional. Isso não apenas acarreta importantes dis-
crepâncias entre os temas abordados pelos diversos autores, como também
gera divergências de classificação mesmo de temas centrais abordados
por todos eles – por exemplo com a inclusão de temas semelhantes em
capítulos diferentes, ou a sua abordagem em contextos e de perspectivas
distintas. Optou-se, nessas condições, por uma solução de compromisso
na classificação desses conteúdos em categorias: por um lado, respeitou-
-se a particularidade de temas abordados com exclusividade por juristas
específicos, sem forçar a sua inclusão artificial em macrocategorias com
as quais os próprios autores não enxergassem relações; por outro lado,
promoveu-se a inclusão de temas semelhantes em categorias comuns,
mesmo quando abordados em contextos distintos, remetendo-se a avalia-
ção dessas diferenças à análise qualitativa que será futuramente realizada
em complementação a este estudo . Buscou-se, com esse procedimento,
a preservação da racionalidade própria à ordem discursiva do período,
evitando-se o enquadramento anacrônico da doutrina administrativista do
século XIX em padrões e estruturas sistemáticas típicas do pensamento
jurídico contemporâneo.

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Walter Guandalini Junior

Os conteúdos identificados foram agrupados em categorias gerais e


específicas, de modo a permitir a avaliação quantitativa de sua frequência
na doutrina jus-administrativista do século XIX, da seguinte forma:

1. Administração: essa categoria geral inclui reflexões de natureza


predominantemente teórica e abstrata sobre o conceito, as características
e o funcionamento da administração pública brasileira. Foi subdividida
nas seguintes categorias específicas:

a.) Conceito de administração: refere-se às reflexões teóricas sobre


a natureza da administração, incluindo reconstruções históricas, abs-
trações filosóficas, descrições empíricas e interpretações dogmáticas
acerca do tema.

b.) Funcionamento e agentes: refere-se a reflexões teóricas acerca do


funcionamento da administração pública em abstrato, mas também
acerca do seu funcionamento empírico no Brasil e em outros países
do Ocidente. Inclui avaliações sobre as características e a atuação
dos agentes administrativos que promovem a operação da máquina
administrativa estatal.

c.) Atos administrativos: refere-se à construção teórica e doutriná-


ria que busca a construção de um conceito de ato administrativo,
incluindo também reflexões práticas sobre a realidade desses atos
praticados pela administração pública no Brasil e em outros países
do Ocidente.

2. Descentralização: as reflexões sobre a descentralização admi-


nistrativa buscam em primeiro lugar descrever a divisão territorial do
Império, mas também compreender o modo como se estabelecem con-
cretamente as relações entre as partes e o todo, especialmente em função
das alterações realizadas pelo Ato Adicional de 1834. Subdivide-se nas
seguintes categorias específicas:

202 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):197-232, jan./abr. 2022.


Temas do Direito Administrativo na Doutrina Jurídica Brasileira do século
XIX: análise quantitativa (1857-1884)

a.) Divisão territorial do Império: descreve a subdivisão territorial


do Império e avalia as competências, funções e relações das diversas
partes entre si e com a administração central.

b.) Ato Adicional: avalia os impactos do Ato Adicional de 1834 na


organização administrativa do Império e analisa criticamente as suas
vantagens e desvantagens.

3. Administração central: essa categoria geral se refere aos es-


forços de compreensão das características abstratas e do funcionamento
concreto da administração central do Império do Brasil, avaliando a sua
natureza e a do Poder Executivo, e os seus principais agentes: o impera-
dor, os ministros e o conselho de Estado. Foi subdividida nas seguintes
categorias específicas:

a.) Natureza da administração central: aborda o conceito e a nature-


za da administração central do Império, incluindo reflexões teóricas
sobre a natureza e os benefícios da centralização ou descentralização
administrativa.

b.) Conselho de Estado: descreve o conselho de Estado, o seu fun-


cionamento concreto, a sua importância na instituição de um direito
administrativo brasileiro e avalia possibilidades de aperfeiçoamento.

c.) Ministros: examina o papel desempenhado pelos ministros como


integrantes do Poder Executivo, agentes imediatos do poder central
e chefes das grandes divisões da administração pública, avaliando a
sua competência, atribuições e responsabilidades.

d.) Imperador: examina a natureza jurídica da figura do imperador


como Chefe do Poder Executivo, avaliando a sua competência, atri-
buições e responsabilidades no desempenho da função administra-
tiva.

e.) Características do Poder Executivo: apresenta a natureza jurídi-


ca do Poder Executivo, as suas funções e os seus objetivos sociais,
em relação com o direito administrativo.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):197-232, jan./abr. 2022. 203


Walter Guandalini Junior

4. Administração provincial: essa categoria geral se refere aos es-


forços de compreensão das características abstratas e do funcionamento
concreto da administração das províncias do Brasil, levando-se em consi-
deração os seus principais agentes: o presidente de província e as assem-
bleias provinciais. Foi subdividida nas seguintes categorias específicas:

a.) Noções gerais: reflexões gerais de caráter teórico sobre a natu-


reza, o funcionamento e as finalidades da administração provincial,
em suas relações com a administração central do Império.

b.) Presidente: conceitua a figura jurídica do presidente de provín-


cia, examinando as suas competências e atribuições e a sua relação
com a administração central e com os poderes locais, especialmente
as assembleias provinciais.

c.) Assembleias provinciais: examina a natureza jurídica das assem-


bleias provinciais, suas finalidades e relações com o presidente e a
administração central.

d.) Atribuições: examina as atribuições da administração provincial,


em suas relações com as atribuições da administração central do
Império.

5. Administração municipal: essa categoria geral se refere aos es-


forços de compreensão das características abstratas e do funcionamento
concreto da administração dos municípios, levando-se em consideração
os seus principais agentes: as câmaras municipais e os juízes municipais.
Foi subdividida nas seguintes categorias específicas:

a.) Câmaras Municipais: discorre sobre as atribuições e competên-


cias das Câmaras Municipais.

b.) Juízes municipais: avalia a história e as atribuições dos juízes


municipais.

c.) Reforma municipal: apresenta propostas de reforma da adminis-


tração municipal.

204 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):197-232, jan./abr. 2022.


Temas do Direito Administrativo na Doutrina Jurídica Brasileira do século
XIX: análise quantitativa (1857-1884)

6. Administrados: essa categoria geral busca compreender as ca-


racterísticas das pessoas sujeitas à administração pública, sob essa pers-
pectiva definidas como “administrados”. Foi subdividida nas seguintes
categorias específicas:

a.) Administrados: avalia o conceito jurídico de “administrado”, em


sua relação com a atividade administrativa.

b.) Nacionais: conceitua juridicamente os “nacionais”, examinando


as suas relações com a administração pública brasileira.

c.) Estrangeiros: conceitua juridicamente os “estrangeiros”, exami-


nando as suas relações com a administração pública brasileira.

d.) Escravos: conceitua juridicamente os “escravos”, examinando as


suas relações com a administração pública brasileira.

7. Atribuições políticas: em meio aos debates sobre as atribuições


administrativas do governo brasileiro aparecem também reflexões impor-
tantes acerca de suas atribuições políticas e governamentais.

a.) Atribuições governamentais: a categoria das “atribuições polí-


ticas” não foi subdividida nesta análise, mantendo-se a referência
geral à reflexão sobre as atribuições políticas do governo brasileiro
– em suas relações com os poderes executivo, legislativo, judicial e
espiritual, nas relações internacionais, em relação à segurança inte-
rior, ao emprego da força pública e à prerrogativa de conferir em-
pregos e títulos.

8. Atribuições administrativas: nesta categoria entram as refle-


xões realizadas pela doutrina de direito administrativo acerca das atribui-
ções administrativas do Estado brasileiro. Foi dividida nas subcategorias:

a.) Atribuições dos ministérios: inclui a análise das atribuições exe-


cutivas específicas de cada ministério do Estado brasileiro.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):197-232, jan./abr. 2022. 205


Walter Guandalini Junior

b.) Atribuições administrativas: examina as diversas atribuições


administrativas do Estado brasileiro em função de sua natureza e
finalidades, sem considerar as competências específicas de cada mi-
nistério.

9. Direito administrativo: esta categoria compreende reflexões de


caráter teórico acerca do conceito e da natureza do direito administrativo,
em geral, e do direito administrativo brasileiro, em particular.

a.) Conceito e natureza: a categoria do “direito administrativo” não


foi subdividida nesta análise, uma vez que a doutrina administrati-
vista se limita, em suas reflexões, a examinar o conceito e a natureza
da disciplina e do ordenamento jurídico de direito administrativo.

10. Jurisdição administrativa: esta categoria compreende reflexões


sobre a natureza e o funcionamento concreto da jurisdição administrativa
brasileira.

a.) Jurisdição administrativa: a categoria da “jurisdição administra-


tiva” não foi subdividida nesta análise. Inclui explicações sobre o
processo administrativo em geral, e sobre a jurisdição graciosa e a
jurisdição contenciosa em particular.

Estabelecidas as categorias com base nas quais se realizou o exame


das obras selecionadas, podemos passar à apresentação dos resultados
extraídos da análise de conteúdo.

3. Temas do Direito Administrativo brasileiro no século XIX9


a.) José Antônio Pimenta Bueno – Direito Público Brasileiro e
Análise da Constituição do Império (1857)

9  –  Ao contextualizar as obras e autores examinados este capítulo recupera sínteses bio-


gráficas já apresentadas anteriormente, complementando-as com a análise específica do
objeto da presente pesquisa – os temas do direito administrativo brasileiro no século XIX.
Ver GUANDALINI JR., Walter. As razões do direito administrativo na doutrina brasileira
do século XIX (1857-1884), in: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a.
180, nº 481, set./dez. Rio de Janeiro: IHGB, 2019, p. 225 e segs.

206 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):197-232, jan./abr. 2022.


Temas do Direito Administrativo na Doutrina Jurídica Brasileira do século
XIX: análise quantitativa (1857-1884)

José Antônio Pimenta Bueno, o Marquês de São Vicente, é um dos


mais importantes juristas do Império. Nascido em 1803, durante toda a
sua vida desempenhou importantes funções públicas – foi presidente de
província, juiz, chefe de polícia, desembargador, ministro do STJ, depu-
tado geral, ministro, senador, conselheiro de Estado e presidente do con-
selho de ministros. Faleceu em 1872 aos 75 anos, deixando extensa obra
jurídica sobre os mais diversos campos do direito.

A obra analisada neste texto – Direito Público Brasileiro e Análise


da Constituição do Império (1857), foi publicada em 568 páginas distri-
buídas em dois volumes, que em nove títulos examinam a Constituição
Política do Império do Brasil. O seu título VI sobre o Poder Executivo é
a primeira obra jurídica nacional a tratar explicitamente sobre o direito
administrativo, embora não seja este o seu tema exclusivo; este título tem
91 páginas dedicadas aos seguintes temas:
Quadro 1 – Direito Público Brasileiro (Pimenta Bueno, 1857)
Categorias Gerais Categorias Específicas Páginas Percentual Total
conceito de administração 0 0,00%
Administração funcionamento e agentes 0 0,00% 0,00%
atos administrativos 0 0,00%
divisão territorial do Império 0 0,00%
Descentralização 0,00%
ato adicional 0 0,00%
natureza 4 2,53%
Imperador 5 3,16%
Administração Central Poder Executivo 6 3,80% 65,82%
Conselho de Estado 47 29,75%
Ministros 42 26,58%
noções gerais 1 0,63%
Presidente 6 3,80%
Administração Provincial 4,43%
Assembleias Provinciais 0 0,00%
atribuições 0 0,00%
Câmaras Municipais 4 2,53%
Administração Municipal juízes municipais 0 0,00% 2,53%
reforma municipal 0 0,00%
administrados 0 0,00%
nacionais 0 0,00%
Administrados 0,00%
estrangeiros 0 0,00%
escravos 0 0,00%

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):197-232, jan./abr. 2022. 207


Walter Guandalini Junior

Atribuições Políticas atribuições governamentais 43 27,22% 27,22%


Atribuições Administra- atribuições dos ministérios 0 0,00%
0,00%
tivas atribuições administrativas 0 0,00%
Direito Administrativo conceito e natureza 0 0,00% 0,00%
Jurisdição Administrativa jurisdição administrativa 0 0,00% 0,00%

Como se vê, a reflexão apresentada por Pimenta Bueno dá prioridade


à análise da estrutura da administração central, que ocupa 65,82% das pá-
ginas dedicadas ao direito administrativo. Sobressaem, a esse respeito, as
subcategorias do conselho de Estado e dos ministros, que correspondem
respectivamente a 29,75% e 26,58% das páginas analisadas.

A importância dada ao tema da administração central parece ser


efeito de três fatores: o primeiro, mais evidente, é o fato de se tratar de
obra em sua essência dedicada ao direito constitucional, o que justifica a
importância dada à avaliação da administração central mesmo no título
específico sobre o direito administrativo; o segundo é a própria impor-
tância dada à administração central no contexto da organização política
imperial, que antepunha às administrações locais e provinciais a ativi-
dade governamental realizada pelo Império; mas a natureza da matéria
tratada e as circunstâncias do contexto político não podem obscurecer um
terceiro fator, fundamental para se compreender o papel desempenhado
pelo direito administrativo no Brasil do século XIX: o fato de que, em
sua gênese, o direito administrativo brasileiro não desempenhava funções
propriamente administrativas, mas a função constituinte de fundação e
estruturação do Estado Nacional brasileiro10.

Essa interpretação será confirmada durante a análise das demais


obras selecionadas, mas também pelo próprio Pimenta Bueno, que elege
como segundo assunto mais importante do único título de sua obra dedi-
cado ao direito administrativo o tema das atribuições políticas e gover-
namentais do Poder Executivo – que consome 27,22% das páginas anali-
sadas. Temos, assim, 93,04% das páginas selecionadas dedicadas à des-
crição da estrutura, funcionamento e atribuições da administração central

10  –  Como já se demonstrou em GUANDALINI JR., Walter. História do Direito Admi-


nistrativo Brasileiro: Formação (1821-1895). Curitiba: Juruá, 2016, p. 253.

208 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):197-232, jan./abr. 2022.


Temas do Direito Administrativo na Doutrina Jurídica Brasileira do século
XIX: análise quantitativa (1857-1884)

do Império do Brasil, com os 6,96% restantes dedicados à estrutura da


administração provincial (4,43%, com ênfase no presidente de província)
e municipal (2,53%, inteiramente dedicadas à Câmara Municipal).

Outros temas de direito administrativo em debate no século XIX não


são abordados pelo autor, o que indica o seu esforço em de fato contribuir,
doutrinariamente, para a constituição de uma estrutura administrativa e
de governo para o Estado Imperial – com prioridade para a administração
central, mas alguma atenção também dedicada às administrações provin-
cial e municipal.

b.) Vicente Pereira do Rego – Elementos de Direito Administrativo


Brasileiro (1857)

João Vicente Pereira do Rego nasceu em 1812, formou-se bacha-


rel em 1840 e em 1855 se tornou professor da Faculdade de Direito
do Recife, onde assumiu a cadeira de “Direito Administrativo Pátrio”.
Em 1857, mesmo ano em que faleceu, publicou a sistematização escri-
ta das suas aulas, que se tornou a primeira obra de direito administra-
tivo publicada na América Latina e foi intitulada Elementos de Direito
Administrativo Brasileiro, com 235 páginas – tendo sido aprovada para
uso nas Faculdades de Direito em 1864. É já conhecida a crítica ao livro
feita pelo Visconde de Uruguai, que o considerava excessivamente resu-
mido e dependente do modelo francês11.

De fato, outro trabalho já demonstrou a predominância de autores


franceses entre as referências teóricas do autor12, o que se reflete também
na distribuição dos temas examinados: de forma discrepante da maior
parte das obras sobre o direito administrativo publicadas no Brasil do
século XIX, Pereira do Rego dedica 67,38% da sua obra à análise do que
seriam as supostas atribuições administrativas do Estado brasileiro – a ri-
11  –  SOUSA, Paulino José Soares. Ensaio sobre o Direito Administrativo. Rio de Janei-
ro: Typographia Nacional, 1862, p. XIII.
12  –  Correspondem a 87,76% de todas as citações doutrinárias realizadas – GUANDA-
LINI JR., Walter. As razões do direito administrativo na doutrina brasileira do século XIX
(1857-1884), in: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a. 180, nº 481,
set./dez. Rio de Janeiro: IHGB, 2019, p. 229.

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Walter Guandalini Junior

gor virtualmente inexistentes na prática, como a disciplina da agricultura,


alinhamento urbano, caça, esgotamento de pântanos, expropriação por
utilidade pública, servidões militares, minas, pesca, águas e florestas, vias
de comunicação, fábricas, marcas e patentes, monopólios de Estado, bens
públicos, cobrança de impostos, instituições de socorros públicos etc.
Quadro 2 – Elementos de Direito Administrativo Brasileiro (Pereira do Rego, 1857)
Categorias Gerais Categorias Específicas Páginas Percentual Total
conceito de administração 8 1,89%
Administração funcionamento e agentes 0 0,00% 1,89%
atos administrativos 0 0,00%
divisão territorial do Império 0 0,00%
Descentralização 0,00%
ato adicional 0 0,00%
natureza 0 0,00%
Imperador 8 1,89%
Administração Central Poder Executivo 0 0,00% 14,66%
Conselho de Estado 36 8,51%
Ministros 18 4,26%
noções gerais 6 1,42%
Presidente 10 2,36%
Administração Provincial 6,62%
Assembleias Provinciais 12 2,84%
atribuições 0 0,00%
Câmaras Municipais 17 4,02%
Administração Municipal juízes municipais 6 1,42% 5,44%
reforma municipal 0 0,00%
administrados 0 0,00%
nacionais 0 0,00%
Administrados 0,00%
estrangeiros 0 0,00%
escravos 0 0,00%
Atribuições Políticas atribuições governamentais 0 0,00% 0,00%
atribuições dos ministérios 0 0,00%
Atribuições Administrativas 67,38%
atribuições administrativas 285 67,38%
Direito Administrativo conceito e natureza 1 0,24% 0,24%
Jurisdição Administrativa jurisdição administrativa 16 3,78% 3,78%

A dependência da doutrina estrangeira, provavelmente resultado


do caráter embrionário da disciplina de direito administrativo na cultu-
ra jurídica nacional (mas possivelmente também efeito das limitações
do próprio autor), faz com que a distribuição temática da obra reflita as
prioridades da doutrina francesa do período – que de fato estava mais
preocupada em compreender a atividade interventiva da administração

210 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):197-232, jan./abr. 2022.


Temas do Direito Administrativo na Doutrina Jurídica Brasileira do século
XIX: análise quantitativa (1857-1884)

pública na vida social francesa. Com isso, Pereira do Rego fecha os olhos
à realidade brasileira e se torna incapaz de promover um diálogo efetivo
entre a inovadora doutrina europeia do direito administrativo e as peculia-
res necessidades locais, limitando-se a, em vez de traduzir, ressignificar
e compatibilizar, simplesmente transpor à língua portuguesa os temas e
preocupações típicos da doutrina jurídica europeia.

Ainda assim parece digno de nota que o segundo tema mais impor-
tante na obra de Pereira do Rego também seja o tema da Administração
Central, que ocupa 14,66% das suas páginas – dedicadas ao Conselho de
Estado (8,51%), aos ministros (4,26%) e ao imperador (1,89%). Mesmo
sob a profunda influência temática da doutrina francesa a realidade local
se impõe, manifestando-se a necessidade de instituição de uma estrutura
jurídica para a administração central do Império – mas também para a
administração provincial (6,62%) e municipal (5,44%).

Algumas páginas são dedicadas também à jurisdição administrati-


va (3,78%) e a reflexões teóricas acerca do conceito de administração
(1,89%) e da natureza do direito administrativo (0,24%).

c.) Prudêncio Giraldes Tavares da Veiga Cabral – Direito


Administrativo Brasileiro (1859)

Prudêncio Giraldes Tavares da Veiga Cabral nasceu em 1800, for-


mou-se em Coimbra e após retornar ao Brasil atuou como juiz de fora, ou-
vidor de Comarca, auditor geral do Exército, desembargador e conselheiro
de Estado. Foi professor de Direito Civil na Faculdade de Direito de São
Paulo e diretor da instituição, tendo falecido em 1862. Em 1859 publicou
o seu Direito Administrativo Brasileiro, redigido em 541 páginas com o
objetivo de contribuir para a instituição de um Código Administrativo
Brasileiro, com projetos de reformas para o melhoramento das adminis-
trações provinciais e municipais.

Assim como Pereira do Rego, também Veiga Cabral é profunda-


mente influenciado pela doutrina francesa13 e dedica 68,81% de sua obra
13  –  Que corresponde a 82,53% das citações doutrinárias de seu trabalho – GUANDA-

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):197-232, jan./abr. 2022. 211


Walter Guandalini Junior

à análise das (praticamente inexistentes) atribuições administrativas do


Estado brasileiro – domínio público, impostos, polícia, força militar, ser-
vidões, diplomacia, direitos políticos, deveres profissionais, instituições
de progresso intelectual e moral, instituições para o desenvolvimento dos
interesses materiais, mineração, obras públicas, desapropriação, estradas
de ferro, navegação, correios, telégrafos, etc.
Quadro 3 – Direito Administrativo Brasileiro (Veiga Cabral, 1859)
Categorias Gerais Categorias Específicas Páginas Percentual Total
conceito de administração 0 0,00%
Administração funcionamento e agentes 0 0,00% 0,00%
atos administrativos 0 0,00%
divisão territorial do Império 8 1,43%
Descentralização 1,43%
ato adicional 0 0,00%
natureza 8 1,43%
Imperador 0 0,00%
Administração Central Poder Executivo 19 3,39% 11,95%
Conselho de Estado 40 7,13%
Ministros 0 0,00%
noções gerais 0 0,00%
Presidente 6 1,07%
Administração Provincial 3,03%
Assembleias Provinciais 11 1,96%
atribuições 0 0,00%
Câmaras Municipais 13 2,32%
Administração Municipal juízes municipais 0 0,00% 8,02%
reforma municipal 32 5,70%
administrados 0 0,00%
nacionais 0 0,00%
Administrados 0,00%
estrangeiros 0 0,00%
escravos 0 0,00%
Atribuições Políticas atribuições governamentais 0 0,00% 0,00%
atribuições dos ministérios 0 0,00%
Atribuições Administrativas 68,81%
atribuições administrativas 386 68,81%
Direito Administrativo conceito e natureza 12 2,14% 2,14%
Jurisdição Administrativa jurisdição administrativa 26 8,66% 8,66%

E novamente repetindo a distribuição temática de Pereira do Rego,


Veiga Cabral também elege como segundo tema mais importante da sua
obra a organização da Administração Central (11,95%), em especial do
LINI JR., Walter. As razões do direito administrativo na doutrina brasileira do século XIX
(1857-1884), in: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a. 180, nº 481,
set./dez. Rio de Janeiro: IHGB, 2019, p. 232.

212 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):197-232, jan./abr. 2022.


Temas do Direito Administrativo na Doutrina Jurídica Brasileira do século
XIX: análise quantitativa (1857-1884)

conselho de Estado (7,13%). A jurisdição administrativa consome 8,66%


da obra e o tema da administração municipal ocupa 8,02% – mais do que
a administração provincial, o que se explica pelo interesse do autor em
propor uma reforma da organização municipal (tema que ocupa, sozinho,
5,70% da obra analisada).

A análise de conteúdo parece reiterar a dependência temática que a


doutrina administrativista brasileira mantém, em seus primeiros anos de
existência, da doutrina administrativista francesa. A ênfase em assuntos
pouco congruentes com as especificidades da realidade brasileira parece
indicar a dificuldade de nossos primeiros administrativistas em promove-
rem um diálogo enriquecedor entre a doutrina estrangeira e as necessida-
des do país; ainda muito presos a parâmetros teóricos estrangeiros, não
se mostram capazes de dirigir o olhar às circunstâncias locais, reciclando
fórmulas, bordões teóricos e chavões importados de pouca ou nenhuma
conexão com a realidade nacional.

Deve-se reconhecer, contudo, que mesmo em meio à profusão de


“ideias fora do lugar” os fatos se impõem, e reaparecem com relativa im-
portância as reflexões específicas acerca da estruturação e funcionamento
da administração central, voltando-se o olhar do direito administrativo à
mais urgente e importante tarefa de constituição de um Estado Nacional
brasileiro.

d.) Paulino José Soares de Sousa – Ensaio sobre o Direito


Administrativo (1862)

Paulino José Soares de Sousa, o Visconde do Uruguai, nasceu em


1807 e estudou Direito em Coimbra e São Paulo, tendo concluído a sua
formação em 1831. Atuou como juiz de fora, ouvidor de comarca, in-
tendente geral de polícia, deputado, ministro, senador, desembargador,
conselheiro de estado e ministro do STJ. Faleceu em 1866.

A obra de Sousa representa um ponto de virada na temática da dou-


trina de direito administrativo do Brasil imperial. O seu Ensaio sobre o
Direito Administrativo foi publicado em dois volumes de 597 páginas no

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):197-232, jan./abr. 2022. 213


Walter Guandalini Junior

total, e é sem sombra de dúvida a mais complexa e sofisticada obra de


direito administrativo publicada no Brasil do século XIX.

A primeira diferença a sobrelevar em relação às obras anteriores é a


redução da influência da doutrina francesa (que apesar de ainda corres-
ponder a 72% das citações doutrinárias não se mostra tão decisiva na de-
finição dos temas e problemas analisados), com o aumento proporcional
da importância dada à realidade das circunstâncias locais na compreen-
são das características do direito administrativo (30,27% das citações)14.
A atenção concedida à realidade nacional inverte o grau de importância
atribuído aos principais temas analisados, sobressaindo o esforço de com-
preensão da natureza e funcionamento da administração central, ao qual
se dedica 40,10% da obra (20,14% dedicados às reflexões teóricas acerca
da natureza da administração central e 19,97% dedicados à análise da
atuação do conselho de Estado).
Quadro 4 – Ensaio sobre o Direito Administrativo (Soares de Sousa, 1862)
Categorias Gerais Categorias Específicas Páginas Percentual Total
conceito de administração 10 1,71%
Administração funcionamento e agentes 29 4,95% 6,66%
atos administrativos 0 0,00%
divisão territorial do Império 15 2,56%
Descentralização 2,56%
ato adicional 0 0,00%
Natureza 118 20,14%
Imperador 0 0,00%
Administração Central Poder Executivo 0 0,00% 40,10%
Conselho de Estado 117 19,97%
Ministros 0 0,00%
noções gerais 0 0,00%
Presidente 0 0,00%
Administração Provincial 0,00%
Assembleias Provinciais 0 0,00%
atribuições 0 0,00%
Câmaras Municipais 0 0,00%
Administração Municipal juízes municipais 0 0,00% 0,00%
reforma municipal 0 0,00%

14  –  Conforme GUANDALINI JR., Walter. As razões do direito administrativo na dou-


trina brasileira do século XIX (1857-1884), in: Revista do Instituto Histórico e Geográfi-
co Brasileiro, a. 180, nº 481, set./dez. Rio de Janeiro: IHGB, 2019, p. 235.

214 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):197-232, jan./abr. 2022.


Temas do Direito Administrativo na Doutrina Jurídica Brasileira do século
XIX: análise quantitativa (1857-1884)

administrados 0 0,00%
nacionais 0 0,00%
Administrados 0,00%
estrangeiros 0 0,00%
escravos 0 0,00%
Atribuições Políticas atribuições governamentais 163 27,82% 27,82%
atribuições dos ministérios 0 0,00%
Atribuições Administrativas 0,00%
atribuições administrativas 0 0,00%
Direito Administrativo conceito e natureza 38 6,48% 6,48%
Jurisdição Administrativa jurisdição administrativa 96 16,38% 16,38%

O segundo tema mais importante é, assim como já se verificara na


obra de Pimenta Bueno, o das atribuições políticas do governo imperial
brasileiro (27,82%). O fato pode parecer surpreendente, especialmente ao
se considerar que, diferentemente do que ocorrera com Pimenta Bueno,
trata-se de uma obra exclusivamente dedicada ao direito administrativo, e
não de um livro de direito constitucional. Deve-se compreender, contudo,
que a importância dada às funções de governo em sua obra não decorre
somente de uma indevida confusão teórica entre os temas tradicionais do
direito administrativo e os debates típicos de direito constitucional, como
se poderia supor para a obra de Pimenta Bueno; ela é resultado de uma
confusão muito real verificada nas funções práticas desempenhadas pelo
direito administrativo brasileiro do período, que ao chegar ao território
nacional é ressignificado para cumprir a função constituinte-soberana de
fundação e organização da estrutura do nascente Estado brasileiro15.

Autores como Pereira do Rego e Veiga Cabral, pouco atentos às cir-


cunstâncias específicas da realidade brasileira16, parecem contentar-se em
transpor ao território nacional as categorias, instituições e os conceitos
típicos da administração disciplinar francesa, talvez na expectativa de que
o passar do tempo e o trabalho da doutrina jurídica naturalmente condu-
15  –  Como já se mencionou anteriormente, a tese é melhor desenvolvida e demonstrada
em GUANDALINI JR., Walter. História do Direito Administrativo Brasileiro: Formação
(1821-1895). Curitiba: Juruá, 2016; e GUANDALINI JR., Walter. A tradução do conceito
de direito administrativo pela cultura jurídica brasileira do século XIX, in: Revista da
Faculdade de Direito da UFMG, nº 74. Belo Horizonte: UFMG, 2019, p. 473-498.
16  –  Como se verifica da análise das referências por eles empregadas – GUANDALI-
NI JR., Walter. As razões do direito administrativo na doutrina brasileira do século XIX
(1857-1884), in: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a. 180, nº 481,
set./dez. Rio de Janeiro: IHGB, 2019, p. 219-254.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):197-232, jan./abr. 2022. 215


Walter Guandalini Junior

zissem a administração pública brasileira ao mesmo estágio; mas Pimenta


Bueno e Paulino de Sousa, magistrados experientes, políticos maduros,
homens públicos no mais amplo sentido da palavra, não cometem o mes-
mo erro: dirigindo o olhar atento às necessidades e peculiaridades da rea-
lidade nacional, são capazes de discernir os temas mais importantes para
nós em meio às preocupações europeias; e de distingui-los dos demais,
conferindo-lhes mais atenção justamente por perceber a sua importância
para a necessária constituição do nosso Estado Nacional e a adequada
organização do nosso direito administrativo.

