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A Sociedade Espetacular

Cláudio Novaes Pinto Coelho

Um dos principais equívocos sobre a sociedade contemporânea é o argumento de que o conjunto dos meios
de comunicação, a mídia, é a instituição social mais poderosa. Será? Fazem parte desse argumento
expressões problemáticas como “sociedade midiatizada”, “cultura da mídia” etc. Olhemos de perto o poder
dos memes (Cultura memética) na comunicação diária...

Antes de mais nada, é preciso distinguir quais meios de comunicação possuem poder e que tipo de poder
exercem. Não há dúvida de que conglomerados empresariais como as Organizações Globo, no contexto
brasileiro, e a News Corporation, de Rudolph Murdoch, no contexto mundial, são exemplos de instituições
poderosas, que movimentam enorme quantidade de capital, influenciam comportamentos individuais e
coletivos e agem politicamente, defendendo seus próprios interesses e os interesses da sociedade capitalista
de modo geral. De forma alguma essas empresas podem ser consideradas como fazendo parte de uma
mesma instituição social, com todos aqueles que são produtores de mensagens e utilizam algum tipo de
recurso tecnológico.

O conceito de “indústria cultural”, ainda que tenha sido criado por Adorno e Horkheimer na primeira metade
do século passado, explica muito melhor a atuação dos meios de comunicação do que o termo “mídia”, pois
destaca a dimensão econômica da comunicação. Adorno e Horkheimer, no livro Dialética do Esclarecimento,
publicado em 1947, já indicavam que os conglomerados empresariais que atuam na comunicação são
fundamentais para a existência da sociedade capitalista, mas que seu poder depende do poder dos
conglomerados empresariais de modo geral.

Sociedade do espetáculo e capitalismo

A própria expressão “sociedade do espetáculo” pode dar margem a interpretações equivocadas, se for
entendida como o poder que as imagens exercem na sociedade contemporânea. É certo que Guy Debord, o
criador do conceito de “sociedade do espetáculo”, definiu o espetáculo como o conjunto das relações sociais
mediadas pelas imagens.

Mas ele também deixou claro que é impossível a separação entre essas relações sociais e as relações de
produção e consumo de mercadorias. A sociedade do espetáculo corresponde a uma fase específica da
sociedade capitalista, quando há uma interdependência entre o processo de acúmulo de capital e o
processo de acúmulo de imagens. O papel desempenhado pelo marketing, sua onipresença, ilustra
perfeitamente bem o que Debord quis dizer: das relações interpessoais à política, passando pelas
manifestações religiosas, tudo está mercantilizado e envolvido por imagens. Mas, se a sociedade do
espetáculo só pode ser compreendida dentro do contexto da sociedade capitalista, isso não quer dizer que só
nessa forma de vida social ocorre a produção de espetáculos.

A produção de imagens, a valorização da dimensão visual da comunicação, como instrumento de exercício


do poder, de dominação social, existe, conforme argumenta Debord no livro Sociedade do Espetáculo,
publicado em 1967, em todas as sociedades onde há classes sociais, isto é, onde a desigualdade social está
presente graças à divisão social do trabalho, principalmente a divisão entre trabalho manual e trabalho
intelectual.

Na sociedade feudal, por exemplo, o poder da nobreza sobre os servos estava vinculado à aparência de
superioridade construída pelos nobres, mediante o uso de peças sofisticadas de vestuário, a construção de
moradias com estilos arquitetônicos imponentes, a organização de festas suntuosas etc. O que permite a
caracterização do capitalismo como a sociedade do espetáculo é o caráter cotidiano da produção de
espetáculos, a quantidade incalculável de espetáculos produzidos e seu vínculo com a produção e o consumo
de mercadorias feitas em larga escala.