Não por outro motivo o terceiro tema mais importante é justamente


o da organização da jurisdição administrativa (16,38%), seguido de longe
pelos temas teóricos da natureza da administração (6,66%), do concei-
to de direito administrativo (6,48%) e da divisão territorial do império
(2,56%).

e.) Paulino José Soares de Sousa – Estudos Práticos sobre a


Administração das Províncias no Brasil (1865)

Paulino de Sousa é o único autor brasileiro do século XIX a publicar


duas obras sobre o direito administrativo. Enquanto o Ensaio possui um
caráter mais teórico, buscando refletir sobre as características do direito
administrativo no país, os seus Estudos Práticos sobre a Administração
das Províncias no Brasil (1865) têm um viés bastante prático, dedicando-
-se principalmente à questão das relações entre a administração provin-
cial e a administração central a partir das alterações realizadas pelo Ato
Adicional de 1834 – que apesar das três décadas desde sua aprovação
ainda suscitava dificuldades administrativas e problemas jurídicos.

O livro é dividido em dois volumes com 877 páginas no total, e se


apresenta como obra de continuação ao Ensaio – enquanto o primeiro
livro é dedicado aos “rudimentos da ciência”, o segundo pretende exami-
nar questões práticas que possam servir de “guia aos que se ocupam da
administração17”.
17  –  SOUSA, Paulino José Soares. Ensaio sobre o Direito Administrativo. Rio de Janei-
ro: Typographia Nacional, 1862, p. X e XIX.

216 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):197-232, jan./abr. 2022.


Temas do Direito Administrativo na Doutrina Jurídica Brasileira do século
XIX: análise quantitativa (1857-1884)

A natureza e os objetivos da obra explicam a enorme discrepância


verificada entre os seus temas principais e os examinados nas demais
obras publicadas no período: 96,81% do texto é dedicado à administração
provincial, especialmente às suas atribuições (82,25%) e à atuação das
assembleias provinciais (14,56%).
Quadro 5 – Estudos Práticos sobre a Administração das Províncias (Soares de Sousa, 1865)
Categorias Gerais Categorias Específicas Páginas Percentual Total
conceito de administração 0 0,00%
Administração funcionamento e agentes 0 0,00% 0,00%
atos administrativos 0 0,00%
divisão territorial do Império 0 0,00%
Descentralização 3,19%
ato adicional 28 3,19%
Natureza 0 0,00%
Imperador 0 0,00%
Administração Central Poder Executivo 0 0,00% 0,00%
Conselho de Estado 0 0,00%
Ministros 0 0,00%
noções gerais 0 0,00%
Presidente 0 0,00%
Administração Provincial 96,81%
Assembleias Provinciais 128 14,56%
Atribuições 723 82,25%
Câmaras Municipais 0 0,00%
Administração Municipal juízes municipais 0 0,00% 0,00%
reforma municipal 0 0,00%
Administrados 0 0,00%
Nacionais 0 0,00%
Administrados 0,00%
Estrangeiros 0 0,00%
Escravos 0 0,00%
Atribuições Políticas atribuições governamentais 0 0,00% 0,00%
atribuições dos ministérios 0 0,00%
Atribuições Administrativas 0,00%
atribuições administrativas 0 0,00%
Direito Administrativo conceito e natureza 0 0,00% 0,00%
Jurisdição Administrativa jurisdição administrativa 0 0,00% 0,00%

Apresenta-se também alguma reflexão acerca da descentralização e


dos impactos do ato adicional (3,19%), mas não são enfrentados quais-
quer temas teóricos relacionados à natureza, às atribuições ou às funções
desempenhadas pelo direito administrativo.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):197-232, jan./abr. 2022. 217


Walter Guandalini Junior

Como já se demonstrou em Guandalini18, Sousa segue em toda a


obra a mesma estrutura argumentativa: inicia os capítulos por exposição
da legislação constitucional sobre a questão em análise, avaliando os im-
pactos do ato adicional; apresenta leis provinciais que tenham pretendido
regular a questão, expondo eventuais antinomias em relação à legislação
central; examina a posição do conselho de Estado sobre o tema e o modo
como foi solucionado o conflito. A estrutura cíclica é preenchida por re-
flexões teóricas e práticas sobre a natureza administrativa, as característi-
cas e o funcionamento do Estado brasileiro.

As especificidades da obra em relação às demais publicadas no pe-


ríodo talvez inviabilizem uma comparação mais direta, mas demonstram
a riqueza e a variedade do pensamento jurídico-administrativo brasileiro
do século XIX, e o modo como os debates teóricos se articulavam com
os problemas práticos cotidianamente enfrentados pelos agentes da ad-
ministração.

f.) Francisco Maria de Souza Furtado de Mendonça – Excerto de


Direito Administrativo Pátrio (1865)

Francisco Maria de Souza Furtado de Mendonça nasceu em Angola,


em 1812. Foi professor da Faculdade de Direito de São Paulo, delegado
de polícia e bibliotecário da Academia de Direito. Em 1856 assumiu a
disciplina de direito administrativo e em 1865 publicou o seu Excerto de
Direito Administrativo Pátrio, que deveria servir como compêndio para
as suas aulas. Aposentou-se em 1882 e faleceu em 1890.

O Excerto tem 191 páginas, e os seus conteúdos dão continuidade


às tendências inauguradas por Paulino de Sousa: o tema mais importante
continua a ser o da administração central (29,38% da obra), mas agora ele
é seguido de perto pelos temas da administração provincial (28,87%) e da
administração municipal (14,95%). O esforço realizado por Sousa (1865)
para a transposição das reflexões teórico-abstratas para a prática da admi-
18 – GUANDALINI JR., Walter. Raízes históricas do direito administrativo brasileiro:
fontes do direito administrativo na doutrina brasileira do século XIX (1857-1884). Curi-
tiba: Appris, 2019, p. 52.

218 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):197-232, jan./abr. 2022.


Temas do Direito Administrativo na Doutrina Jurídica Brasileira do século
XIX: análise quantitativa (1857-1884)

nistração local parece ter surtido efeito, e Furtado de Mendonça distribui


melhor o esforço de análise da estrutura administrativa do Estado brasi-
leiro, dedicando 73,20% de sua obra à compreensão da estrutura e funcio-
namento dos corpos administrativos nos três níveis do governo imperial.
Quadro 6 – Excerto de Direito Administrativo Pátrio (Furtado de Mendonça, 1865)
Categorias Gerais Categorias Específicas Páginas Percentual Total
conceito de administração 7 3,61%
Administração funcionamento e agentes 17 8,76% 12,37%
atos administrativos 0 0,00%
divisão territorial do Império 13 6,70%
Descentralização 6,70%
ato adicional 0 0,00%
natureza 6 3,09%
Imperador 9 4,64%
Administração Central Poder Executivo 0 0,00% 29,38%
Conselho de Estado 16 8,25%
Ministros 26 13,40%
noções gerais 0 0,00%
Presidente 12 6,19%
Administração Provincial 28,87%
Assembleias Provinciais 44 22,68%
atribuições 0 0,00%
Câmaras Municipais 29 14,95%
Administração Municipal juízes municipais 0 0,00% 14,95%
reforma municipal 0 0,00%
administrados 0 0,00%
nacionais 0 0,00%
Administrados 0,00%
estrangeiros 0 0,00%
escravos 0 0,00%
Atribuições Políticas atribuições governamentais 0 0,00% 0,00%
atribuições dos ministérios 0 0,00%
Atribuições Administrativas 0,00%
atribuições administrativas 0 0,00%
Direito Administrativo conceito e natureza 15 7,73% 7,73%
Jurisdição Administrativa jurisdição administrativa 0 0,00% 0,00%

As atribuições administrativas são novamente ignoradas, mas agora


também o são as atribuições políticas – indicativo de que nesse momento
o direito administrativo brasileiro parece estar adquirindo maior autono-
mia científica, e começando a superar os vínculos que até então mantinha
com o direito constitucional e a atuação política do governo imperial. Os
dados parecem confirmar cronologia anteriormente proposta, que sugeria
o ano de 1865 como um ponto de virada na história do direito administra-

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):197-232, jan./abr. 2022. 219


Walter Guandalini Junior

tivo brasileiro: a partir dessa data a doutrina supera a sua primeira fase de
formação e ingressa em uma segunda fase de consolidação, reduzindo a
atenção dada à legitimação do poder soberano exercido pelo imperador e
se concentrando com mais atenção no estudo da estrutura do Estado e das
competências dos órgãos estatais.

PERÍODO FASE DESCRIÇÃO


Função constituinte-soberana de função do Estado
1854-1865 Formação brasileiro, atuando como fundamento de legitimida-
de do poder soberano exrcido pelo Imperador.
Função de consolidação da autoridade estatal, de-
1865-1891 Consolidação bruçando-se sobre o estudo da estrutura do Estado
e das competências dos órgãos estatais.
Função disciplinar, regulando as intervenções de po-
1891-1895 Disciplinarização
licia que o Estado realiza sobre a sociedade.

Quadro 5 – Fasese da Ciência do Direito Administrativo Brasileiro no século XIX.


Fonte: tabela produzida por Guandalini Jr.

Ganham importância, então, reflexões teóricas sobre a estrutura e o


funcionamento da administração pública (12,37%), a natureza do direito
administrativo (7,73%) e a divisão territorial do Império (6,70%).

g.) Antônio Joaquim Ribas – Direito Administrativo Brasileiro


(1866)

Antônio Joaquim Ribas nasceu em 1818 e se formou em São Paulo,


no ano de 1840. Tornou-se professor do Curso Anexo da Faculdade de
Direito de São Paulo e foi eleito deputado provincial por mais de dez anos.
Tornou-se professor substituto da Faculdade de Direito em 1854, tendo
substituído no ano de 1855 o professor José Inácio Silveira da Mota na
cadeira de direito administrativo. Durante esse período organizou aponta-
mentos para o acompanhamento dos estudantes, posteriormente publica-
dos como o livro Direito Administrativo Brasileiro (1866), aprovado para
servir como compêndio nas faculdades de direito. Publicou obras sobre
diversos ramos do direito e faleceu em 1890.

O Direito Administrativo Brasileiro tem 376 páginas, e o seu con-


teúdo destoa um pouco dos demais livros do período. Preparado para

220 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):197-232, jan./abr. 2022.


Temas do Direito Administrativo na Doutrina Jurídica Brasileira do século
XIX: análise quantitativa (1857-1884)

cumprir função introdutória a uma coleção de cinco volumes jamais es-


crita19, tem o seu conteúdo limitado a uma discussão preliminar sobre as
categorias básicas do direito administrativo, o que aumenta a importância
proporcional das reflexões teóricas sobre o conceito e a natureza jurídica
da Administração (38,99% da obra), do direito administrativo (10,88%) e
da jurisdição administrativa (10,08%).
Quadro 7 – Direito Administrativo Brasileiro (Ribas, 1866)
Categorias Gerais Categorias Específicas Páginas Percentual Total
conceito de administração 56 14,85%
Administração funcionamento e agentes 45 11,94% 38,99%
atos administrativos 46 12,20%
divisão territorial do Império 0 0,00%
Descentralização 0,00%
ato adicional 0 0,00%
Natureza 0 0,00%
Imperador 3 0,80%
Administração Central Poder Executivo 0 0,00% 1,33%
Conselho de Estado 0 0,00%
Ministros 2 0,53%
noções gerais 0 0,00%
Presidente 7 1,86%
Administração Provincial 1,86%
Assembleias Provinciais 0 0,00%
Atribuições 0 0,00%
Câmaras Municipais 4 1,06%
Administração Municipal juízes municipais 2 0,53% 1,59%
reforma municipal 0 0,00%
Administrados 5 1,33%
Nacionais 33 8,75%
Administrados 35,28%
Estrangeiros 61 16,18%
Escravos 34 9,02%
Atribuições Políticas atribuições governamentais 0 0,00% 0,00%
atribuições dos ministérios 0 0,00%
Atribuições Administrativas 0,00%
atribuições administrativas 0 0,00%
Direito Administrativo conceito e natureza 41 10,88% 10,88%
Jurisdição Administrativa jurisdição administrativa 38 10,08% 10,08%

São poucas as páginas dedicadas à organização das administrações


central (1,33%), provincial (1,86%) e municipal (1,59%); Ribas prometia
examiná-los nos demais volumes da coleção, que seriam consagrados à

19 – RIBAS, Antonio Joaquim. Direito Administrativo Brasileiro. Rio de Janeiro: F. L.


Pinto & C. Livreiros Editores, 1866, p. XI.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):197-232, jan./abr. 2022. 221


Walter Guandalini Junior

organização da administração espontânea, aos serviços administrativos


relativos aos interesses do estado, aos serviços relativos aos interesses
dos administrados e à administração contenciosa20. Feita de coração puro
ou com os dedos cruzados, o fato é que a promessa não foi cumprida, o
que indica que a ordem discursiva do direito administrativo no período
dirigia os esforços dos seus cultores com muito mais ênfase à reconstru-
ção teórica dos fundamentos da disciplina do que ao desenvolvimento de
seus prolongamentos dogmáticos.

Uma novidade relevante é a atenção dedicada por Ribas à figura dos


“administrados”, tema até então ignorado pelos administrativistas brasi-
leiros. A categoria ocupa 35,28% das páginas do livro, dedicadas à análise
jurídica das figuras dos nacionais (8,75%), dos estrangeiros (16,18%) e
dos escravos (9,02%) em suas relações com a administração estatal. Aos
poucos a doutrina administrativista parece superar os esforços de constru-
ção jurídica da estrutura administrativa do Estado brasileiro para passar
a se preocupar com as relações existentes entre essa estrutura e os indiví-
duos submetidos à sua autoridade – aproximando o direito administrativo
da sua função “original” francesa de disciplinar as relações jurídicas esta-
belecidas entre cidadãos e Estado no exercício de seu poder de governo.

h.) José Rubino de Oliveira – Epítome de Direito Administrativo se-


gundo o programa do curso de 1884 (1884)

José Rubino de Oliveira nasceu em 1837 e se formou em 1868.


Atuou como advogado e em 1879 foi aprovado no concurso para profes-
sor da Faculdade de Direito de São Paulo, tendo se tornado o primeiro
professor negro da história da instituição. Em 1882 se tornou catedrático
de direito administrativo e publicou em seguida a sua Epítome de Direito
Administrativo (1884), que pretendia usar como texto-base da disciplina.
Faleceu em 1891.

A Epítome de Direito Administrativo é o último livro de direito ad-


ministrativo publicado no século XIX, e dessa forma encerra a lista de
20 – RIBAS, Antonio Joaquim. Direito Administrativo Brasileiro. Rio de Janeiro: F. L.
Pinto & C. Livreiros Editores, 1866, p. XI.

222 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):197-232, jan./abr. 2022.


Temas do Direito Administrativo na Doutrina Jurídica Brasileira do século
XIX: análise quantitativa (1857-1884)

obras selecionadas para este estudo. Tem 243 páginas, e talvez seja a
obra com distribuição temática mais equânime entre todas as analisadas.
O tema mais debatido é a categoria teórica da Administração, que ocupa
25,31% das páginas do livro. Se a agruparmos às páginas dedicadas ao
conceito de direito administrativo (8,16%) temos mais de um terço da
obra dedicada a reflexões teóricas, o que continua a tendência que já ha-
víamos percebido em Ribas.

Em segundo lugar, no entanto, encontram-se empatadas as catego-


rias da Administração Provincial (14,29%), das atribuições administrati-
vas dos ministérios (14,29%) e da jurisdição administrativa (14,29%), o
que indica ter Rubino de Oliveira atribuído aos temas da administração
prática grau de importância ainda maior do que o que atribuiu aos temas
teóricos, dedicando-lhes quase metade das páginas de seu livro.
Quadro 8 – Epítome de Direito Administrativo (Rubino de Oliveira, 1884)
Pági-
Categorias Gerais Categorias Específicas Percentual Total
nas
conceito de administração 32 13,06%
Administração funcionamento e agentes 30 12,24% 25,31%
atos administrativos 0 0,00%
divisão territorial do Império 0 0,00%
Descentralização 0,00%
ato adicional 0 0,00%
Natureza 0 0,00%
Imperador 6 2,45%
Administração Central Poder Executivo 0 0,00% 6,12%
Conselho de Estado 0 0,00%
Ministros 9 3,67%
noções gerais 0 0,00%
Presidente 30 12,24%
Administração Provincial 14,29%
Assembleias Provinciais 5 2,04%
Atribuições 0 0,00%
Câmaras Municipais 26 10,61%
Administração Municipal juízes municipais 0 0,00% 0,00%
reforma municipal 0 0,00%
Administrados 2 0,82%
Nacionais 5 2,04%
Administrados 6,94%
Estrangeiros 10 4,08%
Escravos 0 0,00%
Atribuições Políticas atribuições governamentais 0 0,00% 0,00%

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):197-232, jan./abr. 2022. 223


Walter Guandalini Junior

atribuições dos ministérios 35 14,29%


Atribuições Administrativas 14,29%
atribuições administrativas 0 0,00%
Direito Administrativo conceito e natureza 20 8,16% 8,16%
Jurisdição Administrativa jurisdição administrativa 35 14,29% 14,29%

O tema dos administrados aparece na sequência (6,94%) sendo dig-


no de nota que, contrariando a prática inaugurada por Ribas, Rubino de
Oliveira não abre um capítulo específico para tratar da figura jurídica dos
escravos. Arriscando uma hipótese que talvez padeça de excesso de psi-
cologismo, às vésperas da abolição o único autor negro de nossa lista
parece ter se recusado a reconhecer dignidade jurídica ao tema, admitindo
apenas duas categorias de indivíduos a estabelecerem relações com a ad-
ministração pública brasileira: brasileiros e estrangeiros.

E o tema ao qual é dedicada a menor quantidade de páginas é jus-


tamente aquele que parece ter exigido por mais tempo as atenções dos
publicistas do império: o da administração central (6,12%).

O livro de Rubino de Oliveira, publicado quase 20 anos após o seu


último antecedente, já às vésperas da República, parece antecipar algu-
mas das transformações que viriam a se concretizar na virada para o sécu-
lo XX. Como já se demonstrou, a doutrina de direito administrativo pro-
duzida na Primeira República brasileira se caracteriza como uma doutrina
de transição, de um direito administrativo constituinte para um direito
administrativo interventor, voltado à estruturação da nova administração
pública federativa e “concebido essencialmente como instrumento de
exercício das prerrogativas estatais sobre os particulares em seu trabalho
de reorganização da vida em sociedade21”.

Embora não se verifique ainda, em Rubino de Oliveira, essa dedica-


ção ao tema da intervenção que mais tarde encontraremos nos administra-
tivistas da República, a redução proporcional da importância atribuída aos
temas ligados à estruturação da administração central e o correspondente

21  –  GUANDALINI JR., Walter; TEIXEIRA, Lívia Solana Pfuetzenreiter de Lima. Um


Direito Administrativo de Transição: o conceito de direito administrativo na cultura jurí-
dica da Primeira República Brasileira (1889-1930), in: Direito, Estado e Sociedade, nº 58,
jan.-jun. Rio de Janeiro: PUC-RJ, 2021, p. 454.

224 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):197-232, jan./abr. 2022.


Temas do Direito Administrativo na Doutrina Jurídica Brasileira do século
XIX: análise quantitativa (1857-1884)

aumento da atenção dada às atribuições dos ministérios, das províncias e


da jurisdição administrativa parecem marcar a sua obra como um ponto
de inflexão, a partir do qual o direito administrativo brasileiro começa a
abandonar a sua função inaugural de estruturação do Estado para começar
a assumir a sua tarefa mais característica de organização das intervenções
disciplinares do governo sobre a vida social. Apenas um primeiro passo
dado no sentido da efetiva “administrativização” do nosso direito admi-
nistrativo, que só viria a se concluir de fato após a Revolução de 1930.

4. Conclusões
A análise do conjunto dos dados coletados pode contribuir para uma
compreensão mais abrangente dos principais temas tratados pela doutrina
brasileira sobre o direito administrativo durante o século XIX.
Quadro 9 – Temas do Direito Administrativo Brasileiro no séc. XIX
Média:
Categorias Categorias Especí- Percen- Percentual
Páginas percentuais
Gerais ficas tual Total**
por obra*
conceito de administra-
113 3,30% 4,39%
ção
Administração 8,18%
funcionamento e agentes 121 3,53% 4,74%
atos administrativos 46 1,34% 1,53%
divisão territorial do Im-
36 1,05% 1,34%
Descentralização pério 1,87%
ato adicional 28 0,82% 0,40%
natureza 136 3,97% 3,40%
Imperador 31 0,91% 1,62%
Administração Cen-
Poder Executivo 25 0,73% 0,90% 15,92%
tral
Conselho de Estado 256 7,48% 9,20%
Ministros 97 2,83% 3,67%
noções gerais 7 0,20% 0,26%
Administração Pro- Presidente 71 2,07% 3,44%
29,23%
vincial Assembleias Provinciais 200 5,84% 5,51%
atribuições 723 21,12% 10,28%
Câmaras Municipais 93 2,72% 4,44%
Administração Mu-
juízes municipais 8 0,23% 0,24% 3,89%
nicipal
reforma municipal 32 0,93% 0,71%

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):197-232, jan./abr. 2022. 225


Walter Guandalini Junior

administrados 7 0,20% 0,27%


nacionais 38 1,11% 1,35%
Administrados 4,38%
estrangeiros 71 2,07% 2,53%
escravos 34 0,99% 1,13%
atribuições governamen-
Atribuições Políticas 206 6,02% 6,88% 6,02%
tais
atribuições dos ministé-
35 1,02% 1,79%
Atribuições Admi- rios
20,63%
nistrativas atribuições administra-
671 19,60% 17,02%
tivas
Direito Administra-
conceito e natureza 127 3,71% 4,45% 3,71%
tivo
Jurisdição Adminis-
jurisdição administrativa 211 6,16% 6,65% 6,16%
trativa
*  –  Média dos percentuais dedicados a cada tema no interior de cada obra analisada. Informação inserida por
recomendação do parecerista anônimo, a quem agradeço pela pertinente sugestão, para a verificação de eventuais
distorções de resultado. Verifica-se não haver diferenças significativas em relação à avaliação dos percentuais glo-
bais, exceto pelo percentual dedicado às atribuições da administração provincial, que cai de 21,12% para 10,28%
quando consideradas as médias por obra.

**  –  Percentual global, considerando todas as páginas analisadas.

Considerando-se a quantidade de páginas dedicada pela doutrina


como um todo a cada tema específico, sobressai o tema da Administração
Provincial como o mais importante – com 29,23% das páginas sendo-lhe
dedicadas. É claro que essa ênfase aparente na Administração Provincial é
efeito de uma distorção22, gerada pelas 877 páginas dos Estudos Práticos
de Paulino de Sousa dedicadas ao tema, jamais examinado com a mesma
dedicação pelos demais autores do período. Não obstante, o simples fato
de um dos nossos maiores administrativistas ter optado por consagrar um
livro inteiro ao tema da administração provincial em vez de outros su-
postamente mais relevantes (como o das atribuições administrativas, por
exemplo) já indica a sua importância para a adequada compreensão do
direito administrativo imperial, tão preocupado com a estruturação ad-
ministrativa do Estado e com a garantia do equilíbrio das relações entre
a administração central e as administrações locais das províncias. A con-
clusão é reforçada pela quantidade de páginas dedicadas ao tema da ad-
ministração central (15,92% do total), sempre presente em todas as obras

22  –  Como se verifica da análise das médias por obra – ver quadro 9 – nota *.

226 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):197-232, jan./abr. 2022.


Temas do Direito Administrativo na Doutrina Jurídica Brasileira do século
XIX: análise quantitativa (1857-1884)

analisadas – mas também ao menos importante tema da administração


municipal (3,89%).

Em segundo lugar aparece o tema das atribuições administrativas,


que ocupa 20,63% das páginas. Trata-se novamente de distorção, visto
que esse tema é muito mais presente nos autores da década de 50 (Pereira
do Rego e Veiga Cabral), ainda bastante influenciados pela doutrina ad-
ministrativista francesa e pouco atentos às peculiaridades da realidade
brasileira. Mostra, porém, a importância desse esforço de tradução para
a formação de um direito administrativo brasileiro, ao menos nos seus
primeiros anos de existência.

Em terceiro lugar aparece o tema mais teórico do conceito de ad-


ministração (8,18%), que acompanhado da categoria de direito adminis-
trativo (3,71%) indica a necessidade de elaboração das bases teóricas da
disciplina durante os seus anos de formação.

Às categorias da jurisdição administrativa (6,16%), das atribuições


políticas do Estado (6,02%), dos administrados (4,38%) e da descentra-
lização (1,87%) é dada menos importância, sendo as referências a esses
temas geralmente concentradas em períodos e contextos específicos.

A análise diacrônica pode contribuir para a melhor compreensão dos


contextos e circunstâncias dessas referências temáticas.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):197-232, jan./abr. 2022. 227


Walter Guandalini Junior

Quadro 10 – Temas do Direito Administrativo brasileiro no século XIX.

Chama a atenção, em primeiro lugar, a progressiva importância pro-


porcionalmente dada aos temas teóricos da natureza da administração,
da descentralização e do conceito de direito administrativo. Isso pode ser
efeito de uma sofisticação teórica dos juristas brasileiros com o passar do
tempo e do desenvolvimento da disciplina, ou pode ilustrar a necessidade
de retorno aos fundamentos teóricos, conforme se aproxima a transição
para um novo modelo de direito administrativo – não mais estruturador
do Estado, mas organizador de sua atividade interventiva.

A proporção de páginas dedicadas à administração central cai pro-


gressivamente com o tempo, mas o tema se mantém importante em todas
as obras analisadas. O movimento indica que a doutrina administrativista
parece estar aos poucos se desprendendo da necessidade de refletir juridi-
camente sobre o tema da estruturação do Estado Nacional, para começar a
se dedicar a outros assuntos mais típicos da natureza “administrativa” da
disciplina. A hipótese se confirma pela constatação da importância dada
às atribuições políticas do governo nos primeiros anos – tema tornado
irrelevante após o Ensaio de Soares de Sousa.

228 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):197-232, jan./abr. 2022.


Temas do Direito Administrativo na Doutrina Jurídica Brasileira do século
XIX: análise quantitativa (1857-1884)

O tema das atribuições administrativas aparece, curiosamente, ape-


nas no início e no final do período examinado. Embora não seja objeto
do presente estudo, a análise qualitativa já iniciada sugere uma hipótese
explicativa: nas obras de Pereira do Rego e Veiga Cabral, publicadas no
início do período, a atenção dada às atribuições administrativas é reflexo
de uma tradução sem mediações da doutrina francesa, e das dificuldades
dos autores em compatibilizarem-na com as circunstâncias locais especí-
ficas; já na obra de Rubino de Oliveira, última a ser publicada no sécu-
lo XIX, o tema retorna com outra roupagem: não mais tradução acrítica
da doutrina francesa, mas esforço de adaptação do direito administrativo
brasileiro a uma nova função disciplinadora, e de superação da função
constituinte que havia cumprido nas primeiras décadas de sua existência.
Esse argumento também explica a diferença entre os dois primeiros e o
último quanto à importância proporcional atribuída ao tema no interior
de suas obras. A progressiva importância dada ao tema da jurisdição ad-
ministrativa e a aparição do tema dos administrados somente nas duas
últimas obras do período também reforçam essa hipótese.

Por fim, constata-se um crescimento progressivo da atenção conferi-


da aos temas da administração provincial e da administração municipal,
o que indica um duplo movimento: de continuidade do esforço de cons-
trução de uma estrutura administrativa para o Estado Nacional, prolon-
gando até as administrações locais a estrutura administrativa inicialmente
proposta com mais vigor para a administração central; mas também de
atenção aos desenvolvimentos práticos dessa estrutura administrativa,
pela maior atenção dada às relações efetivas estabelecidas entre centro e
províncias e à atuação administrativa concreta das administrações locais
nos territórios sob sua responsabilidade.

Temas do Direito Administrativo Brasileiro no século XIX – Conclusões Gerais


Grande importância dada ao esforço de construção jurídica de uma estrutura administrativa para o Estado
Imperial (função constituinte)
Pouca importância dada a temas tipicamente “administrativos”, como os das atribuições administrativas do
Estado (função administrativa)
Atenção progressivamente maior a temas teóricos como a natureza da administração, o conceito de direito
administrativo e a noção de descentralização, o que indica um esforço de consolidação da nova disciplina

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):197-232, jan./abr. 2022. 229


Walter Guandalini Junior

Importação acrítica da doutrina francesa nas primeiras obras publicadas

Muita atenção às circunstâncias específicas da realidade nacional a partir da década de 1860

Redução progressiva da importância concedida a temas relativos à construção da estrutura administrativa do


Estado Imperial (função constituinte)
Aumento progressivo da importância concedida a temas relativos à atuação administrativa do Estado Im-
perial, como o das atribuições administrativas, dos administrados e da jurisdição administrativa (função
administrativa)

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Texto apresentado em abril de 2022. Aprovado para publicação em


junho de 2022. 

232 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):197-232, jan./abr. 2022.


Os primórdios do lúpulo no Brasil: A trajetória alcoólica brasileira
até o domínio cervejeiro e a introdução do lúpulo

233

OS PRIMÓRDIOS DO LÚPULO NO BRASIL:


A TRAJETÓRIA ALCOÓLICA BRASILEIRA ATÉ O
DOMÍNIO CERVEJEIRO E A INTRODUÇÃO DO LÚPULO
THE BEGINNINGS OF HOPS CULTURE IN BRAZIL: HISTORY
OF ALCOHOLIC BEVERAGES IN BRAZIL UNTIL THE
DOMINANCE OF BEER AND THE INTRODUCTION OF HOPS
Eduardo Fernandes Marcusso1

Resumo: Abstract:
O lúpulo é vital para a produção de cerveja e Hops are vital for brewing production and
está para um elemento importante na relação da an important element in the relationship
sociedade brasileira e do álcool. A partir desse between Brazilian society and alcohol. From
panorama buscamos traçar a trajetória alcoóli- this background, we seek to trace the history
ca até o domínio cervejeiro e a introdução do of alcoholic beverages until the dominance of
lúpulo. O estudo usou dados e informações beer and the introduction of hops in Brazil. We
dos relatórios do Ministério da Agricultura, do collected our data and information from reports
Sistema de Estatísticas do Comércio Exterior e of the Ministry of Agriculture, the Foreign
da Revista do Imperial Instituto Fluminense de Trade Statistics System and the Magazine of the
Agricultura. Os achados mostram a íntima rela- Imperial Fluminense Institute of Agriculture.
ção com a Alemanha, devido sua tradição cerve- The findings show a close relationship with
jeira e de cultivo de lúpulo, além do impacto do Germany with its brewing and hop-growing
processamento do lúpulo no comércio nacional tradition, in addition to the impact of hop
e internacional e, mais recentemente, a impor- processing on national and international trade
tância da organização dos produtores. and, more recently, the importance of producer
organization.
Palavras-chave: Trajetória Alcoólica; Cerveja; Keywords:history of alcoholic beverages; beer;
Lúpulo. hops.

Introdução
A introdução do lúpulo no Brasil decorre da longa trajetória do álco-
ol moldada pelo território social do país, bem como do forte crescimento
da indústria cervejeira em território nacional. Nesse contexto, o objetivo
deste artigo concentra-se em colocar em perspectiva a evolução das be-
bidas no Brasil e sua relação com a sociedade brasileira, a fim de olhar a
introdução do lúpulo no cenário brasileiro a partir do contexto dos princi-
pais fatores que influenciaram esse acontecimento.

1  –  Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. E-mail: e.marcusso@gmail.


com.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):233-264, jan./abr. 2022. 233


Eduardo Fernandes Marcusso

O caminho metodológico buscou na bibliografia da formação socio-


territorial do Brasil, verificar como as bebidas faziam parte da sociedade
brasileira e como se deu sua evolução enquanto atividade econômica. No
que concerne às bebidas dos nativos foram utilizadas obras de cunho so-
ciológico e antropológico; já sobre a cachaça e a cerveja buscou-se mais
obras históricas e econômicas. Quanto a introdução dos lúpulos foi feita
análise aprofundada dos relatórios anuais, apresentados pelo Ministério
da Agricultura - MA em seu tempo imperial e republicano, além das im-
portantes publicações de jornais da época, por meio da hemeroteca da
Biblioteca Nacional e da revista do Imperial Instituto Fluminense de
Agricultura – IIFA.

Por fim, buscou-se explorar patentes de máquinas e equipamentos de


produção do extrato de lúpulo e dados recentes de importação do mesmo,
pelo Sistema de Estatísticas do Comércio Exterior – COMEXSTAT, do
Ministério da Economia.

Este trabalho se divide em três seções. A primeira seção traz a tra-


jetória alcoólica brasileira desde o cauim dos indígenas até a chegada da
cachaça, seu auge e derrocada. Na segunda seção versaremos sobre a as-
censão da cerveja e sua expansão no território brasileiro. Na terceira parte
passamos à introdução do lúpulo no Brasil, sua relação com a imigração
europeia e sua tradição cervejeira e de cultivo de lúpulo.

Os achados da pesquisa estão apresentados nas considerações finais,


que focam na importância do caminho da trajetória alcoólica brasileira,
passando pelo domínio da cerveja até a introdução do lúpulo. Foram des-
tacados também o final da produção nacional do lúpulo no século XX e
o ressurgimento no século XXI com novas adaptações e organização dos
produtores que continuam, desde o século XIX, buscando consolidar o
cultivo de lúpulo no Brasil.

A trajetória alcoólica brasileira


Para entendermos a introdução do lúpulo no Brasil é necessário
compreender o contexto do setor cervejeiro no Brasil do século XIX e

234 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):233-264, jan./abr. 2022.


Os primórdios do lúpulo no Brasil: A trajetória alcoólica brasileira
até o domínio cervejeiro e a introdução do lúpulo

como a cerveja trilhou seus caminhos para dominar o mercado de bebidas


no país. O domínio da cerveja como bebida mais consumida e popular
no Brasil se deve à trajetória alcoólica do país que remonta de tempos
imemoriais.

O Brasil tem uma longa história de cervejas insalivadas pelos nativos


que podemos unificar como cauim, bebidas fermentadas de mandioca.
Existem relatos de mais de 140 cauins utilizados nos rituais simbólicos
dos indígenas, sobretudo os tupinambás2.

Para os povos indígenas, os modos de beber mediam um saber, fa-


zendo circular valores e afirmando a identidade de cada grupo. Segundo
Florestan Fernandes, quando estavam embriagados, os tupinambás as-
sumiam um estado de permissividade, no qual todas as suas emoções
eclodiam e isso mantinha o equilíbrio psíquico desse povo, permitindo
também momentos essenciais de reavivamento do passado, das tradições
e antepassados, sendo a memória o elo com esses tempos pretéritos. A
memória dos indígenas era permanentemente atualizada pelos caraíbas,
senhores da fala, e seus discursos em meio as cauinagens, atuando como
verdadeiros memoriais e crónicas de suas culturas3.

Dessa forma, “os índios bebiam para não esquecer”, nos termos de
Eduardo Viveiros de Castro4. Para determinados povos indígenas, o ato
de beber faz parte das manifestações de sociabilidade e estão na roti-
na desses grupos. Geralmente, os rituais incluem cantigas, pinturas, or-
namentos, músicas e bebidas alcoólicas fermentadas para celebrar uma
boa colheita ou caça, a mudança das estações, casamentos, a primeira
menstruação das moças, vitória em guerras, etc. Para os tupinambás, o
consumo do cauim era frequente. Segundo o relato de Alfred Métraux, de
1950, nada acontecia de importante na vida social ou religiosa dessa etnia
2 – CARNEIRO, Henrique. Pequena enciclopédia da história das drogas e bebidas:
histórias e curiosidades sobre as mais variadas drogas e bebidas. Rio de Janeiro: Else-
vier, 2005.
3 – FERNANADES, Florestan. A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá.
São Paulo: Pioneira/Edusp, 1970.
4  –  ALBUQUERQUE, Maria Betânia Barbosa. Beberagens tupinambá e processos edu-
cativos no Brasil colonial. Educação em Revista, v. 27, n. 01, 2011, p.40.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):233-264, jan./abr. 2022. 235


Eduardo Fernandes Marcusso

sem que a bebida fosse amplamente consumida. Assim, o cauim é para os


índios uma “cultura material corporificada”5.

O império do cauim foi derrubado pela introdução das aguardentes


portuguesas e a cachaça brasileira que foram, nas palavras de Fernand
Braudel, um presente envenenado dos europeus às civilizações da
América, já que tinha poder alcoólico (naquela época em torno de 18-
25% Alcohol By Volume – ABV) inatingível pelos cauins indígenas (na
média com 5% e no máximo de 10% ABV). O relato do missionário fran-
cês Jean de Léry descreve um dos primeiros contatos dos tupinambás
com as bebidas destiladas. Ao tomarem de assalto um navio português
os indígenas relataram que não sabiam que qualidade de cauim era, mas
após beber ficaram por três dias de tal forma adormecidos que não pude-
ram despertar6.

Esse processo está aliado à escravização dos indígenas, da matança


e exploração e das doenças europeias que dizimaram entre 50% e 70% de
seus membros, de modo que as epidemias trazidas pelos brancos desem-
penharam um papel central na redução drástica da população indígena,
deixando brechas no tecido social geralmente sem recuperação, já que os
mais velhos carregam consigo os saberes e tradições de cada tribo e, sem
eles, a memória, a cultura e a identidade se perdem7.

A produção de cachaça é decorrente da produção de cana-de-açúcar


no Brasil. Esta, se manteve como um dos principais produtos de expor-
tação brasileiros do século XVI até o início do XIX, tendo seu auge no
século XVII, quando chegou a produzir 350 mil arrobas de açúcar (5.250
toneladas)8. Ou seja, a cana de açúcar dominou grande parte da atividade
econômica agroexportadora e organizou o espaço e a colonização para o

5 – FERNANDES, João Azevedo. Sobriedade e embriaguez: a luta dos soldados de


Cristo contra as festas dos tupinambás. Tempo, v. 11, n. 22, 2007, p.101.
6 – LÉRY, Jean. Viagem à Terra do Brasil. São Paulo: Martins, 1967.
7  –  RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
8 – SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial.
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236 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):233-264, jan./abr. 2022.


Os primórdios do lúpulo no Brasil: A trajetória alcoólica brasileira
até o domínio cervejeiro e a introdução do lúpulo

seu pleno funcionamento, formando uma verdadeira civilização do açú-


car no Brasil9.

As primeiras mudas de cana-de-açúcar chegaram ao Brasil pelas


mãos de Gonçalo Coelho, em 1502, vindas da Ilha da Madeira10. Já a
primeira notícia sobre a abertura de engenho data de 1516, quando D.
Manoel ordenava que se fornecesse ferramentas, e tudo que fosse ne-
cessário para construção de um engenho de açúcar, àqueles que fossem
povoar o Brasil. Neste mesmo ano, com esse incentivo, Pedro Capico
montou seu engenho na feitoria de Itamaracá em Pernambuco,11.

Contudo, foi Martim Afonso de Souza que deu o primeiro forte im-
pulso na produção de cana-de-açúcar. Sua expedição chegou à sua ca-
pitania hereditária de São Vicente em 1532 e deu início a plantação do
produto construindo o então engenho Madre de Deus. Apesar desse mo-
vimento, o Nordeste, sobretudo Pernambuco, despontava como líder na
produção e comercialização da cana como produto agroexportador12.

O crescimento dessa cultura pode ser observado no sistema legal de


ocupação de terras no Brasil, implantado pelo primeiro governador-geral
do país, Tomé de Souza, em 1548. Ele havia ordenado que as concessões
de terras no Brasil fossem atreladas ao cultivo de cana ou estabelecimento
de engenhos por no mínimo 3 anos até a plena apropriação, impulsionan-
do assim a colonização naquela época13.

Não se sabe ao certo o início da produção de cachaça no Brasil, mas


consta em registros que se iniciou junto dos primeiros engenhos de açú-
car do país14. O próprio processo de destilação, descoberto pelos árabes
e persas desde o século I d.C., era pouco conhecido entre os europeus no
9 – FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Civilização do açúcar. São Paulo: Alameda Editorial,
2017.
10 – CÂMARA, Marcelo. Cachaça: prazer Brasileiro. Rio de Janeiro-RJ: Mauad, 2004.
11 – WEIMANN, Erwin. Cachaça, a bebida brasileira. São Paulo: Editora Terceiro
Nome, 2006.
12 – FREYRE, Gilberto. Açúcar: uma sociologia do doce, com receitas de doces no
nordeste do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
13 – FERLINI, op. cit.
14 – CÂMARA, op. cit.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):233-264, jan./abr. 2022. 237


Eduardo Fernandes Marcusso

período das navegações. No entanto, o que se sabe é que a bagaceira por-


tuguesa do século XVI era um destilado obtido da uva, uma aguardente.
Contudo, pode-se afirmar que foi no Brasil que se obteve a bebida a partir
da destilação do caldo de cana fermentado no século XVII15.

Devido à expansão das fábricas na época, a produção de cachaça se


espalhou rapidamente, passando de 192 em 1585, para 349 em 1629. O
período de ascensão dessa cultura (1530-1650) é conhecido como ciclo
da cana-de-açúcar, em um sistema agrícola colonial definido como plan-
tações, exportando de fazendas de monocultura exploradas por trabalha-
dores escravos de ascendência predominantemente africana, descrevendo
um modo de produção colonial16.

A capitania de Pernambuco já exportava tonéis da bebida e esta prá-


tica ajudou a conviver com as oscilações do preço do açúcar. Em poucas
décadas a cachaça começou a ser distribuída aos escravos para aliviar sua
sina e criou um próspero comércio que influenciou a bagaceira portugue-
sa17.

A grande produção de aguardente no Brasil foi, de certa forma, con-


siderada um obstáculo ao processo colonizatório e de catequese, visto que
“desviaria a matéria-prima da produção do ‘útil’ açúcar e poria em risco
a saúde dos escravos e a integração dos índios”18. Essas questões se so-
maram ao impacto do comércio de bagaceira portuguesa e do vinho19 e a
utilização da cachaça como moeda de troca pelos holandeses durante sua
presença no nordeste brasileiro. Em resposta, a coroa portuguesa adotou

15  –  CASCUDO, Luis da Câmara. Prelúdio da Cachaça. São Paulo: Global, 2006.
16  –  PRADO JR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense,
1957.
17 – WEIMANN, op. cit
18  –  FERNANDES, João Azevedo. Um tesouro etílico: bebidas, identidades e catego-
rias sociais na Amazônia portuguesa do século XVIII. sÆculum – Revista de História
[27], 2012, p.45.
19  –  SANDRE, Sandra. Cachaça: Patrimônio Brasileiro. Monografia (Especialidade em
Gastronomia e Segurança Alimentar) Centro de Excelência em Turismo. Universidade de
Brasília-DF, 2004.

238 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):233-264, jan./abr. 2022.


Os primórdios do lúpulo no Brasil: A trajetória alcoólica brasileira
até o domínio cervejeiro e a introdução do lúpulo

medidas proibitivas ao comércio de cachaça em 1635 e 1649, porém essas


ações foram revogadas em 1661 devido à sua ineficácia20.

Neste período, ocorreu a Revolta da Cachaça que se originou na fre-


guesia de São Gonçalo de Amarante (atual São Gonçalo e Niterói) em
1660, devido aos impactos das ações de impostos dados pela Coroa, na
figura do Governador Salvador Correia de Sá e Benavides. Liderados por
Agostinho Barbalho Bezerra, os revoltosos depuseram o governo e em
1661 o motim terminou com o fim da proibição da produção de cachaça.
Salvador de Sá retornou às suas atividades e condenou Barbalho Bezerra
à morte para servir de exemplo21.

Neste contexto, o ciclo do açúcar também já havia entrado em de-


clínio. Ainda em 1654, os holandeses foram expulsos de Pernambuco
e começaram a produzir açúcar nas Antilhas, e a concorrência afetou o
comércio brasileiro que ficou desvalorizado22. A relação entre Portugal,
Holanda e o açúcar é bem anterior à invasão do Nordeste e “a contri-
buição dos flamengos - particularmente dos holandeses - para a grande
expansão do mercado do açúcar, na segunda metade do século XVI, cons-
titui um fator fundamental do êxito da colonização do Brasil”23. Assim,
a saída dos holandeses do nordeste significou outro ponto de desvalori-
zação do açúcar brasileiro em relação ao açúcar das Antilhas produzido
pelos próprios holandeses.

Devido ao seu baixo teor de açúcar, a cachaça ganhou ainda mais


importância e, nesse período, seu principal destino era a exportação para

20  –  MARQUES, Camila Moraes. Dimensões de um patrimônio: significados e silen-


ciamentos na história da cachaça – Paraty, fins do século XVIII a meados do XIX. Tese
(doutorado em história. Política e bens culturais) Fundação Getúlio Vargas, Rio de Ja-
neiro, 2017.
21  –  CAETANO, Antonio Filipe Pereira. Entre a sombra e o Sol – A Revolta da Cachaça,
a freguesia de São Gonçalo de Amarante e a crise política fluminense (Rio de Janeiro,
1640-1667). Dissertação (mestrado em História) Universidade Federal Fluminense, Ni-
terói, 2003.
22 – FERLINI, op.cit.
23 – FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007, p.33.

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Eduardo Fernandes Marcusso

Angola em troca de escravos24. Em 1679 foi proibida a exportação da ca-


chaça para Angola, porém essa medida não teve o efeito desejado, muito
pelo contrário, tornou o contrabando ainda mais lucrativo, e essa norma
foi revogada em 1695. Estima-se que foram transportados para Luanda
310 mil litros de cachaça por ano, 78,4% das bebidas alcoólicas chegada
à cidade25.

No final do século XVII e início do XVIII, tivemos um ciclo áureo


em Minas Gerais, e a demanda por escravos aumentou junto à demanda
por cachaça, seja como moeda de troca ou para dar a esses trabalhadores.
Uma importante rota que estruturou o comércio de ouro e seu envio para
Portugal ficou conhecido como caminho do Ouro ou caminho velho - esse
foi o primeiro traçado da Estrada Real e ligava Paraty à Ouro Preto. A Vila
de Paraty era um importante entreposto comercial e em 1660 já contava
com 150 engenhos e mais de 10 mil escravos. Sua produção da cana era
quase toda voltada para cachaça, ganhando fama por isso na época, a qual
perdura até hoje. “Um cálice de parati” era como se referiam à cachaça ali
produzida. Nesta rota, o ouro vinha de minas para o litoral e a cachaça ia
do litoral para minas, e essa é uma das causas da tradição de produção de
cachaça nesse estado. Quando o ciclo do ouro terminou no final do século
XVIII, o mineiro passa à um lavrador com um engenho de cachaça26.

Esse comércio de ouro, cachaça e escravos era tão intenso que apro-
ximadamente 25% dos escravos trazidos da África para o Brasil entre
1710 e 1830 foram trocados pela cachaça, o que pode ter chegado a cifra
do milhão de escravos no século XVIII27 .

A cachaça se difundiu amplamente na sociedade brasileira, que ini-


cialmente era associada à subclasse de escravos e pobres, sendo usada
pela elite como símbolo de nacionalidade, e assim “a cachaça conquis-

24 – CASCUDO, op. cit.


25 – CARNEIRO, Henrique. Pequena enciclopédia da história das drogas e bebidas:
histórias e curiosidades sobre as mais variadas drogas e bebidas. Rio de Janeiro: Else-
vier, 2005.
26 – CASCUDO, op. cit., p.27
27 – CARNEIRO, op. cit.

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Os primórdios do lúpulo no Brasil: A trajetória alcoólica brasileira
até o domínio cervejeiro e a introdução do lúpulo

tou ascensão aos níveis, antes indevassáveis, nos surtos da eloquência


nacionalizante, precursora e consequente ao período da Independência,
quando era patriotismo não beber produto das vinhas portuguesas na-
quela época”28. Por sua relevante participação na construção da história
nacional brasileira, a cachaça passou à condição de símbolo da cultura
popular brasileira, construindo a memória coletiva de diversos grupos
brasileiros29.

No entanto, a essa altura a cerveja já se colocava como bebida com


importante aceitação na sociedade brasileira, sobretudo nas camadas mais
baixas da população. Então, entre o século XIX e início do XX, a cerveja
toma da cachaça o domínio como a bebida popular mais consumida.

O domínio cervejeiro
Antes da chegada da família real ao Brasil eram proibidas as indús-
trias por aqui, então, nesta época existiam alguns contrabandos de cerve-
ja nos portos de Recife, Salvador e Rio de Janeiro vindos da Inglaterra.
Contudo, nada suficiente para gerar um hábito, especialmente porque,
no período colonial, os portos brasileiros eram fechados para navios es-
trangeiros e os portugueses temiam perder o mercado do vinho para a
cerveja30. Evidências literárias mostram que um inglês chamado Lindley
tomou cerveja em um mosteiro em Salvador, onde existia grande estoque
da bebida. Por volta de 1800, muitas garrafas de cerveja foram encontra-
das em inventários de Porto Alegre31.

Já em 1807, as tropas francesas de Napoleão invadiram o território


português em direção a Lisboa, e Dom João IV decidiu pela transferência
da corte para o Brasil. Durante a partida, veio todo o aparelho burocrata
português, o tesouro, a imprensa, os arquivos e bibliotecas do governo e

28 – CASCUDO, op. cit., p.33.


29  –  DIAS, Nathália Caroline. A Cachaça é nossa: Cultura e ideologia na construção da
identidade nacional. ABET, Juiz de fora, v.4, n.1, p.35 -44, jan./abr. 2014
30  –  COELHO-COSTA, Eweton Reubens. A bebida de Ninkasi em terras tupiniquins: O
mercado da cerveja e o Turismo Cervejeiro no Brasil. RITUR, v. 5, n. 1, 2015, p. 22-41.
31  –  SANTOS, Sérgio de Paula. Os primórdios da cerveja no Brasil. Cotia: Ateliê, 2004.

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a cerveja, que segundo alguns relatos, era uma bebida apreciada por D.
João VI32.

O primeiro ato de Dom João no Brasil ao chegar a Salvador foi o de-


creto de 28 de janeiro de 1808, em que autorizava a abertura dos portos às
nações amigas, sendo uma clara referência aos ingleses, e em 1º de abril,
revoga o alvará que proibia a abertura de fábricas no Brasil. Em agosto
daquele ano, já existiam na cidade do Rio de Janeiro um núcleo de 150 a
200 comerciantes e agentes ingleses33. A influência dos ingleses crescia
progressivamente nos hábitos cotidianos do povo brasileiro. A cerveja
inglesa dominou o mercado brasileiro, como a “Porter e a Pale Ale, oriun-
da de Burton Upon Trent, menos alcoólica”34. No início do século XIX,
a Inglaterra detinha a mais avançada indústria cervejeira da Europa e já
contava com máquinas a vapor na produção de suas cervejas, em especial
a Porter de Londres. Assim, “a cerveja de origem inglesa dominou por
longo tempo o mercado brasileiro durante o século XIX”35.

Embora o domínio inglês e seus produtos tenham se expandido no


Brasil, a cachaça continuou sendo a preferência do brasileiro até a década
de 1830, quando começaram a chegar com mais frequência outras bebi-
das importadas, como licores vinhos, gim e uísque, além da cerveja36.

O primeiro relato de produção de cerveja no Brasil, é derivado dos


primeiros imigrantes alemães que atravessaram o Atlântico em 1824,
como o caso de Ignácio Rasch, vindo da tradicional região produtora de
cerveja na Alemanha, a Baviera. Rasch abriu uma cervejaria nessa época
(1824-1825) para atender a demanda de São Leopoldo-RS e redondezas,
para alegrar o povo nas festas populares alemãs, o Kerb37. Era comum na

32 – HOUAISS, Antonio. A cerveja e seus mistérios. Rio de Janeiro: Salamandra, 1986,


p.76
33 – FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: EdUSP, 2009.
34 – SANTOS, op. cit., p. 13
35  –  KOB, Edgard. Como a cerveja se tornou bebida brasileira: a história da cerveja no
Brasil desde o início até 1930. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – R.
IHGB, n. 161, v. 409, 2000, p. 29-58.
36 – COELHO-COSTA, op. cit.
37 – BRASIL. 192 anos da colonização alemã no RS. Brasília: Ministério da Cultura,

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Os primórdios do lúpulo no Brasil: A trajetória alcoólica brasileira
até o domínio cervejeiro e a introdução do lúpulo

época, a produção artesanal e caseira de bebidas, em especial a cachaça,


o vinho e a cerveja. Essa atividade desempenhava a função de suprir os
próprios produtores e de abastecer, em parte, as “vendas” que, além de
“casas de negócio”, são também lugares de encontro e lazer38.

A primeira notícia sobre a produção de cerveja no Brasil é do jornal


Correio Mercantil n.º 252, de 15 de novembro de 1831, onde se lê: “Na
Fábrica de Cerveja da rua d’ajuda n.º 67, vende-se além dos gêneros per-
tencentes à dita fabricação, e destilaria, bagos de zimbro novamente che-
gados de Hamburgo, e baunilha de primeira sorte, por preços cômodos”.
Essa fábrica, no Jornal do Comercio do Rio de Janeiro n.º 211, de 24 de
maio de 1832, anunciava que recompensaria quem tivesse notícias ou
encontrasse a escrava moçambicana Maria. Já a primeira propaganda de
venda de cerveja produzida no Brasil, que foi por muito tempo conside-
rada a primeira notícia sobre produção de cerveja, foi neste mesmo jornal
em 1836, o qual descrevia as qualidades da cerveja “Brazileira” que era
vendida na rua Matacavallos (atual Riachuelo) n.º9039.

No período inicial de produção cervejeira no Brasil, de maneira ge-


ral, a cerveja era de alta fermentação e era chamada “Marca Barbante”,
devido à amarra feita na rolha para suportar a pressão da produção de gás
carbônico presente dentro da garrafa40.

O desenvolvimento do setor cervejeiro está fundamentalmente liga-


do às áreas de concentração de imigrantes. A migração trouxe uma divi-
são social do trabalho e conhecimento, impulsionando o desenvolvimen-
to e a diversificação de indústrias de pequeno porte, como fábricas de

2016.
38  –  DA CUNHA, Jorge Luiz. Os colonos alemães de santa cruz e a fumicultura: Santa
Cruz do Sul; Rio Grande do Sul 1849-1881. Dissertação (Mestrado em História) Univer-
sidade Federal do Paraná, Curitiba-PR, 1988, p.162
39  –  MARCUSSO, Eduardo Fernandes. Da cerveja como cultura aos territórios da cer-
veja: Uma análise multidimensional. Tese (Doutorado em Geografia) Universidade de
Brasília, 2021, p.191-192.
40  –  SILVA, José Ferreira da. Cervejas de Blumenau. Blumenau em Cadernos. Tomo
III, n. 9, 1960.

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cerveja41. Isso pode ser verificado nos dados do século XIX que mostram
um domínio de imigrantes ou seus descendentes que atendiam o controle
de 71 das 98 cervejarias registradas nesse período42. Na cidade do Rio de
Janeiro, por exemplo, em 1920, 64,7% das cervejarias eram controladas
por portugueses43.

Dois destaques da primeira metade do século XIX são as cervejarias


Ritter, do Rio Grande do Sul, e a Bohemia, do Rio de Janeiro. Em 1846
Georg Heinrich Ritter, natural Hunsrück na Alemanha, passou a produzir
cerveja em Linha Nova - RS, lançando a marca Ritter, uma das precur-
soras do ramo cervejeiro do país e umas das primeiras do Rio Grande do
Sul44. Já a Bohemia foi derivada da Imperial Fábrica de Cerveja Nacional,
em Petrópolis - RJ. Em 1848, Henrique Leiden fundou essa cervejaria,
que passou ao comando de Henrique Kremer em 1858. Seu renome che-
gou ao governo e, em 1876, o Imperador D. Pedro II oficializou a cerve-
jaria como a Real Fábrica de Cerveja Nacional. O mesmo Leiden fundou
a Cervejaria Bohemia somente em 1898 e passaria às mãos da Antarctica
em 196145.

Neste período, entretanto, o mercado de cerveja no Brasil era domi-


nado por cervejas importadas, primeiro as inglesas e posteriormente por
cervejas alemãs, devido à política tarifária. A partir da década de 1880
o país viveu o seu primeiro surto industrial, quando foram abertas 636
estabelecimentos industriais entre 1880 e 188946. Já em 1894, ocorreu

41  –  LIMBERGER, Silvia. Estudo geoeconômico do setor cervejeiro no brasil: estrutu-


ras oligopólicas e empresas marginais. 2016. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de
Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Geografia, Florianópolis, 2016.
42 – MARCUSSO, op. cit.
43  –  MARQUES, Teresa Cristina de Novas. A Cerveja e a Cidade do Rio de Janeiro:
de 1888 ao Início dos Anos 1930. São Paulo: Editora Paco; Brasília:. Editora UnB, 2014.
44 – COUTINHO, Carlos Alberto Tavares. História da Cerveja no Brasil. Cervesia,
2010.
45  –  CUSATIS, José de. Imperial Fábrica de Cerveja Nacional – Cia. Cervejaria Bohe-
mia. Instituto Histórico de Petrópolis, 1996.
46 – SIMONSEN, Roberto. Evolução industrial do Brasil e outros estudos. São Paulo:
Editora Nacional. Editoria USP, 1973.

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Os primórdios do lúpulo no Brasil: A trajetória alcoólica brasileira
até o domínio cervejeiro e a introdução do lúpulo

grande taxação sobre as importações de cerveja, e em 1904 foi decretada


a limitação de importação de cerveja no Brasil47.

Assim, o século XX significou a ascensão da cerveja como prin-


cipal bebida produzida e consumida pelo brasileiro. Em 1907, o setor
cervejeiro figurava entre os dez maiores do Brasil, com 186 fábricas de
cerveja, das quais apenas três representavam 50% do mercado, 62,9% do
capital, 68% da potência instalada e 47,3% da mão de obra empregada48.
Na primeira década do século XX, a produção de cerveja cresceu 127%,
passando de 0,3 mi hl para 0,7 mi hl. Já em 1920 o Brasil atingiu 214
cervejarias, sendo mais de 60% empregando até 4 funcionários. Contudo,
esse mercado sofreu o abalo da Primeira Guerra Mundial com a falta de
matérias-primas, como o malte e o lúpulo49.

Foram nesse período, justamente, abertas às duas cervejarias de


maior destaque no Brasil, e que dominaria o cenário da cerveja nacional
com suas produções de cervejas de Baixa Fermentação - BF, que neces-
sitavam de mais investimentos e conseguiam maiores escalas, tendo boa
aceitação do consumidor que já estava acostumado com as cervejas seme-
lhante às importadas da Alemanha.