O poder espetacular

Na sociedade capitalista, o poder espetacular está disseminado por toda a vida social, na qual há
simultaneamente produção e consumo de mercadorias e de imagens, constituindo-se na forma difusa desse
poder, conforme definição dada por Debord em 1967, ou ocorre vinculado à ação do Estado, de forma
concentrada, com a produção de imagens para justificar o poder exercido por seus dirigentes.

Assim como o conceito de “indústria cultural”, o conceito de “sociedade do espetáculo” faz parte de uma
postura crítica com relação à sociedade capitalista. Não são conceitos pensados de maneira puramente
acadêmica, como capazes apenas de descrever as características sociais, mas fazem parte de uma
construção teórica que procura apontar aquilo que se constitui em entraves para a emancipação humana.

Na década de 1960, Guy Debord e os demais militantes políticos e culturais aglutinados em torno da
Internacional Situacionista destacaram-se pela capacidade de influenciar um dos mais importantes
movimentos sociais do século 20, que contou com a participação de milhões de estudantes e operários e
entrou para a história como o movimento de maio de 1968. Os situacionistas defendiam uma ação contra a
alienação presente na vida cotidiana, postulando que os estudantes e os trabalhadores deveriam retomar o
controle sobre suas próprias vidas, ocupando as escolas e fábricas e passando a exercer, com base em
decisões tomadas coletivamente em assembleias, o poder nessas instituições. As ocupações aconteceram,
mas fracassaram como estratégia para revolucionar a sociedade capitalista.

Em 1988, Debord publica os Comentários sobre a Sociedade do Espetáculo, reconhecendo que, em vez de a
sociedade do espetáculo ser destruída, ela se fortaleceu no período histórico posterior às lutas sociais de
1968. Nesse texto, ele afirma que a produção de espetáculos tomou conta de toda a vida social; o poder
espetacular manifesta-se agora de forma integrada, já que desapareceram os movimentos sociais de
oposição, que se assimilaram à sociedade capitalista e não defendem mais sua superação.

A análise feita por Debord em 1988 a respeito do poder espetacular corresponde ao momento do triunfo do
neoliberalismo em escala mundial. O neoliberalismo, com a defesa da liberdade de atuação para os grandes
conglomerados empresariais, significou um retrocesso nas conquistas sociais dos trabalhadores, causando o
avanço do desemprego, da precarização das condições de trabalho, e o enfraquecimento dos sindicatos,
movimentos sociais e partidos de esquerda.

Com o neoliberalismo, o poder dos conglomerados comunicacionais fortalece-se e a indústria cultural,


articulada mundialmente, transforma-se no porta-voz ideológico do capitalismo, desqualificando qualquer
visão contrária a ele como ultrapassada, promovendo assim o pensamento único, em relação ao qual não há
alternativa.

O contexto contemporâneo

A atual crise econômica, que se manifesta intensamente nos Estados Unidos e na Europa e faz com que
somas gigantescas, na casa dos trilhões de dólares, sejam direcionadas pelos governos para “salvar”
instituições financeiras envolvidas numa verdadeira orgia especulativa, está provocando um abalo
significativo no neoliberalismo e no pensamento único.

Na América Latina, esse abalo teria começado antes, com a ascensão ao poder de líderes políticos
considerados de esquerda. No entanto, não é muito fácil avaliar se essa ascensão significou efetivamente um
abalo no neoliberalismo, já que, na prática, são governos com atitudes bastante distintas. No Brasil, por
exemplo, em que pese a melhoria das condições de vida da maioria da população com a diminuição das
desigualdades sociais, houve, em linhas gerais, uma manutenção da política econômica neoliberal. Além
disso, nas campanhas eleitorais e durante os mandatos presidenciais de Lula ocorreu uma farta utilização das
técnicas de marketing para a produção de imagens espetaculares capazes de garantir sua eleição, reeleição
e altíssimos índices de popularidade.

Mas, de qualquer maneira, a realidade contemporânea possui elementos suficientes para que uma reflexão
sobre a possibilidade de um retorno da crítica teórica e prática da sociedade capitalista do espetáculo se
torne indispensável.

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