O alemão Louis Bücher, de uma família de cervejeiros de Wiesbaden,


abriu uma pequena cervejaria em 1868, com métodos totalmente artesa-
nais. Em 1882, associa-se a Joaquim Salles que tinha entre seus empre-
endimentos uma fábrica de gelo, localizada no bairro Água Branca, com
o nome de Antárctica. A produção de gelo de Salles estava ociosa e a
produção de cerveja de Bücher necessitava de gelo, assim a Antárctica
começou seu crescimento, e em 1885 é fundada a Antárctica Paulista –
Fábrica de Gelo e Cervejaria, com capacidade de 1.000 a 1.500 litros
diários que passariam a 6.000 tempos depois. Em 1891, a empresa ga-
nhou os sócios Antonio Zerrener e Adam Ditrik Von Bülow, que eram
proprietários de uma importadora no porto de Santos. Zerrener e Bülow,
47 – KÖB, op. cit.
48 – SUZIGAN, Wilson. Indústria brasileira: origem e desenvolvimento. São Paulo:
Brasiliense, 1975.
49 – KÖB, op. cit.

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através de seus contatos no porto, conseguiram ajuda financeira do Bank


für Deustchland, e adquiriram máquinas e equipamentos da Alemanha,
além da contratação de técnicos para produção de cerveja de alta qualida-
de formando a Companhia Antarctica Paulista S.A.50.

O suíço Joseph Villiger, engenheiro de profissão e apreciador de


cerveja, não gostou da cerveja produzida no país e decidiu fazê-la ele
mesmo. Então em 1888, era fundada a Manufatura de Cerveja Brahma,
Villiger e Companhia, na rua Barão de Sapucahy, n.º128, com 32 funcio-
nários e uma produção diária de 12 mil litros. Poucos depois, em 1894,
a pequena empresa foi adquirida por Georg Maschke, que modernizou e
ampliou as instalações da atual Companhia Cervejaria Brahma51.

A entrada dessas duas cervejarias mudou o curso da atividade cerve-


jeira brasileira, devido ao apetite que ambas demonstraram para crescer
seus negócios e dominar o mercado. Neste sentido, em 1901, se reuniram
na cidade de São Paulo os dirigentes das maiores cervejarias do país com
o objetivo unir todas as empresas em uma e dominar por completo o mer-
cado de cerveja no país, sufocando a forte concorrência das cervejarias
menores de Alta Fermentação - AF. Estavam nesse encontro a Antárctica
e Bavária da capital paulista e Brahma e Teutônia do Rio de Janeiro52.

Entretanto, devido à oferta de ações não apresentar o retorno espera-


do, a fusão não ocorreu e, em 1902, criou-se a Federação das Cervejarias
e uma simples combinação de preços e praças de mercado. Já em 1921,
na cidade do Rio de Janeiro, foi criada a Associação dos Cervejeiros de
Alta Fermentação do Rio de Janeiro, que atuou em combinação de preços
e no lobby para a sistemática de tributação em favor de sua categoria. A
tributação menor para AF já acontecia no país a algum tempo, devido ao
maior volume de vendas das cervejarias de BF53.

50  –  SEMENICHIN, Rodrigo. A Expansão da Indústria de Cerveja no Brasil: A Compa-


nhia Antarctica Paulista (1891-1920). (Trabalho de Conclusão de Curso), Ciências Eco-
nômicas, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2001.
51 – HOUAISS, op. cit.
52  –  MARQUES, op. cit.
53  –  MARQUES, op. cit.

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Os primórdios do lúpulo no Brasil: A trajetória alcoólica brasileira
até o domínio cervejeiro e a introdução do lúpulo

A organização das grandes cervejarias (BF) se estruturou efetiva-


mente, devido ao tamanho e poder dessas empresas e em 1940 é criado o
Sindicato da Indústria da Cerveja de Baixa Fermentação do Rio de Janeiro,
composto pelas cervejarias Antárctica e Brahma, que viria se tornar, em
1948, o Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja – SINDICERV ativo
até os dias atuais54. Esse imposto diferenciado entre as cervejarias teve
seu fim em 1948, mesmo ano da expansão nacional do SINDICERV, pro-
vocando profunda desigualdades na concorrência entre as cervejarias e
impactando na sobrevivência das cervejarias menores55.

A quebra na diferenciação tributária foi um duro golpe nas pequenas


cervejarias (AF) que gradualmente foram sumindo do mapa, tendo uma
queda entre a década de 1940 e 1950 de 66%, caindo de 224 cervejarias
para apenas 99, no mesmo patamar do final do século XIX. Nota-se tam-
bém, a grande evolução no volume de cerveja produzida no país no sécu-
lo XX. Esse crescimento começa um ponto de inflexão para uma virada
ao franco crescimento da produção de cerveja no Brasil, justamente entre
a década de 1940 e 1950, com a maior variação positiva de toda série
histórica com 215% saltando de 2,0-6,3 mi hl56.

Esse cenário mostra como a representação de poder das grandes cer-


vejarias influenciou na alteração tributária da cerveja, fazendo criar o im-
pério das cervejas de BF e quase que eliminar a concorrência das cervejas
de AF. Esse movimento fez despontar a produção de cerveja que começa
a se disseminar de forma mais intensa na sociedade brasileira, tomando o
posto de bebida nacional da cachaça.

Dados da época confirmam que a bebida alcóolica mais produzida no


Brasil era a cachaça. Somente em 1925, a cerveja passou a ser fabricada
em maior escala que a cachaça. Em 1924, o Brasil produziu cerca de 1,2
milhões de hectolitros (mi hl) de ambas as bebidas. Já no ano seguinte, a

54  –  FONSECA FILHO, Luciano Roberto Corrêa da. História, política e cerveja: a traje-
tória do lobby da indústria da cerveja. 2008. Dissertação (Mestrado em Ciência Política)
Universidade de São Paulo, 2008.
55 – MARCUSSO, op. cit.
56 – Idem.

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produção de cachaça caiu para menos de 1 mi hl, enquanto a de cerveja


subiu para 1,3 mi hl. Em 1929, foram produzidos 1,6 mi hl de cerveja e
1,3 mi hl de cachaça, como podemos verificar no gráfico abaixo.

Figura 1: Produção brasileira registrada de cerveja e cachaça (1915-1929).


Fonte: Adaptado de KÖB, 2000.

A produção de cerveja passa a produção de cachaça em 1925 e não


mais perderá esse posto. Claro que temos que considerar que são produ-
ção semelhantes, e a mesma quantidade de cachaça abastece mais pessoas
que a mesma quantidade de cerveja, mas como vimos a partir desse mo-
mento a produção de cerveja dispara, devido à organização e lobby das
grandes cervejarias (BF).

Tendo traçado a trajetória etílica até o domínio da cerveja, podemos


passar para o contexto da introdução do lúpulo no Brasil, olhando para
todo o contexto do país e das bebidas alcoólicas.

A introdução do lúpulo no Brasil


A chegada do lúpulo no Brasil ocorre numa onda de propagação da
cultura no mundo a partir da Europa e sua expansão ultramarina. Ainda
em 1629 o lúpulo chega nos EUA, em 1652 na África do Sul, em 1822 na
Austrália e em 1865 na Argentina57.
57  –  MARCUSSO, Eduardo Fernandes; MÜLLER, Carlos Vitor. A Economia e o Terri-
tório do Lúpulo: a história, análise mercadológica e o desenvolvimento do lúpulo no Bra-

248 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):233-264, jan./abr. 2022.


Os primórdios do lúpulo no Brasil: A trajetória alcoólica brasileira
até o domínio cervejeiro e a introdução do lúpulo

Os primeiros relatos de introdução de lúpulo no Brasil datam da dé-


cada de 1860, e vieram provavelmente junto da imigração alemã. Esses
relatos se confirmam quando observamos o relatório do Ministério da
Agricultura apresentado à Assembleia Geral Legislativa no ano de 1862.
O relatório aponta que na colônia de Blumenau, em Santa Catarina, os
colonos estão experimentando o cultivo do lúpulo, além de possuírem
2 cervejarias em 1861 e 3 em 1862. Essa colônia foi fundada pelo Dr.
Hermann Blumenau em 1852 e passou ao domínio do Estado por contrato
celebrado em 13 de janeiro de 1860, quando chegou o primeiro cervejei-
ro desta colônia, Heinrich Peter Andreas Hosang. Os imigrantes pioneiros
foram 17 e vieram no navio Emma & Louise, mas se tem a listagem dos
310 primeiros imigrantes que chegaram à região, descritos nas cartas en-
viadas ao imperador Dom Pedro II pelo Dr. Blumenau, que relatava como
estava a situação da colônia. Muito provavelmente foi algum desses imi-
grantes que trouxeram as primeiras mudas de lúpulo para Blumenau e
tentaram a cultura no novo mundo58.

Neste contexto, a cidade de Hamburgo se destaca nesse processo por


ser a ponte entre a Alemanha e o Brasil, trazendo muitas pessoas dessa ci-
dade e de muitas regiões do país germânico. A cidade de Hamburgo tinha
grande expressão e tradição como produtora de cerveja desde dos séculos
XIII, XIX e XV, participando da liga Hanseática de cerveja e possuindo
457 cervejarias que já utilizam o lúpulo em 1369. Nessa época o cultivo
de lúpulo também se tornou uma importante mercadoria59.

O próximo relato do MA que o cultivo de lúpulo é mencionado


data de 1865, contando sobre a colônia Dona Francisca, atual cidade de
Joinville-SC. O governo auxiliou na chegada de imigrantes da cidade de
Hamburgo descrevendo que, em 1864, chegaram 239 passageiros em 3
navios para a cidade que tinha 4.275 habitantes. Nesta colônia, em 1865,

sil e no mundo. Revista Latino-Americana da Cerveja. Blumenau, v. 2, n. 2, 2019, p. 1-20.


58 – BRASIL. Relatório do Ministério da Agricultura, 1863, p. 80 e 91.
59  –  UNGER, Richard. Beer in the middle ages and the renaissance. Philadelphia: Uni-
versity of Pennsylvania Press, 2007,

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Eduardo Fernandes Marcusso

já existiam 3 cervejarias (já destacadas no relatório de 1861) e a extensão


da lavoura de lúpulo era de 1060 braças60 61.

A colônia Dona Francisca, foi fundada em 1852, e em 1854 conta-


va com 1.194 habitantes e diversas indústrias, entre elas uma cerveja-
ria aberta por Albert Gabriel Schmalz, um imigrante suíço que veio de
Hamburgo na Alemanha, considerado o introdutor da cerveja catarinense,
produzida artesanalmente desde a fundação desta colônia. A cervejaria
Schmalz produzia uma cerveja feita de milho: “O malte era feito pela
germinação dos grãos de milho em água quente. Uma tina de madeira
era usada para clareação e, depois, a fermentação e a maturação duravam
quase duas semanas”62.

Nesse contexto, a evolução da cerveja é muito importante para en-


tendermos a introdução do lúpulo no Brasil. Já na colônia Itajahy, fun-
dada em 1860 e só seria denominada Brusque em 1890, a abertura de
cervejarias é um fator de relevância, já que em 1863 “havia em Brusque
4 fábricas de cerveja de açúcar e lúpulo que produziam 5.000 garrafas
por ano”63. A mesma cidade recebeu imigrantes majoritariamente de
Neuthard, na Alemanha. Na época da imigração, a cidade alemã era uma
típica comunidade rural composta por badenses e sua economia estava
centrada no cultivo do lúpulo64.

Com essas pontuações, vamos juntando as peças da introdução do lú-


pulo no Brasil. O próximo relato de produção de lúpulo no Brasil, e talvez

60  –  As braças são medidas com os dois braços abertos, o comprimento dos dois braços
abertos equivale a uma braça. Essa medida foi muito usada no meio rural brasileiro e
segundo o Sistema Métrico Decimal a Braça equivale a 2,20 m (ABREU; CARRAHER,
1989). ABREU, G. M.; CARRAHER, David. The mathematics of Brazilian sugar cane
farmers. In: Mathematics, Education and Society. Paris: UNESCO, p.60-70. (DOCU-
MENT SERIES 35), 1989.
61 – BRASIL. Relatório do Ministério da Agricultura, 1866, p.1.
62 – SCHMIDT-GERLACH, Gilberto. Colônia Blumenau no sul do Brasil. Clube de
Cinema Nossa Senhora do Desterro, 2019, p.319
63 – CRUZ, Sebastião. Brusque – centenária. Blumenau em Cadernos. Tomo III, nº8,
agosto, 1960, 142.
64  –  MOSIMANN, J. C. Kraichgau – Berços dos Badenses de Brusque. Blumenau em
Cadernos. Tomo XXX, n. 2, 1989, p.46-50

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Os primórdios do lúpulo no Brasil: A trajetória alcoólica brasileira
até o domínio cervejeiro e a introdução do lúpulo

o maior e mais intenso movimento para a fixação da produção de lúpulo


no Brasil, foram as ações do Comendador Antônio José Gomes Pereira
Bastos. O comendador foi à Europa em 1867, como membro adjunto na
Exposição Internacional de Paris65 e visitou expositores de cerveja e im-
portantes cultivadores de lúpulo da Alemanha, Inglaterra e Bélgica, dos
quais conseguiu absorver muito conhecimento para iniciar o seu plantio
no Brasil, na volta para casa trouxe algumas mudas de lúpulo66.

Bastos importou de Aalst na Bélgica, mil pés de lúpulo ofertadas


ao Ministério da Agricultura para serem distribuídas nas diversas co-
lônias, porém poucos resultados positivos foram obtidos. A Sociedade
Auxiliadora da Indústria Nacional, criada em 1827, foi incorporada ao
organograma do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas
-MA, em 1860, e ajudou na distribuição das mudas de lúpulo67. Ainda
foram doados a quantia de 200$000 (aprox. R$24mil) para confecção de
uma medalha para o agricultor que conseguisse bons resultados com a
planta. Em 1870, Bastos doou mais de 3 mil pés advindos da mesma ci-
dade belga, além de plantas originárias de Spalt na Alemanha e da Região
da Bohemia na República Tcheca com a mesma finalidade68.

O próprio comendador adquiriu, em 1859, a Imperial Fábrica de


Cerveja Nacional na Rua Matacavallos, n.º27 que foi inaugurada em 1855
por Alexandre Maria Villas Boas & Cia69. Nesta propriedade, Bastos plan-
65  –  Na Exposição Internacional de Paris de 1855 foram apresentadas amostras de cer-
vejas, mas não participaram das competições, já na exposição de 1867 foram 40 cerveja-
rias europeias como expositores, em 1878 também entraram cervejarias norte-americanas
e, por fim, na grande exposição de 1889 a popularidade da bebida cresceu e 240 exposito-
res de 26 países mostraram suas cervejas e a Heineken foi a grande premiada, tendo essa
honraria descrita até os dias de hoje nos seus produtos. Disponível em: https://www.bie-
-paris.org/site/en/blog/entry/no-small-beer-brewing-success-at-expo-1889-paris. Acesso
em: 05 mai 2021.
66  –  SILVA, M. A. da Introdução do lúpulo no Rio de Janeiro pelo Sr. Comendador An-
tonio José Gomes Pereira Bastos. Revista Agrícola do Imperial Instituto Fluminense de
Agricultura. n.i. setembro, 1869, p.57-59.
67 – BRASIL. Relatório do Ministério da Agricultura, 1869, p.17.
68 – SILVA, op. cit.
69  –  A rua Matacavallos (1848 a 1865) é hoje a Rua Riachuelo (1865 - atual) e já teve
três cervejarias em diferentes momentos: em 1848, houve uma cervejaria de propriedade
de Leiden, situada no n. 78; em 1855, a cervejaria de Villas Boas situava-se no n. 27 e;

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Eduardo Fernandes Marcusso

tou 50 pés com grande desenvolvimento variando de 14 até 55 palmos de


altura70. O fato do comendador também foi relatado no mesmo ano de
1868, no relatório do MA, destacando um capítulo especial à cultura do
lúpulo, no qual também comenta que o lúpulo pode ser aclimatado em
qualquer província do império, principalmente nas do Sul, como vinha
sendo feito na de São Pedro do Rio Grande do Sul71.

Outro elemento importante neste quadro que estamos levantan-


do é o Instituto Imperial Fluminense de Agricultura – IIFA, criado em
1860, pelo imperador Dom Pedro II. O IIFA era composto pela Fazenda
Normal (local onde eram realizadas plantações experimentais para me-
lhorar a qualidade e aumentar a produtividade da agricultura), Jardim
Botânico (criado em 1808, quando da chegada da coroa portuguesa ao
Brasil, cedido ao IIFA em 1861 e retomado ao governo na proclamação
de República), Revista Agrícola (criada em 1869 para divulgar os conhe-
cimentos das atividades rurais em prol da modernização da agricultura)
e o Asilo Agrícola (também criado em 1869 para abrigar órfãos oriundos
da Santa Casa de Misericórdia)72.

Na Fazenda Normal, foi introduzida a cultura do lúpulo com as mu-


das doadas pelo comendador e pelo MA. Notícia do Correio Mercantil
de 2 de setembro de 1867, conta que em 30 de julho, João Gonçalves
Teixeira, integrante da nobreza brasileira, discursa acerca da conveniên-
cia de trazer da Baviera ou da Alsácia, mudas de lúpulo para persuadir os
agricultores da colônia de São Pedro e Santa Catharina a investirem na
cultura para fornecimento à indústria cervejeira. O presidente da sessão
designou uma comissão composta pelos conselheiros Joaquim Antão (fu-
turo ministro do MA) e Dr. Nicolão Joaquim Moreira. Novamente o mes-
mo jornal Correio Mercantil traz, em 31 de outubro de 1868, notícia com

em1865 tinha uma cervejaria no n. 19 de Logos (COUTINHO, s.d.).


70  –  Carta de Antonio José Gomes Pereira Bastos ao secretário geral da Sociedade Auxi-
liadora da Indústria Nacional, José Pereira rego Filho em 15 de março de 1870.
71 – BRASIL. Relatório do Ministério da Agricultura, 1866, p.11.
72  –  BEDIAGA, Begonha Eliza Hickman. Marcado pela própria natureza: o Imperial
Instituto Fluminense de Agricultura e as ciências agrícolas – 1860 a 1891. Tese (doutora-
do em História) Universidade Estadual de Campinas, Campinas-SP, 2011.

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Os primórdios do lúpulo no Brasil: A trajetória alcoólica brasileira
até o domínio cervejeiro e a introdução do lúpulo

o título “O lúpulo indígena”, na qual relata que o ministro da agricultura,


Joaquim Antão, encarregou o Sr. José Manoel Felizardo para obter mudas
dos lúpulos que cresciam em São Leopoldo-RS, para enviar à produção
no Jardim Botânico. O ministro ainda aponta que análises de lúpulos fei-
tas na universidade da Califórnia, por Payen, Chevallier e Palletan73, ates-
taram o impacto do clima na quantidade e qualidade dos óleo essenciais,
então por essa razão, se deve buscar o melhor local para propagação da
planta e melhores resultados. No final da notícia ainda é apontado o envio
de mudas para a escola prática de agricultura de Juiz de Fora-MG.

No relatório de 1869, é apontado que algumas mudas conseguiram


se desenvolver na Fazenda Normal: “não se desenvolveram muito bem,
apresentando-se desde logo viçosas e com soberbo crescimento, mas tam-
bém floresceram algumas, produzindo relativamente ao seu número não
pequena quantidade de lúpulo”. O relato ainda aponta que o Dr. Glasl,
diretor do IIFA, destacou a excelente qualidade do lúpulo colhido e ainda
aponta que
[...] segundo suas (Dr. Glasl) observações, a cultura d’este vegetal
promote a certos respeitos condições mais vantajozas no Brasil, do
que na Europa; bastando considerar que, alli, por via de regra só no
fim do terceiro anno, se obtém producto perfeito, quando entre nós
colheu-se esse resultado em pouco mais de dous annos, sendo denotar
que lá só se propaga em geral por meio de rebentões das raízes, ao pas-
so que aqui vingam até os pedaços cortados do tronco, como acontece
com a mandioca, aipim e outras plantas74.

Alguns desses lúpulos da fazenda normal foram separados, juntos


daqueles plantados pelo comendador em sua cervejaria, de modo a serem
analisados e comparados com os importados da Europa e EUA75. Além da
fazenda, o próprio Jardim Botânico já havia construído três viveiros de
grande porte para produção de uma grande diversidade de produtos, e os
lúpulos doados pelo comendador Bastos também ali foram plantados76.
73  –  PEREIRA, Jonathan. Elements os Materia Medica and Therapauticas, vol. II, Phi-
ladelphia, 1843.
74 – BRASIL. Relatório do Ministério da Agricultura, 1870, p.14.
75 – BRASIL. Relatório do Ministério da Agricultura, 1869.
76 – BEDIAGA, op. cit.

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O próximo relato da cultura de lúpulo é em 1870, no relatório MA, e


conta que depois da boa colheita do último ano, as plantas sofreram com
a seca e poucas floresceram, sendo que novas foram plantadas e distribuí-
das em cestas e caixas para Nova Friburgo e para Minas Gerais. Tudo para
tentar o plantio do lúpulo em climas diferentes do Rio de Janeiro, a pedi-
do do senador Joaquim Leão, que também já foi ministro da Agricultura77.

No mesmo 1870, o próprio diretor do IIFA, Dr. Carlos Clasl, escre-


veu uma notícia sobre o lúpulo na edição da revista agrícola do instituto,
com muitas informações sobre a cultura, e informando que a Fazenda
Normal está plantando em escala para realizar todas as experiências ne-
cessárias à cultura do lúpulo78.

Contudo, o relatório do MA de 1871 descrevia que muitas mudas


espalhadas pelas colônias não prosperaram, e com a seca e o calor do
verão daquele ano, grande parte das plantações morreram, mas a ideia de
se plantar lúpulo no Brasil era de grande interesse da indústria cervejeira
e do Império79.

Já nas colônias do Conde d’Eu (atual Garibaldi-RS) e Dona Isabel


(atual Bento Gonçalves), já registravam plantações de lúpulo, porém o
relatório de 1876 já apontava para o grande desenvolvimento dos vinhe-
dos80. Em 1879, a império incentivou ainda mais a cultura de Lúpulo,
fumo e linho em Conde d’Eu para diversificação da lavoura que estava
muito atrelada também a cereais81. Ainda em 1876, o MA aponta que re-
cebeu pedidos de lúpulo para as colônias do Rio Grande do Sul, e importa
plantas e sementes de diversas outras culturas para serem cultivadas no
Jardim Botânico e na Fazenda Normal82.

77 – BRASIL. Relatório do Ministério da Agricultura, 1871.


78  –  GLASL, Carlos. Notícia sobre o lúpulo. Revista Agrícola do Imperial Instituto Flu-
minense de Agricultura V.1, n.4, jun. 1870, p.29-34
79 – BRASIL. Relatório do Ministério da Agricultura, 1872.
80 – BRASIL. Relatório do Ministério da Agricultura, 1877a.
81 – BRASIL. Relatório do Ministério da Agricultura, 1880.
82 – BRASIL. Relatório do Ministério da Agricultura, 1877b.

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Os primórdios do lúpulo no Brasil: A trajetória alcoólica brasileira
até o domínio cervejeiro e a introdução do lúpulo

Em 1877, a revista do IIFA publicou em seu noticiário agrícola di-


versos descritivos da planta e a história natural do lúpulo, como podemos
constatar na imagem abaixo:

Figura 2: Ilustração do manejo e flor do lúpulo.


Fonte: O LÚPULO, 1877.

Em 1885, a mesma Revista Agrícola do IIFA lança capítulo especí-


fico sobre aspecto técnico da cultura de lúpulo na seção de “Agricultura
Prática”, assinado pelo engenheiro- agrônomo Luiz Caminhoá. São abor-
dados elementos gerais, caracteres botânicos, clima, variedades, análises,
terrenos, durabilidade da cultura, preparo cultural, estrume, plantação,
época da plantação, modo de cultivo, cuidados culturais, colheita, molés-
tias, insetos nocivos e produção.

No relatório do MA de 1886, o imperador, que havia visitado as ins-


talações do IIFA em 26 de agosto, solicitou a transferência do laboratório
de análises químicas das espécies vegetais para o Jardim Botânico ou
para a Fazenda Normal, devido à precariedade do estado atual. Ali já
havia sido efetuada análise de lúpulos e outros vegetais e seria publicado

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na revista agrícola do IIFA83. Esse pedido foi atento na Fazenda Normal,


onde foi constituído um Laboratório Químico, cuja atribuição era analisar
solos, plantas e raízes, de modo a subsidiar as plantações84.

Ainda na seção de “Exposições” da Revista Agrícola de 1885, o lú-


pulo é classificado como planta industrial, a ser exposta na Exposição das
Plantas e Animais vivos de Petrópolis em 12 de abril de 1885. Por fim, na
seção de “Chimica Analyptica” as análises do lúpulo da colônia de São
Lourenço no Rio Grande do Sul, como de excelente qualidade, assinado
pelo químico Otto Linger e relatando ao Governo Imperial todos os me-
lhoramentos na produção de cerveja que lá observou. O documento além
de relatar como foi a introdução do lúpulo no Brasil, já aponta para dados
técnicos como a utilização das flores femininas para cerveja, as proprie-
dades da lupulina etc. Os lúpulos em questão eram de Curt August Adolf
Wilhelm Ernst von Steinberg, o Barão von Steinberg85.

Os lúpulos do Barão eram plantados em sua propriedade na Picada


Travessão dos Pinheiros, em São Lourenço do Sul, aberta em 188086. O
barão só assumiria a propriedade após a morte de seu sogro, o pioneiro da
colônia Jacob Rheingantz em 187787.

A colônia de São Lourenço do Sul foi fundada por Rheingantz que


trouxe famílias alemãs em 1857, no número de 88 imigrantes listados no
navio holandês Twee Vrienden, que partiu de Hamburgo. Já em seguida
o número saltou para 200 imigrantes. Podemos deduzir que, provavel-

83 – BRASIL. Relatório do Ministério da Agricultura, 1887.


84 – BEDIAGA, op.cit.
85  –  Nasceu em 1846 na Alemanha [faleceu em 1893 em São Lourenço], filho dos ba-
rões de Steinberg (pelo reino de Hanôver). Casou-se em 1878, no Rio Grande-RS, com
Theresa Guilhermina Rheingantz [1851-1932], baronesa de Steinberg, membro da im-
portante família Rheingantz (Carlos Rheingantz, Família Rheingantz, in Revista Genea-
lógica Brasileira, II, N.º 4). Após a morte do Barão deixou-se de plantar lúpulo naquela
localidade.
86  –  O registro da propriedade do Barão é somente de 1885.
87  –  BOSENBECKER, Patrícia. Três gerações de empreendedorismo: capital e laços so-
ciais entre Brasil e Alemanha a partir do estudo de caso da família Rheingantz. Tese (dou-
torado em sociologia) Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017.

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Os primórdios do lúpulo no Brasil: A trajetória alcoólica brasileira
até o domínio cervejeiro e a introdução do lúpulo

mente, os lúpulos do barão foram, primeiramente, trazidos por um desses


imigrantes88.

No ano de 1895, a vila de São Lourenço contava com onze casas


de negócios de fazendas, secos e molhados, ferragens e miudezas; duas
ferrarias; duas sapatarias; uma barbearia; dois estaleiros; uma funilaria;
uma padaria; duas alfaiatarias; duas carpintarias; dois hotéis e “bilhares”;
duas cervejarias; uma olaria e dois açougues89. A relação entre a produção
de cerveja local e a produção de lúpulo se consolida a cada registro dessa
cultura no país.

Neste contexto, os lúpulos plantados pelo Barão rogavam de prestí-


gio na região, como podemos ver nesse depoimento de 1883 de Ignácio
Francisco José Reymann, plantador de lúpulo e fabricante de cervejas de
Rio Grande.
Habitava de principio e na maior confiança a chácara do Sr. Frederico
Rheingantz [cunhado do Barão], aonde fez a primeira plantação de
lúpulo, e hoje em dia, depois de seis meses de trabalho peníveis e
insanos e uma segunda plantação, consegui fazer prosperar as minhas
plantas na propriedade do sr. Reguly, alimentando ellas por um pe-
queno systema de irrigação. [...] Não há expressões para ousar lou-
var a assitencia e a protecção que me dispensou o sr. Barão Curt von
Steinberg, morador n’aquela colônia, assim como o sr. Reguly, muito
conhecido n’esta cidade [Rio Grande], que da melhor vontade, e não
obstante a sua grande idade ofereceu-me a sua amável assistência em
todas as ocasiões. Com o apoio de 2 homens de progresso desta qua-
lidade, não é difficil fazer bem, empregando-se sobretudo o trabalho,
a inteligência, as próprias capacidades e a força de vontade90 (grifo
nosso).

88  –  BOSENBECKER, P. Uma colônia cercada de estâncias: imigrantes em São Lou-


renço (1857-1877). Dissertação (mestrado em história). Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 2011.
89  –  DREHER, Martin Norberto. Notas sobre os 150 anos de imigração alemã em São
Lourenço do Sul. São Lourenço do Sul: [s. n.], 2008. Palestra proferida por ocasião das
comemorações dos 150 anos da imigração alemã em São Lourenço do Sul.
90 – BOSENBECKER, op. cit., 2017, p.183.

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Eduardo Fernandes Marcusso

A partir de 1889, com a proclamação da República, ocorreu uma


grande alteração na estrutura administrativa do Brasil como, por exem-
plo, a dissolução do IIFA e a entrega do Jardim Botânico para o Ministério
da Agricultura. Já em 1902, no relatório do MA, é registrado um título de
garantia de uma “nova receita para dosar o amargor na cerveja comum
substituindo o lupulo pelo páu pereira e abuta de Flora Brazileira”, por
Eusebio Maximiano Pires Ferreira, residente na cidade do Rio de Janeiro,
então capital federal91.

Já no relatório de 1910/1911 consta nas estatísticas as áreas culti-


vadas e o valor em réis. O lúpulo estava junto do algodão, linho, alfa-
fa, sarraceno, vinha, fumo, cana-de-açúcar, forragens e etc., perfazendo
2.760 hectares e 1.960:517$870 réis de valor de produção. Essa área é
semelhante ao registrado para produção de mandioca (2.629) e com valor
superior à produção de maior valor registrado (milho 1.342:399$316).
Outra menção importante é o registro da Companhia Rio Claro, que se
tornaria famosa pela cerveja Caracú92.

No registro da Companhia Rio Claro, em 5 de maio de 1910, com o


capital de 630:000$000 para além de produzir cerveja, gelo e bebidas al-
coólicas, destaca-se a promoção da cultura da cevada e do lúpulo. Ainda o
relatório do MA de 1910/1911 trata da distribuição de sementes e mudas
e para o lúpulo é definido 20 gramas por doação, conforme descrito nas
instruções da Portaria, de 2 de janeiro de 1911, do MA da Diretoria Geral
do Serviço de Inspeção e Defesa Agrícola93.

91 – BRASIL. Relatório do Ministério da Agricultura, 1903, p.52.


92  –  A cervejaria foi fundada como Fábrica de Cerveja e Gelo Rio Claro em 1899 pelo
major Carlos Roiz Pinho e arrendada ao alemão Julio Stern em 1902. Já em 1910 se torna
Cervejaria Rio Claro Companhia Industrial S.A., lançando a cerveja pilsen Rio Claro. Em
1930 a cervejaria passaria para o comando da família Scarpa, residente naquela cidade e
em 1967 se associa ao grupo europeu de cervejarias Skol International Limited, que lança
a cerveja Skol no Brasil e criando a Skol-Caracú. Por fim, em 1980 a Brahma compra a
Skol-Caracú, quando a Skol já era umas das cervejas mais vendidas do Brasil e em 1993
desativa a fábrica de Rio Claro e transfere a produção para a fábrica de Agudos-SP. COU-
TINHO [s. d.] Disponível em: http://m.acervo.estadao.com.br/noticias/acervo,viu-esse-
-anuncio-1938-caracu,70002396996,0.htm. Acesso em: 01 set 2021.
93 – BRASIL. Relatório do Ministério da Agricultura, 1911.

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Os primórdios do lúpulo no Brasil: A trajetória alcoólica brasileira
até o domínio cervejeiro e a introdução do lúpulo

Já no relatório de 1912/1913 a estatística de área e valor é atualiza-


da e o lúpulo aparece, dessa vez, junto de amendoim, batata-doce, hor-
taliças, cana-de-açúcar e linho com 8,710 hectares plantados somando
276:000$000 réis94.

Em 1916, ocorre a publicação dos privilégios de invenção conce-


didos pelo governo da época com duração de 15 anos a partir de 1913,
conforme decreto 8.820, de 30 de dezembro de 1882. Nesta lista está a
invenção de Wilhelm Ponndorf, engenheiro alemão residente em Cassel-
Bettenhausen, na Alemanha, para novo processo e aparelho para se obter
o extrato de lúpulo95. A mesma foi patenteada nos EUA em 1913 e consta
ilustração da máquina e sua assinatura da patente com Wilhem e Jacobus
ten Doornkaat Koolman, conforme podemos verificar abaixo

Figura 3: Máquina para produção do extrato de lúpulo de Koolman e Ponndorf.


Fonte: Patente Norte-Americana 1,055,475, mar. 11, 1913.
Disponível em: https://patents.google.com/patent/US1055475#

94 – BRASIL. Relatório do Ministério da Agricultura, 1913.


95 – BRASIL. Relatório do Ministério da Agricultura, 1917.

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Importante destacar que a patente dessa máquina reflete a evolução


no processamento do lúpulo e cria um grande diferencial entre o lúpulo
plantado no Brasil com o extrato de lúpulo advindo da Europa, sendo o
extrato com rendimento muito maior para indústria cervejeira.

Por fim, a última referência sobre lúpulo nos relatórios do MA ocor-


re em 1918, com a descrição das lavouras e apontamento de rendimento
médio por acre da produção de lúpulo no Brasil no mês de outubro, junto
do trigo, cevada, aveia, centeio96.

Após esse período a produção de lúpulo continuou no Brasil, mas


sempre sofrendo a forte concorrência dos lúpulos importados que pos-
suíam uma genética de maior rendimento, devido ao histórico do cultivo
nos países de altas latitudes. Essa concorrência começa a ficar muito des-
favorável para o lúpulo nacional com o emprego de novas tecnologias no
processamento do extrato de lúpulo nos países de maior industrialização,
assim a produção de lúpulo no Brasil começa a perder força.

Um dos últimos registros de produção no Brasil no século XX refor-


ça a tese de abandono da produção devido a concorrência com os produ-
tos importados. Na cidade de Nova Petrópolis-RS, em 1953, o austríaco
Roland Hoblik produzida lúpulo abundantemente, numa área que chegou
a 15 hectares para venda para a Cervejaria Antarctica97. Contudo com o
passar dos anos, tornou-se mais barato importar o produto e o cultivo foi
deixado de lado pelo fumo e milho98.

Somente no século XXI a produção voltou ao Brasil, em 2011, com


uma variedade adaptada ao clima brasileiro, a ‘Mantiqueira’, desenvolvi-
da e lançada pelo viveiro Frutopia em São Bento do Sapucaí-SP. A produ-
ção foi fomentada e utilizada pela cervejaria Baden Baden de Campos do
Jordão-SP que pertencia ao grupo cervejeiro Brasil Kirin na época e hoje
Heineken Brasil99.

96 – BRASIL. Relatório do Ministério da Agricultura, 1918.


97  –  SPÓSITO, et al., op. cit.
98 – MARCUSSO; MÜLLER, op.cit.
99  –  SPÓSITO et al., op. cit.

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Os primórdios do lúpulo no Brasil: A trajetória alcoólica brasileira
até o domínio cervejeiro e a introdução do lúpulo

Mesmo com os avanços em áreas de plantio, novas variedades, mais


de 98% do produto é importado pela indústria cervejeira brasileira, prin-
cipalmente dos Estados Unidos e Alemanha100. Somente no ano de 2020
foram importados mais de 3 mil toneladas de lúpulo e no valor de mais de
U$ 57 milhões, sobretudo pellets e extratos101.

Considerações Finais
Como podemos notar, é fundamental compreender o contexto da
produção e consumo de bebidas alcoólicas no Brasil para entender o pro-
cesso de introdução de lúpulo no Brasil. A ingestão de bebidas alcoólicas
é uma marca do povo brasileiro desde sua formação nas diferentes matri-
zes étnico-culturais e nas diferentes fases históricas e espaços geográfi-
cos, estabelecendo uma linha de conexão entre as bebidas alcoólicas que
vigoraram com predominância em terras tupiniquins, a saber, em sequ-
ência histórica: as bebidas alcoólicas fermentadas indígenas, as bebidas
destiladas portuguesas e brasileiras e, por fim, as cervejas importada e
nacional102. Essa trajetória etílica passa pela ascensão da cachaça como
mecanismos de desagregação dos índios e construção de práticas e há-
bitos culturais envolvendo essa bebida no âmbito da escravidão e de seu
comércio até como elemento de resistência, de identidade nacional e de
símbolo da independência do Brasil. O domínio da cerveja vem com a
imigração europeia e a modernidade estruturando novas formas cotidia-
nas de consumo de bebidas alcoólicas.

Neste contexto, podemos afirmar que a chegada do lúpulo no Brasil


está ligada a essa trajetória alcoólica no Brasil e o domínio da cerveja
como bebida popular. Os imigrantes europeus, suas tradições e conheci-
mentos da cultura foram fundamentais, destacando-se os alemães vindos
nas primeiras décadas do século XIX e notadamente a importância da ci-
dade alemã de Hamburgo, como ponte entre os países e com sua tradição
cervejeira e de plantio de lúpulo.
100 – GUIMARÃES, et al., op. cit.
101  –  COMEXSTAT. Sistema de Estatísticas do Comércio Exterior. Ministério da Eco-
nomia. Disponível em: <http://comexstat.mdic.gov.br/pt/geral>. Acesso em: 13 set 2021.
102 – MARCUSSO, op. cit.

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Eduardo Fernandes Marcusso

A expansão da produção nacional contou com apoio do governo im-


perial e republicano distribuindo mudas para as colônias, sobretudo do
Sul do país, como mostram os relatórios do MA. Contudo, o registro da
máquina de extração de lúpulo demonstra a maximização da utilização do
lúpulo na indústria cervejeira e a derrocada da produção nacional que não
tinha o melhoramento genético necessário para competir com os lúpulos
importados, agora processado em seu extrato, ganhando maior rentabili-
dade na indústria cervejeira.

Por isso podemos olhar para o passado da introdução de lúpulo no


Brasil e verificar que a mesma pergunta que se fazia no século XIX se
faz no século XXI: é possível plantar lúpulo no país de forma comercial?
Antigamente a evolução no processamento do lúpulo não permitiu que a
produção nacional se sustentasse, sendo dominada por produtos impor-
tados. Mas atualmente o lúpulo volta a ganhar força no Brasil, já tendo
48 registros no Registro Nacional de Cultivares para lúpulo, sendo que
todas estão livres de patentes. Esse avanço se dá na esteira do mercado
de cerveja, que teve seu número de cervejarias entre 2001-2020, saltando
de 41 cervejarias para 1383, concentradas sobretudo no Sudeste e Sul103.

O mesmo entusiasmo visto nos produtores de lúpulo no Brasil


de ontem por meio dos relatos é visto hoje na organização dos produ-
tores, em especial na Associação Brasileira de Produtores de Lúpulo -
APROLUPULO, criada em 19 de maio de 2018, na cidade de Lages, na
serra catarinense. A entidade conta atualmente com quase 150 associados
presentes em dez unidades da federação com cerca de 50 hectares planta-
dos e produção estimada em 20 toneladas104.

O lúpulo Brasileiro começa a se tornar uma realidade e a estrutura-


ção do mercado mostra que, no mesmo ritmo do crescimento da atividade
cervejeira no Brasil, o lúpulo nacional tem suas raízes na vontade e per-

103 – BRASIL. Anuário da Cerveja 2020. Secretaria de Defesa Agropecuária, Ministé-


rio da Agricultura, Pecuária e Abastecimento - MAPA, 2021.
104  –  GONSAGA, Renan Furlan. Desenvolvimento de híbridos de lúpulo adaptados às
condições tropicais. Tese (Doutorado em Agronomia) UNESP/Jaboticabal, 2021.

262 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):233-264, jan./abr. 2022.


Os primórdios do lúpulo no Brasil: A trajetória alcoólica brasileira
até o domínio cervejeiro e a introdução do lúpulo

severança dos seus introdutores do século XIX, e suas flores no empreen-


dedorismo e paixão dos agricultores do século XXI.

Texto apresentado em outubro de 2021. Aprovado para publicação


em junho de 2022.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):233-264, jan./abr. 2022. 263


Origem do epíteto “cidade maravilhosa”
para designar o Rio de Janeiro: lenda e verdade

265

II – COMUNICAÇÕES
NOTIFICATIONS

ORIGEM DO EPÍTETO “CIDADE MARAVILHOSA” PARA


DESIGNAR O RIO DE JANEIRO: LENDA E VERDADE
ORIGIN OF THE EPITHET “MARVELOUS CITY” TO
DESIGNATE THE CITY OF RIO DE JANEIRO: LEGEND AND
TRUTH
Ivo Korytowski1

Resumo: Abstract:
Na primeira parte do artigo, desminto a len- In the first part of the article, I dispel the
da urbana difundida de que o epíteto “Cidade widespread myth that the writer Coelho Neto
Maravilhosa” para designar o Rio de Janeiro created the epithet “Cidade Maravilhosa”
foi uma criação do escritor Coelho Neto. Na (Marvellous City) to designate the city of Rio de
segunda parte, procuro desvendar a origem real Janeiro. In the second part, I try to unravel the
do epíteto. Mostro que foi usado para designar real origin of the epithet by showing that it was
a Exposição Nacional de 1908, depois o “novo first used to designate the National Exhibition
Rio” surgido das reformas urbanísticas de Perei- of 1908, and later the “New Rio” resulting from
ra Passos, até enfim se popularizar com a mar- the urban reforms carried out of Pereira Passos,
chinha “Cidade Maravilhosa”. until it finally became popular in the carnival
song Cidade Maravilhosa.
Palavras-chave: Cidade Maravilhosa, Rio de Keywords: Cidade Maravilhosa, Rio de Janeiro,
Janeiro, Coelho Neto. Coelho Neto.

PARTE I

Desbancando o mito de que o epíteto “Cidade Maravilhosa” foi


criado pelo escritor maranhense Coelho Neto
Pelo menos desde meados da década de 19302, circula a “lenda ur-
bana” de que o epíteto “Cidade Maravilhosa”, concedido à Mui Leal e
Heróica Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, teria sido criado na

1  –  Escritor com duas obras premiadas pela UBE-RJ, tradutor consagrado, lexicógrafo,
filósofo graduado e licenciado pela UFRJ, pesquisador da história do Rio. Tem colabo-
rações publicadas na Revista Brasileira da ABL, revista Littera, revista Ficções, revista
Pilares da História e jornal O Trem Itabirano. E-mail: ivokory@gmail.com.
2  –  Segundo as evidências que consegui levantar em antigos jornais.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):265-294, jan./abr. 2022. 265


Ivo Korytowski

primeira década do século XX, pelo escritor maranhense Coelho Neto,


popularíssimo na época.
No Jornal do Brasil de 17 de maio de 1936, página 19, encontrei
a primeira alusão à crença na coluna intitulada “Entre os Caprichos da
Moda…(Crônica de Rosita)”, na qual consta: “Na verdade, os banhos de
mar encantam a fisionomia das urbes, o aspecto desse Rio de Janeiro a
que, há muitos anos, Coelho Neto chamou ‘cidade maravilhosa’ [grifo
nosso]...”. Com a morte de Coelho Neto em 1934, é possível que seu fi-
lho, Paulo Coelho Neto, passasse a disseminar tal crença. Assim é que, em
discurso por ocasião da inauguração da Escola Coelho Neto em Ricardo
de Albuquerque, em 1937, diz Paulo:
Bem expressivo foi o ato do governo da cidade, dando o nome de
Coelho Neto a essa escola. Na Escola Dramática ou no Conselho
Consultivo do Teatro Municipal, nas comemorações cívicas, como
orador oficial, ou nas jornadas da imprensa em que jamais submeteu
sua consciência às conveniências do momento, Coelho Neto serviu
e honrou a Municipalidade e a linda capital por ele sugestivamente
batizada Cidade Maravilhosa [grifo nosso]3.

Segundo essa crença, o epíteto teria sido empregado pela primeira


vez em crônica intitulada “Os Sertanejos”, publicada em 1908 no jor-
nal A Notícia (Anexo 1)4. A publicação, em 1928, do livro de contos A
Cidade Maravilhosa, por esse mesmo autor, corroboraria essa crença. A
atribuição da paternidade do epíteto a esse grande escritor foi mais uma
dessas “lendas urbanas” que as pessoas repetem ad nauseam, até se tor-
narem “verdades”. Vejamos três exemplos da disseminação dessa crença
infundada:

1) No resumo inicial do artigo “A Cidade Maravilhosa: Uma


Percepção de Coelho Neto sobre a Construção de um Ideal de Rio de
Janeiro”, os autores Eduardo da Cruz e Pedro Henrique Almeida Póvoa
escrevem: “Este artigo se propõe a analisar a criação do epíteto ‘cidade

3 – Jornal do Brasil, 1° de setembro de 1937, p. 10.


4  –  Consultado por este autor na Biblioteca Nacional, já que não achou esta edição do
jornal na Hemeroteca Digital.

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Origem do epíteto “cidade maravilhosa”
para designar o Rio de Janeiro: lenda e verdade

maravilhosa’ atribuído ao Rio de Janeiro a partir da leitura de três obras


de Coelho Neto”5.

2) O Instituto de Geografia da UERJ organizou, de 24 a 29 de no-


vembro de 2008, o seminário científico cultural Centenária Cidade
Maravilhosa e o Nosso Rio Continua Lindo, celebrando “os cem anos
do título ‘Cidade Maravilhosa’ conferido pelo escritor Coelho Neto, no
jornal A Notícia, em 29 de novembro de 1908 [grifo nosso], à cidade de
São Sebastião do Rio de Janeiro”6.

3) Fernando Krieger, em artigo publicado no site do Instituto Moreira


Salles, sustenta:
Circulam duas versões para o nascimento da expressão ‘Cidade ma-
ravilhosa’. A primeira diz que ela foi criada pelo escritor maranhense
Coelho Neto, no artigo ‘Os sertanejos’, publicado no jornal A Notícia
de 29 de novembro de 1908. O mesmo autor lançou, em 1928, um li-
vro chamado exatamente Cidade maravilhosa, que continha uma série
de crônicas sobre o Rio de Janeiro [idem]7.

Observe-se que a crônica “Os Sertanejos” não foi publicada em 29


de novembro, como consta nos dois últimos exemplos acima, e sim na
edição de 29-30 de outubro. Ou seja, havia décadas, repetia-se a “lenda
urbana” sem que ninguém se desse ao trabalho de conferir a fonte.

5 – Nonada: Letras em Revista, vol. 1, n. 28, maio de, 2017, pp. 194-209.
6  –  Convite enviado por e-mail a este autor.
7  –  “Cidade maravilhosa” I: André Filho e a saga de uma marcha-hino. Artigo publicado
em 20 de janeiro de 2015 no site do IMS. Acessível em https://ims.com.br/por-dentro-
-acervos/cidade-maravilhosa-i-andre-filho-e-a-saga-de-uma-marcha-hino/

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Ivo Korytowski

Página 3 de A Notícia de 29-30 de outubro de 1908, contendo no folhetim superior a crônica “Os Sertanejos” de
Coelho Neto. As edições de 1908 desse jornal não constam da Hemeroteca Digital, só estando disponíveis em
microfichas na Biblioteca Nacional.

Além disso, Cidade maravilhosa não é um livro de “crônicas sobre o


Rio de Janeiro”, e a “cidade maravilhosa” a que alude o conto de mesmo
título não é o Rio, como mostrarei adiante. Ou seja, as pessoas citavam
o livro, em reforço à “lenda urbana”, sem se darem ao trabalho de lê-lo.

Examinemos, pois, a crônica “Os Sertanejos” onde supostamente


Coelho Neto teria atribuído o epíteto “Cidade Maravilhosa” ao Rio de
Janeiro. Ela narra a história de um grupo de artistas matutos “contrata-

268 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):265-294, jan./abr. 2022.


Origem do epíteto “cidade maravilhosa”
para designar o Rio de Janeiro: lenda e verdade

dos para cantar e dansar no recinto da Exposição” (a Exposição Nacional


Comemorativa do Centenário da Abertura dos Portos, de 1908), mas que,
assustados com a modernidade da metrópole, não conseguem repetir ali
os mesmos cantos e danças em que são exímios no seu ambiente natural,
o plácido sertão, e acabam por decepcionar o público. Afinal, conclui o
autor, “Almas não são batatas que se exhibam em exposições, a alma só
se expande livre e espontaneamente”8.

Após conhecerem a cidade em si –


a cidade formidavel, a cidade devoradora d’homens, com as avenidas
largas, margeadas de palacios colossaes, com o mover incessante de
uma multidão apressada, com o reboliço vertiginoso dos vehiculos,
com a zoeira dos automoveis, com o troar dos pregões, com todo esse
confuso movimento que é a vida, desde o passo subtil, despercebido
de um mendigo andrajoso que se esgueira ao longo dos muros, res-
mungando lamurias, até a estropeada heroica de um regimento com a
bandeira desfraldada ao vento, as armas lampejando ao sol e os clarins
resoando em notas marciaes.

– ao adentrarem a Exposição, “na avenida dos palacios brancos”, são


tomados pelo assombro:
– Assumpta, Clodina: não parece qu’a gente tá vendo uma cidade en-
cantada como aquellas das história [sic]?
[...]
Era ao cahir da tarde, uma tarde elegiaca, violacea, quieta, sem o silvo
de uma cigarra. Os penhascos pareciam de lapis lazuli e os palacios,
ainda mais brancos sobre o fundo escuro das rochas portentosas, alve-
javam marmoreos. Longe, nos estábulos, o gado tino mugia, nostal-
gico, pondo no silêncio enlevado a tristeza bucolica das varzeas, em
contraste com o requinte da cidade maravilhosa. A moça estremeceu
á voz dos animaes, e logo, relembrando histórias, cochichou á com-
panheira:
– Ocê ouvio, Clodina ? A mode qu’é boi berrando. Não vá sê gente
encantada !
[...]
8  –  Coelho Neto, “Os sertanejos”, A Notícia, 29-30 de outubro de 1908. Nesta e em
outras citações neste artigo, mantenho a ortografia original.

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Ivo Korytowski

Subito uma deflagração ! Collares de lampadas em fogo e a linha dos


edificios debruada a luzes. Foi um medo panico indizivel: “Vote !
Misericordia ! T’esconjuro ! Nossa Senhora !”
– Clodina, ocê tá vendo ? Eu não dixe ? É o inferno ! Oia cumo tudo
se accendeu d’uma vez e sem phosque [fósforo].
Estacaram deslumbrados. A Cidade Maravilhosa resplandecia como
nas lendas. No fundo, na concha do palacio das Industrias, a agua
escachoava colorindo-se à refracção das luzes. Surgiram monstros
flammineos acaçapados, no relvedo, esguicharam repuchos polychro-
micos e a misera gente tremia e encommendava-se aos santos, fazen-
do promessas arduas, arrependida de haver seguido o diabo seductor
que a fôra buscar no repouso feliz da sua terra para arrojal-a naquelle
inferno.9

Vemos claramente que o termo “Cidade Maravilhosa” está sen-


do, nesta crônica de Coelho Neto, aplicado à Exposição Nacional
Comemorativa do Centenário da Abertura dos Portos, não à cidade como
um todo. De fato, a crônica, cuja íntegra pode ser lida no Anexo 1, con-
trapõe a cidade “formidável”, “devoradora d’homens”, ou seja, a cidade
“normal”, por um lado, à cidade deslumbrante, maravilhosa da Exposição
Nacional, por outro. Aliás, a imprensa da época valeu-se amiúde das de-
signações “Cidade Maravilha” e “Cidade Maravilhosa” em referência à
exposição que encantou os cariocas, como atestam as leituras dos jornais
de então. O epíteto não surgiu ex nihilo da cabeça de Coelho Neto em
“Os Sertanejos”, como reza a lenda urbana; já era corrente (junto com
“Cidade Maravilha”) para designar a Exposição, como veremos adiante
neste artigo.

Em 10 de novembro de 1927, o escritor maranhense publicou, na pá-


gina 8 do Jornal do Brasil, uma versão bastante modificada desta crônica,
agora denominada simplesmente “Sertanejos”, na qual a Exposição dá lu-
gar a um cinema e, agora sim, a “Cidade Maravilhosa” alude ao Rio como
um todo. Àquela altura o epíteto já havia se consagrado, nada ficando a
dever à crônica reformulada. O que não sabemos é se o autor modificou
a crônica com o propósito expresso de reforçar a lenda urbana, já que na
9  –  Coelho Neto, “Os sertanejos”, A Notícia, 29-30 de outubro de 1908.

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Origem do epíteto “cidade maravilhosa”
para designar o Rio de Janeiro: lenda e verdade

época ninguém mais se lembrava do artigo original de 1908 (não havia


Internet para pesquisar!).

Em 1928, Coelho Neto publica seu livro de contos A Cidade


Maravilhosa, mas ao contrário do que se propala, não é uma coletânea de
textos de temática tipicamente carioca. São contos (alguns tão curtos que
beiram à crônica) de temas variados: por exemplo, “Aproximações” narra
as desventuras de um homem que, tendo nascido entre 31 de dezembro de
1899 e 1º de janeiro de 190010, não sabe exatamente a que século perten-
ce; já em “O Potro e o Sendeiro”, um velho e um jovem trocam de alma
– a alma do velho indo para o corpo do jovem e vice-versa11.

Ademais, a “cidade maravilhosa” que dá nome, não só à obra como


ao conto inicial, no qual um pintor carioca tenta seduzir uma professora
interiorana, não é o Rio de Janeiro, e sim uma “cidade de sonho”, imagi-
nária, evocada à noite por uma queimada passageira gerando “umas horas
breves de esplendor”:
Aqui a tem, a sua cidade maravilhosa. Viu-a de longe, era linda. Veja
agora. Illusões, fanciulla [criancice]... Illusões... Adriana olhava estar-
recida. Mas não era a destruição das arvores, não eram aquellas cin-
zas pardacentas, ainda mornas, não eram aquelles troncos denegridos,
aquelles ramos que rechinavam [=queimavam] amojados de seiva que
a commoviam, mas a lembrança da scena da estrada, a sedução do
homem sinistro a mostrar-lhe, ao longe, no fogareu rutilante, a cidade
maravilhosa, cidade do sonho, cidade do amor.
E, na imaginação, poz-se a comparar o seu destino ao daquellas arvo-
res, ao de toda aquella terra calcinada e em miseria depois de umas
horas breves de esplendor.

Mas se o epíteto pelo qual a cidade de São Sebastião tornou-se co-


nhecida não foi criação do autor de A Capital Federal, que tão bem soube
retratá-la, qual teria sido sua real origem?

10  –  A rigor o século começou em 1901.


11  –  Verbete A Cidade Maravilhosa (livro) da Wikipédia criado pelo autor deste artigo.

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Ivo Korytowski

PARTE II

Em busca da verdadeira origem do epíteto “Cidade Maravilhosa”


Em 1884, retornando de uma viagem à Argentina que resultou na
obra Sull’oceano, o escritor italiano Edmondo de Amicis, mais conhe-
cido por seu clássico Coração, fez uma breve escala no porto do Rio de
Janeiro. Apenas dezoito anos depois (1902) veio a escrever um artigo
sobre a cidade, publicado no suplemento La Lettura do jornal milanês
Corriere della Sera12. Possivelmente, foi a primeira vez em que se fez
alusão à cidade do Rio de Janeiro como “maravilhosa”.
– Por que o senhor nunca escreveu nada sobre o Rio de Janeiro?
Esta pergunta me foi feita uma centena de vezes durante os dezoito
anos que se passaram desde que fui ao Brasil, e cem vezes dei sempre
a mesma resposta pronta, tal como fazem os deputados quando con-
versam com os eleitores: – Porque fiquei apenas três dias, quando o
Sírio, o navio em que viajei de Buenos Aires para Gênova, fez uma
escala no porto da cidade. Amigos bondosos se desdobraram para me
mostrar tudo, levando-me para todos os lados de carruagem, de bonde
e em via férrea, desde cedo até a noite, como alguém que quisessem
salvar da caça de uma banda de credores; vi muito, mas vi tudo cor-
rendo, afobado e com os olhos ofuscados pelo cansaço, de forma que
me esqueci de muitas coisas, e de outras só tenho uma vaga lembran-
ça, e até das imagens que se mantiveram mais vivas tenho lacunas
obscuras, sobre as quais mesmo se reflito longamente nunca consegui
captar uma mínima recordação. O que poderia escrever? Seria como
descrever um sonho.
A esta resposta de sempre, poucos dias atrás, um intrépido italiano,
que recentemente voltou do Brasil para Itália, rebateu sagazmente: –
Mas o senhor não se sente tentado a fazer a descrição de uma cidade
maravilhosa (E non la tenta la descrizione d’uma città maravigliosa,
no original italiano)13, onde permaneceu somente poucas horas, e da
qual se lembra apenas como um sonho?

12  –  O artigo foi incluído como bônus na edição brasileira do livro citado, intitulada Em
Alto-Mar, publicada em 2017 pela Nova Alexandria em coedição com o Istituto Italiano
di Cultura, com tradução, curadoria e notas de Adriana Marcolini.
13 – Edmondo De Amicis: scritti per "La lettura," 1902-1908, Fondazione Corriere della
Sera, 2008, acessado no Google Livros.

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Origem do epíteto “cidade maravilhosa”
para designar o Rio de Janeiro: lenda e verdade

– Eis aí uma ideia – pensei.


E aquela ideia colocou-me a pena na mão e pregou-me à escrivaninha.
[...]
Sim, Mantegazza tinha razão quando me escreveu: – Queira me des-
culpar, mas o Rio de Janeiro é mais bonito que Constantinopla. – Não
é que a cidade seja mais bonita, mas sim o lugar, as águas, toda a
natureza que a circunda. Oh, não há comparação!

O primeiro registro na imprensa carioca do epíteto “Cidade


Maravilhosa” aplicado ao Rio de Janeiro está na página 2 do jornal O
Paiz de terça-feira, 16 de fevereiro de 1904, pleno Carnaval. Em artigo
sobre os carros alegóricos que desfilavam pela cidade, lemos:
A carrocinha municipal era o carro de critica que se seguia, vendo-se
dentro das grades espirituosos mascaras protestando contra o acto mu-
nicipal que tolheu a canina estirpe de viver e gozar da plena liberdade
das ruas desta capital. E não contentes com os protestos feitos de viva
voz, ainda distribuiam estes versos em avulso:

MATRICULADOS E NÃO MATRICULADOS

Esta gaiola bonita


Que ahi vai sem embaraços
É a invenção mais catita
Do genial Dr. Passos

As ruas, de ponta a ponta,


Subindo e descendo morros,
Por onde passa da conta,
Dos vagabundos cachorros.

Agarra! Cerca! Segura!


– Grita a matilha dos guardas –
Correndo como em loucura
Com um rumor de cem bombardas.

Terra sempre em polvorosa,


Sem igual no mundo inteiro,

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Ivo Korytowski

Cidade maravilhosa!
Salve, Rio de Janeiro!14”

A partir daí, vemos, naquele início de século, referências esparsas


à cidade do Rio como “maravilhosa”. Por exemplo, na página 1 de O
Paiz de 04/05/1904, em matéria intitulada “Uma Obra Política”, sobre
as grandes reformas urbanas na então Capital Federal, capitaneadas pelo
presidente Rodrigues Alves, lemos:
As excellentes promessas feitas, aliás, sem o menor vislumbre de
ostentação pelo Sr. Dr. Rodrigues Alves, no manifesto inaugural do
seu governo, começaram a transformar-se, felizmente para o paiz,
em consoladoras realidades. [...] A população comprehendeu bem a
grandeza do serviço que o governo lhe vai prestar, negando-se a crear
embaraços á sua acção, como queriam agitadores profissionais, antes,
facilitando todos os accôrdos e sujeitando-se a todas as prescripções
legaes, no bom intento de ver transformada, embellezada e saneada
esta cidade maravilhosa, de cuja fama e de cuja força depende o
equilíbrio da seiva economica em todos os orgãos do paiz.

Na página 3 de A Notícia de 22-23/5/1907, em matéria intitulada


“No Palacio Monroe”, lemos:
Está ainda na lembrança de todos os habitantes desta cidade maravi-
lhosa a rapidez com que o general Dr. Francisco Marcelino de Souza
Aguiar concluio o Palacio Monroe, para o qual aproveitou o mesmo
plano e grande parte de elementos que serviram na architectura do
pavilhão brasileiro da Exposição Universal de S. Luiz.

A revista O Malho publica, na edição 219 de 1906, por ocasião da


abertura da Avenida Beira Mar, a seguinte caricatura com a legenda:
“Zé Povo : – Abençoado Passos, que me deste uma das primeiras ave-
nidas maritimas do mundo ! Avenida de onde se gosa o espectaculo
surprehendente da formosa Guanabara ! Cinta elegantissima desta ci-
dade maravilhosa ! Caminho amplo e limpo, onde se não encontra o
vulto revoltante de um kiosque ! Eu te saudo !...”

14  –  Nessa mesma data, o Jornal do Brasil reproduz, na pág. 2, e o Jornal do Commer-
cio, na primeira página, estes mesmos versos.

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Origem do epíteto “cidade maravilhosa”
para designar o Rio de Janeiro: lenda e verdade

A Revista da Semana publica na edição de 3 de novembro de 1907,


na seção “Chroniqueta”, assinada por Raulino, a informação de que
“Paris, que se distrae e se diverte, espalha actualmente grandes annuncios
de espectaculos cinematographicos em que o numero sensacional do pro-
gramma é ‘Uma cidade maravilhosa, Rio de Janeiro, Brasil, a sua rapida
transformação em dois annos, vistas e aspectos pittorescos’. [...]”

Em 1908 montou-se na Urca a Exposição Nacional comemorati-


va do centenário da abertura dos portos, na época uma espécie de “ci-
dade artificial” asséptica & deslumbrante, como hoje, digamos, uma
Disneyworld. Nesse período torna-se comum na imprensa designar
essa exposição de “cidade maravilha” ou “cidade maravilhosa”. Por
exemplo, a seção THEATROS E MUSICA, no Jornal do Commercio
de 27 de setembro de 1908, informa, sob a rubrica CONCERTOS DA
EXPOSIÇÃO, que “realizou-se hontem o vigesimo concerto symphonico
da Exposição Nacional. / A tarde estava luminosa e fresca e um passeio á
praia Vermelha não deixava de seduzir, principalmente tendo-se em conta
que na cidade maravilhosa [a exposição] esperava o visitante uma audi-

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Ivo Korytowski

ção orchestral captivante, attrahente [...]”. Também a Gazeta de Notícias,


na edição de 16 de outubro, informa na sua primeira página que “A expo-
sição Nacional de 1908 está a encerrar-se. Mais um mez e aquella cidade
maravilhosa desapparecerá.”

Finda a exposição, encontramos o epíteto “Cidade Maravilhosa”


aplicado ao “novo Rio”, resultante das reformas do prefeito Pereira
Passos. Assim é que o jornal A Imprensa, cujo redator-chefe era Alcindo
Guanabara, em matéria de primeira página sobre o “regresso” de Pereira
Passos de uma viagem, em 8 de agosto de 1909, informa:
Deve hoje, chegar a esta capital o sr. dr. Francisco Pereira Passos,
nosso ex-prefeito, que será alvo de uma imponente manifestação que
lhe preparam aquelles a quem elle dotou com uma cidade maravilho-
sa, feita em bem curto espaço de tempo. / A manifestação que hoje, a
população carioca vai prestar ao eminente dr. Pereira Passos, é justo
e significativo tributo aos seus altos meritos e, sobretudo, a mais ex-
pressiva prova de gratidão áquelle que envidou os melhores de seus
esforços para transformar a Capital do Brasil, de um centro colonial,
em uma cidade digna de um povo culto.

Dentro desse mesmo espírito, na página 2 de A Notícia de 6-7/07/1909,


em matéria intitulada “Dez Annos Atrás”, lemos:
Que era a cidade do Rio de Janeiro ha dez annos? Que é a cidade
hoje? Houve uma transformação completa, um passe de magica, uma
maravilha. O Dr. Passos, com o seu grande poder magico municipal,
com o talismã da sua grande energia administrativo, pôz o dedo num
botão electrico, afundou no porão a velha Sebastianopolis e fez surgir
no scenario carioca, diante dos olhos do espectador attonito, outra ci-
dade–nova, arejada, arborisada, asphaltada, moderna, para que toda a
gente pasmo [sic]. [...] e hoje, dez annos depois, passeando esta cidade
de tão lindas ruas novas, percorrendo as avenidas, respirando um ar
que não é o das antigas vielas infectas, habitando uma nova cidade
maravilhosa e salubre, ouvindo o applauso do estrangeiro e não lendo
no obituário um único caso de febre amarella [etc.].

O jornal A Notícia, de 21-22 de setembro de 1909, declara em ma-


téria de primeira página intitulada PEQUENOS ECHOS: “O Rio tem já
sido de tal modo decantado por estrangeiros illustres, que deve ser hoje

276 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):265-294, jan./abr. 2022.


Origem do epíteto “cidade maravilhosa”
para designar o Rio de Janeiro: lenda e verdade

considerado pelos que ainda o não conhecem como uma cidade maravi-
lhosa”. Este mesmo jornal, na edição de 15-16 de agosto de 1910, escre-
ve, em matéria de primeira página intitulada A CIDADE:
Dias como o de hontem, pela sua doçura, a sua luz, a sua alegria são
verdadeiras dadivas do céo. [...] É por um dia assim que a nossa cidade
melhor brilha nas suas pompas e galas, ostentando os esplendores de
uma cidade maravilhosa [...].

De setembro a dezembro de 1911, a poetisa francesa Jane Catulle


Mendès, viúva do escritor e poeta Catulle Mendès, visitou o Rio de
Janeiro, encontrando uma urbe recém-emergida de um “banho de loja”
que foi a reforma urbanística de Pereira Passos. Encantada com a cidade,
sobretudo pela flora e belezas naturais, escreveu uma série de poemas de
“amor ao Rio”, publicados em Paris em 1913, com volume intitulado La
Ville Merveilleuse (A Cidade Maravilhosa).

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Ivo Korytowski

Já no primeiro poema, descrevendo a chegada (de navio, na épo-


ca) na Baía da Guanabara, escreve a poetisa: “Jamais tant de splendeurs
n’ont ébloui les yeux! C’est ici le pays de toute la lumière” (Jamais tantos
esplendores deslumbraram os olhos! Aqui é a terra de todas as luzes);
no poema final, “Adieu” (“Adeus”), escreve: “Rio douce et fougueuse
au visage doré” (Rio doce e briosa de semblante dourado”). E no poema
“Dans Longtemps” (Daqui a muito tempo), a autora não poupa declara-
ções de amor à cidade: “Cité voluptueuse et tendre” (Cidade voluptuosa
e meiga) “Cité d’or” (Cidade de ouro) “Rio radieuse, ô Ville des étoi-
les” (Rio radiante, ó Cidade das estrelas) “Merveilleuse Rio, Ville de la
Beauté” (Rio Maravilhoso, Cidade da Beleza)15.

Na obra Rio Belle Époque: Álbum de imagens, escreve Alexei


Bueno: “Parece-nos, portanto, que a hoje totalmente esquecida Jane
Catulle Mendès foi, senão a criadora, a oficializadora do epíteto do Rio
de Janeiro16”. Mas Catulle Mendès não estava sozinha. No mesmo ano da
publicação do livro da poetisa francesa, o jornal A Notícia publica uma
crônica, na coluna “Contos de Hoje” de Eugenio de Lemos, sobre quão
bonita ficou a cidade após as reformas urbanísticas. Título da crônica: A
CIDADE MARAVILHOSA (Anexo 3)17.

15  –  Artigo sobre a obra de Catulle Mendès intitulado LA VILLE MERVEILLEUSE (A


CIDADE MARAVILHOSA) de JANE CATULLE MENDÈS encontra-se no blog Litera-
tura, Rio de Janeiro & São Paulo, em http://literaturaeriodejaneiro.blogspot.com/2015/03/
la-ville-merveilleuse-cidade.html
16  –  Alexei Bueno, Rio Belle Époque: Álbum de Imagens, Bem-Te-Vi Produções Lite-
rárias, 2015.
17 – Jornal A Notícia, edição de 20-21/3/1913, pág. 3, acessado por este autor na Heme-
roteca Digital.

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Origem do epíteto “cidade maravilhosa”
para designar o Rio de Janeiro: lenda e verdade

Pela primeira vez o epíteto dá título a um texto jornalístico so-


bre a cidade, que contrasta a velha cidade colonial – “um amontoado
immenso de construcções de uma architectonica rotineira e uma serie de
vielas sem ar e sem luz” – com a “Cidade Maravilhosa”, surgida pela
“vontade de um punhado de homens, que felizmente a Republica soube
chamar á direcção dos seus destinos”, de modo que “as maravilhas huma-
nas começaram a surgir”. “A velha cidade ruiu sob o alvião demolidor,
e as avenidas abriram espaço á luz e ao ar.” “Cidade Maravilhosa! É a

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Ivo Korytowski

exclamação de todos que nos visitam.” Mais adiante deparamos com este
trecho profético:
A cidade progride e avança; toma o mar e toma as montanhas, e esten-
de-se para as costas, varando as rochas. Ainda não temos os caminhos
subterraneos, mas para lá caminhamos acceleradamente. E quando a
cidade tiver tudo isso, quando ella não construir os seus palacios ape-
nas na planicie, mas os levar para as montanhas, quando ella habitar
tambem os [sic] ilhas encantadoras de sua refulgente bahia e o mar se
encher de elegantes yachts, como hoje as avenidas se enchem de auto-
moveis, então ella poderá desafiar as que mais bellas o forem. Ella já
é a cidade maravilhosa.18

A Revista da Semana, em 23 de maio de 1914 publica uma


CHRONICA de louvação ao Rio de Janeiro que diz (entre outras coisas):
Se ha uma cidade que pelos maravilhosos adornos da natureza, pela
disposição esplendida das suas avenidas e dos seus parques, se presta
á pratica das festas ao ar livre, essa cidade é o Rio de Janeiro. [...]
Tudo, no Rio, convida ao convivio intimo com a natureza, tal é o es-
plendor de que ella se reveste, taes são as magnificencias de que ella
se adorna. A luz intensa que envolve a cidade maravilhosa, o clima
que a affaga desde maio a setembro, o embalsamado e gigantesco par-
que que a envolve, destinam-a a sêr um dos paraisos da terra.

Em 1922, Olegário Mariano publica pela editora Pimenta de Mello,


com uma segunda edição em 1930 da Companhia Editora Nacional, um
livro de poesias intitulado Cidade Maravilhosa. O poema inicial que tam-
bém dá nome ao livro, é uma louvação ao Rio de Janeiro, a “Cidade
do Amor e da Loucura”, “Cidade do Êxtase e da Melancolia”, “Flor das
Cidades”, em suma, “Cidade Maravilhosa!” (Anexo 4).

Em 1o de setembro de 1933, o locutor César Ladeira estreou na


Rádio Mayrink Veiga, lendo as “Crônicas da cidade gozada”, de Genolino
Amado, mas depois de receber cartas e telefonemas criticando o título,
mudou-o para “Crônicas da Cidade Maravilhosa”, conforme lemos em

18 – Jornal A Notícia, edição de 20-21/3/1913, pág. 3, acessado por este autor na Heme-
roteca Digital.

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Origem do epíteto “cidade maravilhosa”
para designar o Rio de Janeiro: lenda e verdade

Henrique Foréis Domingues, No Tempo de Noel Rosa: O Nascimento do


Samba e a Era de Ouro da Música19.

Em 1935, o mesmo César Ladeira escreve uma revista, que inclui


três canções de Ary Barroso (“Garota colossal”, parceria com Nássara,
“Grau dez”, parceria com Lamartine Babo e o samba “Foi ela”), intitula-
da “Cidade Maravilhosa”, apresentada no Teatro Recreio20.

No Carnaval de 1935, a marcha “Cidade Maravilhosa” de André


Filho, gravada por Aurora Miranda, enfim, consagra o termo pelo
qual hoje todos conhecemos o Rio de Janeiro, Patrimônio Cultural da
Humanidade, com muito orgulho, com muito amor…

Mostramos assim que, desde o início do século XX, o epíteto “Cidade


Maravilhosa” foi usado esporadicamente para designar o Rio de Janeiro,
ou mesmo outras cidades, em especial Paris. Com seu uso, juntamente com
“Cidade Maravilha”, para designar a deslumbrante Exposição Nacional
comemorativa do Centenário da Abertura dos Portos, em 1908 (contexto
em que surge a aludida crônica de Coelho Neto), aí sim, o epíteto se po-
pularizou e, finda a exposição, começou a ser usado com mais frequência
para designar o Rio de Janeiro, em especial o “novo Rio”, resultante das
reformas de Pereira Passos. Em 1913, dois fatos contribuem para a fixa-
ção do epíteto: a publicação do livro de poemas La Ville Merveilleuse de
Jane Catulle Mendès; e a crônica “A Cidade Maravilhosa” de Eugenio de
Lemos. E em 1935 o epíteto se consagrou definitivamente com o lança-
mento da marchinha que viria a se tornar o hino da cidade.

19  –  Henrique Foréis Domingues, No Tempo de Noel Rosa: O Nascimento do Samba e a


Era de Ouro da Música, Editora Indigo Brasil, 2013.
20 – Idem.

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ANEXO 1: Crônica “Os Sertanejos” de Coelho Neto.


Versão original de 1908, na qual o epíteto se aplica à Exposição
Nacional.

Chegaram em turma, contractados para cantar e dansar no recinto da


Exposição [Nacional Comemorativa do Centenário da Abertura dos
Portos]. Gente escolhida! Os homens, guapos, destorcidos, como por
lá dizem ; as raparigas, lindas, de voz suave e d’uma graça muito
languida no boleiar do corpo, mas, depois de um ensaio canhestro,
o emprezario, esticando desanimadamente o beiço, antevendo, sem
duvida, o fiasco, devolveu-os ao sertão com os seus trajos pittorescos
e todo o instrumental languoroso com que se alegram as noites lindas
das suaves campinas sertanejas.
Foi um desapontamento, disseram me.
Os pobresinhos, tão airosos nos seus pagos, perderam de todo o garbo,
desaprumaram-se logo ao deixarem a estação de desembarque e os
primeiros passos com que pisaram o asphalto não seriam mais medro-
sos e incertos se fossem dados em desfiladeiro de má fama, por entre
cruzes, em noite negra e aziaga de agosto.
Lividos, d’olhos esgazeados, achegavam-se uns aos outros, com o
terror presago com que se apinham as ovelhas em marcha para o ma-
tadouro.
“Ó famanaz [que tem muita fama] da serra, que é da tua arrogancia!
Trazes a viola  á bandoleira e caminhas d’olhos baixos, tu, o mais atre-
vido cantador da serra, dono de tantos corações, vencedor em tantos
desafios... Eh ! valentaço, que é da tua grimpa [orgulho] ?
E tu, moça do collo timido [“tumido” na versão de 1927], musa more-
na das floralias serranas, tu, que tem [corrigido para “tens” na versão
de 1927] sido a deusa da discordia, accendendo rancores com a luz
dos olhos negros e despertando a sêde do sangue com a cor da bocca
mais cheirosa do que uma baunilha; moça da serra, porque vais tão
triste e com os quadris tão quietos, tu que tão bem os cirandas quando,
na ponta do pésinho arisco, saltas, ao som da viola, requebrada e riso-
nha, desfiando a fieira.
Moça cheia de graça, que é da côr das tuas faces, que é do teu dengue,
que é da tua alma, feita de volupia ?
Estas vozes interrogativas soavam á passagem melancolica da tribu.
Pobre gente ! O mar largo, sereno e azul, dobando as suas ondas cai-

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Origem do epíteto “cidade maravilhosa”
para designar o Rio de Janeiro: lenda e verdade

reladas [=debruadas] de espumas, conteve a pequena grey. Quedaram


os homens estarrecidos, as moças persignaram-se procurando, com
dedos tremulos, no papo da camisa, as contas do rosario bento.
Diz a história de Xenophonte que os gregos, livres de Tissaphernes
e da gente perfida e bravia das rechans asiaticas, ao avistarem o mar
lustroso, lançaram por terra escudos e sarissas e, prostrando-se de joe-
lhos, com lagrimas pela face, saudaram movidamente o mar, a estrada
verde que os devia levar, em rumo facil, aos suaves vergeis da Patria
desejada.
Sim, mas os gregos eram de origem pelasgica, filhos do mar, e os
sertanejos... vinham das campinas ramilhetadas de montas [na versão
de 1927 corrigido para “moutas”, ou seja, “moitas”]; vinham das flo-
restas floridas, vinham dos valles avelludados, longe dos littoraes are-
nosos onde o mar se espreguiça. Acompanhando, com desconfiança,
o movimento das ondas, carregavam o cenho, communicando-se sus-
peitas, e as moças, em voz sumida, juntando as cabeças em colloquio,
diziam pasmadas: “Que mundo d’água, Virgem do Ceu!”
Depois do mar, a cidade formidavel, a cidade devoradora d’homens,
com as avenidas largas, margeadas de palacios colossaes, com o mo-
ver incessante de uma multidão apressada, com o reboliço vertiginoso
dos vehiculos, com a zoeira dos automoveis, com o troar dos pregões,
com todo esse confuso movimento que é a vida, desde o passo subtil,
despercebido de um mendigo andrajoso que se esgueira, ao longo dos
muros, resmungando lamurias, até a estropeada heroica de um regi-
mento com a bandeira desfraldada ao vento, as armas lampejando ao
sol e os clarins resoando em notas marciaes.
Pobre gente da tranquillidade ! E a tribu lá foi airadamente a seu des-
tino.
Ao entrar na Exposição, na avenida dos palacios brancos, o pasmo
subio de ponto.
Uma das moças, aduncando os dedos, puxou a companheira pelo cha-
le e segredou-lhe:
– Assumpta, Clodina: não parece qu’a gente tá vendo uma cidade en-
cantada como aquellas das história?
– É mêmo.
– Oia bem.
– É tal e qual. Parece qu’eu tou uvindo nhá Nica.

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Ivo Korytowski

– Quem sabe, Clodina !...


– U quê ?
– Quem sabe se aquelle home que foi buscá a gente lá em riba não é
mandado...
– Cruz! Crédo! Mecê não trouxe reza ?
– Eu trouxe os meus breves e uma reliquia da Santa Cruz. Mas ago-
ra, Clodina, agora eu acho que elles não servem de nada, porque a
gente já sta no poder do diabo, e ocê bem sabe que alma que cahe nu
inferno não sahe mais, nem á mão de Deus Padre. E a outra, d’olhos
lacrimosos:
– Eu bem não quiria vi. Tanto dinhêro mode cantá e sambá era mêmo
p’ra gente discunfiá. E os homens, mudos, arrastando as alpercatas,
lá iam cabisbaixos, mazorros, refugindo, com timidez, á curiosidade
publica.
Era ao cahir da tarde, uma tarde elegiaca, violacea, quieta, sem o silvo
de uma cigarra. Os penhascos pareciam de lapis lazuli e os palacios,
ainda mais brancos sobre o fundo escuro das rochas portentosas, alve-
javam marmoreos.
Longe, nos estábulos, o gado tino mugia, nostalgico, pondo no silen-
cio enlevado a tristeza bucolica das varzeas, em contraste com o re-
quinte da cidade maravilhosa. A moça estremeceu á voz dos anima-
es, e logo, relembrando histórias, cochichou á companheira:
– Ocê ouvio, Clodina ? A mode qu’é boi berrando. Não vá sê gente
encantada! E os homens, alguns vaqueiros, á plangencia dos touros,
reviam as terras de longe e os marroás robustos sahindo dos banhados
com um filete de baba a escorrer ao focinho, parando, firmes nos jar-
retes e mugindo para o céo sereno, como num adeus aos sol.
Era a hora angelical e a tribu poz-se a rezar baixinho, á medida que a
noite, lá ao alto, começava a desfiar o seu rosario de estrellas.
Subito uma deflagração ! Collares de lampadas em fogo e a linha dos
edificios debruada a luzes. Foi um medo panico indizivel: “Vote !
Misericordia ! T’esconjuro ! Nossa Senhora !”
– Clodina, ocê tá vendo ? Eu não dixe ? É o inferno ! Oia cumo tudo
se accendeu d’uma vez e sem phosque [fósforo].
Estacaram deslumbrados. A Cidade Maravilhosa resplandecia como
nas lendas. No fundo, na concha do palacio das Industrias, a agua
escachoava colorindo-se à refracção das luzes. Surgiram monstros

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Origem do epíteto “cidade maravilhosa”
para designar o Rio de Janeiro: lenda e verdade

flammineos acaçapados, no relvedo, esguicharam repuchos polychro-


micos e a misera gente tremia e encommendava-se aos santos, fazen-
do promessas arduas, arrependida de haver seguido o diabo seductor
que a fôra buscar no repouso feliz da sua terra para arrojal-a naquelle
inferno.
E, quando appareceu um automovel urrando, com os dois immensos
olhos accesos em clarões, a debandada foi tumultuosa e os gritos e os
esconjuros atroaram.
Foi em tal estado d’alma que os sertanejos ensaiaram no theatro os
cantos e as danças em que são exímios. Mas que podiam os miseros
cantar se lhes faltava a voz ? como dançariam elles se as pernas eram
como flexiveis juncos ? O fiasco foi absoluto e o emprezario, corrido,
recambiou-os na manhã seguinte, desfazendo no espirito do povo uma
formosa illusão poetica. E toda a gente está hoje convencida de que
cantos e danças de sertanejos são estopadas ridiculas.
Na Exposição seriam, mas lá no verde sertão, com a lua a luzir no
céo e as fogueiras flammejando, emquanto o rio murmura o seu can-
to dormente e a morena, arrepanhando a saia, labios entreabertos no
fervor do samba, sacode, boleia os quadris redondos, e as violas e os
machetes fremem e os violões soluçam e os adufes rebatem o rythmo
do sapateio, lá é que é ver como os corações se agitam, lá é que é sentir
o prestigio do canto, lá é que é comprehender como póde o almiscar
estonteante de um corpo de mulher faceira fazer de um caboclo paci-
fico um assassino cruel e desprestigiar um santo tirando-o da ascese
para o frenesi na eira.
Sertanejos é no sertão que são grandes. Pasmados e combalidos, que
haviam de fazer os pobresinhos ?
Veja-se o peixe espadanando nagua, siga-se o passaro no vôo.
Sertanejos, só vistos no sertão, na moldura agreste do seu rancho,
cantando e dansando, não como saltimbancos, para serem vistos, mas
para gozarem e amarem na liberdade da vida ingenua que lhes propor-
ciona a natureza simples. Demais a mais... com medo...
Almas não são batatas que se exhibam em exposições, a alma só se
expande livre e expontaneamente.

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Ivo Korytowski

ANEXO 2: Crônica “Os Sertanejos” de Coelho Neto.


Versão de 1927, em que o epíteto se aplica ao Rio de Janeiro, mas
àquela altura já havia se popularizado.

Chegaram em turma, contratados para cantar e dançar em um cinema.


Gente escolhida a dedo. Os homens, guapos, destorcidos, como por
lá dizem; as raparigas, lindas, de voz suave e d’uma graça languida
no bolear do corpo, no peneirar dos quadris, mas depois de um ensaio
canhestro o emprezario, esticando desanimadamente o beiço, a ante-
ver, sem duvida, o fiasco, devolveu-os ao sertão com os seus trajos
pittorescos e todo o instrumental languoroso com que se alegram, as
noites de luar.
Foi um desapontamento. Os pobresinhos, tão airosos, tão senhores de
si nos seus pagos, perderam de todo o garbo, desaprumaram-se logo
ao deixarem a estação de desembarque e os primeiros passos com que
pisaram o asphalto não seriam mais medrosos e incertos se fossem
dados em desfiladeiro de má fama, por entre cruzes, em noite negra
e aziaga de Agosto. Lividos, de olhos esgazeados, achegavam-se uns
aos outros com o terror presago com que se acarram as ovelhas em
marcha para o matadouro.
“Ó famanaz da serra, que é da tua arrogancia!? Trazes a viola á bando-
leira e caminhas de olhos baixos, tu, o mais atrevido cantador da serra,
dono de tantos corações, vencedor em tantos desafios. Eh! valentaço,
que é da tua empáfia ?
E tu, moça de collo tumido, musa morena das floralias campesinas; tu,
que tens sido a deusa da discordia, accendendo rancores com a luz dos
olhos negros e despertando sede de sangue com a cor da boca, mais
cheirosa do que uma fava de baunilha; moça faceira, porque vais tão
triste e com os quadris tão quietos, tu que tão bem os cirandas quando,
na ponta do pésinho arisco, saltas, ao som da viola, requebrada e riso-
nha no sapateado ou puxando fieira.
Moça cheia de graça, que é da cor das tuas faces ? que é do teu dengue
? que é da tua alma, toda volupia ?
O mar largo, sereno e azul, dobando as suas pequeninas ondas caireta-
das de espumas, conteve o bando. Os homens quedaram estarrecidos,
as moças persignaram-se procurando, com dedos tremulos, no papo
da camisa as contas do rosario bento.

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Origem do epíteto “cidade maravilhosa”
para designar o Rio de Janeiro: lenda e verdade

Diz a história de Xenophonte que os gregos, livres de Tissaphernes


e da gente perfida e bravia das rechans asiaticas, ao avistarem o mar
lustroso, lançaram por terra escudos e sarissas, e, prostrando-se de
joelhos, com lagrimas pelas faces, saudaram commovidamente o mar,
a estrada verde que os devia levar em rumo facil aos amenos vergéis
da Patria.
Sim, mas os gregos eram de origem pelasgica, filhos do mar, e os
sertanejos vinham das campinas ramilhetadas de moutas; vinham das
florestas floridas, dos valles avelludados, longe dos littoraes arenosos,
onde o mar se espreguiça. Acompanhando, com desconfiança, o movi-
mento das ondas, tornavam-se sombrios communicando-se suspeitas,
e as moças, em voz sumida, juntando as cabeças em colloquio, mur-
muravam pasmadas: “Que mundo d’água, Mãi do Ceu!”
Depois do mar a cidade formidavel, a cidade devoradora de homens,
com as avenidas largas, margeadas de palacios colossaes, com o mo-
ver incessante de uma multidão apressada, com a barafunda vertigi-
nosa dos automoveis, com o troar dos pregões, com todo esse confuso
movimento, que é a vida, desde o passo subtil, despercebido, de um
mendigo andrajoso, que se esgueira ao longo das paredes resmungan-
do lamurias, até a estropeada heroica de um regimento, com a ban-
deira desfraldada ao vento, as armas lampejando ao sol e os clarins
resoando clangores marciaes. Na Avenida o pasmo da pobre gente
subiu de ponto.
– Assumpta, Clódina... Não parece uma cidade encantada como as das
historias ?
– É mêmo.
– Oia bem.
– E tal e qual. Até parece qui tô uvindo Nhá Nica.
– Quem sabe, Clódina...!
– U quê ?
– Quem sabi s’aquelle home qui fui buscá a genti lá in riba não foi
mandado ?
– Cruz! Crédo! E mecê não trouxi reza ?
– Truxe, cumu não havéra di trazê ? Truxe meus breves e o meu Santo
Lenho. Mas agora, Clódina... agora eu acho qu’isso não serve di nada,
porque a gente já tá nu podê du diabo ! ocê sabe qui alma qui cahi nu

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Ivo Korytowski

inferno não sahi mais, nem á mão di Deus Padre. E a outra, de olhos
lacrimosos:
– Eu bem não quiria vim. Tanto dinhêro modi cantá i sambá era mêmo
p’ra genti discunfiá. E os homens mudos, arrastando as alpercatas,
lá iam cabisbaixos, mazorros, refugindo, com timidez, á curiosidade
publica. Um outro buzinou soturno.
– Ocê uviu, Clódina ? A modi qu’é boi berrando. Não vá sê genti
incantada! Era a hora angelical e o bando poz-se a rezar baixinho,
á medida que a noite começa a desengranzar o seu rosario de es-
trellas. Subito, uma deflagração. Collares de lampadas de fogo e a
linha dos edificios debruada a luzes. Foi um medo panico indizivel:
“Misericordia! Credo! Abrenuntio! P’ras areias gordas!”
– Sê tá vendo, Clódina ? Eu não dixe qu´é u inferno ? Oia cumu tudo
s’accendeu d’uma vez ! sem phosque. Estacaram deslumbrados.
A Cidade maravilhosa resplandecia como nas lendas. E a misera gen-
te tremia e encommendava-se a Deus, a Nossa Senhora e aos santos,
fazendo promessa, arrependida de haver seguido o demonio tentador
que a fôra buscar no repouso feliz da sua terra. E quando appareceu
um automovel urrando, com os dois immensos olhos accesos em cla-
rões, a debandada foi tumultuosa e gritos e esconjuros atroaram.
Foi em tal estado d’alma que os sertanejos ensaiaram no cinema os
cantos e as danças em que são exímios.
Mas que podiam os miseros cantar se lhes faltava a voz ? Como dan-
çariam elles se as pernas lhes tremiam como varas verdes? O fiasco foi
absoluto e o emprezario, corrido, recambiou-os na manhan seguinte,
desfazendo no espirito do povo uma illusão poetica. E toda a gente
está hoje convencida de que danças e cantos sertanejos são estopadas
ridiculas.
Serão no palco do cinema, mas lá no verde sertão, com a lúa grande
no ceu e as fogueiras flammejando, emquanto o rio murmúra o seu
canto dormente e a morena, arrepanhando a saia, labios entreabertos
no fervor do samba, sacode, boleia os quadris redondos, as violas e os
machetes repinicam, os violões plangem e os adufes rebatem o rythmo
do sapateio, lá é que é ver como os corações se agitam, lá é que é sentir
o prestigio do canto, lá é que é comprehender como póde o almiscar
estoteante de um corpo de mulher faceira fazer de um caboclo paci-
fico um assassino e desprestigiar um santo tirando-o da ascese para o
frenesi na eira.

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Origem do epíteto “cidade maravilhosa”
para designar o Rio de Janeiro: lenda e verdade

Sertanejos, só no sertão são grandes. Pasmados e combalidos que ha-


viam de fazer os pobresinhos ?
Sertanejos, só no sertão, na moldura silvestre do seu rancho, cantando
e dançando, não como saltimbancos para serem vistos de plateias, mas
para gosarem e amarem, na liberdade da vida ingenua que lhes propor-
ciona a natureza simples.
O peixe, quer-se espadanando n’água, o passaro no ar, em vôo, o ser-
tanejo no sertão.

ANEXO 3: Crônica “A CIDADE MARAVILHOSA”.


Publicada em A Notícia de 20-21/03/1913.

Por aquella magnificencia de tarde de domingo toda luminosa, vi-


nha bem a proposito um encontro com um poeta como Humberto de
Campos, nesse encantado passeio que é a Avenida Beiramar, diante
do oceano que rugia e convulsivamente jogava as suas ondas sobre
o cáes.
Certo, a pobre alma de um chronista não póde conservar-se insensivel
a um espectaculo como o que se desenrolava. A minha, que nunca vira
o mar assim, tinha como um fremito de apprehensão, vendo que as
ondas assaltavam o caes, brutalmente arrancavam as grandes pedras
da sua amurada e entravam pela cidade, numa invasão temerosa e es-
pumante, que fazia fugirem os seus habitantes. Mas o poeta sentia isso
de outro modo, não já com apprenhensão, mas com a emoção dos que
são capazes de escrever a epopéa dos elementos desencadeados. E foi
partilhando dessa emoção que o segui praia adiante, contemplando as
ondas que formavam pyramides d’agua, colossaes columnas que logo
se desfaziam, alagando e enlameando a Avenida e destruindo o seu
formosíssimo jardim.
Já um longo trecho do caes estava em terra, com as suas enormes pe-
dras dispersas pelo asphalto que uma agua barrenta cobria, como si o
mar tivesse tragado o lindo passeio. Do lado das artísticas edificações,
o aspecto era de desolação : os moradores, ameaçados de ficar isola-
dos do resto da cidade, haviam emigrado para outros postos. Muitos
ainda fugiam em qualquer vehiculo que apparecia, e todo aquelle tra-
balho de salvação inspirava respeito, suggeria a idéa da destruição de
uma cidade, do final de uma civilização, desta cidade que é nossa,
desta civilização para a qual tão carinhosamente trabalhamos.

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Ivo Korytowski

Era terrível, mas era bello, e então, como si realmente estivessemos a


assistir a uma derrocada verdadeira e final, entrámos a recordar as bel-
lezas desta cidade que bem se póde considerar uma rainha, na America
democratica e republicana. O passeio já nos levára até Botafogo, onde
o mar era menos terrível, mas onde tambem a sua furia deixára ruinas.
Ahi, na enseada revolta, o horizonte é mais restricto, mas nem por
isso é menos admiravel o panorama. A larga garganta entre São João
e o morro da Viuva abre-se ordinariamente para o remanso das aguas;
ha toda uma tranquillidade doce e feliz nas ondas que apenas formam
ligeiras crispações e se vêm quebrar, em ligeiro sussurro, na muralha
dos cáes. E o azul dos céos, como as scintillações das estrellas, se re-
flecte nellas com a mesma doçura, a mesma tranquillidade. Em frente,
o Pão de Assucar e a Urca são como dois immensos contrafortes, duas
gigantescas defesas ás iras do Atlantico, que lá fóra alteia impotente-
mente as suas serras de agua.
Por sobre essas duas montanhas, o arrojo do homem, arrojo de brazi-
leiro, construiu agora um caminho, uma estrada como ellas se devem
comprehender no seculo da aviação, um passeio aereo feito por dous
cabos, em duas secções, como a graduar as impressões da viagem,
parando por “étapes” no ar!
O bondinho subia, descia, num suave vaivem, pequenino de longe,
parecendo apenas uma leve ave sem azas, que, entretanto, habituada
ao espaço, ainda voava. E o poeta emocionante do livro de versos a
que denominou Poeira, a poeira luminosa das suas rimas scintillantes,
disse extasiado :
– O Rio é uma cidade maravilhosa!...
Cidade maravilhosa ! É a exclamação de todos que nos visitam. Foi
sempre a de quantos, nos tempos em que a cidade era archaica e apa-
thica, lhe admiravam as bellezas naturaes. Humberto de Campos, vin-
do do Norte sem nunca ter visto o Rio, já o encontrou transformado
e justamente era uma de suas mais ousadas innovações que lhe fazia
vibrar a alma do enthusiasmo e de ardente admiração.
Com effeito, o homem, nesta terra que hoje tem uma actividade febril,
viveu sempre desamando a sua cidade. Para o seu orgulho bastava
que o estrangeiro tivesse uma palavra de pasmo pela sua maravilhosa
natureza, bellezas da vegetação tropical, ou caprichosos accidentes
do solo. Os proprios poetas, incontaveis, melífluos e contemplativos,
contentavam-se com esse pantheismo indolente, de cantilenas, que ia

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Origem do epíteto “cidade maravilhosa”
para designar o Rio de Janeiro: lenda e verdade

do “Minha terra tem palmeiras” até á apotheose da “Velha mangueira”


e das frondes eternamente verdejantes, em que as cigarras annunciam
a gloria das alvoradas e os dias de offuscante luz. Ao olhar do estran-
geiro, á sua esthesia, a cidade offerecia apenas um amontoado im-
menso de construcções de uma architectonica rotineira e uma serie de
vielas sem ar e sem luz. A natureza, só ella enaltecia a terra, fazendo
que o estrangeiro levasse a memoria de um recanto da America em
que ella mais se esmerou em prodigios.
Mas a civilização não podia ser mais detida pela nossa inercia. Ela se
nos impoz pela vontade de um punhado de homens, que felizmente a
Republica soube chamar á direcção dos seus destinos. E as maravilhas
humanas começaram a surgir. A velha cidade ruiu sob o alvião demo-
lidor, e as avenidas abriram espaço á luz e ao ar, o ar que nos faltava,
a luz que pairava sobre nós num céo soberbo, mas apenas aquecia os
velhos telhados, sem penetrar nas habitações, angustiadas na estreite-
za das ruas e das proprias praças. Surgira o genio das iniciativas, e a
velha rotina fugiu espavorida, talvez para suicidar-se nalgum desses
recantos tão da sua feição e que ainda existem.
A cidade avançou sobre o mar, fez recuar as ondas e, sobre as areias
que ellas beijavam, estendeu o caes e construiu uma avenida, que é
toda ella um immenso vergel cheio de luz e de frescura. Das velhas
praias, dos velhos areaes sobre os quaes deitavam os fundos de tanta
residencia senhorial, não resta hoje sinão a lembrança dos que ainda
as conheceram. A linha das construcções é toda nova e os palacios, as
habitações mais pequeninas, têm todas uns toques de arte e bom gos-
to, ha nellas como que um pouco da faceirice brazileira, talvez a sua
própria vaidade alegre e triumphal.
Para além do centro commercial era necessario que se désse na nossa
transformação um amplo logar ao trabalho, uma avenida ao commer-
cio. Elles a têm, grandiosa e monumental nesse cáes do porto, que
é uma obra digna da audacia dos povos mais audases. Mas não é só
isso : a cidade realmente encheu-se de jardins. A natureza agora não
está fóra das suas portas, mas nas suas mesmas praças. Ha avenidas
que são verdadeiros jardins, e o negociante a perlustra, cogitando nas
suas transacções, e o poeta a percorre, pensando em compor hymnos á
sua belleza. O homem, antes dessa transformação, como se havia es-
quecido de si, deixando-se morrer de epidemias numa cidade infecta.
Reagindo contra a antiga apathia, “lembrando-se finalmente de si”,

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):265-294, jan./abr. 2022. 291


Ivo Korytowski

elle não esqueceu a natureza, e trouxe-a para as suas praças, para as


suas avenidas, para a sua propria casa.
Mas não sejamos injustos com as gerações que nos precederam. A uma
dellas pertenceu o maior transformador da cidade, o prefeito Passos. A
elle se deu um dos mais bellos passeios que a cidade desfructa ha mais
de trinta annos – essa arrojada escalada ao Corcovado. O Corcovado
é uma maravilha natural que reclamava essa maravilha da nossa enge-
nharia... Depois o passeio ao Sylvestre, por sobre a montanha, sobre
despenhadeiros, ao pé dos quaes a cidade se estende a perder de vista.
A Tijuca foi varada e escalada por uma linha electrica de bondes, e
dentro de muito pouco tempo pelas suas furnas, pelos seus grotões e
pelos seus comoros, sob os bosques que saneam o homem e o limpam
do pó da cidade, as ferrovias communicarão o immenso bairro flores-
tal com o Jardim Botanico e a Gavea, transformando tudo ao mesmo
tempo numa cidade e num jardim. E quem sabe si, como me lembrava
Humberto de Campos, esta communicação por um requinte de arrojo
e de orgulho industrial, não se fará por cabos aereos como esse que
hoje liga a Praia Vermelha á Urca e ao Pão de Assucar ? O Corcovado
já tem hoje o electrico que crava as suas garras de aço no dorso arque-
ado e sinuoso do gigante. A sentinella da barra tem tambem esse liame
em que se baloiça o homem como num gigantesco balanço.
A cidade progride e avança ; toma o mar e toma as montanhas, e esten-
de-se para as costas, varando as rochas. Ainda não temos os caminhos
suberraneos, mas para lá caminhamos acceleradamente. E quando a
cidade tiver tudo isso, quando ella não construir os seus palacios ape-
nas na planicie, mas os levar para as montanhas, quando ella habitar
tambem os [sic] ilhas encantadoras de sua refulgente bahia e o mar se
encher de elegantes yachts, como hoje as avenidas se enchem de auto-
moveis, então ella poderá desafiar as que mais bellas o forem. Ella já é
a cidade maravilhosa. Mais enthusiasmo, mais ardente culto pela sua
propria formosura, e será a cidade incomparavel, com os requintes que
a civilização ascendente há de trazer-lhe e com os primores da vida
deliciosa, vivida entre os encantos da sua natureza, a magnificencia
das suas artes e a opulencia de sua riqueza material.
Mas que pena que tudo isso não fosse dito por um poeta como
Humberto Campos !... A prosa de um chronista certamente fica distan-
ciada do hymno que a cidade merece de um poeta, como o de Poeira.

292 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):265-294, jan./abr. 2022.


Origem do epíteto “cidade maravilhosa”
para designar o Rio de Janeiro: lenda e verdade

ANEXO 4: Poema “Cidade Maravilhosa” de Olegário Mariano.

Cidade maravilhosa!
Na luz do luar, fluídica e fina,
Lembra excêntrica bailarina,
Corpo de náiade ou sereia,
Desfolhando-se em pétalas de rosa,
Com os pés nus sobre a areia.

Cidade do gozo e do vício!


Flor de vinte anos, rosa do desejo!
Corpo vibrando para o sacrifício,
Seios à espera do primeiro beijo.

Cidade do Amor e da Loucura,


Das estrelas errantes... Para vê-las,
Vibra no olhar de cada criatura
Uma ânsia indefinida
Pelo brilho longínquo das estrelas
Que é, como tudo, efêmero na vida.

Cidade do Êxtase e da Melancolia,


De dias tristes e de noites quietas;
Sombra desencantada da alegria
Dos que vivem de lágrimas, os poetas.

Cidade de árvores e sinos.


De crianças e jardins. Flor das Cidades;
Berço de ouro de todos os Destinos,
Fonte eterna de todas as Saudades.

Texto apresentado em janeiro de 2022. Aprovado para publicação


em junho de 2022. 

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Homenagem aos 150 anos de nascimento
do sócio Luiz Gastão D’escragnolle Dória

295

HOMENAGEM AOS 150 ANOS DE NASCIMENTO DO


SÓCIO LUIZ GASTÃO D’ESCRAGNOLLE DÓRIA
TRIBUTE TO THE 150 YEARS OF BIRTH OF PARTNER LUIZ
GASTÃO D’ESCRAGNOLLE DÓRIA
Vera Cabana Andrade1

Resumo: Abstract:
A presente comunicação tem como objeto cen- The main purpose of this communication is
tral rememorar/homenagear os 150 anos de nas- to recall/honor the 150th anniversary of the
cimento de Luiz Gastão d’Escragnolle Dória. A birth of Luiz Gastão d’Escragnolle Dória. The
narrativa tem por objetivo revisitar a vida e a narrative aims to revisit the life and work of the
obra do ilustre escritor, professor, historiador, illustrious writer, teacher, historian, member
sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasi- of the Brazilian Historical and Geographical
leiro e catedrático do Colégio Pedro II. Institute and professor of Colégio Pedro II.
Palavras-chave: homenagem; história-memó- Keywords: honor; history memory; writer;
ria; escritor; professor; historiador. professor; historian.

Luiz Gastão d’Escragnolle Dória nasceu no dia 31 de janeiro de


1869 no Rio de Janeiro e faleceu, também no Rio de Janeiro, em 14 de
janeiro de 1948, aos 79 anos.

Filho do General de Divisão Luiz Manuel das Chagas Dória e da Sra.


Adelaide d’Escragnolle Taunay Dória, teve, desde cedo, uma educação
clássica e erudita. Seu pai, Bacharel em Ciências Físicas e Matemáticas,
foi professor da Escola Militar e da Escola Superior de Guerra, sendo
autor do livro de estratégia militar Estradas de ferro em tempo de guer-
ra, publicado no Rio de Janeiro em 1883 e traduzido para o francês e o
alemão, e sua mãe pertenceu à ilustre família do Visconde de Taunay,
deputado e senador do Império2.

1  –  ANDRADE, Vera Lucia Cabana de Queiroz. Professora Doutora em História Social


IFCS/UFRJ. Profª Aposentada da Uerj e Profª Emérita do CP II. Sócia do IHGB, IHGRJ
e do IHGN.
2  –  TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle,1843-1899. Autor da obra épica A retirada da La-
guna, do romance Inocência, e da obra Memórias do Visconde de Taunay (São Paulo:
Melhoramentos, 6 v. 1948), onde registra sua trajetória sócio-político-cultural.

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Vera Cabana Andrade

Luiz Gastão foi aluno do Colégio Aquino3, tradicional educandário


de instrução primária e secundária, fundado pelo educador João Pedro
de Aquino, em 1864, tendo como primeiro professor de francês seu tio
Alfredo d’Escragnolle Taunay. Ingressou, por concurso, no Imperial
Colégio de Pedro II e completou o Curso de Humanidades, de sete anos,
em 1886. Admitido4 na Faculdade de Direito de São Paulo, formou-se em
Ciências Jurídicas e Sociais, em 1890.

Desde os tempos acadêmicos, Escragnolle Dória escreveu para os


jornais paulistas como o Correio Mercantil, Correio de Santos, Diário de
Santos, Folha da Tarde e Diário de Campinas. No Rio de Janeiro, cola-
borou com a imprensa periódica, estreando no Jornal do Commercio em
1891 e lá permanecendo até 1922, escrevendo também para os jornais O
Paiz, A Notícia e Gazeta de Notícias (1908).

Escreveu ainda crônicas literárias para importantes revistas como:


Revista Renascença, Revista Kosmos, Revista SulAmericana, Revista A
Semana (de 1892 a 1895, sob a direção de Valentim Magalhães e Max
Fleiuss, onde exerceu o cargo de secretário), Revista Brasileira (dirigida
por José Veríssimo desde 1895), Revista Rua do Ouvidor (1898), dentre
outras.

Escrever para os jornais e as revistas representava, na virada do sé-


culo XIX para o XX, uma forma de ingresso nos lugares de sociabilidade
intelectual, uma vez que o jornalismo crítico do cotidiano era o principal
canal de divulgação de notícias, mas também de veiculação das crônicas e
ensaios de conteúdos literários, das memórias históricas e antropológicas,
além de veículo de divulgação das grandes polêmicas políticas travadas
no Parlamento, como, por exemplo, as questões acerca da escravidão e da
imigração, do ensino religioso e das reformas da instrução pública.

3  –  Colégio Aquino, tradicional educandário de instrução primária e secundária da Rua


da Carioca, fundado por João Pedro de Aquino (1843-1912) em 1864 e equiparado ao
Ginásio Nacional em 1903.
4  –  Pelo decreto-lei do Poder Legislativo nº 296 de 30 de setembro de 1843, o grau de
Bacharel em Letras do Imperial Colégio de Pedro II facultava o ingresso direto nos Cursos
Superiores do Império.

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Homenagem aos 150 anos de nascimento
do sócio Luiz Gastão D’escragnolle Dória

Em sua obra literária cultivou a poesia, o romance, o bel canto e o


teatro, usando os pseudônimos Vergex, Abelhudo, Branca Miranda, Jacy
Belém, Álvaro Guedes, Assis Bueno, Ulysses de Aguiar e Demetrius.

Na Revista Brasileira publicou “Artistas d’outro tempo”, uma série


sobre o teatro. Na Revista d’A Semana, entre 1921 e 1948, escreveu mais
de 1300 artigos, dos quais destacamos: “Exposição de arte e história dos
três reinados, 1808-1889”, seu primeiro artigo de 1827; e “Centenário
de Vieira Fazenda – Bacharel em Letras pelo Colégio Pedro II e médico
pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, bibliotecário do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, 1847-1947”, seu último artigo de 1947.

Desde recém-formado, Escragnolle Dória exerceu o magistério. No


período de 1902 a 1909, como professor suplementar, deu aulas de fran-
cês, inglês, lógica, história e geografia em diversos estabelecimentos de
ensino, como o Pedagogium Municipal5, Colégio Paula Freitas, Ginásio
Fluminense, Escola Normal, Ginásio Pio Americano, Instituto Comercial,
e foi também professor interino de história e lógica no Ginásio Nacional6.

Nomeado lente da Faculdade Livre de Direito do Rio de Janeiro, em


1902, lá lecionou até 1909.

Em 1906 foi aprovado no Concurso Público de Provas e Títulos


como professor de “História Universal, especialmente da América e do
Brasil” do Ginásio Nacional, concorrendo com José Veríssimo (candi-
dato de Capistrano de Abreu), Felisberto Freire, Joaquim Osório Duque-
Estrada (também ex-aluno), Armando Dias e Pedro do Coutto. Foi apro-
vado pela Comissão Examinadora formada pelos professores catedráticos
Capistrano de Abreu, João Ribeiro e Raja Gabaglia pela apresentação da
5 – Pedagogium: estabelecimento de ensino profissional, criado em 1890, destinado a
servir como centro de aperfeiçoamento de professores e centro propulsor da Reforma da
Instrução Publica do Ministro Benjamin Constant Botelho de Magalhães.
6 – Ginásio Nacional: segunda designação republicana do Imperial Colégio de Pedro
II. Vigorou de 1890 a 1911. Com a Proclamação da República o nome do Colégio Pedro
II foi mudado para Instituto de Instrução Secundária, ainda em 1889. Pelo Decreto de
8/11/1890, do Ministro Benjamin Constant, o colégio passou a ser designado Ginásio
Nacional. Pela Lei Orgânica do Ensino de 05/05/1911, governo do Marechal Hermes da
Fonseca, ex-aluno, a instituição voltou a chamar-se Colégio Pedro II.

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Vera Cabana Andrade

dissertação “Conquista do México, Peru, Chile e Guiana”, ponto nº 1 sor-


teado de um programa de 30 itens selecionados pela banca. Com 11 votos
da Congregação, após grande polêmica, tomou posse em 5 de novembro
de 19067.

Sua carreira no magistério do curso ginasial foi marcada por uma


grande renovação didática e caracterizada pela prática de visitas guiadas
com os alunos aos sítios históricos da cidade, como o Morro do Castelo, a
região do Valongo, e às instituições culturais como a Biblioteca Nacional
e o Arquivo Nacional.

Entre 1917 e 1922 foi licenciado para dirigir o Arquivo Nacional,


sendo substituído pelo professor Pedro do Coutto na regência das turmas.
Permaneceu no Colégio Pedro II de janeiro de 1923 até sua jubilação em
abril de 1937. Recebeu o título de professor emérito por mais de trinta
anos de serviços prestados, em sessão magna de 26 de agosto de 1937,
no salão nobre, sendo saudado pelo novo professor catedrático de história
Jonathas Serrano.

A serviço do governo republicano, no período de 1896 a 1898, foi


redator dos debates do Senado Federal.

Por duas vezes, em 1909/1910 e 1911/1912, foi enviado à Europa


pelo Ministro das Relações Exteriores, o Barão do Rio Branco, como
membro de comissão especial incumbida de reunir e recolher nos arqui-
vos europeus documentos de interesse para a história pátria.

De volta ao Brasil, entre 1912 e 1917, exerceu as atribuições de pro-


curador na cidade do Rio de Janeiro.

Em maio de 1917, foi nomeado diretor do Arquivo Nacional, perma-


necendo no cargo até dezembro de 1922. Sua administração foi caracte-
rizada por grande atividade de arquivologia e museologia, contribuindo
significativamente para a preservação de documentos da memória na-

7 – Livro de Atas de Concursos. Gymnasio Nacional. Período de 20/10/1898 a


26/11/1906.

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Homenagem aos 150 anos de nascimento
do sócio Luiz Gastão D’escragnolle Dória

cional e da organização/materialização do Museu do Arquivo Nacional,


registradas nas publicações do Arquivo Nacional, como por exemplo:
Relatórios do Arquivo Nacional de 1917 a 1921; O Museu Histórico do
Arquivo Nacional, v. 17, 1919.

Considerado “intelectual polimórfico de invulgar sensibilidade8”


marcou presença em diversas instituições culturais e científicas, como o
Instituto dos Bacharéis em Letras, Instituto Genealógico de São Paulo,
Academia Amazonense de Letras, Sociedade de Geografia de Lisboa e
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

No Instituto dos Bacharéis em Letras, grêmio criado em 1863 por


formandos do Imperial Colégio de Pedro II e reconhecido como institui-
ção cultural pelo Ministério do Império por decreto de 1864, assumiu a
incumbência de reunir e registrar, em “copiosa lista” os trabalhos apre-
sentados nas reuniões com o objetivo de “combinar e promover o pro-
gresso intelectual dos associados”, a partir da publicação do primeiro e
único número da revista em 1867.

Na Sociedade de Geografia de Lisboa, em 1910, proferiu conferên-


cia intitulada “Da conveniência de um acordo luso-brasileiro”, anteci-
pando a discussão da grande questão linguística da atualidade dos povos
lusófonos.

No IHGB seu nome foi proposto para sócio correspondente por Max
Fleiuss, Gastão Ruch, Eduardo Peixoto e Arthur Guimarães em 16 de
abril de 1912, apresentado como:
...Exímio estilista, fino observador e crítico de bom quilate. [...]
Espírito de combatividade e acendrado amor às causas pátrias. [...] De
família ilustre, [recebeu] por herança dotes de inteligência [...] é so-
brinho do nosso pranteado consócio Alfredo d’ Escragnolle Taunay...

Foi aprovado pela Comissão de Admissão de Sócios – formada


por Manuel Cícero, Antônio Olyntho, A. Índio do Brasil e Miguel de
8  –  COMISSÃO DE MEMÓRIA HISTÓRICA DO COLÉGIO PEDRO II. Apontamen-
tos biobibliográficos. In: DÓRIA, Escragnolle. Memória Histórica do Colégio de Pedro
II. 1837-1937. Brasília: INEP, 1997, p. XX.

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Vera Cabana Andrade

Carvalho, em 29 do mesmo mês de abril. E, com parecer favorável da


Comissão de História – composta por B. F. Ramiz Galvão, B. F. de M.
Leite Velho, Antônio Jansen do Paço e Pedro Lessa –, foi proclamado, por
“sufrágio unânime”, em 4 de maio de 1912, pelo 1º secretário perpétuo
Max Fleiuss:

Parecer da Comissão de História do trabalho apresentado para ad-


missão: Cousas do passado, escritos de vária natureza:
1º. Artistas de outro tempo – série de monografias de grandes vul-
tos artísticos do palco fluminense. Figuram: Sigismundo Thalberg
(1855); Rosina Stoltz, Henrique Tamberlick e Juliana Dejean (1856);
Rosina Laborde (1859); Gottschalk (1869); Adelaide Ristori (1869-
1874); Carlota Patti, Ritter e Sarasate (1870); Julião Gayarre (1876);
Domingos Santinelli (1879) e Eleonora Duse (1885-1907).
2º. O teatro na exposição – estudos retrospectivos a propósito do te-
atro na recente Exposição de 1908 referem-se às primeiras exibições
das peças: “Os irmãos das almas” e “O noviço”, de Martins Penna
(1844-1845); “As doutoras”, de França Júnior (1889); “Deus e a natu-
reza”, de Arthur Rocha; “As asas de um anjo” de J. d’Alencar (1858);
e “História de uma moça rica”, de Pinheiro Guimarães (1861).
3º. Notas de história financeira – o autor delineia o perfil político e
parlamentar de Salles Torres-Homem.
4º. Figuras do passado – o autor traça a biografia de Manuel Marques
de Sousa, Conde de Porto-Alegre, batalhador de Monte-Caseros,
Curuzú, Curupaití e Tuiuti.

D’aqui se infere que sob o título geral de “Cousas do passado” o ilus-


trado professor de História de distintos predicados e escritor e crítico nos
oferece quadros de história da arte e de história parlamentar brasileira,
além da biografia de um grande general rio-grandense9.

Segundo registro em ata da Assembleia Geral Extraordinária de 22


de agosto de 1931, presidida pelo Conde de Afonso Celso, Escragnolle
Dória passou para o quadro de sócios honorários do Instituto, com o refe-
rendum de Ramiz Galvão e Max Fleiuss10.
9  –  Arquivo IHGB – Pastas dos sócios falecidos.
10 – R.IHGB, tomo 109, v. 164, p. 432/436, 1931.

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Homenagem aos 150 anos de nascimento
do sócio Luiz Gastão D’escragnolle Dória

No IHGB pertenceu a várias comissões, como a Comissão de


História e a Comissão de Admissão de Sócios, e marcou sua presença em
todos os eventos culturais.

Escragnolle Dória pode ser ainda considerado um “missionário mi-


litante11” pela sua atuação social como membro das Irmandades da Santa
Casa da Misericórdia, da Glória do Outeiro, da Santa Cruz dos Militares,
da Lapa dos Mercadores e da Fundação Romão Duarte.

Foi procurador da Casa dos Expostos de 1912 a 1920, e o 5º mordo-


mo dos Prédios do Hospital Geral, de 1921 a 1921.

De sua experiência de trabalho humanitário escreveu Romão de


Matos Duarte, o benfeitor dos expostos, 1919 [S.I.], onde registra que:
“pouquíssimo se sabe da vida de Matos Duarte, que viveu no Rio de
Janeiro no século XVIII ... [e que] a biografia deste continuará tão ári-
da quão fecundo foi seu coração, reduzido sacrário humano das infinitas
bênçãos de Deus”.

Principais obras:

Tradução – O corvo, de Edgar Allan Poe; As semivirgens, de Marcel


Prescot (1896)

Dor. Contos variados. Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 1904.

Artistas de outros tempos. O teatro na exposição. R.IHGB, tomo


LXXI, parte II, 1909.

Libretos – Jupira, de Francisco Braga; Navio negreiro, de Assis


Nepomuceno; A guerra, de Villa-Lobos.

Figuras do passado. R.IHGB, 1913.

Biografia de Carlos de Laet. Biblioteca Internacional de Obras


Célebres. v. XI [19?]

11 – Idem, p. XX.

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Vera Cabana Andrade

Biografia de Oliveira Lima. Biblioteca Internacional de Obras


Célebres. v. XV [19?]

Ubique Patriae Memor. Separata R.IHGB, tomo LXXVI, 1913.

Da conveniência de um acordo luso-brasileiro, Sociedade de


Geografia de Lisboa, 1910;

A significação da obra de Anchieta na História do Brasil, Colégio


Latino Americano de Roma;

Um coup d’oeil sur l’histoire du Brésil, Universidade de


Roma.
Prefácio – Epítome de História Universal, de Jonathas Serrano. Rio
de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1913.

D. Pedro II, infância e educação. Notas biográficas da família im-


perial. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, v.17, 1917.

Centenário da Independência. Edição Comemorativa do Centenário


da Independência do Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, v. 20,
1922.

D. Pedro II. Infância e adolescência. Documentos interessantes pu-


blicados para comemorar o 1º centenário do nascimento do grande bra-
sileiro ocorrido em 2 de dezembro de 1825. Publicação oficial temática
do Arquivo Nacional, 1927.

Terra fluminense. Descrição de todos os municípios do Estado do


Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1929.

D. Pedro II. Centenário de nascimento (1925). R.IHGB, tomo 98, v.


152. Imprensa Nacional, 1928.

Annuario do Collegio de Pedro II Commemorativo do 1º Centenário


Natalicio de D. Pedro II. Rio de Janeiro: A Encadernadora, v. VI, 1927,
p. 39-41.

302 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):295-312, jan./abr. 2022.


Homenagem aos 150 anos de nascimento
do sócio Luiz Gastão D’escragnolle Dória

Memmoria Historica do Collegio de Pedro Segundo. 1837-1937.


Publicação Official Commemorativa do Primeiro Centenário. Rio de
Janeiro: Ministério de Educação e Saúde, 1937.

Escragnolle Dória deixou um apreciável conjunto de trabalhos no


campo das artes, da literatura e da história. Conhecedor profundo de fran-
cês e inglês traduziu vários sonetos, novelas e romances de autores con-
sagrados, como por exemplo o conto “O corvo”, de Edgar Allan Poe e o
romance As semivirgens, de Marcel Prescot, em 1896.

Seu primeiro trabalho autoral publicado foi Dor. Contos variados,


em 1904. Na apreciação de Medeiros de Albuquerque, em artigo para o
jornal A Notícia, o trabalho – “É um magnífico livro de contos. [...] Sua
linguagem é límpida, correntia, fácil e, por isso mesmo, o que como-
veu12”.

Na separata da R.IHGB, tomo LXXI, 1908/1909, publicou “Artistas


de outros tempos”, onde registrou suas lembranças da ópera e do bel can-
to, escrevendo sobre uma galeria de artistas consagrados “Rosina Stoltz,
Thalberg, Adelaide Ristori, Carlota Pratti, Santinelli, Eleanor Duse e
Enrico Caruso”. Na segunda parte da mesma obra publicou “O teatro na
exposição”: escrevendo sobre as peças O noviço, As doutoras, Deus e a
natureza, Os irmãos das almas, As asas de um anjo e História de uma
moça rica.

Ainda no campo das artes, escreveu para a Sociedade de Concertos


Sinfônicos, entre 1900 e 1931, libretos para óperas e poemas sinfônicos,
como por exemplo, a ópera Jupira, de Francisco Braga, apresentada no
Teatro Lírico do Rio de Janeiro em 1900; e os poemas sinfônicos Navio
negreiro, de Assis Nepomuceno e A guerra, de Villa-Lobos.

Para o teatro escreveu a peça Florisbela, em 3 atos, e, Ano bom, um


monólogo em italiano.

12 – In: Dicionário Biográfico da Viscondessa de Cavalcanti. Lata i, Envelope 573.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):295-312, jan./abr. 2022. 303


Vera Cabana Andrade

Como biógrafo e ensaísta é autor de perfis de vultos históricos


do Visconde de Souza Franco, Conde de Porto Alegre e Salles Torres
Homem, reunidos e publicados pela R.IHGB, em 1913, com o título de
Figuras do passado. Publicou, ainda, as biografias de Carlos de Laet e
Oliveira Lima na Biblioteca Internacional de Obras Célebres, volumes
XI e XV, sem data.

Também em separata da R.IHGB, tomo LXXVI, de 1913, publicou


sob o título de Ubique Patriae Memor13 (Em qualquer lugar terei sem-
pre a Pátria em minha lembrança/ memória) três conferências europeias
sobre história pátria, proferidas em instituições científicas, no ano de
1910: – Da conveniência de um acordo luso-brasileiro, na Sociedade de
Geografia de Lisboa; – A significação da obra de Anchieta na História do
Brasil, no Colégio Latino Americano de Roma; e – Um coup d’oeil sur
l’histoire du Brésil (Um olhar/ uma olhadela sobre a história do Brasil),
na Universidade de Roma.

No campo da História, caracterizou-se como pesquisador de arquivo,


descrito pelos seus pares como: “um arqueólogo de recuperação do passa-
do através da preservação dos recursos documentais, empreendendo obra
memorialista em estilo galante, cuja narrativa, marcada pela sistemática
inversão das frases e supressão dos artigos, conduz ao virtuosismo [de
estilo]14”.

De sua extensa produção historiográfica, podemos destacar:

– o prefácio que escreveu para o livro Epítome de História Universal,


do também professor catedrático do Colégio Pedro II Jonathas Serrano,
publicado no Rio de Janeiro pela Livraria Francisco Alves em 1913:

– a pesquisa D. Pedro II, infância e educação. Notas biográficas da


família imperial. Publicada pelo Arquivo Nacional, volume 17, em 1917.

13 – Ex-libris da Coleção Barão do Rio Branco.


14 – In: Memória Histórica do Colégio de Pedro II. 1837-1937. Brasília: INEP, 1997.
Apontamentos biobibliográficos. Comissão de Atualização da Memória Histórica do CP
II. ACCIOLI, Roberto Bandeira et alii, p. XX.

304 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):295-312, jan./abr. 2022.


Homenagem aos 150 anos de nascimento
do sócio Luiz Gastão D’escragnolle Dória

– o livro Edição Comemorativa do Centenário da Independência.


Publicação especial do Arquivo Nacional, volume 20, de 1922.

O ano do centenário do segundo imperador, 1925, mereceu uma pu-


blicação oficial temática do Arquivo Nacional, organizada por Escragnolle
Dória: – Infância e Adolescência de D. Pedro II. Documentos interessan-
tes publicados para comemorar o 1° centenário do nascimento do grande
brasileiro ocorrido em 2 de dezembro de 1825. (Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 1927). Além da divulgação de 11 gravuras/fotos de D. Pedro
II menino, de sua família, seus tutores, sua casa, a publicação oferece a
impressão de 55 peças de arquivologia, dentre elas a certidão de batismo,
o termo de reconhecimento de príncipe imperial, os ofícios de participa-
ção da eleição de seus tutores, José Bonifácio e marquês de Itanhaém,
uma coletânea de papéis extraídos da Casa Imperial relativos à sagração
e coroação de S.M.I., e, uma série de documentos sobre a instrução do
monarca, apresentados por seus mestres. Essa documentação dá conta de
ter tido D. Pedro II uma “educação esmerada, uma instrução enciclopé-
dica e humanística”, facilitada pelo “gosto de aprender” do príncipe, que
como imperador incentivou a instrução pública. A publicação do Arquivo
Nacional, além de prestar homenagem póstuma ao segundo imperador,
resgatando sua imagem de “monarca liberal, intelectual, poliglota, traba-
lhador, magnânimo e patriota”, tinha o objetivo de colaborar com a divul-
gação de fontes de pesquisa para a escrita/reescrita da história do Brasil.

No IHGB, a comemoração do centenário de D. Pedro II ocorreu em


sessão solene no dia 2 de dezembro de 1925, onde foram prestadas ho-
menagens dos homens de letras ao “seu protetor”. Os tributos à memória
do imperador foram reunidos em publicação especial da R.IHGB, sob
a direção de Ramiz Galvão, com o título de D. Pedro II. Centenário de
Nascimento (1925). Os trabalhos foram organizados em três partes: 1ª –
Apreciações gerais consta de 29 artigos do periódico O Jornal sobre nasci-
mento, infância, casamento, família, cultura, morte e funerais de D. Pedro
II; a 2ª versa sobre O homem público e os problemas e possui 26 artigos
de diferentes jornais sobre o imperador e a imprensa, a Igreja, os confli-
tos na região platina, a instrução pública, a imigração, a Proclamação da

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):295-312, jan./abr. 2022. 305


Vera Cabana Andrade

República. A 3ª e última parte reúne 45 artigos de diferentes jornais com


temas bem variados, destaque para os trabalhos de Escragnolle Dória: “A
formação intelectual de Pedro II”, e de Max Fleiuss: “O Imperador julga-
do pelos intelectuais”. No cômputo geral, o número especial da R.IHGB
apresenta D. Pedro II como “um político de visão”, capaz de manter a
unidade nacional, pedra de toque da opção monárquica e do princípio da
alteridade em relação à América Hispânica e capaz de arbitrar dissidên-
cias internas e conflitos externos; um estadista empreendedor e aberto
aos princípios do liberalismo econômico; representação do “monarca sá-
bio”. Num processo de apropriação do epíteto, os intelectuais brasileiros
da virada do século se referem a D. Pedro II como “um monarca sábio
enquanto monarca culto”, possuidor de uma formação erudita, promotor
da educação e da cultura como bases da civilização ocidental, de perfil
clássico europeu, branco e cristão.

Como não poderia deixar de ser, o centenário de D. Pedro II foi


também comemorado, em sessão solene de 2 de dezembro de 1925 no
salão nobre do Externato do “seu colégio”. O orador oficial, professor
Escragnolle Dória rememorou o passado de glórias do patrono e do colé-
gio, homenageando o protetor e sua obra, trazendo da história-memória o
passado para o presente:
Este dia do presente pertence inteiro ao passado. Vamos recordar, por-
tanto reviver [...]. Podiam faltar a D. Pedro II todas as homenagens,
menos a nossa. Esquecê-lo era deslustrar-nos, bastando nomear-nos
para compreender o olvido[...] O Colégio Pedro II, criado quando a
nacionalidade começava a crescer, é a casa da tradição e da história.
[...] Tudo aqui é de um lado história, saudade, de outro preito, justiça
e confiança no Brasil. [...] Mas de tudo isso [o passado comum do co-
légio na monarquia] vai ficar apenas lembrança, no intercalar de uma
página do colégio nos Anais da Comemoração do Primeiro Centenário
Natalício de D. Pedro II15.

Como professor catedrático de história do Colégio Pedro II,


Escragnolle Dória recebeu da Congregação – Portaria de 2 de abril de
15 – Annuario do Collegio de Pedro II Commemorativo do 1º Centenario Natalicio de
D. Pedro II. Rio de Janeiro: A Encadernadora, v.VI, 1912, p. 39-41.

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Homenagem aos 150 anos de nascimento
do sócio Luiz Gastão D’escragnolle Dória

1834 –, a incumbência de escrever a história dos 100 primeiros anos do


colégio como parte dos eventos comemorativos do centenário de funda-
ção da escola em 1937. No desempenho de sua “missão” compilou todos
os documentos possíveis de serem reunidos à época e reconstruiu, em de-
talhes, a trajetória institucional das origens – Colégio dos Órfãos de São
Pedro/ Seminário de São Joaquim; Imperial Colégio de Pedro II/ Ginásio
Nacional/ Colégio Pedro II – através das reformas da instrução pública,
dos planos de ensino e programas de estudos, da sequência dos dirigentes,
dos quadros docentes e discentes, catedráticos e alunos eminentes. Sua
obra Memmoria Historica do Collegio de Pedro Segundo. 1837-1937.
Publicação Official Commemorativa do Primeiro Centenario, Ministério
da Educação e Saúde de 1937, define o primeiro colégio de instrução se-
cundária do Brasil como – “um exemplar ou norma para os que se acham
instituídos por particulares na Corte e nas demais províncias”, conforme
proposta do fundador Bernardo Pereira de Vasconcelos16, e como – como
personagem da história da educação no Brasil: “Relativamente velho em
um país tão novo, o Colégio Pedro II pode justamente se ufanar de sua
existência e pode dizer às gerações futuras que as passadas souberam
cumprir nobremente o seu dever.” (p. 228)

As comemorações do centenário do Colégio Pedro II fizeram parte


do Calendário Cívico do Estado Novo:

1937 – Centenário do CP II

1938 – Centenário do IHGB e do Arquivo Nacional

1939 – Nascimento do Marechal Floriano Peixoto

1940 – Maioridade de D. Pedro II

1941 – Nascimento de Prudente de Morais e Campos Sales.

Estes eventos, considerados a partir dos seus conteúdos político-


-culturais, foram promovidos pelo próprio Governo Vargas, através do
16  –  Discurso de Bernardo Pereira de Vasconcelos. Sessão solene de inauguração do
colégio, em 25 de março de 1838.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):295-312, jan./abr. 2022. 307


Vera Cabana Andrade

Ministério da Educação e Saúde, pelo Ministro Gustavo Capanema, com


o objetivo de integrar o presente do Estado Novo no passado histórico
recuperado, valorizado e não mais temido, evocado pela tradição e re-
presentado como fundamento da nacionalidade17. Esta diretriz política
comemorativa mobilizou instituições culturais e grupos heterogêneos de
intelectuais influenciadores de opinião que reescreveram/revisitaram o
passado, podendo ser considerado um dos mais importantes momentos
de reabilitação da figura de D. Pedro II.

Luiz Gastão d’Escragnolle Dória foi considerado um “modelo de


mestre, sóbrio e conselheiro dos alunos, cordial e discreto com seus pa-
res”. O falecimento do “ilustre professor e historiador” rendeu homena-
gens da imprensa, do Arquivo Nacional, do Colégio Pedro II e do IHGB.

O Jornal do Comércio noticiou o falecimento de seu antigo colabo-


rador em artigo do dia 15 de janeiro de 1948:
Faleceu, ontem, nesta Capital, o Dr. Escragnolle Dória, professor
emérito do Colégio Pedro II e uma das figuras de maior projeção no
magistério do país, historiador de nomeada e autor de valiosos traba-
lhos literários, didáticos, tendo colaborado durante algum tempo nesta
folha (1891/1922). [...] O professor Escragnolle Dória deixa viúva D.
Lavínia de Oliveira d’Escragnolle e uma filha D. Cecília de Oliveira
d’Escragnolle. Seu enterramento será realizado hoje, às 14 horas,
no Cemitério de São João Batista, saindo o féretro da Capela Real
Grandeza.
Nota de pesar do Colégio Pedro II: Dedicado desde a juventude às
lides do ensino, o ilustre mestre notabilizou-se pelo carinho e atenção
com que desempenhou suas nobres funções de educador, granjeando a
estima e o respeito de várias gerações.
Preito do Arquivo Nacional: Destacou-se, ainda, o professor
Escragnolle Dória pelo espírito humanitário, tendo concorrido, no
anonimato de sua peculiar modéstia, para a educação e instrução de
muitos jovens desprotegidos pela fortuna e aos quais auxiliava em
quanto podia18.

17  –  GOMES, Ângela de Castro. História e historiadores: a política cultural do Estado


Novo. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1996, p. 146.
18 – Dicionário biobibliográfico de historiadores, geógrafos e antropólogos brasileiros.

308 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):295-312, jan./abr. 2022.


Homenagem aos 150 anos de nascimento
do sócio Luiz Gastão D’escragnolle Dória

Na sessão comemorativa do centésimo décimo aniversário de fun-


dação do IHGB, em 21 de outubro de 1948, o Dr. Pedro Calmon fez a
homenagem póstuma/elogio fúnebre ao confrade:
Biógrafo, ensaísta, historiador admiravelmente instruído acerca dos
grandes e dos miúdos acontecimentos, manteve até o final de laborio-
sa existência a preocupação do patriotismo. O que de panegírico hou-
vesse na sua literatura, o que nela vibrasse de tradicionalismo polêmi-
co, até o seu recorte vetusto de evocação repassado de contrastes com
a medíocre atualidade, correspondiam à energia um tanto intratável
desse patriotismo intransigente. Dava aos moços que o viam de longe
no isolamento austero, de seus assuntos e de sua idade, a impressão de
um desterrado – não na sua terra, senão no seu tempo, pois conservava
a alma dos vinte anos e, o que era mais, a recordação e a sensibilida-
de de sua literatura espoliada de acessórios verbais que dispensava,
para dar à frase uma suposta elegância, torcendo-a a seu jeito. Que
suprimia sistematicamente os artigos e abusava do jogo de palavras...,
mas não se negava a sua arte de recompor as imagens, a engenhosa
invocação dos cenários, a galanteria e o virtuosismo das descrições de
que ressaltava o perfil vigoroso do seu personagem. Possuía o segredo
desse gênero literário e a seu serviço punha o insondável acervo de
sua erudição, espécie de gaveta de feiticeiro donde, infalivelmente,
o mago solitário retirava, sem esforço o chiste, a raridade, a figura
ou o esplendor dos episódios que contava. Contava-os com o veio de
ensinar. E ensinou honradamente até o fim, artífice modesto agarrado
a vida toda às ferramentas do ofício e que só as deixou quando enre-
gelado pela morte já não podia suster a mão laboriosa.

As homenagens póstumas ao eminente professor Escragnolle Dória


se materializaram em nome de uma rua do bairro de Santa Teresa, nome
de uma escola na Estrada do Acari, em Costa Barros, e em um busto eri-
gido na Rua Conde de Bonfim, na Praça Pinheiro Guimarães, defronte ao
antigo Hospital da Ordem Terceira da Penitência, hoje São Francisco da
Providência.

No campo editorial, a Comissão de Atualização da Memória


Histórica do Colégio Pedro II, presidida pelo professor emérito Roberto
Bandeira Accioli, por ocasião das festividades comemorativas dos 160
Rio de Janeiro: IHGB, v. 3, 1993, p. 61 e 62.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):295-312, jan./abr. 2022. 309


Vera Cabana Andrade

anos de fundação do colégio, em 2 de dezembro de 1997, reeditou o livro


institucional de Escragnolle Dória considerando sua importância como
obra rara de história-memória da educação brasileira. A edição original
foi enriquecida com um índice onomástico e uma introdução biobiblio-
gráfica sobre o autor, além da atualização de natureza ortográfica.

– Ficha catalográfica

DÓRIA, Escragnolle. Memória Histórica do Colégio de


Pedro Segundo. 1837-1937. Comissão de Memória Histórica do
Colégio Pedro II. ACCIOLI, Roberto Bandeira et alii. Brasília:
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, 1997.
ISBN 85-86260-70-X

A equipe do Núcleo de Documentação e Memória do Colégio Pedro


II – NUDOM CP II – também reverenciou a memória do professor
Escragnolle Dória ao continuar seu trabalho de pesquisa com a produ-
ção do livro institucional comemorativo dos 180 anos de fundação do
CP II: Memória Histórica do Colégio Pedro II: 180 anos de história
na Educação do Brasil. SANTOS, Beatriz Boclin Marques dos et alii;
ANDRADE, Vera Lucia Cabana de Queiroz; RODRIGUES, Vera Maria
Ferreira; SILVA, Elizabeth Monteiro da. Rio de Janeiro: Colégio Pedro
II, 2018.

Referências bibliográficas
Annuario do Collegio de Pedro II Commemorativo do 1º Centenário Natalicio
de D. Pedro II. Rio de Janeiro: A Encadernadora, v. VI, 1927.
BLAKE, Augusto Victorino Sacramento. Diccionario Bibliographico Brazileiro.
Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, v. 5, 1899, p. 411.
DÓRIA, Escragnolle. Memória Histórica do Colégio de Pedro Segundo. 1837-
1937. Comissão de Memória Histórica do Colégio Pedro II. ACIOLI, Roberto
Bandeira et alii. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais,
1997.
R.IHGB, tomo 109, v. 164, p. 432-436, 1931.
SEGISMUNDO, Fernando. Grandezas do Colégio Pedro II. Rio de Janeiro:
Unigraf, 1996, p. 27-29.

310 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):295-312, jan./abr. 2022.


Homenagem aos 150 anos de nascimento
do sócio Luiz Gastão D’escragnolle Dória

TAPAJÓS, Vicente; colaboração Pedro Tórtima. Dicionário biobibliográfico de


historiadores, geógrafos e antropólogos brasileiros. Sócios falecidos entre 1921
e 1961. Rio de Janeiro: IHGB, v. 3, 1993, p. 61 e 62.

Texto apresentado em julho de 2021. Aprovado para publicação em


junho de 2022. 

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):295-312, jan./abr. 2022. 311


BENFEITORES DA REVISTA DO IHGB
Adriana Pereira Campos Fernando Itanga
Alex Varela Francisco Fernando Monteoliva Doratioto
Alexandre Hubner Francisco Rogério Madeira Pinto
Alexandre Mansur Barata Fábio Lemos
Alexandre Raicevich de Medeiros Gefferson Ramos Rodrigues
Ana Paula Sampaio Caldeira Gisele Cristina Cipriani de Almeida
André Ricardo Heraclio do Rego Giulia Seixas Calumby Lisboa
Andréa Camila Guilherme Neves
Angela Fonseca Souza Assis Guilherme Ribeiro
Angela Maria Roberti Martins Gunter Axt
Anita Correia Lima de Almeida Gustavo Pereira
Antonio Celso Alves Pereira Gustavo Silveira Siqueira
Antônio Carlos Jucá Gustavo Sousa
Arno Wehling Hanna Sonkajärvi
Associação Nacional de História Seção Heloisa Maria Murgel Starling
Regional do Rio de Janeiro Hendrik Kraay
Beatriz de Moraes Vieira Hilda Leonor Cuevas de Azevedo-Soares
Bruno Santos Sobrinho Humberto Fernandes Machado
Caio Affonso Leone Irene Scofano Gonçalves Figueiredo
Camila Belarmino Isadora Maleval
Carla Hauer Israel Aquino
Carlos Fernando Pinto Machado e Silva Jaime Antunes da Silva
Carlos Kessel Jali Meirinho
Celso Queiroz Jean Marcel Carvalho França
Christian Edward Cyril Lynch Jose Murilo de Carvalho
Cleyson de Moraes Mello José Alberto da Costa Maia
Cláudia Beatriz Heynemann José Damião Rodrigues
Daniel Mello João Araujo
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Evanildo Cardoso João Marcos Copertino
Fabio Peixoto Juliana de S Duarte
Fellipe Dennilson Ribeiro Feijó Juliana Timbó Martins
Fernanda Kieling Pedrazzi
Jéssica Uhlig Paulo Knauss
Júlia Ribeiro Junqueira Paulo Roberto de Almeida
Kátia Sausen da Motta Paulo Roberto Menezes
Laura Junqueira de Mello Reis Pedro Henrique Duarte Figueira Carvalho
Lauro Figueiredo Phillipe Rocha Silva
Leonardo dos Reis Gandia Rafael Cupello Peixoto
Leonardo Paschoal Guimarães Rafael de Castro Baker Botelho
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Lucia Maria Paschoal Guimarães Ricardo Sontag
Luciano Raposo Figueiredo Roberto Guedes Ferreira
Luciene Carris Rodrigo Elias Caetano Gomes
Luiz Carlos Ramiro Junior Rogério de Souza Farias
Luiza Silva Rosemary Saraiva da Silva
Marcello Otávio Neri de Campos Basile Sheila Moura Hue
Marcia Motta Silvana Mota Barbosa
Maria de Nazareth Correa Accioli Lobato Tania Bessone C. Ferreira
Maria do Rosário Alves Moreira da Tatyana de Amaral Maia
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Maria Leticia Corrêa Thalles Augusto de Carvalho Siciliano
Maria Teresa Bandeira de Mello Thiago Groh de Mello Cesar
Mariana Carvalho Thiago Magalhães
Marina Monteiro Machado Thiago Reis
Maíra M. S. Villares Vianna Túlio Manoel Leles de Siqueira
Miriam Collares Valdei Araujo
Monica Duarte Dantas Victor Oliveira
Nathália Tomagnini Carvalho Wanderson Oliveira
Natália Cabral dos Santos Esteves William Martins
Neusa Fernandes Wilma Peres Costa
Orlando de Barros Anônimo
Patricia Boueri
Paulo Fernando de Albuquerque Mara-
nhão
Paulo Henrique Fontes Cadena
Paulo Henrique Paschoeto Cassimiro
Agradecemos aos seguintes colaboradores pareceristas
para esse número da R.IHGB

Alfredo de Jesus Flores UFRGS


Arno Wehling ABL – UFRJ – IHGB
Christian Edward Cyril Lynch IESP – UERJ
Clayton José Ferreira UFOP
Clarize Speranza UFRGS
Gustavo Cabral UFC
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Luiz Antonio Bogo Chies Univ. Católica Pelotas
Luís Cláudio Villafañe G. dos Santos IRB
Marcos Guimarães Sanches UNIRIO
Maria Pia dos Santos Lima Guerra UNB
Nelson Tomelin Junior UFAM
Rafael Lamera Giesta Cabral UFERSA
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Tyrone Apollo Pontes Candido UECE
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Endereço para correspondência:


Revista do IHGB/IHGB
E-mail: revista@ihgb.org.br
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
AUTHOR GUIDELINES
1. The Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro is a scientific publication, focusing on the
diffusion of historical knowledge, as well as other subjects, foremost when related to Brazilian Studies.
2. The management organs of the Revista are the Editorial Board, the Advisory Board and the Editorial
Committee.
3. The Advisory Board is responsible for the evaluation of the contributions submitted for publication.
4. The publication of each and every collaboration will depend on the compliance to editorial rules and on
the evaluation of the Editorial Board, the Editorial Committee and/or advisors ad hoc. The articles are
submitted to blind peer-review process and, in order to ensure its quality, authors must delete from their
manuscripts all information that might disclose the text’s authorship.
5. The concepts expressed in what is published are entirely the authors’ responsibility.
6. The texts will be published through the authors’ grant of publication copyright to the Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, through the e-mail indicated below.
7. The Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro publish the following kinds of contributions:
7.1 Articles include analytical texts or essays which are the result of studies and researches
concerning themes that are of interest to the R.IHGB (up to ten thousand words).
7.2 Notifications are destined to the publication of brief interventions, made by members or guests in
the sessions of the IHGB (up to four thousand words).
7.3 Research Notes focuses on preliminary reports and partial results of ongoing investigations (up to
five thousand words).
7.4 Documents refer to preferably unpublished sources and should come with comments (up to ten
thousand words).
7.5 Bibliography includes any review essay (up to two thousand words, without summary and
abstract).
8. The article’s author will have a fortnight to send the authorization term back since the date R.IHGB
communicates its approval.

EDITORIAL RULES
• Any submission must be the original work of the author that has not been published previously, as a
whole or in part, either in print or electronically, or is soon to be so published. It may be written in
Portuguese, English, French, Spanish or Italian.
• Except works addressed to the section on bibliography, authors must mandatorily present titles
and 
abstracts in Portuguese and English, independently of the language of the original text. If it is not
in Portuguese or English, it will be necessary to add the abstract in the original language as well. The
abstract cannot have more than 250 (two hundred and fifty) words, followed by the minimum of 3 (three)
and the maximum 6 (six) keywords, in English and Portuguese.
• Documents sent to publication have to be transcribed and bring the archival indication from where they
were copied, accompanied by an introduction.
• The R. IHGB limits the opportunity of publication according to its schedule and interest, notifying
the 
approval or disapproval of the publication to the author. The original texts will not be returned.
TEXTS PRESENTATION
• Front page: all articles should come with an unnumered front page, which should state its title, the
author’s / authors’ whole name(s) and institution(s) to which he / she / they belong. A footnote should
mention the complete address and e-mail of the author / authors, to whom any mail will be sent. The
author’s / authors’ identification should not appear anywhere else;
• Texts should be presented in format A4, margins 2,5cm, space between lines 1,5cm, font Times New
Roman size 12, and consecutive numbering of pages. The Microsoft Word text editor or a compatible
one should be used. If there are tables, graphs, images or any other pictures, they should be presented in
the proper place into which they fit. Pictures and images have to be scanned in 300 dpi in format jpg and
approximately dimensioned to 5 x 5 cm;
• Translations, preferably unpublished, should have the author’s authorization and the respective original
text.
• Notes must come at the end of the page. No bibliography should apppear at the end.
• Norms for presenting footnotes:
• Books: LAST NAME, First Name. Title of the book in italics: subtitle. Translation. Edition. City:
Publisher, year, p. or pp.
• Chapters: LAST NAME, First Name. Title of the chapter. In: LAST NAME, First Name (ed.). Title of
the book in italics: subtitle. Edition. City: Publisher, year, p. nn-nn.
• Article: LAST NAME, First Name. Title of the article. Title of the jounal in italics. City: Publisher. Vol.,
n., p. x-y, year.
• Thesis: LAST NAME, First Name. Title of the thesis in italics: subtitle. Thesis (PhD in .....) Institution.
City, year, p. nn-nn.
• Internet: LAST NAME, First Name. Title. Available at: www....., consulted dd.mm.yy.
• Originals may only be submitted to the e-mail below.

Only the texts presented accordingly to the rules defined above will be
accepted.

Contact Adress :
Revista do IHGB/IHGB
E-mail: revista@ihgb.org.br
REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO

Informações básicas
Circulando regularmente desde 1839, a Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro é uma
das mais longevas publicações especializadas do mundo ocidental. Destina-se a divulgar a produção
do corpo social do Instituto, bem como contribuições de historiadores, geógrafos, antropólogos,
sociólogos, arquitetos, etnólogos, arqueólogos, museólogos e documentalistas de um modo geral.
Possui periodicidade quadrimestral, sendo o último número de cada ano reservado ao registro da vida
acadêmica do IHGB e demais atividades institucionais. A coleção completa da Revista encontra-se
disponível para consulta on line, no endereço: http://www.ihgb.org.br/rihgb.php
A abreviatura de seu título é R. IHGB, que deve ser usada em bibliografias, notas de rodapé e em
referências e legendas bibliográficas.
Fontes de indexação
• Historical Abstract: American, History and Life
• Ulrich's International Periodicals Directory
• Handbook of Latin American Studies (HLAS)
• Sumários Correntes Brasileiros
• Classificação dos veículos utilizados pelos programas de pós-graduação para a divulgação da
produção intelectual de seus docentes e alunos/Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível
Superior - QUALIS/Capes - conceito B1.
Patrocinadores
A publicação recebe apoio do seguinte órgão:
• Ministério da Cultura
Endereço
e-mail: revista@ihgb.org.br

Some basic information


The Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro is published regularly since 1839. It is one
of the oldest western world specialized publications. It aims at publishing the productions of the
members of the Institute, as well as the contributions of historians, geographers, anthropologists,
sociologists, architects, ethnologists, archaeologists, museologists and documentalists in general. It
is published every for four, but the last publication of each year is dedicated to the registry of the
Institute's academic life and other institutional activities. The magazine's complete collection is
available for online consultation, at the site: http://www.ihgb.org.br/rihgb.php
The abbreviation of its title is R. IHGB. It has to be used in bibliographies, footnotes and
bibliographic references and subtitles.
Index sources
• Historical Abstract: American, History and Life
• Ulrich's International Periodicals Directory
• Handbook of Latin American Studies (HLAS)
• Brazilian Current Briefs
• Classification of the vehicles used by Brazilian post-graduate programs for the divulgation of
the intellectual production of teachers and students – QUALIS/Capes – grade B1.
Sponsors
The publication receives support from the following entity:
